Sangue, suor e lágrimas. “O Capitão América e a Indústria Cultural segundo Theodor Adorno”

Autor: Arthur Rodrigo Itaqui Lopes Filho

Orientadora: Profa. Adriana Kurtz (Escola Superior de Propaganda e Marketing – ESPM – RS)

RESUMO: O presente trabalho busca através de revisão bibliográfica analisar o personagem das histórias em quadrinhos, o Capitão América, sob a ótica da crítica de Theodor Adorno a Indústria Cultural. Observando as ações desta diante o “mundo” do entretenimento. Além disso, este trabalho proporciona uma apuração histórica dos EUA durante o período entre guerras, buscando fundamentar a análise deste personagem e de suas implicações sociais e políticas.

Palavras-chave: Indústria Cultural; Entretenimento. Quadrinhos. Escola de Frnkfurt. Adorno.

INTRODUÇÃO De uma razão esclarecida, o homem passa a ser o “senhor” (e o escravo) da chamada O mundo moderno e capitalista apresenta “razão instrumental”, onde o indivíduo perde em sua evolução um inequívoco processo o discernimento crítico e vê embotar os de degradação (ou regressão) intelectual, pressupostos humanistas de uma como reflexo do fracasso e da racionalidade que, entretanto, permaneceria transformação sofrida pela razão legitimada por sua gênese iluminista. “esclarecida”. O Iluminismo, é verdade, tinha como objetivo promover a Assim, o esclarecimento resulta em uma desmistificação das antigas crenças que armadilha que levou o homem a sua própria mantinham a civilização em situação de dominação. O vício gerado por este “saber”, atraso diante das possibilidades do uso assegurado por métodos e planejamentos pleno da razão, do conhecimento, da cada vez mais racionalizados e científicos técnica; enfim, da evolução científica. contamina gradativamente todas as esferas da vida social, dos círculos militares e O esclarecimento iluminou a mente das armamentistas às empresas de mais diversas culturas a partir do Século administração, passando pela pesquisa XVIII, buscando na racionalidade toda a científica, por todas as formas de esperança de um “elevar” intelectual, desenvolvimento tecnológico, sempre construindo um mundo de certezas absolutas na burocracia das sociedades científicas e avanços tecnológicos, (politicamente ditas “democráticas” ou inteligente e crítico. O poder do “saber” assumidamente totalitárias e ditatoriais) e, seria utilizado em benefício da civilização; o finalmente, presentes nas manifestações conhecimento seria capaz de manipular a artísticas e culturais destas mesmas realidade em prol de um bem maior, a sociedades, cada vez mais industrializadas evolução do ser humano, sua autonomia, e tecnologicamente desenvolvidas. sua libertação. As sociedades modernas, alienadas por um A razão iluminista, algo arrogante, algo esclarecimento deturpado, caminham ingênua, não tardaria a se igualar aos mitos decididas para a instrumentalização de seu que pretendia combater. Sua utopia não saber, num modelo de racionalização que resiste ao andamento histórico da visa padronizar o estilo de vida à sua volta. humanidade. Segundo a crítica radical de A hegemonia moderna do sistema Adorno e Horkheimer numa obra que se capitalista, vitorioso e em processo tornou um clássico da filosofia galopante de expansão e fortalecimento, contemporânea, a “Dialética do reproduz uma concepção discutível de Esclarecimento” (1947), a razão iluminista liberdade e individualidade na qual cada um converte-se num engodo, traindo seus mais possuiria a chance de se tornar “rico”, tendo claros objetivos. seus direitos assegurados por uma gama de leis que regem esta dita “liberdade”, Iniciacom, São Paulo, Vol. 1, No 1 (2006) Arthur Rodrigo Itaqui Lopes Filho materializada em frágeis e contraditórias Alemanha e fugindo do nazismo, depara-se, “democracias”. Como que voluntariamente ao chegar aos Estados Unidos da América, integradas ao sistema, as massas passam a com a mais assustadora forma de opressão ser os “receptores” de sua própria intelectual e manipulação já vista. enganação, consumindo repetições diárias dos produtos da Indústria Cultural, que (sem Ilustre representante da Escola de grandes esforços devido à aceitação Frankfurt, Adorno deixa como herança de voluntária de seus membros) mantêm a um pensamento não integrado, exposto, sociedade alienada e - nas palavras de como já foi dito, numa de suas mais Adorno -, conformista. renomadas obras, a “Dialética do Esclarecimento”, uma implacável crítica à Os produtos atingem o indivíduo, mesmo Indústria Cultural. Ele mostra como a havendo focos de resistência; este acaba produção em escala e estilo industrial da por “fugir” para, inevitavelmente, consumir cultura deixa vislumbrar seus reais objetivos outro produto desta indústria. Cercado por e como, despercebidamente, a sociedade é todos os lados, a fuga se torna impossível, diária e voluntariamente enganada. Num e apenas o entretenimento aparenta ser o efeito anti-iluminista, as massas são alívio deste círculo de manipulação gerada levadas a um fim comum: o consentimento e consentida pelo próprio homem, cada vez pleno com o sistema e o consumo mais identificado com o capitalismo e seu desenfreado de seus bens. braço cultural: a Indústria de bens simbólicos. O entretenimento traz ao povo a Usando da crítica adorniana, o Capitão (falsa) fuga diária do maniqueísmo vivido, América será analisado e exposto como na rotina exigida por este sistema. Mas, representante de uma civilização, que onde prioritariamente o descanso imperaria, através do entretenimento, busca reafirmar a Indústria Cultural atua vendendo seus sua posição – sempre discutível – de pátria produtos e seus valores, capturando o maior da liberdade e justiça. Assim, capítulo indivíduo numa total integração, necessária, a capítulo, o presente trabalho tentará munir aliás, para não ser expulso da sociedade o leitor do prévio conhecimento necessário administrada pelas “pessoas de bem”. para que acompanhe a lógica desta corrente única de pensamento e crítica Buscando provar tal integração social. O mundo dos quadrinhos, a gênese através do entretenimento, que, por do Capitão América e o contexto dos EUA intermédio da Indústria Cultural, estimula as na situação do II conflito mundial, bem pessoas a ter uma determinada reação aos como uma apresentação dos pressupostos estímulos desejada pelo sistema capitalista da Teoria Crítica deverão convidar o leitor a moderno, sem que haja qualquer empreender, junto a Theodor Adorno, esta consciência disto, será posto em análise um outra forma de aventura. Está em questão personagem das histórias em quadrinhos aqui, um exercício crítico radical e (representante deste lúdico mundo de puro atemporal de personagens chaves da entretenimento), surgido no cerne de uma cultura de massa, como o Capitão América, guerra que mobilizou o mundo na virada bem como de suas relações com a Indústria dos anos 30/40, o Capitão América. Cultural e das evidências que daí resultam acerca da ideologia de um país que, desde Visto como representante de uma o final da II Guerra, mantém uma nação rica financeiramente e livre em sua hegemonia e influência brutal no planeta organização política, este herói traz consigo Terra. determinados ideais de liberdade, justiça e patriotismo, amparando os fracos nas Vale lembrar que, coerente com o autor que páginas de suas aventuras e derrotando a embasa esta reflexão, o presente trabalho tirania maligna do vilão que ameaça o tem um caráter ensaístico, denotando, mundo. O Capitão América se tornou um portanto, seu singular e próprio método. ícone de heroísmo nacional de uma Restaria salientar que dentro da tradição potência mundialmente hegemônica, metodológica clássica para um trabalho de incapaz de “lograr” seus mais fiéis cunho cientifico, a pesquisa e reflexão aqui admiradores. Sendo assim, ele será empreendida consistiria em um estudo de confrontado com a crítica de um pensador caso, com uma abordagem qualitativa e singular, Theodor Adorno, especialmente possuindo um cunho bibliográfico e nestes tempos de hegemonia de uma razão documental. Como critério de escolha para instrumental. Um filósofo que vivera na as imagens analisadas foi considerada a 2 Iniciacom, São Paulo, Vol. 1, No 1 (2006) Sangue, suor e lágrimas. “O Capitão América e a Indústria Cultural segundo Theodor Adorno” representação atemporal da “aura” mestres se era bom ou mau para as carregada pelo personagem Capitão crianças, virou assunto sério de estudo de América, assim como a adequação destas a intelectuais, professores e universidades na crítica adorniana. França e Itália, espalhando-se pelo mundo todo” (Moya, 1977, p.21). Assim, obras O Mundo DOS QUADRINHOS: como as de Dorfman e Mattelart buscaram provar que as histórias em quadrinhos, As revistas em quadrinhos, um longe de ser apenas mero entretenimento, mundo onde tudo é possível, vêm se estavam carregadas de ideologia, tornando parte da vida dos mais diversos respondendo a questões instigantes, como povos do planeta. Crianças e adultos a de que forma as histórias em quadrinhos buscam nas páginas destas inúmeras poderiam intervir no estilo de vida de seus criações, uma fuga da realidade, tendo no leitores ou em suas decisões, visto que entretenimento puro e simples, o seu único seus personagens e suas personalidades distintas marcavam tanto assim a mente de objetivo. seus consumidores. “Para Ler o Pato Donald”, enfrentou estas questões e tornou- Presente no mundo todo com se um clássico da corrente teórica marxista nomes diferenciados – comics, nos Estados voltada à Análise de Conteúdo. Unidos; bande dessinée, na França; fumetti, Itália; tebeo, Espanha; historieta, na América Latina; mangá, no Japão - as Pensar criticamente os quadrinhos, histórias em quadrinhos tendem a trazer a ampliando a compreensão deste lúdico seus leitores uma realidade de certa forma mundo de “sonhos e magia” era assim inalcançável, mas ainda assim, capaz de justificada pelos autores na década de 70: gerar um processo de identificação. Esse “(...) não se trata de negar aqui a espelhamento faz com que seja marcado na racionalidade científica, ou seu ser lembrança de cada leitor a sua específico, nem de estabelecer um tosco representação heróica; isto é, cada pessoa, populismo; porém sim de fazer a não importando sua cor, raça ou crédulo, comunicação mais eficaz e reconciliar o possui um personagem de histórias em gozo com o conhecimento” (Dorfman; quadrinhos que esteve ou está presente na Mattelart, 1976, p.13). Dentro dos limites de um trabalho de conclusão, é proposto um sua memória, assim como seus feitos. olhar crítico sobre o Capitão América e a Indústria dos Quadrinhos. Há que se Sendo um “super homem”, nos momentos ressaltar que pioneiros como Mattelart e mais difíceis, uma “mulher gato” para ser Dorfman enfrentaram uma resistência mais atraente ou um “tio patinhas” ao lidar acirrada, frente a qual não deixaram de se com o dinheiro, as pessoas são posicionar: confrontadas com situações nas quais vivem seus ídolos. Ariel Dorfman e Armand Mattelart, no clássico livro “Para ler o Pato Os responsáveis do livro serão definidos Donald”, ressaltam a ligação entre os como soezes e imorais (enquanto o mundo personagens e seus leitores ao falar sobre de Walt Disney é puro), como mundo de Disney: “A magia de Walt Disney arquicomplicados e enredadíssimos na constitui, precisamente, em mostrar em sofisticação e refinamento (enquanto Walt é suas criações o lado alegre da vida. Sempre franco, aberto e leal), membros de uma elite há, entre os seres humanos, personagens envergonhada (enquanto Disney é o mais que se parecem ou assemelham àqueles popular de todos), como agitadores políticos das histórias de Disney” (Dorfman; (enquanto o mundo de W. Disney é inocente e reúnem harmoniosamente todos Mattelart, 1976, p.16). em torno de colocações que nada tem a ver com os interesses partidários), como Tendo por função chamar a atenção de calculistas e amargurados (enquanto que seus leitores perante uma realidade, trazer Walt D. ensina a respeitar a autoridade novas experiências ou apenas entreter, superior do pai, amar seus semelhantes e “não há dúvidas que a literatura infantil é um proteger os mais fracos), como antipáticos gênero como outro qualquer, acobertada (porque sendo internacional, o sr. Disney por sub-setores especializados dentro da representa o melhor de nossas mais caras divisão do trabalho cultural” (Dorfman; tradições autóctonas) e por fim, como Mattelart, 1976, p.19). De fato, os cultivadores da “ficção-marxista”, teoria quadrinhos, “(...) preocupação de pais e importada de terras estranhas por Iniciacom, São Paulo, Vol. 1, No 1 (2006) 3 Arthur Rodrigo Itaqui Lopes Filho

“facinorosos forasteiros” e reunidas com o espírito nacional (porque tio Walt está contra a exploração do homem pelo homem Voltemos os olhos para aquelas e prevê a sociedade sem classes do futuro). maravilhosas primeiras expressões do (Dorfman; Matellart, 1976, p.18-19). homem, imortalizadas nas pinturas das cavernas, deixando para o futuro o seu Se uma análise dos personagens de Walt testemunho de sua época, não acreditando Disney pôde levantar tantas questões tão somente no canto e na dança, nos gritos polêmicas – de caráter eminentemente guturais de caça, nos choros e nos risos, político-ideológico – e, considerando o mas sentindo a necessidade de gravar, “mundo” Disney como apenas mais um eternizar a vida na pintura rupestre. (Moya, entre o vasto universo engendrado pela 1977, p.26). indústria dos quadrinhos, restaria ainda muito a se pensar sobre esse setor da O ser humano se desenvolveu e diversificou cultura de massas. Este trabalho se propõe as formas de expressões. Sendo assim, a analisar, a partir do conceito adorniano de muitas culturas foram criadas e buscaram, a “Indústria Cultural”, o personagem Capitão sua maneira, “transcrever” a realidade, seus América e sua significação não apenas na mitos e suas crenças. Nenhuma cultura indústria dos bens culturais como na própria marcou tanto a história com seus desenhos sociedade e período histórico no qual está quanto os egípcios, que traziam em suas inserida. criações um detalhamento maior do que de seus ancestrais, os “homens das cavernas”. 1.1 A pré-história dos quadrinhos: A sociedade egípcia era “(...) dominada pelo Seguindo a proposta de Moya (1977), pode- faraó, soberano todo poderoso. Ele era se buscar nos antepassados da considerado um deus vivo, filho de deuses e humanidade, precursores da civilização a intermediário entre estes e os homens. Era qual conhecemos, os primeiros artistas a objeto de culto e sua pessoa era sagrada” criarem personagens e narrar, através do (Piletti; Piletti, 1989, p.41). Desta forma, os desenho, suas histórias. “O homem das desenhos desta época eram voltados cavernas vivia entre a força e a ignorância” principalmente para o relato da vida de seu (Moya, 1977, p.26), mas mesmo sob tais soberano, o faraó. circunstâncias, nossos ancestrais conseguiram evoluir: vivendo em meio a Segundo Álvaro de Moya, “nesse tempo, os sociedades tribais, construíram armas, egípcios faziam charges ou cartoons caçaram, descobriram a manipulação do colocando cabeças de animais em corpos fogo, além de desenvolverem muitos outros de homens ou mulheres, para fazer sátiras” aspectos de subsistência e sobrevivência. (Moya, 1977, p.28). É sabido que estas ditas “sátiras” eram representações de suas Por mais que estes antepassados fossem divindades, pois “a religião desempenhava incapazes de produzir arte (no sentido que um papel muito importante na vida dos hoje é adotado, enquanto objeto estético), já antigos egípcios” (Piletti; Piletti, 1989, p.44), era visível a necessidade de deixar suas regrando e regulando suas vidas. histórias para as futuras gerações. As “pinturas feitas em cavernas, chamadas A civilização egípcia trouxe o aspecto mítico pinturas rupestres” (Piletti; Piletti, 1989, aos desenhos, inovando na forma de contar p.25), foram a mais clara e simples histórias, misturando a realidade, a qual a expressão do que hoje chamamos de pintura rupestre se focava, com o ilusório. É histórias em quadrinhos. imprescindível citar que, neste período, as mensagens intencionais de manipulação No período em que estes antepassados e/ou convencimento das massas eram viviam, as histórias eram “contadas” apenas claras, pois buscavam na interferência através de desenhos. Assim, iniciou-se uma divina a glorificação de um mero mortal, o exploração estética do corpo humano e das faraó, evitando toda e qualquer discordância criaturas existentes, traços que definiriam a do povo egípcio ao seu senhor. base do desenho atual. Álvaro de Moya, um Forçosamente, Moya busca uma ligação apaixonado pelo mundo dos quadrinhos, entre as criações egípcias e as HQ’s não poupou elogios ao falar das pinturas contemporâneas: “Os monumentos egípcios rupestres em seu livro “SHAZAM”: (...) mostram, como numa história em

4 Iniciacom, São Paulo, Vol. 1, No 1 (2006) Sangue, suor e lágrimas. “O Capitão América e a Indústria Cultural segundo Theodor Adorno” quadrinhos, tal faraó construindo uma Com a representação mais fiel do que hoje pirâmide para seu túmulo, glorificando seu chamamos de histórias em quadrinhos, governo” (1977, p.28). Albrecht Dürer, um pintor alemão, destacou- se ao narrar, “(...) em seqüência de A Grécia também se destacaria com mérito gravuras, o drama da Paixão de Cristo”, nesta evolução. Construindo mitos e lendas tornando-se o precursor fiel dos quadrinhos que se tornaram famosas por todo o mundo, atuais. (Moya, 1977, p.29). os gregos se notabilizaram por sua grande capacidade de criar “super heróis”, que Datado de 1509, a Paixão de Cristo por instigaram as mentes de duas civilizações, Dürer é considerado a primeira história em visto que os romanos “roubaram” as quadrinhos nos moldes atuais, adotando o crenças gregas, modificando apenas o quadro como limitador do desenho e nome de seus personagens e deuses. seguindo uma seqüência de ações. Albrecht Dürer é citado por Moya, devido a seu A mitologia grega se tornou tão grandiosa e pioneirismo: “Aqueles quadrinhos (Via poderosa devido ao simples fato de ligar, Sacra) que vemos nas igrejas de interior diferentemente da crença egípcia, os seres contando a Paixão de Cristo (desde Dürer) humanos aos deuses, não os diferenciando já eram as histórias em quadrinhos de da sociedade, mas sim atribuindo aos então” (Moya, 1977, p.32). mesmos, formas, erros e pensamentos de um mero mortal. Com essa identificação, as Assim, este tipo de gravura, desenhada por pessoas buscavam se espelhar nos erros célebres criadores, teriam sua importância das divindades do vasto panteão olímpico, para o desenvolvimento de uma forma de assim como cobiçar o estilo de vida dos expressão e concepção dos personagens. mesmos. Trabalhados como obras de arte, os heróis de então careciam, entretanto, de um A grandiosidade dessa crença era tamanha modelo de distribuição que os tornassem que “cada cidade grega cultuava a memória acessíveis as grandes massas. Sendo de um herói” (Piletti; Piletti, 1989, p.70). assim, o grande responsável pela realidade Estes possuiam uma história com início, das revistas em quadrinhos seria, meio e fim e a eles eram atribuídos feitos ironicamente, um inventor, Gutemberg, o heróicos, nos quais enfrentavam criaturas criador da impressão moderna. Com esta terríveis e dificuldades adversas, como os descoberta “(...) tudo se precipitou, o grande heróis da atualidade. Os heróis eram salto foi dado. Os livros começaram a muitos, mas nenhum tomou proporções tão divulgar a escrita e foram ilustrados” (Moya, grandes como Háracles, ou Hércules para 1977, p.34). os romanos, sendo este o herói grego mais conhecido e amado. “Filho de Zeus e de Os desenhos agora poderiam ser uma mortal, Alcmena, foi perseguido pela impressos: “os folhetins ilustrados, cólera de Hera. Ela obrigou-o a se colocar a romances seriados (...), crimes pavorosos serviço de seu primo Euristeu, que lhe da época eram vendidos em posters nas impôs duras provas (...) conhecidas como feiras populares, como a literatura de cordel os doze trabalhos de Hércules” (Piletti; do nordeste brasileiro” (Moya, 1977, p.34- Piletti, 1989, p.70), sendo esta a história 35). inspiradora de muitos heróis da atualidade. Anteriores a criação de Gutemberg, os As façanhas dos deuses e heróis “(...) desenhistas já existiam, com seus traços construíram os temas de quase todas as diferenciados, preocupados, sobretudo, em obras dos artistas gregos” (Piletti; Piletti, relatar os fatos (assumindo o papel das 1989, p.71). Mas é preciso não esquecer atuais fotografias). Os ilustradores estavam que os desenhos deste período não eram prestes a desbravar um mundo até então feitos em papel como na atualidade e sim desconhecido, o mundo dos quadrinhos. “(...) utilizada como arte decorativa da cerâmica, representando cenas mitológicas 1.2- Os precursores: e costumes gregos” (Piletti; Piletti, 1989, p.73), sendo estes objetos comuns as casas Unicamente dedicados a relatar os fatos daquela época, como hoje são os bonecos, ocorridos, os desenhos eram publicados posters e adereços consumidos, ligados aos nos jornais diários da época. Assim, heróis modernos. escritores e desenhistas retratavam um Iniciacom, São Paulo, Vol. 1, No 1 (2006) 5 Arthur Rodrigo Itaqui Lopes Filho período de transformações, devido a grande personagens periódicos e seriados; e o invenção de Gutemberg. termo “jornalismo amarelo” para designar a imprensa sensacionalista” (Moya, 1977, Charles Dickens foi um escritor que se p.36). No Brasil, “(...) a chamada “imprensa destacou como precursor do jornalismo amarela” ficou conhecida como “imprensa moderno, sendo considerado o mais marrom”. Talvez porque o popular de seus redatores, assim como subdesenvolvimento era tal que a tentativa William Hogarth, ilustrador inglês que “(...) de imprimir a riqueza do nosso amarelo se retratou sua época política com grande frustrou num amarronzado de m (*)” (Moya, minúcia de costumes, em crítica violenta” 1977, p.36). (Moya, 1977, p. 35) Com o nascimento do Yellow Kid, aos Visto que os quadrinhos, por muitos anos, poucos foram surgindo desenhistas e foram tratados como um produto cultural investidores que buscavam apostar na sem valor, não sendo considerado de indústria dos desenhos em quadrinhos; nenhuma forma um material de estudo, assim, sucessos foram sendo construídos muito se perdeu de sua produção. Daí que passo a passo. Em 1905, Fenton Outcault, diversos “(...) personagens e grandes o mesmo criador do Yellow Kid, criou “(...) desenhistas trazem grandes confusões nas Buster Brown, a figura típica do menino assertivas dos historiadores, cujo estudo do burguês de então, com sua roupinha e comics só começou com grande atraso” chapéu, durante décadas representando o (Moya, 1977, p.38). menino que ganhou um terninho de marinheiro no fim do ano, pelo seu A falta de registros históricos seguros sobre comportamento exemplar” (Moya, 1977, o tema impede qualquer certeza sobre qual p.37). personagem se destacaria como precursor de uma época. Sabe-se, ao certo, que em Tendo como exemplo as criações de 1845 na Alemanha, por exemplo, já existia Wilhelm Busch, Rudolph Dirks cria, nos uma publicação semanal ilustrada por Estados Unidos “(...) os Katzenjamer Kids Hoffman, nomeada de “(...) Struwwelpeter, (Os Sobrinhos do Capitão), falando um um menino distraído e desobediente. inglês alemãozado” (Moya, 1977, p.38). No Também na Alemanha, em 1865, o pintor entanto, o que mais se destacou nesta Wilhelm Busch cria os primeiros criação, não seria a sua história e sim a personagens célebres das ilustrações (...) célebre briga de Dirks com a Heaters, meio Max und Mortiz” (Moya, 1977, p.35). Mas foi de comunicação que publicava as aventuras em 1895 que o grande destaque surgiu, dos pequenos encrenqueiros, sobrinhos de sendo reconhecido por muitos como o um velho capitão da marinha. Com a quebra personagem que abriu as portas para os de vínculo com a Heaters, Dirks lançou “(...) desenhos modernos, o Yellow Kid (Menino The Captain and the Kids com a United Amarelo), apareceu em meio à inserção das Press, provocando o aparecimento da cores nas impressões jornalísticas da legislação americana a respeito do época. copyright do personagem em comics” (Moya, 1977, p.38). Com os direitos Este menino possuía um “(...) panfletário assegurados (após muitas brigas na camisolão amarelo, desenhado por Richard justiça), Dirks pode manter sua criação sem Fenton Outcault no New York World” (Moya, dever nada a seu antigo contratante. 1977, p.35), jornal este que notara um maior interesse do público ao utilizar textos com Seguindo a linha das HQ’s voltadas para o imagens. público infantil, trazendo consigo uma inocência em seus traços e, de certa forma, É dito por autores que estudam os em seu conteúdo, é importante destacar quadrinhos que quando o New York World três grandes obras: The Little Nemo in instalou a primeira impressora em cores, em Slumberland, de 1905, criado por Winsor 1893, um dos técnicos do jornal pediu, por McCay, que “(...) alcançou tal qualidade de acaso, a um dos ilustradores para testar a desenho e arquitetura, chegando a antever cor amarela em uma de suas obras. Mal o uso de lentes de grande abertura (...), sabia ele que “nesse momento histórico coisa que só a mais avançada técnica da nasciam duas coisas importantes: os fotografia e do cinema conseguiu alcançar” comics como os concebemos hoje, com (Moya, 1977, p.39); o clássico Little Bears and Tigers, de 1907, desenhado por um 6 Iniciacom, São Paulo, Vol. 1, No 1 (2006) Sangue, suor e lágrimas. “O Capitão América e a Indústria Cultural segundo Theodor Adorno” renomado criador dos quadrinhos chamado 1.3 Os anos de glória: James Swinnerton, que “(...) com um traço puro e delicado, desenhou bonequinhos O ano era 1930, os Estados Unidos da infantis quase tridimensionais” (Moya, 1977, América estava fragilizado com a quebra da p.39); e o Krazy Kat de George Herriman, bolsa de New York: os investidores estavam datado de 1911, entrando na história dos praticando suicídio, bancos e indústrias comics devido à extraordinária façanha de fecharam frente a uma realidade triste e ter se tornando a primeira “(...) historieta a avassaladora; o dinheiro havia acabado. ser elogiada por um crítico: Gilbert Seldes em 1926” (Moya, 1977, p.37). A população não tinha ânimo frente à realidade, parecia fraca e desanimada, precisando de um impulso que a fizesse reerguer sua moral. Neste momento, Por sua parte, as criações de McCay, surgiria, vindo do cinema para os Swinnerton e Herriman, construíram os quadrinhos, devido à crescente influência possíveis antecessores do mundo Disney e que este medium estava atingindo e por ser de toda uma grande fauna de personagens mais acessível, economicamente, ao povo infantis, onde animais interagem em um norte americano, as aventuras de Walt mundo de fantasias, possuindo a Disney. O Mundo Disney já se tornara capacidade de falar e de incorporar certas famoso antes de 1930, mas foi só neste ano expressões e ações consideradas apenas que a fauna intrépida de Disney apareceria humanas. As obras-primas dos anos 10 no modelo impresso. traziam em sua construção crianças como protagonistas, ou “animaizinhos” falantes, Por mais notório que seja o fato de que Walt destacando assim o público focado por esta “(...) Disney nunca mais desenhou desde indústria. 1927” (Dorfman; Mattelart, 1976, p.10), suas histórias se tornaram tão populares, ou até Mas em 7 de janeiro de 1929, surgiram, mais, do que no período em que este junto ao “crack” da bolsa de New York, dois dedicava-se à animação cinematográfica. grandes heróis, que quebraram as barreiras Possuindo o respaldo de escritores, dos quadrinhos (as quais eram desenhistas e autores, o sucesso não impenetráveis ou talvez viciadas), inovando demorou a chegar. em suas criações e trazendo consigo a grande virada de uma época: os quadrinhos A Walt Disney Company tornou-se em de ação. Os dois novos heróis obtiveram poucos anos a maior empresa geradora de um sucesso estrondoso e de forma rápida. lucros nos EUA. Mas mesmo não atuando Buck Rogers, o primeiro a ser lançado, em suas obras e, de certa forma, vivendo trazia em seu traço a arte de Dick Calkins, do lucro dos inúmeros artigos que se que era orientado junto como sua equipe, desenvolveram estampando o símbolo da por um cientista, Prof. Selby Maxwell, Disney, “seria falso afirmar que Walt Disney idealizador das instigantes aventuras de é um mero comerciante”, afirmam Dorfman ação deste novo herói. O segundo herói, e e Mattelart (1976, p.15), já que este dedicou não menos importante, ficaria imortalizado sua vida a tornar um sonho realidade: como o homem-macaco. Tarzan, com sua desenvolvendo o projeto do mais grandioso macaca Chita e sua musa Jane, enfrentava, parque de “pura” imaginação e magia, o na ilustração de Hal Foster, tribos de Walt Disney World e a Disney Landia. “homens selvagens” e criaturas da floresta (que sempre tinham, “estranhamente”, uma Disney marcaria uma era, talvez, dos insaciável sede de sangue), com as últimos reflexos de um mundo lúdico, próprias mãos. conectando suas criações a um ideal de inocência e fantasia. Já em 1929, Tarzan e Sendo uma mera obra do acaso, uma ação Buck Rogers vinham angariando espaços previamente pensada ou uma resposta das cada vez maiores nas prateleiras dos HQ’s aos desafios e angústias daquela adolescentes do mundo todo, como época, estas duas grandes criações, junto a precursores das histórias de ação. No ano Dick Tracy, “(...) produziram uma reviravolta de 1930, dividindo o podium com os na história dos quadrinhos, iniciando a personagens de Dick Calkins e de Hal chamada golden age (era dourada) dos Foster (respectivamente, criadores de comics” (Moya, 1977, p.43). Tarzan e Buck Rogers), Dick Trace buscava

Iniciacom, São Paulo, Vol. 1, No 1 (2006) 7 Arthur Rodrigo Itaqui Lopes Filho em suas aventuras abrir as portas para uma Quatro anos após a criação de Dick Trace e dura e fria realidade. X-9, precisamente no dia 12 de agosto de 1934, o desenhista Al Capp, com base nas A lei seca atingiu os EUA durante um críticas que surgiam contra o governo norte- período de intensa crise, buscando americano, ousava, com sua criação, “(...) estimular o povo ao trabalho (para reerguer Li’l Abner e a simbólica população de a nação), e intimidar a legião de Dogpatch (Brejo Seco), satirizar a bomba, “vagabundos” da ressaca do “crack” da New York, o capitalismo, os astros, os bolsa de valores. Mas a imposição de tal lei discos voadores, a televisão, a propaganda, acabou dando vasão ao surgimento de algo a fome, os políticos, (...) o FBI e até a Coca indesejado: o comércio ilegal. Cola (Burp!)” (Moya, 1977, p.51). Resumindo, Al Capp se destacou ao levar O comércio ilegal de bebidas gerava tanto às páginas de suas histórias a crítica social trabalho e tamanho lucro que em pouco e política, usando e abusando de tempo surgiram os “chefões” do crime, estereótipos para representar a real conhecidos como gangsters. A máfia situação nacional. comandava o submundo norte americano, criando suas próprias leis. Al Capp despertou polêmica em todo o mundo ao criar uma história (ainda que Como que refletindo a realidade da lei seca periférica, uma vez que estava ligada ao e o terror do gangsterismo, surge o desenho mundo de Li’l Abner, personagem principal “(...) rude e violento, em traço seco, de de sua obra), acerca de uma criatura Chester Gould, a imagem do detetive, figura chamada Shmoo, que trazia, através de seu que determinaria a personagem realista do poder, alimento gratuito à sociedade de detetive marginal, particular, semipolicial, de Dogpatch. Os Shmoos se procriavam toda a literatura do gênero, tirando-a do rapidamente e logo todos tinham seu ranço sherlockiano de Conan Doyle” (Moya, próprio Shmoo. Mas nem todos estavam 1977, p.42). Dick Trace representava a felizes: o Sr. Soft-hearted John, dono do quebra dos paradigmas impostos pela armazém e J. Roaringham Fatback, dono de um truste de carne suína, se revoltariam literatura, mostrando a realidade nua e crua. ao perceber que as vendas estavam caindo devido à prosperidade que os Shmoos O novo herói enfrentaria “em vez do traziam. mordomo calculista ou do herdeiro manhoso, o vilão-gangster, violento e ativo. Contra o detetive de revólver e socos Mobilizando os grandes monopolizadores prontos, surgem os vilões sádicos, bandidos do poder, os produtores/comerciantes atrozes, demonstrando toda a criatividade sinalizam: “Esta é uma crise! Se não fizermos algo depressa todos serão felizes” do autor” (Moya, 1977, p.42). (Moya, 1977, p.54); isto é, não dependerão mais do capitalismo para sobreviverem. Assim, os Shmoos são caçados, “(...) acusados de antiamericanos e são Ainda em 1930, é importante fuzilados” (Moya, 1977, p.57). Usando seus lembrar o surgimento de um personagem personagens para compor uma que fez história à sombra de Dick Trace, o representação crítica da realidade vivida X-9, um representante fiel do mundo dos nos anos 30, Al Capp angariou um gangsters, pois seu autor, Dashiel Hammett merecido lugar de destaque no hall da fama fora “(...) ex-detetive particular nos duros dentre os melhores artistas das histórias em tempos das gangs nascidas em Chicago” quadrinhos. (Moya, 1977, p.44), usando assim, como base para suas histórias, relatos reais de Seguindo a linha dos heróis das histórias de suas experiências profissional. ação e trazendo consigo os primeiros traços dos, hoje, conhecidos “uniformes”, O fato é que X-9 não se tornou tão popular Mandrake trouxe a “magia” do traje elegante quanto Dick Trace, talvez porque suas e bem acabado, que nunca suja ou é histórias buscassem um cunho mais destruído (maculado) pelo “vilão”. Ao criar o realístico, fugindo, assim, do mundo da personagem, no ano de 1934, o escritor Lee “imaginação”. Falk, “considerado o melhor roteirista original dos quadrinhos” (Moya, 1977, p.49), sabia que sua obra seria um sucesso. 8 Iniciacom, São Paulo, Vol. 1, No 1 (2006) Sangue, suor e lágrimas. “O Capitão América e a Indústria Cultural segundo Theodor Adorno”

Em 17 de fevereiro de 1936, Lee Falk desmentir essa crença: “os editores e reapareceu com mais um estrondoso distribuidores consideravam-no fantástico sucesso, o Fantasma, que seguia a explorar demais, recusando sempre. Mas os rapazes o uso do uniforme “de eterna durabilidade”, tinham fé em sua criação e continuaram a possuindo em sua concepção básica “(...) a oferecer de sindicato a sindicato, de revista lenda da imortalidade, o juramento da em revista” (Moya, 1977, p.62). caveira, a herança da luta contra a pirataria de pai para filho, os pigmeus Bandar da Em junho de 1938, J. S. Liebowitz pôs os África, seus companheiros Capeto e Herói, olhos na arte dos dois jovens de Ohio e além de seu romance interminável com percebeu que ele tinha em mãos uma Diana Palmer” (Moya, 1977, p.50). Falk se grande máquina de fazer dinheiro. O tornou um desbravador ao acrescentar a um surgiu em meio ao auge da personagem uma concepção tão complexa, depressão norte-americana, representando a qual viria a ser copiada por muitos no (até os dias de hoje), a força de transpassar futuro. qualquer barreira. Tratava-se de um herói perfeito, que trouxe a uma sociedade A partir de 1937, os personagens dos fragilizada o sentimento de que no final, cartoons deixaram de ser meros homens com poderes ou não, era possível fazer fortes com a capacidade de vencer qualquer coisas incrivelmente heróicas. dificuldade devido ao seu sentimento de justiça, para transformarem-se em super- Surgindo como um suplemento da revista heróis. O super-herói que, por Action Comics Magazine (que depois de conseqüência, acabou, tornando comum à alguns números dobrou sua circulação), o capacidade de homens voarem, serem Superman mereceu sua própria “revistinha” super fortes, dentre outras habilidades apenas em 1939. Ao ser lançado, o extraordinárias, foi o SHAZAM. Superman Quarterly Magazine atingiu a tiragem de 1.400.000 exemplares. Em 1937, os royalties (direitos autorais), das criações eram pertencentes às editoras Junto ao estrondoso aparecimento do que as publicavam, sendo assim difícil dizer Superman, “(...) que foi a gênese de uma quem realmente foi o criador do SHAZAM. série interminável de super-heróis” (Moya, Mas é certo afirmar que este herói, até 1977, p.65), Bob Kane, traria das então chamado de Captain Marvel, seria o profundezas do submundo, a representação primeiro a ligar o fã ao seu ídolo. Pois “ao da frieza, da introspecção e da vontade de pronunciar a palavra SHAZAM (que significa se fazer justiça com as próprias mãos. Salomão, Hércules, Atlante, Zeus, Aquiles e Mercúrio), um trovão (BUM) transforma o Na cidade imaginária de Gothan City, um menino de nome Billy Batson” (Moya, 1977, jovem chamado Bruce Wayne vê seu pai p.65), que poderia ser qualquer um, até ser assassinado por assaltantes. Membro mesmo o seu leitor, em um super homem, de uma elite detentora de um grande poder capaz de voar, além de ser tomado por uma aquisitivo, Wayne foi adotado por seu superforça descomunal. mordomo e cresceu remoendo um sentimento de vingança contra a injustiça de Mas foi em um estado do interior norte sua época. Assim nasceu o “Cavaleiro das americano que surgiria o personagem Trevas”, . capaz de, não apenas tomar o posto de SHAZAM, como marcar para sempre a vida A história de Batman é a representação do público de HQ em boa parte do planeta. clara de uma elite que se vê ameaçada pelo Dois jovens de Ohio, Jerry Siegel e Joe terror da sociedade, que vivia o auge da Shuster “(...) chacoalharam o mundo com a depressão e a “perda de seu pai”. De fato, o criação do Superman” (Moya, 1977, p.62). renascimento de um homem que busca se tornar (e efetivamente se torna) mais forte, Como a maioria dos criadores de comics poderia gerar uma interessante análise com dos EUA não possuíam emprego fixo, relação ao período histórico que engendrou assim, diga-se, como grande parte da este clássico dos quadrinhos. população norte americana, o projeto do Superman deveria ser oferecido aos 1.4 Os heróis de guerra: “sangue, suor e editores de porta em porta. Superman diversão!” parecia ser um sucesso descomunal aos seus criadores. Mas a realidade ameaçava Iniciacom, São Paulo, Vol. 1, No 1 (2006) 9 Arthur Rodrigo Itaqui Lopes Filho

Durante a Segunda Guerra Mundial, muitos analistas e estrategistas de guerra heróis se destacaram nas páginas das buscavam todas as formas de manter a HQ’s, buscando no período de 1939 a 1945, moral de seus combatentes diante do forte manter a moral norte-americana em alta Eixo. Mas foi um desenhista, “Milton Caniff, diante a ameaça nazista. um dos mestres dum novo estilo de desenho, partindo da influência de Noel O mundo se encontrava em meio ao Sickles, para um traço forte de pincel, estouro da Segunda Guerra Mundial, o incisivo, grosso, característico seu” que, ao medo de uma avassaladora dominação pelo menos no plano simbólico, apresentaria poder nazista era crescente. Os eventos uma solução. (Moya, 1977, p.50). marcantes da Segunda Guerra Mundial se estenderam da invasão da Polônia pela Caniff tinha em mente os homens que Alemanha nazista, em 1° de setembro de enfrentavam as dificuldades no campo de 1939, até os inícios dos confrontos armados batalha, deparando-se com a morte a cada em 1940, com operações militares nas dia e com o terror da matança. Como uma quais “se defrontaram as potências do Eixo espécie de antídoto contra o medo e uma (Alemanha, Itália e Japão) e as potências moral em baixa, o desenhista apresentou Aliadas (Inglaterra, Estados Unidos e União sua receita: os homens estavam precisando Soviética)” (Mello; Costa, 1990, p.272). de entretenimento .

O início dos confrontos bélicos Diante desta grande oportunidade de expor surpreenderia o mundo. A ascensão seu trabalho, fazendo sua parte patriótica nazista, que angariava vitórias em toda a em prol da nação norte-americana, Milton Europa, era avassaladora. Em maio de Caniff “(...) criou, especialmente para os 1940, o “(...) avanço das tropas alemãs, soldados no front, em tiras diárias do Camp invadindo a Holanda e a Bélgica” (Mota, Newspaper Service, a personagem Miss 1987, p.347), sugeriam uma onda de Lace na série Male Call” (Moya, 1977, p.50). superioridade do Eixo perante os “fracos” Esta mulher atraente e “sexy”, traria consigo Aliados. Em junho deste mesmo ano, “(...) uma “alegria fogosa”, que estimulou a os alemães ocupam Paris, cruzam o rio mente dos soldados durante todo o período Loire e alcançam o Atlântico” (Mota, 1987, de confronto. p.347). Mal sabiam os soldados que esta presença Com o agravamento da guerra, Roosevelt insinuante, era um artigo exigido “(...) pelos (presidente dos EUA) e Churchill (primeiro psiquiatras que trataram as pin ups do ministro Britânico), assinaram a “Carta do cinema hollywoodiano com idênticos Atlântico” que, por sua vez, unia as forças objetivos: levantar o moral sexual dos dos EUA em apoio aos Aliados. Os Estados combatentes” (Moya, 1977, p.50-51). Unidos da América, apenas concediam material bélico aos países em guerra com o Por mais que o mundo estivesse em guerra Eixo, além de impedir, com seus aviões e e o foco da comunicação e propaganda grandes navios, que os inimigos cruzassem mundial estivesse voltado para a batalha o oceano Atlântico. Até então uma postura entre o Eixo e os Aliados, não era possível francamente isolacionista mantinha os EUA esquecer que um país continuava existindo. afastados, diretamente, de um conflito Os Estados Unidos da América ainda se bélico com as forças do Eixo . reerguia da quebra da bolsa de New York; a nação trabalhava duro para construir uma No dia 7 de dezembro de 1941, “(...) o estrutura forte e duradoura. Mas com os Japão atacou sem prévia declaração de homens defendendo sua pátria, muita desta guerra a base naval de Pearl Harbor, no força de sustentação e suor desprendido Havaí. Logo depois, a Alemanha e a Itália vinha das mulheres. declaravam guerra aos Estados Unidos” (Mello; Costa, 1990, p.276). Só então, a guerra toma, realmente, proporções mundiais e ultrapassa os limites da Europa. Em 1941, baseado em uma experiência de liberação para milhões de mulheres que Com os Aliados fragilizados perante as participavam dos esforços de guerra, Willian consecutivas vitórias do inimigo, seria Marston, um renomado psicólogo, inventor necessária uma intervenção. Estudiosos, do detector de mentiras (máquina que 10 Iniciacom, São Paulo, Vol. 1, No 1 (2006) Sangue, suor e lágrimas. “O Capitão América e a Indústria Cultural segundo Theodor Adorno” analisa, segundo resultados de ondas o período abordado, puderam ser citados cerebrais, o grau de verdade imposto pelo nestas páginas, entre os quais The Spirit, analisado a uma questão qualquer), Flash Gordon, e o Tocha Humana. concebe a primeira heroína dos quadrinhos Esperamos, todavia, ter alcançado o desde sua criação, a Mulher Maravilha objetivo prioritário: municiar o leitor com (Wonder Woman). informações suficientes para o ingresso no mundo deste grande herói que será, aqui, As mulheres sempre foram representantes posto em análise: o Capitão América. das limitações do “sexo frágil” nas páginas das mais diversas revistas em quadrinhos, quando não apareciam de forma insinuante, estimulando (sexualmente) as mentes de 2 A GRANDE DEPRESSÃO: adolescentes no mundo todo. Com a “ABUNDÂNCIA PARA POUCOS, MISÉRIA criação de Marston, a mulher saiu da PARA MUITOS”: sombra dos grandes heróis, deixando de ser vítima para ser a própria heroína, dona Para se poder analisar o surgimento de si, forte e independente, como seria na e a existência de um personagem tão forte realidade vivida. simbolicamente como o Capitão América, é imprescindível montar o ambiente histórico Era comum ver a Mulher Maravilha quebrar de seu surgimento. Assim, é importante correntes com as próprias mãos, buscando pontuar os acontecimentos que quebrar assim os tabus impostos pela movimentaram a população norte sociedade, bem como exigir, através do seu americana no período pós-Primeira Guerra “laço da verdade”, a justiça perante a Mundial, tendo um foco todo especial nos impunidade. eventos ocorridos em 1929 e nos anos que se seguiram a sua sofrida reestruturação No palco de medo e assustadoras hipóteses econômica e social. em que se transformara o mundo, os EUA sentiam a necessidade do surgimento O período pós-Primeira Grande representantes de um imaginário Guerra, ocorrido de 1919 a 1929, pode ser nacionalista que evidenciassem a todos o lembrado como a era dos grandes sentimento patriota necessário naquele negócios. O país vivia um momento momento, destacando os ideais de econômico muito positivo e o presidente liberdade e justiça pregados em sua Warren Hearding, que governou de 1921 a sociedade. Quem mais poderia simbolizar o 1923, adotara “(...) por slogan à volta a povo dos Estados Unidos da América normalidade, criando um clima para bons durante a Segunda Grande Guerra, do que negócios” (Mota, 1987, p.295). O solo norte- alguém que aglutinasse a liderança e, ao americano, para um crescimento mesmo tempo, evocasse as características econômico, estava plenamente fértil, pois a mais caras à pátria norte-americana? A vitória perante o embate que fora a Primeira resposta não tardaria: as ações do “Capitão Grande Guerra motivou a população ao América, escrito por Joe Simon (depois, consumo. Frases como “dentro em breve Stan Lee) e desenhado por ” avistaremos, com a ajuda de Deus, o dia tiveram início, “refletindo o clima americano em que a pobreza será banida do país”, da Segunda Guerra Mundial, lutando contra eram ditas constantemente pelo presidente o Caveira, líder dos nazistas” (Moya, 1977, e reforçadas através da mídia (Mello; Costa, p.66). 1990, p.260).

Criado e desenvolvido em 1940, o Capitão Tal frenesi econômico era o reflexo América apareceria nas revistas em da destruição das nações européias, palco quadrinhos apenas em 1941. Secundado dos confrontos armados na Primeira Guerra por uma galeria de vilões estereotipados, Mundial. Esses países buscavam se este herói se manteve presente junto ao reerguer, sendo obrigados a aumentar o imaginário de seus compatriotas, lutando nível de importações, visando assim ter lado a lado no campo de batalha; vivendo subsídios para um crescimento próspero. as mesmas dificuldades do front. Os EUA foram um dos grandes exportadores neste período, aumentando Restaria ainda pontuar que nem todos os seus lucros a níveis altíssimos, como é personagens importantes surgidos durante

Iniciacom, São Paulo, Vol. 1, No 1 (2006) 11 Arthur Rodrigo Itaqui Lopes Filho citado pelos autores Leonel Mello e Luís estava prosperando nos mesmos níveis, César Costa: nestes anos de “boom” econômico.

Entre 1921 e 1929 a renda per capita aumentou de seiscentos e sessenta dólares para oitocentos e cinqüenta e sete dólares; O crescimento acelerado das a construção civil erguia enormes arranha- indústrias na década de vinte e o consumo céus, transformando as silhuetas das desenfreado de mercadorias por apenas um cidades norte americanas; os oito milhões segmento da sociedade começou a se de veículos a motor de 1920 eram já vinte e tornar preocupante, pois o valor dos três milhões em 1930; geladeiras e fogões produtos industriais passou a subir, tornaram-se comuns, os rádios, chegando à cerca de dez bilhões de praticamente inexistentes em 1920, dólares, tornando-se desproporcional ao atingiam treze milhões de unidades em aumento salarial mundial, que não foi além 1929. Todos esses produtos outrora artigos de seiscentos milhões. “Nestas de luxo, baixaram de preço, enquanto os circunstâncias, com o crescimento dos salários subiam. O que era luxo, passou a salários menor que o aumento da produção, ser necessidade. (Mello; Costa, 1990, não era possível consumir boa parte do que p.260). se produzia” (Mello; Costa, 1990, p.261). Parte da população norte americana As facilidades de consumo eram tantas que mantinha uma certa motivação ao consumo, a população dos EUA passou, em poucos mas tal motivação não alcançava a rápida meses, de uma nação economicamente expansão industrial gerando um excesso de infértil para uma nação financeiramente produção. próspera. Eletrodomésticos, carros, bens de consumo, passaram a ser itens Com o consumo interno incapaz de indispensáveis na vida de um norte- absorver toda a produção, as empresas americano. “A procura dos produtos era norte americanas buscavam manter seus sustentada pelos salários crescentes, pelos lucros investindo em países da Europa, altos índices de emprego (apenas 5% de estratégia que impulsionava a produção dos desempregados) e pela expansão das EUA através das importações. Mas a compras através de crediários” (Mello; Europa gradativamente caminhava rumo à Costa, 1990, p.260). Pessoas comuns estabilidade econômica: no continente que começaram a ver o grande crescimento fora palco da Primeira Grande Guerra, os empresarial e de repente, passaram a ser países se reerguiam e, conseqüentemente, acionistas, vivendo a base da especulação diminuíam a grandes escalas as econômica, sendo este um novo estilo de importações. “Assim formou-se um vida para muitos nestes anos. excedente de produção agrícola nos Estados Unidos, principalmente de trigo, Apesar de toda essa bela imagem que não encontrava mercado consumidor, gerada através do consumo e da interna ou externamente” (Mello; Costa, estabilidade econômica, o país não estava 1990, p.261). livre de problemas sociais graves, principalmente nos anos vinte, período esse As empresas viviam um momento de risco e que “(...) se caracterizou por um clima de o povo norte americano que, de 1920 a desafio à legalidade, em todos os níveis. 1929, incentivados pela grande Em 1920, é proibido o consumo de bebidas prosperidade econômica, investira seus alcoólicas (Lei Seca, que irá durar até bens em ações (que por um grande período 1933). Essa medida aumentou o atingiram cotações altíssimas), se deparava contrabando, o gangsterismo e as máfias” com a realidade: as ações valiam mais do (Mota, 1987, p.295-296). Grupos que o capital das empresas. Quando as extremistas e politicamente reacionários empresas começaram a falir, a população também agiam de forma agressiva neste entrou em pânico. Leonel Mello e Luís momento de prosperidade, como por César Costa, descrevem muito bem tal exemplo, a Ku Klux Klan, situada no sul e acontecimento: no centro-oeste dos EUA. A Ku Klux Klan “(...) atua contra negros, judeus, católicos, No momento em que algumas empresas progressistas em geral e intelectuais” (Mota, faliram é que os proprietários das ações se 1987, p.296). Assim, pode-se concluir que aperceberam de terem pago muito mais nem toda a população norte americana 12 Iniciacom, São Paulo, Vol. 1, No 1 (2006) Sangue, suor e lágrimas. “O Capitão América e a Indústria Cultural segundo Theodor Adorno” pelas ações do que elas realmente valiam. trabalhadores, dando prosseguimento ao Em pânico, todos os investidores passaram ciclo de recuperação econômica” (Mello; a querer vender suas ações, provocando Costa, 1990, p.263). uma vertiginosa baixa no seu valor. (Mello; Costa, 1990, p.261). Roosevelt teve um grande sucesso em suas ações, tomadas como medidas de urgência, Em 24 de outubro de 1929, os Estados mas que trouxeram uma nova motivação à Unidos da América sofreu o grande choque população dos EUA. Agindo de forma dura, na sua economia e no seu orgulho. os “Cem Dias”, nome dado a estas Conhecido como a “quinta feira negra”, este intervenções econômicas, não só buscou foi o dia em que a bolsa de New York sofreu combater o desemprego, mas também punir a maior baixa de sua história, aqueles que se aproveitaram da crise para acontecimento lembrado como o “crack” da crescer. Entre as medidas estariam “o bolsa de New York, chave para a fechamento de bancos em crise e a depressão. O povo se viu tomado por um proibição da exportação e do medo incomparável, gente rica se tornara entesouramento de ouro. Os bancos que pobre da noite para o dia, o otimismo escaparam a crise foram integrados a um econômico dava lugar a um grande pavor. sistema federal e rigorosamente “Em três anos, apenas nos Estados Unidos, fiscalizados” (Mota, 1987, p.300). quatro mil bancos faliram, quatorze milhões de pessoas ficaram desempregadas, os Com todo o sucesso e o apoio do povo, salários caíram 40% e a renda nacional foi Roosevelt se reelegeu presidente mais três reduzida em 50%” (Mello; Costa, 1990, vezes, tendo seu mandato estendido de p.262). 1932 a 1945, quando morreu exercendo seu cargo. O presidente dos EUA neste período, Herbert C. Hoover (eleito em 1929), Mesmo com o sucesso do New Deal, o imediatamente buscou tomar medidas que crescimento do país era lento: dez anos fizessem o país superar a crise, como “(...) depois, em 1939, quando os EUA se criar um organismo para a reconstrução deparavam com os acontecimentos que financeira, para controlar a política iriam dar origem a Segunda Guerra deflacionária dos bancos, mas o resultado é Mundial, a nação se encontrava fragilizada, o reforço do poder dos bancos, negando-se a qualquer tipo de envolvimento responsáveis em muito pela crise, com sua com o que poderia ser outra grande crise incontrolada expansão” (Mota, 1987, p.298). como a que ocorrera em 1929. Assim, todas as ações de Hoover acabariam falhando. O palco estava formado: uma nação sofrida e ressentida devido a acontecimentos do Três anos depois do “crack”, um novo passado, temerosa à frente a uma guerra presidente é eleito: seu nome era Franklin que poderia alavancar o país para um novo Roosevelt e nele foram depositadas todas momento de prosperidade ou para a as expectativas do povo norte americano, decadência total. É neste período e sob expectativas estas que incluíam o ato de essas circunstâncias que a comunicação (e reerguer o país. Roosevelt reuniu uma a propaganda) deve agir, incentivando a equipe de diversos economistas para nação a defender seu país e estimulando os formular um plano de ações que resultariam cidadãos comuns a serem “americanos”, ou na recuperação dos Estados Unidos, seja, serem heróis. denominado de New Deal. “Este plano estimulava os investimentos, prevendo a 3 O HERÓI: intervenção do Estado na economia através da construção de estradas, barragens, auditórios, aeroportos, portos e habitações Em 1939, como visto no capítulo populares” (Mello; Costa, 1990, p.262). O anterior, a nação norte americana vivia investimento em atividades produtivas reflexos de uma crise que assolava todo geraria mais emprego para a população, seu povo, não importando a condição aumentando seu poder de compra e financeira, religião ou raça. Os reflexos dos criando, assim, uma “bola de neve”. Com acontecimentos de 1929 impediam que o isso “(...) reapareceria a procura de povo dos EUA mantivesse uma alta estima, produtos, incentivando a produção das e, no entanto, o mundo se encontrava indústrias que, por sua vez, reempregaria diante de um confronto armado, decorrente Iniciacom, São Paulo, Vol. 1, No 1 (2006) 13 Arthur Rodrigo Itaqui Lopes Filho do avanço das preliminares para a Segunda americana; isto é, o país precisa do seu Guerra Mundial. Nesse palco, dois jovens povo. desenhistas free lancers, Jack Kirby e Joe Simon eram contratados pela Timely Com a histeria em torno da Segunda Guerra Comics, no final do verão de 1940. Ambos Mundial em alta, os meios de comunicação trabalhavam na criação de um novo herói, buscavam “fazer sua parte”; assim, o diretor Marvel Boy (conforme figura 01), um editorial da Timely Comics, viu uma grande personagem considerado padrão nos oportunidade de colaborar com o “esforço moldes da época, salvando mocinhas de de guerra”, como descrito por Greg vilões, enfrentando assaltantes de banco, Theakston: “Em 1940, a Segunda Guerra dentre outras ações ainda hoje Mundial estava entrando em ebulição, e o consideradas clichês. Este primeiro trabalho diretor editorial da Timly, Martin Goodman, da dupla Kirby e Simon, é imprescindível resolveu que era o momento certo de criar para se recuperar a gênese do Capitão um herói patriótico” (Theakston, 1996, p.04). América, cujos conceitos de design, devem Foi então que Joe Simon criou o uniforme muito ao Marvel Boy, como afirma do mais novo herói norte americano, o Theakston, em seu artigo publicado na Capitão América e Jack Kirby ficou com a revista Capitão América 200: árdua missão de escrever a sua primeira história, que tinha como temática a Se existe um lugar onde as primeiras destruição da grande potência que trazia o sementes do Capitão América foram “terror” para o mundo, o nazismo alemão, plantadas, foi nas histórias de Marvel Boy. além de influenciar o povo dos EUA a lutar Criado por Joe Simon, o uniforme do num conflito distante. personagem era bem semelhante ao do Capitão, das botas de bucaneiro às luvas de A capa da primeira edição da revista punhos longos, passando pela cor azul- Capitão América devia passar, através de escuro. (Theakston, 1996, p.04). um desenho, todo a força deste herói patriota, além de deixar bem claro seus Com seu trabalho, Kirby e Simon acabaram objetivos. Depois de inúmeras reuniões, os se consagrando como grandes desenhistas, diretores da Timely Comics concordaram sempre envolvidos em grandes projetos. De que nada seria mais marcante do que fato, a dupla acabou, em pouco tempo mostrar o Capitão América esmagando a revolucionando as histórias em quadrinhos ameaça nazista, certamente visando, de ação, com seus traços inovadores, através de um grande impacto, um recorde histórias instigantes e bem elaboradas. de vendas. Jô Soares assim descreveu o Capitão América em sua participação no livro “SHAZAN” de Álvaro de Moya: “Valoroso defensor dos ideais americanos à antiga – mais ou menos correspondente (Figura 01) àqueles dos primeiros desbravadores para quem um índio bom era um índio morto” (Moya, 1977, p.100).

Seis meses depois do primeiro grande Assim, o primeiro número da revista sucesso de Simon e Kirby, os Estados (conforme a figura 03, analisada no capítulo Unidos da América estavam vivenciando 06), estampa em sua capa o “recém intensamente o furor da Segunda Guerra nascido” herói norte americano dando um Mundial. Nos cinemas eram passadas soco no rosto do ditador alemão Adolf Hitler. imagens de uma dominação mundial Para além da explicita capa, a revista idealizada pelos nazistas, uma forma de dotada de mensagens propagandísticas aterrorizar a nação através da mídia, adicionais, a serem analisadas seduzindo seus filhos ao alistamento militar. posteriormente, a revista chegou às bancas O Uncle Sam ou Tio Sam, figura do país em 20 de novembro de 1940 e se imortalizada por James Montgomery Flagg esgotou em apenas uma semana: missão na Primeira Guerra Mundial, voltava a cumprida, Kirby e Simon sabiam que um apontar o dedo para os americanos pedindo grande sucesso acabava de nascer. uma atitude patriótica, buscando mobilizar o povo com frases de impacto como “I Want You” (Eu Quero Você), sendo o “Eu” desta Era sabido que o novo herói dos comics dos frase representativo da nação norte EUA trazia traços semelhantes à antiga criação de Kirby e Simon, o Marvel Boy. 14 Iniciacom, São Paulo, Vol. 1, No 1 (2006) Sangue, suor e lágrimas. “O Capitão América e a Indústria Cultural segundo Theodor Adorno”

Mas, acusações não pouparam o lado a lado com os combatentes personagem acerca de outras americanos no front. Theakston, ao “semelhanças”. John Goldwater, diretor escrever sobre Bucky Banners, reforça a editorial da L. J. Comics, empresa de incógnita de sua existência: “Embora nunca quadrinhos muito bem conceituada naquela tenha sido explicado, Bucky conseguia época, acusou a Timely de plágio, acompanhar um supersoldado, nocautear afirmando que o Capitão América se nazistas com o dobro de seu tamanho e parecia com um de seus personagens, o derrotar vilões mascarados sem nenhum The Shield “(...) especialmente quando o esforço” (1996, p.05). O próprio, Joe Simon herói erguia seu escudo, originalmente respondeu a Theakston: “Olhando pintado com estrelas e listras” (Theakston, retrospectivamente, o parceiro adolescente 1996, p.05). Em vez de correr o risco de ser do Capitão parece bem idiota, mas, naquela processada, a Timely mudou o escudo época, era uma coisa quase esperada. antes da segunda edição ir para a gráfica Portanto, nós seguimos a moda” (figura 02). (Theakston, 1996, p.05).

(Figura 02) Ao criar o Capitão América, os editores tinham em mente um perfil de não agressão, mas sim de contra ataque: um personagem representativo de uma nação A mudança do formato do escudo deixou resistente como um escudo e forte o Kirby feliz, como este expressou em suficiente, capaz de abrir caminho com os entrevista com Greg Theakston: “Fiquei próprios punhos até o líder nazista. contente com a mudança. (...) Eu nunca Buscava-se um herói que tivesse uma forte gostei do primeiro escudo. O modelo ligação com a realidade a qual se vivia num redondo tem um desenho melhor e é mais período pré-guerra: politicamente correto, prático. E, claro, a parte mais importante é devotado a sua nação e acima de tudo que ele pode ser lançado, aumentando o patriota e sempre disposto a defender seu poder do personagem” (1996, p.05). Menos povo. ingênuo, Jô Soares acha “(...) estranho que um herói tão agressivo tenha escolhido para As linhas a seguir serão destinadas a si um instrumento defensivo”. Em sua transcrever a história da “origem” deste análise, o humorista e fã das HQ’s, detecta herói, sendo pertinente alertar o leitor, para no Capitão América, o desejo deste que este tente imaginar-se em meio a tais personagem, “(...) através do escudo acontecimentos já citados, para assim insinuar simbolicamente que só ataca para poder sentir, talvez por um instante, o se defender. Esta imagem pode parecer impacto desta história no imaginário dos paradoxal, mas de certa maneira sintetiza adolescentes norte-americanos. todas as desculpas e tomadas de posição da política internacional americana frente Steve Rogers, verdadeira identidade do aos conflitos que participa” (Moya, 1977, Capitão América, nasceu em um bairro p.101). pobre de New York e passou a maior parte da sua juventude colaborando para o Seja qual for o(s) verdadeiro(s) sustento da família, devido ao fato de ter se significado(s) de seu escudo, é fato afirmar tornado órfão de pai muito cedo, sendo que esta arma, assim como seu possuidor, criado com muito sacrifício pela mãe. se tornou um símbolo. Ao ver apenas o Rogers se destacou bastante nos estudos, escudo, mesmo solto sobre uma mesa, a desenvolvendo também um grande talento imagem do Capitão América se torna para a arte (desenho e pintura), mas referente, assim como seus feitos e a nação manteve isso em segredo para não ser a qual representa. humilhado pelos moleques de sua rua.

Tendo a companhia de um adolescente Com a depressão, os tempos se tornaram chamado Bucky Banners que, se