MPB, política e esquerdas: um debate historiográfico entre as décadas de 1960 e 2010.

Romulo Costa Mattos

Considerando-se que este projeto tem como objetivo analisar as condições de trabalho e a organização política de músicos profissionais que atuavam dentro do campo da MPB, será realizado neste tópico um debate sobre o esforço de definição conceitual dessa sigla, demandado por autores com diferentes orientações teóricas, dos anos 1960 aos tempos atuais, com atenção aos significados a ela atribuídos. Professora na área de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo (USP), Walnice Nogueira Galvão empreendeu uma análise ideológica da chamada MMPB (Moderna Música Popular Brasileira), em 1968, embora o seu ensaio aborde canções que já eram relacionadas com a expressão MPB. Referidas ao mesmo movimento artístico, as duas formas coexistiram, e a última era vista pelo menos desde 1964, sendo um bom exemplo o grupo vocal formado por frequentadores do Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE), que lançara o seu primeiro compacto em tal ano com o nome M.P.B.4. Em 1965, com o sucesso de vendas da dupla Elis Regina e (CITAÇÃO), e de público do I Festival Nacional de Música Popular Brasileira (transmitido pela TV Excelsior), aqueles pontos na abreviatura sumiram da capa do segundo compacto lançado pelo quarteto (CITAÇÃO). Em resumo, tendo em vista que os termos MMPB (em vias de abandono) e MPB (em vias de consolidação) eram intercambiantes, esse último será empregado neste texto para fins de padronização. Os seus produtos culturais são entendidos pela ensaísta como:

(...) uma proposta nova dentro da tradição. Surgida do desenvolvimento da , que por sua vez já constituiu uma renovação radical da canção, se por um lado persiste na linha intimista que foi a marca registrada da Bossa Nova, por outro lado compõe um projeto de “dizer a verdade” sobre a realidade imediata (GALVÃO, 1976, p. 93).

Essas linhas demonstram que a autora trata a MPB por meio dos sentidos da tradição, da modernidade e do engajamento político. Mas a ideia de continuidade da estética mínima da bossa nova não deve ser generalizada, uma vez que havia o canto expressionista de Elis Regina, a performance vocal dramatizada de Geraldo Vandré, a

excitação corporal de Jair Rodrigues (em sintonia com o próprio entusiasmo observada em sua emissão de voz), entre outros casos. É justo dizer que para outros nomes centrais da MPB, como e , a caracterização feita por Galvão pode ser válida. Ela também afirma que o projeto estético aqui debatido teria duas faces:

No plano musical, implica numa volta às velhas formas da canção urbana (sambão, sambinha, marcha, marcha-rancho, modinha, cantiga de roda, ciranda, frevo, etc.) e da canção rural (moda-de-viola, de roda, desafio etc.). No plano literário, impõe um compromisso de interpretação do mundo que nos cerca, particularmente em suas concreções mais próximas, brasileiras. Basta arrolar a galeria de personagens: o boiadeiro, o cangaceiro, o marinheiro, o retirante, o violeiro, o menino pobre da cidade, o homem do campo, o nordestino que vem trabalhar no Sul, o chofer de caminhão, o homem da rua, o sambista, o operário, etc (GALVÃO, 1976, p. 93).

Mesmo antes da intervenção tropicalista, em 1967, a MPB apresentava um conjunto mais complexo e variado de experiências musicais do que esse trecho propõe. (NAPOLITANO, 2007, p. 109). A caracterização simplificada realizada pela ensaísta pode ser explicada pelo fato de que ela valorizou a dimensão do engajamento político na MPB, essa caracterizada: “(...) por uma intencionalidade informativa e participante” (p. 94). O grupo de consumidores desses produtos culturais também parece bastante limitado:

O público da MMPB, de gosto mais refinado, tem sua massa constituída por universitários e seus adjacentes, como intelectuais em geral, artistas, publicitários, jornalistas, etc. É um público mais ou menos cultivado, que se acha familiarizado ao nível da informação com as preocupações sociais, econômicas e políticas de nosso tempo, e que responde bem a alusões à injustiça e à desigualdade (GALVÃO, 1976, p. 95).

Nessa análise, Galvão localiza a maior parte (“massa”) dos apreciadores da MPB dentro dos estratos superiores das camadas médias, mais abastados, informados e com circulação nos meios universitários. Muito embora tenha, contraditoriamente, reconhecido o poder de circulação dos produtos culturais em questão para além dessa restrita faixa, ao justificar a escolha pelo estudo da obra de , Chico Buarque, Edu Lobo, Geraldo Vandré e : “(...) por serem os de produção mais

numerosa e de maior popularidade no momento” (GALVÃO, 1976, p. 94, grifo meu). Apesar de não ser embasado por um levamento de fontes primárias, o seu diagnóstico terá longa trajetória no debate acadêmico. E a sua radicalização na discussão historiográfica levará à conclusão de que a MPB seria uma música de cariz elitista, enquanto os seus agentes sociais que atuam em tal campo seriam, inclusive, autoritários, conforme será abordado mais adiante neste texto. Mas não seria exagerado dizer que há sugestões nesse sentido no ensaio aqui examinado, pelo menos no que se refere aos seus consumidores:

E foi esse mesmo público que vaiou e no III Festival de São Paulo (1967), sendo que a primeira teve seu programa de TV durante meses em primeiro lugar de audiência, e o segundo tem sempre seus discos nas melhores colocações das paradas de sucessos. A registrar que eles foram vaiados antes mesmo de poderem abrir a boca, o que significa uma vaia ao que são e ao que representam, e não às canções que defenderam. Um público que se preza de ser cultivado e sofisticado rejeita tanto Hebe Camargo como Erasmo Carlos (GALVÃO, 1976, p. 95).

Essa irônica observação feita pela professora de Literatura ignora importantes debates de época, que nos ajudam a compreender, e a não julgar, os apupos dos fãs da MPB direcionados aos dois artistas mencionados. A praticada por Erasmo Carlos era vista como a trilha sonora da alienação e da despolitização da juventude, sendo percebida também como uma ameaça à MPB, principalmente, devido à popularidade alcançada por Roberto Carlos. Então a qualidade do gênero musical também chamado de “Iê-iê-iê” foi questionada, e as suas “ideologias” foram colocadas em xeque pelos artistas e intelectuais de esquerda: “Sua pobreza formal e seu conteúdo padronizado, bem como a ‘alienação’ diante dos dilemas enfrentados pela nação, elementos constantemente denunciados pelos artistas engajados, eram vistos como a antítese da MPB (NAPOLITANO, 2007, p. 95-6). Entender esse embate é relevante: “(...) porque justamente o sentido de MPB se constrói num diálogo com esse outro, com essa negação, com essa anti-MPB que na época era vista como Jovem Guarda” (NAPOLITANO, 2003, p. 129). Sobre a vaia a Hebe Camargo, há informações de que pelo seu programa de televisão passava toda a reação brasileira dos anos 1960, assim como a de que artistas associados às esquerdas e a outros grupos de oposição à ditadura eram constrangidos nas

entrevistas conduzidas pela cantora/ apresentadora (RIDENTI). E isso acontecia no mesmo contexto em que na MPB o tema da resistência aos militares era tão importante quanto a busca de uma consciência nacional-popular em forma de canção (NAPOLITANO, 2007, p. 110).

Para além da sugestão de que o público da MPB apresentava um comportamento elitista em sua apropriação desse movimento artístico, o trecho do ensaio de Galvão mais reproduzido na historiografia diz respeito ao mito do “dia que virá”, considerado um ser imaginário nas canções da MPB, por meio do qual o seu público colocaria a solução dos problemas do presente para o futuro, de forma a se eximir de responsabilidades no processo histórico, e de se confortar por denunciar as agruras da realidade. Portanto, tratar-se-ia: “(...) de uma proposta imobilista e espontaneísta. Imobilista porque prega os braços cruzados. Espontaneísta porque delega a ação aO DIA, essa abstração mitológica. ‘A gente’ não é responsável, por isso se considera absolvida”. Por essa razão, a canção de protesto teria um caráter consolador. Mas não se pode menosprezar o fato de que as canções engajadas também funcionavam como sinais de reconhecimento entre aqueles que se identificavam com a luta contra a ditadura (FONTES), e podiam expressar a revolta nos anos de chumbo. Representativa da imagem do “dia que virá”, a composição “Apesar de você” (1969), de Chico Buarque, virou hino nas celas da ditadura, “cantado aos berros desafinados” pelos presos políticos do Tiradentes, em São Paulo, segundo o artista plástico Sérgio Ferro (FREIRE, 1997, p. 217, apud RIDENTI, 2003, p. 122).

A análise mais demorada do trabalho de Galvão se justifica pela sua forte influência no debate acadêmico sobre a MPB, que aparece muitas vezes de forma descontextualizada. Por essa razão, é necessário situá-lo dentro de uma conjuntura de transformação radical de valores e ideologias por correntes políticas da esquerda, que exigiam a redefinição da canção engajada no sentido da propaganda revolucionária. (NAPOLITANO). É curioso que essa crítica “interna”, feita pelo próprio movimento estudantil da época, vá ser apropriada a partir dos anos 2000 por autores que combatem tanto a memória, quanto a História da MPB imediatamente relacionadas com o campo da esquerda. A crítica ao mito do “dia que virá” será reproduzida em um livro escrito em 1977 pelo cientista social Gilberto Vasconcellos, então professor da Fundação Getúlio Vargas (e hoje integrante do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal

do Espírito Santo). No artigo mais conhecido dessa obra, seu objetivo é mostrar como a matéria política se incorporou na MPB a partir de meados da década de 1960, e sua primeira afirmação é a de que: “Em 1964, nossa história deu uma guinada. Um de seus registros mais interessantes talvez seja a música popular que, ao lado disso, emerge também como um importante veículo de poesia, domínio de pesquisas estéticas e campo de batalha entre as vanguardas artísticas” (VASCONCELLOS, 1977, p. 37). A segunda é a de que: “(...) em virtude de sua inserção nas malhas da indústria cultural, a MPB tem exercido ultimamente uma influência decisiva na linguagem e no comportamento de amplos setores da juventude brasileira”. A terceira e última é a de que: “(...) a MPB talvez seja, dentre as manifestações artísticas, o domínio no qual as contradições (...) da sociedade brasileira tenham penetrado de maneira mais violenta”. Vemos nessas três citações, que revelariam as principais características da MPB, a preocupação com o trabalho estético inovador, a relação com a indústria cultural e a discussão política. Essa seria “escancarada e esquemática” (VASCONCELLOS, 1977, p. 39) na canção engajada, e teria “dimensão polivalente” no tropicalismo, por ser vista tanto na paródia, quanto na alegoria, entre outros recursos estilísticos (VASCONCELLOS, 1977, p. 40).

É necessário problematizar essa redução das possibilidades poéticas e musicais da obra influenciada pela ideologia nacional-popular, que não teria um nexo entre “contundência crítica e realização estética” (VASCONCELLOS, 1977, p. 46), atributo identificado com ares apologéticos pelo ensaísta no tocante à experiência tropicalista. Deve ser reforçado que os promotores da música de protesto também se preocupavam com a relação forma-conteúdo, uma vez que: “(...) os ‘nacionalistas’ defendiam a estilização técnico-musical dos materiais que acreditavam ser ‘populares’, bem como a própria tematização poética do ato de ‘cantar-para-o-povo’” (NAPOLITANO, Marcos, 2007, p. 107). Principalmente diante da obra de compositores como Edu Lobo, que trabalhava materiais ditos folclóricos com técnica musical sofisticada, ou Chico Buarque, “(...) virtuoso das rimas e dos ritmos verbais” (VELOSO, 1997, p. 163), além de ter parcerias com aquele primeiro artista e os maestros Tom Jobim e Francis Hime (sem esquecer que o próprio também é autor de harmonias elaboradas no contexto da música popular), não se pode aceitar a formulação segundo a qual a canção de protesto: “(...)

cometeu o equívoco de relegar a um segundo plano o que é fundamental na música: sua dimensão estética” (VASCONCELLOS, 1977, p. 42).

Outro ponto a ser relativizado no texto de Vasconcellos a relação da MPB com a insurgente indústria cultural brasileira, que não é tratada em termos de contradição. No entanto, não pode passar despercebido que os artistas: “(...) propunham uma nova sociedade, mas não deixavam de participar de um lucrativo setor de mercado (...) que transformava as obras artísticas em mercadorias como quaisquer outras” (RIDENTI, 2003, p. 117). Há certa dose de ingenuidade na proposta de superar a ordem vigente embarcando de peito aberto na canoa da indústria com o objetivo de subvertê-la. E outra tanta de idealização na ideia de que se pode “entrar e sair de todas as estruturas”, como quer Caetano Veloso (RIDENTI, Marcelo, 2010, p. 99). Para o sociólogo (1977, p. 46- 7), o tropicalismo apenas atuaria criticamente em relação ao mercado de bens culturais:

o caráter crítico implícito ao tratamento da indústria cultural resulta menos das frequentes e explícitas alusões aos mass media (...) que do manejo artístico da deslocação sígnica (colagem texto/música) operada através do efeito de estranhamento, que acaba por colocar em xeque a padronização retórica, sintática e ideológica dos valores ou produtos da indústria cultural, na exata medida em que inverte e subverte os seus significados.

Essa atenção especial dedicada ao tropicalismo explica o destaque aos elementos da modernidade artística em sua análise. Mas ao tratar especificamente do trabalho de Nara Leão, há o pensamento de que: “(...) a pesquisa do passado musical não é incompatível com a informação estética da contemporaneidade” (p. 85). Então se pode dizer que o autor não deixou de entender a MPB dentro da chave da tradição, embora não a ressalte. Ao mesmo tempo tal trecho analisado contradiz a afirmação anterior do sociólogo sobre a suposta estreiteza estética da canção engajada. Também baseado em análise política de letras de canções, Vasconcellos (1977, p. 41-42) reproduz sem contextualização a crítica de Galvão à figura do “dia que virá”, e discutiu a circulação social da MPB também em termos restritos, uma vez que ela seria um: “(...) catalizador político de setores da pequena burguesia, sobretudo o estudantil”. A sua formulação segundo a qual os compositores dessa geração praticariam a “linguagem da fresta”,

entendida como um ardil para driblar a censura, será bastante citada do debate historiográfico.

A modulação operada mais recentemente em tal proposição terá lugar neste texto. Por ora, cabe analisar outro influente autor na produção acadêmica sobre a MPB: Arnaldo Contier.

_. Em livro de 1994, oriundo de sua dissertação de mestrado defendida no ano anterior no Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), Alberto Ribeiro da Silva aborda a censura à música popular brasileira. Nele, situa o aparecimento da expressão MPB nos anos 1960, entre o surgimento da bossa nova e os grandes festivais da canção, tendo a definido da seguinte maneira: “Esta sigla e toda a produção poético-musical que ela passa a designar é uma construção política e não significa mais, como pode parecer, toda e qualquer música popular brasileira, sendo um subproduto – ou melhor, par que o termo não soe pejorativo –, uma subseção dela” (145). (...) O historiador enfatiza o elemento político em sua tentativa de delimitação do conceito de MPB, que estaria vinculada “(...) à resistência da faixa de compositores e cantores que, herdeira da chamada ‘canção de protesto’, de origem universitária, tinha como proposta combater o regime militar” (p. 147). Não obstante, atesta que o surgimento daquele termo estava inicialmente relacionado com o combate à “(...) tentativa da indústria cultural de fazer com que o iê-iê-iê fosse vendido também como música popular ‘de raíz’” (p. 145). Sobre essa citação, por um lado, é questionável a proposição de que a jovem guarda tenha sido associada aos gêneros convencionais, supostamente característicos originalidade musical brasileira, com o objetivo de ser legitimada junto ao público consumidor – o autor sequer apresenta documentos que comprovem essa afirmação. Por outro, é fato que essa apropriação nacional do rock – tanto o americano tradicional, dos anos 1950, quanto o inglês da fase pré-psicodélica dos Beatles, da primeira metade da década de 1960 – tenha funcionado com um elemento de oposição cultural e ideológica para os agentes da MPB, e assim contribuído para a construção de sua identidade, na base do “nós contra eles”. Esse trecho, reforçado pela menção anterior dos festivais da canção – que eram programas de televisão com grande audiência – como o marco temporal final do processo de aparecimento daquela sigla, permite a observação de que Silva também considera a influência do mercado no processo aparecimento de tal sigla. Se isso não estava

enfaticamente colocado naquele trecho que alude ao combate dos agentes da MPB ao iê- iê-iê, à medida que parece se tratar mais de uma ação ideológica, o cruzamento das dimensões política e mercadológica está evidente em outro ponto do trabalho:

A invenção dessa tradição [segundo a qual a MPB seria herdeira legítima e exclusiva de uma música popular rica e criativa produzida entre as décadas de 1920 e 1960] foi algo tão importante que, além de demarcar, no mercado, o segmento MPB, na luta contra o regime, um grupo significativo de cantores e compositores identificados com a classe média urbana intelectualizada, conseguiu consolidar-se como representação do real que até hoje é aceita e reproduzida pelos grupos sociais urbanos brasileiros (p. 162). Nessa citação, o historiador acertadamente considera o atributo da tradição na elaboração do conceito de MPB, apesar da imprecisa afirmação de que a construção de uma memória em tal sentido pelos seus compositores e artistas só tenha começado a ser construída nos anos 1970. Parcialmente anunciado no mesmo trecho em debate, há na pesquisa de Silva a criticável perspectiva de que a MPB seria “(...) a expressão de um grupo de compositores, cantores e um público de classe média universitária, centrado no eixo Rio-São Paulo, prioritariamente, aos quais corresponde também uma identidade política anti-ditadura militar” (p. 148). Essa formulação reduz o conceito de MPB, tanto pelo ponto de vista de seus produtores, quanto de seu público, a uma fração da classe média mais escolarizada, novamente sem uma pesquisa sistemática em fontes primárias que a ampare. Também é conveniente questionar a delimitação de todos aqueles processos que envolvem a MPB às duas metrópoles nacionais, o que dificulta o entendimento do seu potencial de circulação e lhe retira parte de relevância sociocultural. Finalmente, a análise de Silva, uma das primeiras desenvolvidas com maior fôlego em programas de pós-graduação, realidade que contribui para a sua relevância, apresenta uma possível contradição. Por um lado, lemos a afirmação de que a MPB, (...) com o fim da ditadura militar, começa a desaparecer enquanto sigla e enquanto movimento artístico-político” (p. 147), e por outro, a de que ela teria conseguido “(...) consolidar-se como representação do real que até hoje é aceita e reproduzida pelos grupos sociais urbanos brasileiros” (p. 162).

Em livro de 1998, o pesquisador e crítico musical José Ramos Tinhorão considerou que determinados agentes da MPB, como Chico Buarque, Edu Lobo e Geraldo Vandré, seriam “(...) os componentes da segunda geração da bossa nova” (p. 316). Porém,

os seus primeiros produtos bem-sucedidos em festivais da canção não teriam “(...) quase mais quase mais nada de bossa nova”. Aqui é possível notar a contradição de caracterizar a MPB como uma continuidade do estilo que tem em João Gilberto o seu maior criador e ao mesmo tempo considerar os seus sucessos de público muito pouco influenciados pela bossa nova. Não obstante, cabe perguntar se a reconhecida ascendência dessa última sobre a primeira em termos de harmonia e performance vocal desdramatizada possa ser considerada menor ou pouco relevante. Aqueles artistas citados também são tratados como autores de “tentativas de regionalismo sofisticados” (p. 317), ao lado dos quais surgiria “outro grupo de compositores presos à mesma formação bossa-novista” com os seus “ de participação ou sambas de protesto”. O surgimento dessa vertente dentro da MPB teria ocorrido porque “(...) se verificara impraticável a conquista da aliança popular para fins de protesto contra as injustiças sociais por meio de canções”. Além de não ter a capacidade de explicar propriamente o processo de aparecimento dos tais sambas de participação, essa frase se torna ainda mais problemática as canções “Disparada” (Geraldo Vandré e Théo de Barros) e “A banda” (Chico Buarque), ambas de 1966, mencionadas como exemplos da sofisticação regionalista na canção emepebista, foram grandes sucessos – e correspondem a uma época em que a proximidade do povo parecia cada vez mais real (NAPOLITANO). A segunda composição vendeu centenas de milhares de cópias, a ponto de a indústria fonográfica brasileira não dar conta de tantos pedidos e estender a produção à Argentina. Também suscitou o ressurgimento de bandas de coreto por todo o país e a venda de bonecos que as retratavam, em lojas de suvenires. Para reforçar o seu arrazoado, Tinhorão afirmou os sambas participantes “(...) vinham atender a um propósito de protesto particular da alta classe média contra o rigorismo do regime militar instalado no país em 1964” (p. 317). Nessa passagem, é possível ver certa correspondência com a ideia manifestada por Ribeiro da Silva, para quem o público da MPB limitar-se-ia aos estratos médios da população, com passagem pela universidade. Para aumentar a imprecisão do texto do autor, esse afirma que os compositores e letristas de músicas de protesto, Edu Lobo, Geraldo Vandré, Gilberto Gil, Capinam, e Torquato, entre outros), romperam “(...) afinal com o estilo individualista e americanizado, e passam a cantar as belezas do futuro com dezenas de versos dedicados ao dia que virá”. Ou seja, os dois primeiros nomes citados, que haviam aparecido como

agentes do regionalismo sofisticado, agora surgem como praticantes da variante sambista e engajada da MPB. Esse argumento de Tinhorão poderia ser defendido com a proposição de que tratar-se-iam de momentos diferentes da carreira de Edu Lobo e Geraldo Vandré. No entanto, não seria esse o caso, uma vez que ele afirmou o aparecimento de “(...) outro grupo de compositores presos à formação bossa-novista”, como vimos. Vale ressalvar ainda que a música de Chico Buarque é mais relacionada com o samba de protesto do que com a sofisticação regionalista. Por fim, cabe ressaltar que o sentido da politização de esquerda é reconhecido na MPB, ainda que a sua eficácia seja relativizada pela ironia da redação do texto. Para embasá-la, Tinhorão reproduz trecho de um texto de época de Walnice Nogueira Galvão: “Dentre os seres imaginados que compõem a mitologia da MMPB (Moderna Música Popular Brasileira destaca-se o ‘dia que virá’, cuja função é absorver o ouvinte de qualquer responsabilidade no processo histórico”. (p. 317-8). [INSERIR CRÍTICA A ESSA PERSPECTIVA]. E o que era uma relativização quanto às possibilidades de realização política da MPB se tornou uma crítica efetiva no fim do capítulo dedicado à bossa nova e ao “protesto musical universitário”: “(...) essa gratuidade da insistência em cutucar o Poder com vara curta das canções de protesto acabou determinando em 1968 a reação das autoridades sob a forma de maior repressão e reforçamento da censura (levando compositores como Chico Buarque e Geraldo Vandré a sair do país, e outros a serem presos e expulsos como Gilberto Gil e Caetano Veloso)” (p. 318). De forma bastante discutível, o crítico musical parece responsabilizar o tipo de protesto realizado por artistas-chave da MPB pela radicalização da repressão praticada pela “linha dura” dos militares, com a promulgação do AI-5. No entanto, é sempre importante enfatizar que esse instrumento legal se utiliza dos episódios de radicalização na sociedade para se justificar [MELHORAR EXPLICAÇÃO E CITAR FICO]. Seja como for, ao relacionar a MPB com a bossa nova (ainda que em termos relativos), pode- se dizer que Tinhorão considera o elemento da modernidade em sua constituição (o que é ratificado pela citação de Galvão, que se emprega o termo MMPB, Moderna Música Popular Brasileira). E ao mencionar o samba (em sua vertente de protesto) e o regionalismo (mesmo estilizado), o seu texto não deixar de considerar o significado da tradição naquela “instituição sociocultural”.

Quem tratou pioneiramente a MPB por meio da ideia citada no fim do parágrafo anterior foi Marcos Napolitano, em 1999, em sua tese de doutorado defendida no Departamento de Pós-Graduação em História da Universidade de São Paulo (USP). A proposição da MPB como uma instituição sociocultural vai além da demarcação de um gênero musical ou de um movimento artístico, uma vez que essa se realizou mais em nível sociológico e ideológico. A análise da MPB como uma instituição se relaciona com a sua “(...) legitimação na hierarquia sociocultural brasileira, com capacidade própria de absorver elementos que lhe são originalmente estranhos, como o rock e o ”. (p. 7). Além desse vetor da “instituição sociocultural” na constituição da MPB, o autor considerou o vetor oposto da indústria cultural, reorganizada nos anos 1960, que transformou as canções no centro mais dinâmico do mercado de bens culturais. É nesse sentido que a sua hipótese foi construída em torno do conflito e da articulação entre “(...) um movimento instituinte que configura autonomia e outro, de reordenamento da realização comercial da canção, que enseja heteronomia”. p. 8. Assim, Marcos Napolitano valorizou os impasses, os debates e os projetos autorais de artistas que acreditavam em seu engajamento, ao mesmo tempo que atuavam no mercado musical. Para realizar essa empreitada, lançou mão de um conjunto de fontes variado, como coletânea de entrevistas, documentos e manifestos estéticos, documentos políticos (partidários ou institucionais), textos teatrais e roteiros, crônicas e memórias, imprensa, documentos institucionais, estatísticas, documentos internos de entidades civis, dados do IBOPE, documentação do DEOPS, fontes sonoras, fontes audiovisuais e obras cinematográficas. [MELHORAR ESSE PONTO]. Em resumo, Napolitano lança de uma pesquisa em fontes históricas original e extensiva, com destaque ao levantamento dados do IBOPE, investe na elucidação do processo de surgimento da MPB, com o recuo às manifestações artísticas imediatamente anteriores ao momento de sua formação, idêntica e analisa as suas principais variantes musicais, com atenção à fusão de elementos da tradição com a vontade de ruptura estética, e conceitua de forma mais consistente a MPB, com a busca das tensões e convergências da perspectiva engajada de seus artistas promotores com o mercado musical dos anos 1960. Por esses motivos apontados, a obra de Napolitano é aqui considerada de referência. [FAZER a ligação com o próximo parágrafo].

Ao tratar da invenção do conceito de MPB, em 2001, Santuza Cambraia Naves aponta para a adaptação da estética da bossa nova às condições culturais do início da década de 1960, juntando o ritmo formatado por João Gilberto às informações musicais outras, cariocas e nordestinas, e à estratégia ideológica segundo a qual “(...) a consciência profunda de nossas potencialidades levaria à superação do quadro de submissão cultural e alienação política” (p. 37). Ou seja, tal sigla se relaciona em sua origem com “(...) uma musicalidade que concilia o discurso nacionalista com os aspectos cosmopolitas da base musical da bossa nova”. E o produto resultante dessa fusão vai passar a ser “(...) encarado como a própria essência da Música Popular Brasileira, algo que sempre teria existido, a corrente principal em comparação com a qual se identificam tendencias novas e desviantes” (p. 37-8). É possível enxergar mais claramente nessa proposição a questão da modernidade, pela centralidade conferida à influência estética da bossa nova, e da informação política avançada, devido à importância dada à ideologia nacionalista. Menos evidente, porém presente, está o elemento da tradição, que pode ser encontrada quando a autora cita a fusão da bossa a outras experiências musicais, tanto da cidade do (supostamente, o samba), quanto do Nordeste (presumivelmente, o frevo, a ciranda, a moda de viola, entre outras). Não por acaso, a essa altura, a socióloga menciona os nomes de e Sérgio Ricardo, certamente, pioneiros dessas práticas culturais que levariam à canção da MPB. [Inserir influência de Napolitano, instituição sociocultural]. O investimento na ideia desse termo “como o centro de confluência de questões políticas e culturais se revigora a partir de 1964, associado ao aprofundamento das discussões em curso e, naturalmente, aos impasses criados com o golpe militar. É justamente a partir desta data que se cria, de fato, a categoria ‘canção de protesto’” (p. 38), completou Naves. A esse pensamento, preocupado com a exatidão no processo de invenção de variantes da canção da MPB, talvez valha a pena lembrar que essa sigla ainda não estava inteiramente formatada naquele ano citado pela importante pesquisadora musical. As contracapas de discos de vinil grifam mais termos intermediários como MMPB. Embora apresente minibiografias dos agentes principais da MPB, associadas às características musicais deles, o seu livro encerra a análise sobre esse campo com uma observação de cunho político: “Essa geração de músicos que surge no mundo artístico a partir de meados dos anos 60 (...) vive intensamente a transição operada nos campos

político e cultural, bastante demarcada no Brasil, pela promulgação do Ato Institucional n. 5 (...)”. (p. 46).