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Fragmento de Velhas histórias, memórias futuras: o sentido da tradição na obra de . : EdUERJ, 2002.

INTRODUÇÃO Na noite do réveillon de 1996, realizou-se na praia de Copacabana, em homenagem ao compositor Antônio Carlos Jobim, um show com artistas do primeiro time da MPB: Paulinho da Viola, , Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e . O evento foi marcado por diversas irregularidades, notadamente a disparidade entre os cachês dos artistas: todos ganharam R$100 mil, exceto Paulinho da Viola que ganhou R$30 mil. A imprensa soube explorar a discórdia entre os músicos, a indignação pública e o mistério: por que Paulinho da Viola ganhou menos do que os outros? Organizadores do evento, patrocinadores e alguns artistas se aprestaram em responder que se tratava de um problema mercadológico: Paulinho ganhou menos porque vende menos. Três anos mais tarde, a gravadora EMI colocou fora de catálogo, além da obra completa da cantora Clara Nunes, os 11 discos de Paulinho da viola lançados sob este selo entre 1968 e 1979 - discos que haviam sido recentemente remasterizados em Abbey Road, o principal estúdio da EMI e rapidamente esgotados. Motivos mercadológicos? Qual é a lógica comercial que explica a retirada de mercado, dois anos após o lançamento, de um produto que havia exigido um investimento alto e para o qual existe uma grande e constante demanda? 1 O engavetamento dessa discografia que pertence à memória do povo brasileiro, assim como a desvalorização pública e mediática do compositor, são fatos que não se explicam pela lei “inexorável” da oferta e da procura. Na verdade, estes são sintomas de um fenômeno maior que atravessa a história da cultura brasileira: sintomas de um processo de desestruturação sistemática da tradição musical popular, particularmente do ,

1 Cf. discussão em Agenda do samba e choro (http://www.samba-choro.com.br/notícias). “EMI tira Paulinho da Viola e Clara Nunes de catálogo”, 6.9.1999. Sobre a procura pelos discos dos sambistas, observou um internauta: “(...)Um vendedor da Modern Sound em Copacabana me disse que pelo menos umas dez pessoas passam por lá diariamente perguntando pelos CDs de Clara e Paulinho. E ele só pode oferecer um sorriso amarelo!!!” 2 que por expressar uma identidade subalterna vem sendo, desde seus primórdios, acossado pelas práticas hegemônicas. (Se até a segunda década do século XX, a música negra foi duramente reprimida por forças policiais, a partir de então ela será assimilada pela classe dominante, transformada em mercadoria e identificada ao nacionalismo Estatal). Amparadas na força do dinheiro e da chibata, as elites se apropriaram das formas da cultura popular, cuidando para que o seu conteúdo fosse descartado e apagada sua memória. Conseguiram, muitas vezes, asfixiar a tradição, como fez a EMI com os discos de Paulinho; outras vezes, rebaixaram os seus sujeitos, como quando um jornal de São Paulo moveu uma campanha difamatória contra os artistas negros que excursionaram com Pixinguinha à Europa, ou, como veremos mais adiante, com a transformação do aviltamento financeiro de Paulinho da Viola em lucrativo espetáculo. Contudo, a despeito de toda a violência secular das práticas culturais dominantes, o samba pode ainda hoje se constituir como forma de expressão das comunidades dos morros e subúrbios cariocas. Continuamente renovada, recriada, defendida e modificada, a tradição do samba resiste, marginalmente, ao processo de hegemonização. Mas como isso é possível? Nas sociedades primitivas existem homens que são responsáveis pela tradição (é essa, por exemplo, a função do xamã nas comunidades indígenas e do "griot" em certas tribos africanas). Hoje, em plena era da globalização, numa sociedade complexa como a brasileira, Paulinho da Viola é seguramente uma dessas pessoas que se colocam a missão de conservar a memória e a sabedoria popular. Para ele, preservar o samba como linguagem da população marginalizada do Rio de Janeiro implica, necessariamente, em conservar uma concepção de mundo, um "conteúdo histórico", a capacidade de dar conselhos do samba popular, que se encontra ameaçada sob a cultura de massa. Dizer que Paulinho da Viola preserva a tradição significa dizer que o tempo passado se faz presente em sua obra; não como algo cristalizado e sem vida, mas como algo em permanente mudança, como vir a ser , como história. O passado resgatado tem importância na medida em que diz aos interlocutores atuais alguma coisa sobre o presente e, desta forma, permite uma ação voltada para o futuro. Nessa perspectiva, a "tradição"aparece como um projeto consciente de transformação da realidade, isto é, como praxis criadora . Essa parece ser a idéia contida nos versos de um de seus : 3

(...) Meu pai sempre me dizia Meu filho tome cuidado. Quando penso no futuro Não esqueço meu passado (...) .2

Este livro, nascido de uma tese de doutoramento defendida, em 1999, na Escola de Comunicação da UFRJ, não pretende ser uma biografia de Paulinho da Viola, mas um estudo sobre o sentido da tradição em sua obra ou, por outra, uma reflexão sobre a especificidade da estratégia cultural do sambista e chorão no âmbito da música popular brasileira. Tratou-se, em primeiro lugar, de problematizar a questão da tradição, que fundamenta sua prática cultural, estando presente na sua música, na sua poesia, na sua relação com a comunidade do samba, na sua atitude em relação ao mercado, na sua postura política, etc. Essa reflexão não deve ser vista, entretanto, como um capítulo teórico que antecede um estudo de caso. Na verdade, ela pretende resolver uma questão colocada pelo próprio Paulinho da Viola: o que é a tradição?

É muito difícil definir o que seja um músico ou autor tradicional. Agora que estou estudando música mais a fundo, sinto as dificuldades dos próprios teóricos em definir a tradição 3.

A partir dessa problematização, desenvolvemos, no segundo capítulo, a idéia de que a música popular se caracteriza, do ponto de vista ideológico, pela sua atitude com relação à tradição, isto é, pela maneira como reelabora os signos culturais do passado e constrói uma historicidade conveniente às perspectivas de determinado grupo social. Assim, mostramos como a canção de protesto se caracteriza, de um modo geral, pela subordinação de uma forma tradicional a um conteúdo revolucionário; como a canção política de vanguarda - pensamos aqui particularmente nas canções de Bertolt Brecht - supera dialeticamente a tradição para atingir novos conteúdos; e como, na indústria cultural, a música popular perde a sua condição de fala da história na medida em que ocorre um predomínio da fórmula sobre a forma e o conteúdo históricos.

3 O Globo . “Um momento de definição”, 11.9.1979 4

Abordamos, em seguida, a relação entre música popular e política no Brasil nas primeiras décadas do século XX. Essa discussão se estende aos anos 60, momento em que surge Paulinho da Viola no panorama da musica popular. Analisamos o importante debate que se travou, nesse momento, no campo da canção, envolvendo diferentes projetos nacionais - populista de esquerda, folclorista, vanguardista - em torno do tema clássico da relação entre cultura popular e identidade nacional. Nesse cenário ideológico, Paulinho da Viola representa uma tendência alternativa que não compreende a cultura popular como objeto, fundamento da identidade da nação, mas como expressão da vida de um outro sujeito coletivo. Afirmando uma identidade de classe ou de uma fração de classe, a tradição operada pelo sambista não exclui o novo e nem tem como finalidade a preservação da cultura "autêntica", "pura" e "original". Não se trata de restaurar e cultuar o passado - atitudes próprias do tradicionalismo conservador. Para Paulinho, veremos no quinto capítulo, “o samba se transforma como a vida” (“Nas ondas da noite”, 1971). E justamente por ser viva, a tradição marginal do samba se apresenta como uma contratendência ao fenômeno de reificação da música popular na sociedade técnico- capitalista. No mundo atual, globalizado, a indústria nacional tem que se adequar e fabricar as roupas, os carros, os bens de acordo com a realidade do mercado mundial; e por que uma canção também não pode ser produzida desta forma? A expansão do mercado transnacional, integrando todas as regiões de todos os países num sistema homogêneo, "estandardiza" o gosto e substitui a música de cada comunidade por canções de massa padronizadas. No último capítulo, dedicado à análise da relação entre Paulinho da Viola e o mercado, tentaremos perceber como o sambista se opõe a essa força desestruturante e mistificadora que vampiriza a cultura do povo, sufoca a sua história e destrói sua identidade.