Patrícia Maria Borges

Os deslocamentos culturais e artísticos da estética bidimensional dos mangás

ECA – USP 2012

Pesquisa de pós-doutoramento desenvolvida como bolsista do CNPq, no programa de Ciências da Comunicação da ECA/ USP, sob supervisão do Dr. Waldomiro de Castro Santos Vergueiro.

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 5

CAPÍTULO I - CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE VISUAL DOS MANGÁS 11 Por que os mangás fazem sucesso no Japão? 1.1 O pensamento gráfico como sistema de decodificação visual 12 1.2 O shodô (書道) como representação do traço gráfico 21 1.3 A influência das xilogravuras ukiyo-e (浮世) na criação dos mangás 25 As xilogravuras ukiyo-e (浮世) como modelo de arte editorial 25

As xilogravuras ukiyo-e (浮世) como modelo de organização pictórica 27 1.4 As contribuições do estilo cinematográfico de Tezuka para os mangás 35 1.5 As contribuições de Tezuka para o estilo visual dos personagens de mangás 41 1.6 O visual kawaii como traço da estética 2D dos mangás 42 A estética bidimensional dos mangás na vida cotidiana dos japoneses

CAPÍTULO II - AS RECODIFICAÇÕES ESTÉTICAS DOS MANGÁS 46

2.1 A estética gráfica – mangás 46 A influência do estilo kawaii na estética dos mangás 2.2 A estética digital – jogos de videogame e animês 51 2.3 A estética holográfica – projeções de holografia 55 2.4 A estética tridimensional - bonecas em geral, incluindo o modelo Large Size Figure 56

CAPÍTULO III -REDESENHANDO AS NOVAS FORMAS DE COMUNICAÇÃO 61 3.1 O florescimento da chamada cultura Otaku 61 3.2 O surgimento do fenômeno cosplay e suas manifestações de estilos de moda 63 3.3 O desenvolvimento de vanguardas nas artes: esculturas, performances, instalações, etc. 66

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 69

APRESENTAÇÃO

Tendo em vista que o mangá é um dos maiores fenômenos do mercado da cultura pop japonesa e que atualmente pode ser considerado uma das grandes potências da criatividade artística que permite aos japoneses se comunicar e se auto-representar - o objetivo do trabalho é mapear algumas contribuições - as tendências estéticas e conceituais - do estilo gráfico dos quadrinhos japoneses para o campo artístico e cultural do Japão do pós-Segunda Guerra Mundial. Dentro do objetivo proposto a primeira intenção consistiu em compreender quais seriam os traços constitutivos da linguagem do mangá moderno (entendido pelo novo estilo de quadrinhos do pós-guerra desenvolvido pelo artista e mangaká Osamu Tezuka, a partir das características da ópera takarazuka e do cinema americano) e o que se transmite através desses desenhos. Para tanto nos apoiamos na compreensão teórica dos estudos da semiótica russa, que nos permitiu resgatar o processo de formação da linguagem do moderno mangá - nos levando a intitular o primeiro capítulo de CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE VISUAL DOS MANGÁS - a partir da investigação dos elementos próprios da narrativa em quadrinhos e aqueles herdados de outras linguagens artísticas, levando em consideração as características da cultura nacional e as absorvidas dos países estrangeiros. Nesse sentido, tivemos que retornar a um longo período da história, por volta do século VI, quando foi desenvolvido o sistema da escrita japonesa, que está diretamente relacionado aos constantes movimentos de absorção da cultura chinesa, iniciado com a importação dos caracteres ideográficos, das técnicas artesanais, do Budismo e do Confucionismo. Movimento que mais tarde também contou com a introdução das técnicas modernas européias de pintura e do método da perspectiva linear ocidental nas xilogravuras ukiyo-es através dos holandeses. Diz respeito a um período que nos fez virar muitas páginas da história do Japão e nos depararmos com uma época rica e do florescimento das atividades artísticas - denominado de Período Edo - reconhecido pelas idéias e pelo modo de pensar difundido entre os séculos XVII até o final do século XIX. Ao tratar desta fase histórica, interessou- nos o fato de vigorar no Japão uma política de isolamento cultural e comercial que fez com que o país desenvolvesse uma cultura muito particular e com características bem diferentes em relação aos países ocidentais. Analisando a descrição dos costumes e hábitos populares daquela época, entendemos tratar-se de um ambiente cujas atenções estavam demasiadamente concentradas no luxo e na riqueza, motivo pelo qual foram construídas importantes obras arquitetônicas, e nos valores centrados na lealdade e no coletivismo. No curso do desenvolvimento das artes japonesas, pode-se encontrar nas xilogravuras ukiyo-e temáticas e elementos gráficos que mais tarde vieram a ser retratados pelos mangás. Com as ukiyo-e entendemos que a maneira que os orientais conceberem a configuração do espaço na pintura não é resolvida a partir da imitação à realidade, mas o que lhes interessa é a capacidade de criar relações espaciais, ou seja, a habilidade de construir relações espaciais de forma criativa. Capacidade criativa esta que anos mais tarde foi incorporada pela linguagem dos mangás e resultou num extenso mercado de publicações de histórias em quadrinhos, dos mais variados gêneros e temáticas. E esse período de isolamento do Japão que vigorou até o ano de 1853, quando o comandante Perry entrou no porto de Uraga com quatro navios de guerra, exigindo a abertura dos portos japoneses, e que posteriormente culminou com o surgimento do termo Japonismo - em referência ao encontro entre as culturas ocidental e oriental, resultando num estímulo mútuo e na mistura entre ambas as artes - foi fundamental para que pudéssemos identificar as singularidades de cada estilo artístico, e nesse sentido reconhecemos que, enquanto a pintura ocidental se desenvolveu através da exploração da tridimensionalidade, com as técnicas da perspectiva linear, a pintura japonesa é fundamentalmente bidimensional e não se ocupa necessariamente de imitar os objetos da realidade. Característica esta que motivou a Jô Takahashi - assessor cultural da Fundação Japão, argumentar sobre a questão da maioria dos cartazes japoneses serem simbólicos. Segundo ele, a emoção que transparece nos cartazes japoneses contemporâneos constitui-se em um importante conceito de design, onde o sensível prevalece sobre o realismo (In: Revista USP. Dossiê Brasil-Japão, p.100). E completa dizendo que isto se deve porque a constituição cultural homogênea de um povo de longas tradições prefere a intuição à lógica e a compreensão da mensagem é efetivada mais pela captação do seu apelo estético. Posteriormente, esse movimento de intercâmbio artístico-cultural e de troca de experiências se intensificou ainda mais no pós-Segunda Guerra Mundial, quando os japoneses foram influenciados pelas técnicas cinematográficas americanas e desenvolveram um formato muito particular de história em quadrinhos, que veio a ser conhecido por mangá moderno. Este período, compreendido pelos anos de 1939 a 1945 correspondeu à fase em que o Japão pode se reestruturar social e economicamente e sofreu uma série de transformações. Transformações estas que afetaram diretamente os costumes tradicionais e que mais tarde tiveram um forte impacto nas questões artísticas e culturais do país. Prova disso foi a expansão do mercado de trabalho feminino, substituição das leis trabalhistas, ruptura dos códigos sociais, o desapego às rígidas relações hierárquicas, a renuncia aos valores e ideais nacionalistas. O Japão do pós-guerra passou a ser compreendido como uma nação conectada ao processo de mundialização da cultura e da globalização econômica – fase em que os japoneses puderam experimentar uma nova etapa da vida: voltada para a valorização da criatividade artística, das emoções e da sensibilidade humana, o surgimento de novas formas de sociabilidade, o incentivo às realizações e vontades individuais, a preocupação em manter a beleza e a juventude, desfrutar de um estilo de vida confortável e luxuoso, interesse crescente pelas atividades lúdicas como ouvir música, viajar, fazer compras, acompanhar as tendências da moda, os programas de TV. Diante de todas essas transformações e como não poderiam ficar alheias, as formas de expressões e manifestações artísticas e, principalmente os quadrinhos de a partir da década de 1960 também foram afetados. Tanto os aspectos estéticos como também as temáticas retratadas nas histórias sofreram grandes transformações com relação ao modelo de narrativa desenvolvido nas décadas anteriores à guerra. Importante ressaltar que nesse período pós-guerra os japoneses passaram a adotar os hábitos e o estilo de vida dos americanos - o american way of life. A derrota sofrida pelo Japão na guerra fez com que o povo desenvolvesse um sentimento de baixa estima e inferioridade em relação ao Ocidente, levando-os a aceitar e valorizar tudo aquilo que representasse a cultura estrangeira, especialmente, a americana. Sentimento este que somente a partir da década de 90 pode ser superado – quando o termo mangá tornou-se sinônimo de quadrinhos no exterior associado a um modelo de estética e técnica desenvolvida pelos japoneses e, principalmente, por sua relevância cultural e artística como principal canal de acesso aos hábitos e costumes da cultura japonesa. Esse jogo de influências iniciado há muitos séculos atrás com os pergaminhos e as xilogravuras ukiyo-e, prosseguido através das animações e quadrinhos de Disney e Tezuka, neste início do século XXI, deu origem ao movimento denominado por Kelts (2006:69), de Japanamerica – quando a cultura pop contemporânea do Japão está adentrando na América.

Num segundo momento, ao partir da compreensão do mangá como reflexo da organização do pensamento, importou refletir sobre a relação dos japoneses com essa estética, na medida em que o cotidiano da vida dos japoneses é permeado por imagens estilisticamente bidimensionais. Portanto, ao levarmos em consideração o histórico de sucesso das produções de animações bidimensionais (produzidos com a técnica de animação de 2D - duas dimensões) e a clara predominância do padrão bidimensional na paisagem urbana de Tokyo - como bem observou Takahashi (op.cit., p.100) a estética da estática, em referência ao efetivo potencial de comunicação dos cartazes japoneses - numa época em que as técnicas cinematográficas buscam reproduzir imagens cada vez mais realistas; em que as pessoas dispõem dos mais avançados recursos tecnológicos, como as TVs de última geração, as super-rápidas conexões da internet, os jogos poderosos com recursos interativos, fomos motivados a compreender a importância da natureza visual dos mangás dentro do contexto da cultura japonesa – acredito que esta questão esteja intimamente relacionada ao desenvolvimento de uma determinada sensibilidade artística e que tenha fortes implicações com uma espécie de pensamento gráfico (cf. R. Barthes: O império dos signos), entendido como aquele originário das raízes ideográficas da língua japonesa. Nos deslocamentos dessa estética para outros suportes e meios implicaria a formação de novas linguagens e novos sentidos. A estética como dispositivo de transferência, portanto, agiria como elemento de conexão entre as diferentes linguagens (quadrinho, animação, videogame), no sentido de conservar os traços aparentes, porém, ao migrar entre meios e suportes diferentes, de traz alterações nos recursos da narrativa, o que significa compreender que o processo de identificação com a imagem é alterado na medida em que se alteram os meios, e assim, uma mesma imagem pode ser vista de formas diferentes. Como resposta a esta questão surgiu o segundo capítulo com o título - AS RECODIFICAÇÕES ESTÉTICAS DOS MANGÁS – que optou por mapear os deslocamentos dessa estética – quando ela migrou do meio impresso (histórias em quadrinhos) para o meio virtual, a partir da análise dos games e da projeção holográfica – e do meio virtual para o mundo real - no momento em que bonecas de colegiais uniformizadas, robôs eficientes e que corpos reproduzidos com dimensões reais descolam das telas do mundo bidimensional e são dados a um novo tipo de relacionamento fetichista - importou à pesquisa responder - como se dá passagem da coisa para o corpo vivo. Para tanto, houve a necessidade de recorrer às discussões teóricas de autores cujos estudos se apóiam em questões sociológicas, tais como Massimo di Felice, Derrick de Kerckhove, Michel Maffesoli, Mario Perniola, entre outros. Estes autores nos permitiram cercar a questão a partir de discussões centralizadas na temática dos processos de dissolução de barreiras entre estados opostos. Em Simulacros e simulações (1981) de Jean Baudrillard trabalhou-se o conceito de fetichismo, proposto por Walter Benjamin a partir da discussão do processo de dissolução das barreiras entre o orgânico e o inorgânico, com a obra Repensando o ritual (2000) de Mario Perniola, entendemos que a essência do simulacro se concretiza na dissolução entre a realidade e a aparência; em A ilusão vital (2001), encontramos o suporte teórico de Di Felice, que foi essencial para se repensar as linhas do visível e invisível, presente e ausente, original e cópia.

A partir do resultado obtido neste estudo, o terceiro capítulo intitulado REDESENHANDO AS NOVAS FORMAS DE COMUNICAÇÃO, ao partir do poder de modelização dessa estética, entendeu-se que o contato estabelecido entre os traços estéticos com as outras formas de linguagens possibilitou a recriação e transformação da informação, permitindo surgir novos sentidos e novas formas de comunicação. Neste sentido, o estudo privilegiou investigar as combinações culturais em que se processou o desenvolvimento das expressões artísticas e culturais japonesas na contemporaneidade. As possibilidades de referência e significados do conceito de estética foram ampliadas dentro da análise e adquiriram uma espécie de esforço conjunto (já que na visão dos japoneses, qualquer desejo de mudança deve partir de uma força de vontade interior), no momento em que puderam contar com o desejo humano de incorporá-la. Neste sentido, as interferências ou contaminações do visual kawaii passaram a integrar a moda, possibilitando a recriação de alguns estilos de roupas que se tornaram populares entre a juventude nipônica – o visual kei, os estilos, lolita e meido; foram identificadas sob uma nova modalidade teatral, no momento em que o termo cosplay passou a significar um conjunto de hábitos da juventude que começaram a desfilar pelas ruas imitando os trejeitos e vestidos com a mesma caracterização de seus personagens de mangás, games e animês prediletos; promoveu o surgimento de várias tribos urbanas; como as gals, kogal, gansuro; muitas dessas podendo ser identificadas pelo estilo de roupa utilizado por seus integrantes; a incorporação cultural de novos hábitos e estilo de vida, como a cultura otaku; e o surgimento de vanguardas na arte, literatura, arquitetura, entre outras manifestações, mas, também, uma nova geração de artistas japoneses para a criação de suas obras inspiradas nos mangás e animês. Como resultado obtido a partir da compreensão em profundidade do espírito dessa estética, as novas formas de comunicação surgidas neste último século passaram a representar o desejo profundo de transformação da sociedade japonesa - definido por Kerckhove (2009) como mudança de pele, no momento em que esses padrões aparentes passaram a representar a ideologia imediatista das gerações jovens, de valorizar apenas o tempo presente, ideologias estas que prevaleceram sobre a dinâmica tradicional e milenar no cenário vigente.

CAPÍTULO I CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE VISUAL DOS MANGÁS

Por que os mangás fazem sucesso no Japão? <*><*><*><*><*><*><*><*><*><*><*><*><*><*><*><*><*><*><*><*><*><*>

Foi justamente esta questão: Por que os mangás fazem sucesso no Japão? que me motivou a realizar esta pesquisa. Convicta de que os japoneses possuem um estilo único de desenhar mangás que a partir da década de 90 começou a ser difundido em escala mundial e a influenciar o trabalho de muitos artistas dentro e fora do Japão, fui investigar a fundo algumas formas de linguagem e os diversos aspectos da cultura japonesa na tentativa de responder a esta questão. De acordo com a revista Nippon (にっぽん), “o mangá já é parte da cultura japonesa desde o período Heian (794-1185), quando a leitura dos ideogramas on-yomi e kun-yomi se desenvolveu” (2010, p.8). E a primeira relação que me veio à mente trata de reconhecer que muito do potencial expressivo da linguagem do mangá para a cultura japonesa está associado às possibilidades visuais da escrita japonesa. Assim, toda a percepção e leitura das imagens de uma composição de histórias em quadrinhos exigiria do leitor trabalhar com o mesmo tipo de raciocínio lógico do qual se utiliza também o sistema da escrita japonesa, o que significaria dizer que a mente dos japoneses já teria uma predisposição para a leitura de quadrinhos. Assim sendo, o processo de reconhecimento das imagens no interior dos quadrinhos, e portanto, o mecanismo de criar relações entre as diversas imagens, seria análogo ao processo de decodificação dos caracteres da escrita japonesa durante a leitura de uma frase. Este seria apenas um dos muitos exemplos encontrados para aproximar a estrutura da linguagem dos mangás à do alfabeto japonês, e também uma das razões que fez com que eu compreendesse os motivos da popularidade e expansão dos mangás dentro do universo infantil ao adulto. Com o objetivo de continuar a investigar todos os elementos de conexão entre os mangás e a cultura japonesa é que me deparei com várias expressões artísticas que, sob meu ponto de vista, muito contribuíram para o desenvolvimento e para a popularidade dos mangás no Japão. Este capítulo, portanto, conferirá destaque a analisar as principais formas de arte japonesas e sua influência no processo de construção da linguagem dos mangás.

1.1 O pensamento gráfico como sistema de decodificação visual

A linguagem dos mangás assim como toda manifestação cultural do Japão se desenvolveu a partir das características do sistema da escrita japonesa. Isto significa dizer entender que o processo de formação da linguagem dos quadrinhos no Japão se deu a partir da assimilação dos elementos estéticos e conceituais já anteriormente presentes na linguagem do alfabeto japonês. Com a finalidade, portanto, de identificar quais seriam esses elementos ou características herdadas pelos mangás é que passaremos a compreensão e análise do sistema da escrita japonesa. A escrita japonesa utiliza-se de caracteres chineses denominados kanjis, introduzidos no Japão por volta do século III em combinação com dois alfabetos silábicos - o hiragana, cujas letras possuem formas mais arredondadas e sinuosas e por ser considerada uma escrita delicada e feminina, serviu-se às mulheres para escrever poesias, e o katakana, formado por letras mais angulares e utilizado que representam apenas sons - criados entre os séculos VIII e IX, a partir da simplificação dos caracteres chineses.

O processo de simplificação dos caracteres chineses se desenvolveu através da associação e semelhança de sua forma com a imagem do objeto correspondente, originando os caracteres da categoria de objetos, e demais gerados a partir da semelhança de sua forma com o significado correspondente, originando os kanjis que representam conceitos abstratos. O processo de simplificação dos caracteres da categoria de objetos, ou seja, daqueles criados para representar os objetos e os fenômenos da natureza, permitiu que o formato dos kanjis fosse bastante semelhante com as imagens correspondentes, e também por esta razão, torna-se mais fácil identificá-los, como podemos ver através dos exemplos de alguns kanjis da figura que segue:

Figura 1 – Processo de simplificação dos caracteres japoneses.

Na linha horizontal há dois blocos de três imagens cada que representam o processo de evolução ou simplificação dos caracteres, a começar pela primeira linha da coluna da esquerda, está o kanji de sol ou dia ( 日 – hi, bi, ka); olho ( 目- me ); mulher ( 女 - onna); criança ( 子 - ko); e montanha ( 山 - yama) respectivamente. Cada linha apresenta como os pictogramas evoluíram e chegaram na forma atual dos ideogramas. Na primeira linha da coluna da direita e de cima para baixo está o kanji de carneiro ( 羊 - hitsuji); pássaro ( 鳥 - tori); árvore ( 木 - ki); chuva ( 雨 - ame) e de nascer ou viver ( 生 – umareru, ikiru) respectivamente. No processo de identificação dos kanjis, devemos levar em conta algumas características visuais correspondentes à forma dos caracteres, como por exemplo, o aspecto da sugestão, que pode ser definido através de vários elementos estéticos tais como, a sinuosidade e o movimento das linhas, ou a angularidade e aparente estaticidade da forma, o volume, entre outras características gráficas apresentadas pelos caracteres. O kanji 人(hito), que significa pessoa (Figura 2) e corresponde a categoria dos caracteres que representam objetos, sugere através de duas linhas de espessuras variadas a imagem de uma pessoa com as pernas abertas ou caminhando, conforme está representado na figura abaixo através da arte caligráfica. O aspecto gráfico dos caracteres da escrita japonesa lhe concede um caráter ilustrativo, permitindo a estes caracteres serem referenciados ao mesmo tempo como um símbolo escrito ou mesmo visual, uma letra e um desenho.

Figura 2 – Kanji de hito, que representa pessoa

Figura 3 – Representação caligráfica do kanji de hito (pessoa)

Já o processo de simplificação dos caracteres que representam conceitos abstratos ou idéias, permitiu que a forma do kanji retivesse apenas os traços essenciais dos seus significados. Neste caso, o processo de identificação dos caracteres da categoria de conceitos abstratos ou idéias é um pouco mais complexo, pois implica na associação de partes fragmentadas de sua forma, incluindo associá-las a outros radicais que foram criados para acompanharem esses caracteres. A escrita japonesa conta com aproximadamente 214 chaves ou radicais, dois deles, o radical do kanji de pessoa e coração( 心 ), foram referidos abaixo para exemplificar o processo de formação das palavras japonesas. O kanji yasumu(休む), que significa descansar, por exemplo, é formado pelo radical do kanji de pessoa (人 - hito) + o kanji de árvore (木 - ki), e implica associar a idéia de uma pessoa apoiada numa árvore para fornecer o significado de descansar. Relação semelhante pode ser vista com o kanji de karada ( 体 ), que significa corpo e é formado pelo radical do kanji de pessoa (人 - hito) + o kanji de livro ( 本- hon), e implica na relação do livro como o registro e mapeamento de todos os órgãos internos de uma pessoa. Outros exemplos do processo de identificação dos caracteres da categoria de conceitos abstratos são claramente encontrados em vários kanjis que acompanham o radical do kanji de coração kokoro ( 心 ), associados a outros caracteres, e por esta razão, seus significados estão relacionados com as funções do nosso órgão coração. São eles: respirar ou respiração ( 息 - iki); vontade ( 意 - i); sentimento ( 感 - kan); preocupação ou desejo ( 念 - nen); apressar-se ou repentinamente ( 急ぐ - isogu), entre outros.

Esse mesmo processo de codificação dos caracteres segue a mesma estrutura de formação das palavras - baseada na associação de caracteres isolados que em justaposição a outros, resultam numa nova significação, determinada de acordo com o lugar ocupado na frase. A seguir, encontram-se alguns exemplos que nos permitem compreender o tipo de raciocínio lógico utilizado na decodificação das palavras japonesas:

A palavra Japão(日本 – nihon) corresponde à associação de dois kanjis : sol (日 - hi) + livro (本- hon). A palavra Japonês (日本人 – nihonjin) corresponde à associação de três kanjis : sol (日 - hi) + livro (本- hon) + pessoa (人 - hito). A palavra Língua japonesa (日本語– nihongo) corresponde à associação de três kanjis : sol (日 - hi) + livro (本- hon) + língua (語 - go).

Todas essas características da escrita japonesa descritas acima, como dito anteriormente, podem ser revistas e estão presentes de alguma maneira na estrutura da linguagem dos quadrinhos japoneses – os mangás. Essa relação foi fundamental para que a pesquisadora Sonia Luyten (2000:33) compreendesse que a importância que o mangá adquiriu dentro da cultura japonesa está associada à habilidade que os japoneses desenvolveram no processo de decodificação da escrita, e portanto, se dá por conta da familiaridade com as formas visuais.

Uma dessas características mais evidentes está no reconhecimento do mesmo processo de abstração da escrita japonesa, que pode ser identificado através do estilo de desenho encontrado na linguagem dos quadrinhos japoneses, e que se dá através da simplificação das imagens, como mostra a figura abaixo:

Figura 4 - Tira do mangá Fuji Santaro, do gênero salariman (termo japonês adaptado da expressão em inglês salaryman, e serve para designar os executivos japoneses), criado em 1965 por Sanpei Sato. As temáticas comuns nas séries de Fuji Santaro retratam o dia a dia do personagem envolvido em sua rotina e ambiente de trabalho, e outras temáticas ficam por conta do relacionamento do personagem com o sexo oposto, seja através das funcionárias da empresa, das camareiras ou mesmo com sua esposa.

Através de um estilo bem sintético e com pouco texto, a tira explora uma temática bastante recorrente no trabalho de Sanpei Sato - que trata do relacionamento do típico casal japonês, onde o personagem principal, Fuji Santaro aparece juntamente com sua esposa que vive controlando seus gastos. A história em questão, retrata o casal envolvido em diferentes situações ao longo de cada quadro, todas elas pontuadas por um espaço de tempo de 10 anos, como apontam os números 10, 20 e 30 seguidos do respectivo kanji de ano (年) localizados à direita e no canto superior dos quadros. No primeiro quadro, eles aparecem se casando e o quadro é acompanhado da palavra casamento; no segundo quadro (passados 10 anos do casamento) a esposa de Fuji Santaro, berrando, diz para ele (買いかえたい) que quer trocar seus móveis; no terceiro quadrinho, ela diz (建てかえたい) querer trocar de casa, e no último quadro, ela diz (取りかえたい) querer trocar de marido.

A análise da tira de Fuji Santaro mostra que, através de uma linguagem dinâmica e com poucos traços é possível sintetizar e simplificar todas as imagens presentes no interior dos quadrinhos, eliminando todas as impurezas e excessos, ao mesmo tempo em que se permite concentrar nos detalhes essenciais para a compreensão da mensagem da história. Este mesmo princípio de representação – a simplificação ou estilização – como visto anteriormente, está presente na base de formação dos caracteres japoneses e também representa a essência estética da linguagem dos quadrinhos japoneses.

Outra aproximação entre o alfabeto japonês e as histórias em quadrinhos diz respeito ao mesmo método de organização estrutural das linguagens - assim como a leitura em japonês (e demais alfabetos que representam imagens, tais como os hieróglifos egípcios) obedece à direção vertical, e da direita para a esquerda, a compreensão das histórias em quadrinhos segue a mesma direção de leitura dos textos escritos em língua japonesa.

Ainda, com relação ao método de montagem dos quadros acima, devemos levar em consideração o mesmo tipo de raciocínio lógico empregado pelo sistema da escrita japonesa, quando da necessidade de os leitores observarem as partes fragmentadas da história, representada por cada quadrinho isoladamente, e, através do processo de associação entre elas, levarem a compreensão do todo. Desta forma, o sentido ou o significado da história surge quando a mente realiza as ligações entre as imagens vistas no interior dos quadros e o leitor é levado em direção ao tema ou idéia final - este processo de observar as partes e perceber o todo é nomeado de conclusão.

Figura 5 – Nessa página, predominantemente a linguagem visual é que se encarrega de atribuir significado a narração, quando a mente vai captando cada fragmento de imagem e, a partir deles, elabora a cena da batalha - mangá Dororo, de Tezuka.

A figura 5, portanto, paralelamente ao processo de codificação dos caracteres japoneses, serve para exemplificar o quanto esse tipo de linguagem (das histórias em quadrinhos) solicita do leitor um poder efetivo de raciocínio e de participação para transmitir a informação, no momento em que se torna necessário memorizar a situação representada nos quadros anteriores e relacioná-las aos quadros seguintes. Sendo ainda necessário considerar que assim como há processos mais complexos de identificação dos caracteres japoneses, como é o caso do processo de decodificação dos caracteres que representam conceitos abstratos ou idéias, há também diferentes níveis ou graus de participação do leitor na compreensão das histórias, que variam de acordo com o método de montagem dos quadros ao longo das páginas de um mangá. Segundo McCloud (2005, p.79) o método de montagem dos quadros corresponde ao tipo de transição de número 5, denominada de aspecto-pra-aspecto, é o tipo de transição que predomina nas histórias em quadrinhos japonesas e que se enquadra no tipo de narrativa específica oriental, sendo na maioria das vezes utilizada para estabelecer um clima ou sentido de lugar. No entanto, dada a extensa variedade de gêneros e estilos de narrativas dos mangás é possível encontrar nos quadrinhos japoneses, desde métodos de montagens de quadros mais simples, ou seja, aqueles que exigem pouco esforço do leitor na compreensão da situação, até métodos de montagem mais complexos, e neste caso, a história solicita do leitor um trabalho intelectual mais intenso, no momento em que ele esforça-se em estabelecer uma relação visual entre as diferentes imagens localizadas no interior dos quadros e dar um sentido para elas. Seja pela dimensão das formas, cromatismo, textura, similaridade de localização das imagens dentro dos quadros, estilo de representações realistas ou cartunizadas, o fato é que diante de uma composição em quadrinhos, são muitos os conteúdos e elementos visuais internos em jogo (é necessário incluir nesta análise os diferentes formatos dos requadros, que também contribuem para alterar a percepção do sentido da história) para serem observados e que podem contribuir para que o leitor consiga ou tão rapidamente decodificar a mensagem da história. Logo, a percepção de linearidade ou de não-linearidade dependerá da facilidade ou não de o leitor conseguir estabelecer a ligação visual entre os quadros vizinhos – fenômeno que está associado ao processo denominado elipse, que consiste em suprimir a continuidade dos acontecimentos. Neste sentido, encontramos em Scott McCloud (2005: 70-72) seis possibilidades de elipses que variam de acordo com as mudanças ou descontinuidades temporais e espaço-temporais, incluindo o tipo de transição de aspecto-pra-aspecto citado anteriormente. Observe através da página do mangá Norakuro como é sutil a transição do movimento do personagem de um quadro para outro. Nesta situação não há referências de mudanças espaciais e, portanto, a ação ocorre dentro de um mesmo espaço cênico, exigindo desta forma, um pequeno esforço de conclusão por parte do leitor.

Figura 6 – Página do mangá Norakuro (O cão vira-lata), de Tagawa Suiho. Esse tipo de narrativa – mais concisa e clara, com desenhos de personagens e cenários cartunizados, traços simples - foi muito comum no Japão até o período do pós- Segunda Guerra Mundial, com os mangás: Sho-chan no Boken (As aventuras do pequeno Sho), de 1923; Norakuro, de 1931; Fuku-chan, de 1936; Ammitsuhime (Princesa Ammitsu); Sazae-san, de 1946; Fuji Santaro, de 1965; entre outros. A partir do pós-guerra é que a narrativa dos mangás irá sofrer grandes alterações, e essa tarefa ficou por conta do surgimento de um dos grandes inovadores da linguagem dos mangás e animês que se destacou muito neste período pós-guerra – Osamu Tezuka. Tezuka foi quem trouxe grandes contribuições para o universo dos mangás ao explorar as variadas possibilidades de montagem dos quadros juntamente com os ilimitados recursos cinematográficos e da linguagem visual, ele desenvolveu novos métodos de composição de narrativa em quadrinhos, baseado na idéia de que os leitores deveriam compor um único momento, utilizando-se de imagens fragmentadas. Neste sentido, o leitor é freqüentemente convidado a utilizar o raciocínio lógico-dedutivo para descobrir o sentido gerado a partir da relação entre as imagens do interior dos quadros, por mais que muitas vezes essas imagens não se pareçam em nenhum sentido.

1.2 O shodô (書道) como representação do traço gráfico

Uma outra forma de expressão artística que explora a simplicidade das formas e se desenvolveu a partir de todo o conjunto de técnicas e etapas necessárias ao traçado das letras japonesas é a arte da caligrafia japonesa - o shodô (o ideograma sho - 書 significa escrever e o ideograma do - 道 significa caminho). O shodô é mais um exemplo de arte tradicional do Japão que segundo Saito (p.29) começou a ser difundida durante o século VII, por volta do ano de 645 d. C., e que assim como as demais manifestações gráficas do Japão se desenvolveu a partir da exploração dos recursos visuais da escrita japonesa, e por esta razão apresenta muitas características em comum com essa forma de linguagem verbal, e por seguinte, com a linguagem dos quadrinhos. Pensar as aproximações entre as linguagens dos quadrinhos e da arte caligráfica requer num primeiro momento compreender a existência de uma grande diversidade de estilos artísticos – tanto a arte caligráfica como os quadrinhos japoneses possuem um sistema de classificação de estilos gráficos que podem ser reconhecidos em função de determinadas características que apresentam. No caso dos mangás, essa variação de estilos pode ser associada ao tipo de gênero das histórias, já com relação ao shodô, está relacionada aos três principais estilos caligráficos, que de acordo com Saito (2004, p.19) são: o kaisho, determinado pelas linhas quebradas e movimentos duros; gyousho, que corresponde ao estilo de letra cursiva, e sousho, um estilo fluido composto por cursos rápidos. Abaixo, encontramos a palavra shodô (書道) escrita1 em kanji nos três estilos caligráficos:

1 Estes três exemplos de estilos caligráficos são cortesias da autora Monica Jury Terada, que participa de duas associações de grupos de shodô: um deles conhecido por Taikei Kai (associada desde 1995); tendo como

Figura 7 – Estilo caligráfico kaisho

Figura 8 - Estilo caligráfico gyousho

Figura 9 - Estilo caligráfico sousho

professor Taikei Sugiura da cidade de Shizuoka-Japão; o outro, corresponde ao grupo de shodô da revista Den/Hokushin do Japão e da Associação de shodô do Brasil; tendo como professora Etsuko Ishikawa, de São Paulo (associada desde 2009).

Todos esses estilos acima correspondem a um determinado sistema de padrões artísticos utilizados pela caligrafia, sendo que cada estilo comporta uma quantidade infinita de variações gráficas, uma vez que o ato de escrever é uma expressão individual que está relacionada com a própria personalidade do artista. Estas alterações gráficas se diferenciam de acordo com a variação de espessura dos traços, conforme a quantidade de força colocada no movimento das mãos; pela irregularidade e assimetria das formas; a gestualidade do corpo, que faz resultar o movimento e a fluidez das linhas; a posição dos caracteres; a gradação tonal, entre outros fatores.

Talvez tenha sido precisamente essas possibilidades expressivas da caligrafia japonesa e as habilidades no domínio das técnicas de representação bidimensional, que tenha encorajado a promover toda diversidade de estilos e gêneros de histórias em quadrinhos no Japão. Reconhecendo portanto, as infinitas possibilidades expressivas de utilização da sua escrita, os mangás deram conta de trazer para dentro de suas páginas, toda a beleza das formas e das linhas dos caracteres japoneses.

Numa única página de mangá, a caligrafia pode ser utilizada dentro dos balões, para retratar a emoção dos personagens ao longo de seus diálogos; para explicar alguma situação quando necessário, podendo situar o leitor sobre o período ou o ambiente retratado pela história; como recurso decorativo dos ambientes e das cenas, mas também, a linguagem dos mangás emprega ainda o texto escrito como recurso sonoro, através das onomatopéias - um importante recurso de representação do som e do movimento. Nos mangás, a utilização dos diferentes estilos caligráficos como sistemas gráficos de representação dos sons – as onomatopéias, em alguns casos fica condicionada ao modelo narrativo determinado pelo tipo de gênero das histórias, além de contar é claro com o estilo de desenho único de cada mangaká (desenhista de mangás). Fato curioso é que ainda nos tempos atuais, as onomatopéias são o último recurso a ser inserido nas histórias e na maioria das vezes, segundo a pesquisadora de onomatopéias, Leitão (2011), é uma arte ainda feita à mão – fato este que vem estreitar ainda mais seu parentesco com a arte caligráfica do shodô. Portanto, se há de fato uma tendência para que a forma de apresentação gráfica das onomatopéias ao longo das páginas esteja de acordo com o sistema de classificações e subdivisões das histórias em gêneros, isto não é uma regra. No shonen (初年) e shoujo ( 少女), mangás para meninos e mangás para meninas, respectivamente, por exemplo, essa predominância de estilos caligráficos pode ser associada a predominância de utilização de onomatopéias escritas em katakana e hiragana, respectivamente. No entanto, devido a grande diversidade de temas e gêneros de histórias de mangás: de esportes, gourmet, históricos, de salaryman, policial e de detetive, de ficção científica, de robôs, de histórias de terror, eróticos, de aventura e fantasia e de heróis e heroínas, as onomatopéias se constituem num efetivo recurso de reprodução dos mais variados tipos de sons e podem aparecer em qualquer um dos três sistemas de escrita – kanji (com pouca freqüência), katakana, hiragana, e até mesmo em roma-ji (alfabeto românico; A, B, C, etc). Nos mangás shonen, por exemplo, devido a grande quantidade de cenas de batalhas, a utilização de onomatopéias é freqüente na reprodução de sons de explosões - ドオン (doon) e de raios mortais. Observe na figura abaixo que a forma de representação gráfica das onomatopéias se aproximam ao estilo de caligrafia kaisho, ainda mais por utilizar letras do alfabeto katakana - formadas por linhas angulares e cheias, preenchidas na cor branca ou preta, que se destacam sobressaindo-se e contrastando com o ambiente das cenas, mas ao mesmo tempo, percorrem direções variadas ao longo dos quadros, tal como as linhas de ação, que resultam na sensação de movimento às cenas.

Nos mangás shoujo, além das onomatopéias representadas em katakana muitas delas aparecem também no silabário fonético hiragana, e correspondem, portanto, ao estilo de letra cursiva gyousho, formadas por traços mais finos e sutis. Geralmente o emprego de onomatopéias neste gênero de mangá fica limitado a reprodução de sons do ambiente cotidiano, tanto de pessoas como de animais, tais como, pessoas comendo, bebendo, roncando, ou o latido de cachorros, gatos miando, insetos voando; sons de objetos eletrônicos, como rádios, televisores e telefones; sons da natureza, tais como o barulho dos trovões, do vento, do fogo, entre outros. É recorrente também no shoujo a reprodução de sons da categoria de onomatopéias denominada de mímesis, definida por palavras que expressam, em termos descritivos e simbólicos, os estados ou condições de seres animados ou inanimados, assim como mudanças, fenômenos, movimentos, crescimentos de árvores e plantas da natureza (In: LUYTEN, Sônia. Onomatopéias e mimesis no mangá: a estética do som. Revista USP, São Paulo, n.52, pp. 176-188, dez./jan./fev, 2001-2002). E dentro da categoria de mímesis, classificados como gijogo estão as palavras que descrevem as emoções e os sentimentos humanos. Mímesis, portanto, correspondem a categoria de palavras responsáveis não somente por expressar os sons, mas as emoções e os sentimentos, como a dor, felicidade, amor, tristeza, ódio, surpresa, e são frequentes nos shoujos, pelo fato de ser um gênero de história voltado à temáticas sentimentais e românticas e ao retratar todo tipo de emoções internas vividas pelas personagens.

Desta forma, que a inserção das expressões onomatopéicas resulta num recurso de grande expressividade nas páginas de mangás, que segundo Leitão (In: Representação dos sons nos mangás. Artigo apresentado nas 1as Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos, ECA/USP, 2011) consistiu num grande desafio à criatividade dos autores japoneses que em função da característica monocromática da publicação tiveram de explorar com muita habilidade todos os elementos gráficos a disposição, tais como o tamanho e a forma das letras, a direção, a tipografia, entre outros.

1.3 A influência das xilogravuras ukiyo-e (浮世) na criação dos mangás

As xilogravuras ukiyo-e (浮世) como modelo de arte editorial

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Apesar dos rolos ê-makimonos (grandes rolos pintados no século XII que apresentavam uma sucessão de cenas que apareciam gradativamente à medida que os rolos eram desenrolados; caracterizavam-se pelo movimento e pelo colorido vivo. As histórias mostravam animais em situações satíricas e eram retiradas de lendas, romances, contos históricos, guerra, fé, milagres. O mais famoso conjunto de rolos de ê-makimono chamava- se Choju Jinbutsu Giga – Pássaros e animais imitando os humanos) serem considerados os antecedentes pictóricos dos mangás, priorizamos nesta pesquisa investigar as contribuições das xilogravuras ukiyo-e2, dada sua relevância histórica e projeção internacional, tal como os mangás tiveram no Ocidente, além da incontestável influência estética e técnica no processo de criação dos mangás.

Uma das razões de se atribuir às xilogravuras ukiyo-e a paternidade narrativa dos mangás se deve ao fato de que assim como os quadrinhos japoneses, essas xilogravuras também continham ilustrações e textos, também eram divertidas, baratas e representavam temáticas contemporâneas à época.

Outra característica que permite associar essas gravuras aos mangás é o caráter reprodutivo em grande escala das estampas, que em função da técnica de pintura xilográfica permitia que os efeitos de tonalidades e de fusão de cores se repetissem sem diferença entre as centenas de cópias. De acordo com Hashimoto (2007:72), “a numerosa produção das estampas ukiyo-e pode ser inserida no primeiro boom editorial do Japão” - fato este que veio colaborar para que essas xilogravuras pudessem ser consideradas o início do processo de editoração do Japão. Ainda para esta autora, as similaridades entre os mangás e as estampas ukiyo-e se enriquecem ainda mais se somarmos às imagens a estrutura de livros, que também eram classificados segundo o aspecto físico, os temas centrais e os gêneros narrativos, além do mais essas impressões já contavam com o sistema de segmentação de públicos-alvos específicos (op.cit.; 76). Outra arte muito popular no Japão que tem suas raízes nas gravuras ukiyo-e, que se desenvolveu antes do grande sucesso do mangá e do animê e que também mantinha o sistema de segmentação das histórias de acordo com um público específico foram os kamishibais. Kamishibais eram histórias em quadros ilustrados, contadas por contadores itinerantes - os homens ou tios kamishibais. Segundo Nash (2009:18), os kamishibais lembram os mangás pela grande diversidade e intensa mistura de gêneros - eles continham histórias sobre aventura, ação e sexo, que eram destinadas ao público adulto (denominadas gekigá); lendas tradicionais como a do Momotaro (em que um garoto que nasceu de um

2 Ukiyo-e é o estilo de pintura criado por Hishikawa Moronobu (1618-1694). Ele começou a ilustrar livros em 1658 e a desenhar figuras isoladas das atividades da vida diária da população geral, cenas do distrito de prazer de Yoshiwara, prostitutas famosas e cenas de amor explícito (Veríssimo, 1995:145). pêssego se transforma num super-herói); e algumas das primeiras ilustrações de super- heróis com identidades secretas também apareciam nestes cartões ilustrados.

Ukiyo-e, portanto, corresponde à atividade artística desenvolvida durante o século XV até o final do século XIX, entre os anos 1603 a 1868 (Período Edo – florescimento da cultura mercantil e das atividades culturais em Osaka), quando as pessoas comuns e os trabalhadores do campo dispunham de uma arte popular que era vendida nas ruas e em quiosques, encadernadas em álbuns ou isoladamente. Considerada uma arte urbana no sentido de representar certas particularidades da vida cotidiana da sociedade Tokugawa, essas estampas ou xilogravuras especializaram-se em temáticas sobre as atividades do homem comum e dos trabalhadores, incluindo também, paisagens rurais e cenas de lugares famosos (como as séries muito populares das Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji e das Cem vistas do Monte Fuji ilustradas pelo mestre Katsushika Hokusai3), atores conhecidos do teatro japonês, ilustrações de mulheres da vida mundana e de cenas eróticas e pornográficas. Para Moliné (2004:18), ukiyo-e são:

Gravuras feitas a partir de pranchas de madeira, geralmente de temática cômica e algumas vezes erótica, que tiveram uma boa recepção na época. De maneira contrária às formas artísticas previamente citadas, destinadas primordialmente às classes altas, os ukiyo-e eram apreciados pelas populares, e seus criadores preferiam a crítica social e a sátira à perfeição estética.

As xilogravuras ukiyo-e (浮世) como modelo de organização pictórica <*><*><*><*><*><*><*><*><*><*><*><*><*><*><*><*><*><*><*><*><*><*>

No passado, as gravuras ukiyo-e alcançaram a mesma popularidade que os mangás conquistaram nos dias de hoje, além do mais, é incontestável a relevância artística e cultural de ambas as linguagens para o reconhecimento e projeção artística do Japão no cenário internacional, no momento em que tanto os quadrinhos japoneses como as estampas ukiyo-e

3 A palavra mangá se popularizou com Hokusai quando ele a utilizou para intitular uma coleção de desenhos humorísticos sobre temas variados publicada de 1814 a 1878. Em 1814, Hokusai fez o primeiro encadernado de uma série de 15 volumes, posteriormente chamado de Hokusai Manga. atuaram como importante canal de acesso aos hábitos e costumes da cultura japonesa no Ocidente. Mas é certo de que o sucesso dessas duas artes não se daria por acaso, mas ambas revelariam alguns aspectos em comum - uma referência direta das xilogravuras ukiyo-e aos quadrinhos japoneses, trata de reconhecer nesse tipo de arte o mesmo raciocínio empregado na elaboração da linguagem pictográfica japonesa, tal como no alfabeto japonês. Com as ukiyo-e entendemos que a maneira que os orientais concebem a configuração do espaço na pintura não é resolvida a partir da imitação à realidade, mas o que interessa a esse tipo de linguagem pictórica é a capacidade de criar relações espaciais de forma criativa entre os elementos da cena. Essa particularidade de linguagem se deve ao fato de que o desenvolvimento artístico das estampas ukiyo-e em solo nipônico seguiu uma trajetória bem diferente se comparada à tradição artística européia e, por isso, as pinturas japonesas pareciam retratar uma visão de mundo diferente. O reconhecimento histórico de toda produção artística ocidental do passado sempre esteve associado à elite e as pinturas confinadas nos espaços dos museus e galerias de arte, enquanto que a concepção artística no Japão se desenvolveu sob ideais mais democráticos. Muitas vezes, os melhores objetos artísticos japoneses eram encontrados no interior das casas - como as pinturas feitas em móveis e em biombos, assim como grandes poemas e canções publicadas no século IX eram de autoria de pessoas comuns ou mesmo anônimas. Com relação a construção espacial, toda a diversidade temática das gravuras eram representadas segundo as regras da perspectiva apreendida com os chineses e, posteriormente, quando do contato com a arte ocidental, as gravuras também incorporaram as regras da perspectiva linear. Foi através dos holandeses que os artistas japoneses tiveram o primeiro contato com as pinturas européias e tomaram conhecimento do uso da perspectiva linear como um modelo técnico de representação da realidade. O método da perspectiva linear, diferentemente do modo de representação pictórica dos japoneses, conferia às imagens um poderoso senso de realidade e a possibilidade de representar os objetos e as coisas bem próximas tais como enxergamos na vida real. encantaram os japoneses, que deram conta de traduzir muitos livros de arte da Europa e dos Estados Unidos para aprofundarem seus conhecimentos nesse novo método artístico. Por outro lado, em 1853 quando os japoneses reataram as relações comerciais e diplomáticas com o Ocidente, muitos artistas europeus e americanos foram influenciados pelo repertório de temáticas e motivos explorados pela pintura japonesa, especialmente pelas estampas ukiyo-e, passando a reproduzir muitos elementos decorativos japoneses - leques, quimonos, biombos - em suas pinturas. Com essa arte, os artistas do Ocidente encontraram nas temáticas simples da vida cotidiana um novo impulso para as criações e passaram a explorar as possibilidades do traço gráfico e da cor sugeridas por essas gravuras. Esse encontro e o interesse mútuo despertado nessas duas culturas foi fundamental para que surgisse a partir de então, um novo movimento artístico entendido por japonismo – em referência à revolução estética na arte européia e americana no século XIX provocada pelo contato com as estampas ukiyo-e e com os objetos artísticos do Japão. Segundo o professor Dantas, o japonismo motivou os impressionistas (movimento artístico europeu fundado por Monet) a desprezar a pintura em estúdios e enxergar na natureza um novo motivo para as obras. A adoração pelo quimono fez com que ele se tornasse um dos objetos mais representados pelos pintores, como mostram as figuras abaixo:

Figura 10 – Japonaiserie, de Vincent Van Gogh. Figura 11 – Japonnerie ou La Japonaise, de Claude Monet.

É possível observar ainda, nestas duas pinturas acima, como o kimono, com suas estampas florais e luminosas, longas japonesas e faixas com grandes laços, contribuiu para um novo modelo de representação da figura feminina da arte ocidental – ao contrário da antiga postura clássica, as mulheres passaram a serem exibidas com o corpo mais alongado e em poses semelhantes às das cortesãs das gravuras ukiyo-e. Entre alguns dos artistas europeus influenciados pelos desenhos e pelas cores maravilhosas das estampas japonesas que mais se destacaram estão: Rembrandt através do qual pode-se reconhecer o diálogo artístico mantido entre os holandeses e os japoneses, quando o pintor holandês influenciado pelo costume japonês de representar objetos e cenas comuns do cotidiano, classificou algumas de suas obras em Cenas domésticas; a influência da estética japonesa também foi essencial para que Van Gogh inspirado em Hiroshige produzisse a Chuva na Ponte em 1887 e Monet, grande admirador da cultura japonesa, inspirado nas Cem Vistas do Monte Fuji de Hokusai desenvolvesse as séries das Catedrais de Rouen; Édouard Manet pintou a tela Portrait of Émile Zola em 1868; Henri de Toulouse-Lautrec influenciado pela expressão gestual dos atores do teatro kabuki pintou Jane Avrill em 1893, entre toda uma geração de artistas e profundos admiradores da arte japonesa.

A trajetória de desenvolvimento das gravuras ukiyo-e descrita acima, nos esclarece portanto, que os japoneses permaneceram indiferentes a utilização da perspectiva durante muito tempo, razão que certamente deve ter alterado a forma deles enxergarem o mundo. Uma vez que os mangás têm suas raízes nas xilogravuras ukiyo-e, isto significaria compreender que os japoneses possuiriam um estilo único de fazer mangás, que se desenvolveu a partir dos aspectos característicos e segundo as peculiaridades do modelo de organização pictórica das ukiyo-e. Enquanto que os japoneses, ao herdarem o método de composição visual da China, acostumaram a orientar-se plasticamente segundo a estrutura da perspectiva cavaleira – técnica caracterizada pela ausência de ponto de fuga, e que portanto, não estabelecia uma relação de hierarquia ente o próximo e o distante (TAZAWA. et al, 1973: 92); a cultura ocidental herdou o sistema da perspectiva linear renascentista desenvolvido no século XV como um meio de divisão racional do espaço em torno de um ponto de fuga. Do ponto de vista artístico, as duas técnicas permitem representar os objetos tridimensionais no espaço bidimensional; porém, no caso da perspectiva renascentista, a organização espacial das imagens está condicionada à idéia de espaço intelectualizado e objetivo, em decorrência da generalização do uso da câmera obscura como dispositivo de reprodução fiel da realidade (identificado também como uma forma “correta” de representar a realidade), e, na perspectiva oriental, o espaço é organizado em função da capacidade dos elementos pictóricos criarem relações, e portanto, não há a preocupação de que as formas representadas se pareçam com as da realidade. É um tipo de construção que permite estabelecer uma estrutura de organização flexível e que está subordinada ao potencial criativo e à capacidade imaginativa do artista. Dito isto, compreende-se que o tipo de construção das pinturas produzidas na Europa - em que os objetos são arranjados em decorrência de várias linhas paralelas que convergem num único ponto central – abrange a reprodução de um único espaço em um único momento e, em princípio, há também a exigência de que a cena seja vista de uma única perspectiva. Por tratar-se de um ponto de vista “fechado” e único não há como o observador fazer uma outra leitura. Ao contrário do espaço realista representado pela perspectiva linear, o espaço criado pela pintura oriental, embora comporte semelhança com a realidade, não pretende imitá-la, pois a qualidade de representação da realidade decorre de uma diferenciada configuração de relações, segundo um critério seletivo e criativo.4 Esse tipo de construção vê a possibilidade de reunir num único espaço, diversos elementos (fragmentos) de um fenômeno pintado de diversas aproximações, pontos de vistas e lados5, pressupondo não se tratar de um espaço unificado e, portanto, não traz implicações com a representação da realidade. Seria o equivalente compreender que as xilogravuras ukiyo-e não possuíam um ponto de vista único e correto e que o conceito de verdade não se restringia apenas em uma única característica das coisas. O conceito de

4 CAMPOS, Haroldo, p.49. 5 Estas questões podem ser aprofundadas no livro “Traços ideogramáticos na linguagem dos animês”, que trata de compreender a animação japonesa a partir da teoria da montagem de Eisenstein. Segundo o cineasta russo todas as manifestações da cultura japonesa teriam herdado o mesmo método de composição estrutural do sistema da escrita japonesa ― os ideogramas – que combinados em justaposição a outros, resultam numa nova significação. representação espacial dessas xilogravuras admite portanto, a necessidade de se respeitar a subjetividade própria de cada artista, e desta forma, tudo no mundo poderia ser observado de diferentes ângulos, assim como essas representações poderiam ser apreciadas de ponta cabeça, na diagonal, de cima para baixo ou sob qualquer outro ponto de vista.

Figura 12 – Aqui um exemplo do sistema de organização das imagens dentro do espaço pictórico das xilogravuras ukiyo-e: observe que as imagens estão representadas em planos sobrepostos, e que a sensação de volume e profundidade na obra se manifesta a partir da variação de tons das cores, e da sensação de movimento intensificada através das formas onduladas e assimétricas.

Com relação a esse tipo de organização espacial, segundo Hashimoto (2002:349), os japoneses admiram a beleza da linha e da cor na arte, antes do que a mera cópia da natureza, por esta razão, a pintura não prevê que os objetos sejam mostrados como na realidade, nem a figura humana segue as proporções anatômicas, a apreciação dessa arte reside na capacidade de explorar os elementos pictóricos de forma harmoniosa. Outras ressalvas da autora advertem que não se deve buscar a verdade geográfica na representação de ambientes e nos locais famosos das xilogravuras ukiyo-e, como também não adiantaria em nada querer encontrar representações realistas nessas imagens, uma vez que elas não foram feitas para serem apreciadas isoladamente, mas em simultaneidade com outras artes. Uma prova disso é a arte cênica japonesa mais antiga –o teatro noh, ao trabalhar com as variadas artes associadas - os diversos elementos do espetáculo incorporavam não só música, dança e literatura, mas também a escultura, tintura, tecelagem, entre outros ― onde todos funcionavam em relação de igualdade com a finalidade de produzir uma significação através da interação dos diferentes estímulos que eles geravam.6

Um exemplo do tipo de representação da figura humana está no retrato do ator Tomisaburo Nakayama, feito por Toshusai Sharaku que, segundo Eisenstein7, baseia-se numa composição desproporcional da imagem, em função da ênfase dada na representação emocional da personagem. Desta forma é possível compreender que o caráter expressivo da imagem retratada ou que a essência estética da composição da figura humana sustenta-se na variedade e irregularidade das diferentes partes anatômicas do corpo (desproporção anatômica).

Figura 13 - O ator Ōtani Oniji no papel de Yakko Edobei, por Tōshūsai Sharaku (fim do século XVIII).

Esse tipo de representação, que enfatiza o caráter expressivo das emoções humanas foi tão significativo para o desenvolvimento histórico do cômico japonês, que acabou servindo de referência e determinando o estilo dos personagens de quadrinhos japoneses – com olhos grandes e expressivos e expressões faciais exageradas, esses personagens

6 A forma do filme, p.29. 7 François ALBERA, p.87. revelam uma força muito grande na expressão das emoções e transmitem sentimentos e estados de espírito abstratos demais para serem expressos em palavras.

Figura 14 – Exemplos do processo de deformação ou SD

Levando em consideração todas essas peculiaridades do modelo de organização espacial das xilogravuras ukiyo-e, fomos levados a admitir que essas convenções pictóricas adotadas pelos artistas do Japão, na realidade, constituem uma maneira de evidenciar traços da liberdade artística de que os japoneses desfrutam em relação ao fazer arte - discussão que será retomada no capítulo II. Umas das marcas dessa liberdade de expressão é revelada pela extensa quantidade de temas e séries de mangás produzidas no país: alternando-se entre histórias ambientadas no universo ficcional, da ficção científica e dos contos de fadas, e outras que incluem os ambientes do cotidiano dos japoneses como, as escolas, ruas, escritórios. O que inclui também abordar nas histórias desde as crenças populares até os grandes acontecimentos históricos, como as grandes revoluções, as guerras e a miséria humana, o desenvolvimento da ciência e o avanço tecnológico ― além dos aspectos emocionais e comportamentais das pessoas, as relações afetivas, as brigas, inimizades, traições, companheirismo, entre uma outra infinidade de assuntos e questões da realidade do “mundo todo”. Soma-se a estas temáticas, as histórias de mangás também exploram a extensa tradição literária que o Japão desenvolveu ao longo da história baseada tanto nas lendas (Densetsu – que possuem como protagonistas muitas paisagens, rios, lagos e montanhas); boatos (Gossip tales – quando se referem aos talismãs, tais como o boneco Darumá) como também nos contos de fada (Mukashi banashi – que são histórias românticas que acabam com mensagens otimistas). Muitos teóricos e pesquisadores da cultura pop japonesa são unânimes em depositar uma parte da parcela da responsabilidade do sucesso dos mangás à boa qualidade das histórias, principalmente ao afirmar que nos tempos de hoje em que a qualidade é colocada em perigo pelo avanço da tecnologia, os mangás ainda são bem aceitos no Japão justamente por dispor de conteúdos de qualidade que atendem o perfil exigente dos japoneses (In: KELTS; 2006), mas também não esquecem de salientar o sucesso que os personagens de mangás fazem entre o público leitor - para Kelts (op. cit.; p.17) todo esse potencial criativo dos japoneses é particularmente revelador se observado o grande sucesso que o Pokemón faz na América. E isto se deve em parte devido à ubiqüidade do Picachu - diferente dos ícones da Disney tal como o Donald, Michey, Dumbo; que são respectivamente, um pato, rato e elefante, Picachu é a versão animada de nada que conhecemos no mundo, introduzindo nos americanos a liberdade de criação da cultura pop japonesa. No ano de 2006 o New York Times noticiou que o mangá representou um dos poucos setores de publicações que cresceu nos EUA. A quantidade de animações japonesas ou as influências dos animês exibidas na MTV e em outros canais a cabo destinado ao público jovem é um bom barômetro do quão confortável as próximas gerações estão com a cultura pop japonesa. Em 2002 o New York Times publicou um artigo de Rebecca Mead (In: KELTS: 2006:18) onde ela destaca a energia criativa e o visual inventivo, como uma das fortes marcas da intensidade de poder de consumo da cultura contemporânea, anunciando que Tokyo tinha superado Paris como a capital da moda mundial. Esse crescente interesse pelos mangás e animês fez com que Napier (2005:33) os definisse como: altamente criativos, intelectualmente desafiadores e esteticamente memoráveis.

1.4 As contribuições do estilo cinematográfico de Tezuka para os mangás

O desenvolvimento dos mangás revela um processo que combinou a tradição japonesa da ilustração em imagens sucessivas às novas técnicas de quadrinização e cinematográficas advindas do estrangeiro, até chegar ao seu florescimento atual. Essa trajetória, entretanto, foi semelhante à de outros segmentos da cultura, onde o espírito nipônico soube captar, filtrar aspectos de outros povos seletivamente para, depois, incorporá-los as necessidades da nação. A produção japonesa de histórias em quadrinhos como conhecemos atualmente foi criada por Rakuten Kitazawa (1876-1955) por volta do ano de 1901, e ao longo do seu desenvolvimento sofreu uma série de transformações. A primeira fase do mangá no Japão, que se estendeu até o final da Segunda Guerra Mundial – entre os anos de 1947- 1948 - foi muito influenciada pelo modelo de narrativa produzido na Europa e nos EUA. Apesar da importância e da relevância que essas publicações tiveram para a história dos quadrinhos no Japão, elas ainda estavam longe de alcançarem o potencial que o mangá adquiriu posteriormente. As primeiras histórias em quadrinhos japonesas foram publicadas nos suplementos dominicais e somente ganharam popularidade em 1905, através da publicação Tokyo puck, de Rakuten Kitazawa considerada a primeira revista em cores de mangás e charges políticas.

Desse período até meados da década de 30, as impressões de quadrinhos já apresentavam a estrutura dos mangás que conhecemos hoje em dia: variedade de quadros e balões de diálogos. Também nesse período já havia publicações bem diversificadas, muitas contavam com a participação de personagens americanos que dividiam o espaço das revistas ao lado de desenhos japoneses representados com traços estilizados e sem volume. as tiras de quadrinhos

Porém, a partir do ano de 1937, quando o exército nipônico invadiu novamente o território chinês provocando a guerra Sino-Japonesa, o Japão viveu uma fase muito tensa por conta do crescimento do militarismo no país, que afetou diversos aspectos da vida quotidiana e que interferiu diretamente sobre o tipo de história que se produzia na época. Nesta época, foram impostas severas restrições à liberdade de criação dos desenhistas, que tiveram de abandonar seus interesses particulares para tratar apenas de histórias com conteúdos de caráter educacional e militar. Norakuro (cão vira-lata preto), é o nome do personagem título de uma série desta época, criada em 1931 por Tagawa Suiho, e que trouxe como protagonista um cachorro antropomorfizado que serviu de propaganda política do governo japonês para exaltar os ideais de patriotismo e disciplina impostas pelo sistema militarista japonês.

Fuku-chan é outro personagem título da história criado em 1936 que também sofreu adaptações propagandistas para continuar ser publicado nas tiras de jornais da época. Segundo Moliné (2002: 127), em 1944 foi lançada a versão em animação da tira intitulada “Fuku-chan e o submarino”, que na época foi utilizada como propaganda de guerra. Influencia direta desse tipo de história bélica com a utilização de personagens antropomorfizados, foi a publicação da série de comédia Keroro, de Mine Yoshizaki, no ano de 1999. E esse período de guerra agravou-se ainda mais em 1941 com a invasão do exército japonês em Pearl Harbour no Hawai até culminar com a Segunda Guerra Mundial, que acabou somente no ano de 1945. Nesta época que eclodiu a guerra, a censura imposta à liberdade de expressão e a falta de papel fizeram com que a subcultura do mangá esmorecesse, e só voltasse a se fortalecer após o termino da Segunda-Guerra Mundial. Uma importante série do gênero de mangá que mescla humor e relacionamento familiar que surgiu nesse período pós-guerra, mais exatamente em 1946 e que começou a ser publicada no diário Fukunichi no formato de tiras verticais8 foi Sazae-san. O sucesso da série, segundo Luyten foi devido à popularidade que o tema família alcançou anos depois da guerra (2000:122). Criado por uma mulher, Machiko Hasegawa, Sazae-san tornou-se um dos mangás prediletos das donas-de-casa e inaugurou a conquista do espaço das mulheres nas histórias de mangás, passando a representar a nova era da reconstrução do Japão após a guerra. O sucesso dos quadrinhos gerou a versão em animação em 1969 que ainda nos dias atuais é transmitida pela TV japonesa. A história de Sazae-san retrata o cotidiano da dona de casa chamada Sazae-san, envolvido por constantes brigas rotineiras por conta do seu do relacionamento conjugal e

8 A série posteriormente migrou para o renomado Asahi Shinbun, permanecendo até o ano de 1974. Ver em: MOLINÉ, 2002:199. que é conhecido pelos japoneses por retratar os valores e ideais da sociedade tradicional do Japão, como mostra a tira de quadrinhos abaixo:

Figura 15 – Tira de Sazae-san, Japão, Kodansha, 1970.

No primeiro quadro (de cima para baixo) o título da história どし “Doshi” é acompanhado de uma forma que parece representar um cachorro feito de arame. A representação da imagem de um cachorro em analogia a palavra どし pode ser compreendida como uma metáfora visual de Inudoshi (a palavra inu que significa cachorro + どし) ou "ano do cachorro", de acordo com o horóscopo chinês. Ainda neste quadro vemos a personagem Sazae-san de perfil oferecendo uma rosquinha para um cachorro. No segundo quadro, chega o pai (marido de Sazae-san) em casa e ao cumprimentar Sazae-san pela chegada do Ano Novo ele lhe oferece um cachorro, já que é uma tradição do costume japonês acompanhar os votos de boas vindas do Ano Novo com presentinhos chamados omiyague (おみやげ). Esses omiyagues geralmente correspondem a docinhos, bolachinhas entre outras guloseimas, porém, não é costume oferecer como presente um cachorro ou mesmo nada que implique dar trabalho à pessoa (o humor da história reside portanto, no fato de Sazae-san ganhar um cachorro como omiyague). Com expressão de alegria, Sazae-san recebe o cachorrinho e comenta que ele é muito bonitinho! No terceiro e último quadro, vemos notas musicais que sugerem que Sazae-san está cantarolando ao mesmo em que passeia segurando seu cachorro pela coleira. O texto dentro do balão diz respeito ao comentário de que Sazae-san está indo levar o cachorro pra mostrar para sua vizinhança, o qual parece indicar a metáfora de que Sazae-san está levando até às pessoas o “Ano do cachorro”, conseqüentemente, ela está levando seus votos de boas vindas à chegada do novo ano.

Esse tipo de histórias que incluem fantasia e realidade, com personagens cômicos que mantinham o espírito japonês, como Norakuro, Sazae-san, Bonen Dankichi, Fuku-chan entre outras, agradavam muito às crianças e foram bastante populares até o período pós- guerra.

Alguns anos posteriores à guerra, com a ocupação dos EUA e influenciado pelo modelo de narrativa do cinema hollywoodiano é que a linguagem do quadrinho japonês passou a expressar mais as características peculiares de sua cultura. Foi nesta fase do pós- guerra que se destacou a figura de Osamu Tezuka, que foi o responsável por desenvolver um novo estilo de quadrinhos e animações japonesas a partir das influências recebidas do cinema americano e das animações de Walt Disney, que eram projetadas pelo seu pai quando ele ainda era criança. Os desenhos de Disney foram muito importantes para o desenvolvimento do cenário mundial da animação e tiveram um papel fundamental na criação do modelo de narrativa dos mangás que conhecemos hoje em dia. Tanto que o primeiro mangá que Tezuka publicou em 1953 foi Ribon no Kishi (A Princesa e o Cavaleiro) e a primeira animação lançada para a TV em 1965 foi Kimba, o Leão Branco – mantêm muitas das características do estilo de Disney. Para a produção da série da A Princesa e o Cavaleiro, Tezuka também foi muito influenciado pelo teatro takarazuka9, que em função das qualidades feminina das produções, lhe serviu de inspiração para inaugurar um novo gênero de histórias direcionadas para meninas (少女 - shoujo manga) com a criação da narrativa de conto de fadas da série “A Princesa e o Cavaleiro”.

9 Forma teatral encenadas somente por mulheres. Por derivar-se dos musicais ocidentais e retratar temas de amor, as peças eram ambientadas em cenários exóticos semelhantes aos ambientes franceses, havaianos e nova-iorquinos.

O mangá De Monster serve como exemplo para demonstrar uma das mais importantes transformações que as histórias de mangás sofreram ao incorporar as expressivas técnicas cinematográficas de Tezuka. Apesar do personagem muitas vezes não aparecer na cena, através do artifício da câmera subjetiva, o olhar do leitor é conduzido a participar das mesmas experiências do personagem, e ambos sobem juntos as escadas, terminando com leitor e personagem abrindo as portas.

O trabalho de Tezuka tornou-se dominante entre outros gêneros de mangás e acabou promovendo uma leva de séries de mangás que invadiram o mercado editorial japonês a partir da década de 1960. Nessa mesma década artistas como Saito Takao, Matsumoto Reiji, Shirato Sanpei, Chiba Tetsuya e Mizuki Shigeru brindaram seus leitores com uma grande variedade de séries que mesmo rompendo com o estilo criado por Tezuka ainda souberam aproveitar todo o potencial expressivo da estrutura cinematográfica na criação de um gênero mais dramático de mangás, conhecido por gekigá, que apresentava as histórias de maneira mais realistas.

Posteriormente, uma outra tendência do estilo mais dramático que surgiu na década de 70 foi a proliferação de mangás do gênero nekketsu (sangue quente), com histórias voltadas para a glorificação do sacrifício e da superação de desafios. O mangá Ashita no Joe (O amanhã de Joe, de 1968) de Tetsuya Chiba, é um dos exemplos mais representativos do gênero nekketsu devido a popularidade que a história alcançou no Japão, quando da comoção gerada na população japonesa com a morte do personagem principal Toru Rikishi, em 23 de março de 1970. A história de um rapaz chamado Toru Rikishi que aprende a lutar boxe no reformatório onde cumpre pena por homicídio. Após muitos períodos de treino e participações em competições exaustivas, Toru Rikishi e seu rival Joe Yabuki, se preparavam para uma luta que definiria o melhor lutador, quando no dia da disputa Toru Rikishi sobe ao ringue com a aparência de anoréxico, em função de um drástico regime que precisou fazer para se enquadrar na mesma categoria de peso do seu rival. Ele estava tão debilitado fisicamente que acabou sofrendo uma parada cardíaca, vítima do esforço excessivo, e morreu caindo nos braços do seu rival, Joe Yabuki. A comoção dos fãs com a morte do personagem Toru Rikishi foi tão intensa que eles resolveram se reunir na frente da sede da editora Kõdansha em Tokyo para a cerimônia de despedida do personagem fictício. O funeral foi coberto pela imprensa, foi acompanhado por um monge budista, e ainda além dos discursos comoventes em homenagem ao falecido e expressões verdadeiras de tristeza e choro por parte de seus fãs. A repercussão do acontecimento foi ainda maior porque os japoneses ainda estavam se recuperando dos traumas e da dura realidade enfrentada durante a guerra, que fez com que o personagem da história se tornasse o herói símbolo de uma época em que a determinação, força de vontade e o sacrifício eram atitudes glorificadas pela nação.

1.5 As contribuições de Tezuka para o estilo visual dos personagens de mangás

Outra contribuição significativa do teatro takarazuka no trabalho de Tezuka que acabou influenciando muitas gerações de desenhistas japoneses até os dias atuais, foi servir de referência visual para a criação do novo estilo visual dos personagens de mangás e animês - formas simplificadas, corpo esguio, altos, magros, olhos grandes e brilhantes – características que servem para explicar parte do sucesso da Princesa Safire, bem como a extrema popularidade que os mangás de Tezuka alcançaram dentro do país e internacionalmente.

Mas, outra parte do sucesso dos personagens que Tezuka criou, também está relacionada a questões de natureza psicológica cujas referências podem ser encontradas dentro do contexto da cultura japonesa. O fato dos japoneses assim como os asiáticos em geral serem fisicamente menores em relação às outras etnias poderia explicar em grande parte a identificação dos japoneses com o perfil de heroína da Princesa Safire: pequena, magra e frágil, e, ao mesmo tempo, corajosa e poderosa. É sabido que determinadas atitudes e comportamentos tais como a coragem, força de vontade e paciência, são qualidades completamente enraizadas na cultura japonesa, que se tornaram ainda mais idealizadas após a demonstração da capacidade do esforço da nação na reconstrução do país destruído e derrotado após a Segunda Guerra Mundial. Essa mesma associação de qualidades promoveu uma outra série de sucesso imediato de Tezuka - Atom Boy10, onde o herói em questão é um menino robô, que possui sentimentos humanos e poderes especiais para lutar contra os bandidos, que são representados nas histórias pelos adultos. De acordo com Kelts (2006:26), o título original do primeiro mangá criado por Tezuka era de The Mighty Atom (átomo divino), posteriormente é que foi alterado de Atom para Astro Boy pelos americanos. Essa alteração do título original de Tezuka segundo o autor, corresponde a um dos dois nomes dados as bombas atômicas pelos militares americanos, mais também serviu para acolher o papel diminutivo que o Japão escolheu para representar o sentimento de baixa estima na relação com os conquistadores americanos.

1.6 O visual kawaii como traço da estética 2D dos mangás

Num segundo momento, ao partir da compreensão do mangá como reflexo da organização do pensamento, importou à pesquisa refletir sobre a relação dos japoneses com essa estética, na medida em que o cotidiano da vida dos japoneses é permeado por imagens estilisticamente bidimensionais. Por mangá entende-se a palavra japonesa formada pela união de dois kanjis: man 漫 (humor) e gá 画(imagem ou desenho) que engloba não somente as histórias em quadrinhos, mas também cartum, caricatura e até desenho animado (Luyten, 2000:43). Outra correlação conceitual admitida por Bähren (2010:128): “A tradução literal da palavra mangá significa whimsical pictures e pode ser aplicada literalmente para qualquer coisa desde instruções de segurança às cartilhas de educação em saúde”. Desta forma, admitimos que a expressão mangá serve para designar toda e qualquer forma de manifestação gráfica no Japão, ou mesmo, falar sobre mangá, equivale referir-se aos traços do desenho especificamente japonês. E umas das características mais relevantes da estética dos mangás é o visual kawaii.

10 Atom Boy foi patrocinada por uma indústria de doces e chocolates que contribuiu para a promoção da série com imagens da irmã de Atom em propagandas comerciais. Kawaii é o termo da língua japonesa que dizer fofinho, engraçadinho, bonitinho e serve para caracterizar a personagem Hello Kitty – desenho estilizado, sem volume e de fácil reprodução. Hello Kitty para Sato (p.191) corresponde ao denominado kawaii character (mascote, personagem fofo, simpático), permitindo que a personagem desfrute de características infantis e que conserve uma aparência muito simpática. Para BÄHREN (op. cit., p.16) a tendência kawaii pode ser associada com o cultivar a inocente ternura do carinho de um bebê, ou mesmo, trata-se de um termo que carrega fortes implicações com a idéia de oferecer um refúgio da dura realidade da vida do mundo adulto e negar todas as suas responsabilidades.

A estética bidimensional dos mangás na vida cotidiana dos japoneses

A partir do momento em que traços comuns dessa visualidade kawaii permeiam toda a vida cotidiana dos japoneses, fomos motivados a compreender a importância da natureza visual dos mangás dentro do contexto da cultura japonesa. Neste sentido, são representativas as relações de Bähren11 ao associar esse tipo de imagem “gráfica”, colorida (estilo kawaii) e visualmente agradável à ridícula e extensa precaução em relação à segurança das pessoas – nos car service (Figura 16); também nos cartões IC (IC card) de acesso das estações de trens de Tokyo superlotadas (Figura 17) e adesivos publicitários expostos na carroceria dos ônibus (Figura 18):

11 Referências das imagens podem ser encontradas em BÄHREN, 2010:; Fig. 16 (p.62); Fig. 17 (p.72) e Fig.18 (p.185).

Figura 16 – カーサービス (serviço de carro) Figura 17 – アイシーカード (cartão IC)

Figura 18 – バス (ônibus)

No material de propaganda e divulgação estrategicamente direcionada para o comércio de produtos e do mercado de entretenimento (embalagens de produtos - Figura 19); às propagandas políticas e o material voltado para a comunicação e informação com mensagens de textos e ilustrações de personagens (cartazes, placas de advertência - Figura 20), às cartilhas de educação em saúde, manuais com instruções de segurança; serviço de utilidade pública (Figura 21) – em todos esses elementos e objetos, a estética bidimensional dos mangás se faz presente.

Figura 19 - Nas embalagens de produtos: “(...) Personagens com grandes olhos redondos não faltam, desde ícones internacionais como Hello Kitty e Pókemon até as centenas de outros menos conhecidos, criados para vender de salgadinhos de camarão a sabão em pó”.12

Figura 20 - Avisos de proibição com mensagens de advertência escritas em placas e murais utilizam personagens simpáticos e figuras fofas – kawaii - para chamar a atenção das pessoas e podem ser vistas espalhadas por todos os lados em Tokyo, no Japão. Acima, as feições bem-humoradas e bonitinhas com que essas criaturas são lindamente retratadas podem aliviar até mesmo as mais sérias questões.

Figura 21 – Alertando as pessoas a tomarem cuidado e caso necessitem solicitar ajuda de um policial.

12 EVANS, Dan. Beleza oriental. In: Design japonês: conselhos de experts e projetos inspiradores. Revista Computer Arts Projects. Edição 5. São Paulo, Europa. P.76 CAPÍTULO II

AS RECODIFICAÇÕES ESTÉTICAS DOS MANGÁS

Este capítulo tem o objetivo de analisar as diferentes formas de relacionamento dos japoneses com a estética bidimensional dos mangás. Partimos do entendimento de que cada mídia – seja impressa, digital ou analógica - possui recursos próprios de exibição dessa estética dos mangás, recursos estes que alteram a maneira das pessoas visualizarem e se relacionarem com essa qualidade ou dinâmica estética. Para tanto, entendemos também que há diferentes níveis de interação e formas de visualização dessas imagens, que variam de acordo com as características do suporte midiático a qual elas pertencem. Uma mesma imagem, portanto, quando exibida numa folha de papel ou através de num monitor de TV, se apropriará de diferentes recursos no processo de exibição das imagens. Por esta razão, decidimos investigar como se dá essa dinâmica perceptiva de apreciação da estética dos mangás, a partir da análise de quatro diferentes objetos midiáticos e seus respectivos suportes, a saber: estética gráfica será revista a partir dos mangás; a estética digital, será tratada pelos jogos de videogame e animês; a estética holográfica, pelas projeções de holografia e a estética tridimensional, a partir dos objetos tridimensionais, tais como as bonecas em geral, incluindo o modelo Large Size Figure. Com esta análise queremos demonstrar que, mesmo contando com técnicas e recursos diferentes no processo de exibição das imagens, em comum, todos esses meios ou objetos midiáticos operam com construções essencialmente mentais (mais também tecnológicas), apoiadas na noção de permeabilidade entre a realidade e o mundo ilusório, principalmente se levamos em consideração que, hoje em dia, por conta da revolução digital, há um grande apelo voltado as experiências que alternam entre um mundo real e outro elaborado pela mente.

2.1 A estética gráfica – mangás

A forte separação entre a fantasia e a realidade sempre foi uma das características da cultura japonesa mais conhecidas e que neste século está se misturando por força da globalização e da tecnologia. Neste sentido, as produções da cultura pop japonesa e principalmente os mangás têm investido em mundos fantásticos e ilusórios para conseguir cativar o seu público. Napier (2005) mostra que a noção de permeabilidade entre a realidade e a ilusão reflete a busca por alternativas à realidade, variando de videogames à cultura emblematizada pela beleza da Hello Kitty. Neste sentido, os mangás tornam-se bem representativos para mostrar o quão confortável se encontra uma parte da cultura japonesa com a possível relação entre o real e o imaginário, já que os quadrinhos dão vida a uma série de elementos e costumes populares da cultura japonesa; entre eles, a valorização dos ideais centrados na lealdade e no coletivismo, o apego às rígidas relações hierárquicas, a dedicação ao grupo, a convivência pacífica entre a tradição e a novidade, a facilidade de adaptação às transformações sociais, e principalmente, pela possibilidade de o leitor dar evasão à fantasia e poder vivenciar juntamente com seus personagens tudo aquilo que eles queriam um sonham ser na imaginação. Mas, talvez um dos maiores méritos do sucesso dos quadrinhos japoneses seja o de conseguir se apropriarem da definição da realidade, alterando as relações entre o próximo e o distante a tal ponto de as imagens desenhadas e coloridas no papel permitir confundir os personagens reais com os personagens da ficção científica que eles imitam e vice-versa. Abaixo, encontram-se alguns recursos da narrativa em quadrinhos (baseados na definição de realidade) utilizados para vincular os leitores à dimensão imaginária, onde tudo o que existe apenas como sonho, desejo ou fantasia pode ser operacionalizado:

Através de uma narrativa extremamente dinâmica e bem elaborada, os mangás atualmente dominam o mercado da produção editorial do Japão e são responsáveis por sensibilizar os leitores, estabelecendo uma relação de cumplicidade entre produto e o público consumidor. A narrativa quadrinística dispõe de muitos recursos e efeitos visuais para que o leitor participe com mais intensidade dos acontecimentos das histórias, entre eles, a utilização do recurso cinematográfico da câmera subjetiva, permite-nos trocar de lugar com o protagonista da história e poder compartilhar da mesma experiência emocional que ele vivenciaria na cena.

Outro mérito da linguagem quadrinística é a qualidade motivadora das histórias, ao estabelecer um modelo de comportamento que serve de incentivo para os leitores, como acontece nos shonens, onde os desafios são lançados para que o personagem se esforce o bastante para superá-los e conquistar seus objetivos.

Os personagens masculinos são românticos, muito tímidos e, na maioria das vezes, retratados como heróis – a representação perfeita do homem idealizado. Por outro lado, as mulheres tendem a ser graciosas e extremamente sensuais, como mostra a figura abaixo:

Figura 22 – Sakuya (acima), assim como muitas heroínas de séries de mangás e animês seguem o estilo dessas doces e meigas garotas: aparentemente frágeis e infantis, porém, muito determinadas e corajosas.

A influência do estilo kawaii na estética dos mangás <*><*><*><*><*><*><*><*><*><*><*><*><*><*><*><*><*><*><*><*><*><*>

Atualmente o estilo kawaii está completamente integrado ao perfil dos heróis e heroínas dos mangás – bonitinhos, coloridos e de aparência simpática - uma tendência que alcançou muita popularidade nos mangás e animês a partir da década de 80, mas que já podia ser identificada entre as heroínas do gênero shoujo mangá desde os primeiros clássicos como A Princesa e o Cavaleiro (Ribon no Kishi). Posteriormente essa tendência visual se popularizou entre os mangás shonen passando a compor o estilo visual dos personagens masculinos, como mostra a matéria Os meninos mais bonitinhos dos shoujo mangás13, com a classificação dos 50 personagens considerados mais bonitos do gênero. Entre os personagens masculinos mais bonitinhos das séries de mangás, o primeiro e segundo lugares foram ocupados, respectivamente, por: Soushi Asamoto e Night Tenjou, da série Zettai Kareshi.

Anos mais tarde essa tendência tornou-se comum no universo dos malfeitores, passando a caracterizar muitos vilões de séries, tais como: Nakago da série Fushigi Yuugi; Neflite e Daimon da série Sailor Moon; Seishomaru da série Inuyasha; Sakyo da série Yu Yu Hakusho; Zagard da série Magic Knight Rayearth; Celestine da série Ah! Megami Sama (Oh! My Goddess); Aoshi de Rurouni Kenshin; Fuma de X-1999; Balmung de Hack entre outros. Nos diversos gêneros e estilos gráficos, esse apelo estético da graciosidade também passou a integrar um universo variado de temáticas, envolvendo personagens dos mais diversos gêneros que tratam desde assuntos relacionados ao simples cotidiano até à ficção científica. Com destaque para animais bonitinhos tais como, Kimba, o Leão Branco de 1950; nas histórias de robôs, no mangá Atom Boy (de 1951 até 1981) de Tezuka; de 1973 - gênero de história que combina comédia com assuntos de família e que também é conhecido no Japão até hoje; Candy-Candy, Pokémon; nas séries de ficção científica, de 1995 e Cowboy Bebop de 1998 que são populares no Japão, entre outros. Outro traço característico do estilo kawaii muito comum nos mangás é a versão baby ou criança dos personagens mais velhos, que consiste em alterações fisionômicas e corporais exageradas dos personagens envolvidos em situações cômicas. Trata-se do processo conhecido por Super Deformed que consiste em aumentar, diminuir, esticar ou

13 In: PACHECO, Eloyr. Almanaque shoujo mangá: o poder da sedução feminina. São Paulo, Escala, 2009.p.97-102. encolher o corpo do personagem adotado para características fofinhas das crianças e dos bebês.

Há décadas atrás o termo kawaii era utilizado para descrever um bebê ou um animal de estimação, e hoje em dia é uma expressão completamente integrada na cultura popular do Japão utilizava em diversas situações do convívio e do relacionamento humano: facilitar a interação entre as pessoas, demonstrar a reação entusiasmada de uma mulher diante de alguma coisa que ela considera graciosa e adorável: kawaii né! Elogiar quando uma criança é bonitinha e ideal para qualificar o espírito jovem das pessoas de idade avançada; o que não era comum anteriormente. Segundo o colunista da revista Nipponia, Obata Kazuyuki, na década passada não era permitido às mulheres utilizarem a expressão kawaii ao conversar com superiores:

Naquela época, a palavra de ordem era amadurecimento. Todos precisavam colaborar para que o país atingisse as metas do crescimento econômico. Ora, como o Japão de certo modo atingiu estas metas, já não é mais tão forte a pressão social para amadurecer, conversar como adulto.14

O termo reapareceu com mais força nestas últimas décadas na seção de brinquedos, na forma de bichinhos de pelúcia e, após o sucesso do lançamento da boneca Rika-chan em 1967, converteu num fenômeno estético e passou a representar uma determinada maneira de se vestir, geralmente associada ao universo da fantasia e do conto de fadas.

Na década de 80 com a aprovação do estilo kawaii pelos otakus (interessados em coisas graciosas, como bonequinhos e, principalmente, os brindes que acompanham determinadas publicações de revistas para estudantes do ensino fundamental) a expressão foi adotada pelas empresas como estratégia de vendas de produtos com apelo especial à graciosidade. Desde então, o significado de kawaii se multiplicou entre os jovens e as pessoas mais velhas podendo ser empregado em referência a qualquer coisa que tenha a aparência de fofa e bonitinha. Segundo a pesquisadora da cultura japonesa Sonia Luyten (2011): “grande parte da sociedade japonesa está em conformidade com a idéia de que tanto os bens de consumo como as decisões de estilo de vida devem ser kawaii” (In: Painel

14 Kawaii, o universo da doçura. p.5-6. apresentado no 1º Encontro Nacional de Estudos sobre Quadrinhos e Cultura Pop. Centro de Convenções da Universidade Federal do Pernambuco). E acrescenta: animês como Pokémon, gadjets e pequenos objetos em tons de rosa, são talvez os melhores exemplos deste fenômeno, que se enraizou na sociedade de consumidores japoneses nos anos 70.

Neste aspecto é que o tipo de perfil adotado pela Hello Kitty em 1985 talvez possa explicar alguma das razões da popularidade da imagem da gatinha. Além de ser a imagem mais reconhecida internacionalmente, atualmente seu sucesso é medido pela quantidade de produtos que comercializam sua marca (mais de 50 mil) - incluindo os bichinhos de pelúcia, roupas, artigos escolares, acessórios de moda. Também associada ao estilo cool cute, como sinônimo de moderno e bacana, estrategicamente a cada ano ela adota um look diferente para acompanhar as fases da vida de suas admiradoras desde a infância.

Além do que sua imagem nos permite desenvolver um repertório de identificações – o formato arredondado e a cor branca da cabeça semelhante às características do rosto das japonesas; a pele branca podendo ser associada à pureza das crianças e das gueixas. De qualquer forma, pertencem ao estilo kawaii, imagens atraentes, infantilizadas, vulneráveis, que evocam sentimentos amistosos e o desejo de ser querido e cuidado.

2.2 A estética digital – jogos de videogame e animês

Segundo Dan Evans:

Os videogames japoneses mais recentes, como Naruto: The Broken Bond e Wii Music também se destacam graças ao visual rico e colorido – Naruto é baseado na famosa série animada da TV. E Final Fantasy XIII combina o traço típico de mangás com design de games de última geração.15

O deslocamento da estética dos mangás, do meio impresso para o meio virtual, ou seja, do papel para a tela do computador, representa em primeiro lugar, o deslocamento do objeto entre suportes bidimensionais, mas também implica a transferência da tecnologia

15In: Design japonês: conselhos de experts e projetos inspiradores. Revista Computer Arts Projects. p.67. analógica (papel) para a representação de objetos a partir de dados numéricos (tecnologia digital). Deslocando para a mídia virtual, os objetos da mídia impressa adquiriram outro status, onde eles não existem mais como materialidade e sim como dados numéricos, e portanto, são promovidas alterações na forma de visualização e na dinâmica perceptiva da apreciação dessas imagens ou objetos midiáticos. A tecnologia digital e seus recursos interativos (efeitos de câmera, colorização, som, representação espacial) trouxeram a possibilidade de os japoneses deixarem de lado a simples contemplação para vivenciarem os eventos disponibilizados pelos jogos de videogames e se transportarem para dezenas de animês e centenas de mangás. Interagindo ativamente com a história através de dispositivos de navegação a narrativa digital fornece um leque de opções variadas, permitindo aos usuários experimentarem uma multiplicidade de possibilidades. Segundo Kelts (op.cit.; p.116), o público mais jovem nos dias de hoje não se contenta apenas com tramas pequenas, eles anseiam vivenciar o enredo das histórias – ver por eles mesmos, tornando-se parte integrante do meio. Segundo Walter Benjamin esta seria uma das realizações do recurso da ubiqüidade16 promovido pelas novas técnicas de exibição das imagens, no momento em que a realidade é reproduzida em múltiplos pontos de vistas e pode ser vivenciada como tal pelo usuário da internet. Produto que se enquadra nestas dimensões são os jogos eróticos – os eroges17 - que nos dias atuais são produzidos em grande escala pelo mercado pop japonês. Bastante populares entre o público otaku, esses jogos de videogames com fortes apelos sexuais permitem aos seus fãs, interagirem com suas musas virtuais enquanto evitam o contato humano com as mulheres reais. Esses jogos eróticos oferecem através de uma estrutura bem simples, a possibilidade dos usuários de ingressar no mundo imaginário e encontrar as mesmas heroínas das histórias que invadiram os sonhos quando eram crianças e com elas desfrutarem de relações cada vez mais íntimas, à medida que avançam em suas fases, ao mesmo em que servem como um recurso para que os garotos otakus treinem e aperfeiçoem suas habilidades de conquistadores.

16A narrativa ubiqüa (reprodução da realidade em múltiplos pontos de vistas) enfatiza o caráter do simulacro, como a dissolução entre realidade e aparência e a alteração da relação da distância e proximidade com o objeto. 17Forma reduzida dos termos em inglês Erotic Games.

Para a professora Machiko Kusahara, da Faculdade de Artes, Tokyo Institute of Polytechnics este fato pode ser associado à diferença que existe entre o pensamento ocidental e oriental. Segundo Kusahara, os japoneses contam com postura filosófica mais flexível, onde não há limites claros estabelecidos entre o orgânico e o inorgânico; a arte e o entretenimento, e chegam a admitir a convivência com diferentes formas de vida. Ela mostra que as possibilidades advindas com as mídias digitais permitiram aos japoneses desenvolverem o sentimento de amor por criaturas altamente tecnológicas e robotizadas, bem como por bichinhos de estimação virtuais – os tamagochis18. Para ela:

A noção de vida e corpo é diferente da ocidental, refletindo a tradição japonesa em que não existiam fronteiras críticas do ponto de vista teológico entre corpo e mente, humano e animal (ou outras entidades), ou mesmo entre real e a imagem, como se pode ver no caso de animais de estimação e personagens virtuais (In: DOMINGUES, Diana, 1997, p.244).

Após a moda dos tamagotchis vieram os animais de estimação cibernéticos.19 Que a adoção dessas criaturas virtuais é uma forma de superar o problema da falta de espaço das residências e um bom exemplo para mostrar como os japoneses adaptaram a tecnologia às necessidades reais impostas pela vida, uma vez que a convivência com animais dentro de casa ajuda a aliviar o stress da rotina diária de trabalho, e substituir as necessidades envolvidas na criação de animais domésticos reais.

Outros dois filósofos que compartilham dessa idéia são: Baudrillard, em A ilusão vital (2001:73) ao discutir que as possibilidades trazidas pelas mídias digitais só vieram contribuir para o desenvolvimento de uma consciência muito mais flexível na maneira das pessoas perceberem o mundo e de se relacionarem com o outro: “Deslocando-nos para um mundo virtual, vamos além da alienação, rumo a um estado de privação total do Outro, ou mesmo de qualquer alteridade, ou negatividade”; e Mario Perniola, (2000:36) ao comentar que nunca a pesquisa científica e o imaginário coletivo deram tanta importância aos estados

18Corresponde ao nome de um brinquedo em que se cria um animal de estimação virtual. O tamagotchi foi lançado pela Bandai em 1996, no Japão. Ver em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Tamagotchi 19Zoológico de robôs! In: Musas virtuais: o Japão domina o mercado de games e cria as heroínas cibernéticas. Made in Japan, São Paulo, JBC, ano 3, n.32. p.22-23. intermediários entre a vida e a morte, em que se configuram as formas de vida artificial, parecendo indicar exatamente o processo graças ao qual as coisas adquirem faculdades humanas e, vice-versa, os homens são excluídos do sentir.

Uma outra prova do quanto as produções culturais japonesas enfatizam a estreita relação entre a realidade e a aparência pode ser encontrada através da pesquisa desenvolvida por Hitoshi Tomizawa (In: TAKASHI, M. 2000:123). Após analisar a recepção dos jogos de games Virtual Fighter e Mortal Combat nos Estados Unidos e Japão, conclui-se haver uma diferença de sensibilidade entre os americanos e os japoneses na maneira como cada país avalia a importância da realidade dimensional. Segundo ele, os americanos têm uma tendência a considerar as imagens do game Mortal Combat mais realistas em relação às imagens do Virtual Fighter devido a sua tradição em utilizar atores reais na produção de filmes em 2D (duas dimensões), o que para os japoneses era considerado um exemplo do requinte de realidade dimensional alcançado pelos construtores de jogos. Entretanto na América, diz ele, o jogo que utiliza a técnica de 2D e os personagens são mostrados no estilo dos animês, com grande enfoque nos efeitos das cenas de explosões, nas cenas com muita ação dos lutadores, entre outros excessos de animações limitadas 20 que são trazidos à tona, não eram considerados realista pelos americanos. Antigamente os americanos não consideravam realistas os efeitos de animação limitada vistos nos jogos de videogame e que somente com a popularização dos animês na TV, a partir da exibição de Speed Racer, é que pouco a pouco eles se acostumaram com a técnica, passando a aceitá-la como uma possibilidade realista. Ao contrário, os jogos produzidos com a estética de movimento da animação japonesa são considerados muito originais e que somente os japoneses, os quais cresceram acostumados com as expressões das animações bidimensionais poderiam fazer.

20Corresponde à técnica de animação econômica desenvolvida por e caracterizada por movimentos quebrados e descontínuos, utilização de movimentos cíclicos, além da freqüente utilização de truques de movimentação de câmera. 2.3 A estética holográfica – projeções de holografia

Quanto mais nos aproximamos da perfeição do simulacro (e isto é verdade para os objetos, mas igualmente para as figuras de arte ou para os modelos de relações sociais ou psicológicas) mais parece à evidência (ou antes ao gênio maligno da incredulidade que nos habita, ainda mais maligno que o gênio maligno da simulação) por que é que todas as coisas escapam á representação, escapam ao seu próprio duplo e à sua semelhança. Em resumo, não existe real: a terceira dimensão não é mais que o imaginário de um mundo há duas dimensões... Escalada na produção de um real cada vez mais real por adição de dimensões sucessivas. Mas exaltação por consequência do movimento inverso: só é verdadeiro, só é verdadeiramente sedutor o que joga com uma dimensão a menos (Walter Benjamin in BAUDRILLARD, Jean, 1981, p.136).

Outra infiltração do estilo mangá no cenário da cultura pop japonesa é a expansão do mercado das trilhas sonoras para games e animês. Muitos cantores e grupos de jovens conquistaram fama e prestígio no universo da programação televisiva criando música para videogames ou emplacando suas canções nas trilhas sonoras dos animês. E uma das realizações do mercado pop é a produção de shows com popstars da música japonesa ou como é o caso de Hatsune Miku, através de personagens de mangás e animês. Trata-se de uma projeção holográfica criada para acoplar um software de música (VOCALOID = Vocal + Android) produzido pela Yamaha e lançado no Japão em 2007, que permite aos usuários criarem voz sintetizada. Abaixo, a bela personagem de olhos grandes Hatsune Miku

Figura 23 - A produção holográfica mostra o belo visual da personagem Hatsune Miku no estilo mangá – uma reprodução fiel e bastante convincente de uma estrela da música pop japonesa.

As projeções holográficas são um outro exemplo da superioridade tecnológica dos japoneses e do quanto o avanço da computação gráfica na atualidade e tem a ver também com a noção de objetividade e de reconstrução exata da realidade e por esta razão guarda fortes implicações com a possibilidade de convivência com um mundo simulado. Objeto midiático que ocupa centralidade nas discussões teóricas de Perniola, em sua obra “Repensando o ritual” (2000:12;131), na qual o autor entende que na tentativa da reprodução holográfica ser uma reprodução exata da realidade, ela ultrapassaria a realidade e tornar-se-ia hiper-realista, pois para ele, algo somente seria exato aquilo que se aproximaria da verdade sem o pretender e que portanto, e que a intensificação das informações sobre a realidade tornar-se-ia cada vez menos concebível a própria idéia de uma realidade. Segundo Baudrillard (p.136) o que é exacto é já demasiado exacto, só é exacto o que se aproxima da verdade sem o pretender.

Neste aspecto é que hoje em dia muitas produções da cultura pop japonesa, tais como as reproduções holográficas, muitas vezes se valem do avanço tecnológico e do poder de simulação da realidade para desencadear no espectador, fenômenos de participação, tanto afetivo quanto perceptivo. E a produção de shows com bandas virtuais, em que cada membro ou cantor é um personagem de mangá e animê, tais como mostram as imagens da apresentação de Hatsune Miku acima é mais um exemplo da infiltração do estilo mangá do século XXI que começou a aparecer no cenário pop mundial.

2.4 A estética tridimensional - bonecas em geral, incluindo o modelo Large Size Figure

Durante a década de oitenta espalhou-se entre o público otaku a tendência em colecionar os garage kits - bonecos tridimensionais moldados com resina de poliuretano que representam as imagens das personagens de mangás e animês – e assim poder encontrar nestas imagens tridimensionais a garantia de um relacionamento seguro e amistoso. Refugiados nesse universo fictício, os otakus, esses jovens desconfiados das relações humanas, se voltam para esse universo mais confiável de personagens de histórias em quadrinhos e desenhos animados, os quais não oferecem nenhum tipo de conflito ou de agressão – uma forma, portanto, de não se arriscar e de recusar o sofrimento. Tímidos e pouco seguros de si mesmos, eles preferem a companhia de suas bonecas de resina de heroínas de mangás ou de imagens de suas cantoras prediletas exibidas nas telas de seus monitores de tv e computadores.

Um produto característico do pop japonês que dá uma idéia da dimensão desse fenômeno são as bonecas com a caracterização das heroínas de séries em tamanhos reais, chamadas de Large Size Figure. De acordo com a matéria da Made in Japan: “À altura dos fãs: bonecos em tamanho real de personagens de animê e mangá chegam a custar 8 mil reais e enlouquecem otakus”;21 o público fã dessas bonecas são em geral homens que compreendem a faixa dos 20 a 40 anos, que costumam freqüentar as ruas de Akihabara (bairro de Tokyo). As personagens em tamanhos reais (Large Size Figure) são confeccionadas pela empresa Paper Moon e uma das explicações para a popularização da cultura Figure no Japão é o anseio dos fãs em transferir os personagens de animês, mangás e games do universo ficcional para o real. A possibilidade em ter a figura da personagem predileta e poder apreciá-la por todos os ângulos tornou-se um verdadeiro hobby entre os otakus. Tendo em vista esse tipo de consumidor, uma das grandes estratégias de venda da indústria cultural pop japonesa foi a produzir um kit para os fãs montarem a boneca de suas heroínas prediletas, com a opção de customizá-las de acordo com as preferências individuais. As bonecas Blythe por exemplo, se tornaram um fenômeno de vendas da década de 90 no Japão, pois, juntamente com o lançamento da boneca, também foram comercializados um universo aparentemente ilimitado de roupas, acessórios, cabelos e olhos grandes, que poderiam ser trocados na boneca dependendo do modelo adquirido.

21YUBA, Pablo. Made in Japan, São Paulo, ano 11, n.127.

Essa moda de produzir personagens de ficção em três dimensões e personalizados é sem dúvida um bom exemplo do quanto as realizações da cultura pop do Japão é capaz de hoje em dia nos oferecer um retrato de como essa nova geração de garotos – otakus em sua maioria – percebem e entendem a realidade.

Talvez poderemos encontrar no desenvolvimento da robótica algumas pistas que esclareçam o porque da aceitação dos japoneses em se relacionar ou conviver com outras alternativas de vida que não a humana. Pioneiros nesta área investigativa, os japoneses já desde 1996 puderam contar com os primeiros robôs humanóides criados para realizar as atividades impossíveis ao ser humano devido as suas limitações físicas. Aos poucos esses robôs também adquiriram outras funções e se tornaram cada vez mais parecidas com os humanos: passaram a reproduzir determinadas expressões e os movimentos corporais como caminhar, correr, subir escadas, entre outras atividades, além da capacidade de interagirem com as pessoas. Sob o título “Viver com robôs”, a matéria da revista Nipponia22 mostra um pouco sobre o desenvolvimento da liderança japonesa no campo da investigação robótica. O artigo também discute a capacidade dialógica dos humanos com a máquina, a partir do momento em que muitos robôs puderam auxiliar o homem na execução das tarefas diárias.

Interessado nesta mesma discussão, o filme くうき にんぎよう (traduzido para o inglês como Air Doll) ao mostrar o relacionamento entre um homem e uma boneca inflável parece revelar entre outras questões, uma exaustiva preocupação com à beleza física, ao mesmo, o descaso das pessoas com o envelhecimento, na medida em que relacionar-se com uma boneca implica a garantia de uma companhia eternamente jovem. Produzido em 2009 pelo diretor Hirokazu Kore-eda, a história inspirada num mangá, retrata a dramática experiência de uma boneca inflável que ao receber um coração e se tornar humana, aos poucos vai se relacionando com as outras pessoas do tranqüilo bairro onde mora e vai descobrindo o verdadeiro sentido de viver e envelhecer. Decepcionada com as experiências adquiridas através do contato com diferentes perfis de homens que

22Ver em: http://web-japan.org/nipponia/nipponia38/es/feature/index.html cruzaram o seu caminho, por fim, a boneca acaba reconhecendo que ela própria já não tinha mais utilidade pra ninguém (ainda mais pelo fato do seu dono ter lhe pedido se ela não poderia voltar a ser a antiga boneca da época que ele comprara, ou seja, uma boneca normal e plana) e decide juntar-se ao lixo incinerável deixado na calçada pelos moradores daquele tranqüilo bairro...

O filme inicia a discussão sobre o sentido de envelhecer quando o protagonista da história, um garçom chamado Hideo, de aproximadamente 40 anos de idade e dono de uma boneca inflável chamada Nozomi, questiona não saber até quando ele poderia transar com sua parceira (a boneca) já que ele estava envelhecendo, problema este que ela jamais precisaria enfrentar.

Outros pontos de vista sobre essa temática são lançados por outros personagens ao longo da narrativa. Dentre estes, nos chama bastante atenção o comentário de um colega de trabalho (em uma locadora de filmes) de Nozomi chamado Junichi, que lhe diz que envelhecer significaria perder a vida. Outro personagem bastante representativo dentro do enredo é um senhor doente que, em uma das diversas vezes em que se deparou com a boneca, lhe disse ter trabalhado no passado como professor substituto em uma escola, e ter se cansado de ser tratado como tal, ou seja, como uma mera peça de reposição, comparando-se a um inseto chamado “efêmera”. Segundo ele, este inseto tinha como único propósito a renovação constante da própria espécie, posto que no interior da fêmea, ao invés de estômago e intestino, havia espaço somente para gerar seus ovos e que, uma vez gerados, a vida do inseto durava apenas dois dias. Para o personagem, a vida deste inseto era a perfeita representação da concepção de vida da sociedade japonesa atual, vazia e com obsessão pela juventude constante. A imagem abaixo (figura 24) faz alusão à obsessão das mulheres por tratamentos e cremes que lhes devolvam a aparência jovem.

Figura 24 - Frame do filme Air Doll

CAPÍTULO III REDESENHANDO AS NOVAS FORMAS DE COMUNICAÇÃO

Este capítulo tratará de analisar o mecanismo intersemiótico entre as manifestações culturais japonesas a partir de um mapeamento das novas formas de comunicação surgidas a partir dos quadrinhos japoneses. Levando, portanto, em consideração que, ao se deslocar do meio impresso para outras formas narrativas e objetos midiáticos, a expressividade artística dos mangás possibilitou recriar-se e fez surgir novas formas de comunicação - ao migrar para a linguagem cênica, ela se configurou nos cosplays; ao deslocar-se para a linguagem corporal, ela ressurgiu na moda; da passagem para a linguagem estética, possibilitou sua recriação nas mais diversas formas e linguagens artísticas: performances, vídeo, exposições multimidiáticas, instalações, etc. Ainda, possibilitou a formação de novas tribos urbanas, trouxe o florescimento da chamada cultura Otaku, e tornou-se o principal canal de acesso aos hábitos e costumes dos japoneses no exterior.

3.1 O florescimento da chamada cultura Otaku

Segundo o psiquiatra Okonogi Keigo (apud BARRAL, 2000:34) otaku é o termo que serve para designar um grupo de jovens que estão no limiar entre deixar de ser crianças e tornarem-se adultos e que relutam em aceitar e seguir o mesmo estilo de vida admitido pelas gerações anteriores. Eles demonstram pouco interesse pelos valores em grupo e pela ética japonesa do trabalho, têm poucos amigos íntimos, evitam o contato presencial e os vínculos fortes com os demais e preferem as atividades voltadas ao lazer, entregando-se principalmente às temáticas lúdicas.

O professor de literatura japonesa Christopher Bolton em seu artigo intitulado Animê de horror e seu público: Olhos 3 x3 e Princesa vampireza Miyu, discute o público fã de mangá e animê tentando definir o perfil dessas pessoas chamadas de otakus. Bolton23 afirma que o termo otaku no Japão possui uma conotação negativa e refere-se a uma

23 horror and its audience: 3x3 Eyes and Vampire Princess Miyu. In: McROY, Jay. Japanese Horror Cinema. Hawai: University of Hawai Press, 2005. maioria de fãs masculinos que tem um interesse obsessivo e um conhecimento enciclopédico do animê ou outra mídia – ou outras subculturas como hobby. Em sua aplicação mais pejorativa inclui-se não apenas um interesse doentio por algo sem valor, mas também uma falta de habilidades sociais, uma imaturidade sexual e distanciamento da realidade, o que impede o otaku de participar da sociedade formando relacionamentos autênticos. Originalmente a palavra otaku é uma versão diferencial do pronome da segunda pessoa em japonês ‘você’. A partir do uso desta palavra entre os fãs de mangá e animês, a palavra passou a ser aplicada a estes fãs com um caráter pejorativo. Essa associação tornou- se ainda mais negativa após as mortes de 4 meninas em Tokyo, em 1989, baseada no interesse do assassino de vinte e sete anos de idade em animê e mangá de horror e de temas com menininhas. Baseado no interesse do assassino, a mídia japonesa associou essa preocupação a sua vida de isolamento físico e social e a uma imoralidade que parecia explicável somente como um profundo distanciamento da realidade. No entanto, mais recentemente, os fãs têm proclamado a palavra otaku e tornando-a mais positiva. O grande número de otakus femininas começou a ser reconhecido e assim os críticos têm repensado em teorizações para o termo.

Okada Toshio, um produtor de animê, define os otakus por sua sensibilidade à mídia visual. Ele tem sua própria versão do terceiro olho do otaku que ele rotula como ‘um olho para o estilo’, ‘um olho para a técnica’ e ‘um olho de um conhecedor’. Isso corresponde a um determinado perfil de público em que a apreciação de um filme não está relacionada apenas por sua narrativa, mas também por seu estilo visual formal e pelo processo técnico envolvido na produção dessas imagens. Esta abordagem, no mínimo, indica um certo nível de sofisticação, uma perspectiva meta-textual sobre a construção e consumo do animê que nega a crítica que diz sobre o otaku como sendo consumidores sem reflexão, cujos desejos são facilmente manipulados pelos textos por eles serem incapazes de distinguir o que é real do que é a criação. Outros teóricos têm desenvolvido essa idéia para sugerir que os otakus, de fato, tem um melhor entendimento do que a maioria dos leitores da vaga fronteira entre a realidade e a representação na sociedade pós-moderna. De acordo com Barral (2000:28) a primeira referência ao termo otaku24 foi cunhada pelo ensaísta Nakamori Akio na revista mangá Burikko para descrever o grupo de pessoas obsessivamente interessadas em campos fechados, nos quais se tornam verdadeiras especialistas. De animês e mangás, a jogos de computador ou idols (garotas que cantam, atuam e povoam os comerciais de televisão) – assuntos que são geralmente considerados inúteis de uma perspectiva profissional. São exímios colecionadores de séries de mangás em todas as versões em que a série é publicada (deluxe e versões limitadas, incluindo os tankōbon – volumes de mangás compilados), além das produções independentes, que ilustram seus personagens favoritos em novas histórias, diferentes das oficiais. É preciso reforçar que o otaku diferencia-se de um leitor ou colecionados comum no sentido de como ele exerce seu consumo. Um fã comum, por exemplo, não entenderia o valor de possuir as edições diferentes de sua história de mangá predileta, bem como de todos os demais produtos que acompanham o merchandising da série – desde bonecos às fotos inéditas de cosplayer de seus personagens favoritos. Enquanto que o público otaku é formado por homens dotados de um encantamento infantil – são fãs apaixonados que se propõe a colecionar, traduzir mangás, fazer downloads, postagens, ou seja, a agir como produtores e disseminadores de informação.

3.2 O surgimento do fenômeno cosplay e suas manifestações de estilos de moda

Cosplay 25 ou costume play (termo traduzido para o português como ‘roupa de brincar’ já que a idéia central é incorporar um personagem e reinterpretá-lo, o que equivale ser o mais parecido fisicamente e com a maneira de agir do personagem) é o termo que surgiu na década de 90, quando uma nova geração de jovens e adultos começou a se vestir com a mesma caracterização de personagens de mangás, animês e videogames. Cosplay diz respeito também ao novo modelo de comportamento e percepção adotado pela juventude nipônica que se identificam com a maneira de agir, a aparência e a personalidade de determinadas personagens de mangás e animês. Por esta razão, é comum vê-los desfilando nas tardes de domingo pelas ruas do bairro de Akihabara, em Tokyo, com maquiagem no

24 Para maior compreensão sobre o tema assistir: Otakus in Love (2004), de Matsuo Suzuki. 25 In: LOBÃO, Davis Denis. O universo mágico dos cosplayers. Neo Tokyo, São Paulo, Escala, n.1, p.93. rosto, cabelos coloridos, penteados extravagantes e vestidos com a mesma caracterização de suas personagens prediletas ou inspirados por algum ídolo de uma banda de rock.

Muitas jovens japonesas também adoram se vestir com uniformes de empregadas dométicas, a chamada moda maid ou adotam o visual lolita - características da moda vitoriana que envolve parecer ‘fofa’ ou meiga a ponto de tornar-se infantil. São adolescentes da vida real que decidiram por adotar um estilo de moda comum nas histórias de ficção de muitas séries de quadrinhos e animês, principalmente do gênero shoujo.

Alguns estilos de moda são reproduzidos pelas personagens da série de mangá Nana, da artista Ai Yazawa, como mostram as imagens abaixo:

Figura 25 - Nana Oosaki, uma adolescente destemida e independente, vocalista da banda Black Stones, adota o estilo gothic lolita - moda urbana japonesa popular entre adolescentes, que mistura elementos da moda vitoriana, como os babados e as rendas, juntamente com acessórios do mundo punk e gótico, e, portanto, concentra-se no preto.

Além de todas referências aos diversos estilos de moda - gothic lolita, lolita, com base no visual adotado pelas protagonistas do mangá Nana, iniciou-se a comercialização de diversos produtos derivados da série, como o lançamento da marca de cigarros Black Stones, dos anéis Vivienne Westwood, além de artigos de roupas e demais acessórios de moda, como cintos, bolsas, bottons, pulseiras, etc.

No universo dos quadrinhos japoneses, há muitas séries que exploram o universo da moda: seja na composição do look das personagens, como é o caso dos mangás Vídeo Girl Ai, cuja moda remete aos anos 80; Chobits, ao estilo Lolita; Nana, com suas personagens muito estilosas e com direito a um guarda-roupa praticamente inteiro da marca Vivienne Westwood e Rozen Maiden, direcionado ao estilo Doll; mas há também séries que tratam a moda como temática central da história – como o mangá Paradise kiss, da artista Ai Yazawa.

Figura 26 - Os jovens japoneses nos dias de hoje colorem o cabelo todo de loiro, avermelhado ou de qualquer outra cor, menos preto. Então, nas ruas de Tokyo é bastante comum encontrar rapazes e adolescentes com permanente no cabelo, ou penteado estilo rock and roll e afro- americano. No look ao lado, percebe-se a influência do estilo do penteado dos personagens japoneses.

Além dos variados estilos de roupas, os quadrinhos japoneses popularizaram entre os japoneses e artistas de outros países, a maquiagem circle lenses (estilo mangá)26, que consiste no processo de alongar os cílios para acrescentar volume e na aplicação de lentes que aumentam a circunferência dos olhos, na tentava de imitar o atraente e sedutor olhar das heroínas de mangás.

26Ver em: “Olhar de mangá”. Made in Japan, JBC, ano 12, n.137, p.9. 3.3 O desenvolvimento de vanguardas nas artes: esculturas, performances, instalações, etc.

Super flat27 ou superplano corresponde ao movimento artístico criado no ano de 2000, por Takashi Murakami — um dos artistas mais populares atualmente no Japão, que utiliza personagens de mangás e animês conhecidos pelo público japonês para evidenciar o quanto as criações da cultura pop japonesa ou das subculturas, atualmente dominam a produção e o mercado artístico no Japão. Nas leituras de Murakami o termo super flat; aponta para um estado ‘sem substância’, no qual ‘sociedade, produtos, arte e cultura são bidimensionais’, porque algo parece ter sido perdido, a essência da filosofia tradicional japonesa que poderia sobreviver aos hábitos do consumo já não encontra mais espaço na sociedade atual. O ‘plano’ que acompanha o ‘super’ nasce da noção de que essa nova geração de jovens que emergiu em meados da década de 1980 - num período de ascensão da economia do Japão - conhece a vida apenas por meio de telas achatadas de TVs ou computadores e dispensa qualquer vínculo com as gerações passadas. O pensamento crítico do movimento super flat, portanto, se traduz na idéia de olhar não somente para uma figura chapada, mas que deve ser repensada como sobreposições de camadas, ao valer-se também de todo o desenvolvimento histórico e cultural da sociedade japonesa. As obras de Murakami são inspiradas na estética comercial, pop e kitsch e dialogam com as fronteiras entre Oriente e Ocidente, passado e presente, arte refinada e cultura underground. Por esta razão, suas criações incluem personagens de mangás e animês representados em formas tridimensionais ou através de pinturas (numa alusão as gravuras ukiyo-e) e esculturas e que são utilizados pelo artista para falar para um público internacional. De acordo com Murakami, o nascimento do mangá e do animê está atrelado à queda das bombas atômicas e ao trama sofrido pela cultura japonesa sem nenhum precedente na história mundial. Talvez, por falta de outra opção, a maioria dos japoneses querendo esquecer o stress pós-traumático e seguir adiante rapidamente (um pensamento muito singular da cultura japonesa), acabou por dar a voz a um grupo de artistas renomados que escolheram não direcionar o stress pós-traumático da sociedade – PTSD – ansiedades,

27 In: REZENDE, Marcelo. Desconstruindo o samurai: mostra Japão pop. Bravo online. medos, raivas, turbilhões de sentimentos causados pelas bombas, ao discurso público. Para Murakami, somente os artistas de mangás e animês e seus seguidores otakus é que poderiam fazer e assim o fizeram, pelo fato de trabalharem numa baixa freqüência cultural ou do sentimento real, e portanto, livres para expressar o que eles (e outros) sentiam de verdade. Assim o Japão se transformou na primeira e verdadeira sociedade pós-apocalíptica e o animê e o mangá japonês – e por extensão sua popular ou baixa cultura foram a primeira expressão de um certo tipo de desbravura; um novo e verdadeiro sentimento mundial.28

No Japão, as fronteiras tênues entre o mundo da arte e do entretenimento têm contribuído para que muitos artistas se inspirem em personagens de mangás e animês para desenvolverem seus trabalhos criativos nas mais variadas linguagens. Okamoto Taro, Takashi Murakami, Ippei Okamoto, Nara Yoshimoto, Mariko Mori, entre outros, correspondem a alguns artistas performáticos representativos dessas produções atuais, que apresentam obras inspiradas na estética dos mangás e são interessados em discutir o alcance da cultura pop japonesa no Japão.

Figura 27 - Domestic, de Nara Yoshimoto (2000).

Figura 28 - At work, de Nara Yoshimoto (1997).

Por meio de um trabalho lúdico e com senso de humor, esses artistas de vanguarda pretendem questionar até que ponto a criação artística no Japão está diretamente vinculada ao entretenimento e ao comércio, ou mesmo,

28 In: KELTS, Roland. Japanamerica: how Japanese pop culture has invaded the U.S. New York: Palgrave Macmillan, 2006. p. 25-28. se a obra de arte japonesa só pode ser repensada sob a possibilidade de ser patrocinada e como um produto passível de ser vendido. No mundo dos quadrinhos e animações japonesas, por exemplo, há uma série de personagens que são utilizados como uma crítica ao desenvolvimento da sociedade japonesa por demais fechada e restrita a interferências culturais externas. Estas imagens de personagens muitas vezes servem também para questionar sobre as dificuldades enfrentadas pelos jovens artistas japoneses em sobreviver com o sistema barato de produção de animação criado por Osamu Tezuka a partir da década de 1960. Qualquer pessoa pode se deparar com objetos ou personagens gigantescas caminhando pelas ruas de Tokyo, ou mesmo, um cyborg com cabelos monstruosos pode aparecer a qualquer momento — o que interessa a estes artistas é estar no centro das cidades, entre multidões de pessoas e assim poder reconhecer seu público.

Mariko Mori, outra artista japonesa de reconhecimento internacional, por exemplo, aparece nas portas de lojas ou nos elevadores caracterizada de uma personagem alienígena de mangá ou animê (Figura 29). Mesmo diferenciada e destacando-se em relação às demais pessoas com as quais se depara ninguém a olha e nem mesmo expressa algum tipo de reação — é como se a inserção da artista não fosse percebida - uma espécie de “invisibilidade”.

Figura 29 – Tea Cerimony, de Mariko Mori.

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