Ciclo de Cinema AS IMAGENS REENCONTRADAS Salão Nobre da Reitoria da Universidade de Lisboa Curadoria por Tiago J. Silva Estágio curricular no drei/npcls

FOLHAS DE SALA Ciclo de Cinema AS IMAGENS REENCONTRADAS

01 | SENSO Luchino Visconti (1954)

LIVIA Já lhe pedi que não me seguisse. FRANZ Sou a sua sombra. LIVIA Obrigada, a minha basta-me.

Tentar dar uma ordem ao seu próprio passa- da tragédia clássica. O comentário não serve do e concebê-lo como uma série de aconteci- a função de enobrecer os seus filmes, tantas mentos devidamente arrumados é uma ativi- vezes considerados menores e de sentimenta- dade que entusiasma os seus participantes. Na lidade descontrolada, mas de reavaliar critica- biografia vulgar, as causas e as consequências mente a génese e a estrutura daquele género. das ações são sempre transparentes ao autor, e em inúmeros diários, não há lugar para in- De facto, SENSO, o melodrama perfeito, ob- tenções desconhecidas e erros de interpre- tém da tragédia a sua força motora, evitan- tação. Mas talvez as biografias e páginas de do os embaraços do descalabro emocional e diário mais raras e interessantes sejam aquelas elevando-se ao estatuto de ópera. Por isso em que quem escreve não se assume como mesmo, o duelo entre Franz e Roberto Us- mestre do seu destino e capitão da sua alma; soni () tem de ser comparado e prefere confessar, pelo contrário, que não pelas senhoras de Veneza à guerra entre Ho- percebia nada do que se estava a passar – e rácios e Curiácios; e também por isso os dra- que, quando percebeu, já era tarde. mas pungentes pertencem à aristocracia, que Visconti não abandonará na vida nem no cine- Ver SENSO de Luchino Visconti é como ler ma, quando aquela incorre na hybris de igno- uma redacção daquele tipo; só que, além da rar a morte, até quando ela surge à sua frente palavra escrita, há também os olhares des- e interrompe os seus interlúdios. Penso aqui concertados, os ruídos que chegam de outra no cadáver do oficial que Serpieri e Mahler divisão e que confirmam o pior, “os encontros encontram à noite, no canal, obrigando-os a que não se realizaram e os dias de angústia” esconder-se, e na morte do soldado no jardim em que a condessa Livia Serpieri (Alida Valli) do Príncipe de Salina em IL GATTOPARDO procura o tenente Franz Mahler (Farley Gran- (1963). Estas interrupções do quotidiano não ger) em vão. E Bruckner, sempre Bruckner a são encaradas como traumáticas nem omino- irromper da banda-sonora quando o filme já sas, mas substituídas logo de seguida por uma não consegue conter o seu pathos. SENSO foi qualquer outra distração. Nada daquilo há-de considerado, do lado de vários admiradores, ter um significado especial, já que a vida não como o mais viscontiano de todos os filmes é como a ópera nem como o melodrama – a de Visconti e, do lado dos mais cépticos, como não ser quando se é uma personagem num um delírio em que tudo é excessivo. Mas Vis- melodrama. Quando as personagens de Vis- conti, precisamente a partir deste filme, torna- conti se apercebem da sua situação, fica a dor -se no cineasta da decadência do excesso – atroz e a sensação de que se é mais como um como o são também o melhor Max Ophüls e fantasma e menos como uma pessoa. o melhor Douglas Sirk. Este último, na longa entrevista que dá a Jon Halliday, faz uma céle- É neste ponto que SENSO é particularmente bre defesa do melodrama como a atualização extraordinário. A fé de Visconti nas capacida-

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des da linguagem do cinema em lidar com a provado que a sua não lhe basta. De onde linguagem do melodrama não se deve à cren- nos chega então a sua voz, recordando os ça no poder sobrenatural da imagem, mas ao acontecimentos que não soube interpretar? É controlo obsessivo de todos os detalhes que Serpieri uma aparição convocada por Visconti dela fazem parte. Uma madeixa de cabelo em através do cinema? Inclinar-me-ia a dizer que cima de um móvel torna-se símbolo de um sim. Mas para o confirmar, precisaria que ela esquecimento inaceitável; folhetos e flores a voltasse a passar diante do espelho: desta vez, serem distribuídos discretamente, enquan- para ter a certeza de que não existe. to o acto III de IL TROVATORE de Verdi se aproxima do seu fim, assinalam o tumulto que desperta Veneza e o romance dos amantes; TIAGO J. SILVA e um saco de dinheiro materializa a traição no mundo e na carne. E não é improvável que Serpieri perca uma e outra coisa. Afinal de contas, perde a sombra de Franz, e fica

Argumento: Luchino Visconti, Suso Cecchi D’Amico, Carlo Alianello, Giorgio Bassani, Giorgio Prosperi, Tennessee Williams, Paul Bowles; a partir de um livro de Camillo Boito Fotografia: (Technicolor) G. R. Aldo, Robert Krasker Direcção Artística e Décors: Ottavio Scotti, Gino Brosio, Marcel Escoffier, Piero Tosi Som: Vittorio Trentino, Aldo Calpini Música: Sinfonia nº 7 em Mi maior de Anton Bruckner, com a Orquestra Sinfónica RAI, maestro Franco Ferrara Montagem: Mario Serandrei Interpretação: Alida Valli (Condessa Livia Serpieri), Farley Granger (Tenente Franz Mahler), Massimo Girotti (Marquês Roberto Ussoni), Heinz Moog (Conde Serpieri), Rina Morelli (Laura), Marcella Mariani (Clara), Christian Marquand (oficial), Sergio Fantoni (Luca), Tino Bianchi (Capitão Meucci), Ernst Na- dhreny (comandante em Verona), Tonio Selwart (Coronel Kleist), etc.

Produção: Renato Gualino, Domenico Forges Davanzati Director de produção: Claudio Forges Davanzati Distribuição: LUX Cópia: DVD, cores, versão italiana, legendada em português, 122 minutos.

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02 | RIO BRAVO Howard Hawks (1959)

Certas teorias sobre a natureza da ficção di- que toda a sequência sublinha. Quando RIO videm-se geralmente entre a atenção dada às BRAVO começa, Dude traz já em si as mar- ações e a importância conferida a quem age. cas da infelicidade, e a dor que o acompanha Howard Hawks nunca foi conhecido pelo seu pertence a outro tempo. O mesmo é verda- interesse nos enredos – e, sobre THE BIG de para os restantes membros do grupo de SLEEP (1946), afirmou mesmo não perceber Chance, que têm como obrigação ajudá-lo a detalhe nenhum da história que estava a fil- defender do bando de Nathan (John Russell) mar. O facto não incomodou Hawks nem os a cadeia em que se encontra preso Joe (Clau- argumentistas que, naquele caso, preferiram de Akins), irmão daquele. De um lado, Stumpy privilegiar o diálogo e as interações impetu- (Walter Brennan) não consegue lidar com a osas de Humphrey Bogart e Lauren Bacall. velhice que o afasta – e que leva os outros a Aquele foco no desenvolvimento das per- afastá-lo – dos conflitos que se vão travando; sonagens, de acordo com o realizador, passa e do outro, Colorado (Ricky Nelson), atirado a ser feito conscientemente a partir de RIO para uma contenda que não lhe dizia respeito, BRAVO, motivado pela ideia de que o público debate-se com a desconfiança face às suas ca- estava cansado de histórias e de que o mais pacidades e com uma visão desapontante do importante seria filmar as emoções e motiva- seu futuro, que lhe vai sendo mostrado pelos ções das pessoas. outros homens.

Falar de RIO BRAVO é, portanto, falar de A observação de todos aqueles desastres uma coleção de momentos em que a vida pessoais a serem construídos lentamente por interior daquelas personagens nos é revela- Hawks torna-se no elemento mais importan- da. De início, isso acontece ainda antes de as te e comovente de RIO BRAVO, exigindo ouvirmos falar: Dude (Dean Martin), bêbado toda a nossa atenção. Por esse motivo, cedo e sem dinheiro nenhum que lhe sustente os compreendemos que os contornos da histó- vícios, arrasta-se pelo saloon e prepara-se ria do cerco à cadeia deixam de ser o centro para se humilhar pela moeda que lhe paga- da narrativa, e que são sobretudo um pre- rá a próxima bebida. Quem o salva da ver- texto para colocar um conjunto de pessoas gonha é Chance (John Wayne), que emerge a batalhar pela sua dignidade. E Chance, tal do seu ponto de vista em plano contrapicado. como o espectador, é junto deles um vigilan- Nenhuma palavra é dita, mas a luta que se te silencioso que vai acompanhando e assis- segue com o salvador inesperado serve já de tindo às suas tentativas: fá-lo ao ver Dude a introdução às desventuras passadas de que recuperar-se a si próprio, vestindo as roupas vamos recolhendo fragmentos ao longo do que lhe guardara depois de ele se entregar filme – ao percurso que o atira literalmente à embriaguez; ao ouvir os homens cantarem ao chão, banindo-o da dimensão de grandeza MY RIFLE, MY PONY AND ME, numa das moral e heroica em que Wayne fica isolado, e cenas mais marcantes do filme e de que só

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Hawks é capaz; ao reparar que todos apare- sobre eles. As constantes provocações entre ceram para o ajudar quando lhes pedira que o par, devedoras das comédias screwball que não o fizessem. RIO BRAVO é, por isso, um Hawks assinara, enfatiza ainda mais a atual so- dos filmes em que a natureza da amizade e da lidão de Dude, que deseja a Chance mais sor- camaradagem é explorada do modo mais ter- te do que aquela que ele teve com a mulher no. Nesse aspeto, sempre presente nos filmes que o destruiu. Em RIO BRAVO, é ele quem que Hawks realizara até então, talvez rivalize procura a reconciliação com a sua vida, e é apenas com ONLY ANGELS HAVE WINGS isso que o filme lhe trará. Hawks conta que (1939); e, mais tarde, com os dois remakes que Wayne, a certo ponto das rodagens, lhe per- fará de RIO BRAVO, e que são também os guntou que havia de fazer enquanto Martin seus últimos filmes: EL DORADO (1966) e dominava todas as cenas. E o realizador deu- RIO LOBO (1970). -lhe a única resposta possível: “you look at him as a friend”. E, no entanto, o romance entre Chance e Fea- thers (Angie Dickinson como uma das mulhe- res hawksianas mais icónicas) não é ofuscado por esse universo de companheirismo; mas TIAGO J. SILVA também não faz com que o filme se torne

Argumento: Jules Furthman, Leigh Brackett; a partir de uma história de B.H. McCampbell Fotografia: (Technicolor) Russell Harlan Direcção Artística e Décors: Leo K. Kuter, Ralph S. Hurst, Marjorie Best Som: Robert B. Lee Música: Dimitri Tiomkin Montagem: Folmar Blangsted Interpretação: John Wayne (John T. Chance), Dean Martin (Dude), Ricky Nelson (Colorado), Angie Di- ckinson (Feathers), Walter Brennan (Stumpy), Ward Bond (Pat Wheeler), John Russell (Nathan Burdet- te), Pedro Gonzales-Gonzales (Carlos), Estelita Rodriguez (Consuela), Claude Akins (Joe Burdette), etc.

Produção: Howard Hawks Distribuição: Warner Bros. Cópia: DVD, cores, legendada em português, 136 minutos.

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03 | HALLOWEEN John Carpenter (1978)

A história da apreciação crítica dos filmes de próxima da própria essência do mal – a mes- John Carpenter consiste, na sua maior parte, ma que, anos mais tarde, se filma em PRINCE numa sucessão de instabilidades e desacordos. OF DARKNESS (1987), explicando que ela Ao contrário do que aconteceu com alguns precede a existência humana. Myers é só a cineastas, a sua obra não reuniu nunca qual- superfície que essa força básica escolhe ani- quer consenso; e, também ao contrário do mar, mero recetáculo (não por acaso, a sua que com aqueles sucedeu, certos especta- versão mascarada é referida nos créditos do dores nunca o chegaram sequer a considerar filme como The Shape) através do qual ela se meritório do título de “cineasta”. Carpenter manifesta, e que o torna no bogeyman de que faz várias vezes troça da sua exclusão de um as crianças falam. Samuel Loomis (Donald Ple- suposto cânone, e é notória a sua opinião asence) percebe-o antes de todos os outros, sarcástica sobre o assunto: “Em França, sou e, para espanto de quem o ouve, deixa de um auteur; na Alemanha, um realizador; na o encarar como pessoa: é antes um ser sem Grã-Bretanha, um cineasta de género; e, nos consciência e sem razão, descrito como um Estados Unidos da América, um vagabundo”. “it” predador e imparável. Ao contrário de Entre os que o consideram um autor, refere- outras criaturas que pertencem à sua galeria, -se com frequência, legitimando a sua obra, a não há para Myers quaisquer constrangimen- coerência, constantemente afinada, no trata- tos em revelar-se de dia. Vê-lo a percorrer mento do mal enquanto entidade e o sentido as ruas de Haddonfield quando ainda estão de composição visual herdado de realizadores envoltas em normalidade, e não só à hora dos como Howard Hawks. pesadelos, não o humaniza, e causa um estra- nhamento que acentua a sensação de ameaça Em HALLOWEEN, nem uma nem outra coisa à vida monótona nos subúrbios. É o horror estão ausentes. O terror perante os repetiti- que vem de longe para tentar corromper a vos e repentinos aparecimentos da máscara comunidade — como no western clássico que de Michael Myers são tanto mais perturba- Carpenter admira: Ford, Peckinpah, Hawks. dores quanto a ausência de explicações para os seus impulsos assassinos vai sendo com- A presença daquele último, homenageado provada. Foram várias as queixas em relação por Carpenter em ASSAULT ON PRECINCT ao filme pela total inexistência de psicologia 13 (1976), o filme anterior a HALLOWEEN, em Michael, assim como as acusações de ci- vai-se fazendo sentir progressivamente, e não tar PSYCHO (1960) de Alfred Hitchcock fra- se limita só a traços estilísticos, nem às diver- cassando na evocação de uma análise precisa sas alusões que são feitas ao cinema do reali- da psique do assassino. Tais críticas falham o zador que venera. Para assinalar apenas duas, ponto por conceberem Myers como um sujei- note-se que o xerife Leigh Brackett (Charles to capaz de tomar decisões e fazer escolhas, Cyphers) partilha o nome com a argumen- quando, na verdade, a sua natureza está mais tista de vários filmes de Hawks – incluindo

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RIO BRAVO (1959), alicerce da homenagem Kehr acaba por identificar a principal diver- mencionada e, por coincidência oportuna, já gência entre ambos. Enquanto Hawks é visto exibido no ciclo; e que, na noite dos assassi- pelo crítico como representante primeiro da natos, passa na televisão THE THING FROM “grande sensibilidade moderna do cinema”, a ANOTHER WORLD (1951), de que Carpen- morbidez de Carpenter é digna “do último ter fará um remake em 1982. Até a maneira dos românticos”; é ele o homem que “prevê de anunciar a chegada do perigo é semelhante o Apocalipse”, e que, no seu imenso pessimis- às opções que esperaríamos de Hawks: “De- mo, talvez “deseje, mesmo por um momento, ath has come to your little town, Sheriff”, aqui que ele chegue”. Quando a morte chega à ci- dito por Loomis, teria facilmente lugar no diá- dade em Hawks, as pessoas unem-se para a logo dos seus westerns. afugentar; em HALLOWEEN, essa possibilida- de não existe, e a ausência de resolução torna Contudo, para fazer justiça a HALLOWEEN, tudo fatal e tenebroso. é preciso não ter em conta somente as analo- gias com Hawks, e perceber como Carpenter também o transfigura e contraria. Num texto de 1999 em que discute justamente pontos TIAGO J. SILVA de contacto entre Hawks e Carpenter, Dave

Argumento: John Carpenter, Debra Hill Fotografia: Dean Cundey Direcção Artística e Décors: Tommy Lee Wallace, Craig Stearns, Erica Ueland, Beth Rodgers Som: Joseph F. Brennan, Thomas Causey, William L. Stevenson Música: John Carpenter, Peter Bergren, Bob Walters, Dan Wyman Montagem: Charles Bornstein, Tommy Lee Wallace Interpretação: Donald Pleasence (Loomis), Jamie Lee Curtis (Laurie), Nancy Loomis (Annie), P. J. Soles (Lynda), Charles Cyphers (Brackett), Kyle Richards (Lindsey), Brian Andrews (Tommy), John Michael Graham (Bob), Nancy Stephens (Marion), Arthur Malet (porteiro do cemitério), Mickey Yablans (Richie), Brent Le Page (Lonnie), Adam Hollander (Keith), Robert Phalen (Dr. Wynn), Tony Moran (Michael Myers, 23 anos, sem máscara), Will Sandin (Michael Myers, 6 anos), Sandy Johnson (Judith Myers), David Kyle (namorado de Judith), Peter Griffith (pai de Laurie), Nick Castle (The Shape), etc.

Produção: Debra Hill Distribuição: Compass International Cópia: DVD, cores, legendada em português, 92 minutos.

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04 | IL DIVO (2008)

Os nomes de Paolo Sorrentino e Toni Servillo Murnau, e não se o esconde como a grande tornaram-se indissociáveis entre si no cinema referência do filme. Servillo move-se com a italiano contemporâneo. A parceria iniciou-se morosidade do vampiro; vestido de negro e logo na primeira longa-metragem de Sorren- com as mãos cruzadas, corta os espaços que tino, L’UOMO IN PIÙ (2001), e, até à data, engolem os que não partilham da sua nature- resultou em mais quatro filmes com Servillo za. O pedido de casamento que faz à mulher, como personagem principal. Não é surpre- e a que assistimos em flashback, tem como endente, portanto, que quando o realizador cenário um cemitério, e a luz intensa obriga-o decidiu filmar a biografia de , a cerrar os olhos. Diz-se com frequência que figura preponderante e controversa na Demo- alguns atores carregam filmes às costas, mas crazia Cristiana, a escolha tenha recaído sobre no caso de Servillo a expressão deve ser en- o ator. Sorrentino, com o perfeccionismo que tendida de forma literal. São as peculiaridades lhe é característico, coligiu textos, fotografias físicas com que vai habitando a personagem e vídeos de Andreotti na tentativa de que – como o modo como se curva, por mais que Servillo lhe procurasse aprender as palavras e os restantes insistam que o primeiro-ministro os gestos; e Servillo, com a também habitual se deve endireitar, e como se encolhe na es- nonchalance, preferiu ignorar o pedido e, pelo curidão – que vão empurrando o filme para o contrário, não se focar em nenhum traço do deslindamento do seu carácter. E se IL DIVO político que não estivesse já incluído no guião. tem como subtítulo “a vida espetacular de Por isso mesmo, deparamos em IL DIVO com Giulio Andreotti”, privilegiando os momentos uma situação incomum: a de um realizador de ação reminiscentes de Scorsese, talvez “re- que, não abdicando do seu estilo próprio, trato do vampiro enquanto político” também aceita construir o filme no rasto dos delitos não fosse uma escolha inapropriada. com que o ator o vai presenteando. Vendo o filme, percebem-se as causas do in- O resultado é uma fusão insólita entre o fil- teresse de Sorrentino por Andreotti, e a sua me político e o filme de terror. O Andreotti tolerância face a uma interpretação que não de Servillo, ainda antes de qualquer juízo mo- respeita as suas intenções originais. Tanto o ral que sobre ele se teça, é um monstro. Na tema como o isolamento silencioso do políti- primeira cena de IL DIVO, em que o vemos co que Servillo agiganta estão em sintonia, por na penumbra do gabinete, as agulhas de acu- um lado, com as suas opções formais recor- puntura com que tenta combater as dores de rentes (os planos geométricos, os longos tra- cabeça tornam-no igual ao Pinhead de HELL- vellings frontais e as sequências mudas em câ- RAISER (1987). Depois, esse lado grotesco mara lenta serão os exemplos mais óbvios); e, dá lugar à lugubridade e ao mistério de uma por outro, com os tipos de grupos sociais que outra criatura: o antepassado da caricatura se compraz em parodiar: da classe eclesiásti- de Andreotti é o NOSFERATU (1922) de ca – a Última Ceia profana e de costas para a

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piscina é semelhante ao tratamento irónico da PLACE (2011), é a versão rock e descontrolada Pietà na série THE YOUNG POPE (2016) – à de Servillo em IL DIVO. Todos eles são ho- vacuidade das elites, em claro prenúncio das mens com “vidas espetaculares”, mas que as festas de LA GRANDE BELLEZZA (2013), vivem de modo desapaixonado e indiferente também com “mares de gente que não fazem quando os encontramos. Talvez isso explique ninguém sentir-se menos só”, e também com por que motivo várias pessoas se pergunta- Servillo no papel de um homem para quem ram, à data em que IL DIVO estreou, que faria nada significa nada. Sorrentino com a vida de alguém como . Em breve, aquela questão terá res- Como já sugeri, a relação entre Servillo e Sor- posta: as rodagens de LORO, biopic do políti- rentino molda os filmes do segundo e provoca co italiano, começarão no Verão deste ano. certas expectativas da parte dos espectado- Pouco se sabe ainda sobre o filme, mas o ator res quanto ao tipo de pessoa que naqueles que interpretará Berlusconi já está confirma- se espera encontrar. Assim, mesmo quando do — é, sem surpresa nenhuma, Toni Servillo. o realizador não trabalha com Servillo, parece modelar as suas personagens à sua imagem: , em YOUTH (2015), é o primo afastado de Servillo em LA GRANDE BELLE- TIAGO J. SILVA ZZA; e Sean Penn, em THIS MUST BE THE

Argumento: Paolo Sorrentino Fotografia: Luca Bigazzi Direcção Artística e Décors: Lino Fiorito, Alessandra Mura, Daniela Ciancio Som: Gianluca Basili, Sergio Basili, Emanuele Cecere, Vikram Joglekar, José A. Manovel, Alessandro Mo- laioli, Silvia Moraes, Massimo Puccio, Angelo Raguseo, Francesco Sabez, Antonio Tirinelli Música: Teho Teardo Montagem: Cristiano Travaglioli Interpretação: Toni Servillo (Giulio Andreotti), Anna Bonaiuto (Livia Danese), Giulio Bosetti (Eugenio Scalfari), (Franco Evangelisti), Carlo Buccirosso (Paolo Cirino Pomicino), Giorgio Colangeli (Salvo Lima), Alberto Cracco (Don Mario), Piera Degli Esposti (Enea), Lorenzo Gioielli (Mino Peco- relli), Paolo Graziosi (Aldo Moro), Gianfelice Imparato (Vincenzo Scotti), Massimo Popolizio (Vittorio Sbardella), Aldo Ralli (Giuseppe Ciarrapico), Giovanni Vettorazzo (Magistrado Scarpinato), Orazio Alba (Gaspare Mutolo), Fernando Altieri (Oscar Luigi Scalfaro), Stewart Arnold (Larry Schoenbach), etc.

Produção: Francesca Cima, Fabio Conversi, Maurizio Coppolecchia, Nicola Giuliano, Andrea Occhipinti Distribuição: Lucky Red Cópia: DVD, cores, legendada em português, 110 minutos.

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05 | LADRI DI BICICLETTE (1948)

Guardam-se por vezes na memória gestos e mem. Pai e filho estão já a começar a ficar reações de terceiros que pareceram inespe- desesperados: a possibilidade de voltarem al- rados no momento em que ocorreram. Há guma vez a reaver o objecto em que tinham no cinema alguns exemplos disso mesmo: tanto orgulho, e cujo desaparecimento signifi- em DISHONORED (1931), de Josef Von cará o regresso do desemprego e da pobreza, Sternberg, Marlene Dietrich decide retocar parece quase nula. É um dos momentos do o batom instantes antes de ser fuzilada; em filme em que a frustração é mais intensa, e L’ECLISSE (1962), de Michelangelo Antonioni, eventualmente têm de abandonar a igreja e Vittoria (Monica Vitti) segue um homem que continuar a odisseia pela cidade. Mas antes de acaba de perder todo o seu dinheiro na bolsa o fazerem, e numa fração de segundo quase para descobrir que, face ao sucedido, aquilo impercetível, Bruno precipita-se, volta atrás, que ele escolhe fazer é desenhar flores num ajoelha-se à frente do altar e benze-se. Sobre pedaço de papel. Começo por evocar estas os mistérios da esperança e da fé vistas pelos cenas porque, a propósito de LADRI DI BI- olhos de uma criança, o filme tem pouco mais CICLETTE, não é difícil recordar ocasiões em a acrescentar. O gesto de Bruno, percebe-se, que a comoção nasce precisamente do im- é a versão religiosa das flores em Antonioni e previsto; e porque discutir sobre elas é com da audácia final em Sternberg; é a atitude que, certeza mais proveitoso do que participar no na sua aparente irracionalidade, nos diz sobre debate saturado sobre a posição do filme no a personagem tudo aquilo que sobre ela pre- neorrealismo italiano. cisamos de saber.

Os preceitos estéticos e ideológicos são Além disso, a cena na missa serve também importantes para Vittorio De Sica e estão para que De Sica comece a delimitar clara- presentes; mas interessa menos ver o filme mente os locais que os ricos e os pobres ocu- tentando entendê-lo através daqueles do pam em LADRI DI BICICLETTE: a separação que olhar com atenção para cada cena e en- entre uns e outros na igreja dar-se-á também contrar nelas a gentileza de uma das pesso- nas ruas e no restaurante. Os contrastes ma- as mais respeitadoras para com aquilo que nifestam-se quando Bruno, envergonhado por filma. Foquemo-nos apenas numa das mais não saber usar os talheres, tenta imitar o que marcantes: aquela em que Antonio (Lamber- vê a outra família fazer na mesa atrás de si; ou, to Maggiorani), na companhia do filho Bruno de maneira mais evidente, quando Antonio (Enzo Staiola), entra numa igreja, em que a cola pela primeira vez nas paredes os cartazes missa acaba de começar, em perseguição de de GILDA (1946) de Charles Vidor. Para po- um homem que conhece quem lhe roubou a der aceitar aquele trabalho, teve de penhorar bicicleta. Antonio e Bruno são os únicos que todos os lençóis que tinha em casa, guardados não genufletem, e, enquanto os outros rezam depois num gigantesco armazém que nos dá e cantam, interrogam fervorosamente o ho- a noção do verdadeiro impacto da guerra na-

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quelas vidas – a quantidade absurda de obje- e o filho reminiscente de THE KID (1921) e o tos ali amontoados é tão interminável quanto passeio final até ao horizonte a lembrar a úl- as filas de desempregados que tentam a sua tima cena de MODERN TIMES (1936), é por- sorte e quanto as multidões que se esmagam que para De Sica, como para Chaplin, não há para conseguirem lugar no elétrico. Com o sentido num cinema que não tem compaixão sorriso melancólico de Antonio perante a mi- para com as personagens. O que se segue às ragem de Rita Hayworth, e à luz do trajeto caminhadas inúteis pela cidade é incerto; mas que o filme faz até então, são duas conceções a dúvida não deixa de ser filmada do modo do mundo que ali entram em confronto – e, mais digno e humano. Aceitar o fim depende em última análise, também duas conceções de de se encontrar uma saída, por mais imprová- cinema. vel e milagrosa que aquela seja. Suspeito que De Sica, que se descrevia como “um otimis- É por termos acompanhado tudo isto ao longo ta desiludido, mas, ainda assim, um otimista”, do filme que não recriminamos Antonio quan- acredita nela – e o seu filme seguinte, sabe- do ele tem de renunciar ao seu código moral mo-lo, é MIRACOLO A MILANO (1951). e vê o seu mundo ruir. No caminho até lá e na resolução ambígua do drama, a humanida- de de De Sica volta a afastá-lo do que outros realizadores atraídos por histórias do mesmo TIAGO J. SILVA tipo fariam com elas: ao contrário deles, De Sica não consegue ser um miserabilista. Se o filme é chaplinesco, com a relação entre o pai

Argumento: Oreste Biancoli, Suso Cecchi D’Amico, Vittorio De Sica, Adolfo Franci, Gherardo Gherardi, Gerardo Guerrieri; a partir de uma história de Cesare Zavattini e de um livro de Luigi Bartolini Fotografia: Carlo Montuori Direcção Artística e Décors: Antonio Traverso Som: Gino Fiorelli Música: Alessandro Cicognini Montagem: Eraldo Da Roma Interpretação: Lamberto Maggiorani (Antonio), Enzo Staiola (Bruno), Lianella Carell (Maria), Gino Salta- merenda (Baiocco), Vittorio Antonucci (o ladrão), Guilio Chiari (pedinte), Carlo Jachino (pedinte), Elena Altieri (senhora da caridade), Michele Sakara (secretária da instituição de caridade), Fausto Guerzoni (actor), etc.

Produção: Giuseppe Amato Distribuição: Ente Nazionale Industrie Cinematografiche Cópia: DVD, p&b, legendada em português, 85 minutos.

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06 | MADAME DE... Max Ophüls (1953)

Ao descreverem as suas vidas, algumas pes- passando com ela nesse período de tempo, soas oferecem também descrições de certos bem como a evolução das suas emoções, é objetos. O exemplo mais óbvio coincide com mostrado pelos diferentes modos como vai o enigma célebre do início de CITIZEN KANE encarando e fazendo sentido do objeto que (1941): a última palavra dita pelo moribundo, regressará vezes sem conta, por muito que que se pensa durante algum tempo ser a al- abundem as tentativas de várias personagens cunha de alguém, é, na verdade, o nome do em verem-se livres dele. Ao aborrecimento trenó com que brincava na infância. Não ha- que Louise sente pelo marido – pensa-se de via, afinal, qualquer escândalo digno de inves- imediato numa outra madame, a Bovary de tigação e de primeiras páginas dos jornais; o Flaubert – e à paixão pelo Barão Donati (Vit- filme não avança até um grande segredo, mas torio De Sica) não corresponde só a diferen- até à lembrança mais consoladora de quem ça de atitudes em relação aos dois homens, a recorda pela última vez. E, se com Charles mas a diferença no significado que passa a Kane reconhecemos como matéria e memó- atribuir aos brincos. Num êxtase da metoní- ria se influenciam, podemos até ir mais longe mia, o objeto de que se queria desfazer acaba e conceber casos em que uma e outra coisa por se tornar no mais importante que possui: se tornam indissociáveis. Em MADAME DE..., contemplá-lo é como olhar para o amante de Max Ophüls não se interessa em filmar ou- quem se encontra apartada; e usá-lo é como tra coisa que não o modo como um objeto estar na sua presença. Para Louise, a dor de passou a ser a expressão tangível das paixões perder os brincos é tão excruciante quanto a e desgraças de uma mulher; e tudo o resto dor de perder Donati porque já não é possível se torna irrelevante face à mestria com que o distinguir a afeição que sente por ambos. Seria consegue fazer. insuficiente, portanto, dizer que os brincos são o símbolo dos amantes condenados. Numa No filme, desde o momento em que Louise estranha metamorfose, eles convertem-se no (Danielle Darrieux) vende o par de brincos próprio romance e encerram a sua memória; pela primeira vez até ao desgosto final pas- e por isso, quando Louise os deixa na igreja sam-se cerca de dois anos. Durante eles, há como tributo, está também a sacrificar parte detalhes que nunca chegaremos a saber sobre de si própria. aquela mulher – nem sequer o apelido, que Ophüls nos vai sonegando através das estra- Como se pode ver, talvez este seja o filme de tégias mais engenhosas. Tudo o que podemos Ophüls em que as paixões se vivem com mais conhecer da sua história, percebemos depois, intensidade; mas isto não equivale a dizer que é também o que conhecemos da história da o ímpeto que as envolve nasce subitamente joia que André (Charles Boyer) lhe oferece- de algum mistério de que se não dá conta. ra como prenda de casamento e sem a qual Em MADAME DE..., e ao contrário do que na nada teria acontecido. Tudo aquilo que se vai vida acontece, as personagens não dão por si

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apaixonadas numa epifania que corresponde separação é tão exacerbada. Se Louise e Do- ao momento em que percebem que qualquer nati sofrem, junta-se também a eles o arreba- coisa mudou. O enamoramento não é visto tamento da natureza. As centenas de cartas por Ophüls como um acontecimento privado rasgadas em mil pedaços que vemos a voar da e inacessível aos outros, mas como um pro- janela do comboio tornam-se indistinguíveis cesso em que são visíveis todas as fases que da paisagem e da neve que cai lá fora. As suas compõem a coreografia; e é precisamente histórias inscrevem-se no mundo, e aquilo que pela dança que assistimos às alterações que se fica de MADAME DE... não são os ecos imate- começam a dar em Louise e Donati. Os bailes riais de uma existência que chega ao fim, mas que passam a frequentar e em que são sem- a presença real dos objetos que se deixaram pre os últimos a ir embora fundem-se numa para trás como dádiva e efígie do tempo per- única valsa que se parece prolongar até à eter- dido. Os brincos são a memória cristalizada nidade. Recorrendo aos dissolves e aos refle- do que aconteceu a quem os usava – os brin- xos nos espelhos dos salões para assinalar a cos são as imagens reencontradas. passagem do tempo, Ophüls cria um dos mo- mentos de cinema mais comoventes de que há memória: ao rodopiarem pela sala, sempre TIAGO J. SILVA ao som da mesma sinfonia, os amantes desco- brem-se presos num bailado sem fim.

Shakespeare já avisara que os deleites violen- tos têm também violentos fins, e por isso a

Argumento: Max Ophüls, Marcel Achard, Anette Wademant; a partir de um livro de Louise de Vilmorin Fotografia: Christian Matras Direcção Artística e Décors: Jean d’Eaubonne, Georges Annenkov, Rosine Delamare Som: Antoine Petitjean Música: Oscar Straus, Georges Van Parys Montagem: Borys Lewin Interpretação: Charles Boyer (General André de...), Danielle Darrieux (Condessa Louise de...), Vittorio De Sica (Barão Fabrizio Donati), Jean Debucourt (Monsieur Rémy), Jean Galland (Monsieur de Bernac), Mireille Perrey (a aia), Paul Azaïs (o cocheiro), Hubert Noël (Henri de Maleville), Lia Di Leo (Lola), etc.

Produção: Ralph Baum Distribuição: Gaumont Cópia: DVD, p&b, legendada em português, 95 minutos.

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07 | GLORIA John Cassavetes (1980)

Uma tentativa de unificação de todos os fil- a revelarem-se na sua fragilidade. Forçada a mes de John Cassavetes não poderia deixar proteger a criança, Gloria acaba por se afeiço- de ter em conta o interesse obsessivo do re- ar a ela, e não demora muito até que perca- alizador na vulnerabilidade. Se há ideia com a mos o rasto à mulher que dizia detestá-la. A qual todas as suas personagens tenderiam a vizinha com quem se mantinha a mais ríspida concordar, é a de que aquela emoção merece e distante das relações vê-se, de repente, no a maior repulsa; e que, portanto, a desconfian- improvável papel de mãe, e não tem qualquer ça será a reação mais acertada quanto à ex- noção sobre como o deverá representar. É posição daquilo que sentem perante terceiros. essa aprendizagem que cativa Cassavetes e A teoria é avançada de modo explícito por é à luz dela que as lacunas e reviravoltas da Richard (John Marley) em FACES (1968), que narrativa, sem aparente justificação, devem se queixa, no entanto, de que viver segundo ser entendidas: não se procura em GLORIA aquele imperativo acaba por tornar as pesso- verosimilhança do ponto de vista da ação, as em criaturas mecânicas. Essa constatação nem nada que se lhe pareça; e quer-se apenas provocará as atitudes mais díspares da parte olhar com franqueza para as relações huma- das personagens – enquanto algumas optam nas e para a suscetibilidade que elas exigem por se resignar, outras ver-se-ão obrigadas a nos casos em que se tornam importantes. Se alterar radicalmente a forma como encaram a interpretação estiver correta, as palavras a sua existência. É este último tipo de posição que Gloria não se cansa de repetir a Phil, pe- que se pretende descrever em GLORIA. dindo-lhe que não se preocupe, já que tudo à sua volta não passa de um sonho, não podem Tendo em conta aquele propósito, seria pou- ser vistas simplesmente como um esforço de co tentador optar por uma leitura do filme o tranquilizar e devolver à inocência; são tam- que assentasse nos acontecimentos que le- bém um comentário de Cassavetes sobre a vam, desde o início, à constante fuga da prota- plausibilidade daquilo que apresenta no ecrã e gonista (Gena Rowlands) e de Phil (John Ada- sobre as coisas com que um espectador não mes). Sendo certo que GLORIA vive também se deve desassossegar. do estilo e das referências que recolhe das an- teriores incursões cinematográficas no mundo O argumento parece ser corroborado pela dos gangsters, é notório que Cassavetes não predominância que se atribui ao ponto de está propriamente interessado em fazer um vista de Phil. Uma parte importante daquilo filme de género. Como já acontecera no caso que acontece no filme é apreendida através de THE KILLING OF A CHINESE BOOKIE da perspectiva de uma criança, e a câmara, (1976), a máfia serve apenas como um pretex- muitas vezes colocada ao nível dos seus olhos, to para colocar as personagens numa situação enfatiza a progressiva centralidade de Gloria de confronto e, a partir daí, examinar como a no plano. Às ocasiões em que o pesadelo de tensão as obriga a livrarem-se das máscaras e ter perdido tudo aquilo que conhecia se fa-

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zem sentir com maior veemência, segue-se a influenciar, de que LÉON (1994) de Luc sempre a sua suavização pelo humor do diálo- Besson é, ainda assim, o exemplo mais bem- go e pelo regresso ao conforto do ambiente -sucedido. Interessa mais perceber como que familiar inusitado. Desde a explosão de cor é uma pessoa se rende à vulnerabilidade e se das pinturas de Romare Bearden com que o torna numa outra (com o disfarce, no reen- filme abre, aquilo que se procura é um escape contro final, como comentário cómico sobre a da desorientação que agora aflige as persona- identidade pessoal) do que tentar justificar as gens, e que a cidade acentua com insistência. insolúveis elipses e contradições da narrativa. Nova York é filmada por Cassavetes como um Tal como em OPENING NIGHT (1977), não labirinto confusamente iluminado pelos néons se pode pedir das fantasias que as persona- que impedem Phil de adormecer, e, ao peso gens constroem que sejam realistas; e quem da arquitetura e à violência das multidões, o se preocupar com o que seria necessário ou filme contrapõe a imitação de vida que Gloria expectável está aqui a perder o ponto: “it’s e Phil vão tentando ensaiar. just a dream”.

O cuidado com que Cassavetes trata aque- la relação separa GLORIA tanto do assumi- do remake que se lhe segue, realizado por TIAGO J. SILVA Sidney Lumet em 1999, como dos inúmeros filmes que a premissa inicial do enredo veio

Argumento: John Cassavetes Fotografia: Fred Schuler Direcção Artística e Décors: Rene D’Auriac, John Godfrey, Peggy Farrell, Emanuel Ungaro Som: Stan Gordon Música: Bill Conti Montagem: George C. Villaseñor Interpretação: Gena Rowlands (Gloria Swenson), Julie Carmen (Jeri Dawn), Buck Henry (Jack Dawn), John Adames (Phil Dawn), Jessica Castillo (Joan Dawn), Lupe Garnica (Margarita Vargas), John Finnegan (Frank), Tony Knesich, Tom Noonan, Ronald Maccone, Frank Belgiorno, J.C. Quinn, Alex Stevens, Sonny Landham e Harry Madsen (mafiosos), Lawrence Tierney (bartender), Basilio Franchina (Tony Tanzini), etc.

Produção: Sam Shaw, Steve Kesten Distribuição: Columbia Pictures Cópia: DVD, cor, legendada em português, 121 minutos.

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