EDIÇÃO COMEMORATIVA DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

Nº 50 OUT–DEZ 15

DOSSIÊ: GREENAWAY & EISENSTEIN ::: PASOLINI ::: GRANDE OTELO MILTON HATOUM E GUILHERME COELHO MANIC STREET PREACHERS CARLOS VERMUT, O QUERIDINHO DE ALMODÓVAR

Dira Paes Sem Tabu ::: Cinema de Rua ISSN 2359-6473 Um Táxi em Teerã ::: Betinho Vive 5 0 Malala ::: O Tempo do Tempo 9 7 7 2 3 5 9 6 4 7 0 0 7 1 1 O Estação comemora 30 anos com

programação diversificada + salas + filmes inéditos mostras revista TABU + clássicos + café

e muito mais para você!

Anuncie no Cinema. Anuncie no Estação. [email protected] www.grupoestacao.com.br fb.com/CircuitoEstacaoNET SUMÁRIO

5 Editorial

6 É tempo de... efemérides comemorativas

8 Entrevista ::: Dira Paes TABU ::: Nº 50 OUT–DEZ 15

12 Sala 1 ::: Salas de cinema, ontem e hoje

Diretor-geral: Marcelo França Mendes 16 O tempo do tempo Editor: Ricardo Cota Produção editorial e gráfica: 18 Mete a faca em... ::: Hal Hartley Michelle Strzoda | Babilonia Cultura Editorial

Projeto gráfico: Tita Nigrí 21 Totem ::: Pier Paolo Pasolini Diagramação: Babilonia Cultura Editorial Jornalista responsável: Michelle Strzoda 22 Ensaio ::: Irã em dois tempos (MTB 27339/RJ)

Colaboradores: Adriana Carranca, Ana Luiza Beraba, Andréa Cals, Antonio Rodrigues, Atila Roque, Breno 25 Ensaio ::: Malala, a heroína dos nossos tempos Lira Gomes, Bruno Ruivo, Carlos Reviriego, Cicero Rodrigues, Dodô Azevedo, Erick Hewitt, Fabiano 29 Canosa, Jessé Andarilho, Julia Levy, Luiza Gannibal, Dossiê ::: Quebrando o TABU de Eisenstein Marcelo Janot, Rafael de Luna Freire, Renata Corrêa, Ricardo Favilla, Rodrigo Fonseca, Thiago 34 Artigo ::: ‘Betinho’ hoje e sempre Jatobá, Tiago Lacerda, Victor Lopes Agradecimentos: Alberto Shatovsky, Aline 38 Casagrande, Fábio Vellozo, Fabio Vieira, Hernani Intercâmbio ::: El Mundo Heffner, Liliam Hargreaves, Luiz Eduardo Souza, Lula Vieira, Paulo Gontijo, Raquel Loureiro 42 Entrevista ::: Milton Hatoum e Guilherme Coelho Imagem da capa: Acervo Estação 46 Ensaio ::: Grande Otelo

51 Sala 2 ::: Versos de um passado presente

53 Ensaio ::: Geek is the new black

Rua Voluntários da Pátria, 35 Botafogo . Rio de Janeiro . RJ . 22270-010 55 Resposta ::: Jessé Andarilho responde ao Tempo Para assinar ou anunciar: www.grupoestacao.com.br/tabu [email protected] 56 Viewfinder 21. 3174-5499 TABU No 50 OUT–DEZ 2015 58 ISSN 23596473 REcine, iê, iê, iê Distribuição Gratuita Esta edição comemorativa de TABU foi impressa 59 Fac-símile TABU na Edigráfica, em outubro de 2015, em papel jornal 49g. Tiragem: 20.000 exemplares 60 Histórias do Estação ::: Eu queria ver ‘Iracema’

62 Cartum

62 Playlist Capa da primeira edição da TABU, em 1986

5 CINEMA É TEMPO inema é recorte. Tempo que reaviva Betinho e se auto-reflete C Recorte que começa no roteiro, na nas indagações do documentário de Adriana Dutra concepção do filme que ainda será. sobre o tempo que o tempo tem. Recorte no enquadramento. Tempo que se faz linguagem no encontro singu- Recorte no plano. lar da câmera de Guilherme Coelho com a literatura Recortes que se juntam na ilha de edição; mo- de Milton Hatoum. viola, em outros tempos. Tempo que se fez e se perpetua há muito tempo, Recortes que se agrupam na tela e se reagru- numa galáxia distante. pam na cabeça do espectador, quando o filme já Tempo, enfim, que reacende o cinema seminal não é presente. de Eisenstein em texto para ficar no tempo de An- Cinema e tempo são temas desta TABU #50, tonio Rodrigues, diretor da Cinemateca Portuguesa, uma edição comemorativa. sobre Que viva Eisenstein! 10 dias que abalaram o Tempo que se faz homenagem, nas inúmeras México. comemorações aqui reunidas. Tempo que termina para esta briosa equipe A começar pelos trinta anos do Grupo Estação e, assim esperamos, se descortina agora para o e os sessenta da Cinemateca do Museu de Arte prazer do leitor. Moderna do Rio, neste ano em que Estação Net e Cinemateca assinam parceria histórica. RICARDO COTA Editor

5 É tempo de... efemérides comemorativas É TEMPO DE... EFEMÉRIDES COMEMORATIVAS

120 ANOS 60 ANOS DE CINEMATECA 100 ANOS DA PRIMEIRA PROJEÇÃO DO MAM RJ DE GRANDE OTELO

Dez curtas, vinte minutos, 33 espec- Em meio a marcos históricos como o Ator e músico, versátil e multitalento- tadores e ingressos a 1 franco! Desde Pacto de Varsóvia e a posse do pre- so, assim era Grande Otelo. Pequeno sua primeira projeção pública com sidente Juscelino Kubitschek, era na estatura, mas grande na arte da bilhetes pagos, quem diria que terí- fundada, em 1955, a Cinemateca do interpretação, Otelo era conhecido amos, até 2015, 120 anos de muitos MAM RJ. Seus recém-completos pelos colegas por seu caráter dire- trens chegando a tantas outras esta- sessenta anos de atividade incluem to e assertivo. Numa época onde a ções mundo afora, algumas dezenas um sem-número de mostras, ciclos, frequência de negros era proibida de viagens à lua e a outros planetas, festivais, itinerâncias. A Cinemateca em cassinos e casas de espetáculo, histórias de antigas civilizações e também foi responsável pela coleta, Grande Otelo foi o primeiro artista tudo o mais que coubesse na história conservação, recuperação e restau- brasileiro a ir na direção contrária do e trajetória do cinema mundial. No ração de diversos títulos brasileiros preconceito. Interpretava comédias e dramas, mudava roteiros quando seu centésimo vigésimo aniversário, e estrangeiros, tendo como missão julgava necessário e, dizem, era o comemorado no dia 28 de dezembro, preservar e salvaguardar a memória favorito de Orson Welles no Brasil. a sétima arte mostra que, mesmo audiovisual, promovendo a cultura Quando o Estação exibiu a versão com tantas novas telas, a sala escura cinematográfica e as diferentes for- restaurada de Otelo na abertura da continua exercendo encantamento mas de manifestação das imagens Mostra Banco Nacional, no início dos e espanto em plateias pelo mundo. em movimento, além da formação anos 1990, Grande Otelo, identificado de gerações de espectadores para com o título, bateu espontaneamente o cinema brasileiro e mundial. Em na porta do Estação se oferecendo 2015, o Estação depositou na Cine- para apresentar o filme. Como a filha mateca quase mil cópias em 35 mm de Welles estava presente na ses- de filmes clássicos do seu acervo, são, os dois subiram juntos ao palco além de projetores e documentos. numa noite histórica. Há trinta anos, Este ato selou o início da parceria desde sua inauguração, o Estação entre as duas instituições. tem ele e Oscarito como anfitriões privilegiados, que acolhem o públi- co no saguão do Estação Botafogo, na foto icônica que ilustra a capa desta TABU.

6 7 É tempo de... efemérides comemorativas

A telona protagonizou momentos marcantes de atores, guiados por diretores, produtores, entre outros profissionais dos bastidores da sétima arte. Por trás das câmeras, muito trabalho envolvido para movimentar toda a indústria cinematográfica. TABU destaca seis momentos-chave de vivência na trajetória do cinema, que se confundem com a história do Estação

FESTIVAL ‘CARLOTA’ TABU DO RIO FAZ 20 #50

O Festival do Rio tem uma história O cinema brasileiro chega a 2015 No início, um jornal, uma maneira que por muito tempo se confundiu com produção regular, diversidade engajada e divertida de falar de ci- com a do próprio Estação. Em 1989, de realizadores e propostas, boa re- nema, de arte, de entretenimento, de órfão do tradicional FestRio, o Esta- percussão em festivais estrangeiros. sensações e experiências dentro e ção sentiu a necessidade de ter um Este também é o ano que marca o fora da sala escura. Assim nasceu a festival de cinema em suas salas, vigésimo aniversário do filme que TABU, publicação do Estação. Tendo para mostrar filmes que dificilmente inaugurou a chamada “Retomada”: em sua equipe editores e colunistas entrariam em cartaz na cidade. Com Carlota Joaquina, Princesa do Bra- que na época ainda iniciavam sua o patrocínio do Banco Nacional, criou zil. Uma obra ousada em seu idioma trajetória pelo audiovisual, como Da- a Mostra Banco Nacional de Cinema, trilíngue e com bela direção de arte, vid França Mendes e Ivana Bentes, e que em 1996 se tornou MostraRio. incomum para o cinema brasileiro passando pela mão de cinéfilos, pro- Em 1999, com a fusão com o Rio naquele momento. Num cenário fissionais, pesquisadores e diretores Cine Festival, nasceu o Festival do quase inexistente após a extinção como Pedro Almodóvar, eternizado Rio. O Estação esteve por mais de da Embrafilme, em 1990, o filme de pelas lentes de Cicero Rodrigues ao dez anos à frente da programação, Carla Camurati previa um pequeno folhear o tabloide, a TABU cresceu tendo concebido sessões marcantes lançamento, com apenas uma sala e virou revista. Cinquenta números do festival, como a mostra Première no antigo Cine Gávea. No entanto, e muitas histórias depois, estamos Brasil. Hoje, o Estação ainda acolhe os programadores do Estação viram ativos e atentos a tudo que aconte- em suas salas parte da programação o filme e resolveram apostar num ce dentro e fora do circuito cinema- do evento, embora já não faça mais lançamento maior. O desempenho tográfico, proporcionando ao leitor parte de sua organização. do filme no Rio abriu portas para o ainda mais informação, reflexão e resto do país. Carlota permaneceu diálogo. E o melhor: com distribuição por quase por um ano em cartaz no gratuita... é pegar e levar! Estação Botafogo.

Irmãos Lumière: Acervo Cinemateca do MAM RJ; Sessão Cinemateca 1957 no auditório da ABI; Acervo Fabiano Canosa; Acervo Estação; Divulgação; Acervo Estação

6 7 ENTREVISTA ::: Dira Paes SEM TABU por MICHELLE STRZODA e RICARDO COTA

Com trinta anos de carreira e, sobretudo, de cinema, a atriz Dira Paes, paraense radicada no Rio desde os 17 anos, vê com bons olhos a reoxigenação de experimentos no cinema contemporâneo e opina: “Estamos precisando (re)ver o conteúdo. A imagem se popularizou. Todo mundo tem um viés audiovisual. O diferencial é quem pensa cinema, argumento, roteiro”. Daryan Dornelles Daryan

8 9 ENTREVISTA ::: Dira Paes

om três décadas resumidas em 37 longas- financeiramente independente. Meus pais foram co- C metragens, três curtas-metragens, 35 prê- rajosos, modernos, devo muito a eles por confiarem mios, 17 trabalhos em TV, seis peças teatrais e um em mim, me permitirem seguir o que eu queria. Fiz o livro publicado, Dira Paes é dona de uma trajetória teste com o Flavio Tambelini e passei para Ele, o Boto. incomum na dramaturgia brasileira. Começou numa Então, me envolvi com mais maturidade, me vi atriz grande produção internacional, A Floresta das Esme- ali. O José Possi Neto me preparou para o “Floresta”, raldas, e logo em seguida trabalhou em Ele, o Boto, meu primeiro filme, tenho muito a agradecer a ele. de Walter Lima Jr. Nascia ali uma grande atriz. “Não Entrei para a CAL (Casa das Artes de Laranjeiras), descobri o cinema, eu me reconheci no cinema”, diz. com direção de Yan Michalski. Estudei Artes Cênicas Aos 46 anos, em plena forma em corpo e alma, na UNI-Rio. Vivi vinte anos só de cinema. Só em Dira Paes deu à luz Martim, seu segundo filho com o 2004 é que fechei contrato como atriz da TV Globo. diretor de fotografia Pablo Baião, em 24 de outubro. A cada experiência temos um novo olhar, são fases O casal já tem Inácio, de 7 diferentes, produções anos. “Me sinto bem, forte. diferentes. A maternidade mexe com a gente”, afirma Dira, que Como você vê o cinema interrompe a entrevista à “Não descobri o cinema, brasileiro hoje? TABU, por telefone, para eu me reconheci no cinema.” O cinema está tentando abraçar Inácio ao chegar se reinventar. Todo mun- da escola. O primogênito, do hoje tem um viés au- inclusive, foi um dos estí- diovisual. A imagem se mulos de Dira para seguir tentando um segundo bebê popularizou. Quase todas as pessoas hoje trabalham (a atriz teve duas gestações interrompidas, antes de com imagem; o diferencial é quem pensa cinema, recorrer à inseminação artificial), e ela não descarta, argumento, roteiro. Atualmente há uma transição ainda, adotar uma criança. das janelas do cinema, das câmeras. As equipes Dira Paes passou pelas diversas fases do ci- hoje estão muito jovens, há uma reoxigenação de nema brasileiro, da crise do início dos anos 1990, à experimentos. O cinema acelerou muito. Temos que retomada, com grande força das produções. Ela se tirar proveito disso, mas precisamos (re)ver conteúdo. tornou, de certa forma, um emblema do próprio cine- ma. “Há personagens que batem no íntimo. Cinema Diante de tanta diversidade de estilos cinemato- é corpo, gesto, experimentação, entrega”, afirma. gráficos, como é para o ator se recriar a cada novo trabalho? Primeiro você filmou A Floresta das Esmeraldas; Voltei para Belém – onde meus pais residiam – ainda depois, Ele, o Boto. De que maneira este choque, em adolescente. Terminei o curso de Física. Queria uma formas de produzir bastante distintas, influenciou profissão masculina, não me via inserida no universo sua forma de ver o cinema? do Pará. A vida acadêmica me fez bem. Estudar arte “Floresta” foi uma superprodução, foi um conto-de- e dramaturgia é muito bom. Stanislawski é essencial. -fadas, uma primeira experiência cinematográfica Fiz Capitães de areia no teatro. A época que mais hollywoodiana. Foram seis meses de preparação filmei foi entre 1994 e 2004, quando comecei a fazer e tratamento de filmagem. Tive um intervalo entre TV. Foram muitas produções internacionais através 1984 e 1985, e em 1986 vim para o Rio, com 17 anos, da Embrafilme.

9 ENTREVISTA ::: Dira Paes Acervo FabianoAcervo Canosa Dira PaesAcervo

Cena de Baixio das Bestas, de Claudio Assis Acervo Dira PaesAcervo

Em A Floresta das Esmeraldas

Órfãos do Eldorado é uma sonagem interpretada por imersão profunda na cultura Dira) – retratada de forma do Norte do Brasil, sobretu- “Há personagens que batem no bem diferente no livro e no do na cultura simbólica das filme – é a mãe, a amante. lendas e de um tempo pró- íntimo. Cinema é corpo, gesto, Fiz uma preparação com o prio de subjetividade. Como experimentação, entrega.” Tadashi, um mestre. Pude foi sua preparação para explorar gesto, corpo. Ele esse filme? me deixou livre. Dei vida à Preparação é muito importante. O Guilherme Co- Florita que estava na minha cabeça. A casa virou elho foi muito ousado, trabalhou com profundida- um personagem também. O pai morreu e se tornou de. Traduziu em imagens o universo amazônico do a própria casa. Eu precisava encontrar o “assombro” Milton Hatoum. O Arminto (no filme, personagem da Florita, tinha que buscar a ausência da persona- interpretado por Daniel de Oliveira) significa uma gem, coisas não palpáveis. Foi total sincronicidade. busca da identidade, da essência. E a Florita (per- O Guilherme não poupou elementos sobre a cultura

10 11 ENTREVISTA ::: Dira Paes

Cena de Órfãos do Eldorado

Acervo Dira PaesAcervo do Norte. Até as benzendeiras estão no filme. Florita é uma benzendeira, ela “vaga” dentro de Arminto. Tem todo um sincretismo amazônico ali, influências indígenas, do tupi.

O tema desta edição da TABU é o tempo. Diante de sua vasta experiência no cinema e na TV, como você lida com a diferença do tratamento do tempo nos dois veículos, se é que ela existe? A TV está bebendo no que o cinema propõe em rein- venção, troca de meios, experimentação. Um veículo alimenta o outro. Em Amores roubados, o Walter Carvalho (diretor de fotografia) operava a câmera como se fizesse cinema. No Órfãos do Eldorado, o Guilherme Coelho deu uma pausa no tempo: fez quatro cenas por dia, e não oito. Foi ótimo.

Michelle Strzoda é jornalista, editora, tradutora e gestora cultural. Autora de O Rio de Joaquim Manuel de Macedo: Jornalismo e literatura no século XIX (Casa da Palavra | Biblioteca Nacional, 2010), é diretora editorial da Babilonia Cultura Editorial

Ricardo Cota é curador da Cinemateca do MAM RJ

11 Sala 1 ::: Salas de cinema, ontem e hoje

SALAS DE CINEMA, RJ Cinemateca do MAM Acervo ONTEM E HOJE por RAFAEL DE LUNA FREIRE

uando o cinema apareceu no final do sé- Ao longo do século XX, a sala de cinema se Qculo XIX, foi apresentado em espaços de diversificou. Os barracões mais improvisados do entretenimento, como parques de diversões, teatros, cinema silencioso, por exemplo, às vezes mantinham cabarés, museus, feiras e cafés. Com a popularização ligações com esportes populares, apropriando-se das projeções cinematográficas, surgiria também um de espaços como ringues de patinação ou galpões local próprio para essa novidade: a sala de cinema. para o jogo da pelota basca. Em pequenas cidades, Dos salões improvisados e temporários, logo se os salões de bailes viravam cinema nos fins de se- expandiria a sala de exibição permanente e exclu- mana. O modelo do cineteatro, com palco e tela, foi sivamente dedicada à exploração do novo negócio. mais a regra do que exceção.

12 13 Acervo Cinemateca do MAM RJ Cinemateca do MAM Acervo Sala 1 ::: Salas de cinema, ontem e hoje

“Nunca as telas estiveram tão afastadas – e seguras – das ruas. Antes as salas eram instaladas em calçadas movimentadas, onde fosse fácil o filme chegar ao público, e este, ao cinema.”

Viagem por outros tempos e espaços Não apenas para ver filmes Assim como os filmes e a indústria cinemato- As salas de cinema se tornaram corriqueiras pelo gráfica se tornavam mais complexos, as salas mundo. Mesmo em cidades do interior, próximo à de cinema se sofisticaram. Algumas salas brasi- igreja, à praça e seu coreto, ficava o infalível cinemi- leiras chegaram a comportar alguns milhares de nha local. Suas fachadas típicas – com elementos assentos, dando amostra da enorme popularidade característicos como as marquises, letreiros, bi- da diversão – comparável ao futebol, sobretudo lheterias, cartazes – se incorporaram à paisagem numa época em que o ingresso para ambos era urbana, assim como à vida dos moradores. Eram mais acessível à população. Enquanto os filmes símbolos do moderno, mesmo que desconfortáveis convidavam para viagens por outros tempos e e precários. O “escurinho do cinema” tornou-se um espaços, as salas eram os meios de transporte espaço não só de encontro com os filmes – e os para essas fugas da vida cotidiana. A arquitetura sonhos, fantasias, descobertas e reflexões que eles específica proporcionava as condições físicas provocavam –, como dos espectadores entre si. A para que a imaginação viajasse através das ima- poucos passos das calçadas, as salas de cinema gens e sons: a maciez do tapete e da poltrona, o eram um espaço privilegiado de sociabilidade. escurecimento gradual da entrada do cinema até o salão de projeção, o conforto e a estabilidade Cinema de bolso da temperatura proporcionada pelos ventiladores Mas as salas de exibição não ficaram ilesas ao cha- e ar-condicionado. mado século do cinema. A partir do surgimento da

12 13 Sala 1 ::: Salas de cinema, ontem e hoje Acervo Cinemateca do MAM RJ Cinemateca do MAM Acervo Telas afastadas – e seguras – das ruas As salas de cinema ainda existem. Voltaram a se multiplicar no Brasil depois da diminuição radical do circuito exibidor entre o final dos anos 1970 e meados da década de 1990 –, mas hoje em um for- mato diferente, que atende ao público acostumado a ter o máximo de opções e facilidades possíveis para o exercício do consumo. Da tradição de cada cinema ter uma tela, hoje a regra são os complexos multissalas, com a hegemonia do multiplex e suas dezenas de telas. As salas diminuíram de tamanho e se padroni- zaram em busca da eficiência no aproveitamento do espaço e na maximização dos recursos: uma única entrada e lobby e os mesmos caixas, lanchonetes e banheiros para várias telas disponíveis à escolha do cliente. Decoração absolutamente neutra a ser ocupada por cartazes, armações de papelão e mo- nitores divulgando próximo lançamento. Um possível charme, talvez fruto de um olhar nostálgico, é sacrificado em prol da racionalidade econômica e conveniência. Similar ao ato de passe- ar olhando vitrines, o espectador hoje percorre um corredor com salas lado a lado, uma tela atrás da outra, todas ao mesmo tempo iguais e diferentes. televisão, as salas de cinema não eram mais espaços No Brasil, novos cinemas só surgem dentro de exclusivos nem privilegiados para a fruição de ima- shopping centers, sendo um dependente do outro. gens em movimento. Tornaram-se acessíveis no lar Nunca as telas estiveram tão afastadas – e segu- das famílias. Essa tendência somente se acelerou ras – das ruas. Antes as salas eram instaladas em nas últimas décadas, quando as telas (ou monitores) calçadas movimentadas, onde fosse fácil o filme passaram a nos rodear o tempo todo, não apenas chegar ao público, e este, ao cinema. Esquinas e apresentando imagens e sons, mas substituindo pes- praças próximas a pontos de bonde ou estações de soas, fornecendo informações e prestando serviços. trem, por exemplo. O Estação Botafogo, nomeado O que significa atualmente sair de casa para pela proximidade da estação de metrô, atualiza essa ver um filme quando temos um leque extraordinário tendência histórica. de conteúdos audiovisuais disponível ao alcance do Se fosse criada hoje, a Cinemateca do MAM dedo? Qual o sentido de assistir a uma projeção junto dificilmente seria localizada num enorme espaço de outras pessoas quando as telas se multiplicaram, público, sem grades ou muros, como é o Parque do miniaturizaram e se individualizaram ao ponto de Flamengo. Hoje cinema é feito para ir de carro, com cada indivíduo carregar hoje um minicinema no bolso segurança privada e estacionamento garantido, ou sob a forma de um smartphone? Como frequentar um atravessando vários lances de escada rolante ou espaço no qual todos os elementos – da sala escura elevador. ao tamanho da tela – nos convidam a dispormos toda nossa atenção exclusivamente para as imagens Resgate além da fachada e sons à nossa frente, durante cerca de duas horas, Se esse é o modelo de negócio predominante, há es- quando a tendência atual é a simultaneidade de forços para que a realidade não seja pautada somen- ações, sobretudo o uso do celular a todo instante? te pelos ditames do mercado. Iniciativas de resgate

14 15 Sala 1 ::: Salas de cinema, ontem e hoje Acervo Cinemateca do MAM RJ Cinemateca do MAM Acervo

de antigas salas de cinema ameaças pela destruição, abandono ou descaracterização são louváveis. É importante tentar manter em pé não somente as fachadas dos cinemas – utilizadas apenas para conferir uma superficial aparência cultural a outro ne- gócio –, mas seus usos, características e dinâmicas. Alguns dizem que vivemos a revanche de Tho- mas Edison – inventor do quinetoscópio, para fruição individual das imagens em movimento – sobre os irmãos Lumière, criadores das projeções coletivas do cinematógrafo. Embora de fato hoje as imagens sejam consumidas cada vez mais em aparelhos in- dividuais – da TV em cada casa e, depois, em cada cômodo, para o computador e o celular –, elas ainda o são coletivamente, através de insuspeitos encontros e sociabilidades promovidas pelas novas tecnolo- gias. O desafio é resgatar e valorizar o caráter não só coletivo, mas também público e democrático do cinema. Desfrutar de outros modos de se experimen- tar o cinema, que não os ditados pelo mercado.

Rafael de Luna Freire é professor do curso de Cinema da UFF e autor de Cinematographo em Nictheroy: História das salas de cinema de Niterói

15 O tempo do tempo “O tempo é uma invenção de viventes.” ARNALDO JABOR, cineasta e escritor

“Ao vir ao mundo começa a contagem trágica e angustiante. Assim que nasço, que chego à terra, chego para morrer.” THIERRY PACQUOT, arquiteto e urbanista

“O tempo virou minha moeda mais valiosa. É aquela que eu troco, negocio, mas nunca tenho para emprestar. E o meu tempo livre O TEMPO virou uma conta poupança em débito constante.” ADRIANA DUTRA DO TEMPO por RICARDO COTA

Adriana Dutra documentário Quanto tempo o tempo tem investiga as prin- O cipais linhas de nossa consciência sobre o tempo ouvindo aborda o tempo filósofos, físicos, arquitetos, neurocientistas, transumanistas e uma monja budista para realizar profunda reflexão sobre a civilização e o em documentário futuro do tempo da existência humana. com depoimentos O filme parte de um conflito interno da diretora sobre o tema, na mesma linha do anterior Fumando espero, de 2008, em que questionava de pensadores, o seu tabagismo. “Todos vivem correndo contra o tempo, com uma ro- tina intensa de compromissos. Vivemos um tempo diferente. Corremos cientistas e sempre, corremos sem motivo, corremos por nada. É como se o tempo escritores como tivesse ficado mais rápido. Tudo sugere velocidade, urgência, nossas vidas estão sempre atadas ao dever de alguma tarefa. Mas, afinal de Domenico De Masi contas, por que o tempo parece tão curto?”, indaga a cineasta. Assim, por meio de personagens riquíssimos – entre os entrevis- e Marcelo Gleiser tados estão André Comte-Sponville, Domenico De Masi, Nélida Piñon e Marcelo Gleiser –, Adriana encontra uma forma de tentar explicar as diversas relações do ser humano com o tempo. TABU selecionou frases do filme para incitar o espectador a par-

Ricardo Cota ticipar deste debate sobre a aflição contemporânea da luta contra é curador da Cinemateca do MAM RJ o tempo.

16 17 O tempo do tempo

“As novas gerações nasceram num “Hoje em dia é tão fácil se dispersar ambiente em que a velocidade que a ideia de contemplação de algo é absolutamente rápida e as que não seja uma tela à sua frente é transformações instantâneas.” difícil. A gente vive cercado de telas ERICK FELINTO, especialista em Cibercultura por todos os lados.” MARCELO GLEISER, filósofo e escritor

“Estamos em Paris e sabemos ao “A nossa sociedade, a pós-industrial, mesmo tempo o que ocorre em produz sobretudo bens imateriais: São Paulo. Nós nos tornamos informações, serviços, símbolos, contemporâneos dos nossos valores, estética. Portanto, não se contemporâneos.” tem horário de trabalho, não existe o ANDRÉ COMTE-SPONVILLE, filósofo e escritor lugar de trabalho.” DOMENICO DE MASI, sociólogo e escritor “Esse é um tempo diferente, onde o futuro avança no presente e “Se nós formos uma boa ponte o passado fica cada vez mais para conectar o passado e o distante. Vivemos conectados em futuro, os nossos descendentes redes, celulares, computadores, no futuro longínquo lembrarão Facebook, Twitter, conference calls. de nós com saudade e afeto. Compartilhamos nossa privacidade Aqueles macaquinhos sem pelos, com redes sociais. Transformamos linguarudos, de dedos ágeis, esses nossas vidas num broadcasting foram bacanas e serviram de meio alive. Nossa identidade se para a vida prosperar.” multiplica nos fragmentos sem LUIZ ALBERTO OLIVEIRA, físico e cosmólogo poder desligar.” ADRIANA DUTRA, cineasta “O tempo é para ser apreciado em cada instante dele. Às vezes dá certo, “O que é o tempo? Se ninguém me às vezes não dá. Às vezes o dinheiro pergunta, eu sei. Se me perguntam vem, às vezes não vem. Mas viver e eu quero explicar, não sei mais.” com intensidade é a coisa mais SANTO AGOSTINHO preciosa que existe. Apreciando a vida. Dar valor a cada instante da “Alguns filósofos concluíram: existência. Isso é o que vale.” só o presente existe.” MONJA COEN SENSEI, monja budista FRANCIS WOLFF, filósofo e escritor

17 Mete a faca em... ::: Hal Hartley METE A FACA EM... fotos de CICERO RODRIGUES por RODRIGO FONSECA HAL HARTLEY Ícone de autonomia autoral nas telas, Hal Hartley fala das vantagens de ser alternativo e da leveza que é fazer filmes à margem da indústria e do rótulo de indie

ulosos de fome pelas peculiaridades cultu- a condição que Hartley atravessa neste momento Grais dos países que visita, Hal Hartley, um na indústria audiovisual. nova-iorquino de Long Island, com 55 anos de vida Na década de 1990, ele fez parte da novíssima e 31 de cinema, esteve no Festival do Rio 2015 para onda de diretores que renovaram o cinema america- receber um tipo de homenagem com a qual não está no de baixo orçamento, ao lado de cineastas autorais acostumado. Realizador de filmes icônicos como como Todd Haynes (Não estou lá), Paul Thomas Confiança (1990) e Amateur (1994), o cineasta foi Anderson (Boogie Nights), Wes Anderson (Três é a estrela estrangeira mais reluzente da maratona demais) e Todd Solondz (Felicidade). Mas sua ar- cinematográfica carioca, que, entre os 250 filmes tesania e sua busca por se manter alternativo aos pinçados de 65 países, incluiu o premiado Ned Ri- processos padrões do mercado fizeram dele um flen, fruto mais recente da estética hartleyiana. Por animal selvagem acometido de hidrofobia para as este longa, que fecha uma trilogia aberta em As convenções de controle não só de Hollywood mas Confissões de (melhor roteiro em Can- da própria seara indie que ele ajudou a lapidar. nes em 1997) e continuada em (2006), ele Ao longo dos anos 2000, Hartley viu as condi- recebeu o prêmio do Júri Ecumênico no Festival de ções de financiamento que fomentaram os primei- Berlim. Láureas ele tem aos montes, conquistadas ros sucessos dessa turma desaparecerem. Em seu em mostras em Sundance, Tóquio, Catalunha e até lugar, a televisão, com a chamada Era de Ouro dos São Paulo, cidade pela qual é apaixonado. Mas, desta seriados, e a web se tornaram os novos canteiros vez, o tratamento dado a ele no Rio foi uma novida- de invenção para quem busca filmar com liberdade de: aqui, este ano, ele veio dar uma masterclass na e ousadia. São estes os temas da entrevista a seguir. condição de mestre, um galardão inesperado para

18 19 Mete a faca em... ::: Hal Hartley

Qual é o mundo sobre o qual seu cinema fala, desde o seu primeiro longa-metragem, A incrível verdade, de 1989, até a recente experiência , fina- lizado em 2014? Meu universo temático é, será sempre, o da classe operária, não importa que forma este contingente social tome. Hoje em dia, nestes tempos nos quais o marxismo parece ter caído em desuso, o conceito de operariado parece algo superado, uma relíquia sociológica. Mas se você voltar seus olhos para uma faixa que está abaixo das benesses da classe média, dependente apenas de seu trabalho para ter meios de sobrevivência, vai encontrar uma série de hábitos e linguajares muito particulares. Meu cinema tenta garimpar evidências desses modos de falar, desses modos de agir, dessas crenças nas praticidades do dia a dia. A partir daí, eu vejo uma filosofia própria de entendimento do real, do amor, O que representou esse seu olhar na década de 1990, da família. É o meu interesse. quando o cinema que hoje batizamos de indie lapidou suas regras? E de onde vem a sofisticação formal que marca A gente foi encarado como o filãopunk rock da arte seus filmes, sobretudo na escrita de roteiros, numa cinematográfica naqueles tempos, mas há muita dis- dramaturgia pautada por aquilo que a crítica chama torção na percepção do que nós, diretores revelados de razão cínica? nos anos 1990, fizemos. A começar pelo conceito Vem de Molière, que olhava para uma nova burguesia “cinema independente”, rótulo inventado por distri- com o mesmo olhar de fascínio e de estranheza com buidores, e não por críticos. Essa invenção passava que eu vejo as classes operárias, ciente de que para a pelo fato de que levantávamos nossos projetos sem sociologia, desde os anos 1990, este contingente tem um dinheiro de distribuição de um grande estúdio novos rótulos e até novas classificações, dependen- previamente assegurado. A gente buscava dinheiro tes das transformações econômicas. Jamais seria na Europa, em uma rede de pequenos distribuidores capaz de apreciar Godard ou Fassbinder, dois direto- que surgia com fome de filmes com maior ambição res que eu adoro, se eu não tivesse lido as peças de estética, capazes de despertar a atenção de uma Molière e descoberto sua ironia. A minha narrativa plateia de apetite por narrativas e linguagens mais nasce da realidade e se altera sob as influências sofisticadas. Eram eles que nos bancavam, de fora de Molière e de Dom Quixote, com inspiração num dos EUA para dentro. O que descaracterizou esse certo cinema de faroeste dos anos 1930, 40 e 50, de cinema foram as crises do Velho Mundo, que esmore- John Ford e Howard Hawks, sobretudo. Sinto que eu ceram a saúde financeira dos investidores da Europa. estou sempre filmando westerns de alguma forma. Por isso, hoje, muitos de nós fazem crowdfunding para filmar. Por quê, se sua ambientação é sempre urbana, pós- -moderna, não estilizada? Mas houve também distribuidoras americanas nos Porque todo faroeste, no fundo, é uma crônica sobre anos 1990 que flertaram com a produção dita inde- a preservação de uma ética e a construção de uma pendente, como a Miramax, dos irmãos Weinstein. identidade com base no desbravamento de uma Como o senhor encara o papel delas? terra inóspita, como, no caso, o Velho Oeste. E é De fato essas distribuidoras ajudaram a criar um assim que minha câmera se reporta às realidades novo padrão de cinema, mas elas tinham uma pe- urbanas que eu filmo. culiaridade, que vinha da experiência da grande

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indústria: a necessidade de influir criativamente nos rumos da narrativa, no tipo de dramaturgia. Eu fui na contramão disso, por isso sempre preferi me definir como “alternativo”, e não como “independen- te”. Cheguei a dizer não a convites dos Weinstein por saber que teria de descaracterizar minhas próprias ideias para fazer um “filme de Oscar”, puxando mais no sexo, ou mais em certos dramas específicos. Não queria isso. Queria ser eu mesmo, filmar do meu jeito.

O senhor falou em crowdfunding. Por meio desse re- curso foi possível levantar recursos para Ned Rifle. E antes, em 2011 e 2012, sua produtora usou a internet para realizar o filmeMeanwhile . Como funciona essa interação comercial do cinema com a web? Com o avanço dos meios digitais, o barateamento das câmeras e as tecnologias portáteis de celu- lar, todo mundo filma, mas poucos exibem em tela grande. Há muito filme que não consegue ser visto. Se eu vou para a internet e crio uma condição de Eu nunca esperei ser admirado num âmbito mains- visibilidade a partir das redes sociais, garanto que, tream, pois sempre boicotei qualquer movimento pelo menos, o nicho de público mais interessado nas que pudesse me levar a uma situação mais mas- estéticas que eu exploro assistir aos meus filmes. E sificada sem identidade. Mas nunca me rendi ao festivais como o do Rio têm uma função essencial obscurantismo da pretensão de se fazer hermético. para dar publicidade a nossos experimentos. Sobre Sempre busco diálogos com as plateias que tenho, o crowdfunding... eu levantei cerca de 300 mil de tentando mostrar a elas aquilo que herdei da rea- dólares para filmar Ned Rifle via Kickstarter. Tem lidade observando o mundo e registrando sons e gente, como o Spike Lee, que consegue levantar até cenas dos espaços que percorri. Tem uma herança 5 milhões de reais. Não tenho esse cacife todo. Mas outra que eu trago do próprio cinema: eu sou filho consigo tirar uma ideia do papel. E há ainda outra dos filmes de John Ford e Howard Hawks. Estes alternativa hoje: a televisão. homens, diretores, não são associáveis, à primeira vista, aos conceitos padronizados de independência, Falando em TV, o senhor fez recentemente duas pois trabalhavam em estúdios com contratos de séries, My América e Red Oaks. Que liberdade a ferro. Mas a condição de serem parte de grandes televisão assegura? companhias não tolheu a busca de ambos por im- O dinheiro está lá. E está lá também o desejo de se primir personalidade a tudo o que filmavam. Esse apostar em tramas diferenciadas, mais inventivas, é o exemplo que me norteia. que podem ser exploradas de maneira serializada. E eu me encaixei bem nisso porque meus filmes sem- Que lembranças o senhor guarda de suas passagens pre foram muito dialogados, com bastante reflexão: anteriores pelo Brasil? algo típico da teledramaturgia. Para mim, a ficção é Eu fiquei encantado com São Paulo, por seu cos- uma forma de mostrar como pessoas tomam deci- mopolitismo. Tenho uma grande amiga paulista, a sões. E a TV me dá tempo de sobra para explorar o modelo Tatiana Abraços, com quem filmei o longa risco de cada decisão. The Girl From Monday. No Rio, o que me impressiona é a afetuosidade das pessoas. Sua vinda ao Festival do Rio se deu numa condição de mestre do cinema. Que contribuições o senhor Rodrigo Fonseca é jornalista, crítico e autor de Como era triste a acredita ter dado para a arte cinematográfica? Chinesa de Godard

20 21 TOTEM PIER PAOLO PASOLINI por FABIANO CANOSA

Quatro décadas depois de sua morte, Pasolini encontrou em Willem Dafoe seu alter ego Cenas de Pasolini

poeta provocador/comunista/iconoclas- É uma biografia superlativa, e não será a últi- O ta, novelista/cineasta/filósofo, roteirista/ ma vez que Pasolini será retratado no cinema. No ator/teatrólogo tem o seu retrato falado na pele do entanto, esta versão tem um jeito de definitiva. ator que fez Cristo/traficante/paciente de câncer (no Glauber Rocha me contou que, quando co- filme de Babenco que inaugurou a Mostra de Sampa), nheceu Pasolini durante as filmagens de Medea, ator transcendental que empolga pelo seu talento Maria Callas lhe disse olhos nos olhos: “Siete il mio camaleônico. Com efeito, Dafoe e Pasolini redivivo. Orestës”. Eu diria a Willem Dafoe: “Sei il mio Pasolini”. Dirigido por Abel Ferrara, o transgressor nova- Pasolini foi assassinado numa pegação na -iorquino que reinventou o cinema independente praia de Ostia, balneário decadente a mezzora de americano com The Bad Lieutenant, o filme é uma Roma. Imagino que seja “a história oficial” de sua sucessão de tableaux que revelam o cotidiano de morte sem sentido. um artista que peitou a hipocrisia da sociedade A direita italiana rondava o transgressor: há italiana com sua predileção por rapazes robustos algum tempo haviam invadido a sala de montagem da classe operária, a quem ela dava o paraíso da onde editava Salo: Os 120 dias de sodoma, levan- trepada sacana e a possibilidade de uma eventual do a última sequência do filme, e Pasolini teve de se aceitação no ambiente rarefeito das trattorias chi- valer de uma cópia-trabalho para terminar seu filme ques do Trastevere. seminal sobre a lepra do fascismo. As atuações são pristinas, especialmente a de Não crucificaram Pasolini, ele simplesmente suas duas mulheres, a mãe (Adriana Asti, que vimos teve seu cérebro esmagado repetidas vezes pela no filme que catapultou Bernardo Bertolucci no cená- roda de seu próprio carro, dirigido por um michê de rio internacional – Prima Della Revoluzione) e Laura quem se diz que hoje faz o “Tour Pasolini”, mostrando Betti (Maria de Medeiros, com sua piteira e a fica, da aos turistas os lugares onde deu porrada no Mestre, grande intérprete de Brecht, Tennessee Williams e... onde o golpeou com a barra de ferro e onde passou Pasolini), sem falar de seu samurai mais querido o carro pela sua cabeça, repetidas vezes. Ninetto Davoli, que dá ao filme o momento onírico Assim caminha a des-humanidade. que era parte intrínseca da vida de Pasolini. Fabiano Canosa é curador cinematográfico e produtor cultural

21 Ensaio ::: Irã em dois tempos IRÃ EM DOIS

TEMPOS Dodô AzevedoAcervo

Dodô Azevedo viaja nos táxis da Teerã contemporânea de Jafari Panahi e descobre um Irã cosmopolita e criativo. Em crítica de Táxi, o editor Ricardo Cota vê ressonâncias de Woody Allen e ares de irreverência e frescor no cinema de Panahi

– Por que você não diz que é As dificuldades, as melhores ISTO NÃO É turista? Chega lá e filma tudo. O amigas das soluções. que faz um turista senão filmar Em prisão domiciliar, Panahi tudo o que observa? se transformou, na clandestinida- UM ARTIGO Aterrissei na capital do Irã de, em um cineasta único. Porque com um visto de turista e seis câ- foi obrigado a inventar um novo por DODÔ AZEVEDO meras digitais no dia 10 de março jeito de fazer filmes. do ano passado. Em 2011, produziu Isto não ui para o Irã, a Pérsia, fil- é um filme, coletânea de trechos mar cenas de meu se- F O cineasta é o turista da vida de pequenos filmes feitos com gundo longa, Girassol, vencedor O Irã é um lugar muito seguro celular que retratavam sua ro- do American Indie Fest de 2015. para turistas. Mais seguro, acre- tina na prisão domiciliar. Quan- Tentei três vezes o visto para en- dite, do que Israel, por exemplo. do o governo iraniano cobrou trar no país. Mas para cineastas... – lembrando que Panahi estava – Sou cineasta, posso Jafar Panahi, gênio por trás proibido de fazer filmes –, ele filmar aí? de Balão branco, filme que abriu respondeu. – Não. as portas e os prêmios interna- – Ué, mas isto não é um filme. – Sou jornalista, posso cionais para o cinema iraniano, Eu simplesmente filmei aconteci- escrever daí? que o diga. mentos dentro da minha casa e – Não, já tem uma equipe Após décadas de atividade de minha janela, como um filme. da Globo aqui. Há uma cota. cinematográfica, foi, em 2010 pre- Isto não é um filme foi a sen- – Não sabia que havia uma so por seis anos e banido, proibi- sação do Festival de Cannes do cota. do de exercer qualquer atividade mesmo ano. – Sou professor, posso cinematográfica, por inacreditá- Tendo filmado em Nova York, estudar aí? veis vinte anos. Estocolmo, Acre e Tóquio, posso – Vai demorar. Acusação: fazer propaganda dizer: Teerã é a cidade mais sur- Quando eu já desistia, minha contra o regime dos aitatolás. preendente do planeta. agente de viagens, uma gênia, deu O problema é o maior amigo Na primeira noite, andando a dica: da criatividade. pelas calçadas de Teerã, quase

22 23 Ensaio ::: Irã em dois tempos

A noite ferve. Boates, cafés Descobrir o endereço de Pa- e tudo mais ficam lotados até de nahi tornou-se, então, meu obje- manhã. O movimento é muitas tivo. Eu sabia que meu guia, um vezes maior do que o da noite de simpático iraniano doutorando Paris, por exemplo. E os iranianos em história da arte, não podia ser fervem à noite sem álcool, proibi- envolvido na empreitada, porque do no país há trinta anos. o punido seria ele, não eu. Numa dessas noites, fui a Eu também sabia que não um bar clandestino que se não adiantava procurar no Google. servia álcool, tinha uma banda co- Até porque minha internet esta- ver de Nirvana tocando alto. Rock va sendo monitorada, como é a também é proibido no país. de qualquer estrangeiro. Então E como Panahi, hoje Teerã troquei mensagens inbox com tem uma das cenas roqueiras amigos cineastas independentes mais interessantes do mundo. de todo o mundo. Nenhum deles Não seria assim se o rock havia estado no Irã. Nenhum de- fosse permitido. les havia sido louco o bastante “Panahi também sabia que No quinto dia na cidade fui para arriscar-se. a verdade estava dentro dos advertido a não filmar – e olha Frustrado, esqueci a tarefa. táxis de Teerã. Alugou um que eu era apenas um turista –, E voltei a perambular por Teerã, táxi, escondeu uma GoPro casas pequenas na cidade. É que sempre conversando com os ta- no carro, fantasiou-se para se tratavam de instalações mi- xistas a respeito de suas vidas, litares, que foram picotadas em seu cotidiano lá. enganar a polícia e saiu por pedacinhos, em pequenas casas aí dirigindo e entrevistando misturadas a casas de civis, iden- A “lente” dos taxistas passageiros. Assunto: o tificadas apenas por um pequeno Quase todo o povo iraniano fala cotidiano do Irã moderno.” arame farpado. Tudo para despis- inglês e francês, além do farsi, a tar os poderosos satélites espiões língua persa. me atirei no chão quando vi um americanos. Foi conversando com taxis- grupo de judeus ortodoxos cami- No sexto dia, visitei a Aca- tas que descobri que o farsi foi nhando em minha direção. demia Iraniana de Cinema. E me proibido por quinhentos anos pe- “É guerra”, pensei. lembro de ter chorado de raiva los invasores árabes. Foi conver- Nada, o número de judeus do Brasil. A academia era linda, sando com taxistas que descobri iranianos no país é enorme. O um museu extenso, gratuito e que iranianos não odeiam judeus. número de sinagogas em Teerã didático dedicado ao cinema e Quem não gosta do Estado de é maior do que o número de si- a quem trabalha com cinema no nagogas em São Paulo. Irã. A academia iraniana chega a No dia seguinte saí correndo ser mais completa, além de maior, atrás de gatos de raça que pensei que o Museu do Cinema Alemão, terem escapado de alguma pet em Berlim. shop de luxo. Nada. Eram gatos No fim da visita, você pode de rua. Na Pérsia, todos os gatos tirar foto com uma das 135 per- são... persas. sonalidades do cinema iraniano, No dia seguinte a esse cons- eternizadas em esculturas de tatei que Teerã tem mais Apple cera. Stores do que Nova York. Con- Jafar Panahi não é uma das firmei depois em fontes oficiais. personalidades presentes.

23 Ensaio ::: Irã em dois tempos

Israel é o governo iraniano, elei- lhares de anos atrás, um pedaço saiu por aí dirigindo e entrevis- to em primeiro turno por apenas do povo ariano migrou do Irã para tando passageiros. Assunto: o 36% da população. a Europa. A ausência de sol e o cotidiano do Irã moderno. Foi conversando com ta- frio foram com o tempo embran- Táxi, o filme de Panahi, foi o xistas que descobri que os ira- quecendo a pele, os cabelos e os grande vencedor do Urso de Ouro nianos odeiam são os árabes. olhos dos arianos originais. de Berlim em 2015. Ele, claro, pre- Ué, mas árabes e iranianos não Tantas coisas descobri nos so em casa, não pode receber o são a mesma coisa? Para caras- táxis de Teerã. Filmei todas as prêmio. Contrabandeou o filme -pálidas, são. conversas com uma GoPro. para fora do país. Num pendrive. Foi conversando com ta- Panahi também sabia que a É o que dizem. Há táxis xistas que descobri que toda a verdade estava dentro dos táxis em Teerã que dizem que muitos cultura alemã é descendente do de Teerã. Alugou um táxi, escon- dos passageiros são atores que povo iraniano, que antes de ser deu uma GoPro no carro, fanta- apenas dizem o texto escrito por iraniano era o povo ariano. Mi- siou-se para enganar a polícia e Panahi, o que pra mim torna o filme ainda mais criativo e revo- lucionário. Panahi, ele mesmo, dirige um Há táxis em Teerã que dizem JAFAR PANAHI táxi sob o leve disfarce de óculos e inclusive que setores do gover- boina. Duas câmeras situadas no no iraniano chegam a colaborar DÁ CARONA painel registram as ações. A cada com Panahi. Afinal, que melhor novo passageiro, o cineasta monta propaganda há para um país do A WOODY ALLEN um mosaico da contemporânea que exibir seus gênios, mesmo os Teerã e afirma sua forma de pen- mais controversos? EM SEU ‘TÁXI’ sar o cinema. Dentre os diversos Não importa. O que impor- passageiros que embarcam no táxi ta é que, se a história do cinema por RICARDO COTA de Panahi está um distribuidor de é cheia de histórias de censura, cópias piratas de vídeo que reco- hoje parece que a portabilidade, nhece o diretor e lembra que já foi com iPhones e pendrives, final- áxi’, assim como Isto à sua casa levar filmes como Era mente fez alcançar a maior tecno- ‘T não é um filme e Cor- uma vez em Anatólia e Meia-noite logia já inventada: a capacidade tinas fechadas, é mais uma obra em Paris. infinita de sermos criativos. ilegalmente exportada do cineasta A citação a Woody Allen é sig- A tecnologia, a burocracia, iraniano Jafar Panahi. nificativa. Panahi faz de sua Tee- o Estado parecem não ser mais Como se sabe, Panahi está rã uma Nova York woodyalleniana, empecilhos para que se faça um proibido de filmar e sair do Irã. Ain- com personagens cuja comicidade filme. Parece que agora vivemos da assim, Táxi é o terceiro longa a advém da essencialidade urbana todos em outra prisão domiciliar. romper a barreira geográfica e a de suas vidas. Está mais para as Uma interna. Dentro de nós. ratificar sua desobediência civil. observações debochadas do inte- Vivemos todos presos den- Há quem desconfie da aparen- lectual de Annie Hall do que para tro de nós mesmos, de nosso jul- te “facilidade” com que, mesmo o olhar social e político do similar gamento sobre nós mesmos, de censurado, o artista continua em Ten, filme do conterrâneo Abbas nossa criatividade autocensurada. atividade e evidência no exterior. Kiarostami. Cineastas são os turistas Panahi, no entanto, não está nem Táxi acrescenta irreverência do mundo. Quando deveríamos aí. Seu Táxi sobrevive ao contexto ao cinema de Jafar Panahi, que ser o contrário. deveríamos ser por não se limitar à condição de continua autocentrado e militante. os guias. Os guias turísticos. manifesto. É, antes de tudo, um Mas agora com novos ares. filme de e sobre o cinema. Ricardo Cota é curador da Cinemateca do MAM RJ Dodô Azevedo é filósofo, professor e cineasta

24 25 Ensaio ::: Malala, a heroína dos nossos tempos MALALA, A HEROÍNA DOS NOSSOS TEMPOS

por RENATA CORRÊA Malala Cena do filme uando Joseph Campbell, o estudioso nor- Q te-americano de mitologia que mudou a indústria cinematográfica, lança o icônico livro Herói de mil faces, ele descreve todas as etapas que um personagem deve passar para ser digno de tal título. Entre desafios, apresentações de universos e uma trajetória mítica, uma dessas etapas define finalmente se aquele personagem é apenas mais um, ou alguém especial, The One, aquele que mudará os rumos da história. E essa etapa é a passagem pela morte. O herói deve provar o gosto da mortalidade, estar cara a cara com a finitude e efetivamente mor- rer para renascer como O Escolhido. O diretor Davis Guggenheim segue firme essa cartilha e não quer que o espectador tenha dúvidas a respeito do tipo de ar- quétipo com qual estamos lidando. Malala [no original, He named me Malala] começa com uma bela ani- mação onde é contada a história de Malalai de Maiwand, que em 1880 liderou as tropas afegãs em uma vitória espetacular contra o exército britânico. Malalai, ainda

25 Ensaio ::: Malala, a heroína dos nossos tempos

adolescente, foi atingida e morreu no campo de possui dificuldades de relacionamento e adaptação batalha. Dois séculos depois, um professor e ativista na escola. paquistanês tem a sua primeira filha e a batiza em Em um momento de clareza, Malala diz que homenagem à jovem mártir afegã. Nasce Malala. não é uma exceção, ela é como todas as meninas. Poderia a Malala do século XXI ter um destino E sim, ela é a representante máxima das violências diferente de sua antecessora? Nascida em um mo- que meninas sofrem no mundo inteiro, com estupros, mento de acirramento político, econômico e religioso, mutilações, casamentos arranjados, assassinatos, onde as forças do Talibã se tornam cada vez mais interdições sociais que as impedem de ter acesso poderosas e violentas, oriunda de uma família edu- a direitos básicos, como saúde e educação. Mas cada com fortes convicções políticas e religiosas, de quem é a responsabilidade por meninas esta- Malala parece disposta a construir sua identidade rem sendo mortas, física e simbolicamente através para além de uma menina paquistanesa. dessas violências? A audiência está enfadada dos heróis perfeitos Quando David Guggenhein pergunta ao pai da ficção, preferindo perfis mais controversos e an- de Malala, Ziauddin, quem atirou em sua filha ele gustiados, mas quando surge alguém como Malala responde: “Não foi uma pessoa. Foi uma ideologia”. as coisas mudam de figura. Ela é uma menina, ela Ele está certo, mas, apesar do esforço do filme em é real e aceita o destino desafiando as poderosas deixar claro quem são os mocinhos e bandidos dessa forças antagônicas com a história, não podemos negar serenidade de um Neo, Luke o papel do mundo dito ci- Skywalker ou Katniss Ever- vilizado na construção das deen. Certamente Campbell “O ciclo se fecha: tensões que alimentam e gostaria de estar vivo para armam o fundamentalismo analisar esse fenômeno. Malala tomou para si a islâmico e outros grupos pa- Evidentemente não ramilitares ao redor do globo, saberíamos nada ou quase identidade de Malalai e principalmente em países nada a respeito de Malala em desenvolvimento – tema se o paralelo funesto com a transcendeu. Malala que é suavizado e reaparece a mártir inspiradora afegã sobrevive.” apenas em breves momen- não se realizasse e ela não tos, como quando Malala sentisse, como preconiza têm uma audiência com a regra, o gosto da morte. Barack Obama e questiona Depois de algumas ameaças à sua família, Malala o uso de drones no Paquistão. é baleada na cabeça por um talibã, é desenganada Há cem anos, Bertolt Bretch escreveu a frase: pelos médicos, sofre cirurgias delicadíssimas em Infeliz o povo que precisa de heróis. A humanidade um hospital precário, é transferida para a Inglater- carrega então essa mácula, essa carga do heroís- ra onde à sua milagrosa sobrevivência se seguem mo como função social necessária para curar as meses de intenso trabalho de recuperação de suas feridas da terra, feridas essas que só podem ser faculdades motoras. O ciclo se fecha: Malala tomou curadas bebendo o sangue de quem se dispõe a se para si a identidade de Malalai e a transcendeu. Ma- sacrificar por ela. lala sobrevive. Podemos nos emocionar com a trajetória de A partir daí sua figura icônica serve as mais Malala, e é natural que estejamos todos, em tempos diversas causas, seja pedindo a libertação das me- de violência, atormentados com o que ela represen- ninas do Boko Haram, seja visitando refugiados ta. Mas jamais podemos perder a perspectiva de na Síria. Malala é onipresente no mundo ocidental que uma menina de 14 anos precisou ter o cérebro quando se fala em direitos humanos, igualdade de perfurado por uma bala para termos a sensação de gênero e acesso à educação básica para meninas. que o mundo pode mudar para melhor. É o nascimento do mito e o eclipse da garota, que admira ídolos do críquete, briga com os irmãos e Renata Corrêa é roteirista e escritora

26 27 Ensaio ::: Malala, a heroína dos nossos tempos MEU TEMPO Adriana Carranca Acervo COM MALALA por ADRIANA CARRANCA

eu encontro com Ma- Mlala Yousafzai foi tam- bém o de duas dimensões do tempo: o real e o imaginário. Malala começou a existir para mim nos primeiros rascu- nhos de um livro infantojuvenil que escrevi sobre a menina ex- Assis Brasil. Foi assim que Ma- Agora, aos 18 anos, Malala é traordinária que nasceu em uma lala nasceu para mim, enquanto a mais jovem ganhadora do prê- zona tribal devastada pela guerra, renascia de verdade na cama de mio Nobel da Paz. ousou enfrentar vilões terríveis e um hospital na Inglaterra, país Ela não pode frequentar se tornou a heroína contempo- onde agora vive. locais públicos ou fazer o mes- rânea de um conto de fadas não mo que meninas de sua idade. ficcional. Duas, uma Enquanto as amigas curtiam o Quando visitei o Vale do Numa noite de verão nos Estados verão no hemisfério Norte, Ma- Swat, no Paquistão, dias depois Unidos, quando a encontrei pes- lala estava em Washington para do atentado a tiros encomendado soalmente pela primeira vez, era pedir mais investimentos da Casa pelo Talibã para silenciá-la, Ma- como se tivesse fugido das pági- Branca em educação. Por medi- lala estava em coma e ninguém nas do meu texto para se tornar das de segurança, agentes fede- sabia se sobreviveria. No girar dos de carne e osso. Foi nesse encon- rais acompanham seus passos ponteiros do relógio, enquanto lu- tro emocionante que as duas se 24 horas por dia. O lado esquerdo tava contra a morte no hospital, uniram, a real e a (não menos real) de seu rosto continua paralisado ela se tornava mais viva na me- do livro, tornaram-se uma. Malala pelo tiro disparado em 2012 por mória do vale, nas recordações teve a mesma sensação, ao ob- um integrante do Talibã quase tão das amigas, de vizinhos, parentes, servar lentamente as fotografias jovem quanto ela. Isso lhe impõe professores, colegas de classe; que levei para ela, passando as dificuldades na audição e na fala. nos traços que deixou impres- mãos delicadas sobre elas como Sua vida virou de ponta a cabeça sos nas paredes de seu quarto, na se quisesse agarrá-las e trazê- depois do atentado. Mas uma coi- estante de livros (e prêmios), nos -las para o tempo presente. Eram sa não mudou: sua voz continua muros da escola, nos bancos da imagens da minha visita à sua tão eloquente quanto na primeira sala de aula. Nessa viagem, colhi casa no Vale do Swat, à escola, à vez em que falou em público. os retalhos de sua vivência para casa das amigas – cenas de um “Como o Talibã se atreve a costurar a personagem. tempo que ficou para trás. tirar meu direito à educação?” Ela Nos dois anos seguintes, Por instantes, Malala pa- tinha apenas 10 anos. Aos 12, co- convivi com ela todos os dias, recia não ter se reconhecido na meçou a escrever um blog, que nutrindo sua existência com pa- menina rural, nascida em um se tornou a única janela para a lavras, até que ganhasse contorno território onde as mulheres não tragédia da guerra e acabou pres- nas linhas da ilustradora Bruna têm voz. sionando o governo do Paquistão

27 Ensaio ::: Malala

a agir contra os terroristas que haviam tomado o controle do Vale “Se os terroristas pretendiam do Swat. silenciá-la, conseguiram o Malala era apenas uma me- nina que queria ir para a escola. contrário. A voz de Malala é hoje Aos 15 anos, levou um tiro por de- fender este direito. Num território ouvida por autoridades de todo o onde as mulheres tinham sido si- lenciadas pelo terror, Malala ha- mundo e serve de inspiração para via cruzado um limite perigoso. pessoas de todas as idades.” Mas ela sobreviveu para provar que as palavras são uma arma mais poderosa do que pistolas felizes para sempre. Malala esco- mais novos. “O exercício da paz e Kalashnikovs. Se os terroristas lheu outra narrativa. Não queria se começa em casa”, brincou ela. pretendiam silenciá-la, consegui- casar e depender de um príncipe Malala poderia ser qualquer me- ram o contrário. Sua voz é hoje encantado para ser feliz, mas ir nina brasileira impedida de ir à es- ouvida por autoridades de todo para a escola e traçar sua própria cola pelas balas perdidas que, não o mundo e serve de inspiração trajetória através do mundo de raro, encontram o corpo de uma para pessoas de todas as idades. possibilidades que a educação criança. A diferença entre Mala- apresenta. la e outras meninas que sofrem Uma antiCinderela Ela é hoje disputada pelas com a violência foi a educação, Quando foi retirada do ônibus melhores universidades do mun- que a ensinou desde cedo que os escolar, inconsciente depois do do – Oxford, Harvard, Stanford. pequenos também têm direitos e tiro, Malala deixou para trás um Um feito e tanto para uma menina voz. Com as palavras, ela mudou dos sapatos. A analogia é inevi- que quase morreu porque queria o mundo. E escreveu uma histó- tável: Malala é uma antiCinderela. ir para a escola. ria real que nos permite sonhar. Havia nos clássicos infantis uma Acima de tudo, Malala é mensagem subliminar: às prin- uma garota comum. É fã de Har- ry Potter, fofoca com as amigas Adriana Carranca é escritora e jornalista. cesas frágeis bastava ser uma Colunista dos jornais O Globo e O Estado boa menina e, assim, encontra- sobre meninos (Brad Pitt e Roger de S. Paulo, é autora de Malala, a menina riam um bom marido, o príncipe, Federer são os mais bonitos, em que queria ir para a escola (Companhia das Letrinhas, 2015) com quem se casariam e seriam sua opinião), briga com os irmãos Ilustrações de Bruna Assis Brasil para o livro Malala, a menina que queria ir para escola

28 29 DOSSIÊ

QUEBRANDO O TABU DE EISENSTEIN Cena de por ANTONIO RODRIGUES Que viva Eisenstein! 10 dias que abalaram o México

Antonio Rodrigues, da Cinemateca Portuguesa, apresenta valorosa contribuição à TABU ao contextualizar a aventura cinematográfica de Eisenstein e dissecar a versão iconoclasta e desafiadora de Peter Greenaway em Que viva Eisenstein! 10 dias que abalaram o México

mbora Peter Greenaway não esteja mais dessacralizador sobre o diretor soviético, que depois Eno centro das atenções da crítica, dos dis- de ter sido considerado durante meio século como o tribuidores e dos programadores, como foi o caso igual de Shakespeare e Leonardo Da Vinci conheceu do final dos anos 80 ao final dos anos 90, continua um inevitável purgatório nos anos 80, antes de ser muito ativo, fazendo essencialmente filmes nasci- reposto no seu devido lugar, que é entre os primeiros. dos de projetos pessoais, que lhe interessam. Mas O humor de Greenaway, que alguns não conseguiam o diretor inglês voltou ao centro das atenções, pois ver nos seus filmes mais famosos, por debaixo da acaba de lançar um filme sobre as aventuras e des- sua capa de erudição e de uma certa sobranceria, é venturas de Sergei Eisenstein durante a sua estadia um dos elementos centrais deste filme, que adota o no México em 1930-31, cujo resultado foi o filme tom de uma sátira. Como Eisenstein, Greenaway é o inacabado Que viva México! (Greenaway já anuncia protótipo do diretor erudito e intelectual e o diretor para o ano que vem Os apertos de mão de Eisens- inglês deve ter tido algum prazer em alfinetar uma tein/The Eisenstein Handshakes, sobre os encontros figura que tem algumas semelhanças com a sua, entre Eisenstein e diversas celebridades culturais). em fazer um filme que tem a enganosa aparência Baseado em fatos, com os quais Greenaway toma de uma grande fofoca. óbvias e pequenas liberdades, o filme tem um efeito

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A diferença fundamental entre este filme e Que viva México! aqueles em que Greenaway evocoa grandes nomes da cultura do passado (o arquiteto Claude-Nicolas Ledoux em A barriga de um arquiteto, Shakespeare em A última tempestade, o paisagismo do século XVIII em O contrato do amor) reside no fato de RJ Cinemateca do MAM : Acervo que Greenaway quase não faz alusões à arte e às inúmeras ideias e teorias de Eisenstein, um homem que escrevia compulsivamente e que teve entre os seus projetos adaptações de O capital, de Marx, e Ulisses, de Joyce. Nos três filmes citados, Greena- way insere as alusões, referências e jogos culturais no âmbito de uma narrativa à qual não faltam lutas de rivalidades entre os personagens e a irrupção do desejo sexual, mas estes filmes também são uma reflexão e um reflexo sobre a arquitetura, sobre Por isso, talvez seja necessário recapitular a Shakespeare e o sobre paisagismo, num tom que longa e dolorosa aventura vivida por Sergei Mikhailo- oscila entre o irônico e o pedante, muitas vezes vitch Eisenstein durante a sua viagem à Europa, aos falsamente pedante para ser mais irônico. Em Que Estados Unidos e sobretudo ao México. viva Eisenstein! ele faz rapidamente uma série de A aventura de Eisenstein no México e aquilo que alusões banais a Eisenstein (“só tinha feito três se passou depois da sua volta à União Soviética foi filmes”), ditas a alta velocidade, quase como um das mais dolorosas da história do cinema. Em fins locutor esportivo, mostra breves trechos de outros de 1929, autor de três filmes extraordinários (A greve, filmes seus e do que foi filmado de Que viva Mé- 1924; O Encouraçado Potemkin, 1925; Outubro, 1927) xico!, desenhos, mapas e fotografias da viagem e e considerado um gênio cinematográfico (talvez mais alusões muito elípticas às relações cada vez mais no estrangeiro do que na União Soviética), Eisenstein conflituosas entre Eisenstein e Upton Sinclair. Para parte para o que viria a ser uma viagem de quase três não falarmos nos telefone- anos, em companhia de Gri- mas de Eisenstein a uma gori Alexandrov, ator e futuro certa Pera, um nome des- “Um filme que tem a diretor e de Eduard Tissé, que conhecido para a maioria enganosa aparência de uma seria o diretor de fotografia dos espectadores, mas que de todos os seus filmes. O existiu e foi uma importan- grande fofoca.” objetivo da viagem eram os te figura na vida do diretor. Estados Unidos, mais exata- Trata-se de Pera Atacheva, mente Hollywood, por mais uma das suas amigas mais próximas, que foi, pelo estranha que pareça a ideia de enviar um cineasta menos oficialmente, a sua mulher. Em suma, de comunista para a capital do cinema americano. Os modo um tanto surpreendente para ele, Greenaway três amigos percorrem primeiro a Europa, começan- oferece deliberadamente ao espectador uma série do por Berlim. Depois vão à Suíça, onde participam de alusões um pouco críticas sobre Eisenstein e de um congresso de cinema de vanguarda ao qual a sua estadia no México, quando ele esteve numa estavam presentes Alberto Cavalcanti, Hans Richter posição semelhante a de um náufrago numa ilha e Walter Ruttman, em La Sarraz e no qual teria sido quase deserta. O que interessou realmente Gre- feito o curta-metragem Tempête sur La Sarraz com enaway, foram as aventuras homossexuais que a participação de Eisenstein (“teria” porque ninguém Eisenstein visivelmente teve no México e não o seu nunca viu o filme, embora haja fotos da suposta fil- cinema, nem sequer Que viva México! magem, precisamente com a presença de Eisenstein).

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Depois, passam uma temporada em Paris, onde enviado a Sinclair cerca de 30 mil metros de material Eisenstein é recebido com entusiasmo pelos meios filmado (quase 15 horas de projeção), o que prova a artísticos e intelectuais e onde dirigiu um pequeno sua absoluta boa fé, mas o filme não estava pronto e filme, Romance sentimentale, que alguns dos seus era preciso mais dinheiro para completá-lo. As ima- admiradores tentaram dizer que era de Alexandrov, gens, no entanto, eram magníficas “transformamos( apesar de testemunhos em contrário, como o de o que começou por um desfile de paisagens num Luis Buñuel, que conta nas suas memórias que ficou grande filme”, escreveu Eisenstein a uma amiga). tão furioso com o que vira na filmagem que procu- Mas devido aos atrasos e ao fato do orçamento rou Eisenstein pelos cafés de Montparnasse, “para ter sido ultrapassado, as relações entre Eisenstein esbofeteá-lo” (não o encontrou). As autoridades fran- e Upton Sinclair começam a se deteriorar. Não há cesas não gostaram muito da presença de Eisenstein dúvida de que o realizador tem alguma responsabi- no país e ameaçaram expulsá-lo, mas os protes- lidade nisso, pois não cumpriu o combinado. Estaria tos dos meios intelectuais ele secretamente conven- e artísticos levaram-nas a cido de que o filme nunca recuar. Depois de uma tem- “Estaria ele secretamente poderia ser terminado, que porada em Londres (onde convencido de que o filme era uma catedral tão vasta Eisenstein participou de nunca poderia ser terminado, que teria que ficar inacaba- outro curta-metragem, do da? É possível, mas não há qual restam algumas fotos, que era uma catedral tão nada no comportamento de Ballet for the British Bobby) vasta que teria que ficar Eisenstein que denote uma e de passar por Nova York, inacabada? É possível…” atitude irresponsável ou au- o trio de soviéticos chega todestrutiva. Ele nunca foi finalmente a Hollywood, onde tem contatos na Pa- preguiçoso e um tanto espertalhão como Orson Wel- ramount, uma das grandes produtoras americanas. les, cujos filmes inacabados não são grande coisa, Eisenstein conhece algumas personalidades do ci- como pode constatar qualquer espectador que tenha nema, como Charles Chaplin, Walt Disney, Josef von podido ver o que ele filmou em It’s All True e Dom Sternberg e Marlene Dietrich (Greta Garbo lhe teria Quixote (e os privilegiados que conhecem o material perguntado: “Quem é esse tal de Lênin de quem tanto de The Other Side of the Wind, supostamente o mais falam?”) e apresenta logo um primeiro projeto, uma acabado dos filmes inacabados de Welles, garantem adaptação de An American Tragedy, de Theodore que não é grande coisa). O material filmado que che- Dreiser, romance que viria a ser filmado duas vezes, gou até nós prova que Eisenstein trabalhou, e muito, por Josef von Sternberg e George Stevens. Mas no México. Mas o seu isolamento em regiões rurais nem este nem outros projetos vão para a frente e, do país fez com que ele perdesse a noção do que se aconselhado por Charles Chaplin, Eisenstein entra passava em Moscou e em Los Angeles. Na União em contato com o “escritor socialista” americano Soviética, depois de dois anos de ausência, começa- Upton Sinclair, que tinha muitos contatos na União vam a desconfiar que ele talvez não quisesse mais Soviética e conseguiu angariar o dinheiro necessário voltar e Boris Chumiatsky, o burocrata n. 1 de Stálin para um filme a ser feito no México. Um contrato foi para o cinema (que acabaria num gulag), começou assinado em outubro de 1930 e Eisenstein, Tissé e a orquestrar uma campanha contra ele, que duraria Alexandrov seguiram para o México. vários anos. A isso, somava-se o envenenamento O projeto de Eisenstein era ambicioso, como das relações com Upton Sinclair. Em janeiro de 1932, todos os seus trabalhos: um filme, ainda mudo (Ei- quando Eisenstein preparava-se para filmar a quarta senstein resistiria muito ao som, que só adotou em parte de Que viva México!, Sinclair enviou-lhe um 1937, em Alexandre Nevsky), em quatro partes, pre- telegrama suspendendo definitivamente o projeto. cedidas por um prólogo e seguidas por um epílogo. Eisenstein viu-se bruscamente sem dinheiro, num Um ano depois de chegar ao México, Eisenstein tinha país que nem sequer tinha relações diplomáticas

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com a União Soviética. Decidiu voltar para os Esta- intituladas Thunder Over Mexico (1933) e Death Day dos Unidos para tentar negociar uma solução com (1934). Em 1939, Marie Seton, biógrafa contestada Sinclair, mas ficou retido mais de um mês na fronteira. de Eisenstein (afirmava que ele era religioso, o que Neste ínterim, tentou desesperadamente convencer não era certamente verdade) fez a sua versão, Time uma grande produtora americana a adquirir os di- in the Sun. Nas suas memórias, Eisenstein diz que reitos do filme, sem sucesso. Tentou o mesmo com ficou “aterrado ao ver o que estas mãos piedosas as autoridades soviéticas, em vão. Sinclair mandou e inábeis” tinham feito. Finalmente, em 1957, nove todo o material filmado para Nova York, de onde o anos depois da morte de Eisenstein, Sinclair depo- mesmo deveria seguir para Moscou, o que nunca sitou todo o material que possuía na cinemateca do MoMA em Nova York. Foi então que Jay Leyda, grande conhecedor americano do cinema soviéti- “Um dos maiores cineastas co e amigo pessoal de Eisenstein (ele recebera do de todos os tempos, cineasta o manuscrito de The Film Sense, o único dos seus livros publicados em vida, em 1942), pôde Eisenstein não pôde montar organizar o material, recusando-se porém a montá- nem um minuto do que -lo, a dar-lhe uma ordem sequencial, preferindo agir filmara no México.” como quem restaura um manuscrito, guardando as diversas tomadas de um mesmo plano. Leyda orga- nizou o material no que seria a cronologia do filme, a partir do roteiro, num total de três horas e quarenta aconteceu. Antes de voltar definitivamente para a minutos, incluindo algumas imagens em que vemos URSS, Eisenstein pôde ver em Nova York pelo me- Eisenstein e os seus companheiros (no último plano, nos parte do material que filmara, provocando uma vemos Eisenstein caminhando na direção da câmera, verdadeira fúria de Sinclair. Este prometeu-lhe, no ou seja, do espectador). Num artigo de 1958, em entanto, que o material seguiria para Moscou “no que explica como trabalhou, Leyda conclui com a primeiro barco”, o que nunca aconteceu devido, pelo seguinte observação: “Se Eisenstein tivesse rece- menos em parte, à absoluta má vontade soviética. bido o negativo nas condições em que o encontrei, Eisenstein voltaria a um país muito diferente daquele penso que teria completado o seu filme – porém não que deixara, um país que estava às vésperas do sem lágrimas”. As lágrimas e os gritos seriam sem grande terror stalinista, dos processos de Moscou, dúvida maiores se ele tivesse visto a monstruosa da liquidação da velha guarda bolchevique. Em 1935, versão oficial soviética de 1980, assinada por Grigori um congresso de cineastas foi organizado espe- Alexandrov, seu amigo de juventude e companheiro cialmente para criticá-lo e ele sofreu a humilhação de viagem ao México, que transforma tudo numa suprema: teve que se retratar publicamente pelos série de cartões-postais e mente descaradamente seus “erros”. No mesmo ano, a filmagem deO Prado em relação ao que se passou nos anos 30, omitindo de Bejine foi sumariamente interrompida e parte do o desinteresse soviético em salvar o material e a material destruída. Em 1946, a segunda parte de campanha organizada contra Eisenstein. Ivan o Terrível seria proibida por ordem pessoal de É evidente que o encontro com o México foi um Stálin e só teria difusão em 1958, dez anos depois da choque cultural para Eisenstein, que se viu confron- morte do diretor, na Exposição Universal de Bruxelas. tado a um mundo totalmente diferente daquele que Sergei Mikhailovitch Eisenstein, um dos maiores conhecia (“na Rússia temos as «noites brancas», aqui cineastas de todos os tempos, um daqueles que as noites são negras como o inferno”, anotou ele), mais refletiu sobre o papel da montagem no cine- um mundo em que se misturavam condições sociais ma, não pôde montar nem um minuto das muitas duríssimas, os restos da impressionante cultura pré- horas que filmara no México. Upton Sinclair confiou -colombiana e os ritos e mitos – de vida e de morte o material a Sol Lesser, que fez duas montagens,

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– da cultura popular. As imagens dos corpos em Que desta viagem são evocados, como os problemas viva México!, lânguidos ou hieráticos, são de uma com Upton Sinclair e com o próprio Stálin, porém em sensualidade sem equivalente na obra do grande filigrana, dando-lhes menos importância. No filme, puritano, do intelectual assexuado que foi sem dúvi- Grigori Alexandrov e Eduard Tissé são simples silhue- da Sergei Eisenstein. É mais do que provável que ele tas, quando estiveram todo o tempo com Eisenstein. fosse semivirgem ao chegar ao México, que ao deixar Greenaway toma partido pela hipótese, ou seja: o país já não o fosse e que tenha continuado a sê-lo para ele, não há dúvida de que Eisenstein mergu- ao voltar a Moscou. Eisenstein sempre escreveu e lhou no sexo no México. E o faz com grande sentido desenhou de maneira com- de humor, talvez com mais pulsiva e no México ele rea- sentido de humor e mais lizou uma série de desenhos distância em relação ao que só podem ser classifi- “É inegável que o desejo que filma do que teria tido cados como pornográficos sexual reprimido do um cineasta homossexual. e nos quais o elemento ho- A tardia iniciação sexual mossexual é gritante, como intelectual que era Eisenstein de Eisenstein, aos 31 anos pode ser constatado pelas tenha explodido no México.” de idade, é mostrada como reproduções que ilustram uma etapa normal e obriga- este dossiê e que foram pu- tória na vida de um homem, blicados na França em 1999, só que em vez de se dar com num livro intitulado Dessins Secrets, que contém uma mulher esta iniciação se faz com um homem. 152 reproduções (Greenaway mostra alguns destes Em vez de sedução ou mesmo de curiosidade, há desenhos e anima-os, com efeitos de trucagem). É uma espécie de rotina, de formalidade a cumprir. inegável que o desejo sexual reprimido do intelectual Por isso a primeira relação sexual entre os dois é que era Eisenstein explodiu no México nesta série acompanhada por uma verdadeira conversa, como de desenhos pornográficos. Pode parecer um clichê, se eles estivessem na mesa de um café e não na mas o fato é que no México Eisenstein não descobriu cama e o defloramento anal fosse um gesto anexo à apenas os monumentos as- conversa, sem importância tecas e uma relação diferen- central. O efeito cômico da te das pessoas com a morte: cena é fulminante e o pró- também descobriu o corpo, “Peter Greenaway não quis prio tamanho, pouco banal, o seu e o dos outros. Ele que ridicularizar Eisenstein, daquilo que o mexicano tem tinha uma atitude defensiva apenas abordou em tom de entre as pernas passa a ser em relação a Freud, usan- um elemento cômico. Peter do esfarrapadas desculpas sátira um assunto conhecido Greenaway não quis ridicu- “marxistas” para rejeitar as e que foi recalcado...” larizar Eisenstein, apenas suas teorias (“Freud não abordou em tom de sátira aborda a luta de classes”), um assunto conhecido e parece ter sido confrontado à crua realidade do de- que foi recalcado durante muito tempo. Não se tra- sejo físico, às ordens da “única parte do corpo do ta, obviamente, de uma biografia filmada no sentido homem que não mente nunca”, segundo a fórmula literal e tradicional. Talvez possamos ver o filme de Jean Cocteau. Eisenstein viu-se a si mesmo no como uma variação do filme biográfico, à maneira espelho e é mais do que provável que tenha respon- de Peter Greenaway. dido ao desejo que sentia, sem reprimi-lo. A eventual “descoberta” do sexo foi apenas um dos aspectos da estadia de Eisenstein no México, mas é o único que interessa Greenaway no filme. Os outros aspectos Antonio Rodrigues, Cinemateca Portuguesa

33 Artigo ::: ‘Betinho’ hoje e sempre ‘BETINHO’ HOJE E SEMPRE

Com recepção calorosa no Festival do Rio, em que conquistou o prêmio de Melhor Documentário pelo Júri Popular, o filme sobre o “irmão do Henfil” soa atemporal nos quesitos pertinência, humanidade e cidadania. TABU convidou o diretor Victor Lopes e o historiador Atila Roque Cena de para escreverem sobre Betinho, Betinho: A esperança equilibrista personagem mais atual do que nunca

QUEM TEM FILME TEM PRESSA por VICTOR LOPES

etinho dizia que “quem tem fome, tem pres- A experiência de lidar com uma presença hu- Bsa” e, no nosso caso, quem tem filme tem mana e histórica que transcendia a noção de per- pressa também. Assim, “o filme do Betinho” nasceu sonagem foi instigante desde o princípio. Os fatos pra valer há pouco mais de um ano numa reunião da vida de Betinho, duelando com a morte desde o da produtora Ângela Zoé, da Documenta, e Daniel nascimento, crescendo entre uma penitenciária e Souza, na GloboFilmes, que decidiu entrar no projeto uma funerária, e depois enfrentando a tuberculose, como parte de sua nova linha de produção com a a clandestinidade, o exílio e a Aids, até virar um sím- GloboNews. Em novembro de 2015, Betinho faria 80 bolo nacional, soariam com uma visão exagerada anos, e nessa bem-vinda parceria entre cinema e de um herói em qualquer roteiro de ficção. Com a TV, Daniel e Ângela me fizeram o convite irrecusável admiração pessoal e identificação que tenho com para dirigir o documentário.

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as suas causas, optei por avançar, sem reverência, didatismo ou pieguice em direção ao homem que retratava. Nesse caminho, mesmo apoiado pelo vasto acervo do Cedoc, orientei a pesquisa para buscar o máximo de material de Betinho narrando a própria história. Assim chegamos aos arquivos do Canal “Uma das sensações que Imaginário, que tinha uma entrevista com ele na me atrai no filme é a de que sua casa de campo em Itatiaia, feita por Alfredo Alves para uma série de TV. Conseguimos acesso Betinho está vivo, aqui do ao material bruto, que foi decisivo para criar um di- álogo atemporal com os depoimentos que filmei no lado, tomando uma cerveja presente. Uma das sensações que me atrai no filme é a de que Betinho está vivo, aqui do lado, tomando e conversando conosco.” uma cerveja e conversando conosco. O cinema faz a sua parte.

Venceu “A esperança equilibrista” Enquanto escrevia o roteiro, olhei para uma foto dele num balanço (imagem que abre esta matéria) e me ocorreu a ideia do título, A esperança equilibrista, que, para além do clássico de Aldir Blanc e João Bosco, de cara me remeteu ao momento histórico atual. Se este documentário fosse feito há três ou cinco anos seguiria sendo a narrativa de uma figura essencial da história do Brasil, o nosso Gandhi, o nosso Mandela, símbolo e referência necessária para um país que cultua tantos atletas e artistas, e poucos homens públicos. Hoje, no olho de mais um furacão na nossa história, este se tornou um filme urgente, uma ma- nifestação direta do Betinho, este sertanejo danado que continua nos acompanhando e guiando sobre uma corda debaixo dos pés. Seguimos equilibristas entre a vida e a história, na gravidade do tempo, matérias-primas do cinema. Depois da recepção calorosa no Festival do Rio e do prêmio de Melhor Documentário pelo Júri Popu- lar, todo o esforço faz sentido no momento em que chegamos aos olhos, corações e mentes do público. Partimos otimistas para o circuito e ouso dizer que poucas comédias românticas ou filmes de ação em cartaz podem oferecer ao espectador emoções mais genuínas e fortes do que este mergulho na vida de Betinho, e nos desafios da democracia no Brasil.

Victor Lopes é diretor, roteirista e produtor de cinema e TV. Dirigiu Bala perdida, Língua, Eliezer Batista, Agamenon, Serra Pelada e Betinho, A esperança equilibrista, vencedores de 29 prêmios nacionais e internacionais Cenas de Betinho: A esperança equilibrista 34 35 Sala 1 ::: ‘Betinho’ hoje e sempre Maysa Torres

UM PAÍS NA CORDA BAMBA

por ATILA ROQUE

oi muito bom voltar ao cinema com Betinho. F A sala escura era um dos maiores prazeres – junto com a música, a cerveja e o desfrute da vida com os amigos –, daquele que certamente é um dos heróis da luta pela cidadania e democracia no Brasil. É difícil não experimentar a confusão de emoções que o filme desperta em quem assiste, inclusive os não contemporâneos do sociólogo Herbert de Souza, o irmão do Henfil, conhecido como Betinho, Reunião na sede do Ibase em 1991 consagrado na música “O bêbado e o equilibrista”, na voz de Elis Regina. A saída sempre existe, somos nós os portado- Para quem, como eu, teve o privilégio da ami- res das alternativas, aqueles que seremos capazes zade e companheirismo do Betinho, o filme desperta de mover montanhas, vencer o autoritarismo, a di- saudades, mas sobretudo uma enorme alegria. Um tadura, o racismo e todos os preconceitos, mesmo sentimento de euforia com tudo o que podemos e quando os retrocessos e o conservadorismo mais somos capazes de fazer se tivermos motivação e retrógado (reacionário mesmo) parecem ganhar inspiração, desejo e tesão pela vida, amor e solida- terreno. riedade com todos que coexistem no tempo humano, A vida desse mineiro-carioca, cidadão do mun- nos limites dos quais nos cabe viver a vida e fazer do, que “nasceu para a desgraça, mas deu sorte”, nossas escolhas éticas e morais. em suas próprias palavras, é uma lufada de brisa Quantas referências incríveis para quem viveu fresca em meio a um verão tórrido, como tem sido a adolescência e a juventude nos anos incertos das os tempos recentes no país. A vida de Betinho sem- décadas 1970 e 1980, assim como a esperança e as pre esteve envolvida com grandes riscos: desde o mudanças trazidas pela consolidação da democracia nascimento, quando foi diagnosticada sua hemofilia nos 1990. Mas, certamente, quantas descobertas – que também atingiu os irmãos Henfil e Chico Mário; ao alcance das novas gerações, especialmente os até a tuberculose, que o isolou em um quarto dos jovens que despertaram mais recentemente para 15 aos 18 anos; os riscos da atividade política e, por a política, na onda das grandes manifestações de fim, a Aids. A possibilidade iminente da morte sem- junho de 2013, inconformados com as frustrações pre foi uma experiência próxima e, por conta disso, trazidas pela política oficial e pelo sentimento de acabou criando com ela uma convivência amigável, que precisamos reinventar a participação e a pró- praticamente amorosa, inseparável e íntima. pria democracia. O filme de Victor Lopes produz um O Brasil republicano sempre viveu na corda turbilhão de ideias e reacende a esperança naquilo bamba, impulsionado por ondas de mudanças em que o Brasil sempre teve de melhor: o sabor pela direção a certa modernidade democrática que con- vida, a criatividade e a disposição para não desistir, viveu com experiências de “cidadania” e “igualdade” mesmo quando tudo sugere que chegamos a um constantemente contestadas e incompletas, decor- ponto sem retorno ou sem saída. rências de heranças permanentemente atualizadas

36 37 Sala 1 ::: ‘Betinho’ hoje e sempre

“O tempo do Betinho é o tempo que nos trouxe até onde nos encontramos hoje, Cena de Betinho: A esperança equilibrista com as conquistas e derrotas da escravidão e da colônia. A ideia de direitos co- muns e universais, compartilhados plenamente por experimentadas por várias todas as pessoas, sem exceções, enfim, o próprio gerações e renovadas nas desejo de igualdade inerente à utopia democrática, é muito recente na história brasileira. Durante a disputas do presente.” maior parte do tempo vivemos sem nos vexar com um país que ensina a cada um “o seu lugar”; e que alguns, evidentemente são “mais iguais do que ou- e derrotas experimentadas por várias gerações e tros”, para lembrar um autor da minha adolescência, renovadas nas disputas do presente. George Orwell. Uma história que sempre se recusou A narrativa do filme é bela e inspiradora, mas a encarar as dimensões fundadoras da nossa so- não apologética, afinal, o seu personagem principal, ciedade: a violência, o racismo e as desigualdades. é humano, demasiado humano. É isso o que mais Definitivamente, apesar da história, não gostamos fascina e permite ao espectador se sentir próximo de nos retratar assim, preferimos ser os alegres e de alguém que por tudo o que fez e viveu deveria pacíficos habitantes do país do futuro, mestiço e parecer inalcançável. racialmente democrático. Só que não! No fundo, o convite principal deixado pelo filme A vida do Betinho, praticamente narrada em é para que sentemos e conversemos sobre o que primeira pessoa no filme de Victor Lopes, resgata a queremos fazer de nossas vidas, um chamado à importância de não aceitar nada como destino, como responsabilidade inarredável com o que existe, com fato consumado, seja qual for a fatalidade que nos o futuro, com o nosso legado. Não temos escapatória, oprima, a doença, a ditadura ou a fome. A vida pede senão colocar a mão na massa, abrir nossa cabeça paixão e vontade, coragem e desejo de mudança. E para novas escutas, reconhecer e deixar espaço muita confiança em nossa capacidade coletiva de para a inovação, já que a vida é constante mudança, reinventar um mundo com mais igualdade e soli- mesmo quando arrastamos heranças autoritárias dariedade, com mais espírito público e respeito às tão presentes e vivas nos dias de hoje. diferenças, com mais democracia e cidadania ativa. Assim encerro, ouvindo Milton Nascimento, no álbum Encontros e despedidas, lembrando as muitas O tempo de Betinho vezes que desfrutei de música, amizade e cinema Nada mais atual no momento em que vivemos a com Betinho. Como ele dizia, brindando a vida e a sensação de um ciclo que se esgota: a transição da morte, com uma cerveja sempre bem gelada, senão ditadura para a democracia, ainda muito distante não vale a pena. da igualdade e dos direitos humanos ao alcance de todos. O tempo do Betinho é o tempo que nos trouxe Atila Roque, amigo-irmão de Betinho, é diretor-executivo da Anistia até onde nos encontramos hoje, com as conquistas Internacional Brasil

36 37 Intercâmbio ::: El Mundo CARLOS VERMUT: ‘CINEMA É MANIPULAÇÃO’ por CARLOS REVIRIEGO | tradução de ANA LUIZA BERABA

Crítico de cinema do tabloide El Mundo, Carlos Reviriego analisa A Garota de Fogo [Magic Girl, no original], de Carlos Vermut, o novo menino-prodígio do cinema espanhol, queridinho de Almodóvar e fã de Tarantino, que concede entrevista sobre o filme

Cenas do filmeA Garota de Fogo

adrilenho de 34 anos, Vermut encontrou relato perturbador e sinistro tocado por forte origina- Mo Santo Graal do cinema em um canto lidade dramática e, provavelmente, pela genialidade. qualquer de Pulp Fiction. Sua dívida com Tarantino Mesmo com elogios rasgados de Pedro Al- é incondicional. Procedente do mundo dos quadri- modóvar, que definiu esse magical boy em em seu nhos, Vermut começou sua carreira de diretor com blog como “a grande revelação do cinema espanhol um filme de baixíssimo orçamento e distribuição deste século”, Vermut mantém os pés no chão: “Um alternativa, Diamond Flash, que embora tenha gerado, filme nada mais é do que duas horas de história em 2011, entusiasmo em críticos e festivais, passou sobre uma tela”. desapercebido de boa parte do público. Com A Garota É surpreendente a confiança que Vermut de- de Fogo (vencedor dos dois principais prêmios no posita no relato, no poder das ficções, já que os Festival de San Sebastián 2014 – a Concha de Ouro enigmas mais perturbadores acontecem fora do de Melhor Filme e de Melhor Diretor), não tem mais quadro, atrás de portas que não se abrem ou em desculpas. Na Espanha, deu o que falar, e não houve pretéritos que nunca se revelam. Apenas nos con- quem ficasse indiferente. Todos se renderam ao seu vida a imaginá-los. Essa necessidade de se dirigir

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“Em A Garota de Fogo tudo o que acontece de cruel e atroz não é por um excesso de ódio, e sim por um excesso de amor. É muito difícil julgar.”

a um “leitor cúmplice”, como chamava Baudelaire, não impede de forma alguma que o roteiro de A Garota de Fogo funcione como um preciso mecanismo de re- lojoaria que, como reflete o personagem mais si- nistro do filme em torno à idiossincrasia cultural espanhola, disputa a ba- talha entre o cérebro e a paixão, entre a razão e o instinto. A Garota de Fogo uti- liza o cinema para vampirizar nosso poder fabulador, para nos obrigar a preencher os vazios mais temíveis das fic- ções. Nessa estratégia, torna-se essencial a convivência até o limite da dissolução de códigos, gêneros e tons, irrompendo algo tão im- provável como o cruzamento de Tarantino e Melville com Almodóvar e Jaime Rosales. O impacto dramático de A Garota de Fogo, que conduz a territórios da dor e da destruição, encontra seu veículo estético em uma mise-en-scène em que impera o minimalismo, quase um ascetismo bressoniano, com planos fixos de longa duração. Achamos em seu cinema um rigor tocado por surtos de loucura e espasmos de personalidade, alcançando algo difícil para qualquer criador: que seu universo pessoal cruze com o cenário sociocultural do seu tempo. Nesta entrevista, Vermut desentranha segredos ocultos no filme. Recomendamos deixar a leitura para depois de tê-lo assistido: não queremos ser responsáveis por estragar uma das criações espa- nholas mais surpreendentes dos últimos anos.

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O filme em sua essência trata de Você foge de qualquer tipo de Ao ocultar informação sobre o algo muito cinematográfico, que moralismo em A Garota de Fogo. passado dos personagens fica é a arte da manipulação. A intenção é deixar que o espec- realmente difícil julgá-los. Pode- Cinema é manipulação. Isso pode tador julgue os personagens? ria comentar sobre a importância ser feito de maneiras mais ou me- Se prestar atenção, em A Garota do fora de quadro, daquilo que nos elegantes. Sempre busco a de Fogo tudo o que acontece de nunca vemos, no seu filme? forma mais sutil de omitir algo, de cruel e atroz não é por um exces- Acredito que tenha a ver com os fazer uma elipse para que, quando so de ódio, e sim por um excesso medos arcanos, instintivos que mostrado, o impacto seja maior. de amor. É muito difícil julgar. É levamos dentro de nós. Temos É o que acontece com as cicatri- muito covarde dividir os homens medos muito profundos insta- zes da Bárbara, por exemplo. A entre monstros e humanos. Te- lados, ainda que criemos uma chave de manipular um mistério mos que assumir que todos te- estrutura à nossa volta que nos é saber como dilatar a informa- mos monstros dentro de nós. De- afaste deles. Se dou um nome a ção e quando mostrá-la. Uma das pendendo da circunstância, todos esses medos (fantasmas, vam- chaves do filme é calcular até que podemos nos tornar seres abjetos, piros, zumbis etc.), dou também ponto apoiamos Luis no que ele fazer coisas inomináveis. Quando uma forma, e então desaparecem faz por sua filha. Na primeira se- digo que sou relativista é a isso a porque você racionaliza o medo. quência, criamos tanta empatia que me refiro. E quando escrevo O que está fora de quadro em um pela menina que, de alguma for- meus filmes, esse relativismo é filme cumpre essa função de não ma, ficamos do lado do pai. querer nomear os horrores. Se eu digo a você o que fa- Muitas cenas do filme pare- “O grande barato do cinema zem com a Bárbara no filme, cem possuir um significado por mais brutal que seja, por aparente, mas no fundo po- é estar sempre três jogadas exemplo, perfuram-na com dem significar o contrário. Há à frente do espectador.” ossinhos de bebê, sei lá, es- muito veneno ao retratar os tou tirando a sua liberdade personagens. O roteiro foi de sentir. Você vai ver, mas concebido assim? quase como um dogma dramáti- não vai sentir o horror. Há pouco Sim, é verdade que há algo en- co. O que faria esse personagem tempo estava vendo Twin Peaks venenado porque sempre fujo do nessa situação? Poderia chegar e o que dá muito medo na série é óbvio. Tenho muitas discussões a esse ponto? É esse tipo de per- que nunca dizem que Bob é um porque me defino como um com- gunta que o espectador deve fazer fantasma. Sempre é melhor deixar pleto relativista, e tem gente que antes de julgar os personagens. o espectador pensar. Ele é um ser é muito objetivista. Eu estou mais Pensar que as pessoas são más sensível. para Nietszche, enquanto que simplesmente porque nasceram outros estão mais para Sócrates. assim é muito perigoso, porque É curioso porque o filme fala da Quando Lars von Trier disse que tira você do estado de alerta. Te- complexidade moral e psicológica entendia Hitler, ele quis dizer, ainda mos que estar alerta com a gente dos seres humanos e do ambiente que de maneira um pouco desas- mesmo o tempo todo, porque se- de hoje de um modo mais habitu- trada, que até o ditador mais vil não começamos a nos desculpar al, corriqueiro, mas dentro de um e desprezível tem algum tipo de por fazer coisas erradas em nome universo muito ficcionalizado, de humanidade. E isso é o mais im- de uma suposta justiça. Para legi- gênero. Como você lida com esse portante das histórias... Por isso timar tudo o que fazemos, costu- tom para encontrar o equilíbrio? Pedro Almodóvar é tão bom rotei- mamos buscar um erro maior nos Para que o fantástico, o estili- rista. Até no mais cruel dos vilões outros. Se eu baixo filme pirata, é zado e o mais cinematográfico há um componente humano que porque me roubam aqui, se o Ja- tenham mais força, tenho que faz com que seja ao mesmo tempo vier Bardem defende os saharauis, desenvolvê-lo em um contexto tão cativante e assustador. então merece ser roubado ali... totalmente verossímil. Se alguém

40 41 Intercâmbio ::: El Mundo

“Não consigo entender a maioria dos blockbusters. Hollywood faz filmes abstratos, talvez sem saber.”

se teletransporta em um contexto muito fantástico, isso não vai me surpreender. No entanto, se sou capaz de fazer a teletransporta- ção crível em um entorno veros- símil, isso terá mais força. O filme Cena do filmeA Garota de Fogo vai se estilizando à medida que avança, mas é porque quero colo- Não é para tanto. O cinema é em assiste a O círculo vermelho, está car o espectador em um contexto essência muito mais simples do tudo ali. E é um filme que começa que possa compreender para só que pensamos, depois compli- com uma frase de Buda. então introduzir uma trama mais camos tudo ao teorizar sobre ele. pulp. O personagem da cadeira de Esse minimalismo estético e nar- rodas funciona melhor no minuto A Garota de Fogo tem um design rativo exige uma elaboração... 50 que no minuto 10. minimalista, quase sem movi- Para mim, é mais fácil fazer de mentos de câmera. Como você forma simples do que complica- Surpreender o espectador é uma pensou a mise-en-scène? da. Eu assisto a Transformers e regra no seu cinema, certo? Já Não estou acostumado a que a não sou capaz de seguir a trama. tínhamos visto isso em Diamond câmera seja o centro do filme. Não É um filme muito abstrato. Não Flash, seu primeiro filme. quero que nada interfira no plano consigo entender a maioria dos Gosto de brincar com o espec- para que o centro do filme sejam blockbusters. Hollywood faz fil- tador. Para mim, o cinema é isso. os atores como veículo da histó- mes abstratos, talvez sem saber. Como roteirista e diretor, acredito ria. Não quero que nada distraia Para mim, o natural é fazer tudo que o grande barato do cinema da história. Não gosto das coisas de forma mais simples, não com- é estar sempre três jogadas à barrocas nem dos virtuosos movi- plicar com subtramas, ir direto à frente do espectador. Essa é a mentos de câmera. É verdade que história. única forma de ele não cair no um filme leva dois anos para ser sono. Desde criança, me entedio feito, todos temos muitas ideias e com filmes que sei aonde vão queremos colocá-las em prática, Carlos Reviriego é crítico, professor de mas é preciso ser muito seletivo. cinema e responsável pela seção de Ci- dar, esses dois vão se envolver, nema do suplemento El Cultural do jornal aqueles se matam. Pulp Fiction Tanto do ponto de vista estético El Mundo. Twitter: @carlosreviriego me arrepiou por isso. Para mim quanto narrativo não quero que nada sobre. Detesto subtramas, Ana Luiza Beraba, historiadora e funda- esse nível de alerta é fundamental. dora da Esfera Filmes, publicou América No fundo, um filme, mesmo com são distrações absurdas. Jean- aracnídea: Teias culturais interamericanas (Civilização Brasileira, 2008) prêmios e toda a parafernália em -Pierre Melville, por exemplo, é torno, nada mais é do que duas cinema puro nesse sentido. Não A entrevista no original e na íntegra pode horas de história sobre uma tela. pretendo imitá-lo, mas se você ser lida aqui: http://zip.net/btshrr

40 41 ENTREVISTA ::: Milton Hatoum e Guilherme Coelho UM ELDORADO AMAZÔNICO EM LIVRO E FILME por MICHELLE STRZODA e JULIA LEVY fotos de CICERO RODRIGUES

42 43 ENTREVISTA ::: Milton Hatoum e Guilherme Coelho

Conhecido por seus documentários (Fala Tu, PQD), o cineasta Guilherme Coelho optou por um caminho audacioso para entrar no terreno da ficção.A obra do escritor amazonense Milton Hatoum não oferece trilha fácil para as adaptações cinematográficas. SobretudoÓrfãos do Eldorado, narrativa em que o mítico e o real se entrelaçam na construção de um universo que se torna palpável apenas na mente confusa, atribulada, repleta de informações a processar do personagem-narrador.

Nesta entrevista concedida à TABU no Cine Lagoon, numa manhã tipicamente amazônica, quente e abafada com perspectiva de chuva se avizinhando, Coelho e Hatoum dissecam uma Amazônia ao mesmo contemporânea e mitológica, com sonhos e pesadelos, celeiro de possibilidades reais e ficcionais para a obra de Milton, de onde Guilherme tirou inspiração para compor a base do seu denso filme, primeiro longa- metragem de ficção da carreira.

Órfãos do Eldorado é livro-filme de tempo, de avô para neto.

O que é o Eldorado para vocês? Qual é o seu El- Milton, você disse que o Guilherme fez uma “tra- dorado? Chico Buarque cantou o Rio em “Cidade dução” do livro no filme. O status da tradução no Submersa”. Existe uma Eldorado urbana? processo editorial é de coautoria. Podemos dizer Milton Hatoum: Mito de um sonho, logradouros urba- que o Guilherme “recriou” o Órfãos do Eldorado? nos, arquétipos/nomes, estar na história. Em Belém, Bons filmes são verdadeiras traduções. É linguagem tem um conjunto habitacional chamado Eldorado. estética, linguagem diferente. Um romance, uma Eldorado também inspira muitos nomes de empresas, narrativa sobre a passagem do tempo. Ele traduziu estabelecimentos comerciais. o Órfãos e ficou inesperado, impactante. Guilherme Coelho: O rio (Amazonas) é um filme, o rio é cinema. Sim, esse Eldorado também é uma história Qual o tempo entre o livro e o filme? de dissipação, de um sonho que não deu certo. Guilherme: Tem a ver com a cabeça do Arminto. Tem uma relação curiosa de tempo também, com meu Guilherme, como foi “transcriar” a obra do Milton avô, que era de Belém, e o filme foi feito em Belém para o cinema? Por que este livro? (as filmagens ocorreram em Belém e Icoaraci, su- Orson Welles já dizia que o roteiro funciona como búrbio da cidade, e no arquipélago de Anavilhanas, a uma transposição literária. Fiquei muito emocionado seis horas de Manaus). Adoro Belém, é uma cidade quando li o Órfãos. O que importa, para mim, é a incrível, você vai na esquina e as pessoas estão emoção, tocar alguém de uma forma que perma- falando de literatura. neça. Eu estava tentando escrever sobre meu avô e Milton: Fazer um personagem do filme foi uma ma- achei muitas semelhanças entre ele e o protagonista, neira de vivenciar essa experiência numa cidade que Arminto Cordovil. é a minha preferida. Eu me sinto em casa quando vou a Belém. É uma espécie de Manaus que deu certo. Como se a minha infância ainda estivesse vibrando ali, os lugares da minha infância que foram destruídos em Manaus.

42 43 ENTREVISTA ::: Milton Hatoum e Guilherme Coelho

Milton, você mencionou que enxergou traços de sua literatura em imagens marcantes no filme. Qual a cena de que mais gostou, do ponto de vista de “co- munhão” com o livro? Determinadas cenas do filme traduzem muito bem o livro. A ficção não pode responder aos mitos. O desafio é transformar o mito em narrativa. O mito é bastante contextualizado na cena de Arminto no barco, a cena da lenda da cabeça cortada, com sons, cortes. As imagens têm zero exotismo. A novela tra- balha com dramas particulares. Quando a floresta trabalha sobrepondo dramas humanos, exotisa, e isso não é bom. As relações humanas são o que há de mais importante.

Milton, certa vez, numa entrevista a O Estado de S. Paulo, você fez declarações sobre a importância do trabalho do editor em seus livros. De como o livro chega de um jeito na editora e, após a interferên- cia, a mão do editor, se torna outro. Você enxergou “ecos” desse processo na transposição entre o livro e o filme? A cena dos cegos no Paraíso é linda, surpreendente. Como fazer essa cena em livro? Difícil. O mundo dos cegos é um paradoxo da alma humana. Tenho muita gratidão, admiração, pelo trabalho que meus editores, o Luiz (Schwarcz) e a Maria Emília (Bender, ex-Companhia das Letras) fizeram nos meus livros. O Luiz leu o Cinzas do Norte umas três vezes.

Milton, este é o seu penúltimo livro, escrito para publicação internacional escocesa, sob encomenda (Coleção Mitos). Como vê suas criações ganharem outros ângulos, outras leituras? Sua obra, muito festejada no meio editorial, tem sido levada para o audiovisual (em 2016, estreia a minissérie Dois irmãos na TV Globo, com direção de Luiz Fernando Carvalho). Eu não podia escrever mais do que cem páginas. Fui flaubertiano. Foi a primeira e última vez que faço algo sob encomenda. Acho surpreendente rever meus personagens e narrativas na tela, mas prefiro não me envolver no processo, para dar liberdade ao diretor, roteirista e equipe trabalharem. Estou dando sorte, estou num time muito bom: Guilherme Coelho, Luiz Fernando Carvalho, Marcelo Gomes...

44 45 ENTREVISTA ::: Milton Hatoum e Guilherme Coelho

geográfica e temporal paralelamente determinam e O TEMPO E O VENTO aprisionam o destino dos personagens. Cinematograficamente, Coelho percebeu essa por RICARDO COTA Manaus com um olhar melancólico, sublinhado por sua experiência documental, reproduzindo o tempo chave encontrada por Coelho, que assumiu e o espaço de forma contemplativa, nitidamente em A a condição autoral completa ao assinar contraste com a energia dos personagens, princi- também o roteiro, foi trabalhar a percepção do tempo, palmente do inquieto Arminto. da ambiência e da intervenção lendária na obra de Assim é possível sentir o vento quente que pa- Hatoum. O filme não se sustenta apenas no livro rece aumentar a exasperação dos personagens, apri- Órfãos do Eldorado, mas recria o território do escritor sionados numa solidão desesperançada. O traslado presente em outras obras. Ecoam na relação entre da página ao filme respeita Hatoum e engrandece a Arminto e o pai os dramas familiares de Cinzas do filmografia de Coelho.

Norte e Dois irmãos, em que as condições econômica, Ricardo Cota é curador da Cinemateca do MAM RJ

Milton, como foi fazer um personagem no filme? Belém e fiquei lá um tempo com a equipe, enquanto Você se identificou com ele (um pescador)? Seria acontecia a preparação de elenco. Belém é minha uma espécie de metaliteratura, de metaficção? cidade preferida, minha Eldorado. Quando começou a produção, Guilherme me con- vidou para fazer o papel de um velho pescador no Michelle Strzoda é jornalista, editora, tradutora e gestora cultural. filme. Gostei da ideia porque era breve e tinha a Autora de O Rio de Joaquim Manuel de Macedo: Jornalismo e ver com a minha infância. Eu saía nesse tipo de literatura no século XIX (Casa da Palavra | Biblioteca Nacional, 2010), é diretora editorial da Babilonia Cultura Editorial canoa quando tinha uns 14, 15 anos. Atravessava o rio Negro e ia pescar nos lagos de Manaus. Fui a Julia Levy é economista, produtora e pesquisadora

Cena de Órfãos do Eldorado 45 ENSAIO ::: GRANDE OTELO

46 47 ENSAIO ::: GRANDE OTELO GRANDE por FABIANOOTELO CANOSA O cinema revelou que não foi Cabral quem descobriu o Brasil. Quem descobriu o Brasil foi Grande Otelo. Este ensaio, com fotos do acervo de Fabiano Canosa, gentilmente cedido para a TABU, revela instantâneos desse gigante de 1,50m de altura, que completaria 100 anos em 2015

46 47 ENSAIO ::: GRANDE OTELO

Brasil A.G.O. era uma nação que varria para O debaixo do tapete sua negritude, no cemi- tério dos índios exterminados pela pseudoconversão religiosa. O C.Q.D. desta teoria foi comprovado por Nelson Pereira dos Santos em Rio Zona Norte e Jubiabá, depois das pesquisas dos operários da Atlântida, que deram ao “Moleque Tião” até a oportunidade de se tornar transexual, como a Julieta do Romeu de Oscarito, um evento pioneiro na aceitação das afinidades eletivas de nosso povo tolerante e, em princípio, refratário a qualquer preconceito. Doctor Orson Welles, pesquisador americano versado em provocar no éter e no cinema, havia co- municado o resultado de sua pesquisa após contro- vertida visita ao Brasil no Carnaval de 1942 (o ano em que nasci), num jornal de Randolph Hearst, o Cidadão Kane do cinema. Grande Otelo gostava de minha mãe índia; ele tambem gostava de mim, mestiço ibero-fluminense. No seu centenário, que coincide com o de Welles, agradeço à TABU a oportunidade de regis- trar minha admiração pela maneira “manera” como GRANDE Otelo viveu sua vida, cheia de graça (e garces).

48 49 ENSAIOENSAIO :::::: GRANDEGRANDE OTELOOTELO

48 49 ENSAIO ::: GRANDE OTELO

GRANDE OTELO FOI MUITOS por BRENO LIRA GOMES

rande não só no nome, Grande Otelo foi Gmuitos. Apesar do 1,50m de altura, era um gigante. Vê-lo em cena, seja no teatro, no cinema No cinema se tornou mito, ídolo da massa que se ou na televisão, era a certeza de que seríamos sur- divertia com suas estripulias ao lado de Oscarito, preendidos a cada instante por um trabalho sublime. Ankito, Dercy Gonçalves, Zé Trindade, Golias e tantos De origem humilde, saiu de casa criança atrás de outros. Não se limitou apenas às comédias popu- um grupo de teatro. Desde cedo queria estar sob lares. Está presente, e com muita honra, no Cinema os holofotes. Encantou plateias ainda menino, de- Novo e no Cinema Marginal. Era multifacetado. Ator, clamando poemas e cantando operetas. No teatro cantor, compositor, poeta. Era o espelho do povo. É de revista, já maior de idade, se torna um faz-tudo: a cultura brasileira. interpreta, dança e canta. Não queria ser mais um “negrinho”, de origem miserável e sem oportunidades Breno Lira Gomes é produtor e curador da mostra O maior ator do na vida. Queria ser o Grande Otelo. E para tal lutou Brasil – 100 anos de Grande Othelo, em cartaz na Caixa Cultural muito, se fez presente no meio artístico brasileiro. do Rio de Janeiro de 17 a 29 de novembro de 2015

50 51 SALA 2 ::: Versos de um passado presente

VERSOS DE UM Divulgação PASSADOpor BRUNO RUIVO e LUIZA GANNIBAL PRESENTE

Na ativa, os Manic Street Preachers cantam o contemporâneo massacre do indivíduo pela sociedade e contam com Fidel Castro entre seus fãs

ebates públicos têm se detido nos ele- sociopolíticas em narrativas psicológicas e, nesse Dmentos políticos das manifestações que rastro, cultivaram fãs atípicos. sacodem o mundo, mas a dimensão subjetiva do fenômeno muitas vezes passa em branco até para Acordes antiglamourosos a dita “arte engajada”. Em “Little Baby Nothing”, do primeiro LP, Generation Um grupo de rock, entretanto, manteve, desde Terrorists – uma lamúria frente à tirania do padrão seu estouro no Reino Unido no começo dos anos de beleza feminino e do sexo vazio, hedonista e sem 1990, atenção contínua aos efeitos pessoais e emo- sentimentos –, a indústria do entretenimento torna- cionais da opressão social. Trata-se dos Manic Street -se réu do crime de glamourizar a futilidade, com Preachers, banda oriunda do País de Gales que tro- armas que vão desde bonecas Barbie ao rock’n’roll vou a um só tempo sobre as esferas íntima e coletiva alienado. da experiência humana. No antológico álbum seguinte, The Holy Bible, Mas, que roqueiros são esses que, cantando “This is Yesterday” explica que “a única forma de sobre heroína, moda, suicídio e anorexia, ganhou em conseguir aprovação é explorando justamente o Fidel Castro um fã declarado? Ao lado de outros 5 que me desvaloriza”. E segue não com um discurso mil cubanos, Fidel foi vê-los tocar em Havana, em explícito contra o sistema, mas com uma confissão 2001 – a primeira banda de rock do “bloco ocidental”, derrotista: “Eu fito o céu, ele me cega, eu fecho os aliás, a se apresentar em Cuba desde 1979. olhos e isso é ontem”. Os Manic Street Preachers – “Manics”, para os Com sua versatilidade lírica, os Manic Street íntimos – viraram ases na arte de dissecar questões Preachers lembram que o inconformismo não se

51 SALA 2 ::: Versos de um passado presente Kevin Carter

disputar atenção com a angústia mundana do con- sumista desolado. Em 1998, na canção “If You Tolerate this your Children Will Be Next”, eles contrastaram o heroís- mo da Guerra Civil Espanhola com o individualismo dos frívolos (“A gravidade mantém minha cabeça abaixada/ Ou seria a vergonha/ De ser tão jovem e tão vaidoso?”). Isso faz pensar, por exemplo, se as comoventes imagens de inocentes fugindo do ISIS e do ditador Assad têm poder frente ao anseio expressa apenas em fúria e agressividade, mas tam- lamurioso por roupas de grife. bém em desespero, amargura, melancolia e senti- mento de abandono. Imagem traduzida em alto e bom som A intensidade desses temas ecoou na própria As imagens do premiado fotojornalista Kevin Carter trajetória do grupo quando, em 1995, o letrista- registrando a guerra, a fome e a repressão tiveram -guitarrista Richey James Edwards desapareceu poder sobre si. Tão macabras quanto o que se as- misteriosamente. Dado como morto após anos de siste nos noticiários mais lúgubres, sendo a mais fracassadas buscas por seu corpo, seus acessos de emblemática a de um abutre prestes a se lançar a depressão e desespero, transparecidos em versos uma criança esquálida na África, elas lhe valeram atormentados, fizeram pulular hipóteses de suicí- um Pulitzer e uma crise depressiva que culminou em dio. O leitmovit da alma despedaçada pelo absurdo suicídio. Seu calvário pessoal e político virou obitu- ganharia assombroso correspondente na realidade. ário musical na pena do baixista-letrista Nicky Wire. Gravada pelos Manics no seu quarto álbum, Performance do real Everything Must Go (o primeiro como trio), “Kevin Mais do que diagnosticar a complexa realidade, eles Carter” fez de um elogio ao fotógrafo um veículo para a compõem, o que é atestado em apoteóticas per- abordar as calamidades que ele trouxe à tona, dando formances nas quais figura um telão onde desfilam um rosto específico ao mal-estar dos nossos tempos. vídeos políticos e para onde convergem multidões Há na voz rascante de Bradfield e em vários cativadas pela pertinência da mensagem e sono- arranjos uma fúria visceral comparável à dos não ridade bombástica. Isso fica nítido em cortantes menos revolucionários Rage Against the Machine. observações sobre a barbárie, seja no tema do abu- Mas, nas letras, existe mais introspecção e lingua- so infantil (“Yes”), da crueldade contra os animais gem figurativa. É o que faz o ex-quarteto encaixar, na (“Small Black Flowers that Grow in the Sky”), do Ho- denúncia de um mundo perverso, esses agridoces locausto (“The Intense Humming of Evil”), da Guerra tributos aos humanistas por ele arrasados – e com no Iraque (“Imperial Bodybags”), ou na articulação a admirável desenvoltura do passado se fazendo de Fidel Castro com o parlamentar britânico Peter presente. Hain para levar os Manics a Cuba e, de quebra, lotar

o Teatro Karl Marx. Bruno Ruivo é professor de História e aficionado pelo pop rock De certa forma, eles anteciparam contradições dos anos 1980 atuais em versos que soam proféticos num tempo Luiza Gannibal na verdade é Luiza Almeida, jornalista e doutoranda em que a calamidade dos refugiados sírios precisa da USP, com extensão na University of Manchester, onde estuda as inter-relações entre música e literatura russa

52 53 Ensaio ::: Geek is the new black

Novo Star Wars e relançamento GEEK IS THE da trilogia De volta para o futuro mostram a força NEW BLACK do mundo nerd por ERIK HEWITT

n a galaxy far far way...” rendem mais dinheiro do que fil- blocos com temática nerd no Rio “IAssim começa o texto de mes, e os principais bluckbusters de Janeiro. abertura de Star Wars Episódio internacinais são baseados em IV: Uma nova esperança, primeiro “simples” histórias em quadrinhos Fenômeno mainstream filme do que viria a ser tornar a de super-heróis. Em 2015 se completam trinta franquia ‘Star Wars’. Lançado em No Brasil não é diferente: es- anos de De volta para o futuro. Ao 1977, o longa-metragem e suas tamos cada vez aficcionados por mesmo tempo, sendo veiculada a sequências ajudaram a popula- esses mundos fantásticos. “Exis- segunda temporada do seriado de rizar não só o gênero de ficção te uma demanda forte desse tipo animação Rick and Morty, uma científica, mas aquilo que viria a de conteúdo no Brasil. Portais e paródia das aventuras de Marty ser conhecido como “cultura nerd” sites, como o Jovem Nerd, lucram McFly e do Doutor Brown. Alguns Dungeons & Dragons, o pri- a partir de histórias que vieram de ainda acreditam que a interces- meiro jogo de RPG (Role Playing outros países. Isso mostra que há são entre o pop e o nerd é uma Games, Jogo de Interpretação de demanda reprimida. O problema moda passageira, uma cobra que Personagens), tinha sido lançado é que não estamos sabendo fa- acabará devorando o próprio rabo. há alguns anos, mas foi em 1977, zer, muitas vezes só emulando as Mesmo que este seja o caso, com a criação de George Lucas, franquias gringas”, diz Gustavo isso não acontecerá tão cedo. que esse tipo de entretenimento Colombo, roteirista e criador do Existem dezenas de adaptações, atingiu uma massa crítica. Isso movimento Brasil de Todos os sequências e remakes de filmes faz 38 anos e, em dezembro de Gêneros, que pleiteia uma maior programados para serem lança- 2015, será lançado Star Wars atenção do Estado e do mercado dos nos cinemas nos próximos Episódio VII: O derpertar da força. para essa “nova ordem mundial”. cinco anos. O game Grand Theft “A questão não é ter virado Auto V, por exemplo, já vendeu Cultura pop cultura popular”, analisa Kirk Rus- mais de 60 milhões de cópias, e Durante esse período, muita coisa so, um dos criadores do bloco a empresa Mojang, criadora do mudou. Novas gerações já nasce- carnavalesco Marcha Nerd. “É que fenômeno pop Minecraft, foi re- ram e foram criadas consumindo esses nerds, que se encontravam centemente vendida por 2,5 bi- não só ‘Star Wars’, mas diversas apenas em pequenos grupos e lhões de dólares. franquias de filmes, desenhos viviam isolados, agora podem se Nerd é o novo mainstream, animados, videogames, séries conhecer, graças à internet. Ficou para melhor ou para pior. de TV etc. O que era, inicialmente, fácil achar as pessoas que curtem entretenimento de nicho tornou- o que você achava que só você Erik Hewitt é roteirista e sócio da produtora -se a coluna vertebral da cultura curtia.” Fácil o bastante para a Cinema Petisco, atual gestora do Tempo Glauber pop mundial. Videogames hoje Marcha Nerd ser apenas um dos

53 Ensaio ::: Geek is the new black

uma relação muito próxima, seja em even- disputado da última edição da Feira de CLÁSSICOS TRANSMÍDIA: tos, grupos de discussão, nossos próprios Frankfurt ser uma FC. A Intrínseca ofereceu conteúdos, como um canal no Youtube em uma boa grana pela obra e levou. DA TELONA PARA que falamos sobre conteúdo nerd e não só livros, além de nossa fan page no Facebook. Trata-se de um caso de filme que virou livro. AS PÁGINAS DE LIVROS Em geral livros viram filmes. O público dos Como e quando Star Wars entrou para o livros de ‘Star Wars’ é tão fiel quanto o dos por MICHELLE STRZODA catálogo da Aleph? Qual a tiragem da última filmes da franquia? edição e o número de vendas atual? Vemos mega-sellers serem relacionados Franquia pioneira em projetos transmídia, Lançamos o primeiro livro de ‘Star Wars’ em com outras obras de outras plataformas: o lançamento do livro Star Wars tem mo- novembro de 2014 e em um ano fizemos Walking Dead, Assassins Creed… ‘Star Wars’ vimentado o mercado editorial de sci-fi um dos mais ousados projetos editoriais do faz isso desde a década de 1980, com livros no Brasil, subvalorizado durante décadas. ano, lançando 14 livros, criando um glos- que expandem a experiência do leitor, apre- Leitores de ficção científica têm provado a sário com mais de quinhentas entradas e sentam novos cenários e personagens ou força desse nicho, e editoras que publicam envolvendo mais de cem profissionais, de levam os já conhecidos a novas aventuras. o gênero no Brasil, como a Aleph, têm se tradutores a estúdios de ilustrações inter- Após a aquisição da Disney isso vai ser le- destacado em livrarias e mídias sociais. É nacionais. Até agora foram mais de 400 vado a uma escala nunca antes vista. Uma o que conta Daniel Lameira, editor da casa, mil livros impressos, seis títulos em listas mesma história da galáxia sendo contada em entrevista à TABU. de mais vendidos e com mais de 15 títulos em diferentes plataformas e usando o me- planejados para o próximo ano. lhor de cada uma delas: livros, HQs, jogos, A Aleph é uma típica editora de nicho, com filmes,spin-off , provavelmente séries de TV público-alvo bem específico. Como é a re- Como é o mercado editorial em literatura e tudo se entrelaçando… É de uma ousadia lação do editorial com seus leitores? de sci-fi? nunca antes vista. Então, se o fã ler, por Temos sentido nos últimos anos uma O mercado de sci-fi no Brasil sempre foi exemplo, Marcas da Guerra, que estamos movimentação menos de nicho e mais de ignorado, mas isso tem mudado. A Aleph lançando agora, e que se passa entre o um público geral, que está passando a se construiu durante dez anos um catálogo episódio 6 e 7, ele vai chegar no cinema interessar por ficção científica. Algo -se que causa inveja até às editoras ameri- com mais informações daquele universo, melhante ao que aconteceu com o gênero canas, com Asimov, Clarke, Heinlein, Dick, vai ter uma experiência mais completa. “fantasia” nas últimas duas décadas come- Ursula, Herbert, Crichton, Vonnegut, Scalzi, ça a acontecer com FC no Brasil: jovens Lem, Haldeman. Durante muitos anos tra- Michelle Strzoda é jornalista, editora, tradutora e redescobrindo um gênero praticamente balhamos na formação desse leitor e isso gestora cultural. Autora de O Rio de Joaquim Ma- abandonado no Brasil por livrarias, mídia começou a dar resultado há quatro anos. nuel de Macedo: Jornalismo e literatura no século e grupos editoriais. Mesmo com esse cres- O gênero passou a chamar atenção dos XIX (Casa da Palavra | Biblioteca Nacional, 2010), cimento do público, conseguimos manter grandes grupos, a ponto de o livro mais é diretora editorial da Babilonia Cultura Editorial

A IDADE DOS GAMES FILMES DE SUPER-HERÓIS PREVISTOS PARA OS PRÓXIMOS CINCO ANOS

Street Fighter: 28 anos Deadpool Liga da Justiça Parte I Final Fantasy: 27 anos Batman vs Superman: A origem da justiça Flash The Legend of Zelda: 29 anos Capitão América: Guerra civil Vingadores: Guerra infinita, Parte I Super Mario Bros.: 30 anos X-Men: Apocalypse Pantera Negra Megaman: 27 anos Esquadrão Suicida Aquaman Donkey Kong: 34 anos Gambit Capitã Marvel Pac-Man: 35 anos Doutor Estranho Shazam Doom: 21 anos Wolverine 3 Vingadores: Guerra infinita, Parte 2 Warcraft: 21 anos Guardiões da Galáxia Vol. 2 Liga da Justiça, Parte 2 Resident Evil: 19 anos Quarteto Fantástico 2 Inumanos Tomb Rider: 19 anos Mulher-Maravilha Ciborgue Metal Gear Solid: 28 anos Homem-Aranha Tropa dos Lanternas Verdes Thor 3: Ragnarok

54 55 Resposta ::: Próxima palavra: Tempo PRÓXIMA PALAVRA: empre ouvi dizer que S tempo era dinheiro e que não se tem como recuperar o que passou. Por esse motivo, sempre me recusei trabalhar em lugares distantes da minha casa. Comecei lavando carros, depois montei uma LAN House, aprendi a consertar computado- res, celulares e, assim, sobrevivia TEMPOpor JESSÉ ANDARILHO na favela onde nasci e fui criado. A distância do Centro me prendia nas margens, mas to- Em tempos que voam, em tempos de cultura dos nós sempre precisamos do Centro. Fui fazer um trabalho digital, em tempos de novos territórios como para um cliente e acabei fazen- protagonistas, em tempos de narrativas do o que nunca imaginei. Isso mesmo, aceitei um emprego no de periferia assumindo seu lugar de direito, Centro do Rio. Passei a perder duas horas Jessé Andarilho responde ao… Tempo para ir ao trabalho e mais duas para voltar. No início até me di- loquei para viver aquelas coisas Muitas pessoas me disse- vertia um pouco com os amigos que vinham em minha mente, ou ram para eu fazer networking. dentro do trem, mas depois per- coisas que escutei durante dois Ignorei. Fiz amigos que me aju- cebi que eu estava realmente per- anos em que precisei andar de daram muito. Um deles, o Celso dendo essa parte da minha vida. trens para ganhar o meu sustento. Athayde, mandou meu livro para Um dia o trem quebrou na Durante o processo, co- a editora Objetiva. Eles gostaram estação de Realengo e tivemos mecei a mostrar os textos para e lá publiquei meu primeiro ro- que caminhar pela linha férrea amigos que liam e me ajudavam mance. e esperar outro, que viria lotado. de alguma forma. Uns me davam Hoje cada vez menos pre- Todas as pessoas ao meu lado livros, outros me indicavam even- ciso andar de trem e tenho mais reclamavam, mas percebi que tos literários. Assim fui direcio- tempo para me dedicar aos meus não adiantava ficar gritando para nando o meu tempo vago para as filhos e aos meus textos. Em um quem nunca iria me ouvir e decidi coisas relacionadas à literatura. curto espaço de tempo, pretendo começar escrever um livro no blo- Acabei indo trabalhar num publicar novos romances, poesias co de notas no meu celular. programa de televisão e, em um e contos. Parecia impossível, mas eu curto espaço de tempo, virei dire- só me preocupava com a próxima tor de reportagens e passei a via- Jessé Andarilho é escritor, produtor cultural, palavra. Juntei coisas que vi, vivi e repórter e mediador de conflito. É autor de jar de avião para fazer as matérias. ouvi. Criei um personagem e o co- Fiel (Objetiva, 2014)

55 VIEWFINDER por THIAGO JATOBÁ

Divulgação História viva Visitar um palácio no Centro do Rio e ser guiado por personagens que, de alguma FUTURO maneira, guardam uma relação com o lugar. Essa surpreendente O futuro é agora De volta à selva experiência transforma Em outubro, a Microsoft Mogli – O Menino Lobo [no original, The Jungle Book], em cicerones o revelou em Nova York terá nova adaptação em 2016. A clássica história sobre o Imperador Justiniano, seu Project X-Ray, um menino das selvas, de Joseph Rudyard Kipling, teve seu sua bela mulher, a tipo de “entretenimento primeiro trailer divulgado. O filme é uma aventuraSELVA emlive Imperatriz Teodora, o de realidade mista”, action que reapresenta a história de um menino criado jurista Ruy Barbosa e desses que a gente só via por uma família de lobos. Trazendo o jovem Neel Sethi, a deusa das leis e dos

mesmo no cinema sci- que vive Mogli, como o único ator em ação numa floresta juramentos, Têmis. O DEUSES

fi. Tudo isso é possível totalmente recriados digitalmente, o elenco conta com as programa de visitasHISTÓRIA graças a HoloLens, vozes de Bill Murray (o urso Baloo), Christopher Walken teatralizadas Por Dentro tecnologia que analisa (Rei Louie), Giancarlo Esposito (Akela, líder da matilha do Palácio guia o público sua casa e, assim, cria de lobos), Ben Kinglsey (Bagheera, a pantera negra pelos espaços históricos um wireframe das amiga de Mogli), Scarlett Johansson (a cobra píton Kaa), do Antigo Palácio da paredes, para que elas Lupita Nyong’o (a loba Rakcha) e Idris Elba (o tigre Shere Justiça, sem qualquer saibam exatamente onde Khan). Jon Favreau, de Homem de Ferro 1 e 2, assina a intimidação. “As visitas colocar aquilo que você adaptação. cumprem o objetivo de

comandar: o Netflix na Maíra Barillo aproximar o Tribunal de parede da sala, um Skype Que a força Justiça da população”, na cozinha, visualizar vá até você afirma a diretora do um projeto em cima Para comemorar o Centro Cultural do Poder de sua escrivaninha retorno de Star Wars aos Judiciário, Silvia Monte. etc. A versão para cinemas, com a estreia Indicada para todas as desenvolvedores de O despertar da força idades, a atividade é custará a “bagatela” em dezembro, o correio gratuita. Informações e de 3.000 dólares. Os do Reino Unido anunciou agendamentos: interessados poderão uma série de selos da 21. 3133-3366 submeter propostas saga. São 12 ilustrações, ou 3133-3368. em diversas áreas já disponíveis desde o como arte, games e até final de outubro, com mesmo medicina. As personagens como Darth E por falar em futuro... ideias serão analisadas Vader, Yoda, Obi-Wan O grupo de teatro carioca BARKA leva ao palco do Sesc FORÇApor um júri e as cinco Kenobi, os Stormtroopers, Copacabana, em 10 de novembro, o espetáculo Três por melhores receberão um Han Solo (com quatro. Em cena, cinco atores desenrolam a história de prêmio de 100.000 Chewbacca ao fundo), a um futuro distópico, onde uma epidemia que dizimou dólares, além de dois kits Princesa Leia, o imperador a cidade, isola estes desconhecidos em um ambiente de desenvolvimento de Palpatine, Luke Skywalker, protegido para que se mantenham vivos e deem HoloLens. Uma amostra Boba Fet, além dos novos continuidade à humanidade. Numa mistura de reality do gameplay pode ser protagonistas Rey, Finn e show com O anjo exterminador, de Buñuel, a dramaturgia vista em: www.youtube. Kylo Ren. Confira a galeria de Dominique Arantes, com direção de Rubia Rodrigues, com/watch?v=iu0gM0_ de imagens em: www. guia estes personagens numa narrativa de reflexão vxIM royalmail.com/starwars poderosa sobre a alienação, a reprodução de discurso e as relações sociais contemporâneas. 56 BARKA 57 CURTA TABU!

Divulgação por ANDRÉA CALS

O compromisso do Grupo Estação sempre foi com a qualidade do conteúdo, exibindo e promovendo filmes até então quase – ou totalmente – inacessíveis ao circuito de cinema brasileiro. Não à toa fez história nesses trinta anos de cinema, faz parte da formação da cultura carioca, colocando o

Rio de Janeiro mais uma vez no lugar de Cicero Rodrigues capital da cultura brasileira. Com apenas três anos, o Canal Curta! tem o mesmo foco. O Curta! é um canal independente, dedicado às artes, cultura e ciências humanas, cuja programação é composta de séries e filmes documentais, curtas-metragens e longas de ficção. Falamos de cinema, música, dança, teatro, artes visuais, filosofia, literatura, psicologia, política e sociedade, priorizando a produção brasileira independente. A parceria entre DEUSES o Canal Curta! e o Grupo Estação/Revista TABU é uma atração natural. Com a união HISTÓRIA desses veículos de comunicação, são priorizadas informação e cultura, além do incentivo do gosto pelo questionamento, do prazer pelo conhecimento.

Eram os Deuses Andréa Cals é curadora, jornalista e produtora do Canal Curta! mutantes? Um time de super-heróis

inspirados nos deuses Divulgação de outros sons, numa hindus é a aposta da Cinema pipoca pegada cool e divertida. Disney Pixar para os Saca tudo de cinema De lá pra cá, o artista já tradicionais curtas- jovem e cultura pop? obteve o sétimo lugar na metragens de animação Então desafiamos você lista Melhores Músicas que antecedem seus a encontrar 66 dessas Nacionais de 2014, da longas. Sanjay’s Super referências escondidas Pará para ouvir Rolling Stone, tocou Team será exibido nos em uma garagem O tecnobrega é umas das no festival espanhol cinemas antes de O entulhada, a PopCorn expressões mais originais Primavera Sound e lançou Bom Dinossauro, que Garage. Itens como o do pop nacional, disso seu primeiro albúm #1, no tem estreia prevista para Delorean de De volta ninguém duvida. Mas, fim de outubro. Afastando janeiro de 2016 no Brasil. para o futuro estão e se, além dos temas estereótipos criados por A história do pequeno bem à mostra, mas há eletrônicos/dançantes outros artistas do brega, menino de descendência outros menos visíveis, de Gaby Amarantos e Jaloo aponta para o ritmo indiana se confunde com como os dinossauros Gang do Eletro, houvesse e para seu trabalho um a do diretor da animação, de Jurassic Park. Para um universo de novas novo horizonte. “Quero Sanjay Patel, já que jogar, basta acessar referências, como o R&B e atingir tanto o ouvinte mostra um garoto que o site popcorngarage. o Bass, com um refinado típico do tecnobrega parecia curtir mais os com, escolher entre acabamento, quase quanto outros públicos”, superpoderes dos heróis os idiomas inglês ou intimista? O paraense comenta. da TV do que o culto aos francês, e digitar o título Jaime Melo, o Jaloo, deuses em família, mas do filme ao qual cada começou a estourar na E-mails para esta coluna: acaba percebendo algo item pertence. Mas, web em meados de 2010, [email protected] em comum aos dois cuidado: três filmes com covers de “Back to universos. Assista o teaser errados, as luzes da Black” (Amy Winehouse) Thiago Jatobá é produtor em: www.youtube.com/ garagem se apagam e “Oblivion” (Grimes), além cultural, produtor de watch?v=222ztGhX4SE e é fim de jogo. de mashups e releituras conteúdo e educador 56 TECNOBRE57 GA REcine iê, iê, iê RECINE IÊ, IÊ, IÊ Acervo REcineAcervo m 2002, ninguém imaginava que uma sim- Eples mostra temática de filmes, que surgiu com o objetivo de tornar películas raras oriundas de cinematecas e arquivos de filmes mais acessí- veis ao público, seria, 13 anos depois, um dos mais festejados e originais festivais de cinema do Brasil. Com o tema REcine Iê, Iê, Iê, a edição 2015 do REcine – Festival Internacional de Cinema de Arquivo apresenta o lado cinematográfico do movimento da Jovem Guarda, que comemora cinquenta anos. Nesta festa exaltamos o Rei Roberto Carlos com a exibição dos seus três cultuados filmes, di- rigidos por Roberto Farias. Dançamos com Os reis do Iê, Iê, Iê, Os Beatles. Mostramos um raro The Monkees. Exibimos os biquínis de Annete Funiccello e os passos do Twist da Turma da Praia. Resgatamos Nas ondas do Iê Iê Iê, filme com roteiro e atuação de Renato Aragão, em que Chacrinha, o Velho Guerreiro, toca sua buzina para Wanderley Cardoso, Simonal, The Fevers e muitos outros destaques dos primórdios do pop brasileiro. O REcine, em outro formato e com novas atra- ções, deixa sua velha casa no Centro da cidade, para festejar de 14 a 22 de dezembro, nas salas do Es- tação Net Botafogo e na tradicional Cinemateca do MAM RJ, o seu 14º aniversário, com muita energia e alegria.

Programação completa: www.recine.com.br

Ricardo Favilla é produtor, roteirista e diretor de cinema e TV. Trabalhou em mais de trinta filmes, sendo dois indicados para o Oscar de filme estrangeiro:O quatrilho e O que é isso, companheiro

58 59 FAC-SÍMILE TABU ::: TABU n0 11, ano II, mar/87

FAC-SÍMILE TABU

Neste texto de 1987, o progra- mador da Cinemateca do MAM RJ, o crítico de cinema Ronald F. Monteiro, e não E. Monteiro – como então publicado –, registra a última reforma da sala e mostra como os caminhos da Cinema- teca e do Grupo Estação já se alinhavam no passado. Ronald se foi, mas seu carinho, apreço e presença, tanto na Cinemateca quanto no Estação, são indisso- ciáveis da história dessas salas.

58 59 Histórias do Estação ::: Eu queria ver ‘Iracema’ Histórias do Estação EU QUERIA VER por MARCELO FRANÇA MENDES ‘IRACEMA’ Acervo Estação Acervo

60 60 61 Histórias do Estação ::: Eu queria ver ‘Iracema’ Acervo Estação Acervo

ubia a serra de Petrópolis, como já fizera Stantas vezes, parando nos velhos antiquá- rios de beira de estrada, onde gostava de garimpar velharias a esmo. Dessa vez, me chamou a atenção uma cópia 35mm bem antiga e empoeirada, esqueci- da há sabe-se lá quanto tempo embaixo de um sofá velhusco e desbotado. Tentando não demonstrar muito interesse, pergunto do que se trata. Zé, um senhor prestativo mas um tanto lento, diz que não sabe. Deve ser o calor do verão, penso sobre a lentidão de Zé. Tentei descobrir o que era, mas as latas enferrujadas não traziam qualquer identificação. Como já conhecia Zé de outras visitas, perguntei se podia levar um dos seis rolos para tentar ver num local apropriado. Zé, lentamente, concordou. Trouxe o rolo para a cabine do Estação, botei na me revela que a cópia está, enfim, no MAM. Perplexo, enroladeira e o único nome identificável era “Irace- escuto o desfecho: um amigo do filho do novo dono ma”. Não se tratava, obviamente, da versão de 1917 do antiquário da Serra reconheceu que aquelas latas de Capellaro, ou a de 1976 da dupla Bodanzky/Senna, velhas abrigavam um filme e, muito provavelmente ou ainda a de Carlos Coimbra, de 1979. Era outra guiado por São Cosme e a luz de seu charuto, teve “Iracema”, desconhecida para mim. É importante a ideia de levá-la até o MAM. Naquele momento esclarecer que não havia na época o IMDB. E não ela, “Iracema”, repousava secando o suor de anos havendo IMDB, liguei para seu substituto em carne de abandono. e osso: Hernani Heffner, do MAM. É raro!, alertou. No Tinha sido feito por italianos e era o primeiro primeiro fim de semana parti como uma bala para trabalho da grande atriz Ilka Soares, no auge de seus resgatar os mistérios daquela Iracema. 17 anos. Reza a lenda que Ilka aparece nua neste Só que não deu. Zé disse que o patrão disse filme, e, diante da dúvida e curiosidade, Hernani que era no mínimo dez. Dez o quê?, perguntei. Dez resolveu telefonar para a distinta senhora. Ela riu e mil. Dez mil não dá, Zé. E o diálogo não foi mais pro- negou. Disse que usava um collant, e sua mãe estava fundo que isso. Zé não arredou o pé em outras duas com ela no set. Não há razão para duvidar, embora vezes que voltei. Pensava no calor e na lentidão de memória seja algo traiçoeiro. Aposto que Hernani Zé e pensava o quanto a cópia devia estar sofrendo arrematou: Mas collant cor de pele na água? embaixo daquele sofrido sofá. Argumentava que E assim preservamos nossa memória, ao acaso. a cada dia a cópia valia menos, ao contrário das O acaso e umas poucas pessoas, como Cosme Alves demais coisas dali. Na quarta vez, ela não estava Netto, salvaram boa parte do que sobrou. Graças a mais lá. Nada estava mais lá. Como num episódio pessoas assim talvez um dia, se “Iracema” secar e de Além da imaginação tudo havia sumido. O patrão Hernani acertar a hora exata de desenrolar o filme, vendeu o negócio, provavelmente com Zé dentro. saibamos, afinal, o efeito de Ilka Soares aos 17 anos Corta, anos depois. Estamos celebrando eu, saindo de um lago com collant cor de pele. Ricardo Cota e Hernani Heffner a parceria Estação/

MAM. Hernani pergunta se eu lembro de “Iracema” e Marcelo França Mendes é presidente do Grupo Estação

60 61 CARTUM TIAGO LACERDA por

Tiago “Elcerdo” Lacerda é ilustrador e quadrinista. Editor e autor da revista Beleléu, é também colunista e colaborador da Folha de São Paulo

PLAYLIST MARCELO JANOT

m uma das cenas mais uma vez na América, contando Etocantes do documentá- A TRILHA com outra contribuição magistral rio Onde a Terra acaba, de Sergio de Ennio Morricone, dessa vez em Machado, Walter Salles relem- registro bem diferente dos wes- bra seu encontro com o lendário DA PASSAGEM terns da dupla. diretor de Limite, Mario Peixoto. São trilhas que funcionam Ao mostrar um relógio de parede DO TEMPO tão bem na tela quanto fora dela. para Walter, Mario disse: “Nunca Quando Forrest Gump foi lança- se esqueça de que, cada vez que do, ilustrado musicalmente por o ponteiro apontar mais um, mais 1. A ÁRVORE DA VIDA canções das diferentes épocas um, na verdade ele está querendo 2. AMARCORD em que se passa o filme, fez tanto dizer menos um, menos um”. Essa 3. AMOR À FLOR DA PELE sucesso nas lojas de disco quanto brilhante reflexão sobre a pas- 4. ANO PASSADO EM MARIENBAD na tela. sagem do tempo se torna ainda 5. CINEMA PARADISO Por fim, lembro o papel que mais emocionante acompanhada 6. DE VOLTA PARA O FUTURO a música cumpre na narrativa de pela música de Erik Satie na trilha. 7. ERA UMA VEZ NA AMÉRICA dois mestres em lidar com a pas- Na hora de pensar em uma 8. FORREST GUMP sagem do tempo: Alain Resnais playlist musical de filmes que 9. ONDE A TERRA ACABA e Wong Kar-Wai. E, mesmo pre- lidam com a passagem do tem- 10. 2001: UMA ODISSEIA NO ESPAÇO sente na playlist da última edição po, em muitos casos é a emoção da TABU, sobre filmes para viajar, despertada pelas trilhas que faz 2001: Uma odisseia no espaço, o com que os filmes venham à lem- Outros dois diretores italia- melhor filme sobre a passagem brança. nos se valeram desse clima nos- do tempo, não podia ficar de fora É inegável que a música de tálgico para realizar obras-primas com sua trilha que sobreviverá por Ennio Morricone arrancou lágri- com trilhas sonoras inesquecíveis. muitas gerações. mas do mais durão dos especta- Federico Fellini despejou suas me- dores e contribuiu muito para o mórias em Amarcord ao som de sucesso de Cinema Paradiso, de Nino Rota, enquanto Sergio Leone Marcelo Janot é crítico de cinema, espe- Giuseppe Tornatore. narra a saga de Noodles em Era cialista em trilhas sonoras

62 63 Orson Welles em Julius Caesar, 1937, Mercury Theater. Cortesia: Special Coll.

University of Michigan. divulgação

63 CIRCUITO CULTURALNET

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