Gonçalo Pereira Rosa

Big Mal & Companhia

A histórica época de 1981-1982, em que o Sporting de Malcolm Allison conquistou a Taça e o Campeonato Índice

1. Feitos um para o outro ...... 11 2. O génio fora da lâmpada...... 27 3. O homem mais rico de Portugal ...... 47 4. O rapaz de Dartford e o estágio de Caracas...... 71 5. A Academia do Pelado nas montanhas da Bulgária...... 87 6. «Queria vê-lo a si lá dentro!»...... 117 7. A máquina trituradora em Southampton...... 141 8. Arrepios em Lisboa, constipação em Neuchâtel...... 165 9. A cartilha exemplar...... 193 10. «Eu estava a precisar de uma coisas destas!»...... 219 11. «Eu sou o Boss!»...... 243 12. O cisne fora do lago...... 279

Epílogo...... 307 Agradecimento ...... 313

7 «Não terás problemas com directores até ao momento em que tiveres sucesso.»1

Brian Clough, em conversa com Malcolm Allison

1 «Sousa Marques e Branco do Amaral Conspiraram contra Nós», Diário de Lisboa, 2 de Agosto de 1982. 1

Feitos um para o outro

Sinuoso, mal iluminado, áspero ao tacto, o túnel é tudo menos o que se poderia esperar de uma via de acesso à celebridade, mas, bem vis- tas as coisas, também no teatro poucos conhecem as alas que condu- zem à boca de cena. São cerca de quarenta metros de percurso, sobre um solo de cimento granulado, que desliza ao de leve a cada passada. O som dos pitões sobre este cimento é poderoso, como as botas carda- das de um exército marchando na direcção do inimigo. Agora, porém, o túnel está à mercê de um único homem. Por estas paredes passaram nos últimos 25 anos heróis e vilões antes na verdade de o serem. Aqui formularam-se mil rezas e promessas sole- nes. Gritaram-se palavras de encorajamento e urros de desespero. Crian- ças tornaram-se adultos e homens de barba rija tremeram como varas verdes. Este é de facto o momento definidor. A caminhada de quarenta metros marca a diferença entre os homens e as crianças. É uma marcha pelo subterrâneo, pelo intestino da besta, pelo algar que leva à boca do vulcão. Para alguns, esta foi a Via Dolorosa, os quarenta metros mais difíceis de percorrer em toda uma vida. Fizeram-no com o passo inse- guro, a medo, temerosos do que os esperava. Mas este homem, mol- dado por centenas de batalhas, está estranhamente calmo. Assobia com a serenidade de quem tem a consciência tranquila e de quem sabe que pode domar a fera que está do outro lado.

11 Gonçalo Pereira Rosa

Faltam mais alguns metros. Uma última curva. E, de súbito, torna- -se visível a saída, repleta de luz, no final de uma escadaria de degraus curtos. O cheiro acre é agora palpável. São os fumos verdes e brancos de um lado, e vermelhos do outro, que entram pelas narinas, irritando- -as. A princípio, o odor perturbava-o, mas aprendeu a lidar com ele na Turquia, quando liderou a equipa do Galatasaray. Hoje, já o associa com ternura ao momento definidor, o que mais gosta de viver – esta caminhada solitária em direcção ao relvado, antes da explosão de cor e som que o aguarda1. O ruído das cornetas é ensurdecedor. Vestido de forma informal – logo ele que garante só usar fatos completos em casamentos e funerais –, Malcolm Allison coloca rapidamente o chapéu de feltro na cabeça. É a sua imagem de marca, o objecto que o celebrizou no Crystal Palace e no Manchester City. O chapéu Fedora, como lhe chamam os ingleses, assistiu a mil batalhas e foi mais vezes fotografado do que a família real inglesa, costuma ele dizer a brincar2. Réplicas baratas vendiam-se em Selhurst Park, nos arredores de Londres, quando Allison por lá passou. O chapéu, os charutos, as declarações bombásticas fazem parte da ima- gem que projecta e que muitos associam à vaidade e ao exibicionismo. Allison, porém, sabe mais de psicologia do que um catedrático. Antes, muito antes de José Mourinho, Big Mal percebeu que o treinador pode ser um aspirador, puxando para si toda a pressão, todas as críticas, todas as atenções, e libertando-as dos ombros dos seus rapazes3. No relvado, sob o ruído das vozes que gritam cânticos imperceptíveis para passar o tempo e esconder o nervosismo, já estão 22 atletas. Fute- bolistas de nome feito ou com vontade de o fazer. São os melhores pro- fissionais do país, a flor de uma geração. Aquecem, ou fingem aquecer, vinte minutos antes do jogo, também eles com a estranha indisposição

1 «Malcolm Allison: Um Génio entre a Relva e a Farra», Jornal i, 6 de Setembro de 2010. 2 «O “Pequeno Sonho” de Malcolm Allison: Taça UEFA para o Sporting», Se7e, 28 de Outubro de 1981. 3 David Tossel, Big Mal. The High Life and Hard Times of Malcolm Allison, Football Legend, Mainstream Publishing, Edimburgo, 2008.

12 Big Mal & Companhia no organismo, as borboletas no estômago, os nervos. Quantos não esco- lheriam sair dali naquele momento, debaixo do microscópio onde serão observados por quarenta mil pessoas em euforia, onde cada gesto será apreciado à lupa por gente que nem percebe o que é jogar futebol? Se pudessem… Antes de subir os degraus para o derby eterno da cidade de Lisboa, Malcolm Allison sorri. Pela mente talvez lhe passem os milhares de momentos que já viveu como profissional de futebol. A estreia como jogador do West Ham. O dia terrível em que lhe disseram que não poderia voltar a jogar porque os doentes de tuberculose não têm capa- cidade física para noventa minutos de luta. O regresso esforçado aos «Hammers». A terrível decepção de perder a estreia na Primeira Divi- são no seu último ano de carreira, preterido por um menino de 17 anos, de seu nome, a quem ele ensinara tudo e cuja fotografia estará durante décadas nas paredes dos quartos de milhares de crian- ças1. A carreira de treinador. Os títulos ingleses e europeus. A consagra- ção como homem do futuro, mestre da estratégia. A queda em desgraça. As manchetes polémicas dos tablóides que o tornaram famoso, mas tam- bém infame. Os despedimentos. As humilhações. A perda do estatuto de génio do futebol. A chegada a Lisboa. A redenção. Sim, Allison está calejado pelo muito que viveu. Ele sabe bem o que vai fazer. Embora os biólogos não o documentem, Alvalade é um ser vivo. Pode ser de pedra e cimento, mas respira como um organismo. Tem paixões e ódios. Como um amante ternurento, não recusa nada a quem tudo lhe dá. E aprendeu a estimar quem lhe oferece o dote perfeito, imemo- rial. É o caso deste inglês, figura gigantesca, um pouco trapalhona, que sobe agora à boca de cena ao mesmo tempo que a aparelhagem do está- dio projecta música empolgante2. Não há uma pessoa entre os 40 mil

1 Tossel, op. cit., p. 52. 2 Em entrevista ao Jornal i de 6 de Setembro de 2010, Carlos Xavier dirá: «Houve uma altura [com Allison] em que até havia música ao vivo e se tocava o Comanchero. O está- dio ia abaixo.» A referência musical está certamente errada. Comanchero só foi distri- buído no mercado musical internacional em 1984.

13 Gonçalo Pereira Rosa espectadores que não saiba o guião do que se vai passar e, no entanto, nenhuma palavra foi escrita, nem se fez um ensaio geral. Emergindo das profundezas do estádio, o homem de chapéu na cabeça ascende ao nível do relvado, junto da mítica Bancada Superior Sul. Os disparos das máquinas fotográficas dos repórteres acompanham-no em busca de uma evidência do carácter reguila do homem que as desafia. Como um vulcão, o estádio muda de fase eruptiva. Ruge. Milhares de vozes gritam palavras que ninguém percebe. O ruído é ensurdecedor. Mais fumos são libertados nas bancadas de cimento. Desafia os senti- dos discutir por que motivo milhares de pessoas abdicam do conforto do sofá e da sala climatizada em benefício de um estádio de cimento, sujeito à chuva e ao vento, aos ruídos e cheiros, aos insultos e à violên- cia. E, no entanto, semana sim, semana não, Alvalade enche. Milhares de pessoas acorrem aqui em busca de um segundo inesquecível, de uma centelha de génio que possam ver e gravar na memória, de um momento de sincronia e perfeição que possa ser mais tarde contado. A televisão, essa invenção que vai chegando aos estádios, nunca lhe fará justiça. Ao mesmo tempo, este jogo marca o início de uma nova era. Será transmitido em directo para todo o país e a RTP não poupou esforços nem dinheiro para tornar o evento memorável. Cinco câmaras estão distribuídas pelo recinto, garantindo a omnipresença do olhar vigilante orwelliano. A partir de hoje, o futebol perderá a inocência. A discussão de lances controversos dominará agora as conversas. Repetições serão exibidas ad nauseam, de todos os ângulos, procurando certificar o que não pode ser certificado. A tecnologia vai tentar provar que é possível não errar. Marques Pires, o árbitro escolhido para o jogo, talvez não o tenha assimilado, mas simboliza o cordeiro escolhido para o sacrifício no altar da televisão. A partir de hoje, como o comentador dirá em antena, o videotape tornar-se-á o maior inimigo do árbitro1. Nos dois meios-campos, os jogadores do Sporting e do Benfica param por um segundo os exercícios de aquecimento. Há sorrisos entre os

1 Transmissão do jogo Sporting-Benfica, RTP, 28 de Março de 1982.

14 Big Mal & Companhia onze escolhidos para representar a equipa de Allison. Do outro lado, algumas raposas velhas tentam reduzir depressa o impacte da entrada dramática no espírito de profissionais que, por momentos, voltaram a ser crianças assustadas. Os mais veteranos, tarimbados por mil bata- lhas, acalmam os colegas. Lembram-lhes que o jogo não começou. Mas estão errados. O jogo começou vinte minutos antes da hora agendada e teve aqui o seu primeiro capítulo. Imperturbável, Big Mal caminha na direcção do círculo de meio- -campo. Tira o chapéu, segura-o com a mão direita, agita-o para as bancadas. Manda beijos para o público, como um político em cam- panha, mas as suas promessas não são vãs, nem efémeras. Talvez lhe venha ao espírito a memória dos boatos que lhe têm contado. Do des- conforto que alguns dirigentes do Sporting sentem por esta atitude tão pouco profissional, tão pouco convencional, tão pouco britânica. Mas Allison não é convencional. Antes de alguém publicitar os mind games, já ele os sabia fazer. E, que diabo!, já que estão desconfortáveis, o inglês acrescenta mais um elemento ao repertório. Volta a colocar o chapéu na cabeça e agita com fervor as duas mãos, como se estivesse a levantar um peso imaginário. Pede apoio para os rapazes. Alvalade ruge como um leão. Grita ainda mais, fazendo disparar alertas nos sis- mógrafos da cidade. «Era um espectáculo à parte», conta Marinho, um dos jogadores decisivos desta campanha. «Entrava pelo Topo Sul, virava para a pista, dava uma volta ao campo, mandando beijinhos para o público. Fingia que envolvia os espectadores com um abraço. Não deixava de sorrir e até os adeptos adversários lhe tributavam um aplauso. Nunca vi nada assim. Nem antes, nem depois.»1 Como bom entertainer, Allison recusa repetir golpes antigos. No passado, em circunstâncias similares, virou-se para o público de Old Trafford e abriu cinco dedos da mão para simbolizar o resultado com que esperava ganhar, recebendo em troca uma chuva de impropérios.

1 Entrevista do autor com Mário Abreu Alves Silva (Marinho).

15 Gonçalo Pereira Rosa

Noutra ocasião, caminhou com firmeza até ao centro do relvado de , casa do seu City, e imitou os gestos de uma vassoura, simboli- zando para as suas tropas a vontade de varrer o adversário do campo1. Hoje, mais contido, limita-se a usar o chapéu como aglutinador de todas as atenções. Ninguém o diria, mas, por admissão própria, sente- -se «pequeno como uma formiga» com esta manifestação de carinho2. Na bancada presidencial, um homem, que nas últimas semanas trocou o fato impecavelmente branco que por norma usa nas grandes ocasiões por um fato escuro clássico em memória do pai que faleceu em Fevereiro3, aprecia a cena com um misto de surpresa e increduli- dade. Apesar do muito que fez pelo equilíbrio das contas do clube e pela criação de condições desportivas ímpares que tornarão esta época de 1981-1982 uma das mais bem-sucedidas de sempre do Sporting Clube de Portugal, naquele momento, o presidente João Rocha é um homem atónito. É a Allison e a esta irreverência infantil que os adeptos se ren- dem. Face à amante exuberante e nem sempre certa, mas capaz desta volúpia criadora, a mulher rigorosa, elegante e visionária esmorece. Naquele minuto, o Sporting pertence a Malcolm Allison. A multidão reage. «Alvalade sempre teve ambientes apaixonados, mas isto era outra coisa», diz Carlos Xavier, que se consolida como joga- dor titular nessa época. «A Juventude Leonina era na altura uma claque com grande influência brasileira4. Havia muitos batuques, um ritmo de samba. Estávamos lá em baixo a ouvir aquilo e queríamos comer o adversário. Até entrávamos arrepiados.»5

1 Tossel, op. cit., p. 120. 2 «Sousa Marques…», Diário de Lisboa, 2 de Agosto de 1982. 3 «João Rocha de Luto», Diário de Lisboa, 24 de Fevereiro de 1982. 4 Herança da escola de samba Vapores do Rego, que influenciara o modo como o público interagia com o futebol em meados da década de 1970, incutindo ritmo brasileiro ao apoio. Na sua tese de doutoramento, José Maurício Conrado Moreira da Silva conta que o grupo de apoio era informalmente constituído por alunos brasileiros das univer- sidades portuguesas. In «Te Conheço de Outros Carnavais: A Linguagem das Escolas de Samba nos Circuitos da Comunicação entre Brasil e Portugal», Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2011, p. 308. 5 Entrevista do autor com Carlos Xavier.

16 Big Mal & Companhia

«Tínhamos a melhor claque da Europa», acrescenta o extremo- -esquerdo Mário Jorge. «Tive momentos na minha carreira em que estava no relvado e olhava embasbacado para as bancadas a dizer para mim próprio: “Isto é inimaginável!” Allison explorou esse calor do público com grande imaginação. Anos mais tarde, numa eliminató- ria com o Feyenoord, a Juventude Leonina utilizou pela primeira vez raios laser. Os jogadores holandeses no relvado viravam-se para nós e diziam: “Isto nem num concerto do Bruce Springsteen.”»1 Todo o fogo-de-vistas deste fim de tarde tem um objectivo compe- titivo. Sempre teve, apesar de Allison não negar que as luzes da ribalta funcionam para ele como ímanes irresistíveis. Ao almoço – o almoço que ele instituiu como ponto de encontro da equipa de futebol sénior, depois da abolição dos estágios para os jogos disputados em Alvalade –, o inglês sentiu a equipa tensa. Já não há estágios, a equipa não se con- centra de véspera. Junta-se no dia do jogo e almoça como uma família na Churrasqueira do Campo Grande2. A medida, elogiada por todos os membros do plantel profissional, é um antídoto para o nervosismo, para a saudade de casa e da família, para a imobilidade e frustração que um miúdo de vinte anos sente por estar preso num hotel. Em troca, Allison pede responsabilidade. Trata os jogadores como adultos e não como crianças numa visita de estudo e pede-lhes honestidade e paixão na abordagem do jogo3. Neste dia 28 de Março de 1982, porém, um manto de desconforto parece pender sobre a equipa. Os sete pontos de vantagem que se regis- tavam em Fevereiro foram reduzidos a cinco. A invencibilidade da equipa, que a tornava confiante, talvez até arrogante na gestão do risco, foi abalada oito dias antes no Estádio do Bessa. Já existiam sinais anteriores de saturação. Na jornada anterior, a equipa fora incapaz de superar o Sporting de Espinho, em Alvalade,

1 Entrevista do autor com Mário Jorge. 2 «Sporting com a Atitude Agressiva Que tanto Falta ao Futebol Português», A Bola, 14 de Novembro de 1981. 3 Ibidem.

17 Gonçalo Pereira Rosa sucumbindo (1-1) às mãos de uma teia inteligente urdida por um jovem técnico, Manuel José, que dará que falar durante a década seguinte. Seguiu-se a derrota no Bessa (2-1) – mais dois pontos perdidos. E não foi só a derrota. No Bessa, ocorreu também a lesão de António Oliveira, um dos génios da equipa, então já em quebra depois de uma primeira volta quase irrepreensível. Foi talvez o golpe mais rude que poderia ter sido lançado sobre a equipa na semana em que esta vai defrontar o velho rival, o Benfica, o mesmo que, nos últimos cinco jogos com os leões, nunca perdera. A imprensa explora a brecha na muralha leonina1. Nos dias que antecedem o jogo, Malcolm Allison sente a equipa presa como uma bicicleta com a mudança errada. Nas conversas com a direcção, embora travadas nesta língua que ele ainda percebe mal, está lá o receio, o medo cénico de falhar quando ninguém tolera o falhanço. «A estrutura directiva do Sporting estava em pânico nessa semana», lembra o centrocampista Ademar, que falhará apenas 5 dos 43 jogos da temporada. «Posso testemunhar que os directores estavam borra- dos, quase a precisar de fraldas, depois de terem sido publicadas algu- mas páginas na imprensa sobre a alegada falta de estofo de campeão do Sporting. Esse pânico não chegou à equipa.»2 Allison perscruta, um a um, os rostos dos homens que escolheu para a batalha. Ferenc Meszaros, o húngaro com o bigode farfalhudo, foi contratado antes mesmo de o treinador observar a equipa no estágio da Venezuela. Sentiu que precisava de um guarda-redes sólido, sabendo melhor do que ninguém que os campeonatos se começam a vencer com uma presença forte na baliza. Rocha escolheu Meszaros, Allison ficou encantado com o húngaro desde o primeiro dia3. O Bobó, como os colegas lhe chamam, fala pouco e ri muito. Inte- grou-se desde o primeiro dia. A poucas horas da batalha, está sereno como se fosse cortar o cabelo ou arranjar o bigode. Não será por ali que a equipa vai tremer.

1 «Se Ganhar ao Sporting, Benfica é Campeão», Record, 26 de Março de 1982. 2 Entrevista do autor com Ademar. 3 «João Rocha É o Homem mais Rico de Portugal?», Record, 31 de Julho de 1981.

18 Big Mal & Companhia

Olha de soslaio para Eurico, homem do Norte, rijo como poucos. Encara cada bola dividida como uma luta pela vida. Está pensativo, mas não vergará – nunca se lhe fará total justiça, mas Eurico é uma das traves-mestras da equipa. Quando sair, todo o edifício colapsará. Nogueira, o centrocampista de quem pouco se esperava depois da transferência do Restelo para Alvalade, tornou-se outra peça-chave no seu Sporting. É a extensão do treinador em campo, troca por suor toda a confiança que lhe foi dada. Mais ainda: puxa pelos colegas quando sente que o esforço alheio não está à altura da ocasião. «Nunca tive pro- blemas durante um jogo em dizer a um colega: “A tua camisola não é verde e branca como a minha? Então, corre e luta por ela.” Não era para ofender. Servia para espicaçar.»1 Allison gosta dessa atitude, talvez por se rever a si próprio nesse papel enquanto fora jogador do Charlton e do West Ham. Nogueira está à mesa, mas já imagina confrontos no meio-campo para a hora do jogo. E, entretanto, com discrição, beneficia da solici- tude dos empregados da Churrasqueira; o seu café vem sempre comple- mentado: «Com um cheirinho de whisky, com um acordo que eu tinha lá com os rapazes do restaurante. Eu e outros.»2 Se dá por isso, Allison não comenta. Não tem feitio para polícia e, melhor do que ninguém, reconhece que cada atleta sabe do que precisa para relaxar antes do jogo. Manuel Fernandes, o capitão, é a fibra desta equipa. Ninguém sabe fora de Alvalade, mas joga há semanas com uma lesão na pélvis que o levará à mesa de cirurgia no Verão. Não se queixa. Sacrifica-se. Dele, Allison dirá mais tarde que é o espelho do carácter e o sonho de qual- quer treinador, além de um marcador de golos insaciável3. Noutro ponto da mesa, juntam-se Ademar, Marinho e Virgílio – o núcleo do meio-campo que, ao lado de Nogueira, constituirão os toca- dores de lata durante a época, na feliz expressão de Ademar. «Tínhamos na frente os mágicos, os génios, o que quiser chamar-lhes – mas não se

1 Entrevista do autor com Nogueira. 2 Idem. 3 «Sousa Marques…», Diário de Lisboa, 2 de Agosto de 1982.

19 Gonçalo Pereira Rosa esqueça que qualquer equipa precisa de ter tocadores de lata na cozinha para chegar ao sucesso.»1 Allison paga-lhe na mesma moeda. «Ademar tem enorme espírito de competição», dirá o inglês ao Diário de Lisboa. «Trabalha no duro como qualquer grande europeu. E tem sempre tre- menda ambição de ganhar. Por causa disso, é fácil ser treinador dele.»2 Na mesma mesa, juntam-se ainda dois pólos de atitude contradi- tória: Lito e Jordão, os dois jogadores nascidos em Angola. Sempre exu- berante, bigger than life, Lito nunca perdeu a motivação apesar de ter passado mais de meia época afastado pois a legislação desportiva só permite a utilização de um jogador estrangeiro – e essa vaga foi sem- pre ocupada por Meszaros. Introspectivo, em contrapartida, Jordão vive a contas com uma crise de motivação. Mostra-se capaz de decidir um jogo e de passar ao largo do seguinte, dependendo da conjugação dos astros. O predestinado começa aos poucos a perder a paixão pelo jogo e nem Big Mal, o trei- nador com mais compreensão que encontrará na sua carreira, evitará a quebra posterior. Em compensação, é um tipo de goleador raro, quase único no mundo. Como se tivesse um pacto com o Grande Relojoeiro, adivinha o desfecho de cada centro com um segundo de antecedência e castiga cada desatenção adversária sem piedade. É o mais próximo que o futebol português tem com um assassino a sangue-frio – marca golos em série, centenas deles, por se especializar na arte de adivinhar o que todos os outros não imaginam. Há quem coleccione selos, moedas, postais ou maços de tabaco. Jordão colecciona golos (embora também tenha uma ampla colecção de isqueiros em casa). Vistosos ou simples. Acrobáticos ou básicos. De cabeça ou com qualquer outro ponto do corpo. Marca-os com a mesma naturalidade com que caminha, come ou dorme. Barão e Carlos Xavier compõem o resto do grupo. Foram apostas de risco durante a temporada, mas, passados oito meses, ninguém ques- tiona que o lateral direito é o mais britânico dos defesas do Sporting,

1 Entrevista do autor com Ademar Marques. 2 «Sousa Marques…», Diário de Lisboa, 2 de Agosto de 1982.

20 Big Mal & Companhia com capacidade pulmonar para jogar o dobro do tempo se necessário fosse. «Barão é um speaker», dirá Allison aos jornalistas Daniel Reis e João Querido Manha. «Tem rara sensibilidade em campo. Se um colega falha, ele grita imediatamente e corrige a brecha.»1 Quanto a Carlos Xavier, é a aposta predilecta de Allison. Em entrevistas, o inglês com- para-o duas vezes a Franz Beckenbauer: «Similar hability», dirá à Gazeta dos Desportos2. «Controla muito bem a bola, avança com ela nos pés, dribla bem, passa bem. Será um jogador famoso se melhorar o seu jogo de cabeça e com o pé esquerdo.»3 Percebe-se o nervosismo dos directores. Parte da sorte do jogo depen- derá do comportamento dos dois laterais, Barão e Marinho, a quem vão ser entregues tarefas decisivas na estratégia do Sporting. Serão eles os domadores das cobras do Benfica. Se impedirem que Chalana, na esquerda, e , na direita, injectem veneno no sistema imunitário do leão, o adversário perderá grande parte do seu poten- cial predador. Marinho, aos 27 anos, é o Joker, a carta-surpresa do treinador. Velho jogador, calejado por milhares de horas – demasiadas, segundo a jus- tiça inglesa – nas casas de apostas de corridas de cães e cavalos, Allison sempre gostou de surpreender nos jogos decisivos. Ele sabe que, no jogo da estratégia, ganha muitas vezes quem tem coragem de colocar car- tas inesperadas na mesa. Privado de Augusto Inácio, ainda sem capa- cidade física para 90 minutos depois de uma duradoura lesão, e com receio de lançar o açoriano Mário Jorge, de escassos 19 anos, num jogo deste cariz – os laterais esquerdos que utilizou ao longo da época –, o treinador preparou Marinho durante toda a semana para a respon- sabilidade de assegurar a coesão no flanco esquerdo e de travar Carlos Manuel, a jovem esperança benfiquista. Por ali se jogará muita da sorte do desafio. Se Marinho assegurar a estabilidade da barragem defensiva,

1 «O Líder É Manuel Fernandes e Xavier “como Beckenbauer”», Gazeta dos Desportos, 19 de Fevereiro de 1982. 2 Ibidem. 3 «Sousa Marques…», Diário de Lisboa, 2 de Agosto de 1982.

21 Gonçalo Pereira Rosa o Sporting terá mais possibilidades de vencer; se o dique romper por ali, é muito provável que a defesa se torne um dilúvio. «Eu não estava em condições de jogar esse jogo», recorda Marinho. «Logo na terça-feira, avisei o treinador que sentia o joelho muito solto. Ia numa direcção e parecia que a perna seguia noutra. Allison insistia que eu jogaria e que faria uma grande exibição. Não sei que magia ele fez, mas de facto joguei uma hora e estive bem. Allison era um grande psicólogo porque conhecia bem o jogo e os jogadores.»1 À imagem de tantas outras ocasiões, Allison lança os dados, con- fiando no instinto e no seu olfacto de competidor nato. A surpresa fun- ciona de tal maneira que, durante largos minutos, apesar de Marinho envergar a camisola com o número 3 e Virgílio usar o 7, a transmissão televisiva assegurará que é Virgílio o lateral esquerdo2. Como sempre, o treinador autoriza um copo de vinho à refeição a cada jogador. Agora, oito meses volvidos sobre o início da época, os funcionários do restaurante já não estranham. A princípio, pergun- tavam, e voltavam a perguntar, se teriam percebido bem o treinador. Era mesmo para servir vinho tinto aos profissionais de futebol? Eurico, o defesa central mais experiente, recorda-se bem do dia em que Alli- son caiu definitivamente no goto dos jogadores. Foi à mesa, uma mesa como esta, num dia como este. O inglês acabara de explicar ao empre- gado de mesa que cada jogador tinha direito a um copo de vinho por refeição e este, devagar, encheu todos os copos. Preparava-se para levar de volta a última garrafa com o resto do precioso néctar não distri- buído, mas Allison não deixou: «Deixe aí a garrafa», ordenou, provo- cando uma gargalhada generalizada3. O truque vinha de trás. Quando comandara o Manchester City, encorajara também os jogadores a beber um copo de brandy antes dos jogos. Desta feita, porém, nem a descontracção do vinho e do ambiente

1 Entrevista do autor com Marinho. 2 Transmissão televisiva do Sporting-Benfica, RTP, 28 de Março de 1982. 3 Entrevista do autor com Eurico Gomes.

22 Big Mal & Companhia familiar parece resultar. Cinzelado por mil batalhas, Allison já viu este pavor muitas vezes. António Oliveira também. O centrocampista fez tudo o que deve ser feito na véspera de um grande jogo: transmitiu fé aos colegas através de entrevistas aos jor- nais. Correria mundo, aliás, a frase publicada em título na Gazeta dos Desportos logo a seguir à lesão do Bessa: «Por cada leão que cair, outro se levantará.»1 Poucos sabem, porém, que Oliveira não a proferiu tal e qual assim. «Essa frase foi podada na redacção da Gazeta», lembra, com uma gargalhada, o jornalista Daniel Reis, então subchefe da redac- ção do jornal. «Oliveira disse ao repórter Francisco Rosa: “Eu caí, mas outros vão levantar-se.” Na redacção, não deixámos de notar a seme- lhança com a célebre tirada dos bolcheviques nas trincheiras: “Por cada comunista morto, outros mil se levantarão.” Lá demos a volta à frase e ficou essa tirada bonita atribuída ao Oliveira, que não a disse nos exac- tos termos em que foi publicada. E está até preservada em lápide no Estádio.»2 Ao Expresso, muitos anos mais tarde, Oliveira assumirá a paternidade da frase: «Quer que eu lhe diga? Vai rir-se, acredite. Veio da minha cabeça.»3 Seja como for, António Oliveira levantou-se cedo na manhã do Spor- ting-Benfica, como se fosse competir. Apareceu em Alvalade de mule- tas e colocou-se na linha de fundo, junto dos fotógrafos, escolhendo providencialmente o meio-campo para o qual os seus colegas atacarão. Também Oliveira sabe a importância dos pequenos gestos num des- porto feito de preparação, mas também de crença e motivação. Ao pas- sar por ele, na sua marcha triunfal, Allison pisca-lhe o olho. Mais do que ninguém, ele sabe como Oli foi importante para esta campanha. Mas agora é dele a tarefa seguinte.

1 «Oliveira: Por cada Leão Que Cair, Outro se Levantará», Gazeta dos Desportos, 24 de Março de 1982. 2 Entrevista do autor com Daniel Reis. 3 «O Jogador Era o Analfabeto Que não Comia com Talheres», Expresso, 14 de Março de 2015.

23 Gonçalo Pereira Rosa

As equipas recolhem ao balneário. Vão equipar-se a rigor, com far- das iguais às que outros heróis usaram mil vezes antes deles. Juntam-se depois na Sala do Jogador, nome pomposo para um espaço de aqueci- mento no interior do velho estádio, forrado a alcatifa verde e com luzes de néon protegidas por rede. É o último refúgio antes da saída para o palco. Ali também se reza aos deuses da bola. Alguns minutos mais tarde, seguir-se-á a apoteose que mais nenhum estádio consegue replicar. Allison nunca gostou que as suas equipas chegassem cedo de mais ao túnel de acesso ao relvado. Para a histó- ria, ficara o seu golpe de génio na final da Taça de Inglaterra de 1969. O Manchester City defrontava o Leicester e Allison exigiu que os seus jogadores aguardassem três minutos no balneário, obrigando o adver- sário a esperar por eles. Depois, ordenou-lhes que entrassem no túnel martelando com as botas no cimento e com os olhos focados no rel- vado. «Numa final, ganha por norma a equipa que está a olhar em frente no túnel. A cheirar o ambiente, como se fosse dona do estádio. Os que vão perder concentram o olhar nas botas», contou num dos seus livros sobre futebol1. Na antecâmara do jogo de hoje, Allison quer que os jogadores do Sporting vinquem explicitamente a posse do seu território, como leões em fúria. Aprendeu depressa as forças e fragilidades emocionais de um clube tão especial, este clube pelo qual se apaixonou mal chegou a Lis- boa e cujo equipamento lhe faz sempre lembrar o seu venerado Cel- tic2, o primeiro clube britânico a vencer a Taça dos Clubes Campeões Europeus em 1967. Os jogadores voltam ao relvado pelos mesmos túneis paralelos que os levam ao balneário. Alertada pelos jovens de fato de treino branco colocados à boca dos túneis, a multidão produzirá uma cacofonia incom- parável quando os jogadores do Sporting entrarem em campo. Lide- rados por Ademar e Manuel Fernandes, onze homens equipados vão

1 Tossel, op. cit., pp. 168-169. 2 «Atacando ou Defendendo, tanto Faz. Gosto É de Ganhar os Jogos Todos», Gazeta dos Desportos, 12 de Agosto de 1981.

24 Big Mal & Companhia irromper a galope, dispostos a tudo e convictos da sua superioridade. «A entrada em campo era especial», conta António Oliveira. «Sabe que eu e o Meszaros éramos sempre os últimos desse pelotão, quase com dez metros de atraso face aos outros? Ficávamos no túnel a dar a última passa no cigarro. Eu puxava a última vez, atirava o cigarro para o túnel e sprintava para apanhar os outros. O Meszaros ainda fazia pior: che- gou a levar o cigarro escondido na luva, chegava à baliza, dava uma última passa dissimulada e apagava o cigarro no poste!»1 Segundos depois do onze leonino, reentrarão em campo os jogado- res adversários e a alegria transformar-se-á em ódio. A vaia monumen- tal entrará pelos tímpanos e ali ficará durante segundos que parecerão horas. Os onze jogadores do Benfica sentir-se-ão minúsculos, peregri- nos em terras profanas. Minutos antes do início da partida, a multidão estará fatigada pelo ziguezague emocional a que foi sujeita. Mas isso será dentro de minutos. Por ora, Allison caminha pensativamente atrás da sua equipa em direcção ao túnel. Distribui mais beijos e pondera o que vai dizer aos jogadores nas cabinas, segundos antes da reentrada em campo para aquela que será uma das batalhas da sua vida. Para trás, ficaram dez meses de trabalho e de refutação das baixas expectativas com que foi acolhido. De cumplicidade com os jogadores. De estranheza face aos dirigentes e à sua postura mista, que o levará mais tarde a queixar-se destes homens que parecem preferir uma derrota das suas cores para provar um ponto pessoal. Parece já distante a manhã de Junho de 1981, quando aterrou neste país e percebeu que estava a replicar em Lisboa o mesmo ciclo que cumprira em Manchester no início dos anos de 1970. Como em Manchester, foi escolhido pelo clube com menos adeptos da cidade, mas com tradições mais genuínas e com um compromisso mais duradouro com o belo jogo, com o futebol de ataque e com a ideia de que o público pagante merece de uma equipa de futebol o envolvi- mento sem reservas com os golos. Como em Manchester, combateu de

1 Entrevista do autor com António Oliveira.

25 Gonçalo Pereira Rosa facto – com palavras e resultados – o mito de que o rival da cidade tinha mais panache, um compromisso mais firme com o futebol romântico. Como em Manchester, habituou-se a ver nas ruas e jardins da cidade as cores do adversário com mais frequência do que as suas (ao ponto de haver mais adeptos do United do que do City na própria direcção do clube azul). Como em Manchester, habituou-se a ver actos de loucura nos adeptos da sua equipa, como na ocasião em que se perdeu a cami- nho do estádio e foi levado em procissão por um adepto que esqueceu todas as obrigações para poder conduzir o inglês a Alvalade. Como em Manchester, apostou a reputação em como conseguiria inverter a ordem das coisas, derrotando o rival e criando uma superequipa de futebol, capaz de persistir na memória colectiva durante três décadas. Como em Manchester, cumpriu todas essas metas1. E foi amado por isso.

1 Tossel, op. cit., p. 119.

26