Televisão e política: o papel da telenovela no cenário das eleições de 1994

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o PAPEL DAS TELENOVELAS NA CONSTRUÇÃO DO

CENÁRIO DAS ELEiÇÕES DE 1994

Mauro Pereira Porto

Depto. de Ciência Política e Relações Internacionais (REL) da Universidade de Brasília 70910-900 BrasílialDF FAX: 061-2733930

Trabalho apresentado no GT "Partidos Políticos, Comportamento Eleitoral e Problemas Institucionais", XVIII Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu, MG 23-27 de novembro de 1994 2

o PAPEL DAS TELENOVELAS NA CONSTRUÇÃO DO CENÁRIO DAS ELEIÇÕES DE 19941 Mamo P. Porto2 "A novela tem um pouco dessa obrigação. A gente consegue passar essa mensagem, subjetivamente, através de personagens caricatos, comediantes e criticos (...) Dentro das novelas a gente pode dar cutucadas fantásticas (...) É só o público começar a perceber que o que a gente tá falando é uma mensagem para começar a minar ..."

Suzana Vieira, atriz, a personagem Rubra Rosa da novela "Fera Ferida".

A televisão está transformando a política. Apesar de um consenso crescente na sociedade acerca da importância dos mídia para a análise política, permanecem fortes resistências no meio acadêmico, principalmente na ciência política brasileira, ao reconhecimento dessa importância. Vários acadêmicos, entretanto, têm utilizado diferentes termos para ressaltar as mudanças na política suscitadas pelos mídia: o "vídeo-poder" está transformando o homo sapiens em homo ocular, inaugurando a era da "vídeo- política" ( SARTORI, 1992); para Norberto Bobbio, a vitória de Berlusconi na Itália representa o triunfo da "videocracia", o poder que se exerce não mais pela palavra, mas pela imagem- ; a TV está transformando rapidamente o modo pelo lEste trabalho é um resultado parcial de um projeto de pesquisa mais amplo sobre o papel dos núdia nas eleições presidenciais de 1994 no Brasil e no México. O projeto está sendo desenvolvido pelo Grupo de Trabalho Mídia e Política do Departamento de Ciência Política e Relações Internacionais (REL) da Universidade de Brasília e conta com o apoio do CNPq e do Decanato de Pesquisa e Pós-Graduação da UnB. Agradeço aos membros do GT Mídia e Política a contribuição ao desenvolvimento desse trabalho. 2professor do RELfUniversidade de Brasília e pesquisador do Grupo de Trabalho Mídia e Política. 3 "O grande medo é uma vitória da 'videocracia", Jornal do Brasil, 27 de marco de 1994. 3

qual candidatos são "construídos" e como os políticos governam (SKIDMORE, 1993, p. 2). No Brasil, poucos fenômenos sociais se caracterizam por um êxito tão marcante junto à população e um simultâneo descaso junto aos cientistas sociais como as telenovelas. Mais de 60 milhões de brasileiros assistem diariamente a "novela das oito", o gênero da programação de maior sucesso e audiência. No caso específico dos cientistas políticos, o descaso é ainda maior, apesar do papel crescente das telenovelas na ilustração e debate de questões políticas. Poucos estudos têm analisado as relações entre as novelas e o processo eleitoral, mas a partir da eleição presidencial de 1989 vários autores têm ressaltado essas relações. (RUBIM, 1989; LIMA, 1990; WEBER, 1990; PORTO, 1993 e 1994). O objetivo desse artigo é o de ressaltar a importância das novelas para a análise do processo político através do estudo de caso sobre o seu papel na construção do "Cenário de Representação da Política" da eleição presidencial de 1994. O texto é organizado da seguinte forma: apresentamos inicialmente o marco teórico que orienta a pesquisa - principalmente o conceito de "Cenário de Representação da Política" - e a metodologia utilizada. Em seguida, passamos à análise das representações sobre o "mundo da política" construídas nas novelas "" e "Fera Ferida" da Rede Globo. Finalmente, apresentamos algumas conclusões preliminares sobre as representações construí das nas novelas e suas implicações para o processo eleitoral de 1994.

REFERENCIAL TEÓRICO

a) O Conceito de Representação

A análise do papel das telenovelas na eleição presidencial de 1994 é feita a partir de uma tradição nas ciências sociais que tem ressaltado a questão das representações coletivas, as formas pelas quais qualquer sociedade designa a sua identidade e a de seus membros. A ênfase no plano simbólico coletivo - dos 4

ideais, imagens e valores estabelecidos a partir do processo social - constituiu uma forma de reação ao individualismo até então predominante: a sociologia nasce no século XIX como reação à lógica férrea do comportamento individual maximizante do homo economicus, "afmnando a existência de um referente coletivo que é inseparável do próprio indivíduo" (REIS, 1989, p. 25). O surgimento da sociologia se vincula, assim, à visão de que a sociedade tem procedência lógica sobre o indivíduo, onde o social não pode ser reduzido a fundamentos individuais (pp. 26-28). Um autor fundamental na "fundação" desse novo movimento teórico é Émile Durkheim que ressalta em sua obra as determinações do plano social sobre o individual, inscrevendo-se numa tradição metodológica coletivista. O conceito de "representação coletiva" ocupa um lugar importante na obra do pensador francês, ressaltando as formas pelas quais uma coletividade constrói uma imagem de si e de seus membros:

"Uma sociedade não se pode criar nem se recriar sem, ao mesmo tempo, criar um ideal. Essa criação não é para ela uma espécie de indulgência pela qual ela se completaria, uma vez formada; é o ato pelo qual ela se faz e refaz periodicamente (...) Isto porque uma sociedade não é constituída simplesmente pela massa de indivíduos que a compõem, pelo território que eles ocupam, pelas coisas de que servem, pelos movimentos que executam, mas, antes de tudo, pela idéia que faz de si mesma" (DURKHEIM, 1993, p. 170).

É por meio das representações construí das coletivamente que os homens se compreendem, sendo possuídos por uma "força moral" que se impõe aos "espíritos particulares". Acima das representações privadas de cada indivíduo existiria um "mundo de noções-tipo" através do qual ele organiza suas idéias e elabora os conceitos. Assim, ainda que a capacidade de conceber se individualiza, para compreendê-Ia "é preciso referir-se às condições sociais de que ela depende" (p. 177). 5

Na sociologia moderna, a questão dos valores e ideais ressurge com especial força na obra de Max Weber. Mas Weber, ainda que também reflita criticamente sobre o domínio do homo economicus, não renuncia à visão atomizada individualista dos atores sociais: a coletividade não é uma realidade em si, pois só se torna inteligível a partir das relações entre comportamentos individuais (REIS, 1989, pp. 29-30). Apesar disso, Weber ressalta o papel das representações a partir da sua análise do sentido da ação social, sentido esse subjetivamente visado por um agente ou pelos agentes (WEBER, 1991, p. 4). O sentido da ação social pode ser determinado pelas representações, orientando o comportamento dos indivíduos:

"A interpretação da ação deve tomar nota do fato fundamentalmente importante de que aquelas formações coletivas ... são representações de algo que em parte existe e em parte pretende vigência, que se encontram na mente de pessoas reais (não apenas dos juízes e funcionários, mas também do "público") e pelas quais se orientam suas ações. Como tais, têm importância causal enorme, muitas vezes até dominante, para o desenrolar das ações das pessoas reais" (p. 9).

As ações não se orientam de acordo com a percepção da realidade "em si", como algo "dado" fora dos agentes, mas sim de acordo com as representações dessa realidade que são estabeleci das a partir das relações e práticas sociais. O presente trabalho busca ressaltar o papel da telenovelas na construção de representações sobre o "mundo da política", destacando assim a sua importância para a análise do processo político e da ação social. Discutiremos a seguir o papel das novelas na construção de um "Cenário de Representação" específico da política.

b) O Cenário de Representação da Política. 6

A análise das representações sobre o "mundo da política" construídas nas novelas "Renascer" e "Fera Ferida" é feita a partir de alguns pressupostos teóricos já desenvolvidos e utilizados em outros trabalhos (LIMA, 1994~PORTO, 1993 e 1994). A partir do conceito gramsciano de hegemonia, a tentativa é a de desenvolver novos enfoques teóricos que permitam relacionar os mídia - particularmente a televisão - à luta pelo poder político. °conceito de hegemonia perinite destacar as formas pelas quais grupos dominantes justificam e mantêm o seu domínio e ainda conseguem obter o consenso ativo dos governados (GRAMSCI, 1989, p. 87). Ressalta, portanto, a importância da direção política e cultural na sociedade civil para o estabelecimento e defesa do poder político. Nas sociedades contemporâneas, caracterizadas pelo desenvolvimento de uma poderosa indústria cultural, os mídia eletrônicos - particularmente a TV - tomaram-se os agentes principais na construção e disseminação de representações sobre a realidade. As formas pelas quais a realidade é representada nos mídia desempenham um papel constitutivo na vida política e social e não são meros reflexos "a posteriori" dos eventos. Esse processo dinâmico é estabelecido através de "Cenários de Representação" (HALL, 1988). As observações de Stuart Hall sobre as representações de raça negra na cinematografia inglesa permitem sugerir que uma hegemonia pode ser "decomposta", para efeito de análise, em diversos espaços nos quais se constróem representações preferenciais. Assim, poderíamos falar de cenários de representação do gênero, da raça, enfim, de diversos aspectos da vida social. A partir dessa indicação, Venício A. de Lima defrne o conceito de "Cenário de Representação da Política" (CRP) como "lugar e objeto da articulação hegemônica total onde o conjunto de práticas e expectativas, valores e significados da política são expressos/refletidos e também constituídos"(LIMA, 1994, p. 10). É no marco deste cenário próprio para a representação da prática política que se desenvolvem as disputas políticas como, por exemplo, as eleições. A hipótese estabelecida a partir do conceito é a de que o CRP construído na e 7

pela televisão constitui o "espaço" central no qual se estabelecem representações sobre o mundo da política. Assim, candidatos e partidos que buscam uma "adaptação" ao CRP tendem a obter êxito nas disputas eleitorais que se desenvolvem em sociedades onde os mídias tomaram-se instituições consolidadas. Portanto, propostas e candidatos que se contrapõem às representações desse cenário dificilmente terão êxito eleitoral.

METODOLOGIA

a) A perspectiva de longo prazo

Uma das características principais da transição do paradigma dos "efeitos limitados" às novas teorias da comunicação política é o pressuposto de que os efeitos dos mídia no processo eleitoral não devem ser buscados apenas nos curtos períodos da "campanha oficial", mas sim também no longo período que separa uma eleição de outra 4. O exame das mudanças das motivações no breve âmbito da campanha não é apto para verificar o impacto acumulativo da exposição dos meios de comunicação:

"N o sólo durante Ias campaiías, sino también en los intervalos entre Ias mismas, los mass-media aportan perspectivas, acufian imágenes de candidatos y partidos, ayudan a ilustrar cuestiones alredor de Ias cuales se desarrollará una campaiía, y definen Ia atmósfera y Ias zonas de sensibilidad que caracterizan a cualquier campaiía en particular" (LANG e LANG, 1993, p. 80).

Por estes motivos, o presente estudo sobre o papel das novelas na eleição presidencial de 1994 inicia-se em 9 de junho de 1993, quando estava no ar a novela "Renascer",e termina em 16 de julho de 1994, data do último capítulo da novela "Fera Ferida". A análise inclui, portanto, 13 meses e cerca de 300

"Para uma descrição das características dessa transição, ver WOLF, 1992, pp. 123-156. 8

capítulos. O objetivo é o de destacar o papel de longo prazo das telenovelas na ilustração/representação de temas e criação do "clima" que caracteriza o processo eleitoral de 1994.

b) Por que as novelas "Renascer" e "Fera Ferida"?

Como identificar os elementos constitutivos do "Cenário de Representação da Política" no marco do qual se desenvolve o processo eleitoral de 1994? Como se trata de efeitos do conteúdo de longo prazo dos mídia, a tarefa é a de identificar as representações sobre o "mundo da política" construídas na programação da televisão (LIMA, 1994, p. 18). O critério básico para definir o "lugar" da programação onde são construí das essas representações é a audiência dos programas. No período analisado, foram as telenovelas "Renascer" e "Fera Ferida" os programas diários de maior audiência. Além da audiência cabe ressaltar a importância do melodrama na vida cultural da América Latina (MATTELART e MATTELART, 1989), passando a ter um papel crescente, no caso brasileiro, na constituição do imaginário político (PORTO, 1994a).

c) Procedimentos da análise

Para a identificação dos elementos constitutivos do CRP nas telenovelas, adotou-se uma perspectiva metodológica qualitativa. Nessa perspectiva, a pergunta não é "como os mídia nos afetam?", mas sim "quais as interpretações de sentido e valor criadas nos mídia e qual a sua relação com o resto da vida?" (CHRISTIANS e CAREY, 1981). Um primeiro passo é , portanto, a identificação das "interpretações de sentido e valor" sobre a política criadas nos mídia. No presente estudo isso é feito através da análise dos capítulos das novelas, buscando a identificação dos "significados dominantes ou preferenciais" (HALL, 1980, p. 134). Utiliza-se aqui o termo "dominante" e não "determinante" porque é sempre possível ordenar, classificar ou interpretar as representações 9

construídas nas e pelas novelas de diversas formas; entretanto, existem as "leituras preferenciais" que são institucionalizadas, tomando-se hegemônicas (Ibid). A análise pressupõe, portanto, um esforço de caráter qualitativo no sentido de identificar as representações dominantes da política construídas nas telenovelas. Mesmo reconhecendo que as possibilidades de leitura são as mais variadas, o pressuposto é o de que é possível identificar as representações dominantes sobre a política construídas nas novelas. Tais representações são parte constitutivas do CRP e oferecem "marcos de referência" que possibilitam aos indivíduos "dar sentido às suas ações", como, por exemplo, a decisão do voto. Analisaremos a seguir as representações sobre o "mundo da política" construídas nas novelas "Renascer" e "Fera Ferida". Esta análise possibilitará a identificação de alguns dos elementos constitutivos do Cenário de Representação da Política no marco do qual se desenvolve o processo eleitoral de 1994.

A NOVELA "RENASCER"

a) A desqualificação da política

A novela "Renascer" da Rede Globo constituiu um fórum importante na discussão de questões políticas, incluindo em seu enredo diversos episódios e temas da conjuntura nacional do período em que foi ao ar. Veremos a seguir como se construíram representações sobre a política nesse espaço da programação televisiva. O enredo da novela tem como protagonista principal o coronel José Inocêncio, um proprietário de terras na região do cacau no interior da Bahia. É em tomo do coronel, suas posses e sua família, que se estrutura a narrativa. 10

A política se faz presente em "Renascer" a partir de um dos filhos do coronel, João Bento, um advogado fracassado que vive às custas do pai. João Bento decide entrar na política e se candidatar a vereador, contando com o apoio do pai para sua eleição. Inicia então contatos com o governador do Estado e outras lideranças com o objetivo de conseguir uma legenda para a sua candidatura. Com a recusa do pai em "comprar" uma legenda, João Bento acaba desanimando de seus planos, reconhecendo as dificuldades por não ter militância partidária e embasamento teórico. A candidatura fracassada do filho do coronel reforça uma característica comum a outras novelas da Rede Globo, a "desqualificação da política": todos os políticos são corruptos ou se utilizam da atividade política em beneficio próprio, construindo uma generalização de qualidades extremamente negativa a toda a classe política. No caso de "Renascer", é exatamente um dos "piores" personagens da estória, ambicioso e parasita, que decide se dedicar a uma possível carreira política. Isso fica claro nos capítulos fmais, durante um diálogo entre o coronel e o personagem Norberto, quando José Inocêncio afmna ter vendido uma fazenda em Goiás a um político. O coronel passa a escritura da fazenda por um terço do valor da propriedade porque o político não tinha como explicar de onde vinha tanto dinheiro, recebendo o pagamento em dólar e à vista. Norberto afuma então que "é por essas e outras razões que o doutor João Bentinho dava um grande político", vinculando diretamente a atividade política aos indivíduos corruptos, parasitas ou que atuam sempre de acordo com seus interesses particulares. Essa desqualificação da política se toma evidente também em um diálogo entre o padre Lívio e o coronel, quando o último afuma que existem lugares piores que casas de "quengas", mas decide não falar sobre política. A política é comparada assim à prostituição.

b) A desqualificação do governo e do Estado. 11

Outro tema importante na novela é a desqualificação do Estado e do governo, construindo representações sobre essas formações coletivas profundamente negativas. Outro filho do coronel, José Augusto, afmna em um dos diálogos o seguinte:

"Largou a coisa na mão do governo é fogo. Empata mesmo. Tudo fica mais caro, tudo fica mais dificil. Se precisa de uma pessoa para fazer um serviço, no governo tem dez. E mesmo esse que precisava acaba não fazendo nada porque não quer se sentir um trouxa perto daqueles outros nove lá que ganham muito mais que ele e ficam lá de barriga pro ar."

O Coronel então responde:

"Só que quem está pagando aqueles dez que não fazem nada somos nós, o povo, nós que estamos pisando cacau aqui na barraca, pagando imposto."

José Augusto faz então uma avaliação das razões do fracasso do comunismo no Brasil e no mundo, avaliando a Revolução Russa e a "baboseira" que as pessoas insistem em discutir hoje em dia. Estas pessoas ficam "na esteira da história e não conseguem alcançá-Ia para entendê-Ia melhor". O Estado e o governo são concebidos assim como instituições ineficazes, construindo uma generalização profundamente negativa com relação aos funcionários públicos. Além disso, desqualifica-se as posições políticas de esquerda por defenderem idéias ultrapassadas e fracassadas, associando-as às posturas de defesa do Estado inchado e ineficiente. Outro aspecto relevante deste diálogo, que estará presente em outros momentos da novela, é um estímulo quase explícito à sonegação de impostos. Francisco Weffort já chamou a atenção para o modo como os mídia brasileiros, sob pretexto de criticar as leis tributárias, estimulam abertamente a sonegação (WEFFORT, 1992, p. 50). Em um diálogo sobre a situação dos menores abandonados, o coronel José Inocêncio afmna que gostaria de saber para onde 12

vai o dinheiro do imposto que paga. José Augusto afirma que não vai para a área de saúde e o padre Lívio diz que também não vai para o sistema educacional. O coronel então pergunta: "De quem é a culpa? Do cidadão que sonega imposto ou daquele que rouba o imposto dos que pagam religiosamnete?". O padre responde que os dois são culpados e o coronel acaba concordando, mas as suas perguntas parecem legitimar as atitudes dos que sonegam o imposto sob a alegação de que o dinheiro irá cair nas mãos dos corruptos.

c) A discussão da atualidade

N o mesmo diálogo, aparece outra característica muito importante da novela "Renascer": a discussão dos episódios da atualidade brasileira. Os personagens debatem a questão do combate aos corruptos, mencionando o fato de que "mandaram prender um deles", em uma clara alusão à ordem de prisão de PC Farias, então foragido. O coronel afrrma que os corruptos foram avisados e que ''já estão é muito longe daqui com o dinheiro no bolso e rindo da cara da gente". Durante uma conversa entre João Bento e José Augusto, o primeiro questiona a decisão do irmão de retomar à carreira de médico, sob o argumento de que "o país está estrebuchando na UTI". João Bento menciona então uma matéria da televisão sobre o desperdício de remédios do governo e a impunidade, e o irmão responde: "e já se está discutindo quem vai ser o Presidente da República". Inclui-se assim o tema das eleições presidenciais no enredo a partir de uma discussão que ressalta a ineficácia do governo e uma atitude pessimista com relação à classe política e à conjuntura nacional. Em um dos capítulos, os personagens criticam a revisão constitucional ("estão brincando com o povo") e menciona-se que "um deles" tem afrrmado que o Congresso está cheio de "picaretas", em uma clara referência às declarações do candidato do PT à Presidência da República, Luís Inácio Lula da Silva. José Augusto afrrma que "o problema é que o nosso país é pouco politizado e é raro o 13

eleitor que tem consciência do valor do seu voto". O coronel diz então acreditar que a democracia está em perigo devido à incompetência dos políticos. A discussão acerca do processo político e dos episódios do dia-a-dia aumentou durante o desenrolar da estória. Em um dos capítulos, os personagens estabelecem um longo diálogo, com 6 minutos e 20 segundos, acerca da conjuntura política do país, incluindo temas como o afastamento do Presidente Collor e a CPI do orçamento5. A cena começa com o noticiário da televisão sobre a CPI do orçamento e dá origem a uma intensa discussão. O coronel José Inocêncio afmna não saber com que moral o Congresso cassou o presidente e o padre Lívio argumenta que quem cassou o chefe do executivo não foi o Congresso, mas sim o povo. O padre diz que fechar o Congresso não é o caminho, pois quando isso ocorreu o resultado foram "20 anos de silêncio", de desaparecidos, torturados e mortos nos porões da ditadura. O coronel então afmna: "O certo não é fechar o Congresso não, né padre? É limpar, tirar de lá todos esses desonestos, botar toda essa raça na cadeia". Foi com a transmissão dessa fala do coronel José Inocêncio que o presidente do Partido Popular, Álvaro Dias, abriu o programa do seu partido, afmnando que "essa indignação do José Inocêncio, da novela Renascer, é nacional. Ela toma conta de todo o país"6. A inclusão de um trecho de novela no horário político de um partido é um exemplo eloqüente do processo pelo qual a TV "invade" o espaço da política, fazendo com que setores da classe política busquem uma "adaptação" às representações das novelas.

d) O quadro de crise social

"Renascer" incluiu em seu enredo a discussão sobre temas polêmicos que raramente se fazem presentes na televisão brasileira. A partir do personagem Tião Galinha, a novela discutiu questões como a reforma agrária e a fome. O

50 diálogo está parcialmente transcrito em "Fazendo a cabeça", Veja, 10 de novembro de 1993, pp. 138- 139. 6 O programa do PP foi ao ar no dia 22 de novembro de 1993. 14

sociólogo Herbert de Souza - o Betinho - coordenador da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, chamou a atenção para o importante papel da novela na discussão das questões sociais: "O Benedito Ruy Barbosa chegou a falar de fome na novela Renascer, através daquele personagem feito pelo Osmar Prado. Nós estamos precisando de mais coisas assim,,7. Através da personagem Teca, "Renascer" incluiu o tema dos menores de rua em seu enredo, apresentando cenas do noticiário da TV sobre o massacre de menores da Candelária, no Rio de Janeiro. Outro tema que ganhou bastante espaço em "Renascer" foi a questão da educação, principalmente a partir da professora Lu. Em um dos capítulos, a professora fala sobre os péssimos salários dos professores no Brasil, pois os mesmos estão esquecidos pelos os que estão no poder. Afmna então que quando os professores protestam são confundidos com arruaceiros e apanham da polícia, em uma clara referência à paralisação dos professores do Estado de São Paulo. Rebatendo os rumores espalhados pelo governador de São Paulo, Luíz Antonio Fleury Filho, de que a CUT havia pago merchandising para divulgar a sua greve, o autor da novela, Benedito Ruy Barbosa, afmna: "Abordar tal assunto é apenas fruto da consciência do próprio autor, que não se aliena à incrível situação dos professores no Estado de São Paulo e no país (...) O autor passa nove meses contando uma História. É uma obrigação, enquanto intelectual, pretender deixar algo de residual na cabeça dos telespectadores,,8. A professora Lu aproveitou suas aulas para falar da importância da democracia, afmnando ser dificil para os alunos entenderem este conceito já que "pra vocês aqui o poder é o dono das terras onde seus pais trabalham" e acaba se irritando quando uma das alunas afmna não estar entendendo "nada dessa prosa". Passa então o comando da aula para a assistente que ressalta a importância do voto, pois "estão querendo não educar o povo para se manterem no poder".

7"Campanha contra a fome precisa de mais apoio", Correio Braziliense, 3 de janeiro de 1994, p. 8. 8"Fazendo ...", p. 139. 15

A NOVELA "FERA FERIDA"

a) A desqualificação da política

A novela "Fera Ferida", de , sucedeu "Renascer" no horário das 20 horas. O enredo, que tem lugar na imaginária cidade de Tubiacanga, foi inspirado na obra de Lima Barreto, tendo incluído diversos temas, personagens e episódios que tiveram um papel importante na construção de representações sobre o mundo da política. O personagem principal da estória é Raimundo Flamel, nome adotado por Feliciano Filho para voltar à cidade e vingar a morte dos pais. Seu pai, então prefeito da cidade, descobre uma suposta pepita de ouro, desencadeando uma corrida em busca do precioso metal. Descobre-se depois que o suposto ouro não tinha qualquer valor e o dinheiro recollúdo da população para a "Empresa municipal de mineração" desaparece misteriosamente. Alguns dos "donos do poder" de Tubiacanga estimulam uma revolta popular e a perseguição da família do prefeito que acaba morrendo com a esposa durante a fuga da cidade. Sobra apenas o filho que voltará anos mais tarde para vingar a morte dos pais. O "mundo da política" está presente em todo o decorrer da narrativa. Uma das caracteristicas das representações da política na novela é a sua desqualificação, construindo-se generalizações extremamente negativas à atividade política e aos políticos. Um dos personagens principais na construção desse tipo de representação é Demóstenes Maçaranduba, o prefeito da cidade. Demóstenes é um político corrupto, inescrupuloso, que se utiliza dos mais diversos meios para desviar o dinheiro público. É a imagem do político como o indivíduo que só concebe a política como meio de favorecimento próprio. O caráter desse personagem fica demonstrado em um dos episódios, quando o prefeito toma sem saber o "xixi de defunto". O líquido, que havia brotado no lugar onde os pais de Flamel foram enterrados, tinha o poder mágico de fazer com que as pessoas dissessem a verdade em público. O prefeito diz então na 16

praça central da cidade: "povo só serve para votar na gente e pagar imposto. O povo é lixo. Eu vou roubar. Eu vou fazer o governo mais corrupto que esse país já viu". É assim que o prefeito concebe seus objetivos e o povo da cidade. Demóstenes é também a figura do político com o dom da oratória, mas uma oratória destinada a enganar os eleitores. Em um dos episódios, o prefeito afirma: "às vezes acho que a vida de um político não passa de preparar discursos". Nesse e em outros episódios a política é associada ao "fingimento". Outro personagem importante na construção da desqualificação da política é o vereador Numa Pompílio de Castro, líder da chamada oposição, mas que sempre compactua e se submete aos demais "donos do poder" de Tubiacanga. Também o vereador concebe a política como meio de enriquecimento através das irregularidades e como a arte da mentira e das falsas promessas. Em determinado momento, ele afmna que "o hábito de fazer promessas sem cumprir são ossos do oficio do político". Em outro episódio, o vereador diz que é preciso aproveitar o forte temporal que cai na cidade para fazer uma visita à periferia: "Aí é hora do político aparecer por lá, falar em dar apoio, fazer uma promessa, falar em solidariedade. Maior a desgraça, mais fundo bate a promessa". Além disso, o vereador se utiliza da "verba de representação" da Câmara para os mais diversos frns particulares, como a compra de temos. O major Emiliano Bentes, um militar reformado que personifica o autoritarismo na estória, também contribuiu para desqualificar a política. O major se associa ao prefeito para dominar a cidade, apresentando-se como o responsável pela "segurança nacional" de Tubiacanga. Para o major Bentes, os políticos também são pessoas que se utilizam da oratória para enganar o povo: "falam, falam e não dizem nada". Em um dos diálogos, afmna que a política não tem nada a ver com qualidades como amizade, nobreza de caráter e solidariedade. Mas não só os "poderosos" de Tubiacanga que concebem a política como uma atividade suja, construindo generalizações negativas a todos os políticos. Também os moradores da cidade assim se referem à política. Uma das personagens de maior credibilidade na novela, a costureira Margarida Weber, 17

após receber um jornal com denúncias contra o prefeito; afirma: "isso só vem confmnar o que eu digo. Para que servem os políticos? para nada ... A maioria é salafrária, é corrupta, e quando não são ladrões, são incompetentes e incapazes". A citação é bastante explícita ao ressaltar a inutilidade e a incompetência da classe política. No mesmo capítulo aparecem alguns depoimentos de populares nas ruas que afmnam: "Essa gente vive disso mesmo. Só sabe mentir e enganar"; "político não deveria existir. Todos eles não prestam e é uma praga"; "não serve para nada, a não ser roubar quem trabalha direito e paga imposto que nem nós aqui". Também os "heróis" da estória, que representam o bem em sua luta contra o mal, têm a mesma concepção da política. Flamel diz ao espírito de seu pai no

cemitério: "O senhor sabe que não existe justiça nesta cidade __o o senhor sabe

que o prefeito, a política, os políticos são corruptos, são ladrões __o Quem vai fazer essas pessoas pagarem pelo seu crime?". Em um dos diálogos o poeta Afonso Henriques diz a Flamel: "seu pai era um homem de bem. Era político como não se tem mais hoje em dia, que acreditava na do povo. Acreditava que a política era apenas um instrwnento, um meio para se levar a felicidade aos outros". O personagem principal da novela responde: "É isso sim, Afonso Henriques, eu quero me aliar a você porque eu voltei para essa cidade para terminar com essa corja de políticos". Desse modo, política como meio de se levar a felicidade aos outros é coisa do passado, é algo que já não existe. Também a "mocinha" da estória, Linda Inês, se refere à política como atividade suja. Comparando a política com as ovelhas da sua criação, ela afmna que "as ovelhas são muito mais limpas que os políticos". A corrupção é uma prática permanente no mundo da política de "Fera Ferida". Durante o desenvolvimento da trama, os políticos se envolvem nos mais diversos esquemas de corrupção. No caso do prefeito e da prefeitura, algumas das ilicitudes foram: a utilização do dinheiro da defesa civil para jantares; atraso no pagamento dos fornecedores para desviar o dinheiro; o pagamento de diversos tipos de despesas privadas do prefeito e de funcionários com dinheiro da 18

prefeitura; o beneficiamento de empreiteiras; a inclusão de emendas no orçamento da União; a construção de obras superfaturadas; o desvio de verbas do governo federal para a construção de casas para os sem-teto; a isenção do imposto territorial para os "poderosos" da cidade. Um dos "esquemas" montados pelo prefeito Demóstenes foi a construção de um "gato", fazendo com que a eletricidade de Tubiacanga fosse originada ilegalmente por dois anos. Durante todo esse tempo em que a cidade recebeu eletricidade de graça, o prefeito continuou a cobrar as contas dos moradores.

b) A desqualificação do Estado e do governo

Em "Fera Ferida", o Estado e o governo são representados como espaços da incompetência e da corrupção, instituições sem utilidade para a vida dos moradores de Tubiacanga. A prefeitura da cidade é um lugar onde não existe trabalho ou atividades. O prefeito passa o dia cortando papel, sem ter o que fazer, e suas gavetas e armários estão sempre cheios de folhas em branco. Em um dos episódios, o prefeito diz à Ilka Tibiriçá, sua cunhada e funcionária da prefeitura: "se passar da hora do fmal do expediente, que eu agora adiantei para as três horas da tarde, você por favor fecha essa quitanda". Ilka é uma funcionária que realiza diversas despesas privadas e manda colocar na conta da prefeitura. Em um dos capítulos, afirma: "Como se algum prefeito trabalhasse nesse país". Assim, são construídas generalizações extremamente negativas a todo poder executivo municipal. Essa generalização atinge também o governo em geral. A personagem Lucineide, empregada de Raimundo Flamel, afmna em um dos diálogos: "até parece que alguém trabalha no governo". Também a câmara de vereadores da cidade é permanentemente desqualificada. Há um constante destaque para a permanente falta de quorum que paraliza a instituição. O único fator que atrai os vereadores à câmara é o "jeton". É através desse argumento que Rubra Rosa convence seu marido, o vereador Numa Pompílio de Castro, a comparecer às sessões. 19

c) A discussão da atualidade

A novela "Fera Ferida" construiu diversas representações sobre personagens e fatos da atualidade, às vezes implicita, às vezes explicitamente. Tanto Rubra Rosa como Ilka Tibiriçá falam do "topetudo", em uma referência irônica e implícita ao Presidente da República, Itamar Franco. Em um dos diálogos, o prefeito diz ao major Bentes: "Eu tenho minhas fontes na capital. Até mesmo aquele deputados que cuida dos nossos interesses orçamentários eu mobilizei". O major então pergunta: "o baixinho?", referindo-se de forma também implícita ao deputado Genebaldo Correia (PMDB-BA), envolvido nas denúncias sobre o esquema de corrupção montado na CPI do orçamento. Acontecimentos recentes na história do país se repetiram em Tubiacanga. Uma CPI foi instalada contra o prefeito, iniciando o seu processo de impeachment. Como no episódio Collor, o prefeito acaba renunciando para escapar do julgamento. Em um dos capítulos, Rubra Rosa diz que não dá mais cheques na padaria para que não terminem em alguma CPI. Em uma das tentativas de retratar na novela episódios da atualidade, os autores de "Fera Ferida" entraram em conflito com a direção da Rede Globo. Havia a intenção de repetir na novela o episódio em que uma modelo foi fotografada sem calcinha ao lado do presidente Itamar Franco no Sambódramo, Rio de Janeiro. Os autores pretendiam colocar o prefeito Demóstenes e a atriz Perla Menescal na mesma situação ocorrida no carnaval carioca. O Vice- Presidente de Operações da Globo, José Bonifácio de Oliveira, o Boni, teria determinado a suspensão da cena sob a alegação de que o momento político era muito complicado-', Um dos co-autores da novela, Ricardo Linhares, afirmou acreditar que a cena· enriqueceria a história, não passando de um mero

9 "Boni impede paródia ao escândalo do Sambódramo", Correio Braziliense, Correio da TV, 27 de março de 1994, p. 7. 20

"comentário circunstancial" que se perderia no tempo10. Mas devido à pressão da direção da emissora, o episódio acabou alterado. Em lugar da cena da calcinha, o escândalo na novela se estabelece quando o prefeito presenteia a atriz com um cheque sem fundos de 150 mil dólares. Mas a semelhança com o episódio "real" permaneceu": o prefeito afirmará depois que não tinha condições de ver que ela estava de mini-saia. Até declarações de candidatos à Presidência foram incluídas na novela. Em um dos capítulos, o prefeito Demóstenes afirma "ter o pé na cozinha", em uma clara alusão às declarações, amplamente divulgadas pela imprensa, do candidato Femando Henrique Cardoso. Outra característica da discussão sobre a atualidade foi a inclusão do movimento das pequenas empresas na novela. Aconteceram pelo menos nove diálogos dedicados a propagandear os objetivos do movimento, apresentando-se um "merchandising político" que constituiu representações favoráveis às medidas de apoio às pequenas empresas. Além desses diálogos, deve-se destacar a figura da jovem Linda Ines, cuja tecelagem e criação de ovelhas é apresentada como exemplo de pequena empresa.

d) Personagens da ficção e candidatos da "vida real"

"Fera Ferida" desempenhou um papel complexo e contraditório ao apresentar personagens que compunham determinadas "noções-tipo" sobre a classe política, principalmente aqueles membros dessa classe em disputa pelo voto do eleitor. Tais personagens permitiram, em maior ou menor grau, uma identificação com candidatos à presidência da eleições de 1994, ou pelo menos contribuíram para construir representações sobre "tipos ideais" de candidatos. Um desses personagens da novela foi Fabrício, um varredor de rua, empregado da prefeitura, que foi identificado como um militante de esquerda, às

10 Ibid. 21

vezes chamado de socialista, às vezes de comunista. Fabricio pOSSUla um discurso de um militante de esquerda, com seus respectivos clichés e esteriótipos, e portava quase sempre a cor vermelha em suas vestes. Era também um líder sindical, pois dizia-se presidente do sindicato dos varredores de rua da cidade. Durante o desenrolar da estória, Fabricio sofre importantes transformações após apaixonar-se por Isoldinha, uma das filhas de Margarida Weber. O amor faz com que Fabricio abandone a postura radical e seus ideais socialistas. Uma das co-autoras da novela, Ana Maria Moretzsohn, chegou a afirmar: "O Fabricio vai se despreender da idéias socialistas. Não queremos um Lula na História" 11. A citação da autora é reveladora: havia um Lula na história! O personagem contribuiu assim para a construção de representações sobre um dos candidatos, vinculando-o diretamente a determinadas posturas: o radicalismo (em determinados, até a luta armada); o discurso ultrapassado; a imagem de uma pessoa com vinculos com o povo, mas sem experiência administrativa ou formação educacional. No que se refere às representações sobre "tipos ideais" de candidatos, o personagem Áureo Melo cumpriu um papel importante. Filho do vereador Numa, Áureo nunca havia se interessado por temas políticos até uma viajem à capital, onde fez um curso sobre política. Volta então à cidade totalmente transformado, assumindo um discurso e uma postura de candidato "preparado" para assumir o poder. Em uma conversa com o professor Praxedes, afmna ter estudado e ter conhecimentos dos problemas da cidade. Áureo assume também a luta contra os "poderosos de Tubiacanga", preparando o dossiê contra o prefeito que desencadeou o seu processo de impeachment. Além desses dois personagens, o protagonista de "Fera Ferida", Raimundo Flamel, também teve um lugar de destaque na construção de certas "noções-tipo" sobre a política. Apesar de não ser político, Flamel encarna a figura do justiceiro, do bem em sua luta contra o mal. Essa missão é explicitada em vários momentos

11 "Tubiacanga não ficará imune ao clima eleitoral", Correio Braziliense, Correio da TV, 10 de julho de 1994, p. 9. 22

pelo próprio personagem. Após reunir provas contra dois vilões da estória, Salutiana e Cassy Jones, ele afmna: "agora que eu estou da posse desses documentos eu vou fazer com esses dois tudo que os brasileiros gostariam de fazer com aqueles que manobram o dinheiro alheio de forma desonesta e ainda continuam impunes". Flamel apresenta-se assim como o justiceiro, o portador das esperanças de justiça de todo um povo. Em outros episódios, afmna: "é assim que as pessoas devem me ver: o salvador de pessoas de bem e o exterminador de canalhas"; "eu sou o porta-voz dessas pessoas que estão aqui"; "eu sou o vingador que vai fazer a justiça possível". É o próprio ator que interpretou o protagonista de "Fera Ferida", , quem define a relação do público com Flamel:

"A televisão, e a telenovela especificamente é um programa de entretenimento, então quando a política é abordada como foi nesta novela, o público via no Flamel a figura do justiceiro. Não o justiceiro personificado em determinado político, mas viam no Flamel o representante de um processo político, uma CPI, por exemplo, onde se levantavam os problemas e se tentava a aplicação de uma nova lei ou de justiça" 12.

o personagem personifica, portanto, um processo político e não a figura de um político. É nele que são depositadas as esperanças, não na classe política. É a partir desses pressupostos que Flamel decide o processo político da cidade, incluindo a eleição para prefeito. Flamel é quem articula uma chapa com Áureo como candidato a prefeito e Fabrício como candidato a vice-prefeito. Ao anunciar seu apoio a essa chapa, doa 100 mil dólares para a campanha. Nessa oportunidade, Áureo afmna que guardará uma parte desse dinheiro para campanhas futuras: "vou dar um jeito de depositar na Suiça ou no Uruguai que é mais perto". Assim, mesmo o político que está no lado da justiça e do bem

12 "Um final com sensação de vitória", Correio Braziliense, Correio da TV, 10 de julho de 1994, p. 9. 23

manobra com as sobras da campanha, pois, nas novelas; a desqualificação da política não conhece excessões. É o candidato apoiado pelo justiceiro que triunfa nas eleições de Tubiacanga. Quanto ao vice, Fabrício, este já havia "se despreendido da idéias socialistas".

CONCLUSÕES PRELIMINARES (PRECIPITADAS?)

Como vimos na introdução aos referenciais teóricos que orientam essa pesquisa, a hipótese central é a de que o candidato que melhor se adaptar ao "Cenário de Representação da Política" tenderá a obter êxito nas eleições presidenciais de 1994. Quais são, em linhas gerais, os elementos constitutivos deste cenário construído nas e pelas telenovelas? Podemos destacar os seguintes elementos:

a) a desqualificação da política e dos políticos; b) a desqualificação do Estado e do governo; c) a corrupção como prática permanente da classe política; d) a afmnação da necessidade de apoio à pequena empresa; e) a desqualificação das lideranças e ideais de esquerda; f) a valorização do candidato preparado e com estudo; g) a ênfase no quadro de crise social.

Essas foram algumas das "noções-tipo" (Durkheim) ou "representações" (Weber/Lima) construídas nas e pelas novelas já em julho de 1994, três meses antes do primeiro turno das eleições. É no marco do cenário composto por essas representações que se desenvolve o processo eleitoral, constituindo uma fonte importante de "marcos de referência" que permitem às pessoas da sentido às suas 24

ações, como, por exemplo, a decisão do voto 13. Como se posicionaram os candidatos diante desse cenário? Qual o candidato que melhor se "adapta" a ele e que, portanto, deverá ganhar as eleições? Essas são perguntas complexas e a apresentação de respostas a elas pode parecer tarefa que não está no âmbito de um trabalho acadêmico, pois conclusões prematuras ou predições não são bem vistas nas ciências sociais. Entretanto, a advertencia contra conclusões prematuras e generalizações podem provocar um tabu contra todo raciocínio (MILLS, 1969, p. 135). Os cientistas sociais sentem- se mal às vezes porque não podem fazer predições seguras, mas não precisam se sentir assim se defmem sua tarefa como "a avaliação acurada dos limites e possibilidades do comportamento humano efetivo" (MOORE IR., 1972, p. 127). Feitas estas ressalvas, apresentam-se a seguir algumas conclusões preliminares sobre as implicações das representações construídas nas novelas para o processo eleitoral. O objetivo é, acima de tudo, o de contribuir para uma "avaliação acurada dos limites e possibilidades" do comportamento dos eleitores na disputa presidencial de 1994. Parece-me que as razões para explicar a ascensão da candidatura de Femando Henrique Cardoso (PSDB) devem ser buscadas também no "Cenário de Representação da Política" construído a longo prazo na e pela televisão e, de modo especial, nas telenovelas. FHC é o candidato que melhor se adapta aos elementos do CRP constituídos nas novelas. É ele quem mais se adequa à figura do candidato preparado e com estudo. Por outro lado, a desqualificação das lideranças e ideais de esquerda coloca importantes obstáculos à candidatura de seu principal opositor, Luis Inácio Lula da Silva (PT). Também aqui, como em outras eleições, a representação de toda a classe política como corrupta e

13 Cabem aqui algumas ressalvas. O CRP é um processo dinâmico constnúdo não só pelas novelas, mas também por outros espaços da programação da televisão, como os telejoranis. O projeto mais amplo no marco do qual se desenvolve a presente análise inclui o estudo do "Jornal Nacional", dos programas dos partidos, do Horário Eleitoral Gratuito, entre outros espaços da programação. É importante também ressaltar que a novela que sucedeu "Fera Ferida" no horário das 20 horas, "Pátria Minha", não analisada aqui, certamente tem um papel importante na constituição do CRP. A pesquisa sobre o papel da televisão na eleição de 1994, que tem nas telenovelas um elemento central e dinâmico, deve ser complementada por outros estudos. 25

desqualificada faz com que uma das únicas distinções possíveis entre os candidatos seja a competência para administrar. Além disso, a desqualificação da política favorece candidatos que se apresentam como outsiders, opondo-se à classe política tradicional. Os mídia constroem assim um terreno propício para uma maior expansão, ainda que limitada, de uma candidatura do tipo Enéas (Prona). Mas apesar de serem fundamentais para se entender os limites e as possibilidades do processo eleitoral, os mídia em geral, e as telenovelas em particular, não são o único fator a condicionar um processo tão complexo como as eleições presidenciais. Outros fatores e processos da vida social poderão desempenhar um papel decisivo para os resultados da disputa. Entretanto, os mídia se transformam cada vez mais em um elemento fundamental da análise política, impondo transformações importantes à própria natureza da política. As telenovelas constituem assim um elemento importante para a avaliação dos limites e possibilidades do comportamento eleitoral. Dificilmente se poderá compreender as eleições presidenciais de 1994 em sua plenitude sem considerar as representações sobre o "mundo da política" construídas na televisão.

agosto, 1994. 26

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