Revista Linguagem & Ensino https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/rle/index Pelotas, v. 23, n. 4, OUT-DEZ (2020)

Políticas linguísticas na área indígena dos Karipuna do Amapá: o caso do kheuól

Romário Duarte Sanches1 Kelly Cristina Nascimento Day2 Universidade do Estado do Amapá, Macapá, AP, Brasil

Resumo: Este artigo apresenta as políticas linguísticas in vitro e in vivo nas aldeias indígenas do povo Karipuna do Amapá, localizadas na região fronteiriça entre Brasil e Guiana Francesa. Como referencial teórico, adotam-se conceitos e questões amplamente discutidos por Haugen (1972), Rousseau (2005), Calvet (1996), Shohamy (2006), Spolsky (2004), Robillard (1997), entre outros, relacionados ao campo de políticas linguísticas, com destaque para aquelas destinadas às populações indígenas brasileiras. Os resultados apresentados provêm da análise de dados quanti-qualitativos coletados por meio de questionário sociolinguístico aplicado a 36 indígenas bilíngues (falantes de português e kheuól) da etnia Karipuna do Amapá. A partir desses dados, foi possível constatar quais políticas são reivindicadas ao poder público e quais estão sendo implementadas pela comunidade em prol da manutenção do kheuól nas comunidades Karipuna. Palavras-chave: Política linguística; Kínguas minoritárias; Língua kheuól.

Title: Linguistic policies in the indigenous area of the Karipuna do Amapá: the case of Kheuól Abstract: This article presents in vitro and in vivo linguistic policies in the indigenous villages of the Karipuna do Amapá people, located in the border region between and French Guiana. As a theoretical framework, concepts and issues widely discussed by Haugen (1972), Rousseau (2005), Calvet (1996), Shohamy (2006), Spolsky (2004), Robillard (1997), among others, related to the field of linguistic policies, with emphasis on those selected for Brazilian indigenous. The presented results provide analysis of quantitative and qualitative of data collected through a sociolinguistic questionnaire applied to 36 bilingual indigenous (Portuguese and Kheuól speakers) of the Karipuna do Amapá ethnic group. From these data it was possible to verify which policies are claimed by the public authorities and which are being implemented by the community in favor of maintaining the kheuól in the Karipuna communities. Keywords: Linguistic policy; Minority languages; Kheuól language.

1 Doutorado em Letras (UFPA), Professor da Universidade do Estado do Amapá (UEAP). Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0571-303X. E-mail: [email protected]. 2 Doutorado em Estudos da Linguagem (UFF), Professor adjunto da Universidade do Estado do Amapá (UEAP). Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2077-7832. E-mail: [email protected]. Políticas linguísticas na área indígena dos Karipuna Romário Duarte Sanches do Amapá: o caso do Kheuól Kelly Cristina Nascimento Day

Introdução

Historicamente, as línguas têm sido usadas como instrumento de dominação sociopolítica dos povos. Na constituição da sociedade brasileira, essa realidade não foi diferente. As populações indígenas brasileiras foram alvo de inúmeros atos de políticas linguísticas, oficiais ou não, desde o período colonial e continuam a sê-lo. Das políticas de catequização, integração, até a formatação da educação bilíngue na constituição de 1988, as iniciativas políticas tiveram como objeto de alcance as línguas utilizadas pelas comunidades indígenas, sua transmissão, normatização ou mesmo o apagamento delas. Nos últimos 30 anos, especialmente após a promulgação da Constituição Federal de 1988 e posteriormente à Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996 - LDB (9394/96), as línguas indígenas brasileiras, em que pese à alta vulnerabilidade em que se encontra a maioria delas, têm registrado movimentos políticos-linguísticos diversos, conduzidos em muitos casos por iniciativa das próprias comunidades autóctones, na busca da reafirmação de suas identidades culturais através da revitalização de suas línguas. Nesse âmbito, inclui- se, a título de exemplo, a cooficialização3 de diversas línguas indígenas, particularmente na região amazônica. Tais políticas, denominadas linguísticas são, antes de tudo, atos sociais que visam regular o uso das línguas em uma comunidade, região ou país de modo incitativo ou por imposição. Como parte da história social de um povo (HAMEL, 1996), as políticas linguísticas podem tanto originar-se de iniciativas autorregulatórias como provir da intervenção do Estado. Nesse sentido, “toda forma de decisão tomada por um Estado, por um governo, por um agente social reconhecido ou revestido de autoridade, destinada a orientar a utilização de uma ou de várias línguas sobre um dado território (real ou virtual) ou regulamentar o seu uso” (ROUSSEAU, 2005, p. 58) é um ato de política linguística. Nesse âmbito, este artigo discute as políticas linguísticas em voga para as minorias indígenas brasileiras e aborda, em particular, as políticas in vitro e in vivo (CALVET, 2007) nas aldeias indígenas dos Karipuna do Amapá na região fronteiriça entre Brasil e Guiana Francesa. O objetivo principal deste estudo é mostrar as iniciativas utilizadas pelos indígenas, nas diferentes comunidades, para manter o uso do kheuól, como língua nativa dessas comunidades, partindo do pressuposto que tais políticas dependem do grau de vitalidade dessa língua e das atitudes e representações dos falantes para com ela (FISHMAN, 1996). Assim, apresentamos primeiramente uma breve revisão conceitual sobre Política e Planificação Linguística com foco em noções de políticas in vivo e in vitro (CALVET, 2007), bem como de planificação de corpus e de status linguístico (COOPER, 1989) em direta correlação com as políticas direcionadas às minorias linguísticas indígenas brasileiras. Em seguida, apresentamos os povos indígenas da região do Oiapoque, no Amapá, descrevemos

3 Dados do IPOL apontam que até 2014, (7) sete línguas indígenas foram declaradas línguas cooficiais em 5 (cinco) municípios brasileiros: Tukano, Neengatu e em São Gabriel da Cachoeira no Amazonas; Guarani em Tacuru (MS), Akwê Xerente em Tocantínia (TO), Mucuxi em Bonfim (RR) e Wapichana nos municípios de Bonfim e Cantá (RR). Dados disponíveis em: http://ipol.org.br/lista-de-linguas-cooficiais-em-municipios- brasileiros/. Acesso em 16 abr. 2020.

Linguagem & Ensino, Pelotas, v. 23, n. 4, p. 1317-1339, out.-dez. 2020 1318 Políticas linguísticas na área indígena dos Karipuna Romário Duarte Sanches do Amapá: o caso do Kheuól Kelly Cristina Nascimento Day o método de pesquisa aplicado a este trabalho, considerando os procedimentos de análise, e, por fim, são apresentados os resultados quanti-qualitativos e a discussão empreendida em torno das políticas in vivo e in vitro observadas nas e pelas comunidades Karipuna para a preservação do kheuól.

Políticas linguísticas para os povos indígenas do Brasil

Atualmente, com base nas diretrizes do Inventário nacional da Diversidade Linguística (INLD), Brasil (2014), o Brasil possui como línguas faladas, além do português e suas variedades, mais de 200 línguas, somando-se as línguas indígenas, de imigração, crioulas e de sinais. Por outro lado, o Censo Demográfico de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), registrara a existência de 274 línguas e cerca de 300 etnias. Tais dados, se por um lado exibem a dimensão da diversidade linguística brasileira, por outro permitem inferir a existência de políticas linguísticas diversas no processo de expansão da língua portuguesa e de extermínio de inúmeras línguas indígenas, o que supõe inevitavelmente conflito linguístico entre povos de maior e menor status social, político e econômico dentro do território nacional. Tradicionalmente, intervenções linguística