UMA ARA A HÉRCULES

Lindoso — Ponte da Barca

Carlos Alberto Brochado de Almeida

Povoação típica do Minho inte- atingiria , Braga e o rior, S. Mamede de Lindoso C) litoral. Sofreu, através dos séculos, possui dois belos ex-libris: os toda a sorte de vicissitudes exten- típicos espigueiros e o castelo. sivas aos demais castelos de fron- Este, erguido num pequeno cabeço teira: reconstrução e apetrecha- à entrada da povoação, foi man- mento em tempos de guerra, semi-

dado construir por D. Dinis em -abandono e ruímento em tempos 1287 (*) com a finalidade de travar de paz. Ao longo dos seus muros as incursões castelhanas através bem visíveis estão as mazelas do vale do Lima. É que, flanqueada havidas com as sucessivas repara- a fortaleza estrategicamente colo- ções. Apesar de tudo, algo ficou cada sobre a única estrada natural da primitiva construção. Algumas da região, o invasor facilmente fiadas de pedras sigladas e uma ou

C1) Foi concelho a quem D. Manuel concedeu foral em 5 de Outubro de 1514. (2) P. Carvalho da Costa, Chorografia Portuguesa, T. I, Lisboa, 1706, pág. 241. 168 PORTVGALIA

outra porta de formato ogival ates- A ara votiva, em granito gra- tam a presença dos últimos reina- nuloso da região, está bastante dos da dinastia afonsina. mutilada. Do primitivo fóculo ape- Foi numa arrecadação da resi- 3 nas resta uma pequena cavidade dência paroquial ( ), que encontra- circular.

Dimensões: 58 X 22 X 20 cm Campo Epigráfico: 30 X 21 cm Moldura Superior: 22 X 9 cm Altura das Letras: 4 cm mos o monumento epigráfico em O campo epigráfico, delimitado questão juntamente com alguns sar- por duas molduras, está ligeira- cófagos medievais, dois dos quais mente rebaixado. Das molduras, só com tampas decoradas em estola. a superior se conserva, pois a outra

(3) Agradecemos ao Rev. Pároco as facilidades concedidas para o estudo dos objectos em questão. VÁRIA 169

quase desapareceu com a mutila- da vizinha povoação castreja de ção da base. Cidadelhe (5), onde há evidentes A inscrição é composta unica- sinais de romanização. mente pelo teónimo HERCVLE Apesar do diminuto número de com nexos em HE e VE. Não sabe- epígrafes recenseadas, o culto a mos se o texto teria mais linhas. Hércules no Noroeste Peninsular O normal seria seguir-se o dedi- é uma realidade. Para além da cante ou dedicantes, os motivos ara agora conhecida, há uma da dedicatória e a fórmula consa- outra originária de Guimarães (6), cratória, como aliás sucede nou- uma estatueta, em bronze, de tras epígrafes já conhecidas deste 7 4 Santa Tecla ( ), representando o deus ( ). Mas não é fácil afirmar- herói, barbado e nú, com dia- se que existiram. O realce que dema na cabeça e na mão fizemos ao campo epigráfico, na esquerda os três pomos de ouro da mira de detectarmos possíveis lenda das Hespérides (8) e a ins- letras, resultou infrutífero. Desco- crição do farol romano da Coru- brimos unicamente um sinal cruci- nha, mais conhecido por Torre de forme ao meio e perto deste, vestí- Hércules f). gios de picagem algo informe. Sem Fora da zona castreja, as ins- dúvida que a ara sofreu os efei- crições dedicadas a Hércules são tos cristianizadores, mas estes não bem mais numerosas, cerca de são suficientes para explicar a vinte e quatro e concentradas na ausência de letras na parte infe- 10 rior do campo epigráfico. Daí que, Lusitânia e Bética ( ). Era aliás seja de admitir, que a inscrição nesta província, numa ilha junto a constasse unicamente do nome Cádiz, que se situava um famoso do deus, o que aliás não é caso santuário — o HERAKLEION — raro. dedicado ao herói ("). Qual a proveniência da ara? A introdução e difusão do culto Não o sabemos. É possível e à ima- a Hércules no mundo romano gem do que aconteceu com os sar- está intimamente ligada à pro- cófagos, que tenha sido encontrada gressiva orientalização religiosa do quando das remodelações havidas Império, onde e após o século I, há na igreja paroquial e respectivos uma extraordinária difusão de cul- tos orientais em Roma e nas pro- acessos. Mas também não nos 12 repugna que tenha sido trazida víncias ocidentais ( ). Desta se

(4) José Vives, Inscripciones Latinas de Espana Romana, T. I, Barcelona, 1971, págs. 29/31. (5) Abel Viana, Justificação para um Cadastro de Monumentos Arqueológicos para o Estudo dal Arqueologia do , in Anuário do Distrito de , Viana do Castelo, 1932. Embora de épocas mais recuadas, é de todo o interesse recordar, que no aro da freguesia, existe um importante complexo de gravuras rupestres na Bouça do Colado (Parada^Lindoso) e que foi objecto de uma comunicação ao IV Congresso Nacional de Arqueologia (Faro, 1980), por António Martinho Marinho. ■(Ç) Mário Cardozo; Catálogo do Museu de Arqueologia da Sociedade Martins Sarmento, Guimarães, 1972, pág. 47. (7) J. Leite de Vasconcelos, Religiões da Lusitânia, Vol. III, Lisboa», 1910 pág. 289. (8) Filhas de Atlas e de Hespéris, viviam num jardim de maçãs de ouro, cuja entrada estava guardada por um dragão. Hércules matou-o e apoderou-se de todas as riquezas. Edith Hamilton, Mythologie, Marabout Université, Bélgica, 1962, págs. 191/206. (9) F. Acufia Castroviejo, Catálogo Monumental Selectivo de Ia Galicia Actual en Época Romana, in La Romanizacion de Galicia, Cuadernos de Sargadelos, n.° .16, págs. 123 e segs. (10) José Vives, op. cit. C11) EstrabãOj, Geografia, III, 5, 3. (12) O culto de Sérapis, Dea Caelestis, Némesis, Mithras e outros tiveram certa projecção na Península Ibérica. Cons. A. Garcia y Bellido, Les Religions Orientales dans VEspagne Romaine, Leiden, 1967. 170 PORTVGALIA encarregam os mercadores (sírios, bélica. Tal facto está mais do que egípcios ou gregos) e os soldados provado nas várias epígrafes espa- das legiões, em contínua desloca- lhadas pelo Império, onde aparece ção pelas várias parcelas do Impé- sob a denominação de «Invictus» rio (13). A estes cultos aderem ele- ou de «Victor» (1S). Daí que e à mentos de todas as camadas so- semelhança dos seus homólogos ciais, desde o Imperador (14) aos «Taranis» e «Gram» (20), com escravos e concorre em plano grande projecção entre as divinda- de igualdade com a religião tra- des guerreiras celtas e germa- dicional e com o próprio culto nas (21), ocupe igualmente, desta- ao imperador. Melhor do que cado lugar no panteão guerreiro estas, as religiões orientais com castrejo, compartilhando-o com os seus mistérios, iniciações, puri- Marte e algumas divindades femi- ficações e exigências de vida supe- ninas (22). rior (15), falam à sensibilidade, Em paralelo com actividade ao sentimento religioso do romano, bélica, está a propensão para a ávido de soluções para os grandes defesa da saúde, dos homens e problemas do Homem e do Mundo das casas. Epítetos como «Saluta- e angustiado perante a mística da ris», «Salutifer» e «Tutor» pre- salvação. Depois, as manifestações sentes em várias epígrafes, são exteriores como procissões, dan- bem a prova de que os seres huma- ças, cânticos, música e representa- nos viam no filho de Zeus e de ções dos «mistérios» destas reli- Alcmène um refúgio contra as giões (16), exercem, indubitavel- vicissitudes da existência. mente, uma certa atracção nos Se o Marte galaico e as divin- romanos tão sedentos de emoções dades a si associadas são persona- e espectacularidade. lidades ligadas à actividade guer- Esquematicamente pode-se atri- reira, o que aliás acontece com os buir a Hércules duas funções: a homólogos celtas, germanos ou guerreira e a protectora. romanos (23), já Hércules é bem Tal como Marte (17), muito mais difícil de enquadrar por falta venerado entre os povos do de documentação, inclusive a epi- Norte (18), também Hércules é gráfica. Se as duas aras conheci- uma divindade ligada à causa das são omissas quanto à função,

C13) Mareei de Gray, La Religion Romaine, Paris, 1971, págs. 78/80. Ò4) Alguns exemplos: Calígula inicia-se no culto de Isis, Cláudio interessa-se pelo culto de Cibele, Nero pelo culto de Mithra, Vespasiano pelo de Sérapis. <15) Macei le Gray, op. cit. (!«) Idem. C17) Para um melhor conhecimento de Marte e seus associados na zona castreja, aconselhamos, entre outras,, a consulta das seguintes obras: — José Maria Blázquez, Dicionário de Ias Religiones Prerrommas de Hispânia. Madrid, 1975. — José Maria Blázquez, Las Religiones dei Área Noroeste de Ia Península Ibérica en Relacion con Roma, in Legio VII Gemina, Leon, 1970. — José D'Encarnação, Divindades Indígenas sob o Domínio Romano em , Lisboa, 1975. — J. C. Bermejo Barrera, La Sociedad en Ia Galicia Castrena, Santiago de Compostela, 1978. (is) Estabão. op. ctt., III, 3, 7 (155). (19) J. Leite de Vasconcelos,, op. cit, pág. 287. (20) «Gram» é representado com uma maça na mão e «Taranis» com maça e raio. Em moedas do século I, Hércules, para além da maça traz na cabeça uma pele de leão. (21) Jan de Vries, La Religion des Celtes, Paris, 1973, pág. 69. — Georges Dumézil, Mythe et Epopeé, Paris, 1968, pág. 266. O22) J. C. Bermejo Barrera, op. cit., pág. 49. (23) Idem. VÁRIA 171

já o ex-voto de Santa Tecla per- tocracia militar ou com ela rela- mite tirar ilações algo diferentes. cionada. É a imagem do herói, o maior Poderíamos também opinar que dentre os homens, possuidor de sendo como o irlandês Chòchu- lainn, o representante da essência força combativa e que arroja- 26 damente se apodera dos pomos da função guerreira ( ), encon- trasse fácil acolhimento no mundo de ouro do jardim das Hespéri- 27 des, símbolo do ambicionado romano ( ) e muito em especial, Paraíso. Não há aqui uma atitude entre os povos do Noroeste Penin- sular, onde o pugilato, a corrida, belicosa, mas a imagem do 2S Homem, que obstáculo após obstá- a escaramuça e o combate ( ) determinavam o valor pessoal, culo, procura atingir a espirituali- característica aliás comum, às dade que lhe assegurará a imorta- demais sociedades indo-europeias. lidade (**)• Mas a ausência de dedicante na Se consultarmos as restantes ara de Lindoso e a truncada ins- epígrafes peninsulares, o pano- crição de Guimarães (2&) não per- rama pouco se modifica. Unica- 25 mitem mais conclusões que aque- mente três ( ) apresentam clara- las que a suposição possa aliciar. mente a denominação de «Invicto», Cronologicamente, embora nos o que, convenhamos, é muito faltem muitos dados, mas aten- pouco para se concluir que o semi-- dendo ao tipo de letra e à difusão deus, entre nós, é uma divindade das doutrinas orientais na Penín- preferencialmente guerreira e os sula, é possível atribuí-la dos finais seus ofertantes oriundos da aris- do século I ao século II.

(24) Jean Chevalier, Alain Gheebrant, Dictionnaire des Symboles..., Sehers, Paris, Vol. H a PIE, 1974, pág. 25. <(25) São elas: a do Castro dei Rio Córdova, e as de Martos (Cabezon) José Vives, op. cit, pág. 31. (26) Jean Chevalier, op. cit., pág. 23. (27) O «tria nomina» de algumas epígrafes dedicadas a este deus, denunciam o cidadão romano ou indígena romanizado. ^s) Estrabão, III, 3, 7 (.155). ■(*») .../...IENTIVS 1/ [ul] IVS HERC/ [uli]. Mário Cardozo, op. cit., pág. 47.