19º Congresso Brasileiro de Sociologia 09 a 12 de julho de 2019

UFSC – Florianópolis, SC

Grupo de Trabalho: Sociologia da Cultura

Estratégias de inserção literária: a trajetória de Graciliano Ramos

Wellington Pascoal de Mendonça

Universidade de São Paulo

CAPES

2019

1

Estratégias de inserção literária: a trajetória de Graciliano Ramos

Resumo

Essa comunicação tem por objetivo apresentar um aspecto central acerca das possibilidades de inserção dos escritores nos meios literários na primeira metade do século XX. Nesse sentido, ao abordar a trajetória de Graciliano Ramos, mostrarei a importância de contar com um lastro institucional consistente – no caso do escritor alagoano, tratou-se de sua entrada para a roda de Maceió –, passo decisivo para que ele conseguisse, pela mediação dos seus companheiros, inserir-se em posições vantajosas no campo literário.

Um projeto frustrado

Graciliano Ramos1 nasceu em 1892, na cidade de Quebrangulo, . Primeiro de dezesseis filhos de um casal de sertanejos, cujas famílias vinham experimentando o declínio material, desde a infância teve de conviver com o sentimento de que era um intruso, uma vez que se sentia rejeitado. Dentre seus familiares, afeiçoara-se ao avô paterno, senhor de engenho arruinado e, curiosamente, inclinado às artes. Ainda menino, mudou de domicílio diversas vezes, morando em Buíque e Viçosa, onde iniciou seus estudos. Nesse período publicou seu primeiro conto em O Dilúculo, jornal do internato que frequentava, ajudou a redigir o Echo Viçosense, além de contribuir com sonetos e crônicas para O Malho, Correio de Maceió e Jornal de Alagoas. Já em Maceió, onde concluiria o ginásio, participou, em 1910, do inquérito literário promovido pelo Jornal de Alagoas. A despeito do reconhecimento literário conferido a ele por esse jornal, viu-se obrigado a voltar para junto de sua família, partindo, dessa vez, para Palmeira dos Índios, onde o pai se estabeleceu como comerciante. Entre 1910 e 1914, Graciliano ajudou o pai em seu negócio, mesmo assim, não abandonou a criação literária, compartilhada com seu amigo Joaquim Pinto da Mota

1 As informações biográficas sobre Graciliano Ramos foram obtidas em Moraes, 2012 e Ramos, 2012. 2

Lima Filho, que, assim como ele, escrevia.2 Em trecho extraído de uma carta enviada ao amigo, de 2 de fevereiro de 1914, pode-se vislumbrar as trocas literárias:

Que é dos sonetos, miserável? Que é da correspondência francesa que prometeste? Não te mando agora alguma coisa, como combinamos, porque ainda estou a trabalhar naquele conto que me deixaste a fazer. Desenvolvi- o, ampliei-o, estão escritas já quase setenta tiras. Se chegar a concluí-lo – o que acho difícil, quase impossível, porque caí na tolice de me meter em certas funduras – talvez te mande uma cópia (Ramos, 2011, p. 20-21).

Outros trechos de cartas tratam da mesma questão, mas, quanto ao aspecto que me interessa – a constituição e o funcionamento de uma rede de sociabilidade –, a referida troca já é um primeiro indício das relações costuradas por Graciliano nesse momento. Na medida em que as correspondências vão se sucedendo, Graciliano demonstra a inquietação causada pela sua situação. Em carta ao mesmo amigo, de 21 de julho de 1914, isso já pode ser observado com nitidez:

Finalmente, parece-me que, com a chegada da Paulista aqui, seu Sebastião Ramos resolve-se a procurar outro meio de vida. Tenho a vaga esperança de abandonar esta porcaria. E pergunto a mim mesmo que é que vou fazer. Tenho pensado em ser padre. (Seriamente, tenho pensado em ser padre.) Parece-me que é a única profissão compatível com meu gênio (Ramos, 2011, p. 35).

E, mais adiante:

Ontem, durante o dia e durante a noite, tomei uma grande resolução. Parece- me que vou para o Rio. Queres ir comigo? Se estás firme em teu propósito de azular e se te não desagrada a companhia deste selvagem da Palmeira, podemos cavar a vida juntos (Ramos, 2011, p. 36-37).

O lugar que Graciliano ocupava no interior de sua família ajuda a compreender a recomendação que seu pai o faz ao ter notícia da partida do filho para o . Primogênito, teve de lidar com as exigências que recaiam sobre os filhos homens evidenciadas, nesse caso, na recusa em continuar trabalhando na loja do pai, ou em outro emprego no comércio, mesmo que fosse em Maceió:

2 Filho do Dr. Mota, Joaquim Pinto da Mota Lima Filho mais tarde se tornaria jornalista e trabalharia no Rio de Janeiro. Seus irmãos – Rodolfo, Pedro e Paulo Mota Lima – também se dedicaram ao jornalismo. A família mantinha relações com políticos locais, dentre os quais, Pedro da Costa Rego, governador de Alagoas no decênio de 1920 e Álvaro Paes, que também esteve à frente do Estado, mais exatamente, no momento em que Graciliano dirigiu a Imprensa Oficial. 3

Creio que em Maceió não tenho amigos que se possam interessar tanto pela minha vida e pelo meu bem-estar. Que é que essa gente de Maceió sabe a respeito de minhas resoluções? Não quero emprego no comércio – antes ser mordido por uma cobra. Sei também que há dificuldades em se achar um emprego público. Também não me importo com isso. Vou procurar alguma coisa na imprensa, que agora, com a guerra, está boa a valer, penso. (Ramos, 2011, 37-38).

Com pouco mais de 20 anos de idade, Graciliano transferiu-se para o Rio de Janeiro com o propósito de atuar na imprensa. Conseguiu empregar-se como foca no jornal Correio da Manhã, passando, depois, à suplente de revisão. Pouco tempo depois, por indicação do diretor de revisão desse jornal, tornou-se suplente de revisão em O Século. Ambas as ocupações eram subalternas e remuneravam mal, mas, mesmo assim, Graciliano insistia em seu projeto. Durante o período que esteve na então capital federal, continuou colaborando com jornais – dentre os quais o Paraíba do Sul e o Jornal de Alagoas. Contudo, Graciliano logo percebeu que a construção das reputações não dependia apenas da qualidade do que se escrevia, era necessária a propaganda. Em carta endereçada à sua mãe, Maria Amélia Ferro Ramos, de 4 de fevereiro de 1915, isso fica claro:

O que eu sinto é morar numa terra onde só se pode conseguir alguma coisa com muito reclamo. Aqui tudo se resume nisto: cada sujeito faz propaganda de si mesmo. [...] Enfim tudo reclamo. Um tipo escreve um livro e vai, ele próprio, engrandecer, pelos jornais, o livro que escreveu. Muitas coisas más conseguem tornar-se boas assim. [...] Veja a senhora como as coisas aqui são. Tudo reclamo. E o pobre-diabo que for tímido, que não declarar que é um gênio, é uma criatura morta. Ora eu estou arrependido de ter feito hoje uma asneira. Um rapaz meu conhecido apresentou-me a um poeta, dizendo que eu era literato. E eu caí na tolice de dizer que o não era. Dei uma grande patada, não há dúvida. Eu devia ter ficado calado ou, melhor, ter entrado a dizer sandices sobre arte e sobre outras coisas que não conheço. Era o que eu devia ter feito. É o que todos fazem... (Ramos, 2011, p. 59-61).

Em maio de 1915, poucos meses após ter desembarcado no Rio de Janeiro, Graciliano demonstrou certo desconforto com sua situação. Deixou os jornais para os quais trabalhava, manifestando, inclusive, o desejo de retornar a Palmeira dos Índios. Sua permanência estaria condicionada à conquista de uma ocupação efetiva em algum jornal, e, para tanto, contava apenas com a solidariedade de amigos, sobretudo dos Pinto da Mota Lima. Ao correr dos meses suas perspectivas melhoraram. Conseguiu, por intermédio de Falcão, diretor do Correio da Manhã e redator de O Século, de quem se tornara 4

amigo, publicar algumas páginas. Foi, ainda, indicado para dois jornais que seriam fundados. Todavia, as notícias vindas de Palmeira dos Índios sobre a saúde de membros da sua família o pegou de surpresa, fazendo-o repensar a permanência no Rio de Janeiro. Nesse interim, assumiu um posto no jornal A Tarde, mas, a confirmação do falecimento de alguns dos seus, vitimados pela peste bubônica, fizeram-no voltar para o interior de Alagoas. Nesse primeiro esforço de reconstrução da trajetória de Graciliano Ramos, pode-se ver que suas possibilidades de atuação eram restritas, circunscritas ao trabalho em jornais e a publicações esporádicas em alguns jornais e revistas. Num contexto onde a publicidade se fazia necessária e, talvez, o principal, que o acesso aos melhores postos dependia de padrinhos, o ainda jovem postulante a uma carreira jornalística e mesmo literária pagou o preço de não ter um cabedal de relações sociais que pudesse mobilizar em seu favor.

Retomada: a inserção de Graciliano Ramos no campo literário

De volta a Palmeira dos Índios, Graciliano casou-se com Maria Augusta de Barros, com quem teve quatro filhos, estabelecendo-se como comerciante. No final de 1920 sua esposa faleceu devido a problemas no parto do último filho do casal. Aos poucos, contudo, foi retomando a atividade intelectual – escrevendo e trabalhando junto de um padre num jornal da cidade, O Índio. Em 1928, tornou-se prefeito da cidade e casou-se com Heloísa Leite de Medeiros, filha de Américo de Araújo Medeiros, à época secretário do Tribunal de Justiça de Alagoas. Com a segunda esposa teve outros quatro filhos. Em 1930, renunciou à prefeitura de Palmeira dos Índios, mudando-se, com a família, para Maceió, onde assumiria a Imprensa e, mais tarde, após novo período no interior do Estado, a Instrução de Alagoas. Antes disso, em meados da década de 1920, iniciou a redação de Caetés e, no início dos anos 1930, Graciliano Ramos se aproximou, dentre outros escritores, aristas e políticos, que à época residiam na capital alagoana, de José Lins do Rego, , Valdemar Cavalcanti, , Santa Rosa e Aurélio Buarque de Holanda.3 Foi a partir desse momento, portanto, que sua rede de sociabilidade

3 Lebensztayn (2009) alude à participação de Graciliano na revista Novidade, fundada por Valdemar Cavalcanti e Alberto Passos Guimarães. 5

propriamente literária começou a se estruturar, concorrendo decisivamente para sua inserção literária. Como é sabido, na primeira metade do século XX o país experimentou uma onda renovadora. No plano econômico, a crise de 1929 escancarou os limites do modelo agroexportador brasileiro. Soma-se a isso a intensificação dos processos de industrialização e urbanização, bem como a expansão de setores sociais e profissionais nas regiões mais ao sul do país. Na esfera política, o enfraquecimento de frações oligárquicas, aliado ao descontentamento de atores que estavam alijados das esferas do poder central, fizeram surgir facções dissidentes, resultando na “Revolução de 1930” e na ascensão ao poder da coalizão liderada por Getúlio Vargas. Na cultura, a Semana de Arte Moderna de 1922 pode ser tomada como índice das mudanças em curso. Do ponto de vista literário, seus animadores procuraram romper com as tendências em voga na medida em que propunham uma estética diversa, cujas bases foram tomadas das vanguardas europeias. Para meus propósitos, no entanto, o mais importante é o fato de a renovação proposta durante a fase heroica do movimento ter favorecido a consolidação de uma série de inovações que acabaram por nortear a produção literária a partir de 1930 (Candido, 2000). Nessa década, a polarização política e ideológica aumentou paulatinamente, manifestando-se, inclusive, na produção cultural. Segundo Lafetá (2000),4 na literatura esse estado de coisas favoreceu o deslocamento das discussões que antes se concentravam no projeto estético para o projeto ideológico. Ademais, a produção literária, aproveitando-se da liberdade suscitada pelos modernistas da primeira geração, e ao se valer da realidade brasileira – de tratar, portanto, das tensões inerentes à transição do tradicional para o moderno –, mostrou-se mais vigorosa nas regiões periféricas do cenário cultural devido às especificidades desses lugares, que ao preservarem estruturas do período anterior, contribuíram para manter latentes impasses decorrentes das mudanças pelas quais passavam (Arruda, 2011). Foi também nesse período que ocorreu o início do incremento da indústria do livro no Brasil – com a consequente abertura de novas editoras, sobretudo em São Paulo e no Rio de Janeiro, bem como o surgimento de coleções dedicadas aos estudos brasileiros (Hallewell, 2012; Candido, 2010). Talvez seja possível tomar esse

4 Ao afirmar que as discussões foram deslocadas do projeto estético para o projeto ideológico, não ignoro o fato de ambos terem convivido durante a fase heroica do movimento modernista. Tampouco negligencio a presença das correntes espiritualistas durante o período (Lafetá, 2000). 6

último aspecto como indicativo da interferência de fatores externos no campo literário,5 já que o desejo de conhecer verdadeiramente o país acabou favorecendo os escritores que trataram das mazelas presentes na sociedade, inclusive, foi nesse contexto que a literatura de cunho social teve maior vigor, e que os escritores nordestinos – como , José Lins do Rego, Rachel de Queiroz e Graciliano Ramos – conseguiram se inscrever no campo. Durante as décadas de 1930 e 1940, a principal instância legitimadora do campo literário foi a crítica de rodapé.6 Portanto, as estratégias mobilizadas pelos escritores na busca de reconhecimento acompanhavam a dinâmica das relações estabelecidas entre os críticos, o prestígio que lhes era conferido (Sorá, 2010). Assim, ter seu trabalho bem avaliado pela crítica, sobretudo por aqueles que tinham alcançado posição de destaque, como Tristão de Athayde, Agripino Grieco e Álvaro Lins, era fator determinante para o sucesso, bem como para a permanência dos escritores nos espaços legitimados do campo literário. O mercado editorial também atuou, nesse período de incipiente autonomização do campo, como instância de legitimação. As casas editoriais ganham maior notoriedade quando se atina para o fato de alguns editores dedicarem-se, também, à crítica literária.7 Além disso, a edição de livros pela Livraria José Olympio Editora – a casa mais celebrada da época – conferia aos escritores algum prestígio. Isso pode ser constatado pelo poder de atração que teve sobre os escritores a partir do início dos anos 1930, congregando figuras de diferentes matizes ideológicas (Hallewell, 2012; Sorá, 2010). Foi nesse contexto que Graciliano iniciou as negociações para a publicação de seu primeiro livro com o Editora Schmidt, sediada no Rio de Janeiro, conforme as correspondências evidenciam. Em carta remetida à sua esposa, de 26 de setembro de 1930, ele diz:

5 Ao fazer referência ao campo literário, tomo de empréstimo os estudos de Bourdieu acerca do caso francês (Bourdieu, 1996). Contudo, não ignoro o fato de no Brasil não haver, pelo menos até a década de 1940, as condições que concorreram para a autonomização do campo na França. No entanto, não se deve ignorar que havia, em seu interior, regras de funcionamento, valores e interesses compartilhados por aqueles que se lançaram na vida literária a fim de se tornarem escritores profissionais. Para uma discussão esclarecedora sobre o tema, consultar Johnson (1995). 6 Esse tipo de crítica caracterizava-se pela não especialização de seus praticantes – geralmente bacharéis –, cujo lugar de exercício era o jornal (Süssekind, 1993). 7 Os críticos literários Augusto Frederico Schmidt, Gastão Cruls e Agripino Grieco atuaram também como editores (Hallewell, 2012; Sorá, 2010). 7

Fiz um capítulo de vinte e cinco folhas e mandei uma carta ao Rômulo. Peça aos santos que esta encrenca termine daqui para novembro. E peça também que não me apareçam outros orçamentos e artigos de jornal. Se não surgirem complicações, como dizia o dr. Liberato, julgo que darei o trabalho concluído em fim de outubro. Se não aparecerem complicações... e se o Aloísio Branco consentir. Vi ontem um daqueles pedacinhos de papel que Schmidt me mandou. Estava pregado num dos vidros da casa do Ramalho. Há outros em outras livrarias. De sorte que o pessoal de sua terra está, com razão, espantado e desconfiado. Há de ter graça no fim, quando compreenderem que o livro não presta para nada (Ramos, 2011, p. 144-145).

Rômulo era secretário da Livraria Schmidt, ficou sob sua responsabilidade as tratativas acerca da edição do livro com Graciliano. Os “pedacinhos de papel”, remetidos por Schmidt, eram propaganda dos próximos lançamentos da editora. O tom da carta, que trata também do processo de composição do livro, passa a impressão de certo entusiasmo com a iminência da publicação, que pode ser corroborada pelo trecho de uma carta de 7 de outubro de 1930, remetida à Heloísa de Medeiros Ramos:

Apesar de andar com muito sono, mandei ontem ao Rômulo cinco capítulos dessa obra-prima que vai revolucionar o país. Isso é que vai ser uma revolução dos mil diabos, v. há de ver. As outras são revoluções de bobagem (Ramos, 2011, p. 150).

Mas, em abril de 1931, o entusiasmo transformou-se em frustração. Em carta destinada a Luís Augusto de Medeiros, irmão de sua esposa, escreveu:

Como te disse, a história do livro acabou. A coisa é esta: eles imaginaram que aquilo era realmente um romance e começaram a elogiá-lo antes do tempo. Quando viram que se tinham enganado, tiveram acanhamento de desdizer-se. Compreendo perfeitamente a situação deles e, para não entrarmos em dificuldades, não toco mais no assunto (Ramos, 2011, p. 154).

A despeito do aparente revés com a publicação do primeiro livro, em carta à Heloísa, de 8 de outubro de 1932, a frustração foi cedendo lugar à esperança em relação ao seu novo romance, S. Bernardo:

Promessas como essa o Schmidt tem feito às dúzias: não valem nada. Escrevi a ele rompendo todos os negócios e pedindo a devolução duma cópia que tenho lá. Assim é melhor. A publicação daquilo seria um desastre, porque o livro é uma porcaria. Não me lembro dele sem raiva. Não sei como se escreve tanta besteira. Pensando bem, o Schmidt teve razão e fez-me um favor. Resta-me agora o S. Bernardo. Tenho alguma confiança nele (Ramos, 2011, p. 172).

8

Até esse momento Graciliano não contava com a ajuda dos integrantes da roda de Maceió, representada pela intelectualidade reunida na capital alagoana no início da década de 1930. Esse estado de coisas seria alterado quando o escritor passou a frequentar o grupo. O auxílio dado a ele pelos seus componentes pode ser apreendido de duas maneiras: de um lado, a intermediação feita por Valdemar Cavalcanti – jornalista e crítico literário – a fim de conseguir um editor para Caetés e S. Bernardo, e, de outro, a recepção do primeiro livro de Graciliano pelo mencionado crítico e, também, por Aurélio Buarque de Holanda, outro companheiro de roda intelectual. Valdemar Cavalcanti tentou pelo menos duas vezes conseguir um editor para Caetés. Em abril de 1933, ofereceu o livro à Companhia Editora Nacional. Para tanto, valeu-se de sua condição de crítico literário para dar credibilidade ao romance. Utilizou-se, também, de seu cabedal de relações sociais, o que fica evidente quando se atenta à menção que faz ao também crítico Prudente de Morais Neto, que recepcionara positivamente o livro, corroborando, portanto, a qualidade do livro. Ambas as coisas podem ser observadas em um trecho extraído da correspondência que Valdemar Cavalcanti enviou à referida editora:

O CAETÉS é um romance que focaliza, com uma extraordinária força de descritivo humano, uma época de vida de província, com o seu cotidiano tranquilo, com as suas almas pacatas, mas com os seus dramas anônimos e dolorosos. É um volume que revela ao Brasil, na opinião de um grande crítico que é Prudente de Morais neto, em carta particular, uma das suas mais seguras organizações de romancista. Um livro grande, não por nos mostrar postais da paisagem física de uma cidadezinha do interior, mas por nos exibir em água-forte o panorama humano de algumas vidas em desordem dentro da rotina do dia-a-dia sertanejo. É curioso o seguinte: tendo-se interessado por lançar o romancista nordestino à publicidade, o editor A. F. Schimdt obteve em primeira mão os originais do livro. Com a Revolução e outras coisas piores o CAETÉS encalhou. Mas Schmidt deu-o a ler a alguns dos de sua grande roda. E criou-se no pequeno círculo uma sensação de surpresa: a de uma boa descoberta. Uns até levaram seus comentários à imprensa. Lembro-me bem de um artigo de Jorge Amado, o romancista de O PAIZ DO CARNAVAL, no número de novembro do BOLETIM DE ARIEL, no qual se encontra o nome de G. Ramos na vanguarda dos maiores escritores do Norte (Arquivo IEB-USP, Fundo Graciliano Ramos, Coleção Correspondência entre Terceiros).

Como se vê, Valdemar Cavalcanti não se limitou a emitir sua opinião sobre Caetés, remetendo-se tanto à recepção feita pelo já mencionado crítico Prudente de Morais Neto quanto à boa acolhida que o livro tivera entre os frequentadores da roda de Augusto Frederico Schimdt. Mas ele não se limitou à oferta de Caetés, pois, na mesma carta, ofereceu S. Bernardo à editora. 9

Com a saída do CAETÉS, poderá entrar para a fecundação dos prelos, um outro romance de Graciliano Ramos, o mais recente: S. BERNARDO – retrato da vida rural sertaneja. Desejo saber se a esta Editora, sempre tão atenta em lançar ao nosso público os grandes livros brasileiros, interessa a edição do romance do meu amigo (Arquivo IEB-USP, Fundo Graciliano Ramos, Coleção Correspondência entre Terceiros).

A outra tentativa para conseguir um editor foi feita junto à Adersen Editores. Mais uma vez o companheiro de roda de Graciliano ofereceu ambos os livros. No entanto, nesse caso, era o editor quem tentava convencer o intermediador quanto ao interesse na publicação, segundo ele, adiada momentaneamente. Em carta de 13 de abril de 1933, remetida por Hersen a Valdemar Cavalcanti, essas coisas podem ser apreendidas:

Até o princípio de Maio próximo farei rápida viagem ao norte, onde vou buscar dinheiro para intensificar a produção de minha editora e, portanto, consolidar sua vida. Estarei aí em Maceió, portanto, muito breve, quando poderemos, se lhes interessar ainda, combinar outro prazo para a saída do “Caetés”, assim como para o “S. Bernardo” (Arquivo IEB-USP, Fundo Graciliano Ramos, Coleção Correspondência entre Terceiros).

A despeito dos esforços empreendidos por Valdemar Cavalcanti, o romance de estreia de Graciliano acabou saindo pela editora de Augusto Frederico Schimdt, que além de editor era também poeta e crítico literário, e S. Bernardo, pela Editora Ariel, que pertencia aos também críticos literários Gastão Cruls e Agripino Grieco. De todo modo, fica patente o suporte que o grupo dava ao escritor alagoano, e isso passava, sobretudo, pelo reconhecimento social como escritor que lhe fora conferido, condição que o fortalecia em suas investidas no campo. Além de figurarem como os primeiros leitores dos livros de Graciliano e intermediadores entre ele e os possíveis editores, seus companheiros o ajudaram também em sua projeção literária por meio da crítica. Esse papel foi cumprido por Valdemar Cavalcanti e Aurélio Buarque de Holanda, ambos escrevendo para o prestigiado Boletim de Ariel, cujos proprietários seriam os editores de S. Bernardo, os já mencionados críticos literários Gastão Cruls e Agripino Grieco. Para além das considerações feitas a Caetés, cujos conteúdos destacavam, ao mesmo tempo, a grandeza do estreante romancista e as falhas e limitações de seu 10

primeiro livro,8 deve-se atentar para o fato de que tal atitude – sobretudo as ponderações do último – pode ser tomada como uma estratégia de promoção dos integrantes do grupo, pois ao final de seu artigo destacou a breve publicação do romance S. Bernardo, que o crítico já havia lido e, agora, anunciava a sua edição por meio de generosos elogios. Portanto, é possível afirmar que a recepção e a comunicação da obra pelos agentes que emergiram para o cenário cultural a partir do mesmo círculo de intelectuais constituíram-se em estratégias potencializadoras das chances de adentrar e se firmar no campo literário. As trocas literárias entre Graciliano e membros da roda de Maceió mostram que a sociabilidade entre eles não se encerrava nas tentativas de obter editores para os livros e na recepção crítica deles, sem dúvidas mais importantes quando se tem por objetivo a inserção literária, antes disso, no momento da criação, as trocas também eram frequentes. Esse tipo específico de sociabilidade foi mobilizado durante a redação de Angústia. Em carta de 22 de março de 1935, remetida à Heloísa de Medeiros Ramos, Graciliano trata da composição de seu terceiro romance e das trocas com os escritores José Auto e Rachel de Queiroz.

Em seguida retomarei o trabalho interrompido há cinco meses. Julgo que continuarei o Angústia, que a Rachel acha excelente, aquela bandida. Chegou a convencer-me de que eu devia continuar a história abandonada. Escrevi ontem duas folhas, tenho prontas 95. Vamos ver se é possível concluir agora esta porcaria. [...] Vou dormir. E, às seis horas, quando acordar, conversarei com a Marina e com Luís da Silva, excelentes criaturas, na opinião da Rachel e de Zéauto (Ramos, 2011, p. 187-188).

Em carta de 24 de março de 1935, novos personagens da roda de Maceió aparecem, reforçando, assim, a ideia de se tratar de uma rede de sociabilidade literária.

No Relógio Oficial encontrei Zélins, que foi comigo à Nordeste liquidar o negócio das cauções. Daí fomos ao palácio, abraçar o Osman e dizer nossos endereços. Ao descermos, o autor de Banguê quis por força levar-me à casa dele: capítulo do romance novo e almoço. A Naná muito amável. Estou convencido de que ela é uma excelente moça. Em seguida rodamos para casa do Zéauto, onde ouvimos as últimas páginas do livro da Rachel. Zélins deu o fora e eu fiquei, na amolação, conversando literatura e esquecido da política. Rachel falou várias vezes em v. Sempre encantada com as meninas, especialmente com a Clarita, por causa da lembrança que ela tem da

8 Esses breves comentários referem-se à análise dos seguintes artigos: Cavalcanti, Valdemar. O romance “Caetés”. Boletim de Ariel. Mensario Critico-Bibliographico, n. 3, dez. 1933, p. 73; e Holanda, Aurélio Buarque de. “Caetés”. Boletim de Ariel. Mensario Critico-Bibliographico, Ano III, n. 5, fev. 1934, p. 127-129. 11

Clotildinha. De vez em quando dizia-me uns desaforos por não me resolver a meter a cara no Angústia, que ela acha melhor que os outros dois. Falta de entusiasmo. Sapequei uma folha ontem à noite, mas frio, bocejando (Ramos, 2011, p. 190).

Angústia, por sua vez, teve itinerário um pouco distinto. Além do escritor ser relativamente conhecido no Rio de Janeiro, sua prisão, em 1936, converteu-se em vantagem por ter ficado marcado como injustiçado pelo regime autoritário de Getúlio Vargas. Outro fator vantajoso foi sua aproximação ao PCB, pois poderia contar com seu apoio institucional, nada negligenciável, pois a esquerda ligada ao partido controlou algumas importantes instituições culturais.9 Semelhante aos outros casos foi a ajuda que o escritor alagoano recebeu por parte de integrantes da roda de Maceió. Nesse caso, a transferência de José Lins do Rego para o Rio de Janeiro foi significativa para os entendimentos entre José Olympio e Graciliano. Nesse caso, contudo, as negociações entre eles não contaram apenas com a intermediação de José Lins do Rego, pois Jorge Amado também atuou como intermediador entre escritor e editor. Em um trecho de correspondência remetida à Heloísa essas coisas podem ser observadas:

O Angústia vai indo. Estão emendadas duzentas e quatro páginas. Dentro de um mês estará concluído e datilografado. Recebi novas cartas do Zélins e do Jorge pedindo-o. Ainda não dei resposta, mas vou dizer que mandarei os originais quando o editor enviar os cobres. Não tenho confiança nos editores, uns ratos. Estou projetando outro conto para o argentino, mas isto não tem importância e será arrumado quando o romance estiver concluído (Ramos, 2011, p. 215).

Ainda que fossem representantes da editora, e agissem conforme os interesses de seu proprietário, pode-se dizer que tal atitude foi orientada pelo tipo de relação que vinculava os integrantes da roda de Maceió e, de maneira extensiva, escritores de rodas literárias próximas dela, como era o caso do baiano Jorge Amado. Dito de maneira distinta, tratavam-se de estratégias de promoção que viabilizavam a inserção dos escritores em posições vantajosas no campo literário. Após sair da prisão, em 1937, e inscrito entre os grandes escritores do período, próximo mesmo de conhecer a consagração literária, Graciliano teve, em 1938, outro romance publicado, , em 1945 saiu Infância e, postumamente, Memórias

9 Escritores ligados ao PCB estiveram à frente da Associação Brasileira de Escritores em algumas gestões. O próprio Graciliano Ramos, filiado ao partido, foi presidente entre os anos de 1951 e 1952. 12

do Cárcere. A edição desses livros ocorreu num momento em que o escritor havia se legitimado, portanto, ele pôde prescindir aos expedientes mobilizados juntamente de seus companheiros de roda intelectual, cujo objetivo era inseri-lo vantajosamente no campo literário e, também, conquistar reconhecimento entre os editores, críticos e escritores.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Modernismo e regionalismo no Brasil: entre inovação e Tradição. Tempo Social, São Paulo, v. 23, n. 2, p. 191-212, nov. 2011.

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 2013.

BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

______. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2013.

CANDIDO, Antonio. A Revolução de 1930 e a Cultura. In: CANDIDO, Antonio. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 2000.

______. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2011.

______. Ficção e Confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2012.

______. Formação da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2013.

CASANOVA, Pascale. A República Mundial das Letras. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.

ELIAS, Norbert. Mozart: sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.

13

GINZBURG, Carlo. Nenhuma ilha é uma ilha: quatro visões da literatura inglesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

HALLEWELL, Laurence. O Livro no Brasil: Sua História. São Paulo: Edusp, 2012.

JOHNSON, Randal. A dinâmica do campo literário brasileiro (1930-1945). Revista USP, São Paulo, n. 26, p. 164-181, ago. 1995.

LAFETÁ, João Luiz. 1930: a crítica e o Modernismo. São Paulo: Editora 34, 2000.

LEBENSZTAYN, Ieda. Graciliano Ramos e a Novidade: o astrônomo do inferno e os meninos impossíveis. São Paulo: Hedra, 2010.

MICELI, Sérgio. Intelectuais e Classe Dirigente no Brasil (1920-1945). In: MICELI, Sérgio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

MORAES, Dênis de. O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2012.

PONTES, Heloísa. Retratos do Brasil: Um Estudo dos Editores, das Editoras e das “Coleções Brasilianas”, nas Décadas de 1930, 1940 e 1950. Boletim Informativo e Bibliográfico de Ciências Sociais, São Paulo, n. 26, p. 56-89, 1988.

______. Destinos Mistos: os críticos do grupo Clima em São Paulo (1940-1968). São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

RAMOS, Graciliano. Caetés. Rio de Janeiro: Record, 2000.

______. Vidas Secas. Rio de Janeiro: Record, 2005.

______. S. Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 2010.

______. Cartas. Rio de Janeiro: Record, 2011.

14

______. Infância. Rio de Janeiro: Record, 2012.

______. Angústia. Rio de Janeiro: Record, 2013.

______. Memórias do Cárcere. Rio de Janeiro: Record, 2015.

______. Linhas tortas. Rio de Janeiro: Record, 2015.

SALLA, Thiago Mio; LEBENSZTAYN, Ieda (Org.). Conversas: Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Record, 2014.

SAPIRO, Gisèle. Elementos para uma história do processo de autonomização: o exemplo do campo literário francês. Tempo Social, São Paulo, v. 16, n. 1, p. 93-105, jun. 2004.

SILVA, Simone. As rodas literárias nas décadas de 1920-30: troca e reciprocidade no mundo do livro. 2004. 84 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Antropologia Social, Museu Nacional, Rio de Janeiro, 2004.

SOARES, Lucila. Rua do Ouvidor, 110: uma história da Livraria José Olympio. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.

SORÁ, Gustavo. Brasilianas: José Olympio e a gênese do mercado editorial brasileiro. São Paulo: Edusp, 2010.

SOUZA, Gilda de Mello e. Teatro ao Sul. In: SOUZA, Gilda de Mello e. Exercícios de leitura. São Paulo: Editora 34, 2008.

SÜSSEKIND, Flora. Papéis colados. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002.

WILLIAMS, Raymond. O Círculo de Bloomsbury. In: WILLIAMS, Raymond. Cultura e materialismo. São Paulo: Editora UNESP, 2011.

15

PERIÓDICOS CONSULTADOS

Boletim de Ariel. Mensario Critico-Bibliographico. Ano I – Outubro de 1931 a Setembro de 1932. 12 números.

Boletim de Ariel. Mensario Critico-Bibliographico. Ano II – Outubro de 1932 a Setembro de 1933. 12 números.

Boletim de Ariel. Mensario Critico-Bibliographico. Ano III – Outubro de 1933 a Setembro de 1934. 12 números.

Boletim de Ariel. Mensario Critico-Bibliographico. Ano IV – Outubro de 1934 a Setembro de 1935. 12 números.

Boletim de Ariel. Mensario Critico-Bibliographico. Ano V – Outubro de 1935 a Setembro de 1936. 12 números.

ARQUIVOS CONSULTADOS

Arquivo IEB-USP, Fundo Graciliano Ramos, Coleção Correspondência Ativa.

Arquivo IEB-USP, Fundo Graciliano Ramos, Coleção Correspondência Passiva.

Arquivo IEB-USP, Fundo Graciliano Ramos, Coleção Correspondência entre Terceiros.