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UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

DILSE MENEGUSSO DOS SANTOS

MEMÓRIAS DE MIGRANTES: NUANCES DA HISTÓRIA DE BELA VISTA DA CAROBA-PR

IJUI - RS 2013

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DILSE MENEGUSSO DOS SANTOS

MEMÓRIAS DE MIGRANTES: NUANCES DA HISTÓRIA DE BELA VISTA DA CAROBA-PR

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao curso de História da Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ, como requisito parcial para obtenção de grau de licenciatura plena em História.

Orientador: Prof. Dr. Ivo Canabarro

IJUÍ – RS 2013

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AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente a Deus por ter me dado essa oportunidade e a coragem para que eu seguisse a caminhada.

Aos familiares e amigos por ter acreditado em minha vitória.

Ao Prof. Dr. Ivo por ter aceitado a proposta de trabalho.

Aos demais professores da UNIJUÍ que despenderam tempo e paciência para nos esclarecer as muitas dúvidas e compreender as nossas limitações.

Aos colegas de viagem pela amizade e conversa amiga, fundamentais para encararmos as estradas e perigos.

Muito obrigada.

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“A mente que se abre a uma nova ideia jamais voltará ao seu tamanho original”.

Albert Einstein

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RESUMO Este trabalho dedica-se a estudar nuances da história de Bela Vista da Caroba a partir de memórias de pessoas idosas que vieram para o lugar entre as décadas de 1950 e 1960. O principal objetivo do estudo é questionar a memória que se produz comumente acerca da região, lugares, cidades, bairros, a qual está marcada pela ideia de que os processos de ocupação foram permeados de certo romantismo, ou seja, sem tensões aparentes. Ao mesmo tempo, questiona-se a noção de memória e velhice presente nas “memórias oficiais”, sempre estabelecidas em função narrativas pouco problemáticas e muito coesas. Observa-se, a partir desse trabalho, que as memórias são algo em permanente mutação e que recuperá-las é fundamental para compreendermos a história de um lugar, as nuances que envolveram a sua formação e as tensões que se estabelecem no presente para os sujeitos, sobretudo os idosos.

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SUMÁRIO:

APRESENTAÇÃO:...... 07

CAPÍTULO 01: O SUDOESTE DO PARÁNA: A OCUPAÇÃO E A COLONIZAÇÃO...... 12 1.1 OS SUJEITOS NO ESPAÇO COLONIAL...... 12 1.2 A QUESTÃO AGRÁRIA NA REGIÃO: A REVOLTA DOS POSSEIROS DE 1957...... 18

CAPÍTULO 02: O PASSADO E O PRESENTE: MEMÓRIAS E MUDANÇAS NOS MODOS DE VIDA DOS BELAVISTENSES...... 27 2.1 O SURGIMENTO DA VILA CAROVA...... 27 2.2 TRABALHO, COTIDIANO E OS ESPAÇOS SOCIAIS...... 33 2.3 AS PERSPECTIVAS PARA O PRESENTE: AS MUDANÇAS NOS MODOS DE VIDA...... 36

CONSIDERAÇÕES FINAIS...... 40

FONTES...... 42

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...... 42

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APRESENTAÇÃO:

O presente trabalho de pesquisa bibliográfica e documental tem por objetivo a análise de um conjunto de memórias narradas de forma oral (entrevistas) buscando entender como os sujeitos entrevistados relatam suas vivências passadas e como interpretam o processo de ocupação da região onde atualmente se localiza o município de Bela Vista da Caroba-PR, sobretudo a sua participação na formação do referido município. Bela Vista da Caroba é um município localizado na região sudoeste do Paraná. Sua emancipação política se deu no final do ano 1995, mais precisamente em 21 de dezembro daquele ano. Conforme dados do senso demográfico do IBGE realizado no ano de 2010 a população total do município é composta de 3939 habitantes. Desses, 1038 residem em ambiente urbano e 2901 em ambiente rural. Trata-se, portanto, de um município muito pequeno, com maior parte da população ainda residente no campo.

Figura 01: localização geográfica do município de Bela Vista da Caroba.

Disponível em: .

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A região sudoeste, por sua vez, conforme salienta o historiador Ruy Wachowicz (WACHOWICZ, 1987, p. 46-95), passou a ser ocupada efetivamente a partir da década de 1940, a partir de uma série de políticas levadas a diante pelo governo federal, com o objetivo de ocupar de forma efetiva os “vazios demográficos”1 em conjunto com a ação de companhias ligadas à exploração agrícola do território. Trabalharemos com a história da região de modo mais detido mais a frente. Além do objetivo principal, destacamos que a pesquisa também foi levada a diante devido à necessidade que observamos em coletar e preservar os relatos de algumas pessoas presentes na comunidade bela-vistense. São senhoras e senhores que viveram experiências únicas e que tem muita história para contar, o que se evidenciou no momento das entrevistas. Até mesmo aqueles que não mostraram interesse em falar sobre suas vidas (poucos) relataram muitas histórias. Nesse sentido, alguns apontamentos que faremos no decorrer do texto foram anotados durante a pesquisa de campo, pois muitos foram os momentos pré e pós entrevistas em que os entrevistados falaram muito sobre o modo como viveram e vivem atualmente. Uma das questões importantes, portanto, acabou sendo perceber as maneiras como essas pessoas se colocam em relação ao seu passado a partir do seu presente. Conforme veremos mais a diante, a vida de grande parte dessas pessoas mudou de modo significativo não somente do ponto de vista qualitativo2, algo que é marcante em suas falas, mas também no que se refere aos hábitos e modos de organização outrora tidos como “intocáveis” – o casamento é um desses. Não é difícil encontrarmos no município casais idosos separados ou mesmo outros que vivem sob o mesmo teto, mas que se encontram separados há muitos anos. O que é interessante para nós é o fato de que parte desses casos não é mais mantida em segredo familiar, pois alguns casais não escondem a sua situação. No devido momento do presente texto analisaremos essa questão, sobretudo no que se refere às falas apresentadas pelas mulheres. Assim sendo, centramos nosso trabalho nesses sujeitos. Por meio de suas memórias tentaremos entender como o passado ainda permanece fazendo sentido e

1 A ideia de “vazio demográfico” é muito questionada por vários estudos. Primeiramente por dar a entender que no território não havia outros moradores. Ainda por descaracterizar a capacidade que esses indivíduos tinham de utilizar território. 2 Por qualitativo nos referimos em grande medida ao valor que o próprio entrevistado atribui às mudanças que ocorreram em seu modo de vida. O que mais apareceu nas entrevistas foram as mudanças provenientes da saída do campo rumo a cidade e o abandono das lidas diárias “intermináveis”, essas questões são bem mais constantes nas falas das mulheres. Analisaremos esses elementos mais a frente quando posicionaremos as diferenças entre os gêneros no ontem e no hoje.

9 como essas pessoas narram suas vidas e trabalham com suas experiências históricas. Entendemos que Bela Vista da Caroba é um produto histórico, que começa na década de 1950, a partir da migração (sobretudo a sulista) e permanece se fazendo no presente. Os entrevistados são, portanto, os protagonistas desse trabalho. Buscamos entender as entrevistas enquanto interpretações sobre o passado da cidade, não como verdades. Ressaltamos que houve muitas divergências entre as versões contadas. A trajetória de muitos quando posta no presente é composta por uma série de mecanismos de apaziguamento de tensões e a construção de um passado pacífico e harmonioso. Certamente não podemos descaracterizar qualquer uma das versões, mas tentaremos a partir de outras leituras bibliográficas entender a realidade social em que esses sujeitos estiveram envolvidos. A partir disso tematizaremos as entrevistas de acordo com os pontos que nos chamaram mais atenção. Esses serão destacados no decorrer dessa apresentação. Assim sendo, a história oral torna-se nossa principal fonte histórica. A busca dessas fontes nos possibilitou o diálogo direto com os entrevistados. Conhecemos a sua história e sua leitura sobre o passado do lugar. Sobre essas questões concordamos com a reflexão de Yara Khoury. Escreve a autora:

Ao narrar, as pessoas interpretam a realidade vivida, construindo enredos sobre essa realidade, a partir de seu próprio ponto de vista. Neste sentido, temos esses enredos como fatos significativos que se forjam na consciência de cada um, ao viver a experiência, que é sempre social e compartilhada, e buscamos explorar modos como narrativas abrem e delineiam horizontes possíveis na realidade social. (KHOURY, 2004, p. 125).

As memórias nesse sentido são entendidas enquanto visões parciais de algo maior, no nosso caso o passado de um lugar. A memória é uma das muitas formas que temos de compreender e reconstruir o passado, pois são fontes históricas. Mas nesse tipo de fonte há elementos que podem revelar mais que pilhas de documentos e registros oficiais, sendo esses a subjetividade dos entrevistados e o descompromisso que tem com a memória dita “oficial” de um lugar. Conforme salienta o pesquisador Alessandro Portelli: “os oradores, livres de responsabilidades em relação à memória social, podem colocar sua própria subjetividade e experiência no centro do relato” (PORTELLI, 2004, p. 312).

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Conforme ressaltamos anteriormente, a memória é um trabalho de leitura sobre um tempo passado. Quando um sujeito lembra-se do seu passado ele não “volta” no tempo, mas permanece no presente realizando um esforço de composição. Ele ativa sua memória a qual Jacques Le Goff define enquanto um conjunto de funções neuropsíquicas que permitem ao indivíduo estabelecer conexões com uma dada realidade passada (LE GOFF, 1992, p. 423). Não estamos, portanto, no ontem, como a primeira vista se supõe, mas no hoje, com outro narrador – nem melhor, nem pior – que porta outros anseios, expectativas e experiências outras em relação àquelas vividas no passado. Outro aspecto que procuraremos pensar diz respeito às diferenças presentes entre os relatos dos homens e das mulheres. Entendemos que é importante pensar como os sujeitos de cada gênero lembram-se do que aconteceu. As entrevistas que fizemos foram poucas, mas constatamos que as diferenças são significativas, embora os pontos que norteiam a vida dos casais sejam parecidos, até mesmo idênticos. Não há regras, mas constatamos ser a vida doméstica mais lembrada pelas mulheres ao passo que a vida fora de casa é mais lembrada pelos homens. O nascimento dos filhos é mais pontuado pela fala feminina ao passo que os homens falaram mais sobre quando caçavam, pescavam e plantavam. Ficar dias fora de casa era coisa de homem, ao passo que permanecer no lar é coisa de mulher. Os espaços sociais de convivência também são marcados por essa dualidade casa/rua. Em oposição a casa é posta a “bodega”, o baile. Em oposição à visita à vizinha e seu filho recém-nascido é posto o futebol, a bocha, etc. Entremeio a esses viveres está o hábito de tomar chimarrão, a cordialidade entre os casais, a criação dos filhos e o gerenciamento dos conflitos domésticos. Tentando entender essas questões dividimos o trabalho em dois capítulos. O primeiro capítulo se direcionará ao estudo do sudoeste do Paraná no contexto da inserção das pessoas entrevistadas. O objetivo dessa etapa não é contrariar nem um relato ou mesmo confrontar as versões para chegarmos a uma verdade sobre a região. Tentaremos, porém, entender o meio social que existia e que atraiu as famílias para a região. Destacaremos, portanto, a centralidade de alguns elementos como o trabalho, a questão agrária, a violência e a formação étnica da região. A partir desse ponto passaremos a utilizar as entrevistas. Cabe destacar que o primeiro capítulo é basicamente bibliográfico, pois recorreremos a estudos já realizados sobre a história da

11 região sudoeste do Paraná. Dentre esses estudos estão obras do historiador Ruy Wachowicz3 e textos de outros pesquisadores4. No segundo capítulo analisaremos os relatos dos entrevistados, buscando perceber os primeiros momentos de Bela Vista da Caroba, os quais estão retratados em suas memórias. Entendemos que seria enganoso pensarmos o tempo passado como um momento morto e perdido. E seria tão enganoso quanto pensarmos que esse passado está em algum lugar pronto e acabado, somente esperando para ser desvendado. O passado é, antes de tudo, um processo em permanente atualização, seja por meio das mudanças na memória humana ou mesmo pela mudança nos documentos. Assim sendo, fazemos nossas as palavras de David Lowenthal. Escreve o autor:

[...] a função fundamental da memória, por conseguinte, não é preservar o passado, mas sim adaptá-lo a fim de enriquecer e manipular o presente. Longe de simplesmente prender-se a experiências anteriores, a memória nos ajuda a entendê-las. Lembranças não são reflexões prontas do passado, mas reconstruções ecléticas, seletivas, baseadas em ações e percepções posteriores e em códigos que são constantemente alterados através dos quais delineamos, simbolizamos e classificamos o mundo à nossa volta [...]. (LOWENTHAL, 1998, p. 66).

A fonte oral (a memória), portanto, é uma das formas como o passado permanece se fazendo no presente e sendo trabalhado. Nosso objetivo é apreender uma pequena parcela disso tudo e tentar entender como se pode compreender um pouco mais sobre a história de um lugar a partir de memórias, suas versões e contradições.

3 Desse historiador consultei a obra: Paraná, Sudoeste: ocupação e colonização. 4 Dentre os pesquisadores destaco o historiador Hermógenes Lazier cuja obra tentou compreender a questão agrária na região a partir da análise dos conflitos em torno da legalização das posses, mudando seu status para propriedades. Essa questão apareceu com frequência nas entrevistas, sobretudo quando foram relatadas as dificuldades encontradas para conseguir incentivos do Estado.

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CAPÍTULO 01: O SUDOESTE DO PARÁNA: A OCUPAÇÃO E A COLONIZAÇÃO

Neste capítulo trabalharemos com a história da região sudoeste do Paraná, as questões que nortearam a ocupação do espaço, os regimes de trabalho mais comuns durante esse tempo, a sua formação étnica e, finalmente, os conflitos agrários que ocorreram. Temos o entendimento de que cada uma dessas questões é ampla, mas como optamos pela análise das memórias e como no interior dessas todos esses elementos estão presentes, entendemos ser preciso ao menos tangenciar essas questões. Assim sendo, esse capítulo nos oferecerá outro meio de conhecimento sobre o contexto da época, pois nos desenhará um panorama sobre algumas questões presentes na história da região.

1.1 OS SUJEITOS NO ESPAÇO DA COLONIZAÇÃO

A região sudoeste foi efetivamente ocupada pela população atualmente designada como “colonos sulistas” a partir da década de 1940. Atualmente este espaço compreende três microrregiões, a saber: a que tem por polo o município de Capanema, onde se localiza Bela Vista da Caroba, e outras duas que tem como polos as cidades de Francisco Beltrão e Pato Branco, os dois maiores municípios do sudoeste. Atualmente há na região 37 municípios5. Acerca dos seus limites territoriais, a norte região limita-se à margem esquerda do Rio Iguaçu e a sul com o oeste catarinense; a leste faz divisa com os Campos de Palmas (também conhecidos como campos gerais) e a oeste a região se estende até a fronteira com a Argentina. No mapa (figura 02) abaixo ilustramos tal espacialidade:

5 Microrregião de Capanema: Ampére, Bela Vista da Caroba, Capanema, d'Oeste, Planalto, , e ; Microrregião de Francisco Beltrão: Barracão, Boa Esperança do Iguaçu, , Cruzeiro do Iguaçu, , Enéas Marques, , Francisco Beltrão, Manfrinópolis, , Nova Esperança do Sudoeste, Nova Prata do Iguaçu, Pinhal de São Bento, Renascença, , , Santo Antônio do Sudoeste, São Jorge d'Oeste e Verê; Microrregião de Pato Branco: , , , Itapejara d'Oeste, Mariópolis, Pato Branco, São João, Saudade do Iguaçu, Sulina e Vitorino.

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Figura 02: mapa da região sudoeste do Paraná subdivida entre suas microrregiões;

Disponível em: acesso em 05 de dez de 2012.

Conforme o censo demográfico do IBGE de 2010 a população total residente no sudoeste do Paraná é de 501.431 habitantes representando apenas 4,79% da população total do Estado. Ao contrário das outras regiões do Estado, no sudoeste ainda há proporcionalmente um elevando contingente populacional rural de colonos em relação ao urbano, reflexos do modelo das cidades (pequenas) e do cultivo agrário, com a pequena propriedade enquanto predominante (PERIN, 2001). Todavia, os últimos levantamentos demográficos tem demonstrado um constante fluxo campo-cidade – essa questão apareceu nas entrevistas e nós tocaremos nela mais a frente. Conforme outrora dito, a região passou a ser ocupada efetivamente a partir da década de 1940. Anteriormente havia pequenas populações deslocando-se pelo território, oriundas dos campos de Palmas e . Esses indivíduos, também chamados de caboclos6, comumente trabalhavam em fazendas como agregados, cuidando do gado nas fazendas de pecuária extensiva. Ruy Wachowicz (1987) destaca

6 O elemento caboclo foi presença marcante nas entrevistas. Na maior parte dos casos são relatadas características negativas para esse tipo populacional, há inclusive ditados comuns na região relacionados ao caboclo. Diz-se com frequência ser possível identificar a casa de um caboclo, pois ela não possui árvores frutíferas, grama, sendo também mal construída. Há outras expressões, mas ficaremos, por hora, somente com essa.

14 que já no início do século XX havia pressões demográficas – tais como a dispensa de mão de obra por parte dos fazendeiros residentes nos campos gerais e guarapuavanos – que teriam impulsionado certo contingente populacional para a região sudoeste, mais precisamente para a fronteira com a Argentina. Nessa área atraía a possibilidade de trabalho nas terras usadas para o cultivo da erva-mate e na extração da madeira a qual era transportada para a Argentina via Rio da Prata e de lá assumia inúmeros destinos. Em síntese, observamos uma região com baixo índice populacional, mas muito ativa comercialmente. Mas esse quadro começou a mudar a partir da década de 1940. Durante esse período o governo federal, na era Vargas, pôs em pauta a realização de uma série de políticas para a ocupação do território brasileiro, atualmente conhecidas em seu conjunto como “Marcha para o Oeste”. Esse deslocamento visava a ocupação efetiva do território por brasileiros, registrados no país e falantes do português, sobretudo devido ao fato de que a região era visada por interesses argentinos. Tal litígio já havia, em tese, se resolvido durante o final do século XIX e início do XX por vias diplomáticas na também conhecida “Questão de Palmas7”. Conforme Valdir Gregory, durante o período do governo de Getúlio Vargas:

[...] as ações oficiais do governo, baseadas no nacionalismo e assentadas sobre um Estado fortalecido e centralizador, objetivam a buscar a integração. No que tange a ocupação do território, foi promovida uma ação administrativa agressiva através do programa “Marcha para o Oeste”. Em regiões de fronteira nacionais, como era o caso do Sudoeste e do Oeste Paranaense, onde a população e a economia possuíam laços estreitos com argentinos e paraguaios, a atuação do poder público buscava evidenciar e explicitar os sentimentos nacionais (GREGORY, 2002, p. 65).

A estratégia principal do governo era criar pressões demográficas entre regiões com o intuito de atrair indivíduos de um espaço a outro. Esse deslocamento populacional possuía diretrizes muito claras, oriundas do modelo de exploração agrário- exportador dos tempos da colônia e do desejo de “branquear” a mão-de-obra nacional. Explica-se a partir daí a preferência do governo federal por indivíduos de origem europeia e a atração de migrantes provenientes da região da serra rio-grandense, a qual era habitada por indivíduos de ascendência alemã, italiana, polaca, dentre outras. Esse impulso sobre indivíduos para a ocupação e exploração dos espaços ditos “vazios”

7 Sobre essa questão cf.: HEINSFELD, Adelar. A fronteira Brasil/Argentina: a Questão de Palmas – de Alexandre de Gusmão à Rio Branco. Passo Fundo: Méritos, 2007.

15 esclarece, em partes, o porquê da utilização do termo “colono” com o qual se autodesignam os entrevistados e os agricultores da região. Ao mesmo tempo também nos permite compreender as condições de exclusão das populações de origem étnica não europeia, tal como os chamados “bugres”8. O termo colono provém de muito antes do processo de ocupação do sudoeste paranaense. Nos remonta ao período monárquico brasileiro, também chamado de período colonial. Nessa época, porém, o termo colonização estava relacionado ao sistema produtivo como um todo, fundamentalmente à ideia de haver uma produção em larga escala para a exportação. Atualmente designa-se tal modelo enquanto mercantilista. Este sistema estava assentado em três elementos fundamentais: a grande lavoura, a monocultura e o trabalho escravo. Todavia, o modelo colonial aplicado na região sudoeste foi outro. Para Valdir Gregory (GREGORY, 2002, p. 27) o modelo de exploração colonial utilizado nas regiões de colonização paranaenses durante as décadas de 40, 50 e 60 foi em grande medida uma continuidade do modelo anterior na medida em que se desenvolveu a partir da crise do primeiro. A grande lavoura escravocrata levada a diante pelo empreendedor “colonizador” dá lugar a um modelo de pequena propriedade guiado pelo colono e sua família. Desenvolve-se uma forma de organização centralizada na iniciativa individual e com menor atrelamento ao Estado. Ser colono, para além de uma identificação é também um termo que com o passar do tempo passou a portar muitos outros sentidos, pois para se estabelecer nessa região exigia-se que determinadas atitudes fossem tomadas e fomentadas. Derrubar a mata, construir a sua casa, portar as suas próprias ferramentas – entre essas podemos incluir os animais de corte e tração – e manter os familiares unidos aparecem nas entrevistas como sendo as obrigações de outrora. Mas o colono não é um indivíduo ideal desejado a partir de fora do mundo social, mas um sujeito formado entremeio às situações e desafios cotidianos. Essas características são marcantes na fala dos entrevistados e no modo como lembram a sua vida. Conforme destacaremos no capítulo 2, esses valores serviam de referências e guiavam o modo como essas pessoas se tornaram sujeitos do novo espaço a ser habitado. Não eram apenas escolhas, mas necessidades que com o tempo se tornaram valores, pois quando postas na prática asseguravam a manutenção da sobrevivência para si e para os seus.

8 Os “bugres” também são chamados de brasileiros. São assim designados aqueles que possuem raízes ou indígenas ou negras.

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Esse conjunto de significados, por uma conjugação de fatores, ficaram circunscritos como sendo parte do “caráter” da parcela populacional de origem europeia, mas pouco foram relacionados aos indivíduos que se encontravam na região. Conforme outrora dito, a população da região possui uma matriz étnica muito diversificada e uma parcela significativa dessa foi historicamente estigmatizada e reduzida ao silêncio. Referimo-nos aos caboclos e indígenas, aos quais ainda são atribuídas características negativas. Mas isso não se deve, obviamente, à índole dos indivíduos, mas às próprias condições de marginalização que essas pessoas viveram devido à mudança nos modos de vida e trabalho na região. Nesse tocante destacamos as reflexões do cientista econômico Ricardo Abramovay (2002) que investigou a região sudoeste e afirma que o processo de implantação do capitalismo agrário, destinado à produção para um mercado, que paulatinamente predominou entre os migrantes oriundos do sul do país, marginalizou as populações locais. Os caboclos não tinham por costume o exercício do trabalho voltado à acumulação de bens e propriedades, pois a sua produção era dedicada basicamente para a sua subsistência e de sua família. O caboclo, porém, também era possuidor de terras, mas desprovido da legalidade sobre a mesma. A ocupação cabocla ainda era remanescente do regime do “uti possidetis”, aderido desde o tratado de Madrid de 1750 o qual foi assinado pelas coroas de Portugal e Espanha. Esse regime visava à ocupação espontânea do território, pois mantinha como norma fundamental a ideia de chegar, ocupar e produzir. Não eram necessários documentos, pois as extensões de terras eram gigantescas se comparado à capacidade do governo de fiscalizar. Na região sudoeste, essa realidade passou a mudar somente a partir da quarta década do século XX, animada pelo litigio entre Brasil e Argentina nos territórios fronteiriços e pelo interesse de outros indivíduos que passaram a ocupar o espaço a partir daquele período. Inserem-se nessas questões as companhias colonizadoras – que a partir do início do século XX já realizavam negócios com vistas a explorar a região – e também a ação das primeiras levas de migrantes provenientes do sul do Brasil. Esses, por sua vez, familiarizados com o trabalho agrícola nos moldes capitalistas, ligados à necessidade de comercializar e acumular excedentes produtivos. O historiador Ruy Wachowicz dedica parte significativa de seu livro a explicar o choque cultural nesse tocante entre os caboclos os migrantes sulistas os quais a partir desse momento passaram a ser designados como, respectivamente, “caboclos” e os “de origem” (WACHOWIZ, 1987,

17 p. 84-95). Segundo o autor, os costumes produtivos de ambos os grupos eram distintos em praticamente todos os aspectos. A começar pela própria criação dos animais, com destaque a suinocultura: o caboclo era adepto da criação aberta, com o bicho solto, o que exigia vastas extensões de terras dedicadas aos animais e uma redução significativa em sua capacidade de lucrar com a apropriação do espaço. O colono sulista, por sua vez, apresentava o costume de dividir a propriedade e diversificar a sua produção. O ato de “mangueirar” (construir chiqueiro para os animais), por exemplo, permitia que em sua propriedade fossem cultivadas outras formas de plantação e animais. As famílias que vinham do sul aos poucos foram tomando posse do território a partir da compra, por vezes até doação, de terras dos caboclos. Pouco familiarizados com a produção agrícola e acostumados com a possibilidade de contar com vastas regiões para se estabelecerem, grande parte das famílias caboclas foram se deslocando pelo território. A cultura do porco solto precisava sempre de vastas áreas de terra. Com o passar o tempo, a família cabocla foi sendo marginalizada, sobretudo a partir do momento em que os sulistas se mostraram maioria (após metade da década de 1950). Ao contrário do caboclo, o sulista vinha em busca de terras e o fato de encontrar pessoas que simplesmente doavam suas propriedades seguramente deve ter causado muito impacto em muita gente. E como entender os costumes de outro grupo cultural não é uma tarefa simples, os colonos difundiram a imagem de um indivíduo preguiçoso e inocente e a associaram ao caboclo. Nossa explanação sobre a questão do caboclo no sudoeste não diz muito respeito à formação de Bela Vista da Caroba. Quando o local passou a ser ocupado, por volta de 1956, quando os primeiros moradores vieram para o lugar, a população de origem sulista era grande maioria na região dos municípios da faixa de fronteira. Todavia, essa questão nos permite visualizar pelo menos dois aspectos muito interessantes: o primeiro correspondente aos moldes de ocupação do território, pois o choque entre os dois grupos permite que possamos perceber uma mudança significativa na forma de produzir e viver da terra, e não só a nível de sudoeste, mas de espaços mais amplos. O segundo, e o mais importante para esse trabalho, evidencia todo um conjunto de práticas culturais ligadas ao trabalho, algo que permanece na mente dos entrevistados. Tendo o caboclo como modelo de “tudo o que não se quer ser”, percebemos a construção do indivíduo que passou a ocupar a região sudoeste do Paraná e por lá permaneceu. Mas outros indivíduos e grupos que também apresentaram importância fundamental precisam ser pensados. Referimo-nos às companhias colonizadoras. Por

18 parte dessas observamos uma série de movimentações políticas que resultaram no favorecimento da apropriação das áreas do sudoeste. Wachowicz aponta que acionistas com alto poder político sob a forma do anonimato empresarial utilizaram de ferramentas desonestas para a ocupação do território do sudoeste. O autor designa tais movimentações como “grilo das missões” (WACHOWICZ, 1985, p. 141-165). O desenvolvimento dessa questão fez eclodir a revolta dos posseiros/colonos de 1957, a qual analisaremos a seguir.

1.2 A QUESTÃO AGRÁRIA NA REGIÃO: A REVOLTA DOS POSSEIROS DE 1957.

A região Sudoeste, portanto, antes da década de 1940 eram ocupadas de modo rarefeito e com uma produção agrícola muito pequena. Conforme destacamos, os indivíduos que aqui viviam, indígenas e caboclos, desenvolviam outras formas de apropriação do território. Eram sujeitos cujo objetivo girava em torno da subsistência. Mas o governo federal via nesse tipo de apropriação um grande problema, pois deixar o território inexplorado economicamente era também dar o pretexto para a invasão argentina sob a alegação de serem os residentes daquele país os responsáveis por fazer a terra produzir e, portanto, os verdadeiros donos do território. Como resposta a essa possibilidade o governo cria o Estado do Iguaçu, que durou pouco tempo, e põe em prática um conjunto de medidas com vistas a atrair brasileiros para a região sudoeste do Paraná. Com o objetivo de incentivar uma ocupação economicamente ativa o governo federal cria a CANGO – Colônia Agrícola Nacional General Osório – a partir do decreto federal 12.417 de 12 de maio de 1943. Todavia, devido à tradicional imprevidência do governo federal, a CANGO começa a funcionar entremeio a uma série de controvérsias. A começar pela pendenga judicial entre o Estado do Paraná e a União, sobretudo devido ao fato de que a instalação da CANGO significava um passo a mais para a criação do Estado Federal do Iguaçu, algo que as elites paranaenses simplesmente abominavam. Na medida em que foi instalada, a CANGO passou a trabalhar em uma faixa de terra (a gleba missões) onde questões mais antigas estavam em aberto. Na realidade naquele momento não poderia ser ativada devido ao impasse com o Estado do Paraná. Conforme destaca Ruy Wachowski:

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Tal procedimento do governo federal era ilegal. A questão dominial da gleba estava no judiciário. Disputavam-na o governo estadual e o federal. Antes do pronunciamento do judiciário, nenhuma das partes poderia utilizar-se das terras em disputa. (WACHOWICZ, 1987, p. 144).

Mas as terras já haviam sido distribuídas por meio de concessões e compra pelo governo a particulares em outros momentos. Esses eram, em sua maioria, grandes empresários e políticos. Alguns acionistas mantinham seus negócios fora do país, outros nem brasileiros eram. Contando com alto poder político e mediados por uma série de artimanhas políticas e recursos financeiros, provenientes desde os desdobramentos da questão do Contestado, não demorou para os acionistas do grupo entrarem em conflito com os interesses da CANGO. O órgão, mal assessorado se encontrava fragilizado face às pressões desses indivíduos. Os problemas não eram poucos, pois iam desde a ilegalidade de sua criação até mesmo a imprecisão quanto a área que lhe era devida. Conforme Ruy Wachowicz:

Salienta-se que a CANGO não sabia se seu território abrangia ou não toda a gleba Missões. O decreto de sua criação dizia que sua superfície não poderia ser inferior a 300 mil hectares, mas não estabelecia o limite máximo. Era mais uma ingerência do governo federal. O objetivo prático da criação da CANGO foi atrair o excedente de mão de obra agrícola do Rio Grande do Sul para o sudoeste do Paraná, a fim de dar início à colonização do Território Federal do Iguaçu, criado ainda no ano de 1943. (WACHOWICZ, 1987, p. 145).

O órgão prestava serviços importantes aos colonos sulistas. A promessa para quem vinha era muito boa, pois além dos agentes da CANGO garantirem moradia aos colonos também encaminhavam os seus primeiros negócios. Cabe salientar, porém, que por estar na ilegalidade acabou não podendo fornecer os documentos que garantiriam a posse das terras, ato com consequências ruins em um futuro próximo. Além disso, o órgão distribuía ferramentas e inicialmente intermediava a vinda de profissionais como médicos e enfermeiros para o território. O auxílio do governo federal garantia os montantes necessários. Da parte dos empresários e de suas empresas imobiliárias na região, a CANGO era um obstáculo. E não somente porque atraía os colonos, mas sobretudo pela ineficácia de seu controle quanto a chegada desses. Afinal “a pesar das dificuldades da CANGO, os colonos do sul do país afluíam às centenas” (WACHOWICZ, 1987, p.

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160). Sob a direção da CANGO desde a década de 1940 – tendo seu auge de atratividade concentrado da metade da década de 1950 até seu fim – um elevado número de pessoas foram movidas pela possibilidade de adquirir terras na região sudoeste e se deslocaram até o referido espaço. Essas pessoas em sua grande maioria eram provenientes da região sul do Brasil e eram marcados pela ascendência europeia, característica desejada pelo governo. Em sua grande maioria eram casais jovens ou jovens solteiros que vinham sozinhos ou acompanhados por outros membros de suas famílias9. Inicia-se, a partir desse movimento, os primeiros momentos da cidade de Bela Vista da Caroba. A história dos interesses empresariais imobiliários na região, porém, se inicia muito antes da criação da CANGO nos remetem ao final do século XIX. Os campos de Palmas sempre foram áreas com baixa densidade demográfica. Já salientamos esses aspectos. Essa área se dividia em duas imensas faixas de terras, as chamadas glebas. Sendo essas: a gleba Missões, a qual contava com cerca de 425.731 hectares, e a gleba Chopim, a qual contava com cerca de 71.528 hectares. Ambas ocupavam quase a totalidade do que hoje conhecemos como sudoeste do Paraná.

9 Foi um ponto comum nas entrevistas. Primeiramente vinha um rapaz solteiro ou recém-casado para conhecer o território. A partir das informações coletadas por esses, e dependendo da situação, os demais se dirigiam a região.

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Figura 03: localização geográfica das glebas Missões e Chopim.

Fonte: WACHOWICZ, Ruy Christovam. Paraná, Sudoeste: ocupação e colonização. : Vicentina, 1987. p. 38.

Ambas as propriedades foram tituladas em favor da Companhia de Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande do Sul. Tanto esse acordo, ou mesmo a criação dessas empresas, nunca levou em consideração o fato de haver outras pessoas vivendo na região. Ao que tudo indica, inicialmente essa ocupação não incomodava os detentores das glebas, pois as possibilidades de exploração do território eram muito boas e as populações caboclas não tocavam na principal riqueza que julgavam existir na região, as grandes florestas de pinhos. Esse panorama muda consideravelmente com a entrada da CANGO na região. Após a revolução de 1930 o então recém-nomeado interventor do Estado do Paraná Mauro Tourinho anula o contrato de titulação com a Cia. Estrada de Ferro alegando sua irregularidade. Segundo Wachowicz o contrato estava em total desacordo com as normas vigentes que regulavam a extensão das terras. Ao mesmo tempo, a forma como os interesses privados conduziam a ocupação da região desagradavam profundamente a União. Para administrar essas questões Getúlio Vargas cria a SEIPU – Superintendência das Empresas Incorporadas da União.

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Desde as primeiras décadas do século XX, os grupos empresariais que atuavam na região perceberam os altos montantes liberados pelo governo na tentativa de integrar o país por meio de ferrovias, rodovias, pistas de pouso, etc. Em meio ao jogo político, tanto a nível estadual quanto nacional, criam-se empresas para intermediar tais construções. No caso do sudoeste, região em crescente aumento populacional e potencial polo votante, aglutinou-se uma série de interesses econômicos e políticos. Como as empresas contavam com inúmeros sócios e, dependendo do clima eleitoral, esses se aliavam a lados distintos, a criação de novos ramos de empresas era constante. Para o sudoeste, porém, decisiva foi a década de 1950, tanto do ponto de vista político quanto social. Para compreender melhor esse marco faz-se necessário observar uma questão mais antiga. Desde final do século XIX se arrastava uma questão judicial entre José Rupp, advogado e fazendeiro catarinense, contra o governo federal. Em certo momento Rupp conseguiu uma concessão do governo de Santa Catarina para explorar a erva-mate da região das glebas em questão, como parte do pagamento. Mais tarde tal concessão foi revogada pelo presidente Gaspar Dutra. Rupp, conhecedor das leis e entendendo que a pendenga com o governo demoraria demais nos tribunais, junta seus títulos pendentes à recém-criada empresa CITLA – Clevelândia Industrial e Territorial Limitada10. A CITLA, a partir desse momento, torna-se a principal empresa imobiliária11 da região e seu poder não parou nesse aspecto, sendo acrescido por um acionista muito importante, o então governador do Paraná Moisés Lupion. A empresa torna-se, portanto, além de uma detentora de terras, também um elemento de concentração política. O plano das diversas empresas para explorar a região sempre girou sobre a madeira, sobretudo os pinhos. A ideia era montar uma empresa para a exploração da celulose, seu beneficiamento e exportação. A CITLA foi a empresa que mais próximo chegou desse objetivo. Para tanto, chegou a enviar funcionários para diversos países com o intuito de compreender como a tecnologia para tal produção funcionava. Houve

10 A CITLA foi um dos desdobramentos da empresa BRAVIACO – Companhia Brasileira de Viação e Comércio – criada na década de 1920. No final da década de 1940 a BRAVIACO foi dissolvida devido ao clima político ruim entre seus acionistas. A parcela oposicionista do então governador Moises Lupion e ligados à UDN – União Democrática Nacional – e ao PTB – Partido Trabalhista Brasileiro fundaram a Pinho e Terras. A CITLA estava alinhada ao PSD – Partido Social Democrata – o qual estava no poder tanto no Estado quanto na União a partir dos governos do gov. Moisés Lupion e do Presidente Gaspar Dutra. 11 Cabe pontuar que havia outras tais como a Comercial Ltda., a Ltda. Essas empresas, porém, atuavam em áreas onde atualmente estão localizadas em outras microrregiões. Ambas, faz-se necessário dizer, não foram citadas nas entrevistas.

23 entre os anos iniciais da década de 1950 todo um planejamento para tal objetivo. Em 1955 percebeu-se que tal projeto seria um grande fracasso, e segundo os proprietários da CITLA havia um motivo: a ação dos colonos no território. A partir desse momento se opõem diretamente os interesses da CANGO e, portanto, dos colonos estabelecidos, e em processo de estabelecimento, e os interesses das empresas imobiliárias colonizadoras. Até aquela data, porém, não houve muitos atritos entre ambas as entidades, pois essas empresas ainda mantinham a certeza de que iam explorar o território de uma forma ou de outra, a CANGO por meio da organização dos colonos e a CITLA pela exploração das matas. A CANGO e a CITLA, porém, não contavam com tamanho volume de pessoas para a região. Para a primeira aumentavam as dificuldades para a organização, mas nada que ferisse seus interesses. Para a segunda, por sua vez, a entrada das famílias na área proporcionou a devastação de várias áreas de pinheirais, o que inviabilizou o projeto em torno da obtenção da celulose. O colono sulista provinha de uma dinâmica de produção ligada à limpeza do solo por meio de queimadas. Como não havia quem controlasse suas atividades essas pessoas imediatamente começavam a trabalhar na terra. Querendo recuperar o montante investido na região, a CITLA, mesmo não contando com a posse legal do território, passa a vender de modo fraudulento os títulos das propriedades aos colonos, os quais ainda não os tinham devido à situação, também irregular, da CANGO. Conforme Ruy Wachowicz, inicialmente a CITLA apelou para formas mais diplomáticas para tratar com os colonos. Para tanto contratou advogados que iam até a casa dessas pessoas e vender títulos. Todavia, na grande maioria das vezes os seus engravatados eram expulsos de forma veemente. O clima entre o pessoal das duas entidades não demorou a ficar tenso, pois membros e representantes políticos de ambas trocavam acusações sobre a questão da legalidade do território, sobretudo quanto aos documentos. Algumas pessoas de destaque público começaram a falar em rádios e emitir panfletos aos colonos os alertando sobre a falsificação dos títulos, os golpes e sobre a situação irregular da empresa CITLA. A mensagem era: “não comprem porque não vale nada”. As atitudes rudes dos colonos não foram fortuitas, pois esses se sentiam explorados pela situação. Havia relatos de pessoas que pagaram até três vezes o título de sua propriedade. Cobradores não faltavam. Ao mesmo tempo, disseminou-se na região a prática de aplicar golpes nos colonos. Alguns indivíduos, passando-se por funcionários

24 das entidades, iam até as moradias e vendiam títulos de terras alegando estar tudo certo com a CITLA. Como as pessoas em sua maioria eram analfabetas, isoladas e estando ansiosas por obterem a regularidade de suas posses o quanto antes, caíam facilmente. O clima de indignação percorria o sudoeste. Ao mesmo tempo observamos entre 1955 e 1956 ocorrer o maior fluxo populacional até então registrado para a região. O historiador Hermógenes Lazier (LAZIER, 1985, p. 15) verificou a partir dos registros da CANGO que o número de famílias em 1947 chegava a 476 (cerca de 2.529 pessoas). Em 1956, ano anterior à revolta, o número de famílias chegava a 2.725 (cerca de 15.284 pessoas). Observamos, nesse sentido, um aumento significativo de indivíduos no sudoeste paranaense, e esse fluxo não estava próximo de cessar. A CITLA, ao perceber que a maioria dos colonos não pagaria seus títulos por meio da conversa “amigável”, resolve apelar para a violência. A partir desse momento adota a prática que fez perpetuar seu nome na memória dos colonos da região: contrata jagunços que sob a designação de “corretores” forçavam os colonos a pagar e assinar títulos de propriedade. Os relatos de crueldade são inúmeros e a resposta não tardou. Percebemos essa relação (CITLA/violência) na fala de um dos entrevistados. Ainda está presente um sentimento de indignação e a consciência da necessidade de ter havido uma resposta. Nas palavras do sr. Juraci Schmidt:

O confronto tinha que dá. Porque a companhia CITLA levanto só marginal pra medi as terra. Tudo cara criminoso que saiu dos presídio, né. Tirou, soltou e coloco pra medi as terra. E daí tavam massacrando o povo, tavam massacrando. Por isso que houve essa revolta (SCHMIDT entrevista a MENEGUSSO, 2012).

A partir dessas atitudes da CITLA, alguns colonos começaram a opor resistência aos jagunços e, como afirma Ruy Wachowicz: “Quando estes invadiram o lar do colono, desmoralizando sua família, o colono deixou a enxada e pegou na winchester” (WACHOWICZ, 1987, p. 169). Os colonos comentavam que os jagunços eram trazidos no norte do Paraná, onde já haviam atuado sob as ordens de alguns acionistas da empresa CITLA. Os colonos, por sua vez, também contavam com indivíduos temidos, que assumiram a sua luta. Todavia, esses provinham do sul do país e eram conhecidos como farrapos. Em sua maioria eram foragidos que se acomodavam na região do Baixo Iguaçu, muito próximos da fronteira com a Argentina, país ao qual se dirigiam caso fossem perseguidos pelas

25 autoridades brasileiras. Esse era o caso do famigerado farrapo Pedro Santin, havendo outros. A revolta teve seu marco inicial com a troca de tiros entre agrimensores da CITLA e colonos na localidade de Esquina Gaúcha, atual distrito do município de Pérola D’Oeste. Esse fato ocorreu em 27 de abril de 1957. Após esses acontecimentos o clima entre ambos os lados esquentou mais ainda. Os jagunços passaram a tomar atitudes cada vez mais violentas e os colonos não hesitavam em afugentá-los por meio dos tiros e do que mais fosse necessário. Diversos autores apontam que os colonos começaram a reagir não pelo impulso de algum político ou líder proeminente, mas espontaneamente, movidos pela indignação e, sobretudo, pelos diversos medos que faziam parte da vida dos migrados. Os motivos disso não eram poucos. Desde as viagens dificílimas e a dificuldade para se estabelecerem até mesmo devido ao fato de que grande parte das famílias não possuía absolutamente nada que não a posse de suas terras na região sudoeste. Há relatos de gente que vendeu absolutamente tudo que tinha no Rio Grande do Sul para conseguir comprar algo no Paraná. Observamos essa prática nas memórias da Sra. Geni Palharini:

Minha irmã e meu cunhado vieram primeiro, minha irmã mais velha. Daí nóis viemo sem conhece. O pai não veio olha. Daí ele falo que era bão e aqui ele podia compra uma terra né. Daí ele só mando uma carta lá pro Rio Grande dizendo que ele ia busca nóis. Daí o pai vendeu uma terra e tudo que tinha. Daí nóis viemo de carroça. Doze dia e meio nóis cheguemo na Esquina Gaúcha, de carroça. Três carroça cheia de mudança. O pai vendeu tudo que tinha lá no Rio Grande e carrego umas mínima coisa e viemo embora. (PALHARINI, entrevista a MENEGUSSO, 2012).

Os conflitos se seguiram marcados por um conjunto de acontecimentos que envolveram violência extrema. A finalização desses episódios se deu, conforme a fala dos entrevistados, com a criação da GETSOP em 1962, cinco anos após o levante. Esse órgão, segundo Ruy Wachowicz:

[...] foi criado pelo decreto nº 51.431, de 19 de março de 1962, e três meses depois a União e o Estado firmavam um acordo, renunciando aos seus argumentos jurídicos de se tornarem proprietários dessas terras, para trazer a paz social e a prosperidade para as 20.000 pessoas que ali habitavam na oportunidade (WACHOWICZ, 1987, p. 226).

Do final do levante até a data da criação da GETSOP entre os colonos se disseminou um clima de muita incerteza. Nesse momento ninguém sabia se era posseiro

26 ou proprietário. A ameaça de uma nova CITLA povoava a cabeça das pessoas, pois ninguém podia ter a certeza de que no outro dia não voltariam os jagunços e as ameaças. A partir da vinda da GETSOP, porém, tudo parece ter se normalizado. O Sr. Juraci aponta, inclusive, a vinda do órgão como sendo o ato responsável por desencadear o “desenvolvimento” da região dali em diante. Afirma o entrevistado:

Daí teve aquela revolta de 57, daí atraso tudo. Daí complicô, morreu. Porque daí nóis não sabia. Tava isolado, não sabia pra quem que ia pertecê as terra né. Não existia comunicação nenhuma né, daí fiquemo isolado. Até que a GETSOP que mediu as terra que desenvolveu né. Daí começo a desenvolve de novo. Daí cada um pegô o seu pedaço e ficô proprietário daí, com pagamento bem poquinho. A companhia CITLA tava judiando muito né, era muito alto o preço. Os colono não tinha o que faze de dinheiro naquele tempo. Não existia comércio pra nada. (SCHMIDT entrevista para MENEGUSSO, 2012).

Tentamos explicar o levante de 1957 aqui, para além de sua importância para história da região, por dois motivos. O primeiro corresponde à quantidade de vezes que esse acontecimento apareceu nas entrevistas. Em grande medida devido ao fato de que esse episódio foi muito marcante, sobretudo pelo medo e a insegurança que provocou. O segundo motivo, relacionado intimamente ao primeiro, nos permite entender o porquê das memórias das pessoas entrevistadas ressaltarem tanto a união e a cordialidade que imperou dali em diante entre as famílias – claro que há exceções e as ressaltaremos mais a frente. Em meio a um momento tão complicado como uma migração, e as implicações desse ato, terem sido impulsionados a pegar em armas e se unirem contra as empresas imobiliárias seguramente foi um momento no qual se fortaleceram os laços comunitários entre os colonos. Essas questões nos permitirão entender a formação de Bela Vista da Caroba, mais precisamente de alguns indivíduos que aqui fizeram a sua vida e colaboraram com o lugar.

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CAPÍTULO 02:

O PASSADO E O PRESENTE: MEMÓRIAS E MUDANÇAS NOS MODOS DE VIDA DOS BELAVISTENSES.

Nesse capítulo analisaremos de modo mais detido alguns trechos das entrevistas que realizamos. O objetivo, após todo um apanhado histórico contido no primeiro, é entender a formação de Bela Vista da Caroba. Apresentamos no primeiro momento algumas questões que fizeram parte da história da região sudoeste e que de modo direto ou indireto influenciou a vida dessas pessoas, sobretudo a revolta de 57. Essa foi decisiva tanto para aqueles que se dirigiam ao Paraná antes e durante ao conflito quanto para aqueles que vieram depois dela. Os relatos são ricos nesse sentido. Infelizmente, grande parte das pessoas que chegaram ao lugar em seus primeiros momentos já faleceu. Todavia, entendemos que quem permanece fazendo a história do lugar a partir de suas memórias é tão importante quanto. Esse trabalho não tem por objetivo principal entrevistar pioneiros. Nossa intensão é compreender a história de Bela Vista da Caroba a partir de memórias dos migrantes, pessoas que aqui vieram e se instalaram, suas expectativas, medos, sonhos, metas e suas perspectivas para o presente. O nosso tempo de pesquisa foi curto, mas muito proveitoso, pois acreditamos que conseguimos captar em certa medida todas essas questões. Nesse segundo capítulo tentaremos pensa-las, deixando o tempo da revolta para trás, sem excluí-lo, buscando compreender como se organizaram após esse período. Também, pensando como essas pessoas construíram as suas histórias e se adaptaram aos reveses que a vida apresentou e permanece apresentando.

2.1 O SURGIMENTO DA VILA CAROVA: AS IMPRESSÕES DA CHEGADA

O primeiro capítulo ilustrou o contexto histórico que envolveu o surgimento da Vila Carova, primeiro nome atribuído ao atual município de Bela Vista da Caroba. Mas essa área que atualmente chamamos de município tem uma história que é sua. E ninguém melhor para contar como foram os primeiros momentos do lugar que as pessoas que com suas ações fizeram com que a vila viesse a se tornar um município. Acompanhando as histórias contadas pelos entrevistados percebemos que o primeiro momento do lugar, como o de muitos outros surgidos naquela época, foi singelo e movido pelo acaso. As picadas abertas por grileiros que buscavam as reservas

28 de madeira com vistas a sua extração foram os primeiros caminhos encontrados pelos jovens gaúchos que se aventuraram na área durante os primeiros momentos de sua história. Como podemos perceber a partir do primeiro capítulo, a madeira era principal riqueza da região e sua abundância serviu de inspiração para batizar um lugar: a Vila Carova. Conta o senhor Juraci Schmidt12, um dos primeiros moradores, quando perguntado sobre terem entrado em uma picada que nunca tinham visto ou ouvido falar. Percebe-se a marcação das características populacionais da região, a qual está marcada pela suposta ausência de pessoas antes da ocupação, o que não é real. Isso marca que os colonos desconheciam ou não reconheciam a presença cabocla na região, considerada economicamente pouco ativa:

Nóis entremo (risos). Já existia a picada aberta, ficaram de vende as terra né. Porque os grileiro de terra e nóis puxemo os cavalo e viemo vindo. Naquele tempo tinha que entra. Tinha as terras, mas não existia nada que atrapalhasse. Não existia morador, não existia... Ninguém sabia nada, marcava pelas sanga. Daí ficava proprietário. [...] Aqui era coberto de palmital e peroval... e pinheiral. Tinha muito. (SCHMIDT, entrevista para MENEGUSSO, 2012).

Ressalta-se nesse trecho o modo como o senhor Juraci conta sobre a necessidade de se entrar no território adentro e a inexistência de outras pessoas na área, isso lá pelos idos de 1955. Ao abordar esse assunto, também afirma não ser naquela época ilegítimo ocupar uma posse de terras, pois se não havia ninguém a terra não produzia, uma questão que marca um sentido sobre o território ligado a uma função econômica, mas também sagrada. Além disso, também toca em uma questão fundamental, o fato de marcarem a propriedade pelas águas das sangas evidencia um tipo de moral comunitária que os entrevistados dizem ter desaparecido conforme o tempo foi se passando. Discutiremos essa questão mais a frente. O relato, tanto do senhor Juraci quanto dos demais, é permeado pela lembrança do sofrimento. Frases como “Deus o livre!”, “não existia”, “só Deus para...” são constantes nas entrevistas. Falar sobre a situação em que viviam, as dificuldades que passaram e sobre a intensidade do trabalho é muito importante para essas pessoas. Mas essa forma de contar de modo algum quer dizer que eles gostassem de sofrer ou lembrar que sofreram. Evidencia, pelo contrário, uma forma de comparar os modos de vida do

12 Juraci Schmidt nasceu no município de Redentora – RS no dia 04 de maio de 1936. Quando imigrou para o Paraná tinha 18 anos. Atualmente tem 76 anos, é viúvo e tem 8 filhos.

29 passado e os do presente. Compartilhar que houve sofrimento é também afirmar que de algum modo as adversidades da vida foram vencidas. O senhor Casemiro Banosky em suas falas também relata uma trajetória parecida. Ao falar sobre como trabalhava e vivia no Rio Grande do Sul explicita as razões de migrar: a pobreza e a falta de oportunidades em adquirir uma lavoura sua pra trabalhar. Segue a história:

Casemiro: Quando eu me casei tinha só... a melhor muda de ropa que eu tinha era a do casamento. O resto eu tinha umas duas muda só, uma de trabaiá e uma pra sai. A dominguera. Trabaiava de peão de enxada por dia a duzentos réis por dia. Quem acreditava? Você não acredita que eu trabaiei a duzentos réis por dia.

Dilse: Isso é quanto mais ou menos hoje?

Casemiro: Hoje devia se uns vinte centavo. Duzentos réis, cem réis, era dinheiro. Era mesma coisa como cem centavo hoje.

Dilse: Então não dava pra faze nada com isso?

Casemiro: Nada. No tempo de casamento, quando nóis casemo, ganhemo dois mirreis pra duas cabeça. Quem conhece o dinheiro daquele tempo sabe que nóis se espatifemo, porque era uma crise desgraçada. Ninguém tinha dinheiro. (BANOSKY, entrevista para MENEGUSSO, 2012).

O senhor Casemiro e sua esposa migraram da cidade de Iraí no Rio Grande do Sul para o Paraná no ano de 1952, com um filho recém-nascido, 52 porcos e uma cama. Tudo carregado em uma carroceria caminhão. Ele não morou primeiramente na Vila Carova, mas no interior de Capanema, que já era município nessa época. A Vila Carova era distrito de Capanema. Após algum tempo em Capanema sua família muda-se para a Vila Carova juntando-se a de seu irmão Antônio. Assim conta sobre a sua viagem ao Paraná e sobre quantidade de madeira presente no lugar:

Levemo um, dois, três dia pra chega em Capanema. Atolero quando nóis viemo já não tinha mais, porque já tinha enxugado. Aquele tempo quando vim pra olha era mato. Aqueles matão ali tinha perova, quanta gabriuva, pura perova. Um peroval do diacho! (BANOSKY, entrevista para MENEGUSSO, 2012).

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Entremeio ao mato denso são construídas as primeiras moradas, e essas a abrigar as primeiras famílias13. Morar, se fixar e preparar o território, não é uma ação de pouca importância na memória dessas pessoas. A primeira morada, o primeiro cercado, a primeira lavoura, enfim, os primeiros resultados conseguidos após a viagem são lembrados em detalhes. Se o entrevistado construiu com suas mãos ressaltam-se os gestos e sons que faz para mostrar de modo mais vivo como cortou, serrou e emparelhou. Se não construiu os marcos são outros tais como quantos dias a casa levou para ser construída, quem a construiu e quanto pagou por ela. O conteúdo da história contada sobre a vinda dos moradores para o lugar, ou o início de Bela Vista da Caroba, não muda muito em relação ao dos relatos de tantos milhares de colonos que se dirigiram ao Paraná durante as décadas de 1950 e 1960. São histórias de pessoas que, em sua imensa maioria, começavam muito pobres a vida em família. Por tais condições, não seria exagero designá-los como ousados, pois enfrentaram os riscos e os medos de migrar para um território desconhecido e em conflito. O medo de falhar, de não encontrar o que procuravam e, sobretudo, do desconhecido povoava a mente de muitos deles. É o que mostra o relato do senhor Luiz Palharini ao ser questionado sobre como imaginava o Paraná:

Isso aqui pra mim, quando falaram no Paraná foi mesma coisa que fala de um bicho, uma fera. Só falavam coisa ruim do Paraná, mas não era assim. Depois que nóis cheguemo que nóis vimo como é que era. [...] Muita gente deixou de vir pra cá de medo, porque tinha havido aquelas revolta, 57. Daí o povo tinha medo que ia continua de novo, mas graças a Deus ninguém mais veio incomoda né. Fico tudo tranquilo, tudo bem né. (PALHARINI, entrevista para MENEGUSSO, 2012).

Ao comparar o território a uma fera, o senhor Luiz ressalta o clima de incerteza que existia entre os seus familiares. O senhor Luiz, porém, destaca que as coisas não eram tão ruins assim. Há, porém, outras interpretações pessoais que sugerem impressões diferentes para a construção da vida no Paraná. É o que aparece no relato do senhor Alberto Moura o qual chegou ao território paranaense exatamente no mesmo ano que o

13 A primeira coisa que vinham, segundo os entrevistados, eram os filhos. Eles alegam que antigamente não tinha a proteção que tem atualmente. Observamos nesse sentido, o presente dessas pessoas dando sentido ao modo como percebem o seu passado. Estabelecer um planejamento familiar e evitar ter filhos por meio de métodos contraceptivos é algo atual, mas não era uma possibilidade naquele momento. Essa é uma das muitas formas como observamos as pessoas trabalhando com o passado e se colocando face a ele.

31 senhor Luiz, 1962. O senhor Alberto ressalta que para ele o Paraná foi descrito como muito melhor, mas chegando aqui, segundo a sua visão, a realidade era outra:

A gente pensava que era muito diferente. Que era muito melhor, mas Paraná né. Aqui a dificuldade era grande. Muito Grande! Porque dependia desde da produção pra colher, pra vender, pra sobreviver. E tinha que plantá né e era tudo manual, não tinha terra mecanizada nada. Então a gente pensava uma coisa e no momento em que a gente chego aqui mora era totalmente diferente. [...] Que a terra era barata e com pouco dinheiro que a gente tinha lá comprava bastante terra aqui. Então a gente naquela influencia. A gente já tinha pouca terra lá também né, mas com – meu pai vendeu meia colônia de terra e compro três colônia aqui. Então tudo aquela... que foi envolvendo a gente que deu vontade de sair de lá do Rio Grande e vim pra cá. (MOURA, entrevista para MENEGUSSO, 2012).

Passado o tempo de conhecer e se instalar confrontava-se na cabeça de alguns a dúvida sobre voltar, permanecer ou seguir em frente. Atualmente, olhando de forma retrospectiva, os entrevistados conseguem ter muito mais clareza de suas opções, mas falam com muita propriedade sobre os seus planos e sobre as questões que acabaram não permitindo com que esses planos se tornassem realidade. Observamos essa questão no relato do senhor Alberto Moura:

Eu sempre tive vontade de volta pra lá. Eu fiz no decorrer do tempo – eu pensava assim, fica uns dois três até cinco anos e daí vende e volta pro Rio Grande do Sul. Pra minha terra natal lá, mais folgado né. E daí não deu certo o meu pensar porque quando fazia dois anos que nóis tava aqui meu pai vendeu a morada dele e veio mora com nóis. E daí ele foi infeliz ainda. Ele tinha dinheiro, tinha condições, mas fico doente e morreu. Daí fico cinco irmão meu, mas daí eu já tinha casado. Daí quando meu pai morreu a finada minha mãe me convido pra vim mora com ela e ajudar a cria o resto dos meus irmão. Nóis era 11. Daí aguentei as ponta tudo aqueles anos. Fiz casar as guria que tava em casa. Daí eu amarrado começo a aparece meus filho. E por aí eu fiquei. (MOURA, entrevista para MENEGUSSO, 2012).

No relato do senhor Alberto a possibilidade de voltar, segundo ele uma vontade, deixou de existir devido aos imprevistos da vida. Manter a família reunida e assumir a responsabilidade pelos demais irmãos foi algo que lhe segurou na Vila Carova. Conforme ressaltamos em outro momento, manter a família reunida, encaminhar os filhos e irmãos era algo necessário, pois era a garantia da manutenção da família sob muitos aspectos que vão desde os materiais até os que têm sentido simbólico.

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Um dos motivos que faziam o senhor Alberto querer voltar corresponde às sociabilidades que ele desenvolvia no Rio Grande do Sul. Segundo ele, sua participação em jogos de futebol, suas amizades e seus relacionamentos afetivos, o faziam querer “a volta”. Não são poucos os momentos em que ele destaca essas questões, segue um desses momentos:

No Rio Grande do Sul eu disputei um campeonato varzeano lá. Até já tinha jogado umas quatro, cinco partida. E daí vim embora pra cá. Daí voltei dali um ano, e ainda joguei uma partida das finalista. Eu tinha aí meus vinte ano, vinte um. (MOURA, entrevista para MENEGUSSO, 2012).

Nesse relato observamos o Senhor Alberto entremeio a idas e vindas entre o Paraná e o Rio Grande do Sul. No caso dele, observamos o caso de migrante que não abandonou tudo o que o ligava com o antigo lugar no qual morava, pois laços permaneciam em aberto. O senhor Juraci Schmidt, por sua vez, não queria voltar de jeito nenhum, sobretudo porque lá não havia mais possibilidade de se continuar os negócios. Afirma ele:

Não. No Rio Grande vendemo as terra que tinha, tudo. O finado pai boto fora naqueles tempo porque vendeu baratinho, a terra não valia muito né. Nóis não tinha mais condição de volta pro Rio Grande. E lá quebro o comércio.

Ponderar as questões que envolvem o ir, o ficar, o voltar, são importantes para pensarmos que embora todas essas pessoas estivessem traçando trajetórias parecidas, em suas vidas tinhas aspirações bem diferentes. Tem-se normalmente a ideia de que “é tudo a mesma coisa”, mas isso não é, de modo algum, verdade. Os relatos demonstram que ao passo que uns valorizavam determinadas coisas – a diversão e os relacionamentos afetivos, por exemplo – outros pensavam de modo mais dirigido para os negócios e para a possibilidade de fazer a vida na nova morada. Na entrevista do senhor Alberto, por exemplo, predomina a memória nostálgica e o choque cultural vivenciado quando chega ao Paraná. Marca em sua fala a tentativa de nos esclarecer que embora partilhassem de origens parecidas, objetivos parecidos, a sua identidade, seus costumes, faziam surgir uma série de estranhamentos em relação aos habitantes que aqui estavam. Segue o relato sobre a sua vinda:

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Era uma maravilha lá. Uma beleza. Nóis tinha um estilo, lei até dos dono de salão, nóis era de terno e gravata. Em certos salão lá era nosso costume, pra participa dos bailão. Daí quando vinha aqui, meu Deus! Era camisa fora das calça, facão na cintura, num estilo horrível né. E eu nos primeiros baile que eu apareci era costume da gente. Até em baile de grota eu fui lá de terno. Porque meus ternos era feito no alfaiate. Lá a gente era muito caprichoso né. Daí cheguei aqui e aquele estilo. Daí já comecei a pega o jeito do povão daqui né. (MOURA, entrevista para MENEGUSSO, 2012).

Todavia, como na vida de todo migrante, algo que permeava a vida de todos era a incerteza. Quando no novo espaço ela passa a se expressar na lida diária, sobretudo as relacionadas ao campo. Há momentos tais como aqueles em que as chuvas não vinham ou vinham nas horas erradas; quando se houve a necessidade de realizar os tais financiamentos que prometiam dinheiro rápido e retorno garantido, mas que na realidade na grande maioria dos casos servia para ajudar momentaneamente em troca do comprometimento de anos de trabalho para saldá-los; no crescimento dos filhos e a necessidade de encaminhar sua vida no trabalho e na igreja, sobretudo os seus casamentos. E tantas outras situações. Esses problemas foram se estendendo e de muitos modos unindo essas pessoas ao território e aos demais ocupantes. Surgem nesse sentido os primeiros laços e relações de solidariedade, compadrio e amizade. Ao mesmo tempo vão se definindo os locais sociais: a casa, a roça, a bodega, o comércio, a igreja, etc. Refletiremos sobre esses no próximo item.

2.2 TRABALHO, COTIDIANO E OS ESPAÇOS SOCIAIS

O trabalho, portanto, era uma das bases que norteava a vida dos migrantes – seja como forma de fixação, seja como garantia de acumular “uns troquinhos” para seguir ou voltar. Após ter o seu rancho construído, restava juntar o que havia conseguido trazer e limpar o terreno para que o plantio fosse feito e para os animais fossem acomodados. Garantir os alimentos para a família era uma das primeiras conquistas, e nesse primeiro momento esses provinham diretamente da terra. A lógica era simples, embora trabalhosa, tal como bem resume o senhor Casemiro:

[...] tinha que trabaiá, porque vai faze da onde? Dinheiro tu não achava em lugar nenhum. E comer tu tinha que comer. O que tu tinha na tua lavoura tinha, o que não tinha, tinha que comprar. Feijão nóis

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tinha, mio sempre dava na safra, polenta levava debuiá, levava no munho em Capanema e tinha farinha pra trinta dia.

Os comércios que fizessem a intermediação entre o produtor e os transportadores eram escassos nos primeiros tempos. Poucos também eram os caminhoneiros que entravam para realizar os transportes, mesmo porque até pelo menos metade da década de 1960 não havia outro destino para a produção que não fosse o Rio Grande do Sul, via a atual estrada que liga Capanema a Tenente Portela. Não havendo esses intermediários, vender o que se produzia era difícil e ter dinheiro para gastar era mais complicado ainda. Ao mesmo tempo a região se encontrava longe dos grandes centros e em grande medida não contava nem com o básico em matéria de infraestrutura. A população, nesse sentido, utiliza o que está ao seu alcance. Segundo os entrevistados não era difícil juntar as pessoas para realizarem obras, abrirem caminhos e construírem pontes. Sobre tal questão relata o senhor Luis Palharini:

Nóis tinha uma tarefa aqui pra faze de estrada que nóis pegava hoje que nem ali é o banco Sicredi. Ali nóis começava e fazia pra dentro da Coxilha na Bonita, era nossa tarefa. Isso levasse dois dia, cinco dia ou dez todo mundo tinha que ajuda. Se não fizesse não tinha. Trator, patrola, essas coisas, levou muitos anos pra aparece né. Grande parte aqui nem conhecia o que que era patrola né. Era só no enxadão e no machado. Olha minha gente, já falei antes até, teve gente que só não volto pro Rio Grande porque não tinha condição de volta. E tem vários companheiro velho que veio aqui até antes que nóis né e sabem conta o que foi Bela Vista. Hoje nóis temo no céu. E bem no céu [risos]. Eles fazia – como que falava? – puxirão. Era só pergunta e aparece 20, 30 homem aí era moleza né. Tanto pra roça como pra carpi. O povo se ajudavam. Pra colhe. Pra nóis que semo daquele tempo achemo até engraçado né, trator plantando e colhendo. Ninguém põe a mão mais em nada né. Eu pra mim foi bão isso aqui né. (PALHARINI, entrevista para MENEGUSSO, 2012).

Com o tempo começam a aparecer os primeiros locais de convivência social. A casa, a roça, a bodega, a igreja, o futebol, dentre outros. São elementos que de um modo ou de outro são importantes para a vida dessas pessoas e vão demarcando os modos de vida de cada um no lugar. Nesse aspecto se sobressaem as relações de gênero e as divisões entre os que trabalhavam na roça e no comércio. Sobre as questões de gênero são marcantes e se apresentam de modo muito latente até mesmo hoje. No momento das entrevistas eram os homens que tomavam a frente. As mulheres lembram-se de determinadas coisas ao passo que os homens

35 lembram-se de outras. Infelizmente uma senhora não quis ceder uma entrevista a nós por considerar a sua história desinteressante – algo que tentamos reverter, mas não deu. Todavia, ela nos ofereceu preciosos relatos sobre como as mulheres se visitavam e como se divertiam quando os maridos aos finais de semana iam às bodegas para jogarem bocha ou mesmo quando saiam para caçar e permaneciam até 30 dias nos matos. Segundo ela, quando nasciam os filhos umas das outras elas se dirigiam até a casa da mulher e levavam vários presentes. Podia ser qualquer coisa, desde uma peça de louça até uma singela galinha. Ela se lembra do nascimento de muitos habitantes da cidade e até mesmo do que levou para presentear as mães. O papel da mulher estava resumido ao lar. Atualmente há um discurso corrente que tenta interpretar tal condição enquanto de submissão ao domínio masculino. O que pude notar a partir das entrevistas é que embora o papel delas estivesse circunscrito ao lar elas não se sentem infelizes, pois as que foram entrevistadas ainda estão junto com seus maridos e filhos. Na sociedade na qual se inseriram quando migraram, dessas mulheres, na época jovens na faixa dos 15 aos 20 anos, foi exigido um papel social muito importante. Esse era manter os filhos e o lar assegurado para que o marido pudessem fazer os negócios e trabalhar na roça, embora as mulheres trabalhassem tanto quanto. O casamento era o que assegurava a inserção da mulher no seu ambiente familiar próprio o atribuía o papel de mãe e, portanto, constituidora de uma família. Em alguns casos relatos as mulheres posicionam o “casar” como um ato de emancipação. O papel da mulher era ligado ao lar, à casa. Mas havia outros lugares sociais. E nesses alguns entrevistados pontuam as tensões que ocorriam no interior da comunidade. Andar armado era comum, ir a bodega era uma constante para os homens que em alguns momentos se desentendiam e, como os próprios entrevistados nos dizem, “iam para o estanho”. Essa questão é fundamental pontuar, pois durante as entrevistas houve um constante ressalto na boa relação que tinham, no respeito mútuo, na afirmação de que naquele tempo as pessoas se respeitavam mais e eram mais unidos. Como contraponto a essa visão ressalto a entrevista do senhor Alberto Moura, pois ao ser questionado se havia gente meio “bandida” que migrou e vivia no lugar ele foi categórico:

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Tinha! Eles assim – complicava mais quando eles bebiam. E eles sempre puxavam encrenca. Quem nem esse que nóis compremo a terra, a polícia e ninguém gostava dele. Ele já tinha matado nego aí, e depois a gente soube que ele tinha matado. Basta dize que quando nóis compramo ali, a vizinhança toda noite era oito, dez pessoa, faceiro de nóis compra dele ali e mete ele lá pra longe. Porque todo povo bão, ficaram faceiro de nóis compra. E o povo já dizia antes de nóis mora: “vai vim gente boa mora ali, gente boa”. Pra tu vê como que é as coisa. Era comum o povo se dá uns tiro. Eu acho que eu te contei que morreu dois ali. Eram dois conhecido meu ali. Eu vi eles arranca as maquina e tirotiá. E um deu um tiro no outro bem ali perto da Iva ali. Ali ele tomo um balaço que entro no nariz e caiu e desceu o irmão desse atrás do outro e pego o outro ali perto da delegacia e mato lá. E teve o finado G. que mato o J.L. na frente do D., bem no bar do finado D. Na bodega. É, tomava uns gole e ficava machão, ficava fácil as coisas, e de repente dava. E era comum acontece, muito fácil. Mas eu não me metia. Eu so um caboclo que dá gosto de lembrar quando cheguei aqui porque eu sempre fui um vivedor, respeitoso. Tinha vez que cruzava um final de semana bão, mas uns dois três era briga. Muito comum. Na vila Progresso mataram uns quantos. Na Soledade Deus o livre, teve um dia lá que eu sei que mataram três. No começo a gente até tinha aquele sestro, depois sei lá. Mas eu sempre fui em baile, festa. Lá no Rio Grande era ralo, muito ralo. Mas também acontecia. (MOURA, entrevista para MENEGUSSO, 2012).

Todavia, na entrevista do senhor Alberto se ressalta a cordialidade na maioria das situações. O desencadeador das encrencas seria a bebedeira. A bodega emerge como um lugar que envolvia diversão e a tensão. A certeza que nos sobra é que aqui de fato não era um “velho oeste”, mas que na vida deles resolver algumas situações pelas vias violentas era comum. Também, que essa relação ainda não causa desaprovação. Garantir que fulano ou cicrano, não desafiasse ou lhe fizesse desaforo era o mínimo. Se junta a isso o fato dos homens andarem permanentemente armados, seja por uma questão de status ou de necessidade, e teremos a condição propicia para aflorar de situações que envolviam, por vezes, assassinatos.

2.3 AS PERSPECTIVAS PARA O PRESENTE: AS MUDANÇAS NOS MODOS DE VIDA

Esse item foi seguramente um dos que mais gostamos quando realizamos a pesquisa. A partir dele pudemos perceber senhores e senhoras se colocando em relação ao presente e ressaltando o que consideram importante atualmente. A velha máxima de os idosos são presos ao passado, “reclamões” e ranzinzas cai por terra diante do que observamos. Não foram pessoas atrasadas as que conversamos, mas sim convictos de

37 suas escolhas e cientes de que suas histórias e trajetórias lhes atribui legitimidade para falar o que pensam. Destacamos aqui três pontos que apareceram nas entrevistas: o primeiro corresponde aos relacionamentos afetivos e suas impressões quanto a esses atualmente; o segundo quanto ao modo como leem as relações sociais, sobretudo em relação à questão da importância da “palavra” e como mudaram os laços entre as pessoas, destacando a dissolução do senso de comunidade que eles dizem ter se perdido conforme os anos foram passando; e o terceiro aspecto corresponde, justamente, as novas relações que esses estão construindo no espaço e com suas famílias – filhos, netos, vizinhos, etc. Destacando, nesse sentido, a emergência do município e os novos recursos que colaboram para agilizar as suas vidas – mercados, bancos, posto de saúde, etc. Quanto ao primeiro aspecto (as relações) se expõe um grande choque de sentidos. Para alguns dos senhores e senhoras há um grande problema posto atualmente sobre o modo como se constituem as famílias. Para outros, porém, não há. Essas diferenças são muito salientes, e proporcionam a visualização de percepções muito diferentes. Para Senhor Casemiro e sua esposa, por exemplo, a união entre os casais está cada vez mais frágil. Para eles, os casais não resistem aos sofrimentos mais simples, algo necessário para a construção de uma família. Segue o relato:

Casemiro: Agora que deu? Já o ... foi lá e deixo da muié dele e já pego umas duas, três. Mas como que anda as coisa? E a gente, como se lambeu com uma tem que fica com gosto com uma. Como é que pode, os outro pega uma e passam...

Dilse: É hoje em dia o pessoal troca muito. Que nem o senhor falou, as vezes se fica a vida inteira com a pessoa, as vezes não.

Casemiro: Eu não ia toca no assunto, mas já que você falo...

Dilse: Mas pelo jeito vocês se dão muito bem né?

Madalena: Mas é... tem que se dá, não pode brigar, tem que se abraçar, se quere bem (risos). É, tem que sofre.

Casemiro: É, as veiz a gente tem alguma discutição. Mas isso tem que dá e passa. Isso não tem que um com o outro brigar. Mas sempre tem uma coisa ou outra que não dá certo, mas tem que dá. Porque que no começo deu certo. A gente sofreu, sofreu... (BANOSKI, Casemiro; BANOSKI, Madalena, entrevista para MENEGUSSO, 2012).

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Outro senhor, já com o gravador desligado, afirmou achar muito estranho atualmente as pessoas se conhecerem, namorarem e até se casarem pela internet. Para ele o casamento é convívio e paciência para saber lidar com as dificuldades até o momento em que um dos dois morrer. Por outro lado, outro Senhor afirmou achar um absurdo as pessoas se sentirem presas umas as outras. Tanto que afirma que só vive com sua esposa por consideração, mas que estão tecnicamente separados. Uma das afirmações corresponde justamente ao posicionamento quanto aos costumes antigos e como eles tornavam as pessoas infelizes, pois a pessoa tinha que ficar com a outra somente por “pose”, para não desagradar às famílias. Essa forma de viver salienta-se na medida em que observamos vários casais de idosos do local vivendo de modo conjunto, mas não partilhando suas vidas de modo integral, alguns desses não quiseram nos ceder suas entrevistas. O segundo elemento, apareceu de modo mais ou menos sutil em todas as entrevistas. Esse corresponde à questão de como eles percebem as mudanças nos laços comunitários, ligados, sobretudo, à ideia de “palavra”. Esse aspecto toca uma ordem moral. Para os senhores há uma decadência dos valores na medida em que atualmente tudo tem que ser assinado e documentado. Isso indica uma dificuldade em compreender a necessidade de haver uma organização burocrática. As suas trajetórias individuais sugerem a formação de um sentido de fidelidade, desenvolvido no convívio cotidiano no decorrer dos tempos. Comprar fiado e não pagar podia significar não comprar mais na vila, pois para “velhaco” ninguém vende e desse ninguém compra. Se uma conta é feita ela deve ser paga. Nas farmácias da cidade é o que mais se salienta na fala dos vendedores, a pontualidade dos idosos. Esse aspecto aparece na fala do Senhor Luiz, quando esse comenta a questão da ocupação das terras:

No começo não existia nada aqui. Era só na palavra. Te vendo tanto aí. Media, entregava. Nunca houve um desacerto num negócio assim do cara vende e depois não cumpri com a palavra. O povo se respeitava muito naquela época. Era mais amigo. Hoje já existe bastante coisa né que... o povo fica meio desamparado né. Naquele tempo não. Naquele tempo era diferente, bá! (PALHARINI, entrevista para MENEGUSSO, 2012).

No final de sua fala observamos o entrevistado pontuando a diferença entre o passado e presente. Reina entre esses a predominância do que consideram ser obrigação do indivíduo, que é não enganar. Todavia, esses ignoram, por exemplo, a realidade de que todos atualmente estão sujeitos ao crivo da burocracia e do documento. Até no

39 momento de pedir as suas assinaturas reinava um clima estranho, pois se estavam falando era porque concordavam em depor, achando desnecessário assinar um documento de autorização. Essas pessoas, porém, não estão presas ao passado, mas sim salientando algo que consideravam correto e importante, que são os laços morais que unem as pessoas. O terceiro aspecto corresponde à mudança na vida desses na medida em que Bela Vista da Caroba foi deixando de se ser uma Vila isolada e passou a ser município, com todas as mudanças que esse processo proporcionou. Algo interessante ocorre nesse sentido, pois ao mesmo em que consideram desnecessários certos procedimentos, tipicamente desenvolvidos no ambiente comunitário rural, acreditam que suas vidas melhoraram em quase todos os aspectos – saúde, educação, transportes, segurança, etc. Mas, do passado desses, permanecem os costumes, as tradições e alguns tipos de comportamentos. São relatados em suas falas os choques constantes entre o modo como as gerações mais novas constroem as suas vidas e o modo como esses constroem as suas. Ao mesmo tempo, eles também têm plena consciência de que em grande parte dos momentos são considerados atrasados. Mas nada que abale as suas convicções e o modo como permanecem se fazendo no presente e no lugar onde escolheram para construírem a sua vida: Bela Vista da Caroba. É o que bem sintetiza o sr. Alberto Moura:

O meu pensar, o meu talento, é de participa do que tem de bom. Parceria a gente sempre tem, companheiro né. E o que eu pude faze de incentivo e pra ajuda eu to disposto. Porque eu gosto daqui né. Basta dize que quando eu vendi o sítio e fiquei dois ano pagando aluguel aqui, eu não achei nada melhor (MOURA, entrevista para MENEGUSSO, 2012).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esse trabalho tentou construir uma reflexão sobre as memórias de pessoas que realizaram a transição migrante e o modo como leem (lembram) a sua trajetória de vida, da Vila Carova à consolidação do município de Bela Vista da Caroba. Naturalmente, não conseguimos construir um trabalho minucioso. O objetivo não era esse. Queríamos, quando começamos, entender, mas principalmente se contrapor, a uma ideia de idoso que faz questão de afirmar que a vida de todos foi igual, que atualmente vivem de modo igual – “tem os filhos feitos, são aposentados e estão fazendo hora extra na terra”, como dizem por aí. Ao mesmo tempo, mostrar que a ideia de que o passado passou e parece ser uma coisa eterna é equivocada. Nesse sentido, no primeiro capítulo trabalhamos com a história da região para entendermos o contexto histórico no qual essas pessoas se inseriram. Tentamos entender as questões que permearam a vinda das famílias e as dificuldades que se fizeram presentes. Ao mesmo, mostramos as relações que esse processo fez surgir. Dentre essas as questões de ordem moral e os laços de colaboração para o crescimento e desenvolvimento do local. As entrevistas puderam mostrar, com muita clareza, que o passado não passou e permanece se fazendo no modo como esses sujeitos constroem as suas trajetórias a partir de suas memórias. Nesse sentido, é importante compreendermos que a história de uma pessoa, lugar, país, é um processo que envolve a inserção de indivíduos diferentes, com trajetórias e percepções de mundo muito diferentes, mesmo onde tudo possa parecer semelhante e sem variações. Na verdade, os governos, grupos políticos e grupos econômicos em grande parte dos momentos tentam fazer com que a história de um lugar seja mais ordenada do que realmente é. Daí a importância de dar voz às pessoas e valorizar as suas visões de como as coisas se passaram, pois embora sejam influenciadas pelas histórias organizadas, nas suas falas sempre aparecem elementos únicos, originados de suas leituras sobre o que se passou. As pessoas vivem experiências diferentes e também vivem as mesmas situações, mas as lendo de modo também diferente. Também pudemos constatar que a memória possui particularidades e que os silêncios e negações sinalizam formas particulares com as quais as pessoas trabalham com o seu passado. As memórias também sofrem mudanças em relação tempo e trabalham com as características de cada contexto, selecionando e silenciando os

41 elementos que julgam ser mais pertinentes para a coletividade, pois foram episódios que fizeram parte suas vidas, seja nas realizações ou mesmo nas decepções.

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FONTES:

ENTREVISTAS CONCEDIDAS:

BANOSKI, Casemiro; BANOSKI, Madalena. Entrevista concedida a Dilse Menegusso dos Santos. Bela Vista da Caroba, 23 de janeiro de 2013. Transcrição: Ruan Vinicius dos Santos.

PALHARINI, Luiz; PALHARINI, Geni. Entrevista concedida a Dilse Menegusso dos Santos. Bela Vista da Caroba, 10 de outubro de 2012. Transcrição: Ruan Vinicius dos Santos.

MOURA, Alberto T. Entrevista concedida a Dilse Menegusso dos Santos. Bela Vista da Caroba, 10 de outubro de 2012. Transcrição: Ruan Vinicius dos Santos.

SCHMIDT, Juraci. Entrevista concedida a Dilse Menegusso dos Santos. Bela Vista da Caroba, 27 de dezembro de 2012. Transcrição: Ruan Vinicius dos Santos.

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