Big Mal & Companhia Gonçalo Pereira Rosa
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Gonçalo Pereira Rosa Big Mal & Companhia A histórica época de 1981-1982, em que o Sporting de Malcolm Allison conquistou a Taça e o Campeonato Índice 1. Feitos um para o outro .................................. 11 2. O génio fora da lâmpada ................................. 27 3. O homem mais rico de Portugal .......................... 47 4. O rapaz de Dartford e o estágio de Caracas ................. 71 5. A Academia do Pelado nas montanhas da Bulgária .......... 87 6. «Queria vê-lo a si lá dentro!» ............................. 117 7. A máquina trituradora em Southampton ................... 141 8. Arrepios em Lisboa, constipação em Neuchâtel ............. 165 9. A cartilha exemplar ..................................... 193 10. «Eu estava a precisar de uma coisas destas!» ............... 219 11. «Eu sou o Boss!» ....................................... 243 12. O cisne fora do lago .................................... 279 Epílogo .................................................. 307 Agradecimento .......................................... 313 7 «Não terás problemas com directores até ao momento em que tiveres sucesso.»1 Brian Clough, em conversa com Malcolm Allison 1 «Sousa Marques e Branco do Amaral Conspiraram contra Nós», Diário de Lisboa, 2 de Agosto de 1982. 1 Feitos um para o outro Sinuoso, mal iluminado, áspero ao tacto, o túnel é tudo menos o que se poderia esperar de uma via de acesso à celebridade, mas, bem vis- tas as coisas, também no teatro poucos conhecem as alas que condu- zem à boca de cena. São cerca de quarenta metros de percurso, sobre um solo de cimento granulado, que desliza ao de leve a cada passada. O som dos pitões sobre este cimento é poderoso, como as botas carda- das de um exército marchando na direcção do inimigo. Agora, porém, o túnel está à mercê de um único homem. Por estas paredes passaram nos últimos 25 anos heróis e vilões antes na verdade de o serem. Aqui formularam-se mil rezas e promessas sole- nes. Gritaram-se palavras de encorajamento e urros de desespero. Crian- ças tornaram-se adultos e homens de barba rija tremeram como varas verdes. Este é de facto o momento definidor. A caminhada de quarenta metros marca a diferença entre os homens e as crianças. É uma marcha pelo subterrâneo, pelo intestino da besta, pelo algar que leva à boca do vulcão. Para alguns, esta foi a Via Dolorosa, os quarenta metros mais difíceis de percorrer em toda uma vida. Fizeram-no com o passo inse- guro, a medo, temerosos do que os esperava. Mas este homem, mol- dado por centenas de batalhas, está estranhamente calmo. Assobia com a serenidade de quem tem a consciência tranquila e de quem sabe que pode domar a fera que está do outro lado. 11 Gonçalo Pereira Rosa Faltam mais alguns metros. Uma última curva. E, de súbito, torna- -se visível a saída, repleta de luz, no final de uma escadaria de degraus curtos. O cheiro acre é agora palpável. São os fumos verdes e brancos de um lado, e vermelhos do outro, que entram pelas narinas, irritando- -as. A princípio, o odor perturbava-o, mas aprendeu a lidar com ele na Turquia, quando liderou a equipa do Galatasaray. Hoje, já o associa com ternura ao momento definidor, o que mais gosta de viver – esta caminhada solitária em direcção ao relvado, antes da explosão de cor e som que o aguarda1. O ruído das cornetas é ensurdecedor. Vestido de forma informal – logo ele que garante só usar fatos completos em casamentos e funerais –, Malcolm Allison coloca rapidamente o chapéu de feltro na cabeça. É a sua imagem de marca, o objecto que o celebrizou no Crystal Palace e no Manchester City. O chapéu Fedora, como lhe chamam os ingleses, assistiu a mil batalhas e foi mais vezes fotografado do que a família real inglesa, costuma ele dizer a brincar2. Réplicas baratas vendiam-se em Selhurst Park, nos arredores de Londres, quando Allison por lá passou. O chapéu, os charutos, as declarações bombásticas fazem parte da ima- gem que projecta e que muitos associam à vaidade e ao exibicionismo. Allison, porém, sabe mais de psicologia do que um catedrático. Antes, muito antes de José Mourinho, Big Mal percebeu que o treinador pode ser um aspirador, puxando para si toda a pressão, todas as críticas, todas as atenções, e libertando-as dos ombros dos seus rapazes3. No relvado, sob o ruído das vozes que gritam cânticos imperceptíveis para passar o tempo e esconder o nervosismo, já estão 22 atletas. Fute- bolistas de nome feito ou com vontade de o fazer. São os melhores pro- fissionais do país, a flor de uma geração. Aquecem, ou fingem aquecer, vinte minutos antes do jogo, também eles com a estranha indisposição 1 «Malcolm Allison: Um Génio entre a Relva e a Farra», Jornal i, 6 de Setembro de 2010. 2 «O “Pequeno Sonho” de Malcolm Allison: Taça UEFA para o Sporting», Se7e, 28 de Outubro de 1981. 3 David Tossel, Big Mal. The High Life and Hard Times of Malcolm Allison, Football Legend, Mainstream Publishing, Edimburgo, 2008. 12 Big Mal & Companhia no organismo, as borboletas no estômago, os nervos. Quantos não esco- lheriam sair dali naquele momento, debaixo do microscópio onde serão observados por quarenta mil pessoas em euforia, onde cada gesto será apreciado à lupa por gente que nem percebe o que é jogar futebol? Se pudessem… Antes de subir os degraus para o derby eterno da cidade de Lisboa, Malcolm Allison sorri. Pela mente talvez lhe passem os milhares de momentos que já viveu como profissional de futebol. A estreia como jogador do West Ham. O dia terrível em que lhe disseram que não poderia voltar a jogar porque os doentes de tuberculose não têm capa- cidade física para noventa minutos de luta. O regresso esforçado aos «Hammers». A terrível decepção de perder a estreia na Primeira Divi- são no seu último ano de carreira, preterido por um menino de 17 anos, Bobby Moore de seu nome, a quem ele ensinara tudo e cuja fotografia estará durante décadas nas paredes dos quartos de milhares de crian- ças1. A carreira de treinador. Os títulos ingleses e europeus. A consagra- ção como homem do futuro, mestre da estratégia. A queda em desgraça. As manchetes polémicas dos tablóides que o tornaram famoso, mas tam- bém infame. Os despedimentos. As humilhações. A perda do estatuto de génio do futebol. A chegada a Lisboa. A redenção. Sim, Allison está calejado pelo muito que viveu. Ele sabe bem o que vai fazer. Embora os biólogos não o documentem, Alvalade é um ser vivo. Pode ser de pedra e cimento, mas respira como um organismo. Tem paixões e ódios. Como um amante ternurento, não recusa nada a quem tudo lhe dá. E aprendeu a estimar quem lhe oferece o dote perfeito, imemo- rial. É o caso deste inglês, figura gigantesca, um pouco trapalhona, que sobe agora à boca de cena ao mesmo tempo que a aparelhagem do está- dio projecta música empolgante2. Não há uma pessoa entre os 40 mil 1 Tossel, op. cit., p. 52. 2 Em entrevista ao Jornal i de 6 de Setembro de 2010, Carlos Xavier dirá: «Houve uma altura [com Allison] em que até havia música ao vivo e se tocava o Comanchero. O está- dio ia abaixo.» A referência musical está certamente errada. Comanchero só foi distri- buído no mercado musical internacional em 1984. 13 Gonçalo Pereira Rosa espectadores que não saiba o guião do que se vai passar e, no entanto, nenhuma palavra foi escrita, nem se fez um ensaio geral. Emergindo das profundezas do estádio, o homem de chapéu na cabeça ascende ao nível do relvado, junto da mítica Bancada Superior Sul. Os disparos das máquinas fotográficas dos repórteres acompanham-no em busca de uma evidência do carácter reguila do homem que as desafia. Como um vulcão, o estádio muda de fase eruptiva. Ruge. Milhares de vozes gritam palavras que ninguém percebe. O ruído é ensurdecedor. Mais fumos são libertados nas bancadas de cimento. Desafia os senti- dos discutir por que motivo milhares de pessoas abdicam do conforto do sofá e da sala climatizada em benefício de um estádio de cimento, sujeito à chuva e ao vento, aos ruídos e cheiros, aos insultos e à violên- cia. E, no entanto, semana sim, semana não, Alvalade enche. Milhares de pessoas acorrem aqui em busca de um segundo inesquecível, de uma centelha de génio que possam ver e gravar na memória, de um momento de sincronia e perfeição que possa ser mais tarde contado. A televisão, essa invenção que vai chegando aos estádios, nunca lhe fará justiça. Ao mesmo tempo, este jogo marca o início de uma nova era. Será transmitido em directo para todo o país e a RTP não poupou esforços nem dinheiro para tornar o evento memorável. Cinco câmaras estão distribuídas pelo recinto, garantindo a omnipresença do olhar vigilante orwelliano. A partir de hoje, o futebol perderá a inocência. A discussão de lances controversos dominará agora as conversas. Repetições serão exibidas ad nauseam, de todos os ângulos, procurando certificar o que não pode ser certificado. A tecnologia vai tentar provar que é possível não errar. Marques Pires, o árbitro escolhido para o jogo, talvez não o tenha assimilado, mas simboliza o cordeiro escolhido para o sacrifício no altar da televisão. A partir de hoje, como o comentador Pedro Gomes dirá em antena, o videotape tornar-se-á o maior inimigo do árbitro1. Nos dois meios-campos, os jogadores do Sporting e do Benfica param por um segundo os exercícios de aquecimento. Há sorrisos entre os 1 Transmissão do jogo Sporting-Benfica, RTP, 28 de Março de 1982. 14 Big Mal & Companhia onze escolhidos para representar a equipa de Allison. Do outro lado, algumas raposas velhas tentam reduzir depressa o impacte da entrada dramática no espírito de profissionais que, por momentos, voltaram a ser crianças assustadas.