Entrevista Fábio Lucas Nilze Paganini*

Nilze Paganini: Ao lançar Tendência, Se eu voltasse ao passado com os em agosto de 1957, o senhor, Affonso conhecimentos que acumulei, certamente Ávila e Rui Mourão eram muito jovens. haveria de refinar o pensamento. Mas O senhor, por exemplo, contava apenas isso constitui um sonho impossível. com 26 anos, Affonso Ávila tinha 29 e Rui Mourão, 28. Hoje, 50 anos depois, o NP: O senhor foi diretor de Tendência que o senhor reformularia da proposta de 1 (1957) e Tendência 2 (1958). Rui Tendência? Mourão passou a ser o diretor nos Fábio Lucas: A iniciativa de publicar a números 3 (1960) e 4 (1962). Havia uma revista Tendência derivou de dois fatores função, de fato, para o diretor? concernentes à época: a massa crítica que FL: Fui diretor da revista Tendência se desenvolvia então, de um nacionalismo por uma questão tática: eu tinha acesso antiimperialista, e do engajamento à Imprensa Universitária, ora em participativo de que estávamos implantação, e o então Reitor, Professor impregnados. Desejávamos ingressar Lincoln Prates, a quem prestei assessoria, na luta social com as armas de que permitiu que usássemos as instalações dispúnhamos: o discurso argumentativo da Imprensa, em fase experimental, e a denúncia dos estratos superiores da sem ônus para nós, além de pequenas sociedade, acomodados à aliança com as despesas de custeio. O nome “Tendência” empresas multinacionais que exploram foi escolhido por mim, para indicar a as riquezas do país, sem contribuições ao inclinação à esquerda que comandava o avanço sócio-econômico dos nacionais. grupo. Éramos independentes e rigorosos Deste modo, entendíamos que a literatura na escolha do material a ser publicado. de criação estaria exposta às sugestões da O foco: literatura nacional. Portanto, época. Assim sendo, não posso imaginar apologia dos escritores brasileiros fiéis que reformulasse as propostas de então. à brasilidade. Quando fui contratado, em

* Entrevista realizada em setembro 2007. SCRIPTA, , v. 17, n. 33, p. 267-276, 2º sem. 2013 267 Entrevista: Fábio Lucas regime de tempo integral, pela Faculdade penso que seria lida, de preferência, de Ciências Econômicas, graças ao pelos leitores motivados pela causa convite do Professor Ivon de Magalhães nacional, então em rumorosa exposição Pinto, achei mais prudente passar a nas ruas, na imprensa e nos meios diretoria da revista ao companheiro políticos. Houve curioso equívoco na Rui Mourão, inteiramente integrado ao época: dadas as condições da imprensa, espírito da revista. o impressor coloriu as letras de verde. Alguns integralistas acharam que éramos NP: E o secretário Adônis Martins nacionalistas conservadores, da velha Moreira que aparece no expediente dos direita. Ao se defrontarem com citações dois primeiros números? Cumpria qual numerosas de existencialistas (Sartre em função? primazia) e marxistas, desgostaram do FL: Adônis Martins Moreira era colega projeto “Tendência”. meu na Faculdade de Direito. Poeta, de inteligência excepcional, líder estudantil, NP: Quem escrevia os editoriais de tornou-se secretário da Tendência, Tendência? ajudando-nos a colher e organizar as FL: Em princípio, os editoriais eram de colaborações. Amigo da diretoria, retraía- minha autoria. Mas estavam afinados se, modesto, deixando o maior espaço com os propósitos do grupo. Tínhamos a Affonso Ávila, Rui Mourão e a mim. intenções aglutinantes, aspirávamos que Leitor insaciável, chegou a fazer uma a revista cobrisse o país inteiro. tradução do poema “Le Cimetière Marin” de Paul Valèry, em versos brancos, que NP: No seu primeiro editorial, Tendência logrei passar a Nelito de Oliveira,* que dizia ligar-se a uma orientação, buscando a publicou no Suplemento Literário do uma homogeneidade de concepções. , após a morte do Adônis. Ao mesmo tempo, a revista abriu um O amigo deixou uma coletânea de grande espaço para colaboradores. poemas que espero editar um dia. Os colaboradores eram escolhidos de acordo com a proposta da revista de NP: A quem se dirigia Tendência? Qual um “nacionalismo-crítico-estético”, era seu público-alvo? expressão de Affonso Ávila? FL: Verdadeiramente não havia um FL: Sempre chamamos a atenção para o público-alvo de Tendência. Se a revista fato de que a uma causa revolucionária incorporava uma intencionalidade, deveria corresponder uma forma revolucionária. Daí nossos aplausos * - Anelito Pereira de Oliveira, provavelmente. 268 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 17, n. 33, p. 267-276, 2º sem. 2013 Entrevista: Fábio Lucas ao experimentalismo e às vanguardas, espaços publicitários? A informação que assunto da época. Quem se detiver tenho é que era distribuída gratuitamente na doutrina da Tendência encontrará aos intelectuais e colocada em invariavelmente o apelo para o cuidado consignação em livrarias. estético, para o bom acabamento da obra FL: Para completar o que ficou dito literária. De certa forma, ecoávamos as acima, faço breve menção ao “Relatório preocupações de Mário de Andrade, que do Reitor Lincoln Prates”, publicado pela se decepcionara com as facilidades com Imprensa Universitária da Universidade que o Modernismo agraciou as vocações de Minas Gerais, em 1958. Dele consta, para as letras, de tudo resultando entre as publicações, o número 1 da uma produção irrisória, sentimental e Revista Tendência em agosto de 1957. A desinteressante. A boa literatura deveria Imprensa estava em fase de implantação. provir de boa técnica, adquirida ao fim É preciso assinalar que Lincoln Prates de longo trabalho artesanal. O caso de foi o maior realizador da transferência Affonso Ávila é exemplar na poesia e de da UFMG para o campus da Pampulha. Rui Mourão na prosa. Ambos se foram Criou a Cidade Universitária, após renovando ao longo da carreira literária. instituída a Comissão Supervisora de Também tiveram um pé na Tendência Planejamento e Execução e o aluguel do Silviano Santiago e Affonso Romano prédio que abrigou o Escritório Técnico de Sant’Anna. Dois nomes na prosa, ao da Cidade Universitária, à Rua Espírito tempo de Tendência, deitaram grandes Santo, 1186, onde trabalhamos Eduardo esperanças: Wander Piroli (cujo modelo Mendes Guimarães Jr. (arquiteto que inicial seria Hemingway) e Gaspar concebeu o prédio da Reitoria e, mais Garreto (mais voltado, então, para tarde, o estádio de futebol popularmente Faulkner).** designado por “Mineirão”) e eu (sob a direção do jurista Rui de Souza, NP: A revista foi impressa na Imprensa encarregado de desapropriar e demarcar Universitária, da UFMG, na época os terrenos da Cidade Universitária) em que o senhor foi assessor do reitor que acompanhei no o Lincoln Prates. Quem pagava os custos desembaraço alfandegário de máquinas da impressão, ou seja, como a revista destinadas à Imprensa Universitária, cujo era financiada, uma vez que não vendia funcionamento principiou em outubro de ** Silviano Santiago e Wander Piroli não publicaram 1956, à Rua Ouro Preto, 1197. Também em Tendência. Affonso Romano de Sant’Anna publicou o poema “A crise” em Tendência 4 (1962, acompanhei a publicação do Boletim p. 76-82) e Gaspar Garreto assinou “A lenta jornada Informativo da então Universidade de de medo”, em Tendência 3 (1960, p. 78-97). SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 17, n. 33, p. 267-276, 2º sem. 2013 269 Entrevista: Fábio Lucas Minas Gerais, com verdadeiro espírito vida executiva. O mesmo se pode dizer universitário. Todas as unidades tinham do diretor da Faculdade de Ciências espaço na publicação, inclusive os Econômicas, Prof. Ivon Magalhães Pinto, noticiários dos estudantes. As atividades que nunca se utilizou de carro oficial culturais eram destacadas, especialmente para os seus deslocamentos. A revista os seminários de estudos da cultura Tendência esteve à venda nas livrarias mineira, criados pelo Reitor Lincoln de Belo Horizonte. Pessoalmente custeei Prates, que, além da Imprensa, criou o a remessa de 50 exemplares à Livraria Teatro Universitário (o Professor Jean São José, do Rio. Venderam-se todos os Beray fora contratado para lecionar arte exemplares, sem que, até hoje, houvesse dramática. Afastado, foi substituído prestação de contas por parte dos por Carlos Kroeber, que prelecionava livreiros. sobre arte cênica no prédio à Avenida Brasil, 1814); criou o Coral Universitário NP: Em um depoimento a Eliana da dirigido e regido, então, pelo estudante Conceição Tolentino, para sua dissertação Isaac Karabtchevsky (posteriormente de mestrado sobre a revista Vocação, o coube ao Maestro Sérgio Magnani dirigir senhor disse que o Cyro dos Anjos era o o Coral); o Reitor Lincoln Prates ainda presidente do IPASE e que ele liberava instalou a Biblioteca e Serviço Central de pagamentos de publicidade. Tendência Informações Bibliográficas à Rua Espírito 1 e 2 também apresentam propaganda do Santo, 1186. Criou, além do Boletim IPASE. Além disso, apareceu um texto Informativo, a Revista Brasileira de do governador Bias Fortes, como um Estudos Políticos, segundo proposta discurso, em Tendência 1 e um texto do Vice-Reitor Orlando de Carvalho, sobre atividades culturais da Prefeitura mais a série de obras saídas à época sob de Belo Horizonte em Tendência 4. a orientação da revista e, além disso, o Eram textos pagos? Reitor nomeou Eduardo Frieiro e Aires FL: Era comum, na ocasião, buscarmos da Mata Machado Filho para organizar publicidade de onde pudesse vir. O a Biblioteca de Autores Mineiros. Deste setor privado era refratário à aventura modo, a revista Tendência se beneficiou intelectual dos jovens. No setor público da visão abrangente do Reitor Lincoln encontramos algum apoio. Garantida Prates para sua edição. É bom que se a impressão, os outros itens de custeio, destaque que foi o mais probo, modesto correspondência e impressão eram e eficiente servidor público que conheci. cobertos, em parte, pela publicidade. Não há rastro de nepotismo na sua 270 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 17, n. 33, p. 267-276, 2º sem. 2013 Entrevista: Fábio Lucas NP: Os seus textos, em Tendência, trouxe para o brasileiro uma linguagem mostraram uma evolução que se iniciou literária exclusiva, tão genuinamente com uma interlocução com o campo do nacional que se tornou intraduzível, direito, sua área de formação universitária, na sua plenitude, para outros idiomas. e caminharam para a crítica literária, a Guimarães Rosa, a meu ver, sem descurar lingüística, a filosofia, a sociologia, etc. os contributos de clássicos ocidentais e O que se pode notar, contudo, é que o orientais, disse adeus ao eurocentrismo senhor manteve a mesma proposta de no modo de construir sua narrativa. literatura nacional nos quatro números. Nem ousou tanto, já Tendência 4 reafirmou os princípios que a sua retidão vernaculista lembra a de Tendência 1. O senhor começou lição dos clássicos portugueses. Quanto revendo a conceituação de outros à doutrina nacionalista, chamo a atenção críticos sobre literatura nacional, para, para os meus dizeres no “Conceito de finalmente, afirmar que uma literatura Literatura Nacional” em Tendência, somente se tornaria nacional quando se número 1, agosto de 1957 (há 50 anos, transformasse em um dos instrumentos portanto): “Poder-se-ia resumir dizendo de afirmação de um grupo social que que, hodiernamente, o nacionalismo tivesse atingido o estado de solidariedade se manifesta na defesa do patrimônio e coesão. Para isso, precisaria apoderar- econômico e cultural de um povo” (p. se de meios de expressão convincentes 21). Adiante, teremos: “A esta luta, pois, que, além de traduzir o sentimento, de resistência contra as dominações refletissem uma forma nacional. Ou alienígenas, contra a destruição das seja, para haver literatura nacional, seria reservas culturais dos povos é que damos preciso que o país se constituísse em uma o nome de nacionalismo” (p. 23). “A nação. O senhor acredita na possibilidade Literatura é parte de uma realidade de “formas nacionais”? cultural” (p. 26).*** FL: As “formas nacionais” se impuseram com o tempo. Exemplo: a crônica, tal como NP: Nesse seu primeiro texto publicado praticada pelos escritores brasileiros, em Tendência, o senhor discute o jungidos aos jornais e revistas, introduziu conceito de literatura de outros críticos, um espaço de lirismo, de crítica social e principalmente o de Sílvio Romero e de humor ao linguajar informativo do o de Afrânio Coutinho. Por que não há veículo, transcendente da obrigação *** Ao invés de “A Literatura é parte de uma diária de trazer novidades para o leitor. realidade cultural”, a frase foi impressa da seguinte A obra de Guimarães Rosa, por sua vez, forma: “A literatura é parte de uma unidade cultural.” (Tendência, 1957, p. 26). SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 17, n. 33, p. 267-276, 2º sem. 2013 271 Entrevista: Fábio Lucas nenhuma menção a Antonio Candido? literários, desde que mencionada a fonte. FL: Não éramos organizados na formulação de nossos desígnios, nem na NP: Um intelectual que parece ter utilização da bibliografia. Mas, se você sido muito caro ao senhor foi Mário reparar, há destaque, em Tendência, de de Andrade. Ele foi muito citado citação de Antonio Candido. Mesmo no em Tendência pelo senhor, além de meu estudo acerca da literatura nacional, ter merecido ensaios seus. O senhor faço breve referência ao grande crítico considerou Mário de Andrade um modelo e ensaísta brasileiro.**** Creio que, na de intelectual? época de Tendência, não logrei situar a FL: Ingressei na seara da literatura proposta de Antonio Candido por uma fascinado com as lições de Mário de literatura nacional. Mas ontem, como Andrade. Naquela época, eu lia tudo hoje, considero-o como uma das mais de sua autoria que me caísse nas mãos. poderosas inteligências do país, talvez Com o tempo, reduzi sua influência sobre a personalidade literária mais influente as minhas noções de literatura. Mas no magistério de literatura em nosso continuo a considerar Mário de Andrade país. Tanto assim que, quando integrei como uma das grandes mentalidades o grupo encarregado de conceder o fundadoras da cultura brasileira. A Prêmio Camões, batalhei quanto pude complexidade de nossa formação atual para que o seu nome fosse escolhido. e a emergência de novas estruturas de Tive a felicidade de encontrar resposta comunicação ficaram, em alguns pontos, à minha indicação. Observe bem: na fora do alcance do pensamento de Mário capa do número 1 da revista Tendência de Andrade. consta o nome de Antonio Candido. Transcrevemos pronunciamento dele NP: Outro autor que apareceu com muita sobre Guimarães Rosa. Em nossa freqüência em seus primeiros textos de ingenuidade sequer pedimos licença para Tendência foi Nelson Werneck Sodré. fazê-lo. Na época, citavam-se livremente Como o senhor avalia a influência do os autores saídos em suplementos Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) na revista? **** Não há referência a Antonio Candido em Tendência, nem da parte de Fábio Lucas, nem de FL: A obra de Nelson Werneck Sodré qualquer outro articulista. O que existe, de fato, é a transcrição de um trecho de artigo sobre Grande Introdução à Revolução Brasileira sertão: veredas, de Guimarães Rosa, escrito por fora por mim analisada na Revista da Antonio Candido para O Estado de S. Paulo em Tendência 1 (1957, p. 76), sendo que o nome Faculdade de Ciências Econômicas, do crítico aparece também no sumário daquele quando, então, perfilhei algumas idéias primeiro número da revista. 272 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 17, n. 33, p. 267-276, 2º sem. 2013 Entrevista: Fábio Lucas que nos eram comuns. A primeira Economia.***** obra do autor a impressionar-me foi Síntese do Desenvolvimento NP: Também é notória a influência de Literário no Brasil, que evitava citar Jean-Paul Sartre sobre o pensamento nome de autores e relacionava idéias, desenvolvido pelo senhor naquela época. correntes de opiniões. Gostei menos O livro Situações II, de Sartre, serviu de da História da Literatura Brasileira: epígrafe para o seu texto “Caminhos da seus fundamentos econômicos, que me consciência literária nacional”, publicado pareceu extremamente esquemática e em Tendência 3. O senhor poderia falar frustrante em algumas observações. sobre isso e sobre a visão de literatura Quanto ao ISEB, pasma a indiferença engajada da revista? com que as suas publicações são tratadas FL: O “engajamento” era uma das ainda hoje, mormente nas universidades palavras-chaves da época. Fui leitor paulistas. Seria salutar para os estudos constante dos trabalhos de Jean-Paul brasileiros a reabertura da bibliografia Sartre. Explorei muito a idéia da obra do ISEB, desigual, mas importante para como “apelo” constante do ensaio o desenho da nacionalidade em face de “Qu’est-ce que la littérature?” do livro suas aspirações. A indignação com que a Situations II, de Sartre. Conforme tenho ditadura militar destruiu a contribuição do acentuado, a gente mesclava muito o ISEB traduz bem o caráter emancipador existencialismo com o marxismo. O das propostas em curso naquele instituto próprio Jean-Paul Sartre procurou o de estudos brasileiros. Possuo, ofertados mesmo caminho, quando publicou a pelo autor, os dois volumes da obra sua Critique de la Raison Dialectique Consciência e Realidade Nacional, de 1960. No meu livro Compromisso de Álvaro Vieira Pinto, ainda não Literário encontram-se ecos do meu devidamente estudada e avaliada no trabalho na linha já anunciada na revista Brasil. O primeiro volume cuida de “A Tendência, que editamos de 1957 a 1962. Consciência Ingênua” e o segundo de “A NP: No arquivo de Rui Mourão, há uma Consciência Crítica”. Álvaro Vieira Pinto carta-resposta de João Cabral de Melo chefiava o Departamento de Filosofia Neto, endereçada ao senhor, escrita em do ISEB; Nelson Werneck Sodré o ***** Ao ser criado, em 1955, o ISEB possuía Departamento de História; Cândido A . cinco departamentos: o de Filosofia, dirigido Mendes de Almeida o Departamento de Álvaro Vieira Pinto; o de História, pelo qual Cândido Mendes respondia; o de Economia, Política; Júlio Barbosa o Departamento chefiado por Ewaldo Correia Lima; o de Sociologia, de Filosofia e Ignácio M. Rangel o de sob a direção de Guerreiro Ramos e o de Ciências Políticas, coordenado por Hélio Jaguaribe. SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 17, n. 33, p. 267-276, 2º sem. 2013 273 Entrevista: Fábio Lucas Sevilha e com data de 11 de janeiro de (Tendência 4, 1962, p. 61). O senhor 1957. O texto dessa carta mostra que continua achando que poesia deveria o senhor havia pedido colaboração ao se realizar apenas pela palavra, sem a poeta pernambucano e ele lhe dá alguns utilização e procedimentos de outras conselhos, especialmente sobre pesquisa artes? formal em literatura. João Cabral de Melo FL: As divergências entre mim e os Neto teria sido um mentor intelectual concretos nasceram principalmente para o grupo Tendência? de princípios conceituais. Achava- FL: Tive diálogo freqüente com João os alienados. Além disso, percebi Cabral de Melo Neto, interrompido que eles adotavam, como iniciativa pela falta de endereço dele, nas suas sua, idéias, conceitos e avaliações andanças de diplomata. Dei notícia entradas no Brasil como contrabando. disso, ao transcrever trechos de sua O diálogo da escrita com o espaço correspondência no meu livro O poeta gráfico, este último pareceu-me e a mídia: Carlos Drummond de rico não como categoria estrutural, Andrade e João Cabral de Melo Neto. mas como ornamento intensificador João Cabral não chegou a ser “mentor” do discurso literário. Hoje em dia do nosso grupo. Não incorporei ao meu os limites dos gêneros literários repertório todas as suas reivindicações, perdem sua nitidez. Temos ensaios pois discordamos acerca de autores em forma de ficção e narrativas de brasileiros. cunho reflexivo, filosófico. Poemas que convergem para a prosa; e prosa NP: O último número de Tendência poética, até metrificada. Mas tudo no (1962) revelou ter havido um debate âmbito das palavras. As artes plásticas intenso de Haroldo de Campos e Décio guardam outros fundamentos, como Pignatari, poetas do grupo concretista também a escultura e a arquitetura. A paulista, com os membros da revista. estética, desde o início, situou a arte O senhor e Rui Mourão pareciam mais como busca do belo. Hodiernamente, reticentes às idéias dos concretistas do abandonou-se a noção de beleza, que Affonso Ávila. O senhor escreveu difícil de definir, e se concentrou que a contribuição de outras artes mais na construção artesanal da seria estranha à poesia e que seria obra, ou no deslocamento do objeto “improcedente denominar-se <> de sua função prática para o foco do ao produto da <> e da unidade verbivocovisual” mas edificante. O tema é por demais 274 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 17, n. 33, p. 267-276, 2º sem. 2013 Entrevista: Fábio Lucas complexo e não cabe discuti-lo em toda Como o senhor explicaria o fato de a sua extensão, pois envolve a crise do textos sobre a literatura daquela época sujeito e o poder da recepção da obra, não incluírem Tendência entre as condicionante ou talvez modificante do vanguardas? Cito, apenas como exemplo, trabalho criador. Vanguarda européia e Modernismo brasileiro: apresentação dos principais FL: Nesse mesmo ensaio, o senhor poemas, manifestos, prefácios e disse que a poesia moderna seria um conferências vanguardistas, de 1957 a diálogo com letrados porque a enorme 1972, de Gilberto de Mendonça Teles, e distância existente entre a elite e o povo, Impressões de viagem: CPC, vanguarda causada por profundas desigualdades e desbunde: 1960 / 1970, de Heloísa sociais, teria feito com que os artistas Buarque de Hollanda. modernos se requintassem ao extremo, FL: O problema das vanguardas constitui sem conseguir dialogar com a maioria. uma corrida de mau agouro, cada grupo a Enquanto não fossem corrigidas as buscar a dianteira em relação aos demais. desigualdades, pela via política, os Sobre isso refleti na obra Vanguarda, intelectuais continuariam condenados a história e ideologia da literatura.****** escrever para seus semelhantes. O senhor Tendência trazia o seu espírito de continua pensando da mesma maneira? vanguarda atrelado à noção de totalidade. FL: Penso que a desigualdade social e Daí que a idéia de revolução de conteúdo econômica do Brasil é tão pronunciada contaminasse as experiências formais. E que acaba polarizando os modos de vice-versa. A omissão de Tendência em expressão. Tenho lido vários autores da vários balanços contém fundo ideológico, chamada periferia e sinto preocupações preconceito e reserva de poder literário temáticas diferentes das inscritas no ****** Nesse livro, no artigo “Vanguarda literária romance ou na poesia das camadas no Brasil”, Fábio Lucas apontou os movimentos vanguardistas brasileiros, começando pelo mais letradas. O cinema brasileiro Modernismo. Nos anos de 1950/1960, relacionou, tem absorvido, em linguagem de sutil como exemplos de poetas de vanguarda: o grupo concretista reunido em torno da revista Noigrandes; acabamento, o impasse da população ; Mário Chamie; Alvaro de Sá favelada, nesta época de intenso inchaço e Wlademir Dias Pino, os dois últimos como representantes do “poema-processo”; Affonso Ávila urbano. e Affonso Romano de Sant’Anna, participantes da revista Tendência, e destacou também as obras de Sebastião Nunes e Hilda Hilst (LUCAS, 1985, NP: O senhor considera que o p. 36-37). Contudo, em outro texto do mesmo livro, Lucas afirmou que o Concretismo seria movimento Tendência pode ser incluído caracterizado como “falsa vanguarda”, divulgando nas chamadas vanguardas de 1950/1960? “obras de suporte teórico das ‘novidades’ que já eram antigas” (LUCAS, 1985, p. 10). SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 17, n. 33, p. 267-276, 2º sem. 2013 275 Entrevista: Fábio Lucas para grupos beneficiados pela mídia. Em Ou os senhores também teriam atacado determinadas circunstâncias a omissão para se defender? traduz pura e simplesmente arrematada FL: As polêmicas em que nos envolvemos ignorância. se traduzem em relação a mal-entendidos quanto à proposta de Tendência. Posso NP: No texto “Vigília da inteligência” dizer que, do desentendimento inicial, (Tendência, 1962, p. 148), o senhor nasceu, naquela circunstância, estreita adotou a denominação literatura de amizade entre mim e Carpeaux. Acabei criação, para a ficção, poesia e drama, como a pessoa encarregada de dar e literatura científica, para o ensaio e destino à sua biblioteca, por solicitação a crítica. Essa seria uma maneira de de sua viúva, D. Helena. Também valorizar o trabalho do crítico literário, discordei, em muitos pontos, de Afrânio nivelando-o ao dos poetas e dos Coutinho. Depois, nos aproximamos ficcionistas? amistosamente. Fui voto decisivo na FL: Hoje considero a crítica e o ensaio concessão de um dos prêmios que lhe formas especiais de criação literária. Um foram conferidos. discurso sobre outro discurso. Foi assim que argumentei para propor o Prêmio NP: A que o senhor atribui o encerramento Camões a Antonio Candido. O lado de Tendência? “científico” sugerido por mim na época FL: Tendência cessou de sair por de Tendência significava a exigência de vários motivos. Razões pessoais nos capacitação do intérprete da obra literária dispersaram. A revista cumpriu a sua para o exercício de sua tarefa. Tratava-se breve história, como tantas outras no país. de chamar a atenção para a competência Chegou a ultrapassar os três números do crítico e do ensaísta. convencionais de duração.

NP: O senhor e Rui Mourão envolveram- se em algumas polêmicas em jornais, decorrentes de críticas à proposta de Tendência. Ao que me consta, os senhores debateram com Gustavo Corção, Adolfo Casais Monteiro, Otto Maria Carpeaux, Mário Chamie e Ivan Ângelo. Quais foram os ataques sofridos por Tendência e como ela se defendeu? 276 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 17, n. 33, p. 267-276, 2º sem. 2013