Discurso de Fundação

Hoje, dia 03 de dezembro de 2016, celebramos os 29 anos da ethernidade ​ de Darcy Penteado. Dois mil e dezesseis é o ano em que comemoramos os 90 anos de seu nascimento. Darcy nasceu no dia 30 de abril de 1926 e virou purpurina no dia 03 de dezembro de 1987. Esse foi o ano em que eu nasci e no momento em que o corpo mortal de Darcy falecia eu ainda não tinha completado nem dois meses de vida. Mil novecentos e oitenta e sete, aliás, foi um ano atravessado pela transformação em purpurina de importantes agentes culturais da Comunidade LGBT Brasileira, sejam os que foram levados pelos primeiros anos da epidemia de HIV/Aids no Brasil, como Darcy e Jorge Guinle Filho, ou pela extrema violência homofóbica, como a eterna Dzi Croquette Lotinha, o nosso lindo dançarino Carlinhos Machado, ou nosso Apolo de Araraquara, o diretor de teatro Luis Martinez Corrêa. Minha vida já nasce iluminada pela purpurina da imortalidade desses corpos. Digo iluminada pelo brilho evocado e invocado pelas LGBT mais vividas de nossa comunidade que me ensinaram “bicha não morre, bicha vira purpurina”. A imagem da purpurina tem sido utilizada por LGBT como estandarte de nossa blasfêmia – blasfêmia, aliás, nada mais é do enfrentar dentro das comunidades o mito a inviolabilidade. Nós, LGBT, temos aprendido a blasfemar contra a ideologia da morte, do apagamento e do esquecimento que não nos permite o direito à memória, ao luto e ao acesso à sabedoria de nossas ancestrais. Em contexto de tantos mortes, seja pela violência ou pelos primeiros anos da Epidemia de aids, a lição é uma só: não se morre em comunidade.

Hoje Darcy vive. Vive como aquele que em agosto de 1949 realizou a primeira exposição de arte homoerótica no Brasil no Instituto dos Arquitetos em São Paulo. Vive como uma das primeiras figuras públicas a afirmar sua homossexualidade no Brasil. Vive como aquele que em 1977 reuniu importantes intelectuais homossexuais em sua casa com Wilston Leyland (editor da Gay Sunshine Press) em sua visita ao Brasil, gestando o Conselho Editorial do pioneiro jornal da impressa LGBT brasileira “O Lampião da Esquina”, lançado no ano seguinte. Vive como aquele que sonhou com a criação de um Museu dedicado a arte LGBT no Brasil. Hoje Darcy vive em nós, nos caminhos abertos que possibilitaram a nossa existência e nos sonhos que carregamos.

Purpurina é também uma metáfora da contaminação. Os afetos, aliás, são da (des)ordem da contaminação. Os afetos forjam nossa comunidade, nossos corpos, nossas histórias. A moral dominante, aliás, costuma nos ofender gritando: “afetados!”, afirmando que somos aquelas que fogem, ao mesmo tempo, dos domínios do patriarcado e da razão. Afeto nada mais é do que mistura de corpos. E hoje o corpo-imortal de Darcy, como também os de tantas protagonistas da cultura LGBT brasileira, nos afeta e se misturam aos nossos corpos. Darcy vive! Cassandra Rios vive! Anderson Herzer vive! Madame Satã vive! Ivaná vive! Alair Gomes vive! Laura de Vison vive! Andreia de Maio vive! Caio Fernando de Abreu vive! Cássia Eller vive! Cassiano Nunes vive! vive! Cláudia Wonder vive! Clodovil vive! Clodovil vive! Clovis Bornay vive! Djalma do Alegrete vive! Gasparino da Matta vive! Geórgia Bengston vive! Harry Laus vive! Helio Oiticica vive! Herbert Daniel vive! Hudinilson Jr vive! vive! João do Rio vive! Jorge Guinle Filho vive! Vera Verão vive! Lacraia vive! Leonilson vive! Lota de Macedo Soares vive! Lúcio Cardoso vive! ​ Luiz Antônio vive! Luis Martinez Correa vive! Madame Satã vive! Mario de Andrade vive! Markito vive! Marquesa vive! Mauro Faustino vive! Osvaldo Nunes vive! Pedro Nava vive! vive! Roberto Piva vive! Rosely Roth vive! Suzana de Moraes vive! Telma Lipp vive! Tuca vive! Vange Leonel vive! Walmir Ayala vive! Wilson Bueno vive! Como vivem tantas LGBT anônimas, seus afetos e suas criações.

A história é um campo de batalha, cheio de destroços mortos e com o esforço contínuo da ideologia dominante para a destruição. Nossos fragmentos, no entanto, brilham, como purpurina, desafiam o poder e a morte e seguimos na construção de nossa própria história. Diante esse campo de batalha, traçando um caminho iluminado por purpurinas em meio aos escombros, fundamos o Instituto Cultura Arte e Memória LGBT. Esse instituto é voltado para a defesa, a promoção, o fomento e a difusão da cultura, do patrimônio histórico e artístico e da memória da comunidade LGBT brasileira.

Entendemos por comunidade LGBT, não somente o grupo de lésbicas, gueis, bissexuais, travestis e transexuais, como também os espaços comunitários que incluem as mais diversas formas de expressão da orientação sexual, configurações corporais, afetivas e familiares, bem como as possibilidades de

criação e expressão da identidade de gênero de forma dissonante com o regime heterossexual e cisgênero dominante. Inclui, portanto, identidade políticas e culturais que emergem contemporaneamente – tais como queer, cross-dresser, ​ ​ ​ ​ drag queen, pessoa não-binária, pansexual, assexual, intersexual – além de uma ​ infinidade de identidades não ocidentais que não cabem em chaves de leituras do dispositivo da sexualidade ocidental – viado, sapatão, adé, tibira, ​ ​ ​ ​ çacoaimbehuira, cudinhos, guaxu, cunin, kudina, hawakymi, dentre outras. A ​ ​ ​ ​ ​ ​ ​ ​ ​ ​ ​ noção de comunidade também inclui pessoas que, embora não sejam LGBT, participam dessa comunidade por afinidade política e cultural, compartilhando valores, práticas, linguagens e projetos políticos. Como diria Zé Celso, “Cultura ​ cria Cosmos – não grupos. Cria maneiras de ler, interpretar, viver a Vida no Mundo”.

Nós, propomos outra forma de viver a Vida no Mundo. É um caminho aberto e imprevisível, mas sabemos de uma coisa: será profundamente afetado e cheio de purpurina!

Brasília, 03 de dezembro de 2016.

Felipe Areda

Fundador e presidente do Conselho Diretor

do Instituto Cultura Arte Memória LGBT