AS IMAGENS REENCONTRADAS Salão Nobre Da Reitoria Da Universidade De Lisboa Curadoria Por Tiago J
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Ciclo de Cinema AS IMAGENS REENCONTRADAS Salão Nobre da Reitoria da Universidade de Lisboa Curadoria por Tiago J. Silva Estágio curricular no drei/npcls FOLHAS DE SALA Ciclo de Cinema AS IMAGENS REENCONTRADAS 01 | SENSO Luchino Visconti (1954) LIVIA Já lhe pedi que não me seguisse. FRANZ Sou a sua sombra. LIVIA Obrigada, a minha basta-me. Tentar dar uma ordem ao seu próprio passa- da tragédia clássica. O comentário não serve do e concebê-lo como uma série de aconteci- a função de enobrecer os seus filmes, tantas mentos devidamente arrumados é uma ativi- vezes considerados menores e de sentimenta- dade que entusiasma os seus participantes. Na lidade descontrolada, mas de reavaliar critica- biografia vulgar, as causas e as consequências mente a génese e a estrutura daquele género. das ações são sempre transparentes ao autor, e em inúmeros diários, não há lugar para in- De facto, SENSO, o melodrama perfeito, ob- tenções desconhecidas e erros de interpre- tém da tragédia a sua força motora, evitan- tação. Mas talvez as biografias e páginas de do os embaraços do descalabro emocional e diário mais raras e interessantes sejam aquelas elevando-se ao estatuto de ópera. Por isso em que quem escreve não se assume como mesmo, o duelo entre Franz e Roberto Us- mestre do seu destino e capitão da sua alma; soni (Massimo Girotti) tem de ser comparado e prefere confessar, pelo contrário, que não pelas senhoras de Veneza à guerra entre Ho- percebia nada do que se estava a passar – e rácios e Curiácios; e também por isso os dra- que, quando percebeu, já era tarde. mas pungentes pertencem à aristocracia, que Visconti não abandonará na vida nem no cine- Ver SENSO de Luchino Visconti é como ler ma, quando aquela incorre na hybris de igno- uma redacção daquele tipo; só que, além da rar a morte, até quando ela surge à sua frente palavra escrita, há também os olhares des- e interrompe os seus interlúdios. Penso aqui concertados, os ruídos que chegam de outra no cadáver do oficial que Serpieri e Mahler divisão e que confirmam o pior, “os encontros encontram à noite, no canal, obrigando-os a que não se realizaram e os dias de angústia” esconder-se, e na morte do soldado no jardim em que a condessa Livia Serpieri (Alida Valli) do Príncipe de Salina em IL GATTOPARDO procura o tenente Franz Mahler (Farley Gran- (1963). Estas interrupções do quotidiano não ger) em vão. E Bruckner, sempre Bruckner a são encaradas como traumáticas nem omino- irromper da banda-sonora quando o filme já sas, mas substituídas logo de seguida por uma não consegue conter o seu pathos. SENSO foi qualquer outra distração. Nada daquilo há-de considerado, do lado de vários admiradores, ter um significado especial, já que a vida não como o mais viscontiano de todos os filmes é como a ópera nem como o melodrama – a de Visconti e, do lado dos mais cépticos, como não ser quando se é uma personagem num um delírio em que tudo é excessivo. Mas Vis- melodrama. Quando as personagens de Vis- conti, precisamente a partir deste filme, torna- conti se apercebem da sua situação, fica a dor -se no cineasta da decadência do excesso – atroz e a sensação de que se é mais como um como o são também o melhor Max Ophüls e fantasma e menos como uma pessoa. o melhor Douglas Sirk. Este último, na longa entrevista que dá a Jon Halliday, faz uma céle- É neste ponto que SENSO é particularmente bre defesa do melodrama como a atualização extraordinário. A fé de Visconti nas capacida- Masterclass por Tiago J. Silva Ciclo de Cinema AS IMAGENS REENCONTRADAS des da linguagem do cinema em lidar com a provado que a sua não lhe basta. De onde linguagem do melodrama não se deve à cren- nos chega então a sua voz, recordando os ça no poder sobrenatural da imagem, mas ao acontecimentos que não soube interpretar? É controlo obsessivo de todos os detalhes que Serpieri uma aparição convocada por Visconti dela fazem parte. Uma madeixa de cabelo em através do cinema? Inclinar-me-ia a dizer que cima de um móvel torna-se símbolo de um sim. Mas para o confirmar, precisaria que ela esquecimento inaceitável; folhetos e flores a voltasse a passar diante do espelho: desta vez, serem distribuídos discretamente, enquan- para ter a certeza de que não existe. to o acto III de IL TROVATORE de Verdi se aproxima do seu fim, assinalam o tumulto que desperta Veneza e o romance dos amantes; TIAGO J. SILVA e um saco de dinheiro materializa a traição no mundo e na carne. E não é improvável que Serpieri perca uma e outra coisa. Afinal de contas, perde a sombra de Franz, e fica Argumento: Luchino Visconti, Suso Cecchi D’Amico, Carlo Alianello, Giorgio Bassani, Giorgio Prosperi, Tennessee Williams, Paul Bowles; a partir de um livro de Camillo Boito Fotografia: (Technicolor) G. R. Aldo, Robert Krasker Direcção Artística e Décors: Ottavio Scotti, Gino Brosio, Marcel Escoffier, Piero Tosi Som: Vittorio Trentino, Aldo Calpini Música: Sinfonia nº 7 em Mi maior de Anton Bruckner, com a Orquestra Sinfónica RAI, maestro Franco Ferrara Montagem: Mario Serandrei Interpretação: Alida Valli (Condessa Livia Serpieri), Farley Granger (Tenente Franz Mahler), Massimo Girotti (Marquês Roberto Ussoni), Heinz Moog (Conde Serpieri), Rina Morelli (Laura), Marcella Mariani (Clara), Christian Marquand (oficial), Sergio Fantoni (Luca), Tino Bianchi (Capitão Meucci), Ernst Na- dhreny (comandante em Verona), Tonio Selwart (Coronel Kleist), etc. Produção: Renato Gualino, Domenico Forges Davanzati Director de produção: Claudio Forges Davanzati Distribuição: LUX Cópia: DVD, cores, versão italiana, legendada em português, 122 minutos. Masterclass por Tiago J. Silva Ciclo de Cinema AS IMAGENS REENCONTRADAS 02 | RIO BRAVO Howard Hawks (1959) Certas teorias sobre a natureza da ficção di- que toda a sequência sublinha. Quando RIO videm-se geralmente entre a atenção dada às BRAVO começa, Dude traz já em si as mar- ações e a importância conferida a quem age. cas da infelicidade, e a dor que o acompanha Howard Hawks nunca foi conhecido pelo seu pertence a outro tempo. O mesmo é verda- interesse nos enredos – e, sobre THE BIG de para os restantes membros do grupo de SLEEP (1946), afirmou mesmo não perceber Chance, que têm como obrigação ajudá-lo a detalhe nenhum da história que estava a fil- defender do bando de Nathan (John Russell) mar. O facto não incomodou Hawks nem os a cadeia em que se encontra preso Joe (Clau- argumentistas que, naquele caso, preferiram de Akins), irmão daquele. De um lado, Stumpy privilegiar o diálogo e as interações impetu- (Walter Brennan) não consegue lidar com a osas de Humphrey Bogart e Lauren Bacall. velhice que o afasta – e que leva os outros a Aquele foco no desenvolvimento das per- afastá-lo – dos conflitos que se vão travando; sonagens, de acordo com o realizador, passa e do outro, Colorado (Ricky Nelson), atirado a ser feito conscientemente a partir de RIO para uma contenda que não lhe dizia respeito, BRAVO, motivado pela ideia de que o público debate-se com a desconfiança face às suas ca- estava cansado de histórias e de que o mais pacidades e com uma visão desapontante do importante seria filmar as emoções e motiva- seu futuro, que lhe vai sendo mostrado pelos ções das pessoas. outros homens. Falar de RIO BRAVO é, portanto, falar de A observação de todos aqueles desastres uma coleção de momentos em que a vida pessoais a serem construídos lentamente por interior daquelas personagens nos é revela- Hawks torna-se no elemento mais importan- da. De início, isso acontece ainda antes de as te e comovente de RIO BRAVO, exigindo ouvirmos falar: Dude (Dean Martin), bêbado toda a nossa atenção. Por esse motivo, cedo e sem dinheiro nenhum que lhe sustente os compreendemos que os contornos da histó- vícios, arrasta-se pelo saloon e prepara-se ria do cerco à cadeia deixam de ser o centro para se humilhar pela moeda que lhe paga- da narrativa, e que são sobretudo um pre- rá a próxima bebida. Quem o salva da ver- texto para colocar um conjunto de pessoas gonha é Chance (John Wayne), que emerge a batalhar pela sua dignidade. E Chance, tal do seu ponto de vista em plano contrapicado. como o espectador, é junto deles um vigilan- Nenhuma palavra é dita, mas a luta que se te silencioso que vai acompanhando e assis- segue com o salvador inesperado serve já de tindo às suas tentativas: fá-lo ao ver Dude a introdução às desventuras passadas de que recuperar-se a si próprio, vestindo as roupas vamos recolhendo fragmentos ao longo do que lhe guardara depois de ele se entregar filme – ao percurso que o atira literalmente à embriaguez; ao ouvir os homens cantarem ao chão, banindo-o da dimensão de grandeza MY RIFLE, MY PONY AND ME, numa das moral e heroica em que Wayne fica isolado, e cenas mais marcantes do filme e de que só Masterclass por Mário Jorge Torres Ciclo de Cinema AS IMAGENS REENCONTRADAS Hawks é capaz; ao reparar que todos apare- sobre eles. As constantes provocações entre ceram para o ajudar quando lhes pedira que o par, devedoras das comédias screwball que não o fizessem. RIO BRAVO é, por isso, um Hawks assinara, enfatiza ainda mais a atual so- dos filmes em que a natureza da amizade e da lidão de Dude, que deseja a Chance mais sor- camaradagem é explorada do modo mais ter- te do que aquela que ele teve com a mulher no. Nesse aspeto, sempre presente nos filmes que o destruiu. Em RIO BRAVO, é ele quem que Hawks realizara até então, talvez rivalize procura a reconciliação com a sua vida, e é apenas com ONLY ANGELS HAVE WINGS isso que o filme lhe trará.