Artelogie Recherche sur les arts, le patrimoine et la littérature de l'Amérique latine

14 | 2019 Sensibilités : Arts, littératures et patrimoine en Amérique latine Sensibilidades : artes, literaturas e patrimônio na América Latina

Electronic version URL: http://journals.openedition.org/artelogie/3588 DOI: 10.4000/artelogie.3588 ISSN: 2115-6395

Publisher Association ESCAL

Electronic reference Artelogie, 14 | 2019, “Sensibilités : Arts, littératures et patrimoine en Amérique latine” [Online], Online since 04 September 2019, connection on 09 March 2021. URL: http://journals.openedition.org/ artelogie/3588; DOI: https://doi.org/10.4000/artelogie.3588

This text was automatically generated on 9 March 2021.

Association ESCAL 1

Le dossier «Sensibilités : Arts, littérature et patrimoine en Amérique latine» tente d’analyser les sens, les émotions et les sensibilités dans l’étude et l’interprétation des processus historiques et sociaux. Il est réalisé avec la collaboration de chercheurs de domaines différents, s’intéressant à l’interdisciplinarité et au développement de concepts et de méthodologies pour ce «monde du sensible». O dossiê “Sensibilidades – artes, literatura e patrimônio na América Latina” tenta, com a colaboração de pesquisadores de diferentes domínios, tomar como perspectiva os sentidos, as emoções e as sensibilidades no estudo e interpretação de processos históricos e sociais, interessados na interdisciplinaridade e no desenvolvimento de conceitos e metodologias para esse “mundo do sensível”.

EDITOR'S NOTE

Artelogie, 14 | 2019 2

TABLE OF CONTENTS

Apresentação do dossiê “Sensibilidades – artes, literaturas e patrimônio na América Latina Antonio Herculano Lopes and Nádia Maria Weber Santos

Tabúes y pasiones. Ideas, afectos y prácticas en el cruce del Atlántico Rosalina Estrada Urroz

Sobre o lugar das sensibilidades e emoções na produção do pensamento Antonio Herculano Lopes

O arquivo pessoal da historiadora Sandra Jatahy Pesavento e as Sensibilidades enquanto campo teórico e método de análise histórica Nádia Maria Weber Santos and Maximiano Martins de Meireles

“Cafetín de Buenos Aires”, uma janela sobre a cidade moderna: solidão e melancolia na experiência do tango dos anos 1930 e 1940 Avelino Romero Pereira

La infancia rural en César Vallejo: renovación cultural y crítica social Alejandra Josiowicz

Novas sensibilidades, performances e o neoconcretismo : o exercício experimental de liberdade de Hélio Oiticica Robson Corrêa de Camargo

Os "meninos índios" que Spix e Martius levaram a Munique Maria de Fátima Costa

O solo da transição: William Hazlitt e a literatura latino americana Daniel Lago Monteiro

Representaciones de la experiencia parisina. ¡No contaban con mi astucia! – Sobre héroes, demonios y narcóticos en América Latina Carlos Velázquez

Joel Silveira: um repórter em diretrizes Joëlle Rouchou

Comptes rendus / Partenariat Critique d'art

Les arts précolombiens : Transferts et métamorphoses de l’Amérique latine à la France, 1875-1945, VAUDRY, Élodie, Rennes, PUR, 2019. María Isabel Quintana Marín

História & História Cultural. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. Maximiano Martins de Meireles

Sensibilidades: escrita e leitura da alma. PESAVENTO, Sandra Jatahy. In: Pesavento, Sandra Jatahy; Langue, Frédérique. (Org.). Sensibilidades na história: memórias singulares e identidades sociais. 1ed.Porto Alegre: UFRGS, 2007, v. 1, p. 9-21. Luciana Rodrigues Gransotto

O homem que se achava Napoleão – por uma história política da loucura. MURAT, Laure. Três Estrelas, São Paulo, 2012. Isabel Lustosa

Artelogie, 14 | 2019 3

Entretien(s)

Artelogie N°14 : Entretien avec Rosalina Estrada Urroz. Rosalina Estrada Urroz, Benemérita Universidad Autónoma de Puebla and México

Varia

“The sense of the past”: the historical sensibility in Lionel Trilling’s literary criticism Luiza Larangeira da Silva Mello

Artelogie Expo Revue

Apresentação do Acervo Sandra Jatahy Pesavento do IHGRGS (Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul) Nádia Maria Weber Santos

Artelogie, 14 | 2019 4

Apresentação do dossiê “Sensibilidades – artes, literaturas e patrimônio na América Latina

Antonio Herculano Lopes e Nádia Maria Weber Santos

1 O dossiê “Sensibilidades – artes, literatura e patrimônio na América Latina” iniciou a ser pensado a partir de um colóquio homônimo que ocorreu na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, nos dias 23 e 24 de agosto de 2018. O Colóquio interdisciplinar sobre sensibilidades – artes e patrimônio na América Latina reuniu onze pesquisadores de áreas diversas, que tomaram como perspectiva os sentidos, as emoções e as sensibilidades no estudo e interpretação de processos históricos e sociais, interessados na interdisciplinaridade e no desenvolvimento de conceitos e metodologias para esse “mundo do sensível”.

2 Desde sua emergência como objeto da investigação histórica, de Johan Huizinga às considerações de Lucien Febvre, ou, entre nós, o ensaísmo de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, o tema das sensibilidades exerce sobre o olhar dos historiadores e cientistas sociais um desafiante fascínio, contrabalançado pela dificuldade de incorporação ao discurso mais “controlado” da disciplina que parece destiná-lo a uma posição de marginalidade. A sensibilidade faz parte das categorias que abrem o discurso para o indizível. Uma das marcas de identificação do indivíduo moderno, nem por isso ela deixa de ser apreensível em sua dimensão social: ao contrário, revela-se instância estratégica na construção social e histórica da subjetividade, passando do singular ao plural ou a uma história das sensibilidades. É comum que a escrita da história pressuponha a racionalidade do historiador e da produção das fontes. Se, nas últimas décadas, tem-se dado mais atenção aos fatores subjetivos que marcam a análise historiográfica, é mais raro o empenho em surpreender a marca das emoções nas próprias fontes que informam a pesquisa. Os arquivos (textuais, imagéticos, sonoros) se apresentam como portadores de “dados”, velando a marca deixada por mulheres e homens de carne e osso, com suas sensações e emoções. Tal análise, difícil, porém necessária, é capaz de apontar para formas de ser e de sentir muito distintas das do

Artelogie, 14 | 2019 5

tempo do historiador, permitindo-lhe adentrar melhor num mundo no limite para sempre perdido.

3 A partir de nossas experiências em reuniões da Anpuh Nacional (o encontro historiadores brasileiros, que acontece a cada dois anos), enquanto coordenadores de simpósios temáticos sobre as sensibilidades na história, entendemos esse colóquio como um momento de estreitar laços teóricos e metodológicos com pesquisadores que se interessam pelo campo, interdisciplinar por excelência, das sensibilidades. Embora partamos da história cultural, com conceitos como representações e imaginário, com a discussão sobre as narrativas histórica e ficcional e com a própria questão das sensibilidades, sabemos que outras áreas pensam e discutem com instrumentais próprios as formas sensíveis de fazer face à realidade e de interpretá-la. Compreendemos que as artes, a literatura, o patrimônio, a ciência e as diversas formas de pensamento podem se tornar espaços teóricos e temáticos privilegiados para a discussão interdisciplinar. Daí a ideia de reunir um grupo de pesquisadores de formação variada com este desafio: pensar em conjunto como trabalhamos e o que ganhamos com o tema das sensibilidades.

4 Assim, ampliando o escopo para intelectuais de outras áreas, o dossiê é composto por pesquisadores que fazem leituras de como artistas, cientistas e pensadores deixaram a marca dos seus afetos e percepções em suas produções, relacionadas à América Latina como um todo. Acrescentamos, ainda, em nossas reflexões, a relação entre sensibilidade e memória, tão presente nas preocupações de pesquisadores atuais. Nosso propósito foi usar a perspectiva das sensibilidades individuais e dos grupos como forma de chegar ao real em construção e às ideias que dele fazem parte. Os arquivos pessoais também são fontes particularmente preciosas para esse tipo de trabalho, porém, a própria produção intelectual e artística pode fornecer elementos relevantes para leituras que busquem as relações entre o indivíduo e a sociedade, entre as representações e as práticas ou entre a subjetividade e a realidade. Nessa senda, também retomamos como suporte teórico de nossas discussões os textos da historiadora Sandra Pesavento sobre sensibilidades, a qual foi uma das pioneiras desse campo no Brasil.

5 Os dez autores e seus textos discorrem sobre marcos conceituais e metodologias; desafios de pesquisa sobre sensibilidades em arquivo; tabus e paixões; simbolismo e heroísmo; solidão, melancolia e tango; infância e crítica social na poesia peruana; teatralidade como instinto e forma de conhecimento; favelas e dramaturgia brasileira; viajantes, índios e suas relações; a presença inglesa na crítica da literatura latino- americana; sensibilidades jornalísticas.

6 São eles: Rosalina Estrada Urroz (Benemérita Universidad Autónoma de Puebla, México) – Tabúes y pasiones: ideas, afectos y prácticas en el cruce del Atlántico; Antonio Herculano Lopes (FCRB) – Algumas ideias para um marco conceitual sobre as sensibilidades nas ciências humanas; Nádia Maria Weber Santos (IHGRGS/UFG) e Maximiano Martins de Meireles (Uneb) – A temática das sensibilidades no arquivo pessoal da historiadora Sandra Jatahy Pesavento: possibilidades e desafios de pesquisa no campo das sensibilidades; Carlos Velázquez (Unifor) – ¿Y ahora, quién podrá defendernos? Sobre heroísmo demoniaco en América Latina; Avelino Romero Simões Pereira (Unirio) – “Cafetín de Buenos Aires”, uma janela sobre a cidade moderna: solidão e melancolia na experiência do tango dos anos 1930 e 40; Alejandra Josiowicz (CPDOC/FGV) – Para uma estético-política da infância: experimentação e crítica social em César Vallejo; Robson Corrêa de Camargo (UFG) – A teatralidade na arte brasileira, antropófagos e antropofagias; Maria de Fátima

Artelogie, 14 | 2019 6

Costa (UFMT) – Os “meninos índios” que Spix e Martius levaram a Munique; Daniel Lago Monteiro (USP) – O solo da transição: William Hazlitt e a literatura latino-americana; Joëlle Rouchou (FCRB) – Joel Silveira, repórter de Diretrizes.

7 Importante é, ao situarmo-nos em campo de investigação tão complexo quanto profícuo, salientar que a produção historiográfica e científica em geral das ciências humanas e sociais tem feito um extraordinário esforço de expansão de seus temas, fontes e perspectivas, permitindo leituras mais complexas do fenômeno social. Nesse movimento, cresceu uma atenção mais específica ao campo das sensibilidades, capaz de perceber algo do que se perde diante do documento “frio” – a paixão, as fantasias, os desejos e os medos que movem homens e mulheres em suas ações. A subjetividade, traduzida muitas vezes pelas sensibilidades a determinados fatos, por sua vez, está no seio de toda e qualquer manifestação humana. Ela é um produto não apenas da história individual, mas, também, da história coletiva do homem, de sua cultura. As ciências humanas e sociais, atualmente e cada vez mais, admitem que, enquanto humanos, os sentidos, as emoções e as sensibilidades estão no fundamento de nossas relações com os outros e com o mundo que nos rodeia, assim como nos modos de vida e de interação. É sobre essas complexas redes de subjetividades, afetos e sentidos que os textos deste dossiê refletem, na expectativa de oferecer uma leitura prazerosa sobre a temática “sensibilidades na América Latina”.

RESUMOS

O dossiê “Sensibilidades – artes, literatura e patrimônio na América Latina” iniciou a ser pensado a partir de um colóquio homônimo que ocorreu na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, nos dias 23 e 24 de agosto de 2018. O dossiê tenta, com a colaboração de pesquisadores de diferentes domínios, tomar como perspectiva os sentidos, as emoções e as sensibilidades no estudo e interpretação de processos históricos e sociais, interessados na interdisciplinaridade e no desenvolvimento de conceitos e metodologias para esse “mundo do sensível”.

Le dossier «Sensibilités : Arts, littérature et patrimoine en Amérique latine» tente d’analyser les sens, les émotions et les sensibilités dans l’étude et l’interprétation des processus historiques et sociaux, avec la collaboration de chercheurs de domaines différents s’intéressant à l’interdisciplinarité et au développement de concepts et de méthodologies pour ce "monde du sensible".

ÍNDICE

Mots-clés: Sensibilités, arts, littératures, patrimoine, Amérique latine. Palavras-chave: Sensibilidades, artes, literatura, patrimônio, América Latina.

Artelogie, 14 | 2019 7

AUTORES

ANTONIO HERCULANO LOPES

Fundação Casa de Rui Barbosa. Pesquisador em história.

NÁDIA MARIA WEBER SANTOS

Médica, psiquiatra junguiana e historiadora. Possui Mestrado e Doutorado em História pela UFRGS e Pós-Doutorado pela Université Laval (Québec/Canadá). É bolsista de produtividade do CNPq nível 2 desde 2016. É membro pesquisadora do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul e curadora do Acervo Sandra Jatahy Pesavento nesta instituição. Integra o comitê editorial da revista Artelogie, vinculada ao CRAL/EFISAL – EHESS de Paris. Atualmente é professora do PPG em Performances Culturais da UFG (Universidade Federal de Goiás).

Artelogie, 14 | 2019 8

Tabúes y pasiones. Ideas, afectos y prácticas en el cruce del Atlántico

Rosalina Estrada Urroz

1 Cómo pensar las sensibilidades desde diferentes espacios sociales y académicos, cómo ir de un lugar a otro y encontrar en el camino la pérdida del espacio propio, en el cual se ha vivido muchos años o solamente algún tiempo. Cómo comprender la llegada a México de ideas a través de libros, hombres y mujeres, desde el mundo médico que es representativo, desde el diplomático o desde el mismo espacio social que se construye. A los migrantes y a los que permanecen en el punto de partida, les atraviesa pronto la añoranza y la nostalgia, quizá hayan vivido la partida del otro desde la esperanza, y con el transcurrir del tiempo la ausencia se vuelve una costumbre o un fardo que hay que soportar. El trayecto hacia otro horizonte es corto, pero el tiempo pasa y en él se viven diferentes acontecimientos. Así, desde los dos lugares, surge la necesidad de saber de él, de ella, de ellos. Desde la angustia del silencio, desde los años sin tener noticias del otro, duele el olvido, la hechura de otra vida, el abandono y el descuido y la imperiosa necesidad de ayuda que oscila entre el amor y el interés. Alguna vez se recibe una nota que no satisface. En la migración siempre hay dos partes, se trata de cadenas afectivas en riesgo de romperse. El tiempo y la búsqueda de nuevos cielos trabajan en contra; para los que se quedan, lo más llamativo es la esperanza. Aquel que parte aparece como quien compensará la ausencia algún día.

2 Desde la historia de las sensibilidades, distintas perspectivas nos han llevado a abordar nuestros problemas de investigación a partir de la historia intelectual, las representaciones y los sentimientos de viajeros y migrantes. Los tres aspectos parecerían inseparables. Ligadas a través del viaje, personas e ideas son vistas desde la recepción y la apropiación. Cruzar la frontera desde el mar adquiere otro significado, los puertos de partida y de llegada son, desde el afecto y la cultura, paisajes a rememorar.

Artelogie, 14 | 2019 9

Desde la historia intelectual, polémicas y controversias

3 Los temas de investigación nos atraviesan. Me encontré con ellas, mujeres dedicadas a la prostitución, por una nota del archivo del ayuntamiento que refería la inconformidad de las matronas por la competencia desleal de las “clandestinas” que cobraban menores tarifas y no tenían que pagar impuestos. Esto me introdujo en el tema sin saber hacia dónde iría. El camino ha sido sinuoso: Parent du Châtelet fue mi primer acercamiento, por supuesto que en ello jugó un papel fundamental Corbin y los planteamientos de los higienistas franceses y su recepción en México.

4 La polémica es un lugar privilegiado para comprender los planteamientos de los médicos mexicanos, pues en ella se despliegan conocimientos, se construyen y expresan las diversas influencias de que han sido objeto. Como señala Said, las ideas viajan y se instalan de forma parcial, influenciadas por la política. El tiempo establece las distancias entre el momento de enunciación y de recepción. Basta traer a colación el libro de Ricord, Traité pratique de maladies venerienne,1 publicado por primera vez en 1838 y multicitado por las diferentes producciones en las últimas décadas del siglo XX. Trabajos que estudian, a grandes rasgos, la discusión y aplicación del reglamentarismo y sus efectos en la práctica y control de la prostitución, considerando la enfermedad como un elemento crucial. En ello podemos constatar, de manera general, la influencia de la medicina europea y la predominancia de la francesa. A medida que avanza el siglo XX, la rivalidad entre Alemania y Francia se hace evidente, a la vez que se presenta el abolicionismo como una posibilidad.

5 Estas discusiones tienen eco en diferentes escritos. Gamboa en su novela Santa, Lara y Pardo en el libro La prostitución en México son receptores de estos planteamientos en una simbiosis que se manifiesta en la continuidad de la moral y sus metáforas. Eduardo Lavalle Carvajal (ESTRADA, 2008: p.163-193). se refiere, de forma directa, a la obra de Lara y Pardo en dos ocasiones: la primera en el texto “Profilaxis venérea, medios prácticos de fácil aplicación y de prontos resultados”,2 y la segunda en una reseña, publicada en el Observador Médico.3 A pesar de la distancia que lo separa, de Lara y Pardo y Gamboa comparten. París es para ellos una referencia constante. Cuando el primero se extraña del número de prostitutas inscritas y de que éste sea cercano a las registradas en la ciudad de París, Lavalle asevera que en México aparecen más inscritas de las que son, y en París menos de las que ejercen; para él: “En la ciudad clásica… el grueso del ejército de la prostitución social y legalmente indiscutible del que diariamente hace formación y desfila por ‘Folies Bergères’, ‘Folies Marigny’, ‘Bullier’, ‘Moulin Rouge’, ‘Jardin de Paris’, cabarets, brasseries, cafés, etc., etc., no lleva libretas en las medias”.4

6 Pero en la argumentación de Lavalle en contra de Lara y Pardo también encontramos su peculiar concepción de las prostitutas y de las clases populares. Sobre la situación de esclavitud que las mujeres viven en los burdeles, afirma que se revela en aquellos de estilo español o francés antiguo, y pondera la gestión de las matronas americanas, quienes explotan admirablemente su negocio, “sin esclavizar los huéspedes de sus casas, quizá porque éstas tienen cierto grado de civilización”. A su vez, insiste en que el reglamento, lejos de fomentar esta esclavitud, tiene como objetivo moderarla e incluso abolirla.

Artelogie, 14 | 2019 10

7 Lavalle Carvajal hace gala de su conocimiento del ambiente prostibulario francés y rebate a Lara y Pardo oponiendo sofisticación francesa con naturalidad mexicana: El burdel en esta metrópoli necesita carne fresca. Las conservas en “afeite” no tienen consumo. Los visitantes son jóvenes y ávidos de amores naturales. Los amores artificiales de las artistas decanas de las mancebías europeas, no las necesitamos todavía, aunque así quieren hacerlo creer los pervertidos de palabras, que apenas husmearon las depravaciones genésicas de la Lutecia moderna durante una quincena.5

8 En su reseña se revela como el irrefutable especialista en la materia. Las diferencias que señala con Lara y Pardo rebasan la opinión para situarse en el campo de la política, cuestión que se relaciona con el lugar que cada uno tiene o quiere ocupar en el mundo médico. Para confirmar su autoridad subraya que la profilaxis antivenérea le ha “apasionado desde que, como estudiante”, fue “asiduo concurrente á las clínicas y al servicio especial del Profesor Fournier en el Hospital de St. Louis de París”. (LAVALLE CARBAJAL, 1909: p.308-365).

9 Estamos tentados a hacernos la gran pregunta: ¿es posible encontrar en este pensamiento científico originalidad mexicana?, o quizá sería más importante tratar de apropiarnos de esa compleja relación que se establece entre las ideas científicas que vienen de Europa con las ideas prevalecientes en nuestro país, sobre la prostitución y curación de las enfermedades venéreas, en particular la sífilis, sin olvidar aquello que se ha leído y aprehendido y el estado de incertidumbre en el conocimiento de la enfermedad y su curación. La medicina mexicana copia de manera particular y esto nutre las polémicas que, como diría Said, son apropiadas sólo parcialmente, no corresponden a su situación original. Si vamos más allá, esta apropiación o recepción se realiza con otros sistemas de pensamiento, que tienen vinculación con el pensamiento médico, pero también con las representaciones que sobre la enfermedad se construyen, alimentadas en este caso por la moral. (PALTI, 2006: p.149-179). Además se establecen adhesiones y preferencias a una u otra escuela, sin olvidar las fidelidades que cada quien tiene con sus orígenes disciplinarios y con la política.

10 Frida Gorbach, al referirse al difusionismo, insiste en no olvidar la política,6 dimensión que según el tiempo adquiere características particulares. En este caso se trata, sobre todo, de los cuerpos desviados que hay que disciplinar, aquellos peligrosos para la salud y con incidencia en la herencia. Las dificultades que enfrentamos tienen relación con esa dualidad planteada en las “ideas fuera de lugar”, en especial si pensamos que ese proceso de recepción se produce de manera “defectuosa”, pues las teorías parten de realidades distintas y la mirada sobre ellas adquiere particularidades que obedecen a una mirada “local” entre comillas, pues están también influenciadas por la aparente “universalidad”. Así, nacionalismos, racismos y colonialismo aparecen como telón de fondo en la llegada de las ideas que viajan. Por supuesto que detrás de esta visión se encuentra el control del cuerpo, la sexualidad y las consecuencias de la herencia, la sífilis hereditaria y la raza y, con ello, la gobernabilidad.

La perspectiva de las sensibilidades desde el cuerpo y las emociones

11 Desde la perspectiva de las sensibilidades, como sostiene Wickberg, (2007: p.661-684). transitamos de las representaciones hacia las formas de percepción y sentimiento.

Artelogie, 14 | 2019 11

Quizá, pensar en la apertura de las subjetividades nos permite tener flexibilidad. Los afectos, como estados de la mente y del cuerpo, relacionados con los sentimientos y emociones, se desarrollan en tres tipos primarios: deleite o placer, pena y deseo o apetito. Afecto o pasión aparecerían como siempre confusas, pero podríamos estar de acuerdo que si se ven desde una perspectiva polifónica es más fácil que lleguemos a un consenso, no nos casamos con emoción o afecto, quizá no podamos dejar de lado los términos “sensibilidades” y “pasión” que parecen indiscutibles. El afecto es la fuerza útil del cuerpo, habilidad de afectar y ser afectado. Es una intensidad personal que corresponde al pasaje de una experiencia del cuerpo a otra que implica capacidad de aumentar o disminuir la capacidad de actuar. (MORAÑA, SÁNCHEZ PRADO, 2012: p. 313-337.)

12 Las ideas y los libros viajan, como lo sostiene Said, en la travesía se adaptan, parcializan y se apropian de diferente manera por hombres y mujeres que según el tiempo y la geografía tienen sensibilidades comunes o diversas. Los viajeros que pueblan tierras lejanas no se atreverían a atravesar montañas, océanos y tempestades si no los inspirase grandes ilusiones; éstas nutren la decisión de la partida y alimentan a lo largo del viaje cartas, conversaciones y planes. Este imaginario sobre la tierra prometida se encuentra nutrido por palabras de otros viajantes; ellos alimentan la utopía, construida como proyecto antes de llegar a puerto mexicano.

13 Inspirados en Humboldt, numerosos viajeros franceses siguen su ruta y ven en México uno de los lugares que podía contribuir al conocimiento científico y también a la riqueza. La minería ejerce un gran atractivo para algunos, mientras que otros se alimentan del deseo de fortuna en el comercio. Como señala Chantal Cramausell, de manera temprana, los migrantes franceses llegan a México por diversas razones, “gente de origen humilde, dispuesta a dejar su lugar de origen, en busca de una vida mejor”. (CRAMAUSSEL, 1998: p.333-363.)

14 Desde el siglo XVIII, a través del viaje que realiza Thiery de Menoville a Oaxaca para apropiarse de la cochinilla, nos preguntamos sobre las sensibilidades del científico ilustrado en el tiempo. De diversa forma, el cuerpo, el corazón en particular, es afectado por el viaje, por el paisaje, por la belleza femenina, pero también por esa pasión botánica, por el descubrimiento y por la gloria de la aventura. De Mornet señala que los hombres de este siglo habrían conocido todas las formas del pensamiento contemporáneo; con un espíritu analítico delinearon el método, la verdad lógica y abstracta, pero: “Por precisas y numerosas que sean las razones de la razón y las leyes de nuestras ciencias, no pueden darnos la explicación de nuestro destino, nuestras razones para obrar ni el secreto de la felicidad”. Y no podrían percibirse “estas razones y este secreto más que por otra luz, la del sentimiento, la del corazón que hoy llamamos intuición”. De Mornet insiste en la ambivalencia del pensamiento, pues “cuando la razón o la experiencia científica no están de acuerdo con el corazón, los equivocados son la razón y la experiencia” (MORNET, 1988: p.178). Como Rousseau, Menonville parecería estar dividido, entre “sentido y sentimiento, entre racionalidad y emotividad, placer y utilidad.” (HOYSTAD, 2007: p.192.) Quizá, desde ahí podamos observarlo, sin menospreciar su búsqueda de gloria a través de la aventura señalada por Venayre, génesis de una mística moderna, la cual recupera en el viaje la historia natural y, pensando en Arlette Farge, la afección, la vida frágil, y en el mar y el cielo, el paisaje de Corbin.

Artelogie, 14 | 2019 12

15 La pasión de Menonville por la cochinilla parece ser vieja. En Lorrraine, siendo adolescente, escucha sobre este rojo, conoce que en 1555 un viajero inglés, Robert Tomson, pudo determinar de dónde provenía y dijo que la “cochinilla no es un gusano o una mosca, como algunos dicen, pero una mora que crece en ciertos bulbos”.7 (FINLAY, 2002: p.150-151.) Menonville tenía claro que se trataba de un insecto, pero no sabía cómo distinguir la calidad del mexicano, denominado fino, y descubre que Oaxaca es el centro de producción de este apreciado bien.

16 Al arribar a Veracruz se hace pasar por catalán, y no puede evitar su jolie coeur. Encuentra una bella mujer en una casa de indígenas, la observa casi desnuda y descubre que no tiene ningún defecto, sabe que está casada y con hijos; sus encantos lo excitan y está a punto de ofrecerle una moneda de oro, pero una voz interna lo hace retornar a su otra pasión: la búsqueda de la cochinilla, y deja el lugar sin decir palabra alguna: Lo que me llamó la atención y me encantó más que nada, fue la perfecta belleza de la india ama del jacal. Le buscaba en vano algunos defectos. Estaba medio desnuda, ya que sólo tenía una falda de muselina con holanes, adornada con un cordoncito color de rosa y una camisa que dejaba al descubierto sus hombros. Su talla me pareció igual en regularidades con los rasgos de su cara. Le dije que era muy bella, y esto parece que le gustó… le hice muchas preguntas. Así supe que estaba casada… Me atreví a hacer brillar ante sus ojos un poco de oro, pero volviendo rápidamente en mi me dije: Desgraciado ¿Por quién te tomas?, ¿es éste el fin de tu trabajo? … ¡Oh insensato!

17 Más que dividido, esa oscilación del corazón muestra al viajero en un tiempo donde lo sensible habita la razón. Un corazón que late y piensa, hoy no parece ser una novedad. En su último libro, Damasio (2018: p.12.) señala que los sentimientos no son “independientes de la fabricación del cerebro. Son el resultado de un cooperativo compañerismo de cuerpo y cerebro, interactuando por medio de un libre orden de las moléculas químicas y trayectos nerviosos”. Maffesoli y las vísceras pensantes nos devuelven a esta experiencia; el hombre que se lleva la cochinilla deja ver, a través de su relato, el tiempo que habita, y en su entusiasmo nutrido por la galantería, la estética y la ficción muestra la pasión e imaginación que lo acompañan. Si nos trasladamos a la historia de la ciencia y pensamos la apropiación del conocimiento y los celos que éste provoca, tal vez, tendríamos mayores indicios del saber y su circulación. Bertholet, jefe administrativo de la Manufacture de Gobelins, en su tratado sobre el teñido de 1791, exalta a Thiery como un conquistador. En 1794, el científico mexicano José Antonio Alzate describe la obra en su primera edición y considera que no posee datos relevantes. (SALAZAR, 2010: p.1-30).

18 El viaje de Menonville es arduo, igual que su pasión; su corazón atribulado vislumbra como botánico la posibilidad del fracaso. Lo vive así en su retorno a Gallatitlán, al descubrir que las plantas adquiridas en Oaxaca se deterioran y animado por la memoria de su primer encuentro con la cochinilla visita a su amigo, el indio que ya ha cosechado y recoge ahí cuatro pies de nopal por los cuales paga seis reales: […] recogí esos nopales, así como las otras cuatro piezas que obtuve en Los-Cues, fue tan sólo por precaución y para que no se me reprochara haber olvidado algo. Así fue cómo no tuve ningún éxito en las ramas cargadas de cochinillas que había comprado en Guaxaca y en San Juan Delrey, en las que había puesto todas mis esperanzas, y tuve el dolor de verlas morir sucesivamente podridas y verme obligado a arrojarlas en el Golfo de México. Fueros estas nuevas plantas, con las que menos contaba, a las que debí mi éxito, porque son las únicas que subsistieron y se multiplicaron. (MENONVILLE, 1786: p.216).

Artelogie, 14 | 2019 13

19 La publicación de su viaje por el círculo de los filadelfos de Santo Domingo y el nombramiento de botanista del rey muestra el interés por su obra y su saber. En su escritura no deja de mostrarse como un hombre de su tiempo, en una constante oscilación entre esos dos corazones, el que admira y palpita por el paisaje de montañas, ríos y mujeres, y el que se arriesga ante flores, hojas y bulbos, observa y roba a la naturaleza mexicana uno de sus tesoros.

Gestos y palabras, la correspondencia, una fuente fundamental

20 Viajeros y migrantes atraviesan las grandes aguas y se instalan en México. Conocemos de ellos a través de documentos varios. Para apropiarnos de las vicisitudes del viaje, así como de las relaciones que mantienen con familiares y amigos, la correspondencia es un lugar privilegiado. Por medio de los archivos repatriados de los consulados franceses en México y América Latina hemos podido leer una infinidad de cartas; en ellas se dibujan distintos sentimientos: pesares y vivencias de hombres y mujeres provocados por la partida. Según señalan algunos autores que trabajan sobre el género epistolar, 8 este corpus puede parecer banal: palabras e historias se repiten en un sinfín de fórmulas que quieren decir la misma cosa, fondo martillado al que se recurre a través de palabras estereotipadas e imágenes comunes. El ceremonial se sigue en la mayoría de las misivas: un saludo que excusa la molestia ocasionada, una despedida breve en la que se muestra respeto y agradecimiento por los servicios que se solicitan.9 Esta correspondencia constituye un camino para comprender la situación de aquellos que migran y de las familias que permanecen en Francia y continúan con los ojos puestos en el puerto de salida y de llegada y que, en muchos casos, quedan en el desamparo afectivo y económico. Los diferentes sentimientos recorren el tiempo y cambian según sea el éxito o fracaso de la migración. Mujeres solas o engañadas, hijos abandonados, padres que han perdido el sustento, madres, concubinas y esposas que permanecen en tierras francesas y remiten notas de indagación ya sea a través de sus letras o por medio de terceros que tienen mayor autoridad. A la emoción y tristeza de la partida se le agrega la repetida angustia.

21 Acá se revelan los vocablos de la ausencia. Verdadero o inventado lo inusitado puede ser visto como exótico, pero a su pesar deja ver lo oculto que aparece sólo de manera sutil en la vida diaria. Estamos habitados por emociones y gestos, el de lectura y escritura, y en esta tarea nos apropiamos del desfile de documentos. En su análisis requieren de una mirada distinta; producidos en diferentes momentos nos cuidamos del anacronismo, aunque ellos mismos lo padezcan. De acuerdo con Pesaventto, lo sensible, la herida, el punctum de Barthes se devela como una posibilidad.10

La memoria habitada por el presente

22 Es Said quien me hizo pensar cómo el presente se cierne sobre el pasado. Desde el viaje, el tiempo pasa y la memoria se enciende para recobrarlo; en las misivas existe ese afán y ese acto se ubica en la reminiscencia como un espectro que habita su construcción, el silencio del ausente anima la sospecha de la muerte como, citando a Beckett, lo afirma Wood:11 ésta “no nos ha exigido que le reservemos días”. En palabras de Cristina Rivera

Artelogie, 14 | 2019 14

Garza: “La muerte nos dice que las comunidades que ya no están presentes… son también parte de las comunidades creadas en la vida”. “The dead tell us that the communities that no longer present… are also part of the communities we create in life.” Desde su presente afirma: “nuestros muertos quieren ser parte de nuestra conversación, no nos permiten olvidar”.12 En la correspondencia el espectro se cierne sobre la memoria; la búsqueda oscila entre el estar y no estar, en el sospechar de su ausencia y su comportamiento. Quizá sea el fantasma que “no está muerto ni vivo, ni ausente ni presente, ni efectivo ni operante, ni actual ni virtual, es a la vez pasado y presente, perceptible e imperceptible”. Así funciona la memoria y la evocación de la ausencia de aquellos que ya no están más. La presencia y la ausencia inmaterial se manejan en la contradicción, aunque la materialidad se hace presente a través de otros medios que, tal vez, puedan ubicarse en la “necesidad”. Pero el fantasma llevado a lo espectral es siempre “inmaterial e inmensurable”. (RIBAS-CASASAYAS, PETERSEN: p. 1-11).

23 Nuestras historias parecen estar habitadas por la ficción. A inicios del siglo XX, ante el fracaso matrimonial, el esposo Locatelli dirige un conjunto de misivas a la madre de su desposada; además, se queja ante el cónsul por la conducta, intenciones y actitudes de la cónyuge y le recrimina por “los sentimientos de su corazón hacia él, así como su hipocresía y la bajeza de su educación”;13 transcribe una de las cartas donde la esposa confiesa que cometió una brutalidad al casarse sin amor y que la separación de su marido sería la única forma de liberarse de esa cruz. En la misiva señala el deseo de su pareja de engendrar un hijo, pero ella se alegra de no haberlo concebido, pues habría traído a sufrir a este mundo a un pobre niño. Cuenta los días para el arribo de su madre, cree que ello resolverá su situación. Insiste en que sería más feliz si se hubiera unido a Monsieur Boutin, quien es un hombre afectuoso. Las palabras dibujan sus deseos: Tengo una idea que puede llevar a buenos resultados: Como veo en un párrafo de la carta de Clémence que habla de una visita que tiene que hacer M. Boutin, podría ser que tú le comuniques de tu intención de venirme a buscar, de hacerme venir! Sé que es muy generoso, me recuerdo de Versalles, en nuestros paseos, no rehusaba nada, él era el que siempre pagaba. Faltaba poco para que me pidiera en matrimonio, yo le gustaba mucho, pues el segundo día me besó. Si no está casado, y si viene a Tours a verte, cuídalo bien…

24 Alejado del presente es el sueño del pasado, y su anhelo el que habita a la esposa. No podemos pensar el espectro de una manera ligera, pero reflexionar desde él, encarnarlo en el presente de la memoria traducido en la misiva, nos permite descubrir ansias y anhelos dibujados de manera etérea. La correspondencia varia abre una nueva perspectiva, ella revela sentimientos y pasiones de los cuales no está ausente el interés y el extrañamiento, la nostalgia y la melancolía.

25 El género epistolar parece ser un lugar privilegiado para recuperar sentimientos y pesares. Desde estos documentos abordamos la débil y complicada presencia de mujeres francesas en México a finales del siglo XIX e inicios del XX; ellas cruzan el Atlántico y tocan puerto por decisión propia o arrastradas por otros. Las autoridades consulares no sólo se preocupan por el bienestar de sus ciudadanos, también cuidan de aquellos que transgreden las reglas morales y cometen la osadía de abandonar a sus conyugues e hijos. En estas historias, las ideas sobre la mujer francesa nutren las discusiones. Gamboa muestra en sus diarios su deseo de París y su afán de cocotte, Lavalle compara la carne fresca de la prostituta mexicana con el exceso de los afeites de la francesa. Las autoridades consulares intervienen también por la reputación y el desamor, cuidando

Artelogie, 14 | 2019 15

el sentimiento del hombre ofendido: “En mi infortunio tengo una satisfacción yo he sido siempre querido y estimado en la familia de mi mujer, por mi conducta y la holgura que he logrado a través de mi trabajo”.

26 Además de una escritura cuidada y respetuosa de las formas, en este conjunto de misivas descubrimos otra cercana a la oralidad, plena de faltas de ortografía y de palabras ininteligibles. Se trata de una escritura fonética imperfecta que tiene el afán de protestar y solicitar ayuda y que, de todas maneras, puede sucumbir a la tentación literaria a través del hilo conductor del honor, la sexualidad y la reputación. No podemos descartar en esta escritura, como lo señala Cecile Dauphin, (2000: p.110-121). la intervención de los manuales epistolares y los escribanos. A pesar de que las cartas se encuentran ceñidas por la forma, expresan, a través de palabras cuidadas: sentimientos y deseos, anhelos y logros, así como tristezas y dificultades padecidas. El reclamo del pariente del que hace años no se tiene noticias se presenta como un acto de añoranza, de amor y de necesidad. El cónsul es el receptor y a él le corresponde realizar las indagaciones. A veces, la falta de noticias es corta, en otras ocasiones se alarga por veinte, treinta o hasta cuarenta años. Se inquiere cuando se presentan las circunstancias, algunas veces afectivas, otras de necesidad económica, que hacen urgente la respuesta. En las cartas de familia o de los allegados todos tienen sus razones para querer saber, en algunos casos, la enfermedad es el detonante de sentimientos ante la posibilidad de la muerte. Es ésta una preocupación que va y viene: la madre enferma que quiere ver por última vez a su hijo, o la inquietud por la salud del que se conoce endeble al otro lado del océano. Las palabras se repiten: “mi hijo que…”, son los vocablos de la ausencia que cincelan las preguntas, palabras dichas y sentidas. Van de un lado a otro. Las respuestas, si es que existen, no parecen muy frecuentes. Más si por ahí aparecen las cartas no entregadas, nos confirman la carencia de noticias de los dos lados.

27 Hombres y mujeres se ven involucrados. El viaje es siempre acompañado por aquellos que se quedan; misivas que testimonian el seguimiento y que tienen como objetivo guiar, preguntar y quejarse de la ausencia. Los esposos que dejan a sus mujeres en tierras francesas no viajan solos, en sus trayectorias las misivas de sus parejas los acompañan con consejos, indicaciones para relacionarse y también con reproches. Los sentimientos que se expresan tienen diferentes texturas, desde el interés por los negocios que dejaron progenitores y parientes; el llanto por la ausencia del marido que partió en busca de fortuna, hasta la angustia por los nietos que han quedado solos en tierras mexicanas. En esta correspondencia se muestra ese “otro”, el que se queda, y que es pensado dos veces, permanece en la memoria de los que parten como lo muestran unas pocas cartas, pero también se manifiestan en la ausencia. En el momento de pérdida de los lazos se inicia el proceso de búsqueda, se trata de tiempos dispares que corresponden a situaciones particulares; el abandono y la muerte son las circunstancias extremas.

28 De las misivas extraemos múltiples consideraciones que se expresan en palabras de esperanza, pero también de los riesgos y dificultades que pueden enfrentarse. En ellas vislumbramos no sólo el ansia de fortuna a la que ya nos hemos referido, sino también los valores prevalecientes en una sociedad conservadora, la francesa, donde la mujer juega un rol fundamental en la construcción, preservación y marcha de la familia. No obstante, reconocemos que valores como la moral y el honor viven grandes dificultades, propiciadas por la migración. El que deja Francia o quien permanece en

Artelogie, 14 | 2019 16

tierras mexicanas, sobre todo las mujeres, están bajo la constante custodia desde el puerto de partida. El comportamiento de aquella que ha migrado sola o ha quedado viuda es siempre sospechoso.

29 La incertidumbre y las deudas son causas de angustia. Los recursos precarios de los migrantes se reflejan en las dificultades que enfrentan para pagar sus obligaciones y eviar remesas para aquellos que permanecen en Francia. La familia se construye con dificultades con el océano de por medio. Se expresa también un cierto mundo libertino que se refleja en la falta de futuro de los matrimonios, así, el honor se centra en tener un buen marido o recuperar a los pobres hijos de un descendiente que ha perdido la vida.

30 En estas misivas nos apropiamos de dos tiempos vividos de manera diferente,14 el de aquel que se queda y el del que se va. La espera de noticias para quien permanece en la tierra propia es una angustia constante, la lentitud retoma sus vidas a través del ansia de noticias. El que se va no sólo atraviesa aguas desconocidas, descubre otros lugares y una nueva concepción del tiempo, también afronta la vorágine del viaje y el difícil camino de emprender una vida distinta, algunas veces acompañado de parientes que ya tienen tiempo de habitar en la nueva tierra; enfrentan una realidad con otras características donde se revela una concepción diferente del tiempo; la luz y la obscuridad aparecen a otra hora, y varían las formas de alimentarse, de relacionarse y la necesidad de adquirir otra lengua para insertarse en la sociedad escogida. Las cartas sin retorno se constituyen en un tiempo muerto e inmóvil donde la ausencia se acrecienta y las preguntas permanecen sin respuesta. Las razones son múltiples: ingratitud, muerte, nueva vida, etcétera.

31 No nos extraña que muchas de las cartas tengan una escritura fonética, en algunos casos difícil de transcribir. Entonces, quiénes son esos hombres y mujeres que se van, a quién dejan en Francia, cuáles sentimientos se reflejan en la partida y cómo se nutren del imaginario sobre el país de llegada, son algunos de los elementos que escudriñamos a través de cartas, notas y hasta inventarios. Oficios y dedicación de los varones, acompañamientos y consejos de las hembras. Podríamos pensar que estos registros fonéticos son una característica de la escritura femenina. Quizá no lleguemos a conclusiones absolutas, pero sí podríamos decir que en un sector de trabajadores ello parece ser común.

Para terminar

32 Desde las sensibilidades, a través de diferentes temas y documentos hemos ensayado apropiarnos de historias de hombres y mujeres. Nuestra mirada ha atravesado un camino escarpado, un ir y venir donde viejos y nuevos conceptos como “sensibilidades”, “afección” y “emociones” forman una unidad; otros conceptos, objeto de crítica, también han sido importantes. No hemos podido hacer caso omiso al término “mentalidades” pensando en el tiempo largo y su lentitud. Pero esta perspectiva no nos aleja de otro mundo, el de la memoria y la presencia del espectro, fundamentales para comprender el tiempo, la ausencia y el trauma, el cual se insinúa y es posible valorarlo en su doble desaparición, primero porque no es evidente, segundo porque ante la ley es siempre callado, sobre todo cuando llega la muerte. Y si pensamos el trauma y su doble ausencia, entramos también en ese mundo espectral, e inimaginable, no sólo porque

Artelogie, 14 | 2019 17

siempre oculta su presencia, sino también porque otros, la ley, la crónica y la memoria oficial a fuerza de olvidarlo, lo cancelan.

33 Transitamos por otros parajes, el presente nos cala y no podemos dejar de lado a los migrantes que atraviesan fronteras en busca de seguridad o sustento. Ellos viajan con sus sueños apretujados en una pequeña mochila, por necesidad dejan atrás ese otro mundo tan propio y afrontan el camino con un sinnúmero de dificultades. En ese transitar, también corren el riesgo de perder la vida. En la muerte que se cierne sobre hombres y mujeres en México, el camino es el lugar del crimen y éste se examina con frialdad; los números son los que establecen la gravedad de la situación. En las muertes de ayer y hoy, el dolor sufrido por la víctima no es valorado.

34 En el levantamiento del cuerpo los expertos realizan las primeras consideraciones, así conocemos la condición social de la víctima, su manera de vestir e higiene. A partir de estos datos se conforma la opinión, imprescindible para la resolución del caso. En la introducción al libro de Ambroise Tardieu, Les attentats aux moeurs de 1857, Vigarello señala la subjetividad de los médicos legistas, quienes no pueden hacer caso omiso de sus obsesiones para valorar el cuerpo de las víctimas. Observación y moral se mezclan y fabrican estigmas físicos, “[…] traicionándose con sus juicios de valor”. (VIGARELLO, 1995: p.5-27). Y es ante la plancha que existe la posibilidad de preguntarnos: ¿cómo pensar el cuerpo de la víctima, la mano que a través del escalpelo y del speculum explora el daño causado, la contusión?, ¿cómo comprender al otro y a la otra, en el trauma que no puede expresarse por la ausencia de voz? A través del alegato, las palabras del juez y del médico legista se resuelve el caso. El dictamen es fijo, no explora más allá de la materialidad del cuerpo, los pormenores se reducen a la herida y a las lesiones que han provocado el deceso. En casos menores, una frase escueta salva la situación: la herida curará en menos de 15 días; a partir de esta aseveración no existe consecuencia para el victimario.

35 Aprehender lo vivido por la víctima, ¿es posible, si pensamos que las afecciones se encuentran enmarañadas entre lo público y lo privado, permeadas en varios ámbitos por la biopolítica y manifiestas desde la perspectiva del “impulso afectivo”, en cualquiera de sus manifestaciones “pasionales, emocionales y sentimentales”?. En el caso del asesinato de mujeres, el trauma significa una doble ausencia, la de la voz y la de la vida. El horror y el dolor aparecen en las huellas dejadas en el cuerpo inerte y, en algunos casos, en la pena expresada por los familiares. Como lo señalaría Mabel Moraña, refiriéndose a Rancière, “el sistema social, en su forma policial de ordenamiento y disciplinamiento de las percepciones, afectos y formas de conocimiento de la realidad, produce una división entre lo que es visible o invisible, audible o inaudible, decible o indecible”. (MORAÑA, SANCHEZ PRADO: p.313-337).

36 El trauma no parecería perceptible, valorado recientemente por los historiadores merece atención, pues como señala Cathy Caruth, esta “experiencia sobrecogedora” se produce debido “a un inesperado acontecimiento catastrófico en el cual la respuesta al evento ocurre con frecuencia de manera atrasada, incontrolado, repetitivo con la aparición de alucinaciones y otros fenómenos intrusivos”. (CARUTH, 1996: p.10). Entonces, lidiamos con la ausencia, se trata de lo vivido no asimilado en el momento y que en los casos de asesinato no parece tener futuro. ¿Lo tendría en la palabra de los otros?, ¿en los traumas colectivos? De todas maneras, en palabras de Didi Huberman, (1912: p.18). “lo propio del archivo es su laguna, su naturaleza horadada”.

Artelogie, 14 | 2019 18

BIBLIOGRAFÍA

CARUTH, Cathy. Unclaimed experience, Trauma, Narrative, and History, Baltimore. The Johns Hopkins University Press, 1996.

CRAMAUSSEL, Chantal. “Imagen de México en los relatos de viaje franceses: 1821-1862”, en el libro México Francia, Memoria de una sensiblidad común, siglos XIX-XX, Javier Pérez Siller (coordinador). BUAP, Colegios de San Luis, CEMCA, Puebla, 1998.

DAMASIO, Antonio. The strange order of things. Life, Feelind, ad the Making of Cultures. Pantheon Books, USA, 2018.

DAUHPIN, P. Lebrun-Pézerat, POUBLAN, D., Ces bonnes letters, Une correspondence familiale au XIX siècle, préface de Roger Chartier. Bibliothèque Albin Michel, Histoire, Paris, 1995.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Arde la imagen. Serieve, Ediciones Ve, S.A. de C. V., México, 1912.

El Observador Médico, Órgano de la Sociedad Médica, Pedro Escobedo, agosto de 1908.

ESTRADA, Rosalina. “La prostitución en México, ¿Una mirada francesa?”, en el libro Curar, sanar y educar, Enfermedad y sociedad en México, siglos XIX y XX, Claudia Agostoni coordinadora. UNAM, BUAP, México, 2008.

Gaceta Médica de México, t. IV, n. 5, 31 de mayo de 1909.

GORBACH, Frida. “¿Circulación de conocimientos? Una crítica el difusionismo y una vuelta a la historia local. Dos estudios.” (inédito).

HARTOG, Francois. Régimes D’Historicité, Présentisme et experience du temps. La librairie du XXI Siecle, Seuil, Paris, 2003.

HOYSTAD, Ole M., A History of the Heart. Reaktion Books, Londres, 2007.

LAVALLE CARVAJAL, Eduardo. “Profilaxis venérea, medios prácticos de fácil aplicación y de prontos resultados”, en Gaceta Médica de México, t. IV (3a serie), n. 5, 31 de mayo de 1909.

MARISTAIN, Mónica. “Nadie que quiera escribir hoy, puede olvidar a nuestros muertos” dice Cristina Rivera Garza. Sin Embargo, México, Julio 7, 2013.

THIÉRY DE MÉNONVILLE, Nicolas-Joseph. Traité de la culture du nopal et de l'éducation de la cochenille dans les colonies françaises de l'Amérique, précédé d'un voyage à Guaxaca. Préface, des Notes & des Observations relatives à la culture de la Cochenille (édité par Veuve Herbault, Cap-Français, 1786, réédité en 1787). L'ouvrage est complété, selon le catalogue de la par son éloge Le Nopal (Paris, 1787).

MORAÑA, M., SÁNCHEZ PRADO, I., (editores) “Postscriptum”, en El lenguaje de las emociones. Afecto y cultura en América Latina. University of St. Louis, Vervuert, Madrid, 2012.

MORNET, Daniel. El pensamiento francés en el siglo XVIII, Ediciones Encuentro, España, 1988.

PALTI, Elías José. “The Problem Misplaces Ideas” Revisited: Beyond The “History of Ideas” en Latin America, Journal of the History of Ideas, Vol. 67, No. 1, enero 2006.

RIBAS-CASASAYAS, Alberto y PETERSEN, Amanda L., Espectros. Ghostly Hauntings in Contemporary Transhispanic Narratives, Lewisburg, Bucknell University Press, USA, 2016.

RICORD, Philippe. Traité de maladies vénériennes: ouvrage théorique et pratique, Chez Blosse. Libraire Éditeur, Paris, 1853.

Artelogie, 14 | 2019 19

RIVERA GARZA, Cristina. La muertes indóciles. Tusquets, México, 1913. Citado en el libro RIBAS- CASASAYAS, Alberto y PETERSEN, Amanda L., Espectros. Ghostly Hauntings in Contemporary Transhispanic Narratives. Lewisburg, Bucknell University Press editado por Alberto Ribas- Casasayas y Amanda L. Petersen, USA, 2016.

SAID, Edwar. Sobre el estilo Tardío. Debate, Pinguin Ramdom House Grupo Editorial, Barcelona, 2009.

SOUST, Jeanne. “Cartas y palabras: los rostros de Eugène”, en Eugène Latapi, (1824-1868). Coedición privada, Familia Latapí, Instituto de Ciencias Sociales y Humanidades, Puebla, 2004.

VIGARELLO, G., “La violence sexuelle et l’oeil du savant”, TARDIEU, A., Grenoble, Les Attentats aux moeur, (1857), Jerome Millan, 1995.

WICKBERG, Daniel. What Is the History of Sensibilities? On Cultural Histories, Old and New, The American Historical Review, Volume 112, Issue 3. 2007.

.

NOTAS FINALES

1. RICORD, Philippe. Traité de maladies vénériennes: ouvrage théorique et pratique. Chez Blosse, Libraire Éditeur, Paris,1853. 2. Gaceta Médica de México, t. IV, n. 5, 31 de mayo de 1909. 3. El Observador Médico, Órgano de la Sociedad Médica, Pedro Escobedo, agosto de 1908. 4. Ídem. 5. Ídem. 6. En un texto inédito GORBACH, Frida, reflexiona sobre la “¿Circulación de conocimientos? Una crítica el difusionismo y una vuelta a la historia local. Dos estudios”. 7. FINLAY, Victoria. Color. A Natural History of the Palette, Random House Trade Paperbacks, New York, 2002, p. 150-151 8. Véase DAUHPIN, C., LEBRUN-PÉZERAT, P., POUBLAN, D. Ces bonnes letters, Une correspondence familiale au XIX siècle, préface de Roger Chartier. Bibliothèque Albin Michel, Histoire, Paris, 1995, pp. 99-190. 9. Para entender la importancia del ceremonial, véase el texto de SOUST, Jeanne. “Cartas y palabras: los rostros de Eugène”, en Eugène Latapi (1824-1868), Coedición privada, Familia Latapí, Instituto de Ciencias Sociales y Humanidades, Puebla, 2004, pp.143-164. 10. Sólo pienso que, ahora sublevada, indignada, por lo que sucede en Nicaragua, aletargada en mí por muchos años, la sublevación de ellos, los jóvenes estudiantes, espacio que también habité en un tiempo, me permite sentir la sublevación por pequeñas y por grandes cosas. 11. En su introducción al libro póstumo de SAID, Edwar. Sobre el estilo Tardío. Debate, Pinguin Ramdom House, Grupo Editorial, Barcelona, 2009, p. 13. 12. MARISTAIN, Mónica. “nadie que quiera escribir hoy, puede olvidar a nuestros muertos” dice RIVERA GARZA, Cristina. Sin Embargo, Julio 7, 2013, a propósito de su texto Las muertes indóciles, Tusquets, citado en el libro Espectros. Ghostly Hauntings in Contemporary Transhispanic Narratives, Lewisburg, Bucknell University Press editado por RIBAS-CASASAYAS Alberto y PETERSEN, Amanda L., 2016, pp. 1-11. 13. CADN, Caja No. 26, Fondo Vera Cruz. Carta de Fernand Locatelli a su suegra, Madame Thile s/f. 14. Pensar en Hartog y en los regímenes de historicidad que él plantea nos lleva a considerar también esta variante, el tiempo vivido es en realidad el otro tiempo. HARTOG, Francois. Régimes D’Historicité, Présentisme et experience du temps. La librairie du XXI Siecle, Seuil, Paris, 2003.

Artelogie, 14 | 2019 20

RESÚMENES

Cruzar la frontera desde el mar adquiere otro significado, los puertos de partida y de llegada son, desde el afecto y la cultura, un paisaje a rememorar. Aquellos hombres y mujeres que llegan desde Francia a México, quizá a Veracruz, cargan con su pasado. En el cruce del océano construyen las palabras de la nostalgia, las cuales cobran vida en la correspondencia. Thiery de Menonville viaja a Oaxaca en el siglo XVIII con un claro propósito: apropiarse de la cochinilla para cultivarla en Santo Domingo; en la travesía observa la naturaleza y a los habitantes, admira el entorno, pero su corazón bate con prisa al observar a una bella mujer y al aproximarse a la posesión de su tesoro rojo grana. Desde la perspectiva de las sensibilidades, como diría Wickberg, transitamos de las representaciones hacia las formas de percepción y sentimiento. Situamos a Menonville en su tiempo como un ilustrado del siglo XVIII; de acuerdo con Mornet, estos hombres habrían conocido todas las formas del pensamiento contemporáneo. Libros e ideas también viajan y se instalan de peculiar manera, Parent du Châtelet es un ejemplo, sus planteamientos se encuentran inmersos en la disputa entre reglamentaristas y abolicionistas. Desde la ausencia, las subjetividades nos introducen en ese mundo habitado por múltiples espectros.

Franchir la frontière depuis la mer prend une autre signification; les ports de départ et d'arrivée sont, pour l'attachement et la culture, un paysage à évoquer. Ces hommes et ces femmes qui arrivent de la France au Mexique, peut-être à la ville de Veracruz, portent le poids de leur passé. En traversant l’océan, ils composent les mots de la nostalgie, et ces mots s’animent dans leur correspondance. Thierry de Ménonville part à Oaxaca au XVIIIe siècle avec un but précis : s’approprier de la cochenille pour son élevage à Saint-Domingue ; pendant la traversée, il observe la nature et les habitants, il admire l'environnement, mais les battements de son cœur s'accélèrent à la vue d’une belle femme et à l’approche de son trésor rouge cramoisi. Si l'on se place dans la perspective des sensibilités, comme dit Wickberg, nous passons des représentations à des formes de perception et de sentiment. Nous situons Ménonville dans son temps comme un homme des Lumières du XVIIIe siècle ayant connu, selon Mornet, toutes les formes de la pensée contemporaine. Les livres et les idées voyagent aussi et trouvent leur place d'une façon qui leur est singulière. Parent du Châtelet en est un exemple. Ses raisonnements d’hygiéniste sur la prostitution se trouvent ainsi immergés dans la dispute entre les réglementaristes et les abolitionnistes : quand elle voyage, toute pensée rencontre des mondes habités par des nombreux spectres.

ÍNDICE

Mots-clés: Migration, Mexique-France, idées, mots, sensibilités Palabras claves: migración, México-Francia, Ideas, palabras, sensibilidades.

AUTOR

ROSALINA ESTRADA URROZ

Instituto de Ciencias Sociales y Humanidades Benemérita Universidad Autónoma de Puebla [email protected]

Artelogie, 14 | 2019 21

Sobre o lugar das sensibilidades e emoções na produção do pensamento

Antonio Herculano Lopes

1 Sobre o lugar das sensibilidades e emoções na produção do pensamento

El sueño de la razón produce monstruos

(Goya)1

Licht, mehr Licht!

(Goethe)2

2 Maio de 1968, Paris, as ruas em conflito aberto, caos, violência e slogans. Entre os mais conhecidos, "A imaginação no poder". Por entre as barricadas, caminha um grupo muito particular: Herbert Marcuse, já então muito conhecido por seu livro Eros e civilização, Lucien Goldmann, autor de Por uma sociologia do romance, e um jovem orientando seu, Jacques Leenhardt. Trata-se da ponta de lança de um marxismo revisitado, que condena tanto o capitalismo como o socialismo soviético. Chocado com o que vê, o filósofo alemão comenta: – Eles não entenderam nada... Ao que o romeno Goldmann replica: – Mas, Herbert, eles estão aqui por sua causa!3

3 Talvez, aquele que propunha a Grande Recusa não aceitasse que suas ideias estivessem sendo honradas pelos estudantes franceses sublevados, em função da violência e da manifestação de irracionalidade ali presentes, enquanto Marcuse justamente denunciava o irracionalismo da sociedade capitalista, disfarçado sob uma racionalidade técnica e uma ciência enclausurada pela positividade. Talvez a Escola de Frankfurt, a que ele se filiava, tenha sido a última grande expressão do pensamento ocidental a tentar resgatar os valores centrais do Iluminismo, ao propugnar, contra uma razão instrumental, uma razão crítica e dialética.

Artelogie, 14 | 2019 22

4 Mais ou menos concomitante aos acontecimentos de Paris, os estudantes brasileiros se sublevavam contra os desmandos da ditadura militar e também transformavam em praça de guerra as ruas do Rio de Janeiro e de outras cidades do país. Na Passeata dos Cem Mil, em junho daquele ano emblemático, as faixas demandavam "O povo no poder". Não que algo semelhante não ocorresse em Paris, onde "le pouvoir populaire" era também uma palavra de ordem. Tampouco é certo que no Brasil o manifesto em prol da imaginação não tivesse sua contraparte, ainda que mais na arte do que na política. Por aqui, em 1967, o movimento tropicalista se anunciava ruidosamente na música popular, com Alegria, alegria, de Caetano Veloso, e no teatro, com O rei da vela, de Oswald de Andrade, dirigido por José Celso Martinez Correia.

5 O fato é que se os contextos políticos eram bastante distintos, na cultura – sobretudo numa cultura jovem circulada pela mesma indústria cultural condenada pelos frankfurtianos – a negatividade e a radicalidade se expressavam por toda parte, marcadas com frequência por uma forte desconfiança do intelectualismo e por uma celebração seja da ação (inclusive pela violência), seja do prazer (com a cultura das drogas, do corpo e do sexo livre) ou mesmo de ambos conjugados, como no caso dos estudantes franceses. No Brasil, em que o aprofundamento da ditadura militar se deu no final de 1968, a juventude universitária radical entrou nos anos 1970 se dividindo entre a ação armada e o desbunde. Lá e cá, nenhum desses movimentos obteve sucesso em seus objetivos declarados, mas a atenção a uma história subterrânea, como costumam ser os movimentos da cultura, nos permite detectar ainda hoje os impactos daquelas ondas de emoção explosiva nas sensibilidades e nas percepções passados 50 anos.

6 Recuemos um século, para o ano igualmente emblemático das revoltas do século XIX, 1848, quando podemos imaginar Marx, também nas barricadas de Paris, se inspirando para desenvolver seu programa radical de superação do capitalismo, enquanto defensor da unidade de pensamento e ação. Arriscando-me a chover no molhado, vou retomar alguns pontos de sua reflexão, que lançam as bases para o surgimento das ciências sociais. Vindo da filosofia e, em particular, da esquerda hegeliana, seu primeiro movimento precisava ser o da crítica às próprias bases do pensamento filosófico ocidental, que, na linha que vem do mundo das ideias, de Platão, ao cogito descartiano, compreende o mundo concreto como uma expressão do ideal. De Hegel, no entanto, em que o idealismo atinge seu cume – consagrado na fórmula o que é real é racional e o que é racional é real (HEGEL, 1997: p. 36) –, Marx guardará o pensamento dialético, começando sua crítica por uma inversão de perspectiva, em que o materialismo de Feuerbach lhe permitiu botar Hegel, que estava "de cabeça para baixo", de pés no chão. Em seguida, voltou-se para a teoria política francesa e a teoria econômica inglesa para refinar sua análise social. O resultado aparece em sua formulação clássica de 1859, no Prefácio à Contribuição à crítica à economia política, que sintetiza sua teoria da história e da sociedade: O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; mas inversamente é o seu ser social que determina a sua consciência (MARX, 1972: p. 4).4

7 Enquanto em Hegel o movimento da história se apresentava como uma circularidade em progresso, em que por sucessivas superações (Aufhebungen) o Espírito se revela em sua plenitude, Marx também pensa numa história progressiva em que a sociedade caminha para a sua forma mais perfeita, o comunismo. Não é o racional que constitui o real ao apreender sua verdade; mas é o real, isto é, a vida dos seres humanos em

Artelogie, 14 | 2019 23

sociedade, que permite à razão apreender a verdade do ser em si e para si. Nessa inversão materialista, Marx se afasta da filosofia e abre o caminho para uma ciência da sociedade.

8 A resolução do problema da relação entre ser e consciência é talvez a questão mais espinhosa desse caminho, que se aparta das ciências exatas e da natureza e remete ao das formas de percepção do mundo, incluindo os sentidos, as emoções e sensibilidades e a razão. Esta última reina absoluta no século XIX enquanto dimensão da superioridade da espécie humana e por ela os seres humanos seriam capazes de entender sua condição contraditória e seus interesses (conflitantes numa sociedade de classes) e agir na direção do progresso social, seja pelo desenvolvimento das forças produtivas, seja pelos momentos de ruptura e revolução. Nesse sentido, os sentidos, as emoções e as sensibilidades enquanto outras formas de apreensão do real não são ignorados, mas ficam submetidos à razão libertadora. Somente numa sociedade plenamente racional poderão os seres humanos usufruir plenamente de suas capacidades sensíveis, libertados do reino do trabalho e podendo se dedicar às artes e as assim chamadas "questões do espírito".

9 Marx procurou resolver o problema da relação ser-consciência por meio do pensamento dialético, que ao mesmo tempo lhe permitiu estabelecer uma relação de determinação e manter uma dinâmica contraditória entre os polos. No mesmo prefácio, pouco adiante, parece apontar para as dificuldades do método científico no trato das questões do espírito. Ao falar das épocas de revolução social, assim trata dos processos de mudança: [É] preciso distinguir sempre entre as profundas transformações materiais, constatáveis de maneira cientificamente rigorosa, das condições de produção econômicas e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em suma, as formas ideológicas sob as quais os homens tomam consciência desse conflito e o levam a cabo (MARX, 1972: p.4-5). O mundo da economia pode ser objeto de estudo científico rigoroso, enquanto o da consciência, pela qual os homens agem em sociedade, deve ser deduzido ou interpretado a partir do primeiro.

10 Essa dificuldade epistemológica vai acompanhar e assombrar o marxismo e, na virada para o século XX, quando a profunda crença na razão começa a ser abalada, começa a produzir outras respostas em distintas teorias sociais, como a das afinidades eletivas em Weber, a sociologia da religião em Durkheim ou a dádiva em Mauss. Se, como diz Marx, não se pode julgar uma tal época de mudanças pela consciência que ela tem de si (MARX, 1972: p. 5), tampouco se pode entendê-la sem levar em conta a forma como ela se autorrepresentou. E mais, para tanto não basta a consciência racional dos indivíduos movidos por seus interesses da economia política clássica, mas é preciso entender os valores que os embasam, os medos, os desejos, as contradições, os afetos e as paixões, que com frequência suplantam a ação racional.

11 O abalo no reinado da Razão vai dar margem ao surgimento de pensadores sociais e historiadores como Georg Simmel e Johan Huizinga, com quem as questões da consciência e das sensibilidades não são tratadas como derivadas, mas como constitutivas da vida social. Na sua discussão sobre o conceito de cultura subjetiva, Simmel aponta para uma qualidade intrínseca à espécie humana – a da perfectibilidade do espírito, processo que se dá por meio de uma intervenção teleológica, isto é, fruto de uma vontade e de uma intenção (SIMMEL, 1971: p. 227-234). Esse projeto de perfectibilidade, ou dito de outra forma de cultivo, de criação de uma cultura, é um processo ao mesmo tempo individual e coletivo em busca de uma ideia de perfeição (de

Artelogie, 14 | 2019 24

volta a Platão), que talvez pudesse ser resumida pela tríplice aspiração do Ocidente moderno: liberdade, igualdade e fraternidade. O desenvolvimento das sociedades industriais contemporâneas, no entanto, assistiu à crescente autonomização de uma cultura objetiva em expansão (a proliferação dos objetos por meio dos quais o cultivo se torna possível), sem correspondência no adensamento da cultura subjetiva (em última análise, o aperfeiçoamento do espírito como resultado esperado da cultura). Essa dissociação entre cultura objetiva e subjetiva seria uma síndrome da modernidade.

12 Simmel nos dá uma pista para compreender melhor tal síndrome (o termo não é dele) ao comparar as formas pelas quais os habitantes das metrópoles diferem daqueles de vilarejos e campos na percepção da realidade social. Ele se refere ao caráter intelectualista da vida anímica do habitante da cidade grande, frente ao habitante da cidade pequena, que é antes baseado no ânimo e nas relações pautadas pelo sentimento. Pois estas lançam raízes nas camadas mais inconscientes da alma e crescem sobretudo na calma proporção de hábitos ininterruptos. Em contraposição a isto, o lugar do entendimento são as camadas mais superiores, conscientes e transparentes de nossa alma [...] (SIMMEL, 2005: p. 578). O lugar do entendimento em oposição ao sentimento: não que Simmel presuma que as populações pré-industriais não pautavam suas ações também pelo entendimento, mas algo se rompeu na nova ordem criada pelas grandes cidades.

13 O século conhecerá ainda muitos outros finos analistas que seguem o mesmo caminho, como Walter Benjamin e Norbert Elias ou os historiadores Lucien Febvre e Philippe Ariès, mas é só com o enorme impacto dos acontecimentos de 1968 que se torna mais sistemático um esforço de ir além das polaridades corpo e mente, ser e consciência ou sociedade e cultura. Barthes, Derrida, Foucault e o chamado pós-estruturalismo francês se tornam um marco importante nessa trajetória, assim como as contribuições da linguística, da crítica literária e dos estudos culturais. Áreas disciplinares que não são novas ganham maior densidade e importância, como a sociologia da cultura, a antropologia das emoções ou a história cultural, que recebe o epíteto de "nova". Uma história das sensibilidades, que já havia sido preconizada por Febvre, começa a ganhar mais densidade, com destaque para a obra de Alain Corbin. Os temas de pesquisa se multiplicam para buscar entender todas as interfaces com o mundo que nos fazem humanos: sons, cheiros, paladar, percepções do corpo, sexualidade, o vasto complexo das emoções e o inefável domínio das sensibilidades. As dificuldades que tais questões colocam para a pesquisa histórica e sociológica são imensas, mas se apresentam como inevitáveis. Entre nós, é a obra de Sandra Jatahy Pesavento que mais diretamente aponta para a necessidade de uma história das sensibilidades, como parte de um projeto mais amplo da história cultural, preocupada com as representações que as diferentes sociedades humanas constroem a respeito de si.

14 Se olharmos retrospectivamente para o Brasil, ao longo de todo o período que coincide com sua história enquanto nação independente, podemos perceber a dificuldade do intelectual oitocentista em pensar no conjunto de uma sociedade marcada por uma violência estrutural, a escravidão, que limitava a percepção de um "nós" à parte livre do corpo social. O conceito romântico de nação, que incluía um povo, uma língua, uma cultura não se coadunava com a mistura de povos, línguas e culturas existente e reforçava os laços de pertencimento transatlântico. Essa dupla pertença identitária era um sentimento de não-contradição entre um ser brasileiro e um ser ocidental.

15 As gerações de intelectuais e artistas posteriores à Independência buscaram com frequência construir a ideia de nação contra o antigo colonizador, mas não contra a

Artelogie, 14 | 2019 25

Europa, de quem eles se sentiam culturalmente caudatários. Em sua percepção, éramos o Extremo Ocidente, a América, onde uma nova civilização se formava a partir do Velho Mundo, e não contra ele. Negros e índios eram o verdadeiro Outro daquela sociedade, no dizer de Flávio Aguiar (AGUIAR, 1984: p. 13), um "outro interno".5

16 O fato de nos tornarmos independentes mantendo o modelo monárquico europeu, ainda que em sua vertente reformada, reforçou no Brasil em particular esse sentimento de continuidade. Com o tempo, mesmo o português, tendo perdido seu potencial de ameaça, pôde ser reincorporado ao trio constituidor da nacionalidade, com a necessária liderança do elemento europeu, portador de civilização e destinado a redimir africanos e indígenas da barbárie. Assim, quando Joaquim Nabuco (NABUCO, 1974: p.59) diz, em Minha formação, que o sentimento em nós é brasileiro, a imaginação europeia, ele está se referindo a algo bem mais delicado e profundo, palavras que utiliza, do que seus críticos costumam ver.

17 A ambiguidade estrutural decorre, em parte, dessa dificuldade de se definir um fundamento próprio para a nação. O “povo” do Romantismo não poderia sê-lo. Numa sociedade escravocrata, com vastas populações pobres e livres, em que predominava a mestiçagem, seria difícil dar ao povo o protagonismo. A imaginação de nossos intelectuais e artistas era liberal, o sentimento aristocrático. Numa sociedade recém- saída de séculos de um patriarcalismo rígido, a imaginação podia ser democrática e burguesa, o sentimento ainda era fortemente pautado pela hierarquia e pela autoridade do pater familias. Numa sociedade gestada no Velho Regime, a imaginação podia se deixar arrebatar pela utopia americana, o sentimento era fortemente conservador e cauteloso.

18 José de Alencar pensou o país nessa chave, mas foi mais além de seus contemporâneos ao representar o negro nos palcos fluminenses com um grau de centralidade raro para a época, em O demônio familiar, em que o moleque Pedro, ainda não sendo o personagem central, é o condutor da trama em seu papel arlequinesco. Claro que a Pedro não é oferecida uma perspectiva de redenção de sua condição, a não ser que aprenda a se elevar em honra e cultura ao nível do homem branco, seu superior. Da mesma forma, Alencar, em As asas de um anjo, ousa na representação de Carolina, uma mulher tida como caída, pela infidelidade conjugal, mas que se apresenta forte e digna em sua defesa enquanto uma injustiçada pela moral masculina, que ao homem tudo permite. Ainda assim, o autor não deixa de castigá-la. O mais importante, no entanto, é que ele lidou, por meio de uma linguagem de forte impacto social como o teatro, com dois dos grandes fantasmas daquela sociedade patriarcal e escravista.

19 Uma mudança mais profunda na autopercepção daquela sociedade começa com a chamada Geração de 1870 e particularmente com Sílvio Romero, quando a busca por uma ontologia da nacionalidade no povo e em suas práticas e valores promove a inversão ideal/real defendida por Marx. Isso se torna mais possível com a abolição da escravatura, em que formalmente todos passam a condição de cidadãos, mas é um processo que se vai preparando de longa data, em que, entre outros, tiveram grande importância muitas atrizes, cantoras e bailarinas europeias que se radicavam no Brasil e acabavam se tornando a ponta de lança de uma mescla de culturas populares urbanas e a chamada "grande arte", que elas traziam de seu continente.

20 Se Romero fala de uma nação mestiça, ainda que buscando superá-la pelo branqueamento, e Gilberto Freyre vem para consagrar na análise sócio-histórica a celebração da mistura, algo aliás que também contou com uma longa história

Artelogie, 14 | 2019 26

subterrânea nas culturas urbanas, parece-me ter sido Mário de Andrade quem, sobretudo a partir da literatura, mais profundamente elaborou a profunda mudança das sensibilidades que fez o Brasil se reconhecer como moderno. E desde então creio ser ainda pela via das artes que as interpretações se fizeram mais poderosas e influentes no imaginário social. Nós, cientistas sociais e historiadores não temos tido a mesma potência de um Guimarães Rosa, de uma Clarice Lispector ou de um Milton Hatoum. Talvez pela simples razão de que a linguagem das artes se legitima pela própria expressão das sensibilidades, enquanto que um conhecimento que se quer científico tem que enfrentar a espinhosa tarefa de falar sobre, de explicar o inefável. O que não deixa de ser a tarefa que temos.

21 Hoje, nas diversas áreas das humanidades, essa dificuldade tem sido enfrentada por estudos que se dedicam ao corpo, aos sentidos, às emoções, às sensibilidades, numa urgência ditada pela necessidade de entender uma realidade fluida e incongruente, em que grupos e povos se comportam na esfera pública movidos muitas vezes por seus sentimentos mais obscuros e violentos. Se as revoluções Americana e Francesa estabeleceram o horizonte de expectativas do mundo contemporâneo e 1848 expressa o grito – ao mesmo tempo de desilusão e de esperança – que a conquista da liberdade, da igualdade e da fraternidade é possível, isso se deveu a uma profunda crença na razão libertadora.

22 O maio de 1968, por seu lado, ficou marcado por um grito, mais que desiludido, desesperado e sobretudo ambíguo. A imaginação no poder pode significar: "a razão não nos basta"; ou pior, "a razão não nos salva". E, claro, tudo cabe na imaginação – do sonho do paraíso terrestre ao dos monstros de Goya. Talvez por isso, a reação de Marcuse diante dos jovens sublevados nas barricadas de Paris. Jürgen Habermas, último representante da Escola de Frankfurt, ainda buscou dar sequência à perspectiva emancipatória de Marcuse, na contramão do ceticismo dos dois grandes pensadores da teoria crítica, Theodor Adorno e Max Horkheimer. Mas esse último fim de século e a entrada do novo milênio parecem ter dado mais ouvidos às desconstruções, às relativizações, a um mundo marcado pelas incertezas, a um real que, se existe, nos escapa sempre. Sim, precisamos ir além da razão e entender o ser humano na complexidade das suas manifestações da consciência, seu ser-no-mundo. Mas a crítica da razão não pode ser uma defesa da desrazão.

BIBLIOGRAFIA

Além das referências bibliográficas a partir de citações incluídas neste texto, incluo aqui ao menos uma obra representativa de autores citados, apenas como uma indicação de onde algumas das ideias abordadas podem ser encontradas.

ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1984.

AGUIAR, Flávio. A comédia nacional no teatro de José de Alencar. Ática, São Paulo, 1984.

Artelogie, 14 | 2019 27

ALENCAR, José de. Teatro completo 1. Funarte, Rio de Janeiro, 1977.

ANDRADE, Mário de. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Círculo do Livro, São Paulo, 1984.

ARIÈS, Phillippe. História social da infância e da família. LTC, Rio de Janeiro, 1981.

ARIÈS, Phillippe; DUBY, Georges (dir.). História da vida privada. 5 vol. Companhia de Bolso, São Paulo, 2009.

BARTHES, Roland. Mitologias. 4ª ed. Difel, Rio de Janeiro, 2009.

BENJAMIN, Walter. Illuminations: Essays and Reflections. Schocken Books, New York, 1969.

CORBIN, Alain. Le miasme et la jonquille. Flammarion, Paris, 1982.

______. Les cloches de la terre. Albin Michel, Paris, 1994.

DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. Perspectiva, São Paulo, 1971.

DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. Martins Fontes, São Paulo, 1996.

ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Zahar, Rio de Janeiro, 1990.

FEBVRE, Lucien. Honra e pátria. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1998.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Vozes, Petrópolis, 1983.

FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala. Record, Rio de Janeiro, 1998.

GOLDMANN, Lucien. Pour une sociologie du roman, Gallimard, Paris, 1964.

GUIMARÃES ROSA, João. Grande sertão: veredas. 3ª ed. José Olympio, Rio de Janeiro, 1963.

HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1984.

HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. Cia. das Letras, São Paulo, 1989.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. Martins Fontes, São Paulo, 1997.

HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média. Cosac & Naify, São Paulo, 2013.

LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rocco, Rio de Janeiro, 1998.

MARCUSE, Herbert. Eros e civilização. Zahar, Rio de Janeiro, 1968.

MARX, Karl. Contribution à la critique de l'économie politique. Éditions sociales, Paris, 1972.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. 2 v. Presença/Martins Fontes, Lisboa/São Paulo, 1973.

MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. In Sociologia e antropologia. Cosac & Naify, 2003.

NABUCO, Joaquim. Minha formação. Editora Três, Rio de Janeiro, 1974.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Sensibilidades: escrita e leitura da alma. In PESAVENTO, S.; LANGUE, Frédérique (orgs.). Sensibilidades na história: memórias singulares e identidades sociais. Ed. da UFRGS, Porto Alegre, 2007, p. 9-21.

ROMERO, Sílvio. Contos populares do Brasil. Armazém da Cultura, Fortaleza, 2013.

SIMMEL, Georg. On Individuality and Social Forms. Donald N. Levine (ed.). The University of Chicago Press, Chicago, 1971.

______. As grandes cidades e a vida do espírito. Mana. Estudos de antropologia social, Rio de Janeiro, n. 11, v. 2, 2005, p. 577-591.

WEBER, Max. A ética protestante e o "espírito" do capitalismo. Cia. das Letras, São Paulo, 2004.

Artelogie, 14 | 2019 28

NOTAS DE FIM

1. Título da gravura de nº 43 da série de 80 estampas intitulada Caprichos, de Francisco Goya, publicada em 1799. 2. "Luz, mais luz". Supostas últimas palavras de Johann Wolfgang von Goethe em seu leito de morte, em 1832. 3. Depoimento que me foi dado pelo próprio Leenhardt, a quem agradeço a autorização para utilizá-lo neste texto. 4. Apesar de a formulação ser bem conhecida, vale a pena reproduzir um trecho maior da citação, que esclarece o pensamento de Marx: [Na] produção social da sua existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias e independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um grau de desenvolvimento determinado das suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas de consciência sociais determinadas. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; mas inversamente é o seu ser social que determina a sua consciência (MARX, 1972: p. 4). 5. Aguiar define o “outro” interno da sociedade brasileira oitocentista (o terceiro na série de alteridades que ele propõe) como sendo “o triste legado colonial”, traduzido pela “tacanhice provinciana”. Ainda que o autor coloque a escravidão no centro deste “outro”, isso me parece insuficiente, pois abolida esta e modernizado o país o terceiro “outro” desapareceria. No entanto, o que vamos constatar na história que se segue é que o terceiro “outro” continua a assombrar a sociedade brasileira, definido a partir das difíceis relações interétnicas e em particular da problemática absorção da população afro-brasileira e do legado cultural africano.

RESUMOS

A relação entre ser e consciência é um problema que atravessa a história da filosofia e funda as ciências sociais. Como resultado dos embates entre perspectivas idealistas e materialistas, firma- se uma convicção da importância de se ir além do dualismo e do determinismo: os seres humanos vivendo em sociedade em seu devir histórico estão imersos em sua cultura, suas representações, seus valores, ao mesmo tempo em que atuam sobre e modificam sua realidade. Outro par binário então se apresenta como desafio para as questões de consciência: razão e emoção. Este breve ensaio procura refletir – a partir de dois anos icônicos na história ocidental, 1848 e 1968 – como tais questões vêm se impondo ao pensamento social e à historiografia contemporânea.

La relation entre l'être et la conscience est un problème qui traverse l'histoire de la philosophie et fonde les sciences sociales. À la suite des affrontements entre perspectives idéalistes et matérialistes, s'est établie la conviction de l'importance de dépasser le dualisme et le déterminisme. Les êtres humains vivant en société dans leur développement historique sont immergés dans leur culture, leurs représentations, leurs valeurs, en même temps qu'ils agissent sur et modifient leur réalité. Un autre couple binaire se présente alors comme un défi aux problèmes de conscience : raison et émotion. Ce bref essai cherche à réfléchir – à partir de deux années emblématiques de l’histoire occidentale – 1848 et 1968 – sur la question de savoir comment de telles questions s’imposent à la pensée sociale et historique contemporaine.

ÍNDICE

Mots-clés: être; conscience; raison; sensibilité; émotion; pensée Palavras-chave: ser; consciência; razão; sensibilidade; emoção; pensamento

Artelogie, 14 | 2019 29

AUTOR

ANTONIO HERCULANO LOPES

Fundação Casa de Rui Barbosa - Rio de Janeiro, Brasil História cultural [email protected]

Artelogie, 14 | 2019 30

O arquivo pessoal da historiadora Sandra Jatahy Pesavento e as Sensibilidades enquanto campo teórico e método de análise histórica

Nádia Maria Weber Santos e Maximiano Martins de Meireles

1.Introdução

1 O texto pretende discutir o lugar, a importância e os conteúdos específicos da temática das Sensibilidades na obra da historiadora Sandra Jatahy Pesavento, a partir dos documentos de seu arquivo pessoal, que está depositado no Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRGS) desde final de 2014, por doação da família. O material completo do Acervo Sandra Jatahy Pesavento (doravante Acervo SJP) tem em torno de 114 metros lineares, abrangendo a biblioteca da historiadora, o material de estudo e de pesquisa dos 40 anos de trabalho da professora e pesquisadora, as obras completas digitalizadas e fichário completo, incluindo fichamento de jornais do RS dos séculos XIX e início do XX.

2 A historiadora Sandra Jatahy Pesavento (1946-2009) – pesquisadora 1A do CNPq (de 1996 até 2009) e professora titular de História da UFRGS (desde 1991) – foi professora titular do Departamento de História da UFRGS e professora dos Programas de Pós- Graduação de História e do PROPUR da mesma instituição. Fez doutorado em História Econômica na USP e possuía 3 pós-doutorados em Paris, rumando neste momento (início da década de 1990) para o campo da História Cultural, de onde foi uma das pioneiras no Brasil. Foi uma das primeiras pesquisadoras 1 A do CNPq na área de História e tinha interlocução com autores e historiadores de vários países. Autora de uma vasta obra historiográfica, com 126 artigos publicados no Brasil e no exterior, 51 livros, entre individuais e coletivos e 85 capítulos de livros, é uma das mais importantes

Artelogie, 14 | 2019 31

historiadoras do século XX, cuja obra versa sobre variadas vertentes da historiografia. Da História Econômica, com viés marxista, à História Cultural, sua riquíssima obra estuda e pesquisa as charqueadas gaúchas, a Revolução Farroupilha, a burguesia gaúcha e a industrialização, e, também, as questões do urbano, das imagens, das sensibilidades e da relação História/Literatura, estas últimas já sob o enfoque da História Cultural.

3 Por iniciativa da família Pesavento, os escritos da historiadora gaúcha foram digitalizados integralmente e disponibilizados gratuitamente para a comunidade acadêmica e para a sociedade em geral, constando no site do IHGRGS. O acervo intelectual da pesquisadora, constituído durante os 40 anos em que foi atuante como historiadora, bem como sua grande e importante biblioteca de aproximados 4 mil títulos estão depositados no IHGRGS e em fase de organização.

4 A importância de suas pesquisas na História Cultural, em âmbito nacional e internacional, é validada pelos inúmeros trabalhos acadêmicos que citam suas obras. Sua especificidade em lidar com os arquivos e com as fontes históricas é reconhecida, legado este que seus ex-orientandos e interlocutores compartilham e transmitem a seus alunos. Como historiadora da cidade de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul, ela era popular e muito solicitada a compartilhar seus conhecimentos históricos com a população em geral e na mídia. Variados campos de estudos têm em sua obra balizadores conceituais. No estudo do Acervo SJP, metodologicamente cruzando suas leituras (livros de sua biblioteca) com os documentos que ela produziu nos quarenta anos de sua atuação como professora e pesquisadora (entre eles, manuscritos de suas obras e de sua produção intelectual, resenhas de autores e livros, projetos de pesquisa, planos de aulas, transcrição de fontes primárias, coleção de imagens, reflexões sobre suas temáticas preferencias – urbano, sensibilidades, imagens, literatura) e com sua produção intelectual (artigos, livros e capítulos, entre outros), é possível não somente traçar a trajetória intelectual da pesquisadora, como trazer à tona a importância de seu pensamento para a historiografia brasileira, desde a década de 1970.

5 A professora Pesavento foi uma historiadora altamente produtiva, como pesquisadora do CNPq, tendo galgado a posição de pesquisadora 1A numa época em que poucos conseguiam, graças à sua produtividade. Desde a fase marxista, pesquisando a economia gaúcha, a industrialização, as Charqueadas, até a fase em que pensou o urbano, os excluídos, as sensibilidades dos homens do passado, ela publicou muito, formou várias gerações de historiadores, influenciou pensamentos, pesquisas, dentro e fora do Brasil. Tudo isto está documentado em seu acervo, arquivo pessoal este que precisa ser estudado com maior profundidade e preservado, pois nele constam documentos importantes de nossa história. Por exemplo, nos 32 arquivos de fichas, há fichamentos de jornais do final do século XIX e início do século XX, dentre eles, A Gazetinha, de 1896 e O Independente, de 1910, de onde retirou fontes para suas pesquisas sobre os Becos e os excluídos da cidade de Porto Alegre, origem de várias de suas produções intelectuais. Alguns periódicos fichados nem existem mais ou estão em má conservação em seus arquivos de origem (como no Museu Hypólito da Costa, de Porto Alegre). Outro exemplo importante são os fichamentos de processos-crime e dos materiais da pesquisa de seu último livro, Os Sete Pecados da Capital, que estão todos arquivados no acervo. Faz-se mister não deixar com que estas fontes históricas se percam em definitivo. Pesavento sabia da importância desta preservação, tanto que organizadamente manteve estas fontes transcritas muito bem cuidadas em sua residência, quando viva, e sua família teve a lucidez de enviar ao IHGRGS para custódia.

Artelogie, 14 | 2019 32

6 Dentre esses diversos focos dos conteúdos do Acervo SJP, que perpassam as várias fases da historiadora e pesquisadora da UFRGS (desde os anos de 1970), vamos, no presente artigo, ater-nos aos manuscritos sobre Sensibilidades, os quais abrangem: resumos e resenhas de obras e autores, rascunhos de textos, reflexões originais (manuscritas) sobre Sensibilidades, em português e em francês, entre outros. Sandra Pesavento foi uma das pioneiras na historiografia brasileira do Campo das Sensibilidades, o que demarca a importância de pesquisar em seu arquivo pessoal tal temática e cruzar com os escritos que vieram a público, problematizando e discutindo as possibilidades de investigação no acervo e neste campo temático. Junta-se a isto pensar as sensibilidades enquanto método de investigação da História.

2.O arquivo pessoal e intelectual Sandra Jatahy Pesavento no IHGRGS: breve descrição e constituição do acervo

7 Na presente seção, apresentamos, sucintamente, o arquivo pessoal e intelectual Sandra Jatahy Pesavento (1946-2009) – Acervo SJP – que está depositado no Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRGS) desde final de 2014, por doação da família e, desde lá, passa pelas diversas fases de organização. A referida instituição de custódia se caracteriza como uma instituição privada sem fins lucrativos, fundada a 05 de agosto de 1920, cuja finalidade é promover estudos e investigações sobre História, Geografia, Arqueologia, Filologia, Antropologia e campos correlatos do conhecimento, principalmente centrados no Rio Grande do Sul1.

8 Designa-se arquivo pessoal as mais diversas formas de escritas de si e o conjunto dos documentos produzidos e/ou pertencentes a uma pessoa, ou seja, que resulta de uma trajetória profissional, intelectual, social e cultural específica. Considerado como locus de pesquisa, permite ao historiador e demais pesquisadores apreender aspectos micro e macro do social de um dado tempo, sensibilidades de uma pessoa e, por extensão, de um grupo (VIDAL, 2007), contribuindo para o entendimento mais sutil de fenômenos sociológicos e históricos, de ideários políticos, projetos pessoais e processos sociais neles investidos (HEYMANN, 2005).

9 A equipe curatorial do Acervo SJP, constituída em meados de 2015, é responsável pela organização primária do acervo em seus diferentes momentos (triagem, limpeza, classificação - organização nas caixas, pastas, prateleiras e gavetas, descrição e divulgação –, realização de eventos e exposições). O material completo do Acervo abrange: I – Coleção Bibliográfica: a biblioteca da historiadora, em torno de 4 mil obras (este material não está catalogado ainda), II – Fundo Documental: o material de estudo e de pesquisa dos 40 anos de trabalho da professora e pesquisadora, compreendendo: II/1 – Pastas suspensas, caixas e gavetões com material de estudo de 40 anos; II/2 – Arquivo digital: obras completas de SJP digitalizadas e II/3 – Arquivo especial de fichas manuscritas: fichário completo, com móvel, pertencente à historiadora, incluindo fichamento de jornais do século XIX e início do século XX do Rio Grande do Sul. O total do acervo físico tem aproximadamente 114 metros lineares de documentação.2

10 No decorrer deste processo (entre final de 2014 e 2017), a família teve duas iniciativas importantes: a criação de um website sobre a historiadora e a digitalização completa de sua obra (livros individuais e capítulos de livros, perfazendo 121 itens). Com isto,

Artelogie, 14 | 2019 33

proporcionam uma democratização no compartilhamento público de seus escritos: suas obras digitalizadas estão disponíveis, desde meados de 2017, junto ao website do IHGRGS3 e o site sobre ela foi colocado em linha em maio também de 2017 e nele constam: uma linha do tempo da pesquisadora, com imagens selecionadas pela família, incluindo sua vida pessoal e produção das obras, os inéditos carnets de Voyage, escritos em viagem a Paris em 2004, vídeos de entrevistas e fotos, livros individuais publicados e agora digitalizados4. Atualmente, todo material documental do acervo físico foi colocado em caixas, gavetas (material de grandes proporções) e pastas suspensas, sendo possível ter uma ideia geral de seu conteúdo e fazer a sua descrição.

11 O processo de organização, constituição e pesquisas já desenvolvidas no Acervo SJP revela a riqueza dos materiais de arquivo e, principalmente, resguarda um percurso de como o campo historiográfico da História Cultural tomou o pensamento e ocupou as reflexões da historiadora gaúcha nos últimos 20 anos de sua vida. Seus estudos sobre o urbano, sobre a relação História e Literatura, sobre imagens e, mais no fim, sobre sensibilidades, estão todos demonstrados nos inúmeros documentos que compõem seu acervo e que intentamos divulgar e propor como fontes para pesquisadores.

12 O ato de escrever, por mais antigo que seja, sempre revela. Revela vontades, desejos, maneiras de ser e de se preocupar com o mundo. Revela ideias, reflexões – contemporâneas e, muitas vezes, extemporâneas – que podem permear uma vida e uma obra. Não é diferente daquilo que identificamos no Acervo Sandra Jatahy Pesavento. Ou seja, a escrita da historiadora – muitas vezes literalmente manuscrita – revela e expõe muito de seu percurso como pesquisadora, intelectual e professora. Além disto, o material constituinte do acervo revela uma pessoa organizada e interessada em construir um pensamento – que se tornou original em nosso meio acadêmico. Pesavento, ao arquivar sua vida intelectual e pessoal – talvez mesmo sem a intenção consciente de o fazer, como saber? –, deixou para as gerações vindouras a possibilidade de construírem a história de seu pensamento, que foi publicizado por ela em seus livros e artigos.5

13 Tal acervo se constitui em um patrimônio histórico que permite o desenvolvimento de pesquisas que se interessem pela trajetória intelectual da historiadora Sandra Jatahy Pesavento (1946-2009), professora titular do Departamento de História da UFRGS e professora dos Programas de Pós-Graduação de História e do PROPUR da mesma instituição. Ele guarda diferentes documentos que tratam da formação acadêmica da referida historiadora, que fez doutorado em História Econômica na USP e possuía 4 pós- doutorados em Paris, bem como de sua trajetória como professora e pesquisadora, demonstrando sua interlocução com autores e historiadores de vários países do mundo.

14 O Acervo SJP é um campo profícuo de pesquisa para compreender a trajetória desta historiadora, a qual se inscreve em diferentes movimentos e em distintos tempos, revelando as nuances de uma vida dedicada à História, à docência e à pesquisa. Neste sentido, os arquivos que compõem o referido acervo abrem possibilidades para o desenvolvimento de investigações que buscam pensar sobre Sandra Jatahy Pesavento em diferentes campos de atuação: 1) do lugar de intelectual e teórica – suas contribuições na produção do pensamento historiográfico no Brasil e mais especificamente no contexto do Rio Grande do Sul; 2) do lugar de professora - sua carreira docente na Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS, no âmbito da graduação e da pós graduação em História; 3) do lugar de pesquisadora – as pesquisas desenvolvidas no contexto do Programa de Pós Graduação de História/UFRGS e no

Artelogie, 14 | 2019 34

âmbito de Pesquisadora de produtividade do CNPq, sua atuação tanto como docente, orientadora, quanto coordenadora; membro da equipe editorial de vários periódicos acadêmicos no Brasil e no exterior; membro de conselho consultivos; membro de associações de historiadores internacionais; membro de Centros de Pesquisas; membro criadora de Grupos de Trabalho (GT de História Cultural na ANPUHRS (1997) e na ANPUH Nacional (2001); coordenadora de Acordos CAPES/COFECUB (França/Brasil).

15 Todo o material bruto recolhido em sua residência abrange a biblioteca da historiadora, com uma estimativa de quatro mil obras, e o material de pesquisa de quarenta anos, incluindo, entre outros, manuscritos de livros e artigos, transcrição de fontes primárias (processo crime, jornais, prontuários médicos), estudos de autores e temas (fichamentos manuscritos), planos de aulas de graduação e pós-graduação e cursos ministrados, projetos de pesquisa nos vários órgãos de fomento (Capes, CNPq e Fapergs), registros das idas a congressos internacionais, imagens de Porto Alegre coletadas para estudos, correspondências acadêmicas (e-mails impressos), fontes sobre a indústria gaúcha etc.

16 Como referido acima, a pesquisadora era muito organizada, fazendo com que tenhamos no acervo fardos, pastas e plásticos organizados por ela de assuntos que perfazem toda sua trajetória acadêmica e profissional, como professora da UFRGS e pesquisadora do CNPq. Desde transcrição de fontes primárias (jornais do século XIX, processos crime, relatórios sobre a indústria gaúcha, movimentos de greves de operários, fotos dos sentenciados do álbum do Dr. Sebastião Leão, imagens de Porto Alegre antiga, entre muitas outras), passando por planos de aulas e redações de projetos de pesquisa, anotações sobre arguições de bancas de mestrado e doutorado, correspondências eletrônicas trocadas com editores e colegas companheiros de publicações, manuscritos de palestras proferidas nacional e internacionalmente, o que já denota uma riqueza infindável deste acervo, constatamos que há fichamentos que ela realizava de autores e temas relativos aos seus estudos preliminares de História Cultural e o que seria, mais tarde, conteúdo dos textos de seus livros e artigos.

17 Temos como exemplificar esta última afirmação com as caixas de número 33 A e B, que denominamos “Estudos de SJP (Manuscritos) por temas e autores”, onde constam 30 envelopes e pastas de plástico, organizadas por ela, com fichamentos de temas e autores importantes para o campo. Na caixa 33 A temos os seguintes autores e temas: Nova História Cultural, Nova História Cultural (origens), Micro História, Imaginário, Representação, Narrativa, Sensibilidades, História e Literatura, Ítalo Calvino, Paul Ricoeur, Carlo Ginzburg, Robert Darnton, Pierre Bourdieu, Antropologia, Grupo sensibilidades, Walter Benjamin, Michel Foucault, Mulheres, estudos de autores e obras. Na caixa 33 B temos: Estado da arte sobre História Cultural no Brasil, Cidade e Literatura, Memória, Identidade, Literatura e História, Edward Thompson, The Lady of Shalott, Eduardo Colombo, Pasta Fronteiras Culturais Cone Sul, Banca Tese Nádia, Materiais variados.

18 Este material documenta, de algum modo, a virada epistemológica que marca a trajetória de Sandra Pesavento ao apostar na História Cultural como uma perspectiva de deslocar seu pensamento historiográfico e se debruçar sobre outros objetos de estudo, temas e fontes. Nos rastros da vasta produção de Pesavento, vê-se uma pesquisadora com olhar aguçado e refinado para temáticas como cotidiano, imaginário, literatura, exclusão, subjetividades, histórias de vidas, e sua estreita relação com o Campo das Sensibilidades.

Artelogie, 14 | 2019 35

3 O acervo SJP e suas relações com o Campo das Sensibilidades

3.1 A produção teórica sobre sensibilidades na trajetória de Sandra Jatahy Pesavento

19 Na senda da História das Sensibilidades, que foi um dos últimos campos de pesquisa da historiadora e do qual ela foi uma das pioneiras no Brasil, há registros diretos e indiretos nas várias partes do acervo, configurando-se ao mesmo tempo um grande desafio para estabelecer parâmetros – tanto qualitativos quanto cronológicos - deste campo da ciência e uma grande riqueza no que tange às fontes deixadas por ela. Neste texto oferecemos ao leitor um pouco do que nos é permitido pensar e escrever diante de tal acervo, cuja constituição preserva a memória de um percurso pessoal e intelectual, constituindo-se um patrimônio histórico e de pesquisa.

20 O Acervo SJP, mais especificamente a caixa 33A, constitui-se em um rico material para entender “desde dentro” como Sandra Pesavento vai tecendo seu pensamento e produção no Campo das Sensibilidades, estabelecendo diferentes diálogos com áreas do saber, com instituições e pesquisadores, pois ali constam cópias de e-mails emitidos e recebidos; diversos manuscritos, a exemplo de uma gama de fichamentos de leitura produzidos por ela. Revela uma pesquisadora que busca formar seu pensamento historiográfico de modo interdisciplinar, através de um dedicado trabalho de leitura, interpretação, síntese e correlação das ideias de autores de distintos campos do conhecimento, a exemplo de Walter Benjamin, Roland Barthes, Roger Chartier, Paul Ricoeur, Frédéric Laupies, Carl Gustav Jung, só para citar alguns. Além disso, a caixa 33A do Acervo SJP abriga textos produzidos para serem apresentados em eventos e que, posteriormente, foram ampliados e publicados em periódicos e capítulos de livros.

21 Os diversos manuscritos e escritos que compõem a caixa 33A são reveladores do percurso que Sandra Pesavento trilhou para pensar as Sensibilidades como campo da História Cultural, como objeto e também como método. Certamente foi este estudo detalhado, aprofundando e interdisciplinar, este diálogo profícuo com autores de grande relevo intelectual, os diferentes trânsitos e interlocuções acadêmicas, seus investimentos intelectuais, sua articulação com rede de pesquisadores no Brasil e na França, por exemplo, que permitem a historiadora pensar esses diferentes contornos das Sensibilidades no campo da pesquisa em História.

22 O campo das Sensibilidades, assim, se configura em uma dobra da virada epistemológica que marca a trajetória de Sandra Pesavento ao apostar na História Cultural como uma perspectiva de deslocar seu pensamento historiográfico e se debruçar sobre outros objetos de estudo, temas e fontes. Nos rastros da vasta produção de Pesavento, vê-se uma pesquisadora com olhar aguçado e refinado para temáticas como cotidiano, imaginário, exclusão, subjetividades, histórias de vidas, entre outras. Entretanto, interessa-nos, mais especificamente, nesta parte do texto, abordar sobre seus estudos e pesquisas no âmbito das Sensibilidades, temática muito pertinente aos atuais estudos da História Cultural, e tão cara a esta historiadora da cultura. Para tanto, percorremos a trajetória intelectual da historiadora, exemplificando com informações recolhidas em documentos que fazem parte do Acervo SJP, bem como na análise de seu currículo Lattes.

Artelogie, 14 | 2019 36

23 Não é tarefa fácil precisar um marco inicial ou fixar em datas o momento em que as sensibilidades passam a ser um interesse da historiadora, posto que isto tem a ver com posições sensíveis e conscientes que atravessam a vida profissional e intelectual de Pesavento (SANTOS, 2015). Mas certamente é quando ela assume o lugar de historiadora da Cultura, nos vinte últimos anos de sua vida acadêmica, trabalhando com temas ligados à história do urbano, relação entre história e literatura, a relação história/ imagem, o mundo dos excluídos, dentre outros, que a história das sensibilidades vai sendo traçada em sua obra, culminando em uma vertente que traduz o fôlego e um dos principais interesses de pesquisa da “última” Sandra Pesavento.

24 Se já na década de 1990 Pesavento, ao tratar de temas vinculados à História Cultural, deixa entrever nuances das sensibilidades em suas formas de tematizar, pensar e produzir a história, é entre o final do século XX e o início do século XXI que sua produção intelectual vai se concentrar nesta temática, ou seja, é quando as Sensibilidades tomam posição de relevo em sua obra. É mais precisamente entre os anos de 2000 a 2009, conforme se pode ver em seu currículo Lattes, que a História das Sensibilidades assume um lugar de centralidade em sua produção historiográfica, no desenvolvimento de seus “últimos” projetos de pesquisa, na publicação de livros e capítulos de livros, artigos publicados em periódicos, participação e apresentação de trabalhos em eventos acadêmicos, orientações e supervisões de pesquisas em mestrado e doutorado, organização de eventos, participação em bancas, em reuniões de grupo de pesquisa, além de outras produções bibliográficas e técnicas.

25 A questão das Sensibilidades situa-se em suas produções sob duas vertentes: no entrelace com outros temas da História Cultural, a exemplo do imaginário, imaginário urbano, cidades, imagem, memória, exclusão, violência, identidade nacional, a relação história e literatura etc.; e em trabalhos nos quais as Sensibilidades são tematizadas mais especificamente como lastro teórico ou como método para o historiador. Isto pode ser percebido tanto em seu currículo Lattes quanto nos diversos documentos abrigados no Acervo SJP, sobretudo no material arquivado na caixa 33 A (Sensibilidades e outros temas, conforme explicitado na seção anterior), elencada acima, nosso interesse de pesquisa no atual momento.

26 Pode-se assim dizer que a História Cultural e a História das Sensibilidades, em sua diversidade de temas e fontes, com seus diferentes modos de acessar, interpretar e produzir a história, aproxima Sandra da interdisciplinaridade, uma pesquisadora que se articulava e agregava pessoas de várias áreas entre alunos de pós-graduação, companheiros de projetos de pesquisa, eventos e publicações, estabelecendo diálogos profícuos, por exemplo, entre as Sensibilidades e as diversas áreas do saber, e isto é visível e notório em sua obra: arquitetura e urbano, literatura, psicologia, psiquiatria, comunicação, antropologia, direito, artes, entre outras (SANTOS, 2015).

27 Pensar as Sensibilidades como campo da História, a partir das reflexões de Pesavento (2005), é assumir que os homens, em diferentes tempos e espaços, representam e atribuem sentidos ao mundo, nas formas de sentir, pensar, perceber e expressar a realidade. É entender que a História não se move fora da experiência, das subjetividades, da imaginação, das emoções, das ideias, dos desejos, dos temores, posto que a relação dos homens com o mundo está para além do conhecimento científico, dos “frios da razão”. É reconhecer em todas as épocas a permanência dos sentimentos, do sensível, daquilo que não é apreendido unicamente pelo racional.

Artelogie, 14 | 2019 37

28 As sensibilidades são traduções da experiência expressas em ritos, atos, palavras e imagens, objetos da vida material, em materialidades do espaço construído. A autora entende as sensibilidades como uma forma de ser e estar no mundo, um processo subjetivo, que brota do íntimo de cada indivíduo, uma experiência única, mas que não é, a rigor, intransferível, elas podem ser também compartilhadas, uma vez que são sempre sociais e históricas (PESAVENTO, 2005: p. 128).

29 Esta compreensão abre um leque de fenômenos e de objetos de estudos antes desconsiderados pela história. Desse modo, a partir da formulação de questões e objetivos de pesquisa, da definição de fontes, o historiador pode adentrar o passado e interpretar as sensibilidades enquanto conteúdo, formas e símbolos, em um determinado contexto temático e temporal. Pode-se exemplificar esta questão a partir de temas trabalhados pela própria Sandra Pesavento, e, dentre tantos, citamos apenas dois: a relação entre nação, identidade nacional e sensibilidades no Brasil do Oitocentos (PESAVENTO, 2009); crimes, violências e sensibilidades urbanas no sul brasileiro do final do século XIX (PESAVENTO, 2004).

30 Sandra Pesavento (2003; 2007) aborda as Sensibilidades não apenas como campo da história ou um conceito, mas também como um método de investigação da História, especialmente da História Cultural. É um método que permite ao historiador compor uma narrativa do passado quando se dedica a ler as formas de ver, sentir e perceber dos homens de uma outra época, ou seja, as sensibilidades de um outro no tempo: “Toda experiência sensível do mundo, partilhada ou não, que exprima uma subjetividade ou uma sensibilidade partilhada, coletiva, deve se oferecer à leitura enquanto fonte, precisando ser objetivada em um registro que permita a apreensão dos seus significados. O historiador precisa, pois, encontrar a tradução das subjetividades e dos sentimentos em materialidades, objetividades palpáveis, que operem como a manifestação exterior de uma experiência íntima, individual ou coletiva”. (PESAVENTO, 2003: p. 132). Mais adiante na próxima seção, veremos um dos manuscritos de seu acervo que remete a estas questões.

31 É através das Sensibilidades como campo, objeto e método que o historiador pode capturar a vida no tempo; trabalhar com experiências individuais e coletivas; reconstruir formas de conhecimento do mundo; conhecer o modo como os homens pensam, sentem e se colocam diante do mundo em um contexto cultural e temporal específico; como apreendem o mundo em que vivem etc.

32 Estes exemplos enunciam, portanto, que o acervo abriga documentos/fontes de extrema relevância para pesquisadores que se interessem em compreender os percursos e os processos de formação do pensamento da historiadora, a partir de um olhar “de bastidores”. Trata-se de lançar mão de diversas formas de escritas de si e um conjunto de documentos produzidos e pertencentes a Pesavento, que tratam de sua trajetória profissional, intelectual, social e cultural. Pesquisar o acervo pessoal e intelectual Sandra Jatahy Pesavento é, portanto, um caminho para pensar possibilidades e desafios teóricos e metodológicos da História Cultural colocando em cena novas questões, temas, objetos de pesquisa e fontes. Tal perspectiva nos encaminha ao horizonte das Sensibilidades enquanto método de análise histórica, percorrendo as proposições de Sandra Pesavento a partir de documentos de seu acervo.

Artelogie, 14 | 2019 38

3.2 As Sensibilidades enquanto método de análise histórica

33 Dentre as inúmeras possibilidades de pesquisa no acervo SJP, nos dedicamos ao trabalho de investigação da caixa 33 A - “Estudos de SJP (Manuscritos) por temas e autores”, mais especificamente as pastas 1 (“Sensibilidades”) e 8 (“Grupo Sensibilidades”)6, que tratam das Sensibilidades. Tais manuscritos (fichamentos, reflexões escritas, rascunhos de textos ou apresentações), são exemplos de estudos que Pesavento fazia sobre a temática, os quais, posteriormente, foram dando origem aos seus textos mais importantes sobre sensibilidades.

Figura 1- Capa da Pasta 8 - “Grupo Sensibilidades”, organizada por Sandra Pesavento. Acervo SJP, caixa 33 [manuscritos de SJP]. Fotografia 153429, acervo pessoal de Nádia Maria Weber Santos.

34 Na pasta 8 (Figura 1), nomeada pela historiadora como “Grupo Sensibilidades” – possível referência ao grupo parisiense de colegas que discutiam a temática – ela trabalhava, encontram-se manuscritos variados, em português e em francês, sobre o tema, incluindo apontamentos e anotações sobre o que vieram a ser seus mais importantes textos na temática. Por exemplo, o texto “Sensibilidades no tempo, tempo das sensibilidades”, apresentado em francês na 1ère Journée d´Histoire des Sensibilités, que aconteceu na EHESS em Paris, em março de 2004 e publicado a seguir na revista Nouveau Mondes7. As ideias deste texto são exaustivamente trabalhadas por Sandra em seus manuscritos, como nos mostram as imagens das figuras 4 e 5 (mais adiante neste texto): como capturar as sensibilidades do passado, quais são as suas traduções para o mundo? Pesavento refere suas ideias já, atualmente, conhecidas por todos, em que as sensibilidades seriam o núcleo primário de percepção e tradução do mundo e essa tradução equivale a perceber representações que traduzem significados: ações, práticas, ritos e gestos; materialidades e imagens; palavras, textos e sons (figura 4).

Artelogie, 14 | 2019 39

35 As perguntas que ela faz, buscando um método para trabalhar tais sensibilidades são: o que são as sensibilidades? Como as capturar no passado? Quais são as suas traduções, ou dito de outra maneira, quais são os traços que deixam de si? Com isto, Pesavento começa a balizar um método, esboça seus passos de como cercar as sensibilidades passadas.

36 Como referido à nota 8 deste texto, os manuscritos são muitos e, ao examiná-los atentamente, observa-se que Pesavento exaustivamente está pensando as sensibilidades, em termos de epistemologia, método e de fontes para o historiador.

37 O contato com tais documentos, tantos os manuscritos quanto as publicações da referida autora, foi revelando possibilidades de lançar um olhar investigativo sobre o Campo das Sensibilidades sob outra nuance: enquanto método de análise histórica. Neste caminho de pesquisa, selecionamos alguns manuscritos que foram fotografados e serão aqui apresentados, cujo conteúdo evidenciam pressupostos e percursos metodológicos para o trabalho do historiador inserido neste campo. Abordaremos os seguintes aspectos: 1) Atitude hermenêutica como forma de compreensão do passado – “uma leitura sensível do tempo”; 2) A subjetividade, a experiência e as marcas de historicidade enquanto tradução e via de acesso às sensibilidades; 3) Pressupostos metodológicos para o trabalho do historiador.

38 Os vários manuscritos referentes às sínteses de leituras e estudos – fichamentos - produzidos por Sandra Pesavento descortinam uma pesquisadora que, em aderência aos princípios da História Cultural, vai formulando um método de análise histórica de perspectiva interdisciplinar, dialogando com diferentes áreas e campos do conhecimento, a exemplo da Filosofia, Sociologia, Psicologia, Literatura, Fenomenologia e Hermenêutica etc., bem como distintos autores.

39 Destes entrelaces teóricos, nota-se que a relação entre a História e a Hermenêutica assume um papel de relevo em seus estudos e publicações sobre as Sensibilidades. Os dois manuscritos apresentados a seguir (Figuras 2 e 3) revelam o interesse de Pesavento em elaborar seu pensamento a partir da interlocução com culturalistas alemães como Wilhelm Dilthey e Gustav Droysen (século XIX) e o pensador e filósofo francês Paul Ricoeur (século XX), tal como se pode ver nos dois manuscritos a seguir:

Artelogie, 14 | 2019 40

Figura 2 - Pasta 1 - “Sensibilidades”, organizada por Sandra Pesavento. Acervo SJP, caixa 33 [manuscritos de SJP]. Fotografia 143640, acervo pessoal de Nádia Maria Weber Santos

Figura 3 – Pasta 1 “Sensibilidades”, organizada por Sandra Pesavento. Acervo SJP, caixa 33 [manuscritos de SJP]. Fotografia 143648, acervo pessoal de Nádia Maria Weber Santos

40 Nos manuscritos das figuras 2 e 3, Sandra Pesavento resgata de Wilhelm Dilthey e Paul Ricoeur o que ela chama de “a grande questão para o historiador: como compreender o

Artelogie, 14 | 2019 41

texto do passado?” Tal pergunta encaminha à História a um pacto com a Hermenêutica, cuja finalidade é a de interpretar a experiência humana em sua dimensão temporal (PESAVENTO, 2003, 2007). Vários apontamentos presentes nesse manuscrito estão sistematizados no seguinte argumento: “A grande questão que se colocaria ao historiador seria: como compreender um texto do passado? Ao tratar a inteligibilidade daquilo que teria se passado um dia, seria preciso enfrentar o desafio de pensar a temporalidade do acontecido em termos do princípio básico da hermenêutica, que é o de ultrapassar a distância temporal e cultural do passado, compreendendo este outro no tempo, verdadeira finalidade da história” (PESAVENTO, 2007: p. 16).

41 Este trabalho de decifração do passado, ao modo como pensa a historiadora Pesavento, pressupõe captar na historicidade a dimensão cultural e psicológica que constitui a experiência humana, aquilo que traduz a expressão da vida... “a própria energia da vida, a enargheia, de que nos fala Cario Ginzburg. Capturar a enargheia, a força da vida, seria a meta última e refinada daquele interessado em reconfigurar o tempo do passado” (PESAVENTO, 2007: p. 13). Compreender a história, sob o viés das Sensibilidades, significa compreender não apenas um outro tempo, mas também um outro no tempo, ou seja, as formas de ver, perceber e sentir dos homens de uma outra época. Desse modo, o trabalho com as sensibilidades é uma das possibilidades de acesso e interpretação do passado (PESAVENTO, 2003).

42 Tal como aparece nos manuscritos aqui analisados e que reverberam nos textos publicados por Pesavento, o trabalho de compreensão e reconfiguração do passado exige do historiador “uma atitude hermenêutica – partir do desafio que é o estranhamento do passado, buscar os sentidos ocultos no tempo” (manuscrito figura 2). A articulação entre história, cultura e psicologia pode ser aqui traduzida em três princípios orientadores do trabalho do historiador: a) uma percepção inscrita sob o signo da alteridade “a história envolve sempre uma diferença no tempo, uma estrangeiridade com relação ao que se passou por fora da experiência do vivido”; b) uma compreensão da cultura - os sentidos que os homens atribuem ao mundo; c) um sentido psicológico da análise – decifrar sentidos no tempo, capturando lógicas, sentimentos, emoções e afetos (PESAVENTO, 2003, 2007). O historiador está, portanto, diante de sua tarefa primordial: realizar uma hermenêutica do passado (PESAVENTO, 2007: p. 18).

43 Ao buscar recriar o passado através das sensibilidades de uma outra época, o historiador lida com outras formas de apreensão da realidade que recobrem o campo do sensível, o que envolve uma “re-educação do olhar”. O trabalho do historiador, guiado por uma questão de pesquisa, por lentes teóricas e metodológicas, além do referencial de contingência, configura-se também como registros sensíveis de sua interpretação do passado, uma percepção sensível e inteligível do tempo (PESAVENTO, 2003; 2007). Nessa perspectiva, Pesavento propõe uma hermenêutica das sensibilidades, tarefa do historiador. Mas como realizá-la?

44 Embora, atualmente, o campo das Sensibilidades inclua outras disciplinas e áreas transdisciplinares, que primam por estas discussões, como a Literatura, a Filosofia, as Artes em geral, a Psicologia, Memória Social, entre tantas outras, Pesavento se questionava e refletia sempre a partir do campo da História Cultural, que era o lugar de onde ela percebia o mundo como pesquisadora. Desta forma, é adequado perguntar: com o que lida o historiador no Campo das sensibilidades? Como traduz e acessa as sensibilidades? Como medir o imensurável? – perguntas estas que estão sempre nos

Artelogie, 14 | 2019 42

estudos de Pesavento (exemplos nas Figuras 4 e 5, mas que aparecem em muitos outros manuscritos).

45 Para responder tais questões, encontram-se nas reflexões e posteriores obras, três categorias, se assim as podemos nomear, que Pesavento vislumbrou enquanto vias de acesso ou balizadores da tradução das sensibilidades: subjetividade, experiência e marcas de historicidade. Tais categorias traduzem seu método de chegar perto das sensibilidades dos homens do passado, a partir de determinadas fontes ‘sensíveis’, como mostram as figuras 4 e 5 a seguir.

46 Conforme argumenta a autora, as sensibilidades, objeto a ser capturado pelo historiador da cultura, trouxe para os domínios da História Cultural a emergência da subjetividade, que remete à presença do eu como agente e matriz de sensações e sentimentos. É através da experiência histórica pessoal que se pode capturar emoções, afetos e sentidos, de modo que essa tradução sensível da realidade seja historicizada e socializada para os homens e as condições de existência de uma determinada época (PESAVENTO, 2005; 2007).

47 Para Pesavento, todo indivíduo, imerso em sua subjetividade, exterioriza suas emoções e afetos, ao ser tocado por determinada experiência e, desta forma, deixa rastros de si, tangíveis, “manifestação exterior de uma experiência íntima, individual e coletiva” (manuscrito figura 4), ou seja, suas marcas de historicidade. O historiador lida, portanto, com a interpretação de uma realidade que vai desde o indivíduo à sensibilidades coletivas, reconstruindo a experiência sensível do acontecido (PESAVENTO, 2005; 2007). Para tanto, precisa se voltar a uma condição básica na tarefa do fazer história: fundamentar sua narrativa nas marcas de historicidade, recorrer a fontes e registros do passado que, organizados e interpretados, constituem-se em provas e legitimam o discurso historiográfico (PESAVENTO, 2007).

48 Em uma de suas primeiras publicações relevantes sobre o tema, no livro “História e História Cultural (2003), ela sistematiza o que encontramos em seus rascunhos e reflexões de arquivo: “é este mundo do sensível que incide justo sobre as formas de valorizar, classificar o mundo ou de reagir diante de determinadas situações e personagens sociais. Em suma, as sensibilidades estão presentes na formulação imaginária do mundo que os homens produzem em todos os tempos. Pensar nas sensibilidades, no caso, é não apenas mergulhar no estudo do indivíduo e da subjetividade, das trajetórias de vida, enfim. É também lidar com a vida privada e com todas as suas nuances e formas de exteriorizar – ou esconder – os sentimentos”. (PESAVENTO, 2003: p .58-9)

Artelogie, 14 | 2019 43

Figura 4 – Pasta 8 “Grupo Sensibilidades”, organizada por Sandra Pesavento. Acervo SJP, caixa 33 A [manuscritos de SJP]. Fotografia 154207, acervo pessoal de Nádia Maria Weber Santos

Figura 5 - Pasta 8 “Grupo Sensibilidades”, organizada por Sandra Pesavento. Acervo SJP, caixa 33 A [manuscritos de SJP]. Fotografia 154840, acervo pessoal de Nádia Maria Weber Santos

49 A noção de “marcas de sensibilidade”, como contraponto indispensável àquela de “traços” ou “marcas de historicidade”, caracteriza-se como aqueles elementos que

Artelogie, 14 | 2019 44

remetem para “fora” de um texto ou de uma narrativa, numa alusão de que a narrativa não é suficiente a ela mesma para expressar dados do passado (SANTOS, 2008). Estas marcas subjetivas (de sensibilidades) concretizam-se em fontes (por exemplo, na literatura, escultura, música, entre outras – Manuscrito Figura 5), deixando registros históricos (marcas de historicidade), “que devem ser traduções exteriores, mesmo que seja de forma cifrada – simbólico, metáfora” (Manuscrito Figura 5).

50 Entre tantas possibilidades de “marcas de historicidade”, a literatura foi um tipo especial de fonte muito trabalhada por Pesavento, pois ela traz a subjetividade e a sensibilidade do passado, daquilo que um dia foi vivido, sentido, percebido de uma outra forma, ou da forma como podia ser naquele momento. Ciente de que este novo olhar é apenas uma versão sobre o passado, o historiador tenta apreender o registro das nuanças das sensibilidades de uma época, seus valores, conceitos, noções sobre a vida dos homens e suas práticas sociais. (SANTOS, 2008)

51 Não é possível colocar aqui, por questão de espaço, as imagens de tantos outros manuscritos em que a pesquisadora trata disto, mas na referida caixa 33 A, que ora citamos e examinamos, há muitos estudos sobre isto. Daremos, assim, um único exemplo, referente ao seu estudo da obra de Florence Lotterie, chamada Littérature et Sensibilité (1998), onde, em sua espécie de resenha, Pesavento escreve: “sensibilidade como aventura da individualidade”, “sensibilidade vem da inteligência, do pensamento, percepção e sensibilidade vem da experiência, sensação e sentimento”. (Pasta 1, Caixa 33 A, itens 17 e 18 fotografados)

52 Para Lotterie (1998), o termo sensibilidade aparece em seu estudo como especificamente ligado à pesquisa das práticas culturais do sentimento como recurso documentar dos arquivos, mas também das artes e da literatura. Nas palavras desta autora, a sensibilidade – palavra ambígua - aparece, ainda, como uma “aventura da individualidade”, que se aplica tanto aos estados afetivos, como aos “sentidos”, enquanto meio de percepção. “Mas sobretudo, a etimologia mantém a flutuação entre o domínio do sensível e o domínio do razoável (razoável enquanto razão humana)". (LOTTERIE, 1998: p.14)

53 Pesavento tem estas reflexões nas bases de suas construções deste campo, usando como método de análise histórica estas categorias levantadas aqui, pensando na literatura como uma espécie de fonte profícua de busca das subjetividades, experiências e marcas de historicidade deixadas por certos atores sociais do passado.

54 Além da literatura, como sinaliza Pesavento no manuscrito da figura 5, variadas fontes (escultura, pintura, música) – e poderíamos acrescentar aqui muitas outras - comparecem como forma de acesso e tradução das sensibilidades de uma dada época, registros de um tempo e materialidades que se dão a ler enquanto testemunhos do sensível.

55 Esta hermenêutica sensível implica ir além das fontes tradicionais, pois abre-se um leque de possibilidades, e, mais que isso, requer do historiador outras formas de trabalho que coadunem com este campo teórico e metodológico. Extraímos algumas proposições e caminhos metodológicos propostos por Pesavento (2005, 2007) que, juntamente com as questões discutidas anteriormente, elucidam as Sensibilidades enquanto método de análise histórica:

Artelogie, 14 | 2019 45

56 a) O historiador das sensibilidades “mais do que estudar os fatos em si, vai tentar ler nas fontes as motivações, sentimentos, emoções e lógicas de agir e pensar de uma época, pois suas perguntas e questões são outras” (PESAVENTO, 2007: p. 19);

57 b) Nesta busca pelas “evidências do sensível” – que traduzem a complexidade da experiência humana do passado, é preciso uma reeducação do olhar, bem como uma espécie de método detetivesco “recolhendo sinais, indícios, tecendo correlações, estabelecendo nexos entre as marcas, preenchendo lacunas e ausências”. Tal como argumenta a autora, uma hermenêutica do olhar se faz necessária (PESAVENTO, 2007: p. 19);

58 c) Do mesmo modo, “o poder interpretativo do olho deve ser estimulado para dar a ver e ler as marcas do passado”. O trabalho do historiador, mediante a articulação entre o texto e o extratexto, seu saber acumulado e sua carga emotiva, consiste “em interpretar sinais, estabelecendo nexos e relações, uma rede de superposição e contraposição dos traços, em relações de analogia, contraste e combinação” (PESAVENTO, 2007: p. 20),

59 d) Para o historiador, a tarefa de recuperar sensibilidades não significa senti-las da mesma forma, a busca “é de tentar explicar como poderia ter sido a experiência sensível de um outro tempo pelos rastros que deixou”. É a capacidade de leitura do pesquisador, apoiado nas fontes, que permite ir “além da lacuna, do vazio, do silêncio” (PESAVENTO, 2003: p. 132).

60 e) “Não há, pois, como deixar de ter em conta aquilo que é próprio da história: o fato de que as respostas construídas sobre o tempo escoado são sempre provisórias, cumulativas, parciais, datadas, prováveis e que o historiador busca tornar, sempre, o mais possível, verossímeis e convincentes. Ao estabelecer os marcos desses filtros do passado, é que a atividade do historiador se constrói como uma tarefa hermenêutica” (PESAVENTO, 2003: p. 133).

61 Ainda tendo como eco a voz de Pesavento, afirmamos, portanto, que as questões aqui apresentadas são reveladoras de que a tradução sensível do passado não se trata de um problema de fonte, antes sim de uma concepção epistemológica, outro modo de compreensão da realidade. Tal tarefa, própria do historiador, e pensada aqui aos moldes de uma hermenêutica das sensibilidades, exige um mergulho profundo na complexidade da experiência humana, uma capacidade interpretativa excepcionalmente fina, uma leitura sensível do tempo.

4 Considerações finais

62 O material que compõe o acervo Sandra Jatahy Pesavento se configura em uma possibilidade de percorrer rastros da História Cultural e das Sensibilidades, entendendo a formação deste campo do conhecimento - conceitos, pressupostos e métodos de análise - e como Sandra Pesavento os incorpora, cria e recria na sua produção historiográfica.

63 A potencialidade do acervo é uma questão a ser pensada e que deve orientar para sua interpretação e para sua divulgação, no hoje e no amanhã: como já dissemos, os escritos da professora assim como as transcrições de fontes, desde sua ‘fase marxista’ e da Revolução Farroupilha, até suas últimas reflexões sobre urbano, sensibilidades, paisagens e imagens, estão amplamente representados na composição deste arquivo pessoal e remetem a muitas possíveis pesquisas, não somente no campo da História

Artelogie, 14 | 2019 46

Cultural, mas em outros, também, como da História do Rio Grande do Sul, um viés econômico, abrindo um leque de possibilidades que permitem entrever o caráter de vitalidade que configura a História e sua produção epistemológica.

64 Tem-se, assim, um campo aberto à transversalidade e à interdisciplinaridade, ao mesmo tempo que um instrumento teórico heurístico para conhecer e problematizar diferentes questões que se entrelaçam e configuram a realidade histórica. Isso revela um constante e vertiginoso movimento da produção investigativa, também congruente com a perspectiva da História Cultural e das Sensibilidades.

65 Pesquisar o acervo pessoal e intelectual Sandra Jatahy Pesavento é, portanto, um caminho para pensar possibilidades e desafios teóricos e metodológicos da História Cultural e das Sensibilidades, colocando em cena novas questões, temas, objetos de pesquisa e fontes, nesta roda dinâmica que é a história e o trabalho do historiador, do pesquisador. É, portanto, um caminho profícuo para investigações e descobertas, um campo dinâmico... sempre aberto a novas reflexões e planos de leitura sobre a realidade, a produção do conhecimento, o pensar e fazer História.

BIBLIOGRAFIA

HEYMANN, Luciana Quillet. De "arquivo pessoal' a "patrimônio nacional": reflexões acerca da produção de " legados". Rio de Janeiro, CPDOC, 2005.

LOTTERIE, Florence. Littérature et sensibilité. Paris, Ellipses, 1998.

PESAVENTO, S. J. Uma outra cidade: o mundo dos excluídos no final do século XIX. São Paulo,Editora Nacional, 2001.

PESAVENTO, S. J. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

PESAVENTO, S. J. Sensibilidades no tempo, tempo das sensibilidades. Revista Nouveaux Mondes/ Mundos Nuevos, Paris, 2004. Disponível em https://journals.openedition.org/nuevomundo/229. Acessado em 14/10/2018.

PESAVENTO, S. J. Sensibilidades: escrita e leitura da alma. PESAVENTO, S. J.; LANGUE, F. (Orgs.). Sensibilidades na história: memórias singulares e identidades sociais. Porto Alegre, Editora da UFRGS, 2007.

PESAVENTO, S. J.; SANTOS, N. M. W.; ROSSINI, M. (Orgs). Narrativas, imagens e práticas sociais: percursos em História Cultural. Porto Alegre, Asterisco, 2008.

PESAVENTO, S. J. Os Sete Pecados da Capital. São Paulo, Hucitec, 2008.

PESAVENTO, S. J. Visões do Cárcere. Porto Alegre, Zouk, 2009.

SANTOS, Nádia Maria Weber. Histórias de vidas ausentes: a tênue fronteira entre a saúde e a doença mental. Passo Fundo, Editora da UPF, 2005. 1 ed. 191p. 2ed revista e ampliada - São Paulo, Edições Verona, 2013.

SANTOS, Nádia Maria Weber. Narrativas da Loucura e Histórias de sensibilidades. Porto Alegre, editora da Universidade, 2008.

Artelogie, 14 | 2019 47

SANTOS, N. M. W. A sensibilidade na vida e obra da historiadora Sandra Pesavento - a questão da interdisciplinaridade, postura crítica e a História Cultural. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais (UFU. Online), v. 6, p. 1-21, 2009. Disponível em: http://www.revistafenix.pro.br/ PDF20/ARTIGO_1_DOSSIE_Nadia_Maria_Weber_dos_Santos_FENIX_JUL_AGO_SET_2009.pdf Acessado em 22/10/2017. Acessado em 09/11/2017.

SANTOS, Nádia Maria Weber. Quando as sensibilidades tomam posição... A obra de Sandra Jatahy Pesavento e sua importância para a historiografia brasileira. In: LEENHARDT, J. (et al.) História Cultural da cidade: homenagem à Sandra Jatahy Pesavento. Porto Alegre, Marca/Visual, PROPUR, 2015. p. 271-296.

SANTOS, N. M. W. Constituição e organização do acervo Sandra Jatahy Pesavento no IHGRGS. Anais do III Seminário Internacional de História do Tempo Presente. UDESC, outubro, 2017. Florianópolis. Disponível em: http://eventos.udesc.br/ocs/index.php/STPII/IIISIHTP/paper/ viewFile/585/472 Acessado em: 09/11/2017.

SANTOS, Nádia Maria Weber; MEIRELES, Maximiano Martins de Meireles. Rastros da História Cultural e das Sensibilidades: o acervo Sandra Jatahy Pesavento e sua produção historiográfica, Bilros, Fortaleza, v. 5, n. 10, p. 11-32, set.-dez., 2017. Seção Dossiê Temático.

VIDAL, Laurent. Acervos pessoais e memória coletiva – alguns elementos para a reflexão. Patrimônio e Memória. UNESP – FCLAs – CEDAP, v.3, n.1, 2007.

NOTAS DE FIM

1. Para mais informações consultar o site http://www.ihgrgs.org.br . 2. O acervo está apresentado e descrito no site do IHGRGS http://www.ihgrgs.org.br/ , no seguinte caminho, havendo online o inventário provisório das caixas, pastas suspensas e gavetas: http://www.ihgrgs.org.br/ - IHG digital – Arquivo online – Acervo Sandra Jatahy Pesavento 2017. 3. As obras digitalizadas da autora encontram-se no seguinte link do site do IHGRGS: http:// ihgrgs.org.br/#SandraPesavento . Acessado em 25/09/2018. 4. Disponível em http://sandrapesavento.org/ Acessado em 25/09/2018. 5. Para uma visão completa de sua produção, ver seu Lattes, na Plataforma do CNPQ, no endereço http://lattes.cnpq.br/1760145213009265 . 6. Cada uma destas pastas 1 e 8, pertencentes à Caixa 33 A do Acervo SJP, contém um número grande de documentos (Pasta 1 “Sensibilidades” – 104 itens, Pasta 8 “Grupo Sensibilidades”– 111 itens), entre escritos à mão e digitados em computador, organizados pela própria Pesavento. Nesta seção serão incluídas imagens de alguns destes documentos, apenas, para fins de ilustração, e de alguns outros para mostrar ao leitor, também, alguns de seus conteúdos, que serão discutidos no texto, a fim de que ele descortine, por si mesmo, a importância de tais documentos. Devido ao escopo e extensão do artigo não será trabalhado um número grande de documentos das referidas pastas. 7. Sensibilidades no tempo, tempo das sensibilidades. Revista Nouveaux Mondes/Mundos Nuevos, Paris, 2004. Disponível em https://journals.openedition.org/nuevomundo/229. Acessado em 14/10/2018.

Artelogie, 14 | 2019 48

RESUMOS

O texto discute o lugar, a importância e os conteúdos específicos da temática das Sensibilidades na obra da historiadora Sandra Jatahy Pesavento, a partir dos documentos de seu arquivo pessoal, depositado no Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul desde final de 2014. O material completo do Acervo Sandra Jatahy Pesavento tem em torno de 114 metros lineares e, dentre os diversos focos de conteúdos, que perpassam as várias fases da historiadora e pesquisadora da UFRGS, atemo-nos aos manuscritos sobre Sensibilidades, uma vez que Pesavento foi uma das pioneiras na historiografia brasileira neste campo teórico. Discute-se algumas possibilidades de investigação no acervo, tendo no horizonte as Sensibilidades enquanto campo teórico e método de análise histórica.

Le texte traite de la place, de l'importance et du contenu spécifique du thème "Sensibilités" dans les travaux de l'historienne Sandra Jatahy Pesavento, à partir de ses documents personnels, déposés à l'Institut d'histoire et de géographie du Rio Grande do Sul depuis fin 2014. Le fonds compte environ 114 mètres linéaires de documents. Parmi les différents domaines abordés au cours des différentes phases de son travail à l’UFRGS, nous nous en tiendrons aux manuscrits portant sur le thème «Sensibilités». L’article discute quelques pistes de recherche possibles dans le fonds, gardant l'idée de «Sensibilité» comme horizon théorique et méthodologique d'analyse historique, ce qui fit la singularité de la grande et regrettée historienne Sandra Jatahy Pesavento, pionnière brésilienne dans ce domaine théorique.

ÍNDICE

Palavras-chave: Arquivo pessoal. Sensibilidades. Teoria e Metodologia. Sandra Pesavento. História Cultural. Mots-clés: Archives, sensibilités. théorie et méthodologie.

AUTORES

NÁDIA MARIA WEBER SANTOS

Dra. em História. Professora do PPG em Performances Culturais da UFG (Universidade Federal de Goiás). Autora de vários livros e artigos na área da História Cultural, com ênfase em História da Loucura e da Psiquiatria, Memória Social, Sensibilidades, Arquivos pessoais e Performances Culturais. Destacam-se as obras individuais: Histórias de vidas ausentes: a tênue fronteira entre a saúde e a doença mental (2ª edição ampliada e revista, SP: Edições Verona, 2013); Histórias de sensibilidades e narrativas da Loucura (Porto Alegre, Ed. da Universidade/ UFRGS, 2008)

MAXIMIANO MARTINS DE MEIRELES

UNEB. Dr. em Educação [email protected]

Artelogie, 14 | 2019 49

“Cafetín de Buenos Aires”, uma janela sobre a cidade moderna: solidão e melancolia na experiência do tango dos anos 1930 e 1940

Avelino Romero Pereira

Cafetín de Buenos Aires

De chiquilín te miraba de afuera como a esas cosas que nunca se alcanzan; la ñata contra el vidrio, en un azul de frío, que solo fue después, viviendo, igual al mío... (ROMANO, 2007: 376)

1 Com esses versos, Enrique Santos Discépolo inicia Cafetín de Buenos Aires, tango escrito em 1948, em parceria com o pianista e compositor Mariano Mores, logo gravado na voz de Edmundo Rivero com o acompanhamento da orquestra de Aníbal Troilo. O poema, uma apologia aos cafés da cidade, rememora experiências da juventude e procura traduzir o acolhimento inspirado pelo ambiente fraternal desses mesmos cafés, tão presentes na vida cotidiana da cidade desde meados do século XIX. Qualificando-o “como una escuela de todas las cosas”, Discépolo marca, na trajetória do protagonista de seu tango, essa presença constante do café como espaço privilegiado da sociabilidade do homem porteño: Como una escuela de todas las cosas, ya de muchacho me diste entre asombros: el cigarrillo, la fe en mis sueños y una esperanza de amor. (ROMANO, 2007: 376)

2 Considerando o papel dos cafés nas formas de ócio e sociabilidade desenvolvidas paralelamente ao processo de modernização por que passou a cidade de Buenos Aires entre 1880 e 1930, e citando justamente o tango de Discépolo, Oscar Troncoso o

Artelogie, 14 | 2019 50

compara a um “tratado filosófico”. Registra o autor que o café “fue el mayor consumidor de las horas de los porteños y el lugar donde más gastaron su tiempo libre” (TRONCOSO, 2000: 286). Mas o que se mostra com ênfase na descrição poética de Discépolo é a mirada melancólica que o tanguero lança sobre essa experiência do passado, tão marcante que o poeta compara o acolhimento do café à figura materna: Cómo olvidarte en esta queja, cafetín de Buenos Aires, si sos lo único en la vida que se pareció a mi vieja. (ROMANO, 2007: 376)

3 Ao assumir a própria melancolia como “queixa”, Discépolo faz lembrar a descrição que Freud dá ao comportamento do tipo melancólico, por seu apego obstinado ao passado e pelas recriminações com que se situa desconfortavelmente na vida psíquica e social.1 O sentido melancólico dos versos se completa na referência ao suicídio como opção diante da dor de estar no mundo e também no abandono de si mesmo, indicativo da perda da autoestima: En tu mezcla milagrosa de sabihondos y suicidas yo aprendí filosofía... dados... timba y la poesía cruel de no pensar más en mí. (ROMANO, 2007: 376)

4 Sem pretender aprofundar aqui essas correlações entre tango e melancolia, já abordadas em outros trabalhos (PEREIRA, 2012b e 2014a), remeto o leitor às reflexões conduzidas por Ana Jaramillo em torno do tema. Para a autora, “esa idea fija del melancólico que el tango expresa, es un espacio existencial, temporal, sacralizado por el profano que no resiste la ansiedad ni la tensión de la relatividad y homogeneidad del Mundo” (JARAMILLO, 1995: 115). A melancolia no tango seria assim uma resposta a uma crise histórica, crise de valores, que leva o sujeito a se aferrar a um espaço existencial sacralizado, que o acolha em meio ao relativismo ético. Mas voltando aos versos de Discépolo, insisto ainda na temática da sociabilidade, que me permitirá outras considerações posteriores: Me diste en oro un puñado de amigos que son los mismos que alientan mis horas: José, el de la quimera, Marcial, que aún cree y espera, y el flaco Abel, que se nos fue pero aún me guía. (ROMANO, 2007: 376)

5 Sob esse tom confessional, Discépolo salienta o convite à amizade e à intimidade, nomeando amigos, provavelmente ficcionalizados, que tipificam um mesmo perfil psíquico, haurido em experiências sociais compartilhadas. Ao fazê-lo, aponta um traço muito presente nas construções discursivas em torno da identidade do homem porteño, que é o da amizade como marca de sociabilidade e inserção nos âmbitos coletivos, sobretudo masculinos. A demografia da grande imigração que impactou a sociedade argentina revela, por exemplo, que entre 1881 e 1914 apenas um terço dos imigrantes era constituído de mulheres e 55% desses imigrantes tinham entre 13 e 30 anos, o que implica pensar uma Buenos Aires predominantemente masculina e jovem (CIBOTTI, 2000). Subentende-se daí que a condição imigratória pressupõe uma experiência fortemente ancorada na solidão, vindo a reforçar enormemente o papel dos laços de amizade. Nesse sentido, esses espaços públicos em que podiam desenvolver-se os contatos e as intimidades tornam-se verdadeiras ilhas de afetividade cercadas por

Artelogie, 14 | 2019 51

estranheza e desenraizamento. De fato, para Sandra Gayol, espaços como os cafés eram “enclaves predominantemente masculinos” (GAYOL, 1993: 258) e, no dizer de José Luis Romero, “un café ofrecía compañía y solaz a los muchachones” (ROMERO, 2000a: 15). Comentando o impacto do projeto modernizador sobre a cidade e suas dinâmicas culturais, o historiador vê aí uma “sociedad inestable, puesto que se integraba al calor de los ascensos y descensos de clase, de los triunfos y las frustraciones” (Idem).2

6 As dores da experiência social vêm somar-se às existenciais, contribuindo para uma percepção desencantada do mundo, que termina internalizada nas letras dos tangos. Assim, casa-se o papel social às experiências individualizadas, e os cafés são representados como palcos públicos em que são encenadas as tragédias pessoais. Discépolo conclui então a letra de Cafetín de Buenos Aires, fazendo menção às penas de amor, ao álcool e, novamente, à situação de desânimo. Descreve então um estado de crise que o leva a reiterar o papel do café como espaço testemunhal da experiência vista e vivida: Sobre tus mesas que nunca preguntan lloré una tarde mi primer desengaño, nací a las penas, bebí a mis años, y me entregué sin luchar. (ROMANO, 2007: 376)

7 Esse estado de crise agudamente descrito nessa última estrofe terminaria atraindo a censura do governo Perón sobre o tango de Discépolo, em 1949, pouco depois de sua estreia. Desde o golpe militar de 1930, o tango vinha sendo alvo de uma campanha de “depuração” movida sobretudo por intelectuais conservadores, militares nacionalistas e pela Igreja Católica, que visava a extirpar de suas letras os termos colhidos no lunfardo – como “vieja” por mãe e “timba” por jogo, que aparecem nos versos de Cafetín de Buenos Aires. Além do purismo linguístico, também temas clássicos na poética tanguera, como a prostituição, o álcool, as drogas, o jogo, o crime, eram objetos da censura instalada no rádio em 1930 e reforçada pela nova ditadura militar empoderada em 1943. Embora Perón mantivesse boas relações com os tangueros e inclusive laços de amizade com Discépolo, os versos deste não escapariam do zelo da Secretaría de Prensa y Difusión, vinculada à presidência da república, que o acusou de haver escrito uma canção pessimista, marcada pela fórmula que a encerra: “y me entregué sin luchar”. A condenação realçava a inadaptação dos versos ao tom festivo oficial da “Nueva Argentina” peronista, que aquele órgão de comunicação se encarregava de difundir.3

8 Dado o enorme prestígio de Discépolo no meio cultural de Buenos Aires, a proibição seria a gota d’água que levaria os tangueros, reunidos em torno da Sociedad Argentina de Autores y Compositores de Música (Sadaic), a reagirem, peticionando diretamente a Perón contra a censura que lhes obrigava a reescrever as letras, transformando velhos sucessos em versões insípidas. O presidente recebeu então uma comissão de compositores e poetas e a censura arrefeceu, embora não chegasse a ser abolida por completo nem oficialmente, a não ser alguns anos depois, em 1953, quando uma lei de radiodifusão aprovada pelo legislativo deixaria de mencionar as restrições linguísticas. A reunião com Perón seria noticiada pelo jornal oficialista Noticias Gráficas, que tentava assim atenuar os efeitos da censura e ainda colher louros ao governante, apontando seu encenado apoio ao pleito dos artistas. Entrevistado, Discépolo faria a defesa de seus versos, dizendo que “hay cosas que sólo se puede decir de un modo. Cambien el tono y harán el ridículo, por demasiado solemnes, por excesivamente correctos” (citado por PUJOL, 2006: 355-356). Na sequência, respondeu à crítica de que teria escrito versos

Artelogie, 14 | 2019 52

pessimistas: “pero yo no inventé la realidad que refleja”, e ainda provocou o censor: “¿Cómo me van a negar que muchos porteños sólo han tenido por mucho tiempo al café como meta de sus vidas?” (Idem).

9 Ao contrastar os anos peronistas com o passado, a que os tangos costumeiramente estavam aferrados, Discépolo marcava o que seu mais competente biógrafo chama de “estética del desencanto” (PUJOL, 2006), firmando assim um vínculo irrefutável entre o estilo poético de seus tangos e a percepção de uma crise mais profunda, que ultrapassa os estreitos limites cronológicos dados pela crise de 1929 e o golpe militar de 1930, que deram início à chamada “década infame”.4 Essa percepção de uma crise mais ampla que a sugerida pelo tempo curto teria levado o poeta a escrever em 1934 os conhecidos versos de Cambalache, estreado no ano seguinte, reconhecendo “que el mundo fue y será una porquería”, marcando porém a piora de todas as coisas nesse “siglo veinte cambalache, problemático e febril”. A tradição interpretativa em torno do tango em geral e de Discépolo em particular salienta os vínculos entre sua poética desencantada e a situação social e política argentina dos anos 1930. O poeta, que na juventude partilhara dos ideais anarquistas e depois se aproximaria ao peronismo, é convertido assim num herói popular de uma resistência cultural entrincheirada no tango como forma de protesto contra os abusos cometidos pelos governos oligárquicos: a violência política e cultural, a corrupção, a fraude eleitoral, a dependência ao imperialismo britânico. Escrevendo nos anos 1960, Norberto Galasso dirá, por exemplo, que Cambalache “sintetiza el panorama social de la Argentina y del mundo en ese sombrío año 35” (GALASSO, 2004: 102). E agrega que “sus versos se constituyen en agudo testimonio de la descomposición del régimen oligárquico en nuestro país, al par que significan una descarnada acusación al mundo por la corrupción y decadencia” (Idem). Por sua vez, e de uma forma mais ampla, ao comentar a linguagem da crise no tango daqueles anos, Rosalba Campra (1996) dirá que: El pesimismo vital de los treinta se cargó de un repertorio de metáforas, comparaciones, elecciones léxicas, que fueron canonizadas por los tangos posteriores y entraron a formar parte de un patrimonio colectivo. A esta herencia se recurre cada vez que se trata de expresar la percepción del mundo como espacio de una lucha desigual cuyo resultado está decidido de antemano, la aceptación del fracaso y quizá, esencialmente, el sufrimiento sin lucidez sobre las causas que lo motivan. (CAMPRA, 1996: 36)

10 Sem desmerecer o impacto negativo da experiência conjuntural marcada pelas vicissitudes dos anos 1930, mas levando em conta que Discépolo já experimentara o enfoque crítico em seus primeiros tangos compostos na década de 1920, proponho considerar uma rede de filiações intertextuais, que permitem ampliar o enfoque sobre os tangos, descolando-os do imediato político, para abordá-los a partir da experiência traumática e mais generalizada da modernidade, vivida tanto no contexto argentino quanto europeu.

De El hombre a la defensiva a El hombre que está solo y espera

11 Ao estudar o campo literário argentino entre 1930 e 1943, María Teresa Gramuglio (2001) adota uma perspectiva crítica em relação às representações da crise dos anos 1930. Observa que o “sentimiento generalizado de catástrofe” entre a intelectualidade da década de 1930 não é uma especificidade argentina, e que “tener en cuenta este

Artelogie, 14 | 2019 53

panorama ayudaría a destrabar una visión excesivamente ensimismada en las desventuras locales” (GRAMUGLIO, 2001: 336). A intenção da autora é “cuestionar ese mecanismo que traslada rectamente las evaluaciones de la esfera política a la literaria”, o que “implica además admitir que no existe una sincronía absoluta entre los fenómenos político-sociales y la evolución de los procesos culturales y literarios” (Idem: 337). Gramuglio critica ainda a tendência a invocar palavras recorrentes nos títulos de obras do período, como “soledad”, “silencio”, “infamia”, sem a análise dos textos.5

12 É o caso do famoso ensaio de Raúl Scalabrini Ortiz, El hombre que está solo y espera, que, uma vez associado à “década infame”, será sempre lembrado como o retrato daquela experiência social. Lançado em 1931, esgotaram-se quatro edições em apenas quatro meses. Segundo Gramuglio, porém, a sensibilidade que o livro expressa, ligada ao otimismo das vanguardas literárias dos anos 1920, seria “bastante menos lúgubre de lo que su título parece sugerir” (Idem: 337). Para Gramuglio, “más que un resultado de la desazón provocada por la crisis económica”, o ensaio “es una respuesta amable a ciertas imágenes críticas de la Argentina y de los argentinos elaboradas por algunos viajeros europeos”, nomeando em particular a El hombre a la defensiva, ensaio publicado por Ortega y Gasset em 1929 (Idem: 337).6

13 Seguindo a sugestão da autora, se analisamos o texto do filósofo espanhol, algumas aproximações são bem perceptíveis: Ortega y Gasset pretende “penetrar en el alma individual del hombre argentino”, e reforça: “conste – del hombre”, excluindo a mulher (ORTEGA Y GASSET, 1929: 222). O título, El hombre a la defensiva, explica-se pela forma negativa com que seu autor avalia o meio intelectual argentino, no qual, segundo ele, predomina a incompetência, disfarçada na firmeza com que se defende a posição social ou a função pública desempenhada. Criticando uma suposta vaidade e retraimento do argentino, diz: “siento no conocer bien la zona secreta de las relaciones eróticas en la Argentina, porque fuera ese territorio delicadísimo el lugar más a propósito para confirmar o desechar mi diagnóstico” (Idem: 247). E indaga, dando o mote que seria seguido por Scalabrini Ortiz: ¿Es el argentino un buen amador? ¿Tiene vocación de amar? ¿Sabe enajenarse? ¿O, por el contrario, más que amar él se complace en verse amado, buscando así en el suceso erótico una ocasión más para entusiasmarse consigo mismo? (Idem: 247)

14 Entendo portanto que a menção a “el hombre” no título do ensaio de Scalabrini Ortiz, e também no arquétipo que ele nomeia no livro – “El Hombre de Corrientes y Esmeralda” –, somado à ênfase que dá ao comportamento sexual do porteño, confirmam a intenção de responder ou de se desviar de algumas indagações e conclusões de Ortega y Gasset. E entendo ainda que tudo isso é mais claro ainda pelo fato de o autor eleger o comportamento do porteño frente ao tango como parâmetro descritivo. Naquele que é talvez o capítulo mais importante do livro, intitulado “El Hombre de Corrientes y Esmeralda”, Scalabrini diz: “me dilaté en la nada fatua sino imprescindible creación de un hombre arquetipo de Buenos Aires: el Hombre de Corrientes y Esmeralda”, descrito como “polo magnético de la sexualidad porteña”, que “es, además, el protagonista de una novela planeada por mí, que ojalá alguna vez alcance el mérito de no haber sido publicada”, mas que servirá de “instrumento que permitirá hincar la viva carne de los hechos actuales, y en la vivisección descubrir ese espíritu de la tierra que anhelosamente busco” (SCALABRINI ORTIZ, 2007: 50). Essa oscilação entre um ensaio e uma novela e ao fim o caráter algo mitológico com que elabora seu texto dão conta de um irracionalismo que será objeto da mencionada análise de Gramuglio, e também das considerações de Sarlo, Cattaruzza e Rodríguez, e Naomi Lindstrom, que associa o texto

Artelogie, 14 | 2019 54

ao “postulado vanguardista que define la vida misma como un fenómeno desordenado incompatible con el análisis riguroso” (LINDSTROM, 1985: 196). Scalabrini dirá ainda: El Hombre de Corrientes y Esmeralda es hombre de improvisaciones y no de planes, es un hombre fiado en la certeza del instinto, en sus intuiciones, sus presentimientos. En una palabra: es el hombre del ‘pálpito’. El Hombre de Corrientes y Esmeralda no reflexiona. Ignora ese escalonamiento de la cordura que es la deliberación. [...] El porteño no piensa, siente. Siento, luego existo, es un aforismo más apropiado que el cartesiano. (SCALABRINI ORTIZ, 2007: 82)7

15 Para Gramuglio, “Scalabrini introdujo en su ensayo un tópico que iba a ser clásico del nacionalismo populista: el antiintelectualismo” (GRAMUGLIO, 2001: 349). A crítica de Scalabrini aos intelectuais é, no meu entender, mais um ponto de articulação entre seu texto e o de Ortega y Gasset. Em 1929, o filósofo espanhol lamentava que no país “haya faltado una minoría enérgica que suscite una nueva moral en la sociedad, llame al argentino a si mismo, a su efectiva intimidad y sinceridad [...], le fuerce a vivir verdaderamente” (ORTEGA y GASSET, 1929: 257).8 Aliando irracionalismo e antiintelectualismo, o próprio Scalabrini responderá à crítica, censurando a “inteligencia conceptual, que se nutre de libros, de teorías y no de sensaciones”, que “no escolta el espíritu de la tierra” (SCALABRINI ORTIZ, 2007: 83), e que “por eso el Hombre de Corrientes y Esmeralda se reconoce más en las letras de tango, en sus jirones de pensamiento, en su hurañía, en la poquedad de su empirismo”, que o autor contrapõe aos “fatuos ensayos o novelas o poemas que interfolian la antepenúltima novedad francesa, inglesa o rusa” (Idem: 87).9

16 O próprio Scalabrini Ortiz acabará desempenhando simbolicamente o papel daquela minoria enérgica a que se referia Ortega y Gasset, capaz de chamar o argentino a si mesmo. Rapidamente, ele será convertido em um “intérprete da alma nacional”.10 E não só ele, também Enrique Santos Discépolo, sobretudo à força dos embates políticos da década de 1960, será associado ao ensaísta e ainda receberá o epíteto de “filósofo callejero”, por contraposição ao intelectualismo atribuído a Jorge Luis Borges. A oposição entre o escritor e o tanguero será reiteradamente apontada na biografia de Discépolo publicada por Norberto Galasso em 1967 (GALASSO, 2004). Por sua vez, Horacio Ferrer e Luis Sierra, em outra biografia do poeta, de 1965, levarão ao título de seu livro o próprio arquétipo criado por Scalabrini Ortiz: Discepolín: poeta del hombre que está solo y espera (2004). Além disso, em seu livro de estreia, publicado em 1967, Ferrer, ele próprio poeta além de estudioso do tango e que seria depois autor de diversos tangos compostos em parceria com Piazzolla, retomaria outra vez o diálogo com o ensaio de Scalabrini, num poema intitulado “Solo y espera”, que conclui entre o melancólico e o grotesco: Y, al fondo a la derecha de la gente, mi taza de café era una letrina donde flotaba yo, grotescamente. (FERRER, 1999: 63)

17 Seguramente, essas associações não têm nenhuma gratuidade. Assim como o poema de Ferrer, os versos de Cafetín de Buenos Aires de Discépolo podem ser interpretados numa relação intertextual com o ensaio de Scalabrini Ortiz. A releitura de Discépolo é provavelmente uma interpretação bastante fiel do mito criado em torno daquele “Hombre de Corrientes y Esmeralda”, “que está solo y espera”. O ensaísta situara seu personagem igualmente arquetípico para a identidade porteña num café de Buenos Aires, onde a amizade é exaltada como um valor oposto aos contravalores da modernidade: “allí está con un camarada en el fortín de la amistad” (SCALABRINI

Artelogie, 14 | 2019 55

ORTIZ, 2007: 115). E Discépolo replica: “me diste en oro un puñado de amigos / que son los mismos que alientan mis horas” (ROMANO, 2007: 376).

18 Scalabrini ressalta ainda o caráter acolhedor do café como uma proteção ante as vicissitudes e ameaças da vida na grande cidade: “allí está seguro [...]. Fuera del reducto amistoso, la vida dañina ralea la dignidad y el número de los hombres, pero allí dentro es inofensiva” (SCALABRINI ORTIZ, 2007: 116). De forma análoga, como vimos, Discépolo associa o acolhimento desse “reducto amistoso” ao aconchego materno: “sos lo único en la vida / que se pareció a mi vieja” (ROMANO, 2007: 376). Com a prolixidade da prosa literária e mitogenética, Scalabrini pinta a cena: El café rebosa... las mujeres están excluidas de esa grey. Son hombres que hablan poco y en voz baja, como si bisbisearan un rezongo. Suena un tango, la densidade del silencio se intensifica. Cesan los rumores y los ruidos. Todos callan. El café es un templo de atrición. Los hombres encorvan ligeramente sus testas y distraen sus ojos en el borde de la taza en que desprenden la ceniza de los cigarrillos. Meditan. Están ensimismados. Hurgan sus días irreconciliablemente distanciados de la realidade. Divagan. En su fantasía moldean sus vidas como una miga de pan. La desunen, la reconstruyen, la llenan de perspectivas. Son artistas sin otras materias plásticas que sus propias existencias. Sueñan. Es una decepción más que se infiltra en suas ánimos cuando el tango termina, los ojos cansados tienen rastros de un desgano que conoció la aventura. (SCALABRINI ORTIZ, 2007: 73)

19 E Discépolo ecoa, com a concisão poética dos versos: Sobre tus mesas que nunca preguntan lloré una tarde el primer desengaño, nací a las penas, bebí a mis años y me entregué sin luchar. (ROMANO, 2007: 376)

20 Longe de serem apenas coincidências, essas retomadas sucessivas dos temas e situações revelam um jogo de apropriações e reiterações, que contribuem para moldar ou reforçar uma sensibilidade haurida na experiência histórica, mas construída sobre um aparato discursivo que implica escolhas com um certo grau de invenção e intenção, e que terminam por confirmar uma representação identitária que atribui ao argentino ou ao menos ao porteño traços de um caráter definido pela melancolia e pelo pessimismo ante a realidade social. Obviamente que a sociabilidade construída em torno dos cafés poderia indicar outro modo de estar no mundo e o descrever, menos afeito ao negativismo e conforme a uma possível alegria de compartilhar o tempo livre. Mas trata-se mesmo de uma eleição e de uma obsessão, em que os sujeitos reforçam os traços mais lúgubres da experiência, resultando nessa ficcionalização quase caricatural do real. Mas observo que essas escolhas cumprem uma espécie de programa ou função política, ao dotar as identidades aí construídas de um tom de protesto, reivindicatório, que encontrará canalização em diferentes culturas políticas, como a radical em um primeiro momento e a peronista em seguida.

A cidade, a multidão e o choque

21 Como um tango nunca vem sozinho, a mesma estética do desencanto válida para a análise dos tangos de Discépolo pode ser lida nos versos de outro poeta tanguero, Homero Manzi, que em Discepolín, escrito em 1951, em homenagem ao autor do Cafetín de Buenos Aires, soube captar a essência do que o poeta exterioriza em seus versos, e propor um diálogo com seus temas: “conozco de tu largo aburrimento / y comprendo lo

Artelogie, 14 | 2019 56

que cuesta ser feliz” (ROMANO, 2007: 400). Por trás da aparência de um drama excessivamente personalista, Manzi sublinha o encontro do poeta com o meio social: “te duele como propia la cicatriz ajena; / aquél no tuvo suerte, y ésta no tuvo amor”. Não falta a esses versos a referência ao onipresente café, em cujas mesas com tampo de mármore, o poeta, boêmio, contempla, tresnoitado, a passagem do tempo, como a marcar o ritmo frenético de um mundo que segue seu curso, sem se importar com a dor alheia: Sobre el mármol helado, migas de medialuna y una mujer absurda que come en un rincón; tu musa está sangrando y ella se desayuna: el alba no perdona, no tiene corazón. (ROMANO, 2007: 400)

22 Em 1943, antes da composição de Cafetín de Buenos Aires, Manzi já tocara o tema do café como locus de onde o poeta contempla simultaneamente o tempo presente da cidade modernizada e o tempo passado de suas lembranças particulares. Em Mi taza de café, com música de Alfredo Malerba, o autor chega a questionar seu “inútil pesimismo, deseo de estar triste” e o próprio sentimento melancólico, que insiste em revolver o passado, com sua “manía de andar siempre pensando en el ayer”. Assim como em Cafetín de Buenos Aires e em Discepolín, é o café a grande janela aberta sobre a cidade e a existência: La tarde está muriendo detrás de la vidriera y pienso mientras tomo mi taza de café. Desfilan los recuerdos, los triunfos y las penas, las luces y las sombras del tiempo que se fue. La calle está vacía, igual que mi destino, amigos y cariños, barajas del ayer. Fantasmas de la vida, mentiras del camino que evoco mientras tomo mi taza de café. (ROMANO, 2007: 322)

23 A experiência urbana, da solidão em meio à grande cidade, que muitos tangos traduzem, pode ser aproximada de outras considerações também de Ortega y Gasset. Em sua visita de 1928 ao país, o filósofo abordou o tema que conduziria a seu conhecido ensaio A rebelião das massas. Embora só publicado na forma de livro posteriormente, muitas das ideias ali expressas deixariam uma forte marca sobre a intelectualidade argentina. Ortega y Gasset parte da mesma constatação que muitos intelectuais argentinos já haviam feito no final do século anterior: a emergência das massas, das multidões, que, “agora, de repente, aparecem sob a forma de aglomeração”, e que levam o filósofo a abordar o fenômeno como uma experiência antes de tudo visual: “nossos olhos vêem multidões por toda parte” (ORTEGA Y GASSET, 2007: 43). Assustado por essas massas urbanas que “se tornaram indóceis diante das minorias” (Idem: 52), o filósofo enuncia uma crise que propõe mais interrogações do que certezas: Rechaço pois, igualmente, qualquer interpretação de nosso tempo que não considere a significação positiva oculta sob o atual império das massas, bem como as que o aceitam pacificamente, sem estremecer de espanto. Todo destino é, no fundo, dramático e trágico. Quem não sentiu o perigo do tempo palpitar em suas mãos não chegou às entranhas do destino, não fez mais que tocar sua mórbida face. No nosso, o ingrediente terrível é colocado pela avassaladora e violenta sublevação moral das massas, imponente, indomável e equívoca como todo destino. Aonde nos leva? É um mal absoluto, ou um bem possível? Aí está, colossal, instalada em nosso tempo como um gigante, signo cósmico de interrogação, que tem sempre uma forma equívoca que lembra, de fato, uma guilhotina ou uma forca, mas também um possível arco triunfal. (Idem: 51-52)

Artelogie, 14 | 2019 57

24 Sem perder de vista a experiência argentina, é possível religar todas essas percepções a outras, mais amplas. O mote é dado pela metáfora que empreguei, ao comentar o tango de Manzi, Mi taza de café: o café como janela aberta sobre a cidade e através da qual o poeta a contempla, e comenta as experiências pessoais e coletivas. Essa percepção remete diretamente a um diálogo com alguns temas da lírica de Charles Baudelaire já explorados por Walter Benjamin e por Marshall Berman: a cidade, a multidão, a boêmia, a flânerie, o choque, a melancolia, a própria modernidade. Analisando a inserção de Baudelaire na modernidade, Benjamin elabora seu estudo sobre o poeta a partir da investigação quanto ao modo pelo qual “a poesia lírica poderia estar fundamentada em uma experiência, para a qual o choque se tornou norma” (BENJAMIN, 1994: 110). O crítico alemão concluirá vendo As Flores do Mal como “a última obra lírica a exercer influência no âmbito europeu”, reconhecendo que ao mesmo tempo seus temas “colocam em questão a possibilidade mesma de uma poesia lírica” (Idem: 143). O choque a que se refere Benjamin é a própria experiência, vivida de forma traumática, de abrir seu caminho na multidão. O poeta entretanto parecia oscilar entre uma avaliação positiva e outra pessimista diante das transformações.

25 Em seu ensaio sobre o desenhista, aquarelista e gravador Constantin Guys, escrito em 1859-60 e intitulado O pintor da vida moderna, Baudelaire remete ao “quadro” escrito por Edgar Allan Poe, O homem da multidão, extraindo daí algumas valiosas sugestões para o entendimento da vida moderna e do olhar que se dedica a expressá-la: Atrás das vidraças de um café, um convalescente, contemplando com prazer a multidão, mistura-se mentalmente a todos os pensamentos que se agitam à sua volta. Resgatado há pouco das sombras da morte, ele aspira com deleite todos os indícios e eflúvios da vida; como estava prestes a tudo esquecer, lembra-se e quer ardentemente lembrar-se de tudo. Finalmente, precipita-se no meio da multidão à procura de um desconhecido cuja fisionomia, apenas vislumbrada, fascinou-o num relance. A curiosidade transformou-se numa paixão fatal, irresistível! (BAUDELAIRE, 2004: 18)

26 Como retratará Manzi em seu tango, o café é a janela que se abre sobre a cidade moderna e sua multidão de seres em movimento. Porém, ao contrário de Poe, Baudelaire e Ortega y Gasset, Manzi esvaziará as ruas, substituindo o desfile de todas as coisas dadas à contemplação pelo desfile das recordações mais íntimas, e a fantasmagoria dos passantes urbanos pelos “fantasmas de la vida”. Ensimesmado e cego ao que se dá à sua volta, Manzi parece tocado pelo spleen, pela melancolia, pelo tédio, que alimentam a introspecção, mais do que pela contemplação do palpitar da vida lá fora. “Multidão, solidão: termos iguais e conversíveis pelo poeta ativo e fecundo”, dirá Baudelaire em um de seus poemas em prosa, intitulado justamente As multidões (BAUDELAIRE, 2006: 67).

27 Mas para o poeta, o que marca o pintor da vida moderna, como um modelo valorizado, e de fato assumido em sua própria obra poética, é a capacidade de se entregar a esse estado de convalescença, que funcionaria como uma volta à infância, na qual tudo é visto como novidade, numa embriaguez dos sentidos, para a qual nenhum aspecto da vida é indiferente. Baudelaire chega a caracterizá-lo como um filósofo, mas descarta essa imagem, preferindo a de “puro moralista pitoresco”. Na sequência de personagens que evoca para tentar qualificá-lo, contrasta à insensibilidade do dandy, entediado e desinteressado em meio às multidões, a entrega do flâneur, cuja paixão e profissão é “épouser la foule”, isto é, desposar a multidão:

Artelogie, 14 | 2019 58

"Para o perfeito flâneur, para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito. Estar fora de casa, e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto no mundo, eis alguns dos pequenos prazeres desses espíritos independentes, apaixonados, imparciais, que a linguagem não pode definir senão toscamente. O observador é um príncipe que frui por toda parte do fato de estar incógnito. [...] Pode-se igualmente compará-lo a um espelho tão imenso quanto essa multidão; a um caleidoscópio dotado de consciência, que, a cada um de seus movimentos, representa a vida múltipla e o encanto cambiante de todos os elementos da vida.” (BAUDELAIRE, 2004: 21)

28 Como salienta Marshall Berman, para Baudelaire, “uma arte que não se disponha a épouser as vidas de homens e mulheres na multidão não merecerá ser chamada propriamente de arte moderna” (BERMAN, 1987: 142). Por isso, entregue à contemplação das tardes ensolaradas e da iluminação artificial das noites, o pintor “será o último a partir de qualquer lugar onde possa resplandecer a luz, ressoar a poesia, fervilhar a vida, vibrar a música”, para enfim recolher-se, “à hora em que os outros estão dormindo”, e curvar-se sobre sua mesa, “lançando sobre uma folha de papel o mesmo olhar que há pouco dirigia às coisas” (BAUDELAIRE, 2004: 23). Assim é que a percepção infantil, ingênua, retemperada pelo espírito analítico da genialidade, dará origem então à obra de arte moderna. Por sua vez, as referências à luz, à poesia, à música, justapostas por Baudelaire sinestesicamente à vida, indicam de que matéria será feita sua própria poesia.

29 A necessidade dessa entrega do artista ao mundo das coisas exteriores será o que marcará os poemas em prosa, escritos na década de 1860, e que Baudelaire pretendia publicar sob o título Spleen de Paris, e efetivamente publicados em 1868, um ano após sua morte. Nestes, o poeta propõe “uma prosa poética, musical, sem ritmo e sem rimas”, maleável e adaptável aos movimentos líricos da alma, um ideal, segundo ele, nascido da “frequentação das enormes cidades e do crescimento de suas inumeráveis relações” (BAUDELAIRE, 2006: 17). Berman salienta a peculiaridade de esses poemas não se apresentarem na forma estabelecida de versos, mas como prosa, “no formato das notícias” (BERMAN, 1987: 144), numa aproximação já sinalizada por Benjamin a esses importantes fatores de transformação da narrativa e da percepção do mundo moderno, que são a imprensa e o folhetim. Uma chave de leitura para a produção de Baudelaire estaria, segundo Berman, no processo de modernização por que passa Paris no II Império:

30 Enquanto trabalhava em Paris, a tarefa de modernização da cidade seguia seu curso, lado a lado com ele, sobre sua cabeça e sob seus pés. Ele pôde ver-se não só como um espectador, mas como participante e protagonista dessa tarefa em curso; seus escritos parisienses expressam o drama e o trauma aí implicados. Baudelaire nos mostra algo que nenhum escritor pôde ver com tanta clareza: como a modernização da cidade simultaneamente inspira e força a modernização da alma dos seus cidadãos. (BERMAN, 1987: 143)

31 Num dos poemas destacados por Berman, Os olhos dos pobres, um idílio amoroso é atravessado pela questão social. Um casal enamorado anseia pela comunhão de sentimentos na troca muda dos olhares. O ambiente escolhido por Baudelaire para situar esse idílio na atmosfera moderna da cidade em transformação é precisamente “um café novo, na esquina de um boulevard também novo, ainda cheio de cascalhos, mas já mostrando gloriosamente seus esplendores inacabados” (BAUDELAIRE, 2006:

Artelogie, 14 | 2019 59

147). Desde já o café e o boulevard serão os ícones dessa modernidade parisiense, emulada por tantas cidades pelo mundo afora. Mas a cidade moderna não será apenas beleza e êxtase contemplativo. Diante do olhar admirado de um pai acompanhado dos dois filhos, todos vestidos em farrapos, o narrador se revela compadecido pela visão da pobreza em contraste com o luxo desses novos equipamentos com que se ia revestindo a cidade moderna: “não somente eu estava enternecido por esta família de olhos, como me sentia envergonhado por nossos copos e nossas garrafas, maiores que nossa sede” (BAUDELAIRE, 2006: 149). O espetáculo da pobreza termina interrompendo o idílio do casal, quando o narrador constata que a seu enternecimento se contrapõe a repulsa da companheira.

32 Mesmo antes dessas transformações urbanas, que expõem à vista tanto a beleza quanto as contradições da modernidade, a lírica de Baudelaire, embora conservasse a forma clássica de metro e rima, recorrendo constantemente ao soneto, já era portadora de signos novos, perceptíveis no vocabulário, nos temas e nos personagens. No conteúdo de sua poesia, poderíamos dizer. Observando que o poeta não descreve nem a população, nem a cidade, optando antes por “evocar uma na imagem da outra”, Benjamin é levado a afirmar que “sua multidão é sempre a da cidade grande; a sua Paris é invariavelmente superpovoada” (BENJAMIN, 1994: 116). Partindo de Benjamin e em complemento a suas análises, Berman sublinha em Spleen de Paris o que chama de “cenas modernas primordiais”, isto é, experiências que brotam da vida cotidiana da Paris de Bonaparte e Haussmann, porém “impregnadas de uma ressonância e uma profundidade míticas que as impelem para além de seu tempo e lugar, transformando- as em arquétipos da vida moderna” (BERMAN, 1987: 144).

33 Perda da auréola é um dos poemas em prosa de Baudelaire (2006: 252-255), em que Berman (1987: 150-159) vê uma situação arquetípica para a modernidade. Um poeta, lançando-se à aventura de atravessar o boulevard em meio à profusão de carros e cavalos que o cortam em disparada, deixa cair sua auréola sobre a lama do macadame. Em vez de se abaixar para apanhá-la, deixa-a ficar e aproveita que agora é um poeta incógnito na multidão dos homens comuns, para meter-se em algum lugar sórdido, possivelmente um bordel, que a recatada poesia não costumava acessar. (A prostituição aliás é um tema caro à poesia de Baudelaire, como será para os tangueros argentinos.) Remeto a Benjamin e a Berman para as interpretações que vêem aí aproximações entre Baudelaire e Marx, quanto à dessacralização do mundo promovida pela burguesia, sob o império da qual, tudo é transformado em mercadoria.

34 Mas o que também me chama a atenção no poema, para os fins aqui propostos, é essa aproximação que Baudelaire propõe entre a poesia e a lama, “la fange du macadam”. O termo francês, como demonstra Berman (1987: 155), associado à ideia de lama, lodo, mas também de baixeza, corrupção, degradação, cairá como uma luva na poética tanguera. Importado do italiano e incorporado ao vocabulário lunfardo, acusado este pelos puristas de ser a degradação da língua espanhola culta, tomará a forma fango, tão apropriadamente apto a rimar com tango, como nos precursores versos que Pascual Contursi escreveu em 1917 em Flor de fango: Fuiste papusa del fango y las delicias de un tango te espiantaron del bulín; los amigos te engrupieron y ellos mismos te perdieron noche a noche en el festín. (ROMANO, 2007: 32)

Artelogie, 14 | 2019 60

35 A descrição da trajetória decadente da jovem suburbana entregue aos luxos e prazeres, que a levam à prostituição e ao abandono final, marca o tema clássico desenhado entre a denúncia moral e o protesto social pela situação de vulnerabilidade em que se encontravam tantas jovens pobres, filhas de trabalhadores, sobretudo imigrantes.11 Esta é mais uma das facetas com que os autores de tango-canción expressam o descontentamento com as contradições inerentes ao processo modernizador. Outra é a alteração da própria paisagem, que aos poucos incorpora ao território urbano em expansão bairros fronteiriços entre a cidade e o campo. Homero Manzi será o grande cantor dessa nostalgia pelos antigos bairros, como em Barrio de Tango, de 1942: Barrio de tango, luna y misterio, calles lejanas, ¡cómo estarán! [...] Así evoco tus noches, barrio de tango, con las chatas entrando al corralón y la luna chapaleando sobre el fango y a lo lejos la voz del bandoneón. (ROMANO, 2007: 318)

36 Porém, na transposição operada pelos poetas tangueros, o fango não será o do moderno macadame de que fala Baudelaire, mas a lama dos bairros pobres e operários, mais distantes do centro, inundáveis pela cercania das águas do Riachuelo. A rima, no caso, presta-se a lembrar ao ouvinte uma origem popular do tango, refratária ao aristocratismo das oligarquias, cuja intervenção no espaço urbano propicia alguma mobilidade ascendente, mas não elimina as contradições, que, evidentemente se acirrarão com a crise de 1929-30.

37 São algumas das formas arquetípicas da poesia lírica de Baudelaire que me parecem penetrar o mundo do tango-canción, desenvolvido a partir da década de 1920, e que terá em Discépolo e Manzi dois de seus mais significativos autores. O impacto da experiência modernizadora vivida por Baudelaire na Paris do século XIX pode ser visto transposto à Buenos Aires das primeiras décadas do século seguinte. Nos tangos, os narradores mostram-se também observadores dos efeitos da modernização, mas o estímulo que esta propicia leva-os a lamentar uma espécie de paraíso perdido, arrancado ao seio à força da remodelação da paisagem. Nos tangos, o desamparo, a denúncia, a queixa, disfarçados sob a capa do desencontro amoroso, estarão contidos numa reflexão metafísica sobre o tempo que passa inexorável ou numa carga moralizante com que é condenada a modernização. Como um flâneur bonaerense, o autor de tangos percorre as ruas de sua cidade, registrando as impressões que logo serão transpostas aos versos da nova canção de sucesso, descrevendo tipos, ambientes e situações. Como um dandy, entediado, pode também alienar-se de tudo à sua volta e fechar-se em ruminações íntimas sobre seu desconforto pessoal.

38 Na aceleração da vertigem modernizadora trazida pelo século XX, o disco e o rádio cumprirão a tarefa de amplificar as vozes desses poetas, ao encontro de um público que, a partir delas, parece construir uma nova identidade em conjunção com a cidade moderna. Estamos agora diante de um tema não só baudelairiano, mas também benjaminiano, o da perda da auréola em Baudelaire, perda da aura em Benjamin. Produzido em escala mercantil e viabilizado pelas modernas técnicas industriais de reprodução e difusão, o tango-canción é mercadoria, música de consumo, de entretenimento e de fruição, mas também veículo para o protesto e para a construção de identidades sociais. Além disso, é também uma forma de poesia “popular”, formada na confluência entre a tradição lírica e a dramática, em diálogo com várias referências e

Artelogie, 14 | 2019 61

poéticas que foram apropriadas por seus autores, reconhecíveis ou não por seu público consumidor e fruidor. Vale lembrar que Discépolo chegou ao tango pelo teatro, e pelo grotesco como gênero, e o citado Homero Manzi atuou nos anos 1920 como professor de Língua e Literatura.

39 Sem dúvida, muitos dos temas baudelairianos, entendidos como os arquétipos a que se refere Berman, reaparecem no desenvolvimento do tango-canción, que procuro entender aqui como outra tentativa de perpetuação da lírica em meio à modernidade. À diferença do poeta francês, que oscila entre um negativismo crítico e um otimismo, seus autores assumiram preferencialmente em seus versos um enfoque pessimista, testemunhando as fortes tensões sociais vivenciadas como a contraface da modernidade. Muitos, como Discépolo e Manzi, eram filhos de imigrantes que tinham vivido as vicissitudes da modernização acelerada por que passara Buenos Aires desde o fim do século, e trouxeram a dureza dessas experiências sociais para a poética tanguera. Reforçada pela crise dos anos 30, essa percepção terminaria assumindo um viés fortemente identitário e reivindicativo de uma condição social subalterna ante uma conformação social que lhes parecia sempre injusta. Assim, se por um lado podiam ressoar modelos poéticos e as formulações dos ensaios explicativos, também reelaboravam seus temas, dotando-os de um viés fortemente político que lhes convinha como ferramenta de ação.

BIBLIOGRAFIA

BAUDELAIRE Charles, As flores do mal. Tradução de Ivan Junqueira, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2012. (Edição Bilíngue.)

BAUDELAIRE Charles, Oeuvres complètes, Paris, Seuil, 1968.

BAUDELAIRE Charles, Pequenos poemas em prosa. Tradução de Gilson Maurity, Rio de Janeiro, São Paulo, Record, 2006. (Edição Bilíngue)

BAUDELAIRE Charles, Sobre a modernidade. 4. ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2004.

BENJAMIN Walter, Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. 3. ed. Obras escolhidas. Volume III. Tradução de José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista, São Paulo, Brasiliense, 1994.

BENJAMIN Walter, A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. dans Textos escolhidos. Tradução de José Lino Grünewald, São Paulo, Abril Cultural, 1975, p. 9-34. (Os Pensadores)

BERMAN Marshall, Baudelaire: o modernismo nas ruas, dans Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Tradução de Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioriatti, São Paulo, Companhia das Letras, 1987, p. 127-165.

CAMPRA Rosalba, Como con bronca y junando... la retórica del tango, Buenos Aires, Edicial, 1996.

CATTARUZZA Alejandro, RODRÍGUEZ Fernando, Prefacio: una vez más, El hombre que está solo y espera, dans Raúl SCALABRINI ORTIZ, El hombre que está solo y espera, Buenos Aires, Biblos, 2007, p. 9-32.

Artelogie, 14 | 2019 62

CIBOTTI Ema, Del habitante al ciudadano: la condición del inmigrante, dans El progreso, la modernización y sus límites: 1880-1916, sous la direction de Mirta Zaida LOBATO, Buenos Aires, Sudamericana, 2000, p. 365-408. (Nueva historia argentina, t. V.)

CONDE Oscar, Enrique Santos Discépolo: la rebelión contra el mundo, dans Poéticas del tango, sous la direction de Oscar CONDE, Buenos Aires, Marcelo Héctor Oliveri, 2003, p. 57-96.

FERRER Horacio, Romancero canyengue: versos lunfas y grotescos. 2. ed., Buenos Aires, Peña Lillo, Continente, 1999. (A 1ª edição é de 1967.)

FERRER Horacio, SIERRA Luis, Discepolín: poeta del hombre que está solo y espera. 2ª ed, Buenos Aires, Sudamericana, 2004. (A 1ª edição é de 1965.)

FRAGA Enrique, La prohibición del lunfardo en la radiodifusión argentina: 1933-1953, Buenos Aires, Lajouane, 2006.

FREUD Sigmund, Luto e melancolia, dans Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos: 1914-1916. Tradução de Paulo César de Souza, São Paulo, Companhia das Letras, 2010, p. 170-194. (Obras completas, vol. 12.)

GALASSO Norberto, Discépolo y su época, Buenos Aires, Corregidor, 2004. (A 1ª edição é de 1967.)

GAYOL Sandra, Ambitos de sociabilidad en Buenos Aires: despachos de bebidas y cafés, 1860-1900, Anuario IEHS, Tandil, n. 8, 1993, p. 257-273.

GRAMUGLIO María Teresa, Posiciones, transformaciones y debates en la literatura. dans Crisis económica, avance del Estado y incertidumbre política: 1930-1943, sous la direction de Alejandro CATTARUZZA, Buenos Aires, Sudamericana, 2001, p. 331-381. (Nueva historia argentina, t. VII.)

GUTMAN Margarita, REESE Thomas, Buenos Aires 1910: el imaginario para una gran capital, Buenos Aires, Eudeba, 1999.

JARAMILLO Ana, Fueye y melancolía: los intelectuales y el suicidio, Buenos Aires, LC, 1995.

LINDSTROM Naomi, Scalabrini Ortiz: el lenguaje del irracionalismo, Revista Iberoamericana, Madri, vol. LI, n. 130-131, , jan.-jun. 1985, p. 185-196.

LOBATO Mirta Zaida (dir.), El progreso, la modernización y sus límites: 1880-1916, Buenos Aires, Sudamericana, 2000. (Nueva historia argentina, t. V.)

MARTÍNEZ MOIRÓN Jesús, El mundo de los autores: incluye la historia de SADAIC, Buenos Aires, Sampedro, 1971.

ORTEGA Y GASSET José, El hombre a la defensiva, El espectador, Tomo VII, Madrid, Revista de Occidente, 1929.

ORTEGA Y GASSET José, A rebelião das massas. Tradução de Marylene Pinto Michael, São Paulo, Martins Fontes, 2007.

PELLETTIERI Osvaldo, Enrique Santos Discépolo: obra poética, Buenos Aires, Todo es Historia, SRL, 1976.

PEREIRA Avelino Romero, Buenos Aires, história e tango: crise, identidade e intertexto nas narrativas tangueras, Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2012a.

PEREIRA Avelino Romero, “La vida es una herida absurda”: representações da melancolia no tango, Anamorfose, Revista de Estudos Modernos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 2, 2014a, p. 31-54.

Artelogie, 14 | 2019 63

PEREIRA Avelino Romero, Luto e melancolia, memória e identidade: do tango ao nuevo tango de Astor Piazzolla, Escritos, Revista da Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, ano 6, n. 6, p. 159-183, 2012b.

PEREIRA Avelino Romero, “Malena canta el tango como ninguna”: o tango em feminino. ArtCultura, Uberlândia, v. 16, n. 28, p. 7-21, jan.-jun. 2014b.

PUJOL Sergio, Discépolo: una biografía argentina, Buenos Aires, Booket, 2006.

RIVERA Jorge B., 10 perfiles de Discépolo en 4x4, Crisis, Buenos Aires, ano 1, n. 7, p. 10-13, nov. 1973.

ROMANO Eduardo (org.), Las letras del tango: antología cronológica: 1900-1980. 5. ed., Rosario, Fundación Ross, 2007.

ROMERO José Luis, La Ciudad Burguesa, dans Buenos Aires: historia de cuatro siglos, sous la direction de José Luis ROMERO, Luis Alberto ROMERO, 2. ed. ampliada y actualizada, Buenos Aires, Altamira, 2000a, p. 9-17.

ROMERO José Luis, La Ciudad de Masas, dans Buenos Aires: historia de cuatro siglos, sous la direction de José Luis ROMERO, Luis Alberto ROMERO, 2. ed. ampliada y actualizada, Buenos Aires, Altamira, 2000b, p. 201-208.

SAÍTTA Sylvia, Posfacio: una biblia porteña: El hombre que está solo y espera de Raúl Scalabrini Ortiz, dans Raúl SCALABRINI ORTIZ, El hombre que está solo y espera, Buenos Aires, Biblos, 2007, p. 143-158.

SARLO Beatriz, Una modernidad periférica: Buenos Aires, 1920 y 1930. 1. ed., 4. reimpr., Buenos Aires, Nueva Visión, 2007.

SCALABRINI ORTIZ Raúl, El hombre que está solo y espera, Buenos Aires, Biblos, 2007. (A 1ª edição é de 1931.)

TERÁN Oscar, Historia de las ideas en la Argentina: diez lecciones iniciales: 1810-1980, Buenos Aires, Siglo XXI, 2008.

TRONCOSO Oscar A., Las nuevas formas del ocio, dans Buenos Aires: historia de cuatro siglos, sous la direction de José Luis ROMERO, Luis Alberto ROMERO, 2. ed. ampliada y actualizada, Buenos Aires, Altamira, 2000, p. 285-294.

VARDARO Arcángel Pascual, La censura radial del lunfardo: 1943-1949: con especial aplicación al tango, Buenos Aires, Dunken, 2007.

WARLEY Jorge A., Vida cultural e intelectuales en la década de 1930, Buenos Aires, CEAL, 1985.

NOTAS DE FIM

1. Segundo Freud, “a melancolia se caracteriza, em termos psíquicos, por um abatimento doloroso, uma cessação do interesse pelo mundo exterior, perda da capacidade de amar, inibição de toda atividade e diminuição da autoestima, que se expressa em recriminações e ofensas à própria pessoa e pode chegar a uma delirante expectativa de punição.” (FREUD, 2000, p. 172) 2. Para a análise de outros aspectos da experiência desse processo de modernização em Buenos Aires, ver os demais trabalhos apresentados sob a organização de Romero e Romero (2000), Lobato (2000) e Gutman e Reese (1999).

Artelogie, 14 | 2019 64

3. Sobre o tema da censura ao tango, ver Fraga (2006), Vardaro (2007) e Martínez Moirón (1971). Abordei o tema também, de forma mais alentada do que aqui vai, em minha tese de doutorado (PEREIRA, 2012a). 4. Para outros estudos biográficos e análises da poética de Enrique Santos Discépolo, ver Ferrer e Sierra (2004), Galasso (2004), Rivera (1973), Pellettieri (1976), Conde (2003). 5. Observo que termos análogos aparecem nos títulos de tangos que Discépolo compôs no período: Desencanto (1937), Condena (1938), Tormenta (1939), Martirio (1940), Infamia (1941), e ainda Canción Desesperada (1944), mas apenas Tormenta lembra o protesto de Cambalache, maldizendo a injustiça e a desonestidade: “si la vida es el infierno / y el honrao vive entre lágrimas”. Nos demais, o tema é a desilusão amorosa, não menos afeita à “estética do desencanto”, mas abordando-a por uma lente distanciada do cotidiano político. 6. Outras abordagens críticas ao texto de Scalabrini Ortiz também salientam sua vinculação com as inflexões que antecedem a crise de 1929-30. Para Beatriz Sarlo, “sin las vanguardias de la década del veinte, esta escritura hubiera sido imposible” (SARLO, 2007, p. 215). Alejandro Cattaruzza e Fernando Rodríguez, prefaciando uma edição do ensaio, confirmam sua relação com as vanguardas dos anos 20, pelo antipositivismo e espiritualismo em que se baseia (CATTARUZZA e RODRÍGUEZ, 2007, p. 13). 7. Seguramente, o diálogo com Ortega y Gasset se faz sentir também aí. Oscar Terán (2008, p. 197) observa que o filósofo espanhol incomodou-se com o anacronismo da vida intelectual argentina, ainda muito marcada pelo positivismo e vemos Scalabrini Ortiz reagir claramente a esse mesmo positivismo. 8. Sobre essa visão de Ortega y Gasset sobre o papel dos intelectuais na sociedade, ver também Warley, 1985, p. 53. 9. Vale lembrar que Corrientes y Esmeralda é também o título de um poema de Celedonio Flores, escrito em 1922, e musicado em 1933 por Francisco Pracánico, dando origem a um clássico do repertório tanguero. O poema é uma homenagem àquela esquina de Buenos Aires e sua vizinhança, onde orquestras de tango tocavam para um público masculino em cafés como o Royal Keller, justo na esquina mencionada, e frequentado pelo próprio Scalabrini, célebre pelas tertúlias literárias e palco das primeiras lutas de boxe realizadas na cidade (SAÍTTA, 2007). Tanto Flores quanto Scalabrini lutaram boxe na juventude, e o primeiro verso do tango faz alusão à luta – “amainaron guapos junto a tus ochavas / cuando un cajetilla los calzó de cross” – marcando a derrota dos guapos das orillas pela nova luta praticada pelos cajetillas do centro. 10. Cattaruzza e Rodríguez observam que a interpretação dos anos 60 sustentava que o autor havia analisado o argentino da “década infame” numa localização temporal “ficticia, ya que el libro había aparecido en 1931”, mas “contribuía a transformar el ensayo de Scalabrini en una consideración sobre la situación de aquellos hombres, que esperaban en soledad durante un período – la llamada Década Infame – al que el peronismo habría puesto fin” (CATTARUZZA e RODRÍGUEZ, 2007, p. 10). Assim, o ensaio seria convertido em peça de uma “batalla cultural que se libraba a mediados de la década de 1960, cuyos actores eran los muy heterogéneos conjuntos divididos por el apoyo o la crítica al movimiento liderado por Perón” (Idem). 11. Apresento uma análise mais aprofundada do tema em minha tese de doutorado (PEREIRA, 2012a). Ver também Pereira, 2014b.

RESUMOS

Em sua análise da lírica de Baudelaire, Walter Benjamin aborda a cidade, a multidão, a melancolia e o choque traumático resultante do impacto da modernidade sobre a sensibilidade dos intelectuais e do público leitor oitocentistas. A experiência moderna e a circulação de ideias aproxima Paris e Buenos Aires, e os mesmos temas são recriados nessa nova manifestação lírica

Artelogie, 14 | 2019 65

que é o tango-canción. Neste trabalho, analiso como alguns poetas do tango reagem à modernidade e elaboram uma identidade social em torno da melancolia e dos mecanismos e espaços de sociabilidade, em consideração aos representações sobre o “homem argentino” presentes nos escritos de Ortega y Gasset e Scalabrini Ortiz.

Dans son analyse de Baudelaire, Walter Benjamin traite de la cité, de la foule, de la mélancolie et du choc traumatique résultant de l’impact de la modernité sur la sensibilité des intellectuels et du public lecteur du XIXe siècle. L’expérience moderne et la circulation des idées ont depuis rapproché Paris et Buenos Aires, et les mêmes thèmes sont recréés dans cette nouvelle manifestation lyrique qu’on appelle le "tango-canción". Dans ce travail, j’analyse comment quelques poètes du tango ont réagi à la modernité et ont créé une identité sociale autour de la mélancolie, de ses mécanismes et espaces de sociabilités, en prenant appui sur les représentations de l’homme argentin présents dans les écrits de Ortega y Gasset y de Scalabrini Ortiz.

ÍNDICE

Mots-clés: Tango et modernité, Solitude et Mélancolie, Buenos Aires, Intellectuels. Palavras-chave: Tango e Modernidade, Solidão e Melancolia, Buenos Aires, Intelectuais

AUTOR

AVELINO ROMERO PEREIRA

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Professor de História da Música [email protected]

Artelogie, 14 | 2019 66

La infancia rural en César Vallejo: renovación cultural y crítica social

Alejandra Josiowicz

1 Este trabajo analiza la “escena” de infancia en una selección de textos poéticos y narrativos del escritor peruano César Vallejo (1892-1938). Se analizan textos provenientes de distintos géneros discursivos y literarios – literatura infantil, crónica, poesía y prosa poética –, como modalidades diferentes y complementarias por las cuales Vallejo construye una “escena” de infancia1: en esas diferentes instancias discursivas, la infancia emerge no únicamente como público lector o como tema representado, sino como motor fundamental de la escritura, modo de percepción, constelación de afectos y modos de interpretación de la experiencia. En tanto “escena” (RANCIÈRE, 2013: 11), la infancia apunta más allá de la pura percepción individual de un autor, Vallejo, hacia la comprensión de un horizonte colectivo, sensible e intelectual, de representaciones y modos de entender la niñez en América Latina y en Perú en la época.

2 Este trabajo se propone estudiar prácticas culturales de lo sensible en relación con la infancia y específicamente de la niñez como signo de la alteridad, utilizando como marco el estudio de las sensibilidades como objeto de la historia cultural, matriz de sensaciones y sentimientos y modo de interrogar la subjetividad y la socialización (PESAVENTO, 2007). El mundo afectivo ligado a la infancia está encarnado en la corporalidad y en los sentidos, tanto en lo táctil, visual y oral como en lo gustativo (SEDGWICK, 2003). Se aborda el modo por el cual la infancia campesina e indígena fue pensada y sentida en la época, estableciendo relaciones con el horizonte de debates de las vanguardias europeas y latinoamericanas sobre el tema, así como de una serie de intelectuales, reformadores sociales, pedagogos, médicos y juristas latinoamericanos preocupados con su estatus social. ¿En qué sentido la infancia rural, campesina, aparece en el imaginario y en la percepción de un escritor como Vallejo? ¿A través de qué tipos de lenguaje, qué tipo de imágenes y modos de la percepción la infancia emerge en el horizonte colectivo, en los sentimientos y valoraciones de los intelectuales de la época? La hipótesis que guia el presente trabajo es que, dada su invisibilidad para la mayor parte de los discursos sociales, la sensibilidad del niño campesino, criado, indígena o

Artelogie, 14 | 2019 67

pobre aparece en los textos de Vallejo a través de una ruptura de la forma de representación y de las convenciones lingüístico-discursivas. Es a través de un quiebre formal que Vallejo consigue explorar la sensibilidad del niño indígena, criado, cuya experiencia es invisible, indecible y caótica. Para eso, crea una estética fantasmal, sombría, que explora los sentidos táctiles, visuales y gustativos de la experiencia infantil en lugar de dar cuenta de la infancia marginada como tópico o contenido referencial: de ese modo, el niño marginado es mucho más un núcleo de afectos y percepciones sobre un mundo caído que un sujeto a ser visibilizado por el texto o el autor.

3 Con ese fin, se establecen relaciones, por un lado, con el modo en que las vanguardias europeas y latinoamericanas concibieron a la infancia como instancia de transgresión y experimentación con los lenguajes estéticos y, por otro, con los debates de una serie de intelectuales, reformadores sociales, médicos y pedagogos sobre la infancia marginada, alrededor de cuestiones sociales y modelos pedagógicos en América Latina. La primera parte de este trabajo aborda ese doble horizonte de debates estéticos y políticos sobre el tema. En la segunda parte, se discute el modo en que el poemario Trilce (1922) apunta a la infancia como un modo de transgresión de las jerarquías gramaticales y de emergencia de un lenguaje renovador, desarticulado y balbuceante, de lo disonante y lo inconsciente, que apunta hacia la oralidad y la materialidad lingüística. En la tercera parte, más extensa, se estudia el cuento infantil Paco Yunque (1931) y una selección de poemas escritos entre 1930 y 1940, incluidos en España, aparta de mí este cáliz (1939) y Poemas Humanos, publicados en forma póstuma. Allí, se analiza la representación del niño indígena campesino y su marginación por parte de las instituciones del Estado. El niño emerge como un modo de denuncia social, como síntoma de las dificultades y desafíos en el proceso de democratización en América Latina. De ese modo, se argumenta que en los textos de Vallejo la infancia combina un posicionamiento político alrededor de la infancia excluida o marginada y una serie de búsquedas formales de experimentación estética ligadas a la sensibilidad infantil. Lejos de un mero referente, el niño constituye un modo de conciliar la experimentación formal con preocupaciones sociales y étnicas. A través de un lenguaje no referencial y de una serie de búsquedas estético-políticas y sociales, Vallejo explora la sensibilidad del niño criado, marginado, indígena y campesino.

Un horizonte cultural y político de debates sobre la infancia

4 Una de las características más salientes de las vanguardias latinoamericanas es la conjunción de una preocupación por la especificidad cultural, por lo oral, lo regional y lo folklórico, y una estética transgresora, de lo disonante y lo fragmentario (UNRUH, 1994). Las vanguardias latinoamericanas reconfiguran la jerarquía geopolítica que daba primacía a Europa en pos de una identidad híbrida, antropofágica, carnavalizada (ROSENBERG, 2006 y 2008). La infancia fue objeto de debate en la cultura peruana de las primeras décadas del Siglo, entre aquellos críticos conservadores que atacaban el infantilismo de las vanguardias y los progresistas e indigenistas que lo aplaudían como signo de un nuevo comienzo superador de los modelos europeos (CLAYTON, 2011: 64-69). La exploración de la infancia permitió a varios movimientos de vanguardia latinoamericana – como es el caso de la vanguardia puertorriqueña y la brasileña –

Artelogie, 14 | 2019 68

superar la dicotomía entre arte puro, autónomo, y arte político (JOSIOWICZ, 2016 y 2018). Este trabajo examina textos líricos y narrativos destinados al público infantil y adulto escritos por César Vallejo como condensación de un doble tipo de indagación: en primer lugar, con el lenguaje infantil, en un estado previo a la formación de lo simbólico, en segundo lugar, con el niño como puesta en escena de una serie de preocupaciones socio-políticas.

5 Los vanguardistas latinoamericanos cuestionan el retrato romántico del niño como objeto de nostalgia y sentimentalismo, 2subordinado a la imagen del adulto, modo de fijar la identidad individual y patriótica en el tiempo (MOLLOY, 1991: p. 96). Lectores ávidos de las vanguardias europeas – del surrealismo francés, el dadaísmo y el expresionismo alemán –, los vanguardistas latinoamericanos también siguieron muy de cerca el proyecto psicoanalítico de exploración del inconsciente. En las artes plásticas, las vanguardias europeas – el art brut, el infantilismo de Picasso, Kandinsky y otros – utilizaron el trazo pueril del niño como un modo de ruptura con la tradición (FRANCIOLLI, 2004). El surrealismo francés teoriza el lugar del niño como escenficación de un acceso directo al inconsciente: a través del automatismo psíquico o la asociación automática, el artista surrealisa, según Breton, podía acceder al estado de plenitud y unidad originaria y liberatoria en que viven tanto el niño como el primitivo (FOSTER, 1993: 4). Como parte de su retórica de originalidad, el artista de vanguardia se identifica con el niño que emerge recién nacido directamente del líquido amniótico, sin ancestros, desde un grado cero de la creación estética, sin modelo, sin referente más allá de sí mismo (KRAUSS, 1988: 157). Los surrealistas representaron la infancia a través de una serie de fantasías intrauterinas primarias, de intimidad corporal y unidad psíquica con el cuerpo de la madre (FOSTER, 1993). A diferencia de la visión de plenitud idílica, orgánica y vitalista de la infancia del surrealismo y el futurismo, los vanguardistas latinoamericanos la conciben como atravesada por el sueño, el delirio, la hiperconciencia y la alienación, así como por la muerte, la desesperanza, el miedo y la lucha (BOSI, 2002: 28). En ese sentido, resulta comparable con el modo en que aparece en los debates alrededor del expresionismo. Alrededor de 1938, año de la muerte de Vallejo, Ernst Bloch y Georg Lukács sostienen un debate en la revista Das Wort sobre la relación entre vanguardia, realismo y crítica social. Así, mientras Lukács denuncia al expresionismo por su estética “decadente”, su uso no referencial y puramente expresivo de las palabras, uso “atávico” del folklore, demolición de lo real, mundo desintegrado, caos y montaje (todo lo cual resultaría en una mistificación de la realidad, parasitaria de la ideología burguesa) (LUKÁCS, 2002), Bloch lo defiende como un modo de conciliar el sustrato popular, folklórico – del arte “barbárico, de los niños, los presos, los enfermos mentales, los primitivos y los iletrados” – con la elaboración formal del arte moderno (BLOCH, 2002). Por su lado, Bertold Brecht interviene y recupera el legado del expresionismo como resolución del dilema entre arte experimental de vanguardia y arte popular, conectado con las masas y aliado del realismo (BRECHT, 2002). Los textos de César Vallejo alrededor de la infancia apuntan justamente en esa dirección, dado que conjugan un uso altamente experimental del lenguaje, alrededor de la oralidad infantil, con un interés por lo popular, que investiga la sensibilidad del niño marginalizado, campesino e indígena.

6 Por otro lado, en las primeras décadas del Siglo XX emerge una serie de discursos positivistas, higienistas, sociológicos, pedagógicos y criminalistas sobre el niño, alarmados ante las bajas tasas de alfabetización, altas tasas de abandono, mortalidad

Artelogie, 14 | 2019 69

infantil, ilegitimidad y niños viviendo en la calle en América Latina, que empiezan a ser consideradas potenciales amenazas para el progreso nacional, para los planes futuros de desarrollo económico y la reputación internacional de las naciones latinoamericanas. (LAVRIN, 1994: 52; Guy, 2009: 244). En este período, varios países de América Latina generalizan sus políticas hacia la salud física y moral de los niños como futuros ciudadanos: en 1923 la Liga de las Naciones emite la Declaración de los Derechos del Niño en Génova y en 1927 se crea el Instituto Interamericano del Niño en Montevideo, con delegados de Argentina, Bolivia, Brasil, Ecuador y Perú (BIRN, 2006)–, los países latinoamericanos dictan sus primeros Códigos del Niño – Brasil en 1927, Uruguay en 1934, Argentina en 1932, Chile y México en 1934 – y organizan Congresos Internacionales e Interamericanos de protección a la Infancia en los cuales se pone un énfasis específico en las responsabilidades de los Estados en el cuidado de los niños (GUY, 1998: 272-291 y 2002: 158). El niño latinoamericano también se vuelve fuente de interés para un grupo de escritores e intelectuales que – ante la expansión de las movilizaciones obreras, movimientos socialistas y anarquistas, la fundación de partidos comunistas y los golpes militares de las décadas de 1920 y 1930 – experimentan una profundización de sus preocupaciones sociales y políticas, e intervienen en debates sobre la educación infantil y el éxito o fracaso de las políticas estatales.3 En el marco de las Convenciones de Maestros o en las Semanas Pedagógicas que tienen lugar en varios puntos de América Latina en esas décadas, intelectuales como el peruano José Carlos Mariátegui (1894-1930), con quien Vallejo mantuvo un productivo diálogo, pugna por una mayor democratización social de la educación infantil. Mariátegui escribe “El proceso de la instrucción pública” (incluido en sus Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana) publicado por primera vez en 1928, así como también una serie de ensayos aparecidos en revistas entre 1923 y 1929, denunciando el estatuto servil del niño pobre, indígena y mestizo en Perú, como consecuencia de las desigualdades de clase y de raza (MARIÁTEGUI, 1970 y 2005). Mariátegui advirtió sobre las contradicciones de instaurar el proyecto “demoliberal” y “burgués” de educación gratuita, laica y obligatoria en Hispanoamérica (MARIÁTEGUI, 2005 y 1970). Señaló la herencia feudal, colonial y aristocrática de la cultura letrada, así como las desigualdades de raza y de clase que impedían la implementación de una moderna educación capitalista, democrática y tecnificada en Perú. Argumentó que el problema educativo peruano era económico y social, y fue crítico del puro nominalismo de la escuela igualitaria, a la que consideraba opresora y aplanadora de la diferencia individual. Advirtió sobre la sumisión de los maestros de primera enseñanza a un caciquismo feudal y denunció la servidumbre social del niño pobre, indígena o mestizo (MARIÁTEGUI, 2005 y 1970). Es en ese horizonte transnacional de debates sobre la escuela liberal, provenientes tanto del campo pedagógico estatal como del anarquismo y el socialismo que deben entenderse los escritos de César Vallejo alrededor de la infancia.

7 Por otro lado, existía en la sociedad andina de la época un mundo de prácticas sociales informales, extralegales y frecuentemente ilegales alrededor de la infancia: los niños ilegítimos, indígenas, huérfanos, pobres o migrantes del ámbito andino eran destinados al trabajo doméstico informal, sometidos por la institución del criadazgo – relación doméstica y de dependencia privada – no considerados como sujetos de derechos y casi absolutamente invisibilizados (MILANICH, 2005: 35). Es esta invisibilidad de los niños andinos sometidos a diferentes prácticas de explotación sistemática, de modo

Artelogie, 14 | 2019 70

silencioso, como sirvientes en casas privadas, mantenidos al margen de la ley (MILANICH 2005), que Vallejo se propone recuperar en sus textos.

Trilce o los ecos de la memoria

8 César Vallejo publica Trilce, su segundo libro de poemas, en 1922 en Lima. En una carta que escribe el mismo año de la publicación del poemario, Vallejo utiliza la metáfora del niño para referirse al libro: Los vagidos y ansias vitales de la criatura en el trance de su alumbramiento han rebotado en la costra vegetal, en la piel de reseca yerba de la sensibilidad literaria de Lima… Sólo algunos escritores jóvenes aún desconocidos y muchos estudiantes universitarios se han estremecido con su mensaje. Por lo demás, el libro ha caído en el mayor vacío. Me siento colmado de ridículo, sumergido a fondo en ese carcajeo burlesco de la estupidez circundante, como un niño que se llevara torpemente la cuchara por las narices…. ¡Y cuántas veces me he sorprendido en espantoso ridículo, lacrado y boquiabierto, con no sé qué aire de niño que se llevara la cuchara por las narices! En este momento casi revivo todo el fragor que dio vida a Trilce y a Los Heraldos Negros! (VALLEJO, 2002: 46-47).

9 Vallejo se refiere a Trilce a través de la imagen del niño recién nacido, que irrumpe en la escena poética como progenie de una sensibilidad literaria nueva – signo de fluidez y de un tipo de carnadura literaria inéditas – y encuentra una atmósfera infértil: la indiferencia y el rechazo de la cultura limeña de la época. El poeta también aparece asociado a la imagen del niño que, como un bufón o un payaso, gesticula histéricamente y transgrede las convenciones sociales – las costumbres en la mesa –, revelando el ridículo general en su performance soez (“llevarse torpemente la cuchara por las narices”). El niño-poeta es un fantoche que ha perdido control y agencia sobre su cuerpo (“me he sorprendido en espantoso ridículo, lacrado y boquiabierto”). Es síntoma de la “lacra pública”, reflejo del malestar del medio, la “estupidez circundante” que ventriloquiza avergonzado. Como se ve, Vallejo condensa en la imagen del niño el nacimiento de una nueva política cultural, cuyo núcleo es la transgresión de la gramática legítima y la práctica de la impureza linguística.

10 La crítica ha señalado el hecho de que en Trilce el sujeto de la enunciación asume la voz del niño “en el momento mismo de la primera incertidumbre” (FRANCO, 1988: 580). Sin embargo, no hay nada ingenuo en Trilce sino que se postula un yo infantil que revela la orfandad del hablante, un sujeto que nace sin amparo en el lenguaje, que cuestiona la autoridad de los nombres y pone en escena la crisis de los códigos. Otros estudios han apuntado que el texto excenifica una crítica, una denuncia y un juego con la lengua y el proceso mismo de nombrar, por el cual el sujeto que “aprende a hablar” lo hace a partir de la pérdida del habla institucionalizada, de la asunción del balbuceo, la desarticulación, la onomatopeya, y de la imposición de neologismos, barbarismos y desviaciones ortográficas (ORTEGA, 1988: 609). La pérdida de la lengua institucionalizada, oficial y legítima implica en Vallejo una suerte de retroceso por el cual el poeta investiga el lenguaje en el momento previo a la constitución del sujeto, previo a la entrada en la norma lingüística y social. Se trata de una exploración de lo que Julia Kristeva ha teorizado como la ecolalia, el lenguaje del niño hecho de ritmos y entonaciones anteriores a los primeros fonemas o frases, lengua ante-predicativa que transgrede la sintaxis y cuestiona la nominación (KRISTEVA, 1981: p. 259).

Artelogie, 14 | 2019 71

11 En Trilce (1922), el niño aparece asociado al mundo oral, auditivo, a los ecos de la memoria: Las personas mayores ¿a qué hora volverán? Da las seis el ciego Santiago, Y ya está muy oscuro. Madre dijo que no demoraría. Aguedita, Nativa, Miguel, Cuidado con ir por ahí, por donde acaban de pasar gangueando sus memorias dobladoras penas hacia el silencioso corral y por donde las gallinas se están acostando todavía. Mejor estemos aquí no más. Madre dijo que no demoraría. (VALLEJO, 1988: 172)

12 El poema escenifica la voz del niño como un coro de ecos, que resuenan, preguntan, evocan y apostrofan. Es una voz infantil fantasmática, una voz sin sujeto, sin origen ni destinatario. Sobre el sujeto que enuncia esas preguntas y sobre aquel a que se dirigen, sólo sabemos que se trata de una comunidad infantil, dada por la primera persona del plural, que opera como espacio de resonancia: la voz de un niño inmerso en la oscuridad uterina, en la superficie porosa de la memoria. Esta voz designa, más que un sujeto, únicamente un punto de vista, que es el del niño, un “nosotros” infantil y “aquí” que, desde un lugar menor y una relación de obediencia, está a la espera de la vuelta de los adultos, “ellos”. El poema designa un estado de vulnerabilidad y desprotección: “cuidado con ir por ahí, por donde”. El niño aparece como desprotegido ante los peligros invisibles que lo acechan, a la espera de una protección que vendría de los otros o del afuera. La infancia es ese “ahí” por donde pasan las memorias, un lugar de peligro, un abismo donde el sujeto se halla radicalmente desprotegido, un espacio hecho de voces sin referente preciso.

13 Años antes, entre 1911 y 1917, César Vallejo había escrito y publicado poemas juveniles y didácticos en la revista Cultura infantil, editada por el Centro Escolar de Varones en donde trabajaba como maestro. Vallejo fue empleado como tutor del hijo de un propietario de minas en la provincia de Pasco, Perú, luego trabajó como maestro en el Centro Escolar de Varones y más tarde, como maestro de escuela primaria en el Colegio Nacional de San Juan (Franco, 1976: p. 20). Se trata de poemas didácticos para lectores escolares, de tipo científico o instructivo, en los que el yo poético toma la voz del pedagogo, transmisor de conocimiento. Vallejo los compuso al mismo tiempo que escribía su tesis sobre “El romanticismo en la poesía Castellana”, lo que explica el romanticismo y el tono sentimental a través del cual aparece la infancia (FRANCO, 1976: 25). En el poema “Barco Perdido”, por ejemplo, se lee: ¡Oh verde azul del agua entre alcanfores, donde jugué a las naves, las naves de mi infancia que fletara con mis mieles mejores! ¡Oh lindo barco gualda que te fueras yo no sabré hasta dónde! Ahora que me ahogo en mi conciencia, ¡qué bueno si volvieras…! (VALLEJO, 1988: 141)

14 Se trata de una elegía nostálgica, en que un yo poético adulto recuerda sus juegos de la infancia. La niñez es metáfora de un pasado idílico, sentimental, romántico, que

Artelogie, 14 | 2019 72

contrasta con un presente asfixiante. Estos poemas juveniles contrastan con la poética posterior de Vallejo, que cuestiona la temporalidad biográfica lineal. Esto aparece ya en el poema “A mi hermano Miguel” (1918), que Vallejo dedicó a su hermano muerto: Hermano, hoy estoy en el poyo de la casa, donde nos haces una falta sin fondo! Me acuerdo que jugábamos esta hora, y que mamá nos acariciaba: “Pero, hijos…” (…) Oye, hermano, no tardes en salir. Bueno? Puede inquietarse mamá. (VALLEJO, 1988: 172)

15 El poema se inicia con la voz del adulto, que apostrofa al hermano perdido y rememora la escena de infancia. El uso del verbo “me acuerdo” y las comillas para citar la voz de la madre establecen una distancia entre el sujeto poético que recuerda y el niño rememorado. En los dos versos finales, sin embargo, el yo poético se transporta a la perspectiva del niño, tomando la voz infantil. Así, el niño recordado y el adulto que rememora se fusionan y se vuelven indistinguibles uno del otro. De este modo, el poema quiebra la lógica evolutiva que une niño y adulto, pasado y presente, generando un yo poético niño que rompe con la temporalidad lineal de la biografía. Como se ve en el ya citado poema 3, Trilce va aún más allá: allí el verbo del recuerdo desaparece completamente, dejando al desnudo la oralidad colectiva, sin sujeto, del niño: Aguardemos así, obedientes y sin más remedio, la vuelta, el desagravio de los mayores siempre delanteros dejándonos en casa a los pequeños, como si también nosotros no pudiésemos partir. Aguedita, Nativa, Miguel? Llamo, busco al tanteo en la oscuridad. No me vayan a haber dejado solo, Y el único recluso sea yo (VALLEJO, 1988: 172)

16 El final del poema establece una demarcación espacial, que sitúa a los niños en un territorio doméstico y en una situación de pasividad, mientras que los adultos se asientan en un espacio futuro que implica la partida, el abandono de la casa y de la infancia. En la última estrofa citada, mediante el uso del apóstrofe, el niño redescubre su territorio como un espacio oscuro, de soledad, de reclusión, como una cámara vacía.

17 Por otro lado, en el poema 52, el yo poético rompe con la identidad individual y construye una colectividad y un tipo de sensibilidad infantil: Y nos levantaremos cuando se nos dé la gana, aunque mamá toda claror nos despierte con cantora y linda cólera materna. Nosotros reiremos a hurtadillas de esto, Mordiendo el canto de las tibias colchas De vicuña ¡y no me vayas a hacer cosas! (VALLEJO, 1988: 234)

18 En este poema, los niños desobedecen el mandato materno y enuncian su declaración de rebeldía. De este modo, el momento de despertar se transforma en espacio de placer sensorial y de sexualidad pícara. Se trata de una experiencia colectiva infantil, en que aparecen imágenes visuales, auditivas, musicales, táctiles y gustativas. La frase final registra el cuerpo juguetón del niño, pleno de deseo y sensualidad, que preanuncia los descubrimientos de Sigmund Freud y el psicoanálisis, con los que Vallejo solo entraría en contacto años después (FRANCO, 1976: 63).

Artelogie, 14 | 2019 73

19 Los niños aparecen inmersos en el paisaje rural: Y llegas muriéndote de risa Y en el almuerzo musical, Cancha reventada, harina con manteca Con manteca, Le tomas el pelo al peón decúbito Que hoy otra vez olvida dar los buenos días, Esos sus días, buenos con b de baldío, Que insisten en salirle al pobre Por la culata de la v Dentilabial que vela en él. (VALLEJO, 1988: 234).

20 El niño alegre, exultante, retorna al espacio de la casa después de un día de juego iniciático y exploración de los sentidos. Se encuentra con el peón, se burla de su modo de hablar y lo incluye en su juego. La frase “le tomas el pelo al peón decúbito” señala una interpenetración verbal y corporal con la lengua y el cuerpo del criado que habla “mal”: se trata de una lengua incivilizada, de materialidad consonántica, que infringe las normas del lenguaje. Esta unión o alianza entre la lengua del peón y la del niño, infractores del habla correcta y las buenas maneras, revela que ya en Trilce Vallejo había tomado distancia de lo que observaba como “pomposa teoría y abracadabrante método” del surrealismo (VALLEJO, 2002: 517-518). De hecho, Vallejo investigó la infancia no sólo en la dirección de una renovación formal del lenguaje sino como núcleo de una serie de preocupaciones sociales y políticas, indagando el estado de desprotección, desposesión y orfandad de los niños marginados en América Latina.

Hacia una política de la infancia en César Vallejo

21 A partir del período de su viaje a París en 1923 y hasta su muerte en 1938, Vallejo se interesó por el marxismo y reflexionó sobre el rol político social del artista. Se mostró crítico de lo que percibía como puro esteticismo de las vanguardias europeas, sobre todo del surrealismo, pero también cuestionó el sometimiento del artista y su obra a cualquier programa político.4 En esta etapa de su trayectoria, que incluye el tomo conocido como Poemas Humanos, publicado en 1939 en París, así como los poemas de España, aparta de mí este cáliz y el cuento Paco Yunque, Vallejo, sin abandonar sus experimentos vanguardistas previos, logró aprehender de modo más completo cuestiones de representación política (CLAYTON, 2011: 192-249). En esos escritos, Vallejo denunció la situación de la infancia marginada en Perú, del niño indígena, pobre o migrante del ámbito andino, casi completamente invisibilizado, e intervino en los debate sobre la educación de la época.

22 En la prosa poética “Tendríamos ya una edad misericordiosa” (incluida en Poemas Humanos), se narra una escena hogareña familiar, en que mientras la madre cocina y el padre y los hermanos esperan sentados a la mesa, se escucha un llamado a la puerta: “¡Tocan a la puerta!”. Este llamado escenifica la interpelación del niño por el Estado, su iniciación en la letra y su socialización en la institución escolar. “Tendríamos ya una edad misericordiosa cuando mi padre ordenó nuestro ingreso a la escuela”, dice el texto. La “edad misericordiosa” es el momento en que la iniciación religiosa – la primera comunión, rito de pasaje del catolicismo – coincide con el ingreso a la escuela. Escuela e Iglesia aparecen profundamente imbricadas en el texto de Vallejo, como dos “aparatos ideológicos de Estado”, de acuerdo con Louis Althusser, quien señaló que la

Artelogie, 14 | 2019 74

escuela, como aparato ideológico dominante, reemplazó las funciones de la iglesia, ambos intrínsecamente relacionados con la institución familiar.5

23 De este modo, el texto de Vallejo pone en escena la transformación de individuo en sujeto. El llamado a la puerta, la interpelación, proviene de una fuerza innombrada que, desde afuera, irrumpe en el hogar materno, afectivo y nutricio y quiebra el equilibrio entre los hermanos. “Nativa lloraba de una tal visita, de un tal patio y de la mano de mi madre. Entonces y cuando, dolor y paladar techaron nuestras frentes.” (VALLEJO, 1988: 318) El quiebre del núcleo familiar está reforzado desde el interior, dado que el hermano se hace eco del llamado: “Sin esperar la venia maternal, fuera Miguel, el hijo, quien salió a ver quién venía así, oponiéndose a lo ancho de nosotros.” (VALLEJO, 1988: 318). La salida de Miguel indica el desprendimiento del cuerpo hogareño y revela que la interpelación, proveniente del orden escolar estatal, constituye a los individuos en sujetos a través de un acto de mutuo reconocimiento, por el cual el sujeto se sabe interpelado por la ideología. Como parte de la misma genealogía masculina, el padre también es interpelado por esa fuerza foránea, invisible, del orden escolar que toca a la puerta: ¡Qué diestra de subprefecto, la diestra del padre, revelando, el hombre, las falanges filiales del hijo! Podía así otorgarle la ventura que el hombre deseara más tarde. -Y mañana, a la escuela- disertó magistralmente el padre, ante el público semanal de sus hijos. Y tal, la ley, la causa de la ley. Y tal también la vida. (VALLEJO, 1988: 319)

24 El padre enuncia la ideología escolar que señala un cuerpo disciplinado, una jerarquía masculina y oficial y un destino futuro ineluctable. El padre actúa como maestro, sacerdote y portador de la ley ante el público de los hijos. A través del dictamen “Y mañana, a la escuela”, el padre instaura la temporalidad de la escuela, el Estado y la ley al interior del hogar. Desde la infancia, el individuo aparece como ya interpelado por la configuración ideológica familiar – paternal, maternal, conyugal, fraterna –: su identidad es única, implacable y patética.

25 El poema “España, aparta de mí este cáliz” – que le da título a la colección de textos que Vallejo escribió, inspirado en la Guerra Civil Española, publicados luego de su muerte en 1939 – tiene la entonación de un himno infantil, en algún sentido similar a las canciones e himnos infantiles que Bertold Brecht escribió entre 1930 y 1950, en que formula una utopía de infancia dirigida a los niños.6 “España, aparta de mí este cáliz” es una oda dirigida a las futuras generaciones de niños republicanos, como potenciales agentes de construcción de un nuevo orden social, de una nueva patria; sin embargo, paradójicamente, el poema contempla, desde el inicio, la posibilidad de la derrota, de que caiga España, que aparece como madre y maestra: Niños del mundo, si cae España—digo, es un decir— si cae (VALLEJO, 1988: 481)

26 El sujeto poético pone en duda su propia capacidad enunciativa y desde el título – cita de los evangelios – enuncia la ambigüedad constitutiva de toda épica sacrificial, así como el lugar dilemático del escritor, desgarrado ante el deseo de intervenir e impotente ante la historia. El poema, que probablemente alude al lema de Karl Marx “¡Proletarios del mundo, uníos!”, es un llamamiento al niño a través de la repetición rítmica, litúrgica, que enuncia la pérdida de la esperanza y la cercanía de una suerte de fin de los tiempos. Si cae—digo, es un decir—si cae

Artelogie, 14 | 2019 75

España, de la tierra para abajo, niños, ¡cómo vais a cesar de crecer! ¡cómo va a castigar el año al mes! ¡Cómo van a quedar en diez los dientes, en palote el diptongo, la medalla en llanto! (…) ¡Cómo vas a bajar las gradas del alfabeto hasta la letra en que nació la pena! (VALLEJO, 1988: 481)

27 En lugar de símbolo de posibilidad patriótica o cívica futura, los niños escenifican la detención e inversión del tiempo. Se trata de una evolución inversa, por la cual el niño envejece de forma prematura (“¡qué pronto en vuestro pecho el ruido anciano!/¡qué viejo vuestro 2 en el cuaderno!” (VALLEJO, 1988: 481)), retrocede hasta el momento previo al acceso al orden de la historia, el discurso y el lenguaje. En el poema de Vallejo la historia aparece como pérdida, como caída del niño en el mundo, encarnada en el lenguaje poético.

28 “España, aparta de mí este cáliz” se enuncia desde un espacio paradójico, dado que si bien el yo poético habla como un padre o maestro que ordena silencio, y por lo tanto desde una cierta autoridad, también supone la cancelación de la nominación, su reducción a su forma mínima o su revés, el llanto, el aliento, el balbuceo: ¡Bajad la voz, os digo; Bajad la voz, el canto de las sílabas, el llanto De la materia (…) ¡Bajad el aliento, y si el antebrazo baja si las férulas suenan, si es la noche, (…) si no veis a nadie, si os asustan los lápices sin punta, si la madre España cae—digo, es un decir— Salid, niños del mundo; id a buscarla…! (VALLEJO, 1988: 482)

29 Si bien se posiciona desde el lugar de enunciación del autor/adulto, el yo poético no es una voz didáctica, portadora de saber: su pedido “bajad la voz” escenifica la impotencia del lenguaje poético ante la caída de España, cuya pérdida deja a los niños desamparados, sin lenguaje y sin sentido histórico.7 La infancia, escenificación de la negatividad del lenguaje poético, signo de la fragmentación de la experiencia histórica y cuestionamiento de la conciencia del sujeto hablante, por su carácter densamente experimental, contradice la lectura que la crítica ha hecho del poemario escrito en honor a la Guerra Civil Española como recuperación de la gramaticalidad y reposición de los valores del nombrar (ORTEGA, 1988: 611). Carentes de protección, solos ante el peligro, amenazados por la caída de la madre-España, los niños deberán, por sí mismos, “ir a buscarla”. Este niño que, recién llegado al mundo, atestigua la caída de la patria, señala no sólo la crisis del lenguaje sino de la propia colectividad socio-política.

30 Vallejo escribió el cuento infantil Paco Yunque en Madrid en 1931, en respuesta al pedido de un cuento infantil por parte de un editor español, quien más tarde lo rechazaría por ser demasiado triste, según afirma la viuda Georgette Vallejo, quien se encargaría de publicarlo en forma póstuma (VALLEJO, 1998: 25). En sus apuntes biográficos, Georgette Vallejo ubica a Paco Yunque como parte del conjunto de textos escritos luego del segundo viaje del escritor a la unión soviética, sobre los cuales afirma: “Todas estas obras están suscitadas por la solidaridad de Vallejo con la humanidad explotada y avasallada (…). En Vallejo, especialmente despojado de apetitos individuales y de conceptos interesados, el revolucionario marxista nos lega: (…) hasta

Artelogie, 14 | 2019 76

un cuento para niños.” (DE VALLEJO, 1977: 133) Si bien Paco Yunque posee un propósito didáctico explícito en su temática y su estructura formal, resulta fundamental tomar distancia de dicha lectura en clave marxista y explorar el modo específico en que el texto investiga la sensibilidad del niño marginado. En el Perú de la época existía la institución andina del criadazgo, relación de dependencia en los hogares privados que implicó la sumisión de niños ilegítimos, indígenas, pobres o huérfanos, dedicados al trabajo doméstico informal, considerados sujetos carentes de derechos (MILANICH, 2005: 35).8 Paco Yunque escenifica el desvalimiento del niño pobre en ese orden, que abarca tanto la vida doméstica como el espacio escolar.

31 Paco Yunque es un niño campesino pobre, hijo de un peón de estancia y una criada, que sufre las vejaciones de Humberto Grieve, su compañero de clase, hijo del inglés gerente de la compañía de ferrocarriles y alcalde del pueblo. El cuento sucede en la escuela de la sierra, espacio marcado por relaciones de disciplina, obediencia, por un régimen jerárquico corporal e intelectual de premios y castigos. Paco ingresa al orden escolar como sujeto carente de derechos: perdida la de por sí precaria protección del ambiente rural familiar – dado que su padre es el peón y su madre la criada del padre de Humberto Grieve -, Paco se encuentra subordinado al hijo del amo y a la disciplina escolar: “a Paco le habían hecho venir del campo para que acompañe a Humberto y para que juegue con él” (VALLEJO, 1998: 384). Paco es criado del niño Humberto, sometido a sus deseos y carente de derechos. El texto enuncia el extrañamiento del niño ante la escuela: En el campo hablaba primero uno, después otro y después otro. A veces, oyó hablar hasta a cuatro o cinco personas juntas. Era su padre, su madre, don José, el cojo Anselmo y la Tomasa. Con las gallinas eran más. Y más todavía con la acequia, cuando crecía… Pero no. Eso no era voz de personas sino otro ruido, muy diferente. Y ahora sí que esto del colegio era una bulla fuerte, de muchos. Paco estaba asordado. (VALLEJO, 1998: 382)

32 Fuera de su mundo oral, rural, comunitario, al entrar a la escuela el niño se somete a una sociabilidad institucional, masiva, violenta. La escuela es “el prototipo de la alienación social” ha señalado Adorno (ADORNO, 1998: 186). Como escenario institucional de la vida civil, la escuela secuestra al niño, le expropia su lenguaje y su sensibilidad regional y lo inviste con la lógica de la alienación moderna. La narración se vuelve jadeante, se fragmenta para dar cuenta, al nivel de la forma, del shock en la percepción infantil: Paco, sin soltar su libro, su cuaderno y su lápiz, se había quedado parado en el medio del salón, entre las primeras carpetas de los alumnos y el pupitre del profesor. Un remolino se le hacía la cabeza. Niños. Paredes amarillas. Grupos de niños. Vocerío. Silencio. Una trancada de sillas. El profesor. Ahí, solo, parado, en el colegio. Quería llorar (VALLEJO, 1998: 382)

33 Sería posible trazar una relación entre la experiencia de Vallejo como tutor del hijo de un terrateniente en la Sierra de Pasco, Perú, su trabajo como maestro, en Santiago de Chuco, en Trujillo y en Lima, el escenario escolar del texto y la serie de debates de la época en torno de la institución pedagógica. Como se mencionó, Mariátegui consideraba a la escuela laica y obligatoria como aplanadora de la diferencia individual, atravesada por desigualdades de clase y de raza y por la sumisión económica y social.

34 Ahora bien, si el texto ha sido leído como un ejercicio formulaico de realismo socialista – próximo al realismo crítico de Máximo Gorki9 -, cabría repensar críticamente el modo en que emerge allí la crítica social. Rechazado como “demasiado triste”, Paco Yunque

Artelogie, 14 | 2019 77

presenta un mundo expresivamente denso, emocionalmente cargado, en que los personajes aparecen como del orden y las jerarquías sociales. Un ejemplo claro es el personaje bestial, abusivo y codificador de Humberto Grieve que repite la frase “Paco Yunque es mi muchacho”. Grieve es una caricatura del niño hijo de gringo, hijo de extranjero que miente y se vanagloria de su poder monetario y social, lo que provoca la burla de todos los niños.10 Otro ejemplo es el profesor, que recompensa las transgresiones de Humberto Grieve en lugar de castigarlo: ¿Quién era el profesor? ¿Por qué era tan serio y daba miedo? Yunque seguía mirándolo. (…) se parecía a otros señores que venían a la casa y hablaban con el patrón. Tenía un pescuezo colorado y su nariz parecía moco de pavo. Sus zapatos hacían risss –risss, -rissssss, cuando caminaba mucho. (VALLEJO, 1998: 395)

35 El profesor es de un histrionismo histérico, descripto en forma caricaturesca, como un burócrata-payaso. Mezcla el terror con el ridículo, es parte del “sumiso séquito de capituleros”, como llama Mariátegui a los maestros (MARIÁTEGUI, 2005: p. 108). La escuela de Paco Yunque, escenario de castigos y sometimiento del cuerpo del niño, está ordenada temporal y espacialmente de forma jerárquica piramidal: el maestro ocupa el vértice y en la base se ubican los niños de acuerdo a su rango y posición social.

36 Debido a la mezcla exasperada de la caricatura cómica con lo terrorífico de la sumisión social y la marginación del niño, Paco Yunque dificulta una lectura del texto como realista socialista, incluso dado su evidente cometido de crítica social. En lugar de una identificación didáctica con los personajes, el texto genera la distancia crítica que Brecht ha analizado en su teoría del distanciamiento en el teatro épico (BRECHT, 1964). Sumergiendo al lector en la sensibilidad del niño marginado, su experiencia de alienación y extrañamiento social y escolar, el texto escenifica una doble búsqueda: por un lado, del niño como núcleo de crítica social y reflexión sobre el sistema educativo y, por otro, de una estética que en su exasperación y crítica de los códigos, de cuenta de la perspectiva caótica de ese niño.

Conclusión

37 Dada su alteridad, la sensibilidad del niño campesino, criado, indígena, emerge en los textos de Vallejo ligada a una serie de rupturas de las convenciones culturales y discursivas. Se trata de un lenguaje que explora la sensorialidad visual, auditiva, táctil y gustativa, así como el momento de ingreso en el orden simbólico, en que deviene sujeto para las instituciones del Estado. A través de este tipo de estrategias formales, Vallejo consigue atrapar trazos, indicios, registros de las sensaciones, afectos y percepciones del niño marginal, de difícil acceso para la historia cultural. Esto se verifica tanto en sus textos poéticos como prosísticos, para adultos y niños: allí, la sensibilidad infantil apunta a lo sombrío, vulnerable y desprotegido, aquello ignorado u olvidado por el mundo adulto, por su efecto perturbador, y trastoca las jerarquías de la representación y de lo representado. La infancia apunta a la posibilidad de constitución de un orden social futuro, pero también a su caída, la crisis de los discursos y de la comunidad social. La sensibilidad infantil, inmersa en una experiencia de alienación y extrañamiento, es capaz de iluminar, e incluso subvertir, las jerarquías de los discursos sociales y los modos de representación.

Artelogie, 14 | 2019 78

BIBLIOGRAFÍA

ADORNO, Theodor W, Critical Models. Interventions and Catchwords, New York, Columbia University Press, 1998.

ALTHUSSER, Louis, “Ideology and Ideological State Apparatuses (Notes towards an investigation)”, en Lenin and Philosophy and Other Essays, New York, MRPress, 1971.

BLOCH, Ernst et al., Aesthetics and Politics, New York, Verso, 2002.

BOSI, Alfredo, “La parábola de las vanguardias latinoamericanas”, en Jorge Schwarz, Las vanguardias latinoamericanas. Textos programáticos y textos críticos, México, FCE, 2002.

BRECHT, Bertold, Brecht on Theatre: The Development of an Aesthetic. New York, Hill and Wang, 1964.

CLAYTON, Michelle, Poetry in Pieces. César Vallejo and Lyric Modernity, Berkley, Univ. Of California Press, 2011.

DE VALLEJO, Georgette, “Apuntes biográficos”, César Vallejo, Obras Completas, Barcelona, Editorial Laia, 1977.

FOSTER, Hal, Compulsive Beauty, Cambridge, Mass, MIT Press, 1993.

FRANCIOLLI, Marco, (ed.) Les Enfants Terribles. The Language of Childhood in Art. Milano, Silvana Editoriale, 2004.

FRANCO, Jean, “La Temática: de Los Heraldos Negros a los “Poemas Póstumos” Obra Poética Completa, Madrid, Ed. Archivos, 1988.

FRANCO, Jean, César Vallejo. The Dialectics of Poetry and Silence, New York, Cambridge Univ. Press, 1976.

GUY, Donna, “The Pan American Child Congresses, 1916 to 1942: Pan Americanism, Child Reform and the Welfare State in Latin America”, Journal of Family History, 23, 1998, Pp. 272-291.

GUY, Donna,“The State, the Family and Marginal Children in Latin America”, en Tobias Hecht (ed.) Minor Omissions: Children in Latin American History and Society, Wisconsin, Univ. of Wisconsin, 2002.

GUY, Donna, Women Build the Welfare State, Duke Univ. Press, Durham, 2009.

KRAUSS, Rosalind, The Originality of Avant-garde and Other Modernist Myths, Cambridge, MIT Press, 1988.

KRISTEVA, Julia, “El tema en cuestión: el lenguaje poético”, C. Lévi Strauss, Seminario: La Identidad , Barcelona, Petrel, 1981.

LAVRIN, Asunción, “La niñez en México e Hispanoamérica: rutas de exploración” en Aizpuru y Rabell (comps.), La familia en el mundo Iberoamericano, México: UNAM, 1994.

LEINAWEAVER, Jessaca B, The circulation of children. Kinship, Adoption and Morality in Andean Peru, Durham, Duke Univ., 2008.

LÓPEZ VIGIL, Ricardo, “Prólogo” Vallejo, César, Novelas y cuentos completos. Lima, Ediciones Copé, 1998.

MARIÁTEGUI, José Carlos, “El proceso de la instrucción pública”, Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana, Buenos Aires, El Andariego, 2005.

Artelogie, 14 | 2019 79

MARIÁTEGUI, José Carlos, “Temas de educación”, Obras completas., Perú, Ed. Amauta, 1970.

MAZZARI, Marcus Vinicius, Labirintos de aprendizagem. Pacto fáustico, romance de formação e outros temas de literatura comparada, São Paulo, Editora 34, 2010.

MILANICH, Nara, Children of Fate. Childhood, Class and the State in Chile. Durham, Duke Univ. Press, 2005.

MOLLOY, Sylvia, Acto de presencia. La escritura autobiográfica en Hispanoamérica, México, El Colegio de México / Fondo de Cultura Económica, 1996.

ORTEGA, Julio, “La Hermenéutica vallejiana y el hablar materno”, Obra Poética Completa, Madrid, Ed. Archivos. 1988.

PILOTTI, Francisco y RIZZINI, Irene, (eds.) A arte de governar crianças. A história das políticas sociais, da legislação e da assistência da infância no Brasil, Rio de Janeiro, Instituto Interamericano Del Niño / AMAIS.

ROSENBERG, Fernando, The Avant-garde and Geopolitics in Latin America. Pittsburgh, Pittsburgh University Press, 2006.

ROAZEN, Daniel Heller, Echolalias- On the Forgetting of Language, New York, Zone Books, 2005.

UNRUH, Vicky, Latin American Vanguards. The Art of Contentious Encounters, Berkeley, University of California Press, 1994.

VALLEJO, César, Correspondencia completa, Ed. Jesús Cabel, Lima, Pontificia Universidad Católica del Perú, 2002.

VALLEJO, César, “Autopsia del superrealismo”, en Jorge Schwarz, Las vanguardias latinoamericanas. Textos programáticos y textos críticos, México, FCE, 2002, Pp. 465-470

VALLEJO, César, Obra Poética, Madrid, Ed. Archivos, 1988.

VALLEJO, César, Novelas y cuentos completos, Lima, Ediciones Copé, 1998.

NOTAS FINALES

1. La “escena”, como apuntó Jacques Rancière, es la inscripción del evento estético en una constelación variable de modos de percepción, afectos y modos de interpretación, y constituye la comunidad sensible e intelectual que torna posible esas relaciones (RANCIÈRE, 2013: 11). 2. Es el caso del romanticismo brasileño, de Joaquim Nabuco y Gonçalves de Magalhâes, leído por Silviano Santiago (SANTIAGO, 2004: 20). 3. Fernando Rosenberg afirma que los artistas de vanguardia experimentan una suerte de “retorno populista” en la década de 1930 y 1940 (ROSENBERG, 2006: 150). 4. En “Anotaciones”, afirma, sobre la politización del artista: “en el verdadero artista, las opiniones políticas importan poco”, y en “Literatura proletaria”: “en mi calidad de artista, no acepto ninguna consigna o propósito extraño, que aún respaldándose de la mejor buena intención, someta mi libertad estética al servicio de tal o cual propaganda política.” (SCHWARZ, 2002: 517-518. 5. “La pareja familia-escuela ha reemplazado la pareja familia-Iglesia” (ALTHUSSER, 1971: 153-154). 6. Entre los himnos infantiles de Bertold Brecht, pueden citarse: “Children’s song” (1937), “To those born after” (1939), “Children’s crusade” (1939), “Children’s hymn” (1950) y “Little postwar song” (1950). Dice Marcus Vinicius Mazzari sobre ellos: “Brecht formula, em novo ciclo de

Artelogie, 14 | 2019 80

canções infantis, uma espécie de utopia da infância, (...) dirigida, em seus ciclos de canções infantis, diretamente as crianças” (Mazzari, 2010: 222). 7. “Al final la pérdida de España dejará a los niños sin sombre y sin lenguaje porque el extravío del sentido histórico equivale a la regresión, al páramo sin habla,” (ORTEGA, 1988: 608). 8. Nara Milanich afirma sobre la institución Latinoamericana del criadazgo, “Al no regular la ley la relación entre los amos y los criados, estos niños son vistos más como beneficiarios de la benevolencia que como portadores de sus propios derechos. Este hecho contribuye en gran medida a su status de sumisión en los hogares privados.” (MILANICH, 2005: 33). Para un análisis del fenómeno de la circulación de los niños indígenas en la cultura Andina ver LEINAWEAVER, 2008). 9. Ricardo López Vigil lee a Paco como emblema del proletariado y a Fariña como símbolo leninista. (VIGIL, 1998: 7.) Por su lado, Georgette Vallejo analiza un garabato por el que Vallejo habría indicado a la editorial el modo y el lugar en que se debían incluir las ilustraciones en el libro infantil, resaltando su contenido de crítica social. (VALLEJO, 1998: 402.) 10. “No, señor- decía Humberto Grieve-. Porque en mi salón [los peces] no se mueren. Porque mi salón es muy elegante. Porque mi papá me dijo que trajera peces y que podía dejarlos sueltos entre las sillas. Paco Fariña se moría de risa. Los Zumiga también. El chico rubio y gordo, de chaqueta blanca y el otro, cara redonda y chaqueta verde, se reían ruidosamente. ¡Qué Grieve tan divertido! ¡Los peces en su salón! ¡Entre los muebles! ¡Como si fuesen pájaros! Era una gran mentira lo que contaba Grieve. (VALLEJO, 1998: 389)

RESÚMENES

El artículo examina la “escena” de infancia en una selección de textos del escritor peruano César Vallejo. Se abordan los sentidos por los cuales la sensibilidad del niño campesino, indígena, emerge en Vallejo a través de una ruptura de las convenciones culturales. Con ese fin, se establecen relaciones con el modo en que las vanguardias europeas y latinoamericanas concibieron a la infancia y con los debates de una serie de intelectuales alrededor de cuestiones sociales y modelos pedagógicos en América Latina. Se argumenta que en los textos de Vallejo la infancia combina un posicionamiento político alrededor de la infancia excluida o marginada y una serie de búsquedas formales ligadas a la sensibilidad del niño marginado, excluido de la visibilidad social.

L’article examine la « scène » de l’enfance, dans une sélection de textes de l’écrivain péruvien César Vallejo. Nous allons étudier la sensibilité de l’enfant autochtone, aborigène, élevé en milieu rural, laquelle se manifeste à partir d’une rupture des conventions culturelles. Des rapprochements sont faits avec la façon dont les avant-gardes européennes et latino-américaines ont pensé l’enfance et avec les débats menés par plusieurs intellectuels autour des questions sociales et des modèles pédagogiques en Amérique latine. Dans les textes de Vallejo, ce sujet s’associe à un positionnement politique à l’égard de l’enfance exclue ou marginalisée, et également à une série de recherches formelles liées à la sensibilité de l’enfant marginalisé, exclu de la visibilité sociale.

ÍNDICE

Mots-clés: enfance, sensibilité, César Vallejo, avant-gardes. Palabras claves: infancia, sensibilidad, César Vallejo, vanguardia.

Artelogie, 14 | 2019 81

AUTOR

ALEJANDRA JOSIOWICZ

CPDOC-FGV (Pós-doutorando) e IIEGE-CONICET (Pesquisador)- [email protected]

Artelogie, 14 | 2019 82

Novas sensibilidades, performances e o neoconcretismo : o exercício experimental de liberdade de Hélio Oiticica

Robson Corrêa de Camargo

A line is a dot that went for a walk Paul Klee Uma linha é um ponto que foi contar um conto. Paul Klee

1 (em tradução livre)

2 O objetivo deste trabalho é discutir alguns aspectos do percurso do trabalho do artista performer Hélio Oiticica (1937-1980), um artista brasileiro que se construiu como um artista/performer na crítica atuante sobre a arte de seu tempo e no observar das novas relações que sua obra estabelece no mundo. Hélio Oiticica organizou seu trabalho objetivando novas formas de produção de sensibilidade, redimensionando suas obras em diferentes ocupações de espaço e na sua interação/inter-relação com o público ativo e partícipe da obra, procurando não mais um observador, mas um público atuante, um participador, um participator, que estabelece outra lógica ao inserir o espectador artista no presente da execução da obra.

3 Sua arte, assim como a de seus contemporâneos e companheiras Lygia Clark (1920-1988) e Lygia Pape (1927-2004), não visava apenas romper com o suporte fixo, mas produzir uma obra de arte que invadiria o locus público e com ele interagiria, numa relação dinâmica e presente entre ser e obra. Oiticica afirmava, em 1971, em plena Nova Iorque, que a performance não devia ser preform, preformada (OITICICA, 1971 : PHO 0511/71). Em sua compreensão a performance deve existir como ação simultânea, arte em ato, não o de ser pré-elaborada para uma apresentação. O público

Artelogie, 14 | 2019 83

não pode ser complementar na relação com o objeto artístico (OITICICA, 1971 : PHO 0511/71). A obra de arte como ação no ambiente, arte como sinal, arte ambiental, onde um som e um grito podem ser objeto.

4 “Exercício experimental de liberdade”, como ele mesmo chamava suas intervenções, nome sugerido pelo crítico Mario Pedrosa (1900-1981), foi o leit motiv de sua obra múltipla, e teve como impulso o ampliar ou o expandir das relações de sensibilidades até então estabelecidas (PEDROSA, 1973 : 84-143).

5 A superação da arte contemplativa dominante até aquele momento, para uma arte que procurava afetar e propor novos comportamentos e que se libertava dos ditames do autor, é uma das grandes conquistas do movimento a que ele se filiou, e que teve importantes precursores em nosso país. A arte de Hélio Oiticica procurou uma nova dimensão ética, social e política, mesmo no marco dos tempos iniciais da ditadura militar que nos comprimia. Ou ainda, como definiria o crítico Mario Pedrosa (1900-1981), a arte de Oiticica convocava o envolvimento do espectador em trabalhos que “não mais se concentravam na materialidade da forma e na objetividade da linguagem”, mas num ato de arte e vida e na procura da arte total (PEDROSA, 1973 : 143).

Grande Núcleo (Grand Nucleus) de Hélio Oiticica, 1960-1966. Óleo e resina em madeira, dimensão geral 6.7 m. x 9,75 m. imagem em http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_visual/img/movimento_neoconcreto_helio_oiticica.jpg acesso em 15 outubro 2018.

6 Oiticica procurava o campo ampliado da pintura, a superação do quadro, e uma arte ambiental, que incorporasse e se tornasse o ambiente circundante, suas contradições e contra discursos. Esta perspectiva de trabalho tem seus inícios nos Núcleos, denominação de placas de madeira geométricas diversas, em diversos tamanhos, suspensas e expostas juntas, em três/partes cores que arrebentavam a estrutura bidimensional e se arremessavam ao espaço. Um quadro abstrato que se transmutava

Artelogie, 14 | 2019 84

no espaço, inseria o público na obra ou arremetia o quadro na vida do espectador. Para que se possa absorver o desdobramento expandido da cor no Núcleos de Oiticica é preciso que o participante adentre nesta estrutura de placas coloridas, cercando-se delas e vendo-as por todos e múltiplos ângulos, dentro/fora. O espectador incorpora o ponto de vista do artista e perambula pela obra, desconstruindo ou construindo múltiplas perspectivas.

Núcleo de Hélio Oiticica, 1960. Instituto Cultural Inhotim em Brumadinho/Minas Gerais/Brasil. https:// commons.wikimedia.org/wiki/File:Inhotim_Oiticica_04.jpg acesso em 20 dezembro de 2018

7 Sua fase seguinte, não mais formas coloridas que saltavam aos espaços, agora são Bólides (Fireballs), desenvolvidos entre 1963-1967, 64 trabalhos que permitem a luz penetrar no seu interior, produzindo assim recipientes de luz. Procuraram decompor ou desestruturar a matéria prima constitutiva da arte, pó de cores encapsuladas que se reuniam em formas geométricas várias, em relações múltiplas com embalagens de vidro, plástico, cimento que compunham formas distintas em distintas relações. O espectador é intimado a se envolver, pisar, entrar em contato com o material. Arte como experiência no movimento. Bólide é como se chama a um grande meteorito que, inflamado, brilhante, atravessa a atmosfera, deixando um rastro luminoso ou explodindo. Assim se nomina qualquer corpo que se desloca em grandes velocidades, assim explode a arte de Oiticica.

8 O novo concreto, o neoconcreto, procurava uma produção engajada, que dialogasse com o ambiente que o cercava, trazendo a realidade e o público para dentro da obra, com materiais “puros” que podem ser manipulados pelo observador, como pigmento, terra, zarcão. Assim são os Bólides. Num movimento de tele transporte a matéria se condensa, se adensa, se projeta, se destrói. Estabelecem-se assim as bólides, multiplicam-se e aprofundam a relação intuitiva do publico com a obra, arte expandida que deforma o espaço ao redor, suga o público para as formas primeiras da arte, perturbando o movimento ao redor e convidando o observador ao processo de atuação.

Artelogie, 14 | 2019 85

B08 Bólide de vidro 02 (1963-1964) vidro: 270- mm x 280 mm diâmetro. Caixas de madeira 205 mm x 144 mm x 140 mm. Coleção de Luiz Antonio Braga, Rio de Janeiro. Imagem da Galeria Tate https://www.tate.org.uk/whats-on/tate-modern/exhibition/helio-oiticica-body-colour/helio-oiticica-exhibition- guide/helio-5 acesso em janeiro de 2019.

9 Estes foram alguns dos passos prévios que desaguariam nos Parangolés, a experiência tátil de cores em movimento envolvente de um espectador in motu proprio. Se antes o espectador era convidado polidamente a entrar na obra, agora ele deve tomar para si o objeto e os meios de sua produção, participator de uma obra dançada, que só será obra se possuída. Uma obra que procura incorporar, desenvolver-se na relação completa e complexa do homem com a Natureza, tal como dissecado por Marx em seus escritos Econômico e Filosóficos (1844). Um ser humano “sensível” que se apropriava da obra, ser em obra, homem natureza sensível.

10 A Declaração Princípios Básicos da Nova Vanguarda, de 1967, manifesto assinado por vários artistas, entre eles o artista multimídia Antônio Dias (1944-2018), a “não artista” Lygia Clark, como ela se auto proclamava, e a performer multimídia Lygia Pape, além do próprio Hélio Oiticica. Propunha-se nele novos parâmetros para o que ainda se chamava de uma arte “de vanguarda” e propugnava-se nesta Declaração uma arte que pudesse contribuir para que se alterassem as “condições de passividade ou estagnação” do público e para que a relação obra-público fosse estendida, sua manifestação deveria então se dirigir a “todos os campos da sensibilidade e da consciência do homem”. Conforme o Catálogo da exposição Nova Objetividade Brasileira ocorrida no MAM-RJ em 1967 (https://vdocuments.site/declaracao-dos-principios-basicos-da- vanguarda-1967.html).

11 Á luta por uma nova relação sensível com o público, apontava aquele manifesto, enquanto se gestava o que seria o ato institucional número cinco de 13 de dezembro de 1968, que determinaria o fim da pouca liberdade ainda existente naqueles tempos de ditadura, impondo-se por algum tempo o silêncio. Manifesto aquele que defendia ser

Artelogie, 14 | 2019 86

necessário não apenas perceber a obra, mas o se introduzir nela, envolver o público no entendimento crítico da realidade do artista e do ambiente, onde a execução da obra deveria se fundamentar na liberdade cerceada. Ao mesmo tempo esta arte ambiental deveria procurar uma linguagem que buscasse superar as condições paralisantes desse ato de liberdade promovido, arte que buscava, portanto, não o entorpecer.

12 Este paradoxo da liberdade, arte como experiência, presente na apresentação/recepção da obra de arte, mostra uma das questões centrais que foi invadindo o trabalho de Oiticica e de outros artistas brasileiros na década de 1960, e que seria o terreno fértil daquilo que foi chamado Tropicalismo, no teatro, na música, na dança, na vida.

13 A linguagem da arte necessitaria assim estar em consonância com o desenvolvimento dos acontecimentos de seu entorno e procurar dinamizar os fatores de apropriação da obra, introduzindo o público nela ou se introduzindo no público, assim o projeto caminhava no sentido de imergir o artista na “atividade criadora na coletividade” e vice-versa.

14 A múltipla proposição dos signatários daquela exposição, visava a “invenção de novos meios capazes de reduzir à máxima objetividade tudo quanto deveria ser alterado, do subjetivo ao coletivo“, “da visão pragmática à consciência dialética (item 6)”. Apresentando, acrescentando ou inserindo um sentido cultural no trabalho criador, o movimento adotaria não apenas a obra e sua exposição poli sensível, mas ainda todos os métodos possíveis de comunicação com o público, “do jornal ao debate, da rua ao parque, do salão à fabrica, do panfleto ao cinema, do (rádio) transistor à televisão”. Não! Isto não era novo, mas não era a novidade que procuravam.

15 Esta não era uma nova proposição individual do artista Oiticica, alguns artistas brasileiros procuraram também jogar para fora seus demônios, ou incorporá-los, na relação obra-público. Um deles foi a própria Lygia Clark, que, já em 1957, dez anos antes, em seus cadernos de notas e pensamentos apontava: “A obra (de arte) deve exigir uma participação imediata do espectador e ele, espectador, deve ser jogado dentro dela”. (PEDROSA, 1980 : 14-17). Aponta Pedrosa que, com o trabalho de Lygia Clark, o conceito de espaço, como o de realidade, sofrera profunda alteração, pois não haveria mais um espaço contemplativo, mas “um espaço circundante" (PEDROSA, 1980 : 14-17). A arte de Hélio Oiticica, assim como o LP Tropicália ou Panis et Circenses, a encenação de Rei da Vela, a arte antiarte do final dos anos 1960, estabelecem novos parâmetros de conhecimento e integração da vida e da arte, com a paródia, a ironia, o deboche, a reconstrução do passado, nos marcos vividos da ditadura militar brasileira. A antropofagia revolucionária assim se instalava num reverter das expectativas e das vivências estabelecidas até então pela arte no Brasil.

Artelogie, 14 | 2019 87

Máscaras Sensoriais de Lygia Clark. 1967. http://contemporaneaarte.blogspot.com/2009/10/as- mascaras-sensoriais-lygia-clark.html acesso em 18 de outubro de 2018.

16 Lygia Clark nas suas Máscaras Sensoriais, de 1967, procurava disponibilizar o tocar, o cheirar, o apertar, o sentir, o interagir. Neste o publico artista deixaria um pouco de si e levaria um pouco do que a artista desejava. Assim também seus Bichos - esculturas de chapas de metal para serem manipuladas, que poderiam se transmutar em diversas formas a partir do desejo do usuário; nos entrelaces de corpos na fase denominada Nostalgia do Corpo ou ainda nas Máscaras Sensoriais que provocavam uma explosão de sentidos ao participante. Os homens e a mulheres deveriam encontrar o fantástico dentro de si, pelo tato, sons e odores, o participante poderia então ser levado "a um estado equivalente ao da droga", pretendia-se nelas o perder do contato com a realidade externa e a imersão no simbólico interior projetado.

17 As máscaras tinham saquinhos de sementes e ervas na altura do nariz, cada uma com um cheiro característico, perto do ouvido materiais que produziam ou provocavam sons, nos olhos reduzidos orifícios com diferentes materiais, o objetivo era isolar o indivíduo, cortar as conexões com o externo e convidar a uma viagem com seu próprio corpo, interior e pessoal.

18 Outra artista destes precursores, Lygia Pape, em 1968, seguindo as trilhas de Oiticica, construiria a performance Divisor, um pano branco de cerca de 30 metros com muitos buracos, para que as pessoas o vestissem, coletivamente, e andassem em grupo pelas ruas do mundo. A ação fora realizada pela primeira vez em 1967 com um grupo de crianças da Favela da Cabeça, no Rio de Janeiro. Na performance, cerca de 100 pessoas preenchem um pano de 30 por 30 metros. Realizada durante a ditadura militar, a performance era uma crítica à repressão do regime, especialmente à vigilância do espaço público, quando não se permitia andar em um grupo de mais de três pessoas.

Artelogie, 14 | 2019 88

Divisor. Lygia Pape, 1968. http://www.arte.seed.pr.gov.br/modules/noticias/article.php?storyid=741 Acesso em 15 de outubro de 2018.

19 Este movimento em busca do não contemplativo ou da criação coletiva, público inserido, amálgama arte e vida, arte em processo, procurava uma arte colaborativa, acompanhava as novas possibilidades potencializadas pela revolução industrial, inserindo novos paradigmas que incorporavam a cultura de massas. Alargavam-se os critérios para se atingir o ser humano, despertando-o para a participação renovadora e para a análise crítica da realidade. Assim esta arte estaria imersa na diversidade das experiências que se presentavam e procurava construir uma integração na comunidade das experiências. Experiências que procurariam, ao mesmo tempo que apresentavam uma vivencia de liberdade, e que objetivava uma nova objetividade, para “superar as condições paralisantes dessa liberdade”. O barato da obra de arte não deveria torpor a realidade.

20 Na exposição do MAM/RJ, de abril de 1967, esta mostra coletiva da Nova Objetividade Brasileira, concentrou ainda o trabalho de outros grandes artistas como o cenógrafo Flávio Império (1935-1985), Glauco Rodrigues (1929-2004), Carlos Vergara (1941), Sérgio Ferro (1938), o crítico Mario Pedrosa (1900-1981), reunindo diferentes vertentes das vanguardas nacionais, arte concreta, neoconcreta.

21 Novas figurações em torno da “nova objetividade”, um termo que, para Oiticica, traduziria fielmente as experiências e trajetórias das vanguardas brasileiras, numa tendência de superação dos suportes tradicionais (pintura, escultura) em proveito de estruturas ambientais e objetos. Numa perspectiva que hoje poderia ser chamada precisamente de neocolonial, procurava-se a criação e defesa das produções locais, e que estas não fossem apenas simples cópias do que se produzia nos grandes centros internacionais. Gestava-se aí a antropofagia, onde se digeriam os pensamentos emanados da Europa e América do Norte e se provocavam novos olhares e tocares.

22 Oiticica e os artistas brasileiros reunidos procuraram um campo ampliado de suas produções artísticas. Este núcleo de artistas, com intensa experiência internacional, pode olhar com desdém ao surgimento da performance art em Nova Yorque. Oiticica afirmará que as experiências que presenciou a partir de 1970 naquele país, contrariamente ao que propagavam e propagam até hoje, como ato revolucionário, se tornavam, para ele, apenas um “lugar comum”. A imensa maioria da performance art

Artelogie, 14 | 2019 89

seria para ele apenas uma arte tradicional que não tocava “as questões centrais do fenômeno artístico em seu tempo”. Chutava Oiticica o pau da barraca da arte de nossa matriz.

23 Para Oiticica a vanguarda norte-americana se rendia docilmente ao mundo do espetáculo norte-americano, pois conservava a antiga relação da performance, da arte para se ver. Observava ele que à parte as raras experiências-limítes do underground, as performances de Yoko Ono e o rock-implosão de Hendrix-Stones - o mundo do espetáculo norte-americano, e mesmo das artes, permanecia repetindo o antigo estereótipo da performance para ver, não colocava a participação do espectador em questão. Vai exemplificar concretamente essa situação ao comentar uma apresentação do artista Willoughby Sharp, que deixava a plateia sentada a uma distancia segura “como nos velhos musicais”. Decretava Oiticica: “é muito chato e eu não posso suportar esta merda passiva: ressoa como uma missa, e a maioria das performances aqui são assim (it’s boring and I can ́t stand all this passive shit: sounds like church performance, and most performances here are like that). (OITICICA, arquivo 1150.71, 1970?).

24 Oiticica identifica que a nova vanguarda norteamericana apenas maquiava o velho conceito de arte do século XIX. Assim comentava Hélio Oiticica, direto de Nova York (vale a pena o longo comentário): No Brasil, dos anos 50, surgiram problemas que até hoje são novidades aqui, ou melhor, nem sequer foram abordados; quando se pensa em, p.ex., performances, se pensa sempre (aqui) num nível de espetáculo, que nada transforma a ideia que se tem de “espetáculo” (estou com um livro genial do Guy Debord, Society of the Spectacle [original de novembro de 1967 La Société du Spectacle, em inglês a edição é de 1970)], que coloca tudo isso up to date; uma maravilha, e do qual quero tirar material para esse argumento); há uma ânsia aqui de inventar coisas, mas que acabam por se resumirem em invenções de detalhe (como nos objetos de consumo), pra dizer: “eis o novo”; num nível de criação, o “novo” nunca é absoluto: no “novo” o “velho” toma uma parte importante, porque se transforma de verdade; ao passo que a absolutização do conceito de “novo” passa a ser uma máscara por trás da qual se esconde o “velho” (não sei se alguém já disse isso;...) portanto quando há um nível de transformação , é de se esperar que seja uma transformação autêntica; essas transformações, como você sabe, podem durar uma obra-vida inteira (penso que quando morrer, tudo o que quero ainda estará para ser abordado em grande escala); é preciso e essencial portanto que o artista se repita no que diz: a insistência a determinados argumentos é importante; não me importo em ter que durante toda a vida ter que falar na conceituação de “arte”, “obra de arte”, “coisa”, “objeto”, “espectador e espetáculo”, “participador”, etc.; (Arquivo Hélio Oiticica 1150.71)

Artelogie, 14 | 2019 90

Hélio Oiticica na manifestação do MAM-RJ 1965. Imagem em https://periodicos.ufpa.br/index.php/ ppgartes/article/viewFile/4863/4360. Acesso em dezembro 2018.

25 Voltemos um pouco a Opinião 1965. A exposição Opinião 65 integrara as comemorações do IV Centenário da cidade do Rio de Janeiro, no Museu de Arte Moderna (MAM/RJ). Foi realizada entre os dias 12 de agosto e 12 de setembro. Reunira vinte e nove jovens artistas, treze europeus e dezesseis brasileiros. Apontava esta uma relação existente entre a nova figuração francesa e a brasileira. Opinião 65 inspirava-se no entusiasmo geral que o show organizado pelo Teatro de Arena no Rio de Janeiro despertara, foi a primeira manifestação cultural organizada após e contra o golpe militar de 1964. O show do Teatro Opinião fora estrelado por Nara Leão, depois substituída pela nova cantora Maria Bethânia, João do Vale e Zé Ketti, com direção de Augusto Boal.

26 A abertura de “Opinião 65” ficaria marcada pela apresentação dos Parangolés de Hélio Oiticica, fora do museu, quando junto com os “crioulos” passistas da mangueira paramentados de parangolés, capas e estandartes em movimento, serão expulsos do recinto sendo obrigado a dar continuidade a sua performance nos jardins do MAM, numa época que os brancos finos visitavam os museus de terno e gravata.

27 A dança parangolé de Oiticica procurava incorporar corpo e obra, ato improvisado, gesto ritmo, onde o corpo se conforma em contínua transformabilidade, os objetos como imanência expressiva. Oiticica procurava um ato corporal expressivo que se transformasse sem cessar (OITICICA, 1965 : 1-4). Como bem expressara: A experiência da dança (o samba) deu-me portanto a exata ideia do que seja a criação pelo ato corporal, a contínua transformabilidade. De outro lado, porém, revelou-me o que chamo de ‘estar’ das coisas, ou seja, a expressão estática dos objetos, sua imanência expressiva, que é aqui o gesto da imanência do ato corporal expressivo, que se transforma sem cessar. (Oiticica, 1986: 75)

28 Os Parangolés só existem em movimento, um manifesto da cor no espaço ambiental através do seu arejamento contínuo. Parangolé. O espectator veste a capa que se constitui como camadas de pano de cores que se revelam à medida que se movimentam

Artelogie, 14 | 2019 91

dançando, correndo, pulando, a obra exige que o espectador se movimente, que a dance. O vestir do parangolé já é um transvestir, como afirmava Oiticica: “[...] As imagens liberadas na dança são móveis, rápidas, inapreensíveis – são o oposto do ícone, estático e característico das artes ditas plásticas – em verdade a dança, o ritmo, são o próprio ato plástico na sua crudeza essencial – está aí apontada a direção da descoberta da imanência. Esse ato, a imersão no ritmo, é um puro ato criador, uma arte – é a criação do próprio ato, da continuidade; é também, como o são todos os atos da expressão criadora, um criador de imagens – aliás, para mim, foi como que uma nova descoberta da imagem, uma recriação da imagem, abarcando, como não poderia de ser, a expressão plástica na minha obra”. (OITICICA apud FAVARETTO, 1992 : 115).

29 O Parangolé são três, tenda, estandarte e capa. Na tenda o participador penetra para desvendar a estrutura-cor espacial da obra, o estandarte é a estrutura ligada ao ato de carregar do participador, a capa é a experiência propriamente dita, podendo assistir a outrem, um vestir, dançar em obra coletivo, formando um espaço inter-corporal. Assim nos Parangolés o participador ou participator tem a experiência da cor em seu próprio corpo, experiência orgânica, entre os elementos.

Dançando o Parangolé. https://br.pinterest.com/pin/51932201932720096/ acesso em 20 de outubro de 2018.

30 Se a discussão colocada pelos artistas neoconcretos na década de 1960 no Brasil foi fundamental, na relação dinâmica com o ambiente, estabelecendo novas relações com as pessoas que envolvia, outras questões merecem ser acrescentadas na relação com o sensível e que podem aprofundar ou amplificar o entendimento da questão da relação com a obra de arte e do envolvimento do artista com o público. A arte é uma manifestação única de linguagem, talvez uma não linguagem, uma experiência mítica, ou icônica.

Artelogie, 14 | 2019 92

Parangolé “incorpora a revolta” https://br.pinterest.com/pin/61502351141470049/ Acesso em15 de outubro de 2018.

Susanne Langer, a arte como experiência última do sensível

31 Susanne Langer (1895-1985), ao procurar entender o processo simbólico, humano em seu livro Sentimento e Forma de 1953 (1980, ed. Perspectiva), descreve que, tanto a arte como a linguagem têm em comum o estruturar nas articulações dos símbolos. Entretanto, Langer aponta distinções em suas naturezas, processos ou movimentos, seja na linguagem como na arte. Para ela os símbolos se compõem de forma distinta em ambos, o que levaria a que não apenas percebêssemos a diferença entre ambos, mas distanciássemos nosso entendimento de arte como linguagem, por serem de naturezas diversas.

32 A linguagem, gestual, falada ou escrita, é discurso composto a partir de símbolos elementares – sentenças, orações, frases, palavras, e mesmo com partes significativas de palavras: raízes, prefixos, sufixos, etc.; símbolos selecionados, arranjados e permutáveis de acordo com “leis da linguagem”, leis publicamente conhecidas por todos que tendem a comunicação. A linguagem é assim um sistema de símbolos que necessariamente se estrutura nesta relação para o entendimento da comunicação.

33 A arte, ao contrário, se organiza como símbolo único, sem uma referência necessária na natureza ou na sociedade e sem a necessária decomposição em seus elementos simples, num terreno que se constrói sem a obrigatoriedade das leis do significado, composto por partes aleatórias que podem se contradizer. A arte tem como objetivo não o esclarecimento de uma ideia, o de “transmitir” algo, mas o possibilitar uma experiência verdadeira, mas não o de ser uma repetição de determinada outra experiência ou mesmo de uma forma de imitá-la.

Artelogie, 14 | 2019 93

34 Seus elementos isolados, suas partes, ao acaso, jogam um papel em sua forma total, são determinados por ela, mas não falam de si. (LANGER, 1980 {1953} : 383). O produto da arte então é símbolo primeiro, não um simbolismo de outro algo. Se a linguagem é um meio, para Langer, a arte é um dado. Se a linguagem é meio, media, a arte é um fim, e um começo.

35 Para Langer uma obra de arte é sempre um símbolo primário, único, indivisível, não discursivo, um símbolo que chama presentacional, não é meio, não re-presenta, pois presente, se presenta, e este pode ser analisado, mas não reduzido à análise. É um símbolo presentacional construído em um “processo de síntese de elementos”, sobrepostos, justapostos, contrapostos, apostos. Seus elementos se compõem de forma totalizante (LANGER, 1980 : 383). A arte assim não é redutível a nenhum de seus elementos, ao estado subjetivo de seu autor na época de sua produção, a uma biografia ou meio cultural, nem a uma determinada afirmação: “Ceci n'est pas une pipe” (MAGRITTE, 1928/9).

36 Arte é um símbolo primeiro, primevo, primordial, não um simbolismo de algo, seus elementos, ou suas partes jogam um papel na totalidade, pela totalidade. O objeto arte é uma forma total ou completa. Mônada, monas, um todo que não tem partes. Não é expressão do eu, embora possa se constituir do eu e do não eu, de significados, de biografias, de mensagens.

37 Há ainda outra questão fundamental. Se o objeto artístico deve ser afastado de seu entendimento lógico descritivo, de sua compreensão analítica como instrumento de linguagem, que não o enquadra, para Susanne Langer este objeto artístico único é ainda um símbolo manifesto do sensível humano, um sensível concretizado no produto da arte. Mito que carrega narrativas, sensível objetivado.

38 O produto da arte é uma forma de sensível. Assim a Arte não seria uma forma de expressar outros, emoções e/ou ideias, como se costuma afirmar. Como se vê a compreensão da arte como linguagem limita a arte ao procurar-se entende-la como um meio de expressão de outra coisa, de algo, como meio e não como coisa em si.

39 Mas atenção há que se entender este sentimento (feeling), para que não se perca o sentido. Sentimento pode ser o tato, a sensação, o sentimento, a emoção, a opinião, o pressentimento, a impressão, a suspeita, a sensibilidade, a ternura, o afeto, o gosto. O sensível, ou um sensível. Assim temos um feeling que não deve ter necessariamente sentido (entendimento, razão), nem ser o reconhecimento de sensações, pois está se falando de um sensível, sujeito.

40 O sensível que estrutura a obra de arte tem que ser entendido de forma abrangente, pois este pode ser, não apenas o sentimento, a emoção ou a sensação, mas também a imaginação, a memória e o raciocínio dentro do processo. A experiência de sensível (felt experience), experiência sentida, é elaborada por nós no processo superior de desenvolvimento, intelectualizada e socializada com a evolução da fala e o desenvolvimento das funções comunicativas.

41 O sensível infelizmente foi traduzido ao português, por Sentimento e Forma (Feeling and Form), como sentimento, mas o sensível é composto de um processo complexo que envolve a memória, a imaginação, o raciocínio, a emoção, a sensação ou o amalgama de todos ou de cada um deles, o sensível em sua forma mais ampla.

42 Langer apresenta a arte como manifestação de sensível e aponta, como ideia organizadora da arte, o espectro de emoções, ou os ritmos de sensível, ou ainda a

Artelogie, 14 | 2019 94

sequência do sensível. Conceitos estes retirados de uma análise do professor de teatro Francis Ferguson (1904-1986) em seu A ideia do Teatro. Quando este analisa a obra de Wagner (FERGUSSON, 1953 [1949] : 91/93). Temos então que este espectro de sensível, que estrutura a força organizadora da arte, é onde a vida do sentimento é projetada em uma “projeção atemporal”, pois simbólica (LANGER, 1980 : 387), mítica.

43 Afirma ainda Langer: a arte cria seus elementos, “ao invés de tomá-los do mundo”, e assim exibe, ao mesmo tempo tensão e solução, simultaneamente, através da “ilusão de “tensões-espaço” e tensões solução”. A arte assim é “aparência de vida, não é vida”, e a música é uma “perturbação no ar”. A obra de arte mostra-nos, como ainda afirma Langer, uma aparência de vida, tem na formação desta ilusão de vida seu processo mestre, o que dá a qualidade da obra. Assim a Arte não é cópia de sentimento, mas sua presentação simbólica, “conhecimento de sentimento projetado nesta forma articulada atemporal” (LANGER, 1980 : 387, negritos do autor).

44 Nós apresentamos e encontramos na Arte uma vida do sensível, um fluxo de tensões e soluções, tensões reais, musculares, nervosas, que encontram na arte uma correspondente cadeia simbólica paralela (LANGER, 1980 : 387).

45 Em seu Filosofia em Nova Chave (1942), obra anterior a Feeling and Form, apresenta Langer os trabalhos artísticos como símbolos icônicos das emoções. De outra forma, em Sentimento e Forma, apresenta a obra de arte não apenas como espelho, mas como transparência, não uma coisa que significa, mas um ícone polisêmico. Um arranjo de elementos do sensível, simbólico e aberto a múltiplas ilações (LANGER, 1980 pg. 60).

46 As questões levantadas por Langer, ao final da primeira metade do século XX seriam logo adensadas pela arte da performance na segunda metade do mesmo século e seria potencializada no trabalho dos neoconcretos. Estes experimentos diversos, anteriormente apontados neste artigo, não pretendiam apenas superar a biespacialidade do quadro ou que a arte virasse vida no espaço multidimensional, como se afirma em vários de seus manifestos.

47 A arte ganhava com esta experiência, que incorporava o público em seu processo produtivo de sensível, um novo estatuto. A arte, não como uma forma de superação ou integração em amalgama do binômio arte e vida. Arte e vida. Arte é vida, mas Arte é outra forma de vida, onde o público vivencia seu estado e se incorpora num processo continuo de elaboração de estados sensíveis ao produzir novos sensíveis, sentidos e significados.

48 Ainda, como definia Hélio Oiticica, nos velhos anos sessenta, se procurava uma nova fundação ou experiência do objeto na procura de uma arte ambiental. Essa magia do objeto, essa vontade incontida pela construção de novos objetos perceptivos em ato, que se construíam e não eram apenas apresentados previamente, objetos tácteis, visuais, proposicionais, sensíveis, que pudessem aglutinar o que se apresentasse, seja a critica social até a penetração de situações-limite, foram características fundamentais dos trabalhos desta geração. Não apenas introduziam o ser humano na obra, mas o apresentavam como elaborador de sensíveis. O sempre provocativo Oiticica terminaria em uma auto proclamação: “nossa vanguarda, que é vanguarda mesmo e não arremedo internacional de país subdesenvolvido, como até agora o pensa a maioria de nossas ilustres vacas de presépios da crítica podre e fedorenta” (Oiticica, 1986 : 112). 49 Seja como for, praticamente cinquenta anos após estas exposições, a obra de arte ainda suscita que seja apresentada a essas novas formas de interação sensível, incorporando o

Artelogie, 14 | 2019 95

ser humano como produtor de significados desta fabrica do sensível, pois de certa forma se abandonou estas utopias dos artistas dos anos 1960/70. Muito de nossas produções recentes ainda se estruturam no terreno confortável da relação emissor- receptor, assim como obras dos artistas aqui envolvidos são muitas vezes mostradas penduradas em museus e galerias, silentes, evitando-se ou censurando-se os questionamentos anteriormente colocados por artistas daquela geração.

BIBLIOGRAFIA

FAVARETTO, Celso. A Invenção de Hélio Oiticica. EDUSP, São Paulo, 1992.

FERGUSON, Francis. The Idea of a Theater. Anchor Books, Princeton, 1953 [1949]). JUSTINO, José Maria. Seja Marginal, Seja Herói: modernidade e pós-modernidade em Hélio Oiticica. UFPR, Curitiba, 1998.

LANGER, Susane. Sentimento e Forma. Perspectiva, São Paulo, 1980.

LANGER, Susanne. Filosofia em Nova Chave. Perspectiva, São Paulo, 2004.

LOEB, Angela Varela. Os Bólides do Programa Ambiental de Hélio Oiticica. ARS Ano 9 Nº 17. pg 49-77. http://www.scielo.br/pdf/ars/v9n17/a04v9n17.pdf.

OITICICA, Hélio. Performer, performance. Nova Iorque, 11/10/1971. PHO 0511/71. http:// www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia/ho/. Acesso em 10 janeiro de 2018.

OITICICA, Hélio. A dança da minha experiência. 1965. Disponível em http:// www.itaucultural.org.br. Acesso em 10 outubro de 2018.

OITICICA, Hélio. Anotações sobre o “Parangolé” 1964. Disponível em http://www.itaucultural.org.br. Acesso em 10 outubro de 2018.

OITICICA, Hélio. Bases Fundamentais para uma definição de “Parangolé”. Disponível em http:// www.itaucultural.org.br. Acesso em 10 outubro de 2018.

OITICICA, Hélio. Parangolé Poético e Parangolé Social. 1966. Disponível em http:// www.itaucultural.org.br. Acesso em 10 outubro de 2018.

OITICICA, Hélio. Posição e Programa. 1966. Disponível em http://www.itaucultural.org.br. Acesso em 10 outubro de 2018. OITICICA, Hélio Oiticica & CLARK, Lygia. Cartas: 1964-74. UFRJ, Rio de Janeiro, 1998. OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Rocco, Rio de Janeiro, 1986.

PEDROSA, Mario. Significação de Lygia Clark. In: LYGIA Clark. Rio de Janeiro: Funarte, 1980. p. 14-17

PEDROSA, Mário. Arte ambiental, arte pós-moderna, Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Correio da Manhã, 1966. Transcrito também em Arte em Revista – Pós Moderno. São Paulo: Centro de Estudos de Arte Contemporânea, ano 5, n.7, agosto de 1973.

PEDROSA, Mário. Da natureza afetiva da forma na obra de arte. In M. Pedrosa, Arte, forma e personalidade (pp. 12-82). São Paulo: Kairós, 1979 [1949].

SALOMÃO, Wally. Hélio Oiticica: qual é o parangolé. Relume-Dumará, Rio de Janeiro, 1996.

Artelogie, 14 | 2019 96

Vv. Aa. CATÁLOGO: Hélio Oiticica. Centro de Arte Hélio Oiticica. Galerie nationele du Jeu de Paume, Paris. s.d.

Vv. Aa. Declaração Princípios Básicos da Nova Vanguarda. Catálogo da exposição Nova Objetividade Brasileira ocorrida no MAM-RJ https://vdocuments.site/declaracao-dos-principios-basicos-da- vanguarda-1967.html 1967

RESUMOS

A arte de Hélio Oiticica, como de outros participantes da arte de vanguarda brasileira na década de 1970, pretendeu definir novos parâmetros na participação público dentro da obra de arte construindo novas sensibilidades. Esta nova forma de apresentação, relação com o público definiu novos parâmetros o que deu um caráter singular aos trabalhos produzidos pelos participantes deste movimento, que procuravam inserir, de distintas formas o público na sua estrutura e elaboração. Esta nova abordagem explicita novos paradigmas para a arte e define novas formas de conhecimento e participação no objeto artístico. Este trabalho descreve e analisa algumas características particulares deste processo na arte brasileira do período.

L’art d’Hélio Oiticica, tout comme d’autres membres de l’avant-garde brésilienne des années 1970, cherche à définir de nouveaux paramètres de participation du public à l’œuvre d’art en créant de nouvelles sensibilités. Les formes de présentation et de relation avec le public définissent de nouveaux paramètres pour l’œuvre d’art qui lui confèrent un caractère unique. Cette approche définit explicitement des paradigmes nouveaux pour l’art. Elle conçoit aussi des formes inédites de connaissance et de participation propres à l’objet artistique. L’article décrit et analyse certaines caractéristiques de ce processus dans l’art brésilien de l’époque.

ÍNDICE

Mots-clés: Oiticica (Hélio), Parangolés, neoconcretismo, Langer [Susanne], Clark (Lygia), Pappe (Lygia) Palavras-chave: Oiticica (Hélio), Parangolés, neoconcretism, Langer [Susanne], Clark (Lygia), Pappe (Lygia)

AUTOR

ROBSON CORRÊA DE CAMARGO

Fundador do Programa de Pós Graduação Interdisciplinar em Performances Culturais da UFG (Doutorado e Mestrado). Encenador e crítico de teatro, coordena a Rede Goiana de Pesquisa em Performances Culturais, financiamentos CNPQ, FAPEG, CAPES, FUNAPE. Livros publicados: "Brazilian Theater, 1970–2010" (2015, McFarland, org. with Eva Bueno); "O Gestual no Teatro: Melodrama, Pantomima e Teatro de Feira" (no prelo); "Música na Contemporaneidade" (2015, PUC/GO org. com Claudia Zanini); "O Mundo é um Moinho: Reflexões Sobre o Teatro Popular no séc. XX"; "Performances Culturais" (Hucitec org. com Eduardo Reinato e Heloisa Capel). [email protected]

Artelogie, 14 | 2019 97

Os "meninos índios" que Spix e Martius levaram a Munique

Maria de Fátima Costa

Quando retornei do Japurá para Maracuru, à propriedade do capitão Zany – ele tinha ficado para trás, doente, em Ega –, seu capataz, por ordem do seu senhor, me apresentou aos índios, dentre os quais eu poderia escolher um para levar e mostrar na Europa, com a presunção de que eu poderia educá-lo para a humanidade europeia, conforme eu pretendia. Na manhã seguinte – antes da partida –, um grupo de índios homens se apresentou no pátio diante da casa, e eu fiz a escolha. Assinalei o belo rapaz Juri, que o capataz retirou do grupo, e o olhar do pai desse rapaz não o seguiu, porém seguiu a mim. Era uma pergunta? Era raiva? Nunca esqueci esse olhar. Um ano depois, quando o rapaz morreu em Munique, do mal dos pulmões, isso voltou a mim como uma carga muito pesada. Eu paguei o perigo de ter o endurecimento da alma e com isso aprendi amor e admiração pela natureza humana. Através de uma má ação, me transformei num amigo da humanidade (MARTIUS, 1794-1868. Ms. BSB Martiusiana, cod. III.A.3.4,)

1 Era 1862 quando o naturalista Carl Friedrich Philipp von Martius (1794 – 1868), então com mais de 60 anos, escreveu essas palavras. Com elas recordava-se do momento em que adquiriu um jovem índio da nação Juri durante sua passagem pela Amazônia. A nota faz parte dos registros autobiográficos que o cientista levou ao papel ao final de sua vida, descrevendo acontecimentos que continuavam retidos na sua memória. O tom que adota é nitidamente de exculpação, e delata uma questão que parece ter lhe

Artelogie, 14 | 2019 98

atormentado durante toda a vida. Na velhice, então, procurando organizar e dar sentido às sensações passadas, projeta uma versão final, tal como gostaria que esse incômodo episódio ficasse perpetuado.

2 O já velho botânico refere-se a uma passagem ocorrida em 1820, durante a viagem científica que, na companhia do zoólogo Johann Baptist von Spix (1781 – 1826), realizou ao Brasil. Os dois naturalistas haviam chegado ao Rio de Janeiro em 1817, como parte da expedição científica austro-bávara organizada por ocasião do casamento da princesa Leopoldina, arquiduquesa de Áustria, com o príncipe herdeiro do império português D. Pedro. Porém, por motivos que não cabem no limite deste artigo, logo se separaram dos colegas austríacos e juntos, Spix e Martius – enquanto acadêmicos da Real Academia das Ciências da Baviera –, conformaram a primeira expedição científica que aquele reino enviou à América.

3 Durante três anos, seja sobre lombo de mulas, seja dentro de canoas, esses dois expedicionários – sempre com o apoio da população e do saber local - percorreram parte significativa do território brasileiro, quando este ainda fazia parte do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Ao todo, Spix e Martius trilharam mais de 14.000 km, tendo visitado as então capitanias do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Piauí, Maranhão e Grão-Pará – uma grande viagem que foi concluída em agosto de 1820, quando embarcaram no porto de Belém do Pará rumo à Europa (DIENER e COSTA, 2018).

4 Como resultado, essa grande empreitada científica reuniu muitas centenas de espécimes dos três reinos da natureza, produziu vintenas de desenhos registrando vistas de paisagens e tipos humanos, recolheu objetos da cultura material de vários povos e nações indígenas com as quais os acadêmicos mantiveram contato, formando, de fato, um grande acervo sobre o Brasil, hoje preservado em diversas instituições muniquenses.

5 Parte desse acervo foi enviado à Baviera ainda no decorrer da viagem, porém, outra parte, bastante significativa, foi levada pelos próprios Spix e Martius em sua viagem de volta. Nela estavam os diamantes conseguidos em Minas Gerais, os diários de campo, os animais e as plantas considerados mais raros e, claro, todo o material recolhido no trajeto amazônico. Nesse conjunto destacavam-se as coleções de peças vivas, vale dizer, plantas, animais e quatros índios: três Miranha e o jovem Juri. Destes, entretanto, apenas dois conseguiram chegar à Europa: uma mocinha que receberá o nome de Isabela Miranha e o rapaz, referido no trecho autobiográfico de Martius – usado aqui como epígrafe –, que passou a responder pelo nome de Johannes Juri. Neste artigo vamos tratar exatamente desses dois índios, de Johannes e de Isabela, personagens que ficaram conhecidos como os meninos índios que Spix e Martius levaram a Munique.

Artelogie, 14 | 2019 99

Juri, 1823 P. LUTZ (desenhista [?]; sem identificação do gravador) Litogravura; 67 x 45 cm Fonte: Spix e Martius, 1823-1831. Reise in Brasilien, vol. IV, Atlas, prancha 15

Artelogie, 14 | 2019 100

Miranha (Isabela), 1823 P. LUTZ (desenhista [?]; sem identificação do gravador) Litogravura; 67 x 45 cm Fonte: Spix e Martius, 1823-1831. Reise in Brasilien, vol. IV, Atlas, prancha 16

Relação entre índios e viajantes

6 Como toda expedição científica que se dirigiu aos territórios americanos, também a caravana bávara tinha dentre os seus focos de interesse – além dos três reinos da natureza – conhecer e estudar as populações humanas que ali viviam. Havia, então, muita curiosidade sobre esses povos sempre tidos como selvagens. Como seria sua constituição física? Quais as características de sua cultura? Que capacidade cognitiva tinham? Enfim, questões várias que poderiam ser respondidas pelo contato direto proporcionado por uma viagem.

7 Ao chegarem à América Portuguesa, Spix e Martius pouco ou quase nada conheciam sobre os povos americanos. Esses acadêmicos, como cientistas educados nas luzes do Iluminismo, conheciam o homem americano a partir dos filtros oferecidos pelas teorias de Carl von Linné e do conde de Buffon. Mas, como alemães, seus olhares estavam guiados mais diretamente pelas formulações dadas por Johann Friedrich Blumenbach (1752-1840) e, principalmente, por Immanuel Kant (1724-1804), através das quais se reafirmava uma pretensa superioridade dos europeus frente a outros povos qualificados de selvagens, como o homem americano. Essa questão torna-se visível nas páginas da narrativa que Spix e Martius publicaram entre 1823-1831 com o título de Reise in Brasilien (Viagem pelo Brasil), na qual descrevem os resultados de sua viagem.

Artelogie, 14 | 2019 101

8 Nessa obra os dois acadêmicos afirmam, por exemplo, que diversos autores judiciosos observaram que algumas raças, embora igualmente organizadas, são, entretanto, qualificadas de mais ou menos perfeitas em diferentes aspectos e, concretamente, no europeu uma constituição superior dos órgãos e forças intelectuais compensariam um menor desenvolvimento das faculdades inferiores. Segundo eles, isso se manifesta de tal modo que bastaria um simples olhar ou a simples presença do branco para amedrontar e intimidar os índios, e os da raça etiópica (os negros) e os mestiços de ambas (SPIX e MARTIUS, 1938, tomo I, p. 243).

9 Para os dois bávaros, o europeu pertencia, pois, a uma raça superior, aristocrata da humanidade. Já o americano era tido como um ser inferior, um selvagem. Nesse sentido, caberia aos europeus, incitados por nobres sentimentos, espalhar a civilização cristã e científica às terras mais remotas (ibidem, p. 72).

10 Mas, uma vez no Rio de Janeiro, quase não veem indígenas, pois, segundo os viajantes, muito raramente os índios, tal aves de arribação, aparecem na cidade. Apesar disso, o primeiro contato que os acadêmicos bávaros mantiveram com um indígena ocorreu nessa cidade, ainda no ano da sua chegada. Isso se passou quando visitaram a casa do naturalista alemão barão G. H. von Langsdorff (1774 – 1852), que à época exercia o cargo de Cônsul Geral de Todas as Rússias na corte de D. João VI. Ali, no âmbito da vida privada, foi que Spix e Martius encontraram um botocudo que servia domesticamente a Langsdorff. A história da forma que esse personagem chegou ao barão oferece uma imagem bastante significativa de como os índios eram vistos pelos europeus. E vale abrir um hiato para contá-la.

11 Tudo começou com o pedido de um crânio de um botocudo que Antônio de Araújo e Azevedo, o conde da Barca – então ministro na corte de D. João VI –, teria feito ao comandante do distrito dos índios Guido Tomás Marlière. La Barca pretendia enviar esse crânio a Gotinga – Alemanha, como presente para o professor Blumenbach. Porém, como Marlière não encontrou nenhum crânio disponível, decidiu mandar ao Rio de Janeiro dois botocudos vivos, que os seus soldados haviam prendido de surpresa. Ocorre que nesse interim Araújo Azevedo faleceu e os índios foram parar com Langsdorff, que ficou apenas com um deles, do outro nada sabemos. Esse botocudo passou então a servir o cônsul não somente como peça viva de gabinete, porém, igualmente, como coletor de curiosidades naturais (ibidem, p. 95, grifo da autora).

12 Chama atenção o termo peça viva de gabinete usada por Spix e Martius para se referirem ao botocudo, deixando evidente que Langsdorff exibia o índio aos seus convidados como um objeto a mais do seu gabinete de curiosidades, fato que parece ter marcado indelevelmente os dois bávaros. Porém, não sabemos se foi essa experiência que levou os dois viajantes a também quererem adquirir um índio para ser peça viva de suas coleções, ou se antes de visitar a casa de Langsdorff já namoravam essa ideia. Certo é que logo os acadêmicos trataram de conseguir um índio para, na volta, levarem consigo a Munique.

13 A primeira oportunidade para isso surgiu quando Spix e Martius passaram por Minas Gerais, exatamente quando visitaram a Fazenda Guidoval, vale dizer, o distrito dos índios comandados por Guido Marlière. Ali tiveram por alguns dias convívio com Puri e Coroado, ocasião na qual reuniram ricas informações e peças etnográficas desses povos. Além disso, à saída, receberam dois Coroado, episódio que os naturalistas descreveram com certa ironia nas páginas do Viagem pelo Brasil: Na véspera da partida, à tarde, trouxeram dois jovens Coroados à nossa casa, e os animaram a seguir conosco, com a promessa de cachaça e de voltarem como capitães, com vistosas fardas. Dava vontade de rir ao ver o feito

Artelogie, 14 | 2019 102

que um uniforme reluzente produz nesses homens das selvas. Vestiram com ela um dos índios, lhe puseram-lhe à cabeça o chapéu armado, e colocaram diante dele um espelho. Orgulhoso e perplexo pasmava, mirando-se a si mesmo por todos os lados e à sua figura no espelho, e apalpava ora o novo fato, ora o espelho; embora não pudesse compreender o feitiço, contudo, predominava nele, sem dúvida alguma, o sentimento de vaidade satisfeita. Desse momento em diante, estava tomada a resolução, e ele mostrava o prazer de acompanhar-nos (ibidem, p. 359).

14 Um deles, porém, fugiu logo à saída da Fazenda Guidoval; o outro, a quem os expedicionários deram o emblemático nome de Custódio, entretanto, permaneceu na caravana. Mas, para desapontamento dos bávaros, passados oito meses, Custódio também deixou a expedição quando essa visitava aldeias Kamakã no sul da Bahia – sua fisionomia está registrada nas páginas do Atlas que acompanhou os três tomos do Viagem pelo Brasil, sendo mostrada como o retrato de um Coroado.

Coroado (Custódio), 1823 J. B. von SPIX ou C. F. PH. von MARTIUS (desenhista; sem identificação do gravador) Litogravura; 47 x 65 cm Fonte: Spix e Martius, 1823-1831. Reise in Brasilien, vol. IV, Atlas, prancha 5 (Detalhe)

15 Depois desse episódio, talvez temendo novas fugas, os dois acadêmicos só voltaram a recolher outras peças vivas no final da viagem, quando visitaram a Amazônia.

16 Vale observar que, nos séculos XVIII e XIX, levar indivíduos da população local no retorno da viagem à Europa era um procedimento comum entre aqueles que realizavam expedições científicas de caráter naturalista. São bastante conhecidas, por exemplo, as glamorosas histórias do taitiano Omai, que o capitão James Cook levou a Londres ao término da sua segunda viagem de circum-navegação. Esse hábito também foi recorrente dentre aqueles que visitaram as terras brasileiras no século XIX. Sabemos,

Artelogie, 14 | 2019 103

entre outros, do jovem botocudo de nome Huêk, que o príncipe Maximiliano de Wied- Neuwied, que esteve no Brasil entre 1815 – 1817, levou consigo no seu retorno, e de um rapaz Apinajé chamado de Katana, que Francis de Castelnau, por sua vez, levou à França. Surpreende, contudo, que Spix e Martius, ao embarcarem no Pará, tenham levado não um, mas quatro índios, entre meninos e meninas.

Entrada de Miranha e Juri na expedição

17 A maneira como esses quatro índios passaram a integrar a caravana bávara é uma questão ainda um tanto nebulosa, uma vez que os próprios expedicionários criaram diferentes versões sobre a aquisição dos jovens Miranha e Juri. Para os Miranha conhecemos três diferentes narrativas.

18 A primeira foi dada por Spix e Martius no Relatório que enviaram de Lisboa ao rei Maximiliano José I da Baviera, no qual informaram da última etapa da viagem. De acordo com esse informe ao rei, os índios dessa etnia teriam sido recolhidos por Martius durante a visita que o acadêmico realizou à localidade denominada Porto dos Miranhas, na Amazônia. Na ocasião, o botânico estava na companhia do comerciante italiano Francisco Ricardo Zany, enquanto Spix realizava outro trajeto, em separado. Zany costumava ir àquele porto com o fim de adquirir índios do tuxana miranha, que atendia pelo nome português de João Manuel. Para tanto, esse chefe promovia guerras contra outras etnias e também contra grupos dos próprios Miranha, e os vencidos eram transformados em mercadoria. Segundo consta no mencionado Relatório, quando Martius e Zany chegaram ao Porto dos Miranhas, o tuxana se ofereceu para fazer uma incursão contra os seus inimigos com o propósito de capturar índios adultos para o capitão Zany e algumas crianças para nós (SPIX e MARTIUS, 1817-1820, p. 128. Ms. BSB, cod. Cgm 5982; grifo da autora).

Artelogie, 14 | 2019 104

No porto dos Miranhas, no rio Japurá, 1828. C. F. PH. VON MARTIUS (desenhista), J. SELB (gravador) Litogravura; 32,8 x 44,2 cm Fonte: Spix e Martius, 1823-1831. Reise in Brasilien, vol. IV, Atlas, prancha 30

19 Essas palavras nos fazem ver que, ao chegar àquele porto, Martius estava ciente que o chefe Miranha faria uma incursão militar com o fim de capturar prisioneiros para serem negociados pessoalmente com o capitão Zany e com ele. Porém, no terceiro tomo do Viagem pelo Brasil surge uma segunda versão. Vale observar que esse tomo, embora também traga como autores Spix e Martius, foi escrito unicamente pelo botânico, como ele mesmo esclarece no corpo da narrativa. Nessa versão, Martius conta que foi somente quando deixava aquele porto que ele fez negociações com o chefe João Manuel. Seu interesse, entretanto, teria sido de adquirir apenas objetos da cultura material desses indígenas e exemplares de plantas. Porém, o tuxana lhe ofereceu cinco jovens índios – duas moças e três rapazes – em troca de machados e facas. O botânico, então, explica que aceitou os jovens índios das mãos do desumano, com tanto maior empenho, quanto sabia que, ficando aqui, eles teriam morte certa, por já estarem todos atacados da febre (SPIX e MARTIUS, 1938, tomo III, p. 356). Ou seja, segundo essa versão, não teria havido qualquer acerto prévio sobre captura de crianças, e Martius havia ficado com os índios por razões humanitárias.

20 Por fim, sabemos também, através das páginas da narrativa, que dos cinco que Martius recebeu do tuxana, dois foram deixados no Pará – um na vila de Ega, com o comandante militar, e outro em Belém, com o ouvidor – e três ficaram com os expedicionários (SPIX e MARTIUS, 1831, tomo III, p. 1264-1265).

21 Contudo, há ainda uma terceira e muito breve, mas bastante significativa versão sobre esse tema, também de autoria de Martius, escrita pelo botânico no passe-partout de um

Artelogie, 14 | 2019 105

retrato que ele mandou fazer de Isabela, quando ela já estava em Munique. Não sabemos a data da inscrição, mas nela Martius observa: Isabella da tribo dos Miranha. Recebida do Sr. Man[oel] Joaq[uim] do Paço, governador do Rio Negro. † Munique, outubro 1822 (MARTIUS, s/d. Ms. BSB Martiusiana, cod. I.A.1.7.). Nessa construção, o botânico omite totalmente os acontecimentos do Porto dos Miranhas e procura fazer crer que a menina havia chegado a ele como um presente dado pelo governador do Rio Negro.

Isabella, 1820-1821. Sem autor (provavelmente P. LUTZ) Carvão e lápis sobre papel; 47,6 x 38,4 cm BSB Martiusiana, cod. I.A.1.7. Munique.

22 Quanto à entrada do jovem Juri na expedição, as informações são mais restritas. Sobre isso não há qualquer referência no Relatório que Spix e Martius enviaram ao rei, e na narrativa Martius informa apenas que esse índio foi incorporado à caravana quando o botânico passou pelas terras de Zany em Alvelos. Em suas palavras: Agregou-se ali à guarnição um jovem juri, da horda comá-tapuia, que nos acompanhou até Munique; infelizmente, tanto ele como a jovem miranha, sua companheira, morreram, mal suportando a mudança de clima e as novas condições exteriores (veja-se no Atlas o retrato do Juri) (SPIX e MARTIUS, 1938, Tomo III, p. 365-366).

23 De fato, no Atlas aparece tanto o retrato de Juri como o de Isabela, esta identificada como uma Miranha. E, no fundo Martiusiana da Biblioteca do Estado da Baviera, há um desenho do jovem índio, que traz no passe-partout a inscrição Juri da tribo dos Juri-Comas, no rio Pureos, na fazenda Manacaru do Cap[itão]. Ric[ardo]. Franc[isco] Zany, escolhido por mim entre os seus índios, em março de 1820. † Munique, fevereiro 1821 (Ms. BSB Martiusiana, cod. I.A.1.7), versão que é bastante coincidente com a que o botânico publicou na narrativa. Porém, como vimos na nota autobiográfica escrita 42 anos depois, Martius omite as circunstâncias em que aquele episódio ocorreu.

Artelogie, 14 | 2019 106

Juri, 1820-1821. P. LUTZ Carvão e lápis sobre papel; 46,8 x 39,3 cm BSB Martiusiana, cod. I.A.1.7. Munique

24 A existência de todas essas diferentes versões deixa evidente que a entrada desses índios – tanto os Miranha como o Juri – na expedição se configura como uma questão, no mínimo, incômoda para Martius, talvez porque todos eles faleceram em pouquíssimo tempo.

Miranha e Juri na Europa

25 Era 14 de junho de 1820 quando Spix e Martius embarcaram na galera portuguesa Nova Amazona, rumo a Lisboa. Levaram consigo grandes coleções e quatro índios, com idades presumidas entre 8 e 14 anos. Dois deles, entretanto, não resistiram à viagem transoceânica. Martius debitou essas mortes a atitudes tomadas pelo capitão do navio que, segundo ele, havia posto em prática toda sorte de picardias para lhes dificultar a viagem: prejudicou as coleções, principalmente de plantas e animais vivos, e também os índios, que por falta de assistência foram a óbito por problemas hepáticos (SPIX e MARTIUS, 1938, Tomo III, p. 477).

26 Ainda era verão quando os dois bávaros e seus índios sobreviventes aportaram na capital lusitana. Lisboa os recebeu em meio às revoltas liberais, que naquele ano haviam eclodido na cidade do Porto. Permaneceram nesta cidade conflagrada apenas o tempo necessário para despachar suas coleções à Baviera e cuidar dos documentos para poderem, eles também, seguir para Munique. Os papéis foram rapidamente conseguidos

Artelogie, 14 | 2019 107

na embaixada austríaca de Lisboa, de maneira que em outubro partiram por terra, através da Europa, passando por Madri, Lyon e Estrasburgo.

27 Os dois naturalistas, com o casal de índios, formavam um grupo bastante peculiar. A comunicação entre eles era, no mínimo, precária e realizada em português, língua que nenhum deles dominava: Spix e Martius a haviam aprendido durante a viagem, Isabela quase nada entendia e Juri, talvez o mais fluente, tinha um vocabulário rudimentar que lhe permitia se comunicar com os expedicionários. Temos de levar em conta, ademais, que Juri e Miranha provinham de nações indígenas distintas, falavam línguas diferentes, cada um tinha memórias ancestrais próprias do seu povo e, o mais importante, eram inimigos étnicos.

28 O certo é que, apesar de suas diferenças, tiveram de dividir o pequeno espaço das carruagens e hospedarias durante os dois meses que durou a travessia terrestre entre Lisboa e Munique. Porém, ainda não conseguimos saber detalhes dessa viagem. Como teria sido o dia a dia? Onde paravam, como dormiam, o que comiam? São questões em aberto, mas podemos deduzir, sim, que essa convivência não deve ter sido fácil, principalmente para os dois adolescentes, que tinham diante de si uma cultura totalmente distinta das suas e eram, com toda certeza, objeto da curiosidade geral, afinal peças vivas de um mundo distante. Além disso, deslocavam-se numa região em que, a cada dia, a temperatura se tornava mais fria.

29 De qualquer maneira, remediando essas barreiras culturais, o grupo finalmente chegou à capital da Baviera. Era 8 de dezembro de 1820, ano em que o inverno foi dos mais rigorosos. Todos chegaram muito debilitados. A cidade, entretanto, os recebeu calorosamente. Para Spix e Martius era o coroamento de um feito. Todos os jornais renderam loas a essa chegada; eram os heróis que retornavam à casa e ainda traziam dois índios, figuras que rapidamente se tornaram o centro da curiosidade geral.

Os meninos índios em Munique

30 Logo ao chegarem, Spix e Martius, junto com Isabela e Juri, passaram a noite na hospedaria Goldener Hahn, mas já na manhã do dia seguinte tiveram a honra de ser recebidos em audiência por Suas Reais Majestades (Flora, 12.12.1820). Foi nesta ocasião que os meninos índios foram apresentados à corte de Maximiliano José I. Nessa mesma cerimônia, o rei concedeu aos dois cientistas o título de Cavaleiro da Ordem ao Mérito da Coroa da Baviera, permitindo que ambos acrescentassem a partícula von aos seus nomes e ainda os convidou para, junto com os índios, irem residir numa das alas do Palácio Real. E assim o fizeram.

31 Esses fatos logo chegaram a toda a sociedade muniquense pelas páginas dos periódicos Flora - Ein unterhaltungs Blatt [Uma revista para o entretenimento] e Müncher Politische Zeitung [Jornal Político de Munique], que circularam no dia 12 de dezembro de 1820, nas quais também informavam sobre os dois índios: O Flora noticiava que são um rapaz e uma menina de uns 12-14 anos. O rapaz tem boa estatura e a fisionomia do rosto é do tipo que também poderíamos encontrar entre nós, nos estratos mais baixos da sociedade. Em torno da boca tem um quadrado tatuado, mas que não apresenta incisões, como às vezes se vê entre os mouros [...]. O seu cabelo é preto, duro e liso, como também o da menina. A sua cor é amarelo-marrom. A menina é baixinha, de figura larga e sem qualquer expressão no rosto. Dizem que provém de uma

Artelogie, 14 | 2019 108

horda de antropófagos. O rapaz, porém, vem das proximidades dos assentamentos portugueses no Brasil, por isto quiçá a sua fisionomia [seja] mais nobre (Flora, 12.12. 1820).

32 E, segundo a Münchner Politische Zeitung [Jornal Político de Munique], depois da noite passada na hospedaria Goldener Hahn, os dois viajantes estão hospedados nas dependências do Palácio, onde também estão os dois jovens índios, aos quais, por cortesia dos Srs. Spix e Martius, até agora tinha acesso quem quisesse vê-los. [...] No que diz relação com o rapaz, deve ter no máximo 12 anos e é filho de um cacique de uma horda, morto em uma batalha [...]. A menina não tem tão bom aspecto, mais parece uma criança estúpida, que ficou detida no seu desenvolvimento. [...]. Os doutores Spix e Martius trouxeram seis criaturas como essas para a pátria, porém quatro morreram durante a viagem. O menino está vestido na forma dos Hussardos bávaros e o cabelo cortado; a menina leva um vestido feminino de cor azul, e tem o cabelo liso que cai reto (Münchner Politische Zeitung, 12.12. 1820, p. 48-49).

33 Juri e Isabela estavam, sem dúvida, entre as peças mais vistosas das coleções que Spix e Martius entregaram ao rei, e não é difícil imaginar quantos, atraídos por essas notícias, foram até o Palácio Real ver as criaturas que por cortesia de Spix e Martius poderiam receber a visita de quem quisesse vê-los. Os visitantes chegavam, entretanto, com uma ideia pré-concebida sobre os dois meninos índios. Tal como os jornais informavam, apesar de trazer uma tatuagem no rosto, Juri possuía uma bela figura e, por ter tido contato com portugueses, uma fisionomia de aspecto nobre, que até poderia ser europeia. Além disso, era filho de um chefe que perdeu a vida numa batalha. Já a menina Miranha era feia: baixinha, larga e de aspecto hostil e, ainda por cima, pertencia a uma horda de antropófagos.

34 Não sabemos de onde o periódico extraiu a notícia de que Juri era órfão e que seu pai havia sido morto em combate, mas, possivelmente, derivou de uma informação dada diretamente pelos viajantes – única fonte disponível – e que foi mal interpretada pelos órgãos de imprensa, sedentos de sensacionalismo.

35 Trata-se de uma invenção, pois, como Martius escreveu quarenta anos depois em sua nota autobiográfica, quando ele recolheu o jovem Juri seu pai estava presente, e ainda lhe dirigiu um olhar enigmático que marcou indelevelmente o botânico (Martius, 1794-1868. Ms. BSB Martiusiana, cod. III.A.3.4,].

36 Seja como for, de concreto temos que essas matérias criaram na sociedade bávara uma imagem dual que colocava os jovens em campos opostos. É certo que Juri e Isabela pertenciam a nações distintas, não falavam a mesma língua, eram inimigos étnicos e, certamente, sentiam mútua repulsa. A convivência deveria ser muito difícil. Porém, as notícias só ajudavam a aumentar a distância entre eles, com uma clara denegação de Isabela: se diz que o menino sente a maior rejeição contra a menina, porque ela pertence a uma tribo de selvagens que matou e comeu seu pai (Münchner Politische Zeitung, 22.12. 1820, p. 70; grifo da autora). Já não bastava ser feia, retardada e antropófaga; para a sociedade bávara agora a mocinha Miranha era também responsável indireta pela morte do pai do belo e dócil Juri, que o seu povo havia matado e comido.

37 E as notícias não paravam. Passado mais de um mês, em final de janeiro, foi a vez de EOS - Eine Zeitschrift aus Baiern zur Erheiterung und Belehrung [Uma revista da Baviera para diversão e aprendizado], de Munique, periódico semioficial do governo, também publicar matérias sobre Isabela e Juri. Entretanto, diferente dos demais periódicos, EOS procura passar aspectos do dia a dia e de questões mais pessoais que envolvem a convivência dos índios com os acadêmicos. Por exemplo, na edição de 23 de janeiro de 1821, trata da saúde de ambos, explicando que desde a chegada os dois sofreram muito

Artelogie, 14 | 2019 109

pela influência do clima e de um tempo extraordinariamente hostil, passando um bom período doentes. Primeiramente, Isabela foi atacada por fortes tosses e febres, mas reagiu bem aos medicamentos e cuidados. Quanto à saúde de Juri, EOS informa que imediatamente depois que Isabela melhorou, Juri caiu doente, sofrendo de um mal de peito, que se agravou em tal extremo que fez temer por sua vida. Sofreu grave inflamação, o que levou os médicos a sangrá-lo nove vezes. A maior incidência da febre já passou, mas Juri continua sendo acometido por fortes tosses, acompanhada por febre leve, de maneira que a doença e suas consequências ainda não foram completamente superadas (EOS, 23.01.1821, p. 31).

38 Esse quadro, de acordo com o periódico, levou os médicos a fazerem nada menos que nove sangrias no adolescente. Na primeira vez, inclusive, houve a necessidade de cobrirem sua cabeça até os olhos para que ele não visse o procedimento. Depois, entretanto, Juri conseguiu acompanhar a sangria e passou a questionar o trabalho dos médicos, suspeitando que os europeus o cortavam com a intensão de ir, pouco a pouco, tirando-lhe a vida. Essas dúvidas, segundo EOS, foram afastadas por Spix e Martinus. E, pelo fato de Juri passar a sentir melhoras, logo o seu comportamento se fez calmo e amável, de modo que todos que o acompanharam ficaram gostando dele (ibidem).

39 Quanto à aparência física, EOS também procurou traçar um retrato desses dois personagens, e nesse aspecto muito se aproxima das descrições precedentes: Isabela era feia de rosto e de corpo, enquanto Juri aparecia como portador de uma bela estrutura corporal, com uma face nada desagradável. Ele possuía um rosto menor que o de Isabela, belos olhos negros e olhar amável. Isabela estava deformada pelas perfurações no seu nariz e Juri pela tatuagem, de largura considerável, ao redor da boca. Além disso: Isabella provém de uma das tribos indígenas mais primitivas; possui muitas habilidades naturais e uma grande perspicácia, porém pouca bondade; muita teimosia e sempre se mostra hostil, razão pela qual com ela se faz necessário um tratamento áspero. Não lhe faltam, porém, vaidades femininas. Juri evidencia que sua tribo esteve com maior contato com os brancos; tem capacidade de raciocínio, muita bondade e boa disposição com o mundo em sua volta; qualidade que Isabella não possui. Sua expressão é aberta e também é mais falante que Isabella (ibidem).

40 Ademais, o jornal empenha-se em mostrar como o convívio com os acadêmicos estava mudando seus hábitos e informa aos leitores que os dois já começam a adquirir costumes e comportamentos europeus: já estavam gostando de sentar-se à mesa e de dormir em camas. E, o mais importante, os meninos davam sinais de estarem adquirindo alguns sentimentos, que antes lhes eram completamente alheios; por exemplo, Isabella, proveniente de uma tribo que vive completamente nua, à exceção de uma faixa que usam nos quadris, recentemente, só com muita dificuldade e esforço foi possível despi-la para que posasse para o pintor que faria um retrato, para ser incluído entre as figuras de tribos indígenas na publicação da narrativa dos acadêmicos von Spix e von Martius (ibidem, p. 35).

41 Conhecemos esse retrato, na verdade dois retratos de Isabela totalmente despida, de lado e de costas, que se conservam no fundo Martiusiana da Biblioteca do Estado da Baviera. Trata-se de um registro que, diferente do que o jornal informa, não foi incluído dentre as ilustrações do Atlas que complementa os volumes de Viagem ao Brasil e, até onde sabemos, à época não foi mostrado ao público.

Artelogie, 14 | 2019 110

Isabella Miranha, 1820-1821.

Sem autor (provavelmente P. LUTZ)

Carvão e lápis sobre papel; 47,6 x 38,4 cm

BSB Martiusiana, cod. I,A,1,7

Artelogie, 14 | 2019 111

Isabella Miranha, 1820-1821.

Sem autor (provavelmente P. LUTZ)

Carvão e lápis sobre papel; 47,6 x 38,4 cm

BSB Martiusiana, cod. I,A,1,7

42 Ao olhá-los realmente se percebe que a mocinha está constrangida, envergonhada. De fato, ela se sentia despida, não porque lhe tiraram as roupas europeias, seu constrangimento era mais profundo; faltava-lhe seu adereço étnico, sem o qual nenhuma Miranha apresentava-se em público: a faixa com que as mulheres do seu povo se vestem. Porém tudo isso era ignorado.

43 Seus sentimentos, suas emoções e suas memórias ancestrais tornavam-se invisíveis e deveriam ser apagadas, em benefício dos valores que tentavam lhe embutir através de hábitos europeus – agora também contraditórios, obrigando-a a despir-se diante de estranhos. Cabia-lhe entender esses outros códigos.

44 Sobre isso há uma passagem no diário do filólogo Johann Andreas Schmeller (1785-1852), amigo pessoal de Martius, escrita em 30 de abril de 1821 – portanto, aos quatro meses de estada em Munique –, que nos ajuda a perceber a educação que era dada aos dois jovens: Os meninos Juri e Isabella vieram a dar a mão antes de dormir, para dar as boas noites e para que Spix fizesse o signo da cruz neles, que lhes dissesse também sobre Topana (Deus). Hoje Spix os levou ao santuário Maria Aich. Juri foi de chapéu na cabeça até o altar, provavelmente para escândalo dos presentes na pequena igreja, até que Spix lhe fez um sinal misterioso, que fez intuir o caráter sagrado da casa, e que lhe indicava para tirar o chapéu (SCHMELLER 1954–1957, p. 429).

Artelogie, 14 | 2019 112

45 Não é à toa, portanto, que Isabela e Juri ficavam seguidamente enfermos. Além do sofrimento físico pelo rigor do clima invernal, temos de levar em conta os aspectos mentais – a violenta pressão psicológica – que exigiam deles grandes esforços de aprendizagem para assimilar um universo de valores distintos que, por sua vez, obrigava-os, na mesma proporção, a negar o seu mundo ancestral. Uma batalha hercúlea - e, nessa grande luta, ambos estavam sozinhos. Sim, porque embora fossem vistos como os meninos índios, eram, em realidade, uma Miranha e um Juri em completa solidão. Nesse estado, Isabela e Juri não tinham como sobreviver por muito tempo.

46 A resistência deles minou, e os pulmões de Juri não suportaram, ele morreu em junho de 1821. Em maio do ano seguinte foi a vez de Isabela, de quem não se registrou a causa imediata do seu falecimento.

47 Essas mortes, principalmente a de Juri, foram muito sentidas por todos, afinal se perdiam as peças vivas de gabinete, a testemunha viva da viagem. Martius os havia trazido com a presunção de educá-los para a humanidade europeia (MARTIUS, 1794-1868. Ms. BSB Martiusiana, cod. III.A.3.4,). Mas, em verdade, nada conseguiu, além de mortes.

48 Em homenagem póstuma aos dois, a rainha Karoline da Baviera mandou construir uma bela tumba para abrigar seus restos mortais e contratou o artista Johann Batist Stiglmaier – diretor da Real Academia de Artes – para fazer a estela mortuária.

Estela Mortuária da tumba Juri e Isabel, 1822 Johann Baptiste Stiglmaier Relevo em bronze; 40x48x3 Atualmente no Museu da Cidade de Munique Fonte: Helbig, J. (Org.), 1994, p. 184.

49 Nela são representados dois jovens que, juntos, parecem estar em estado de sono profundo. O rapaz, em primeiro plano, veste apenas uma faixa que contorna seus quadris. A mocinha ao seu lado tem a cabeça ataviada por uma tiara que lembra um

Artelogie, 14 | 2019 113

cocar, usa um colar e uma pequena saia de plumas. Olhando a representação se constata que nada em suas fisionomias recorda os traços étnicos tão marcados nas descrições veiculadas à sua chegada: a farta cabeleira do menino está muito distante do corte característico de seu povo e sua face não traz a tatuagem que lhe dá a identidade de Juri. A menina, por sua vez, nada lembra a figura feia e antropófaga que os jornais muniquenses tanto enfatizaram. Ali está uma bela e delicada adolescente que, de maneira tranquila e harmoniosa, descansa ao lado do seu companheiro. São idealizações que respondem aos desejos civilizatórios dos bávaros com respeito a esses dois jovens. Mostram-se Johannes e Isabela, e não um Juri e uma Miranha. Na decoração do túmulo os bávaros realizaram, finalmente, seu projeto civilizador.

50 Uma inscrição complementa esse monumento fúnebre, na qual se lê: Furtados da pátria, encontraram cuidados e amor no longínquo lugar do mundo, porém, o implacável e hostil vento do norte os levou. A culpa, pois, é somente do inverno, do frio, enfim, dos elementos da natureza.

51 Para a sociedade muniquense, os dois meninos morreram por não resistirem aos difíceis fatores climáticos. Essa até poderia ser a causa imediata que pôs fim aos seus sofrimentos físicos, entretanto, para eles a morte foi mais lenta e difícil, e teve início no dia em que os naturalistas lhes tiraram do seu povo.

52 Foi isso que Martius rapidamente percebeu e do que intimamente se culpou. Tanto assim que, incomodado, mal chegou a Munique, passou a criar versões diversas para explicar como os adquiriu. A primeira já aparece no terceiro volume da narrativa, escrita entre 1829-1830. Ali, como vimos, o botânico distorce o acontecido, mascarando a maneira como adquiriu os índios em Porto dos Miranhas e, em seguida, culpa o capitão do navio português pelas mortes dos dois índios, ocorrida durante a travessia transatlântica. Porém, na velhice a culpa parece ter mais peso, e é assim, usando o tom de exculpação, que o botânico escreve sua nota autobiográfica para contar que nunca conseguiu esquecer o olhar daquele pai, completando: Um ano depois, quando o rapaz morreu em Munique, do mal dos pulmões, isso voltou a mim como uma carga muito pesada. E, então, promove sua autoindulgência: Eu paguei o perigo de ter o endurecimento da alma e com isso aprendi amor e admiração pela natureza humana. Através de uma má ação me transformei num amigo da humanidade (MARTIUS, 1794-1868. Ms. BSB Martiusiana, cod. III.A.3.4,).

BIBLIOGRAFIA

Manuscritas

SPIX, J. B. e MARTIUS, C. F. Ph. (1817-1820), Relatórios da viagem de Spix e Martius ao Rei Berichte an Seine Majestaet König Max Joseph I von Bayern, erstattet auf der Reise nach Brasilien von den beiden bayr. Akademikern Dr. Spix und Dr. Martius. Ms. BSB, cod. Cgm 5982.

MARTIUS, C. F. Ph. von. (1794–1868) Diversos documentos e escritos autobiográficos, Aufzeichnungen zu verschiedenen Lebensabschnitten. Ms. BSB Martiusiana, cod. III.A.3.4.

Artelogie, 14 | 2019 114

Impressas

DIENER, Pablo e COSTA, Maria de Fátima (2018) Martius, Capivara, Rio de Janeiro.

HELBIG, Jörg (Org.) (1994) Brasilianische Reise 1817–1820. Carl Friedrich Philipp von Martius zum 200. Geburtstag. Catálogo da exposição: Schirn–Kunsthalle Frankfurt (setembro–outubro 1994) e Staatliches Museum für Völkerkunde München (dezembro 1994–abril 1995), Hirmer, Munique.

SPIX, J. B. von e MARTIUS, C. F. Ph. von. (1823, 1828, 1831) Reise in Brasilien. 3 vols. e 1 Atlas. M. Lindauer (vol. I), I. J. Lentner (vol. II), C. Wolf (vol. III), Munique.

SPIX, J. B. von e MARTIUS, C. F. Ph. von. (1938) Viagem pelo Brasil. 3 vols e 1 Atlas. Trad. de Lucia Furquim Lahmeyer, Imprensa Nacional, Rio de Janeiro.

SCHMELLER, Johann Andreas (1954–1957), Tagebücher. 1801–1852. Editado por Paul Ruf. C.H. Beck, (Schriftenreihe zur bayerischen Landesgeschichte; vols. 47, 48 e 48a), Munique.

Periódicos

EOS - Eine Zeitschrift aus Baiern zur Erheiterung und Belehrung [Uma revista da Baviera para diversão e aprendizado] (02.01.1821), Munique.

EOS - Eine Zeitschrift aus Baiern zur Erheiterung und Belehrung [Uma revista da Baviera para diversão e aprendizado] (23.01.1821), Munique.

Flora - Ein unterhaltungs Blatt [Uma revista para o entretenimento] (12.12.1820), Munique.

Müncher Politische Zeitung [Jornal Político de Munique] (12.12.1820), Munique.

RESUMOS

Nos séculos XVIII e XIX tornou-se comum que, ao término de suas expedições, viajantes estrangeiros levassem consigo pessoas dos locais visitados, hábito recorrente também entre os que visitaram as terras brasileiras. Neste artigo estuda-se o caso de dois jovens índios da Amazônia que os bávaros J. B. von Spix e C. F. P. von Martius levaram a Munique em 1820: uma jovem Miranha e um rapaz Juri com idade entre 12 e 14 anos. Estes se tornam uma das grandes atrações dentre as peças vivas que os dois naturalistas expuseram em Munique. Porém, Juri faleceu apenas seis meses depois; Miranha, em doze meses. Interessa-nos analisar como se deu a vida desses índios na capital bávara.

Aux XVIIIe et XIXe siècles, il était courant qu’à la fin de leurs expéditions des voyageurs étrangers emmènent avec eux des habitants des lieux qu’ils avaient explorés. Une habitude récurrente chez ceux qui visitaient les terres brésiliennes. Dans cet article, on fait l’étude du cas de deux jeunes Indiens d’Amazonie que les Bavarois J. B. von Spix et C. F. P. von Martius ont ramenés à Munich en 1820 : la jeune Miranha et le jeune Juri, âgés d’environ 12 - 14 ans. Ils constituent l’une des grandes attractions parmi les «pièces vivantes» que les deux naturalistes ont exposées à Munich. Cependant, Juri décède seulement six mois plus tard et Miranha douze mois après. Il s’agit de tenter d’analyser la brève existence de ces Indiens dans la capitale bavaroise.

Artelogie, 14 | 2019 115

ÍNDICE

Palavras-chave: Expedições científicas; viagem ao Brasil; índios da Amazônia; coleções naturalistas; peças vivas. Mots-clés: Expéditions scientifiques, voyage au Brésil, Indiens d'Amazonie, collections naturalistes, piéces vivantes.

AUTOR

MARIA DE FÁTIMA COSTA

Universidade Federal de Mato Grosso [email protected]

Artelogie, 14 | 2019 116

O solo da transição: William Hazlitt e a literatura latino americana

Daniel Lago Monteiro

1 A presença de William Hazlitt (1778-1830) na América Latina é discreta, sobretudo quando a comparamos com outros grandes escritores de sua geração, como Walter Scott, Lorde Byron, Samuel Taylor Coleridge, John Keats e Charles Lamb. Os dois primeiros, Byron e Scott, são, sem sombra de dúvidas, os escritores mais populares do chamado Romantismo Britânico e a leitura de suas obras foi decisiva para autores como Álvares de Azevedo, Gonçalves Dias, José de Alencar, entre outros. Algumas dessas obras encontraram traduções em solo americano ainda no século XIX, em geral, via traduções francesas. Em Itinerários de Pasárgada, Manuel Bandeira reconstrói o “dreamwork fabric” do poema Kubla Khan, de Coleridge. “Tomara o poeta”, diz Bandeira, “uma dose de ópio e adormecera sentado no momento preciso em que lia no Purchas’s Pilgrimage esta frase: ‘Aqui o Khan Kubla mandou construir um palácio com suntuoso jardim. E assim dez milhas de terra feraz foram cercadas de muro’” (BANDEIRA, 1967: p. 126). Depois que despertou, Coleridge descobrira que havia composto durante um sonho uns “duzentos ou trezentos versos” (COLERIDGE, 2005: p. 221), os quais dispusera-se prontamente a transcrever. A mesma história foi tema do ensaio de Jorge Luis Borges “O sonho de Coleridge”, em Outras Inquisições. No mesmo livro, há um ensaio sobre Keats “O rouxinol de Keats”, no qual Borges lembra a distinção coleridgiana de que “os homens nascem aristotélicos ou platônicos” (BORGES, 2005, p. 139) e que Keats, na contramão do gênio inglês, tinha uma mente platônica, pois seu rouxinol não corresponde ao indivíduo, mas à espécie. Keats é um dos poetas mais admirados por Julio Cortázar, que dedicou a ele um estudo volumoso, Imagen de John Keats, bem como outros ensaios críticos. Mesmo Lamb, que, a exemplo de nosso autor, se destacou sobretudo no gênero ensaio é lembrado por Machado de Assis em Memórias Póstumas de Braz Cubas e no conto O Lapso. Por qual razão a presença de Hazlitt na América Latina é discreta? Neste artigo, procuraremos responder a essa pergunta a partir da noção hazlitiana de que a literatura na modernidade se desenvolve no solo da transição: entre o passado e o futuro, entre uma literatura elevada e outra prosaica e crítica e entre os

Artelogie, 14 | 2019 117

continentes europeu e americano. Também procuraremos documentar a presença de Hazlitt em alguns escritores e críticos latino americanos.

2 De saída, convém tecer algumas palavras gerais sobre o nosso autor, sobre sua vida e obra. Hazlitt cresceu em uma família de intelectuais dissidentes que, nos anos de 1790, se refugiara nos Estados Unidos; de volta ao país e depois de ouvir uma pregação de Coleridge, abandonou os estudos pastorais e descobriu sua vocação de filósofo e artista; após uma carreira frustrada de pintor de retratos, passou a ganhar a vida e fez fama literária com ensaios confiados à imprensa periódica; foi defensor ardente da revolução popular; rompeu com o círculo de escritores que, em sua opinião, desertaram a “causa do povo”1; aos quarenta e quatro anos, divorciou-se de sua primeira esposa na esperança malograda de viver a paixão por uma jovem vinte e cinco anos mais nova; casou-se novamente, morou por alguns anos na Itália e França com a nova esposa, de quem se separaria mais tarde; por fim, terminou a vida só e pobre em um pequeno quarto alugado em Soho, Londres2. Quanto à sua obra, vinte e um volumes, segundo a edição centenária de Percival Presland Howe (1930), boa parte dela consiste em ensaios de periódicos. Numa palavra, o “gênio” de Hazlitt era “eminentemente fragmentário”3. Foi assim que o definiu um articulista da New Monthly Magazine, cujo perfil do autor foi traduzido e publicado na Revista Nacional e Estrangeira, Rio de Janeiro (1840), sob o título “Potências Intelectuais da Nossa Idade”. Esta é a primeira ocorrência do nome de Hazlitt na imprensa brasileira. O perfil se abre com a ideia, cara a nosso autor, de que a época atual, se comparada às anteriores, não produziu “nada de monumental, nada que se dirija ao porvir”4. Falemos mais detidamente sobre essa ideia e, junto a ela, a tese hazlittiana de que as artes não progridem.

3 Numa publicação da Edinburgh Review de 1823, “The Periodical Press”, Hazlitt traça um panorama dos principais jornais e revistas literárias inglesas, “o grande opróbio de nossa literatura” (HAZLITT, 1930, v. 16, p. 239). Mas o tom não tem tanta censura quanto a passagem sugere. Hazlitt abre o ensaio ironizando aqueles que se perguntam se “a crítica em periódicos é, no todo, favorável ou não à causa da literatura” (HAZLITT, 1930, v. 16, p. 211); ou se Shakespeare e outros grandes homens de gênio do passado conseguiriam produzir suas obras num tempo em que tudo passa pelo escrutínio do jornal, este “viveiro da crítica” (HAZLITT, 1930, v. 16, p. 211). Não é por aí que se chega a uma solução do problema. Afinal, pergunta Hazlitt, não são Byron e Scott exceções à regra, uma vez que escritores populares cujas obras trazem em si imenso valor literário? Se em cinco ou dez anos elas ainda serão lidas ou se terão adquiridos o ar mofado de velharias, às quais só se retorna por curiosidade histórica, “só o tempo dirá” (HAZLITT, 1930, v. 16, p. 211). Também em tom irônico, conclui o autor, “a crítica em periódicos é favorável à crítica em periódicos” (HAZLITT, 1930, v. 16, p. 212). A partir daí segue-se uma longa discussão sobre o tema ao qual nos referimos acima, a de que não há progresso nas artes.

4 A tese não é decerto original, tampouco ele pretendeu que a fosse. Há nela ecos da crítica que o precedera, sobretudo do século anterior. O mote do raciocínio hazlittiano pode ser resumido na seguinte fórmula: quanto mais uma sociedade progride em conhecimento e refinamento, mais as artes perdem em vigor, gênio criativo e sublimidade. No ensaio de The Round Table, “Why the Arts are not Progressive?”, diz ele: “Os maiores poetas, os mais hábeis oradores, os melhores pintores e os mais perspicazes escultores que este mundo já viu surgiram pouco depois do nascimento dessas artes e viveram numa sociedade, sob outros aspectos, comparativamente bárbara” (HAZLITT, 1930, v. 4, p.

Artelogie, 14 | 2019 118

161). Este modelo de perfeição, como qualquer outro, implica florescimento, decadência e “a suposição de um ponto máximo a que se pode alcançar nas artes” (SUZUKI, 2014: p. 20), como bem observou Márcio Suzuki acerca de David Hume. Segundo o argumento específico de Hazlitt, por ironia do processo histórico, chega-se cedo demais a esse modelo de perfeição. O mundo jamais verá outro Homero, outro Ésquilo, outra Safo; não apenas porque foram os primeiros, mas porque levaram à perfeição a arte que, se não as inventaram, contribuíram para dar o acabamento formal a seus respectivos gêneros: épico, dramático e lírico. Todas as alternativas estariam cortadas, restando apenas a decadência ou mesmo o fim da arte, se Hazlitt não incluísse outras duas variantes: 1 - uma forma artística floresce sobre a matéria morta daquela que a antecedeu; 2 - “cada época ou nação possui um padrão que lhe é próprio” (HAZLITT, 1930, v. 16, p. 215).

5 Quanto a este último argumento, um lugar-comum às poéticas do romantismo, o que o autor diz, por um lado, é que só se pode julgar o mérito de uma obra a partir de valores circunscritos “dentro de limites locais e temporais” (HAZLITT, 1930, v. 16, p. 216); por outro, como não há nenhuma nação que subsista isoladamente, ao menos na modernidade, o contato com o diferente estimula o espírito de emulação; o vigor criativo floresce na vacância. Dante não é superior a Milton, nem este àquele; antes, cada qual atingiu a perfeição na poesia épica de suas respectivas línguas porque souberam trabalhar sobre um material herdado, porém em solo ainda pouco cultivado. Além disso, a barbaridade de suas épocas, as inúmeras dificuldades que se interpunham entre a vontade e a ação, cobrava-lhes um gesto firme e expressivo. Nada mais congênere à natureza da poesia, que, segundo Hazlitt, “é a linguagem da imaginação, das paixões, da fantasia e da vontade” (HAZLITT, 1930, v. 5, p. 8). Não há como não reconhecer no argumento a herança de Jean-Jacques Rousseau ou de Edmund Burke. Para aquele, a energia expressiva da palavra, própria aos antigos, foi substituída pela necessidade de clareza do homem civilizado, daí o declínio da eloquência e da poesia entre os modernos5; para este, as línguas antigas ou orientais são tanto mais sublimes porque dotadas “de uma grande força e energia de expressão” e porque nelas a imaginação prepondera sobre o entendimento, isto é, sobre “as distinções rigorosas.” (BURKE, 2013: p. 213).

6 Hazlitt também encontrou na modernidade uma diminuição gradual da força da imaginação, que foi substituída pelo rigor do entendimento. A consequência disso não implica a anulação do entusiasmo, mas a busca por outros, ainda que efêmeros e insaciáveis: os fatos corriqueiros e sem foros de grandeza veiculados pela imprensa.

7 A primeira variante ao mote exposto acima (de que um gênero artístico floresce sobre a decadência de um outro), está, como se pode entrever, intimamente ligada ao segundo. “A tragédia alcançou o ápice na França quando ela estava em declínio entre nós” (HAZLITT, 1930, v. 16, p. 215); assim como, em termos gerais, “a comédia floresceu com o declínio da tragédia” (HAZLITT, 1930, v. 16, p. 214). A explicação, é claro, não pressupõe uma visão absoluta da história, pois a sua marcha não caminha no mesmo passo em diferentes nações; tampouco segundo um fim preconcebido. À luta encarniçada por um ideal, que eleva alguns homens acima dos demais com a corporificação da grandeza de caráter, seguiram-se “as imagens de graça, de alegria e de prazer redobrado (...) sobre a perspectiva de uma vida humana” (HAZLITT, 1930, v. 6, p. 70) não dignificada. Com o advento da comédia, a literatura se mundanizou, novos caminhos se abriram e “novos pedaços de terra, antes negligenciados, foram cultivados” (HAZLITT, 1930, v. 16, p. 215). É verdade que sobre um solo mais amplo, melhor distribuído e, portanto, menos rico em minerais

Artelogie, 14 | 2019 119

preciosos. Em outras palavras, a literatura e o mundo se tornaram mais prosaicos. “A partir daí”, diz ele, “os ensaístas de periódico, Steele e Addison, sucederam nossos grandes escritores de comédia; os romancistas (Fielding, Sterne e Smollett) sucederam aqueles; e cada um deles nos legou obras superiores ao que se produzira antes, ou ao que viria a se produzir desde então” (HAZLITT, 1930, v. 16, p. 215) – é verdade que Hazlitt não previra a extensa e rica cultura do romance que floresceria em seu próprio século nas mãos de um Charles Dickens, por exemplo6. Seja como for, as condições para o surgimento do romance e do ensaio em periódico – a difusão do conhecimento, a formação do público leitor, “a aproximação e amálgama dos diferentes estratos sociais” (HAZLITT, 1930, v. 16, p. 218), entre outros – foram amplamente analisadas por ele em “The Periodical Press”. Vendo o fluxo da história desaguar em solos mais amplos, aplainados e agrupados nos centros urbanos, Hazlitt, aqui, parece acertar em seu prognóstico: “o monarquismo da literatura está com seus dias contados” (HAZLITT, 1930, v. 16, p. 220).

8 Pois bem, poderíamos nos perguntar, e quanto à literatura nas américas? Se o valor de uma obra deve ser julgada “dentro de limites locais e temporais” e se a decadência da literatura e das artes em uma nação implica o seu florescimento noutra, estaria Hazlitt sugerindo que a mais nova e rica produção literária do mundo ocidental ainda estava por nascer nas américas?

9 Vale lembrar que os anos em que esses ensaios foram redigidos, as décadas de 1810 e 1820, correspondem aos anos de luta pela independência nas américas hispânicas e portuguesas. Evento esse que não passou despercebido por nosso autor, defensor que foi, como disse acima, das revoluções populares. Assim, em um artigo a Morning Chronicle de 1817, Hazlitt assente com o desespero de Lorde Castlereagh (diplomata inglês no Congresso de Viena) quanto “à restauração da paz na América hispânica”, contanto que “ele [Castlereagh] incluísse na ideia de paz o reestabelecimento da tirania da forma antiga de governo” (HAZLITT, 1930, v. 7: p. 211). No mesmo ano, Leigh Hunt, amigo de Hazlitt e editor de The Examiner, “um dos principais órgãos do Partido Whig” (MIGUEL PEREIRA, 2016: p. 14), publicou ali um ensaio cujo título chama a nossa atenção: “Revolução no Brasil e a Conquista do Chile”. No tocante ao Brasil, Hunt descreve a tentativa de tomado do poder dos colonos naquela que ficou conhecida por Revolução Pernambucana. O ensaio foi escrito no calor da hora e Hunt imaginou que a revolução iria se alastrar por toda a colônia portuguesa na América, como ocorria na América hispânica, tema da segunda parte do ensaio, que trata mais especificamente de José de San Martin. Imbuído do espírito hazlittiano, Hunt argumenta que a chama revolucionária, em declínio na Europa, ressurgia nas américas com “quadros grandiosos de homens derramando triunfantemente seu sangue pela liberdade” (HUNT, 2003, v. 2, p. 112).

10 Contudo, nem Hazlitt nem Hunt trataram do estado das letras na América Latina. Até porque, não havia ainda uma literatura latino americana stricto senso em sua época. Mas Hazlitt tece algumas considerações sobre a literatura estadunidense, ou melhor, sobre o quanto ela alcançou a maioridade, a independência em relação à Europa. Cito um trecho: “Ele [Estados Unidos da América] é um país novo com uma língua antiga. Mas enquanto tudo em torno dos americanos é novo em folha, eles constantemente recorrem a nós para saber o que pensamos sobre eles e tomam de empréstimo suas opiniões de nossos livros e jornais com uma mistura estranha de servidão e o espírito de contradição. Na política, eles são um povo independente; na literatura, permanecem ainda nossas colônias” (HAZLITT, 1930, v. 17: p. 208).

Artelogie, 14 | 2019 120

11 O mesmo tema será objeto de análise de Roberto Schwarz, que explica a ambivalência das literaturas nas américas, países novos com línguas antigas, pelo conceito de nação periférica. Schwartz lembra que em fins do século XIX Henry James optou por emigrar, pois acreditava que encontraria um solo mais fértil à sua imaginação na Europa: “A minha escolha é o velho mundo – minha escolha, minha necessidade, minha vida (...). Meu trabalho está lá – je n’ai que faire neste vasto novo mundo” (apud. SCHWARZ, 2012: p. 36). No mesmo artigo, Schwartz reconstrói o longo percurso que Alencar e Machado tiveram de percorrer para dar uma forma brasileira, uma “cor local” (MACHADO, 2017: p. 58), nas palavras de Machado, aos grandes temas e “ao bom modelo do romance (europeu)” (SCHWARZ, 2012: p. 42). Tanto a alternativa de James, de abraçar o velho mundo, quanto as de Alencar e Machado acenam para o que diz Hazlitt no trecho citado antes, a literatura nas américas mantêm uma interdependência com a europeia. Assim como Schwarz, Hazlitt sabe que as formas literárias não estiveram sempre lá, “pront[as] desde sempre”, mas que surgiram “sobre o solo da transição” (SCHWARZ, 2012: p. 38) de um regime de governo ou econômico a outro.

12 O romance enquanto epopéia da era burguesa, segundo a célebre formulação de Lukács, foi o gênero adotado por algumas das principais vozes literárias do continente americano no século XIX. Mas, junto ao romance, floresceria nas américas as formas fragmentárias, sem foros de grandeza, como a crônica jornalística de Alencar e Machado, a contística de Edgar Allan Poe e as memórias e ensaios de Domingo F. Sarmiento. Em certo sentido, a literatura nasce nas américas e na América Latina em especial sobre o terreno amplo e aplainado da prosa do mundo. Numa palavra, uma literatura crítica, segundo os critérios de nosso autor. É essa mesma literatura fragmentária, prosaica e crítica que, vez ou outra, irá se remeter a Hazlitt, “o grande ensaísta” (CARPEAUX, 1966: p. 2012), nas palavras de Otto Maria Carpeaux.

13 Abrimos este artigo com um breve recenciamento de escritores latino americanos que incorporaram o Romantismo Britânico à sua literatura. Resta, por fim, dizer uma palavra ou outra sobre a presença de Hazlitt na América Latina, com a qual procuraremos responder às perguntas: qual a sua relevância para nós, latino americanos? Ou ainda, por que ler Hazlitt na América Latina e, em particular, no Brasil?

14 Dos grandes escritores latino americanos, Borges é decerto o mais anglófilo, sem que isso lhe diminuísse seu espírito latino americano e, mais ainda, universalista. Borges foi alfabetizado nos dois idiomas, espanhol e inglês. “Em casa”, diz Borges no Ensaio Autobiográfico, “falávamos indistintamente em espanhol em inglês” (BORGES, 2009, p. 16). Por influência de sua avó, Fanny Haslam, e de seu pai travou contato com um vasto repertório de autores de língua inglesa. Anos mais tarde, ele ministrou um curso de literatura inglesa em vinte e cinco aulas na Universidade de Buenos Aires. Hazlitt ficou de fora desse curso, mas sua presença, ainda que esparsa, é notável nos ensaios. É possível que o primeiro contato de Borges com Hazlitt se deu por intermédio de dois de seus escritores favoritos, Shakespeare e Robert Louis Stevenson. Davi Arrigucci Jr. lembra que “Borges vincula seus exercícios de prosa narrativa à releitura de Stevenson” (STEVENSON, 2011: p. 25). Ao passo que Stevenson vinculou seus exercícios de prosa a Hazlitt. Assim, lemos a frase em “A College Magazine”, citada por Borges, “macaquei Hazlitt com afinco” (STEVENSON, 1990: pp. 42-3)7. Anos mais tarde, quando já gozava de grande prestígio entre a crítica e o público, Stevenson se dirigiu aos escritores de sua geração dizendo: “Ainda que sejamos pessoas admiráveis, jamais escreveremos como William Hazlitt” (Apud. REYES, 1963, v. 5: p. 346)8. São inúmeros os

Artelogie, 14 | 2019 121

contos e ensaios de Borges que se reportam a Shakespeare – como não haveria de sê-lo para uma literatura, como a de Borges, eminentemente calcada nos grandes monumentos da cultura ocidental? Depois de Hazlitt, é impossível ler Shakespeare como leram Samuel Johnson e outros críticos que o precederam. Em Characters of Shakespeare’s Plays (1817), Hazlitt analisa peça por peça do dramaturgo com ênfase nos traços individuais, psicológico e nuances de estilos linguísticos das personagens que, em sua grande parte, dão título às obras: Hamlet, MacBeth, Otelo, Romeu e Julieta, etc. Mas a tese central nesse livro é, por assim dizer, anti-individualista. No ensaio de Borges “De alguém para ninguém”, ele cita uma passagem de Hazlitt que sintetiza o seu entendimento de Shakespeare: “Shakespeare em tudo se assemelhava a todos os homens, exceto no fato de assemelhar-se a todos os homens. No íntimo não era nada, mas era tudo o que os homens são, ou o que podiam ser” (BORGES, 2005: pp. 169-70). A mesma ideia reaparece no ensaio “Valéry como símbolo”. Valéry, segundo Borges, “transcende os traços individuais do eu” e dele se pode dizer, “como Hazlitt disse de Shakespeare: ‘He is nothing in himself’” (BORGES, 2005: p. 93).

15 Em suma, o traço predominante do Hazlitt lido por Borges é do crítico. Como foi para Julio Cortázar. Nos anos de 1818-19, Hazlitt ministrou três cursos de literatura inglesa. Keats assistiu a algumas dessas aulas e ficou particularmente tocado com ideia de que Shakespeare, o maior dos poetas ingleses, no íntimo não era ninguém, “mas era tudo o que os homens são, ou podem ser” (HAZLITT, 1930, v. 5: p. 47). Foi com base nessa ideia que Keats desenvolveu o conceito de “negative capabiblity” (KEATS, 2002: p. 60), isto é, de que o poeta não tem uma identidade própria, e que, sob esse aspecto, é a menos poética das criaturas. Contudo, é isso que lhe permite se transmutar em todos os seres: “O sol, a lua, o mar, homens e mulheres” (KEATS, 2002: p. 195). Cortázar identificou nesse princípio a base para a fancy de Keats. Nenhum outro contemporâneo, diz Cortázar, expressou uma admiração tão profunda por Hazlitt quanto Keats. Aquele foi o “Domingo Faustino Sarmiento da crítica inglesa” (CORTÁZAR, 2004: p. 224). Uma afirmação bastante elogiosa, pois, como se sabe, Sarmiento foi não apenas o grande estadista, mas fundador da literatura nacional argentina.

16 Citamos acima a frase de Otto Maria Carpeaux que abre o perfil que escreveu do ensaísta em História da Literatura Ocidental (1959-66) 9. Carpeaux, com sua rara sensibilidade, que combina aptidões que a especialização universitária manda separar, não se deixou enganar, como ocorrera a outro crítico de sua geração, o italiano Mario Praz, quanto ao lugar que Hazlitt merecidamente ocupa na literatura: o de ter sido um de seus maiores ensaístas10. Entretanto, há alguns deslizes nesse perfil que devem ser pontuados. Primeiro, Hazlitt jamais foi um defensor do individualismo e discípulo de Helvetius; pelo contrário, sua filosofia é um tapa na cara das teorias que fundamentam a ação humana no indivíduo e no amor-próprio. Segundo, não pode haver qualquer afinidade entre Hazlitt e Jeremy Bentham, senão por oposição. Por toda a vida, Hazlitt encampou a batalha contra a suposição de que a razão instrumental conduziria a humanidade às verdades concretas e à construção de uma sociedade mais justa. Terceiro, o bonapartismo de Hazlitt não guarda semelhanças com o culto ao herói de Carlyle. Se, para Carlyle, Napoleão, o “último dos grandes homens” (CARLYLE, 1841: p. 392), era dotado de uma habilidade que naturalmente exercia um “direito divino sobre” (CARLYLE, 1841: p. 321) os outros; para Hazlitt, o estadista foi um condutor da causa revolucionária, e isso “a despeito de si mesmo” (HAZLITT, 1930, v. 7: p. 9). Sem que o

Artelogie, 14 | 2019 122

soubesse, Napoleão era incapaz de “despir-se de seu caráter”; isto é, o de “filho e campeão da Revolução Francesa” (HAZLITT, 1930, v. 13: p. ix)11.

17 Em ocasiões distintas, e com propósitos igualmente distintos, Hazlitt foi lido por duas personalidades emblemáticas da intelectualidade brasileira modernista. Uma, a romancista e ensaísta Lucia Miguel Pereira; a outra, um dos maiores poetas e compositores de nossa língua, Vinícius de Moraes.

18 Lucia Miguel Pereira prefaciou o volume Ensaístas Ingleses (1952), tradução de J. Sarmento de Beires e Jorge Costa Neves. Neste apareceram as duas primeiras traduções de Hazlitt para o português brasileiro: “Sobre a Ignorância dos Sábios” e “A Propósito de Alcunhas”. O volume foi inspirado em outra coletânea, mais extensa, Ensaysitas Ingleses (1948), prefácio de Adolfo Bioy Casares. Se Casares ressaltou a versatilidade dos talentos de Hazlitt (pintor, filósofo, historiador, ensaísta), Miguel Pereira lembrou, sobretudo, a qualidade do crítico que facilita a compreensão histórica: “seus ensaios críticos, que abrangem praticamente todos os escritores desde a época de Elizabeth até a sua, contribuíram largamente para o entendimento de Shakespeare, assim como para o movimento romântico na Inglaterra” (MIGUEL PEREIRA, 2016: p. 14). Mas ambos, Casares e Miguel Pereira, foram sensíveis ao fervor apaixonado, e apaixonante, de seus ensaios. “Hazlitt pensou muito, escreveu muito e combateu muito” (CASARES, 1957: p. 14), disse Casares. Ou ainda, nas palavras de Miguel Pereira: “temperamento espontâneo, os escritos lhe refletem as paixões, as simpatias e antipatias” (MIGUEL PEREIRA, 2016: p. 14).

19 Noutra chave, mas também perto do coração, o Hazlitt de Vinicius de Moraes é o cronista que em épocas de epidemia mantém a dignidade de jamais ceder ao entreguismo. Em O Exercício da Crônica (1953), contrariando a opinião de que este seria um gênero tipicamente brasileiro, de que teria se aclimatado aqui melhor do que em qualquer outra parte do mundo12, Moraes diz que a crônica é filha do ensaio, ou melhor, do essay. A passagem merece ser lida na íntegra: “Os melhores cronistas do mundo, que foram os do século XVIII, na Inglaterra – os chamados essayists –, praticaram o essay, isto de onde viria a sair a crônica moderna, com um zelo artesanal tão proficientes quanto a de um bom carpinteiro ou relojoeiro. Libertados da noção exclusivamente moral do primitivo essay, os oitocentistas ingleses deram à crônica suas primeiras lições de liberdade, casualidade e lirismo, sem perda do valor formal e da objetividade. Addison, Steele, Goldsmith e sobretudo Hazlitt e Lamb – estes os dois maiores – fizeram da crônica, como um bom mestre carpinteiro o faria com uma cadeira, um objeto leve mas sólido, sentável por pessoas gordas ou magras” (MORAES, 2009: p. 53).

20 Pois bem, Hazlitt foi um dos maiores cronistas; foi mestre de um estilo que aposta na aliança produtiva entre a intelectualidade e a vida popular; foi um crítico atento ao processo histórico; foi também um intelectual não conformista e talvez o único de sua geração que se declarou, acima de tudo, um revolucionário13. Com a feliz confluência de traços estilísticos e ideais preciosíssimos para um grande batalhão de professores universitários de origem esquerdista entre nós, talvez devêssemos inverter a pergunta: afinal, por que Hazlitt permanece um autor negligenciado no Brasil? A resposta talvez esteja precisamente no argumento de Hazlitt de que a literatura e a crítica andam, ou deveriam andar, de mãos dadas na modernidade. Para os escritores latino americanos que souberam reconhecer o modo como a crítica e a inventividade influem uma sobre a outra e que trabalharam sobre o solo da transição – entre o passado e o futuro, entre uma literatura elevada e outra prosaica e crítica e entre os continentes europeu e americano –, Hazlitt, dizia Vinicius de Moraes, está entre os maiores.

Artelogie, 14 | 2019 123

BIBLIOGRAFIA

BANDEIRA, Manuel. Poesia Completa e Prosa. José Aguilar Editora, Rio de Janeiro, 1967.

CASARES, Adolfo Bioy. Ensayistas Ingleses. Éxito, Barcelona, 1957.

BORGES, Jorge Luis. Outras Inquisições. Companhia das Letras, São Paulo, 2005.

BORGES, Jorge Luis. Ensaio Autobiográfico. Companhia das Letras, São Paulo, 2009.

BURKE, Edmund. Uma Investigação Filosófica sobre a Origem de Nossas Ideias do Sublime e do Belo. Editora Unicamp, Campinas, 2013.

CANDIDO, Antônio. Recortes. Companhia das Letras, São Paulo, 1993.

CARLYLE, Thomas. On Heroes and Hero-Worship. Charles Scribner’s Sons, New York, 1841.

CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental, vol. “Romantismo”. Ed. Cruzeiro, Rio de Janeiro, 1966.

COLERIDGE, Samuel Taylor. A Balada do Velho Marinheiro. Ateliê Editorial, São Paulo, 2005.

CORTÁZAR, Julio. Imagen de John Keats. Punto de Lectura, Buenos Aires, 2004.

HAZLITT, William. The Complete Works of William Hazlitt, ed. P. P. Howe. J. M. Dent and Sons, LTD, London and Toronto, 1930, 21 vols.

HUNT, Leigh. The Selected Writings of Leigh Hunt, 6 vols. Pickering & Chatto, London, 2003.

KEATS, John. Selected Letters. Harvard University Press, Cambridge, 2002.

MACHADO, de Assis. O Espelho. Editora Unicamp, Campinas, 2017.

MIGUEL PEREIRA, Lúcia. “Sobre os Ensaístas Ingleses”, In. Serrote #22. Instituto Moreira Salles, São Paulo, 2016.

MORAES, Vinícius de. “O Exercício da Crônica”, In. Para uma Menina com uma Flor. Companhia das Letras, São Paulo, 2009.

PAULIN, Tom. “Hazlitt’s Influence on Dickens in Baraby Rudge”, In. The Hazlitt Review, vol. 2. The Hazlitt Society, London, 2009.

PRAZ, Mario. “Is Hazlitt a great essayist?” In English Studies. 1931, pp. 1-6.

Revista Nacional e Estrangeira. Rio de Janeiro, 1840.

REYES, Alfonso. Obras Completas de Alfonso Reyes, IX. Fondo de Cultura Económica, Cidade do México, 1952.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ensaio Sobre a Origem das Línguas. Editora Unicamp, Campinas, 2003.

SCHWARTZ, Roberto. Ao Vencedor as Batatas. Editora 34, São Paulo, 2012.

STEVENSON, Robert Louis. Memories and Portraits. Richard Drew Publishing, Glasgow, 1990.

STEVENSON, Robert Louis. O Clube do Suicídio e outras histórias. Apresentação Davi Arrigucci Jr. Cosacnaify, São Paulo, 2011.

SUZUKI, Márcio. A Forma e o Sentimento do Mundo: Jogo, humor e arte de viver na filosofia do século XVIII. Editora 34, São Paulo, 2014.

Artelogie, 14 | 2019 124

NOTAS DE FIM

1. Todas as citações de Hazlitt, salvo as vezes que indicar em nota, foram extraídas de The Complete Works of William Hazlitt, 21 vols. (London and Toronto: J. M. Dent and Sons, LTD, 1930). Daqui em diante, usaremos a sigla CWH, seguida do nome do texto de onde extraímos a citação e os números do volume e das páginas. Ver “What is the People?”, CWH, 7, p. 261. 2. Um dos últimos ensaios de Hazlitt se chama “London Solitude” que se abre com as palavras: “Em Londres, tudo se consegue com dinheiro, mas há uma coisa que pode ser alcançada em sua perfeição sem ele. Esta é a solitude”. In All That is Worth Remembering, Widworthy Barton Honiton: 2014, p. 160. 3. “Galeria Biographica”, In. Revista Nacional e Estrangeira, Rio de Janeiro, 1840, p. 250. 4. Idem, p. 249. 5. Jean-Jacques Rousseau, Ensaio sobre a Origem das Línguas (Campinas: Editora Unicamp, 2003), pp. 175-6. Sobre o tema, ver Bento Prado Jr., A Retórica de Rousseau e outros ensaios (São Paulo: Cosac & Naify, 2008), pp. 118-9. 6. Sobre as inúmeras conexões entre Dickens e Hazlitt, ver Tom Paulin, “Hazlitt’s Influence on Dickens in Baraby Rudge”, In. The Hazlitt Review, vol. 2 (London: The Hazlitt Society, 2009), pp. 5-20. 7. A frase de Stevenson é bastante conhecida e foi citada por Jorge Luis Borges em Esse Ofício do Verso (São Paulo: Companhia das Letras, 2000), p. 97. 8. Citado a partir de David Bromwich, Hazlitt: The Mind of a Critic, (New Haven: Yale University Press, 1999), p. 3. Adolfo Bioy Casares também cita esta passagem no prólogo a Ensayistas Ingleses (Barcelona: Éxito, 1957), p. 14. 9. Otto Maria Carpeaux, História da Literatura Ocidental, Vol. “Romantismo”, pp. 2012-2013. 10. Ver Mario Praz, “Is Hazlitt a great essayist?” (English Studies, 1931), pp. 1-6. 11. A melhor discussão sobre Hazlitt e Napoleão é de Simon Bainbridge, “‘A proud and full answer’: Hazlitt’s Napoleonic riposte”, In. Napoleon and English Romanticim (Cambridge: Cambridge University Press, 1995), pp. 183-207. 12. É dessa opinião Antônio Candido. Sobre a crônica, diz Candido: “sob vários aspectos é um gênero brasileiro, pela naturalidade com que se aclimatou aqui e a originalidade com que aqui se desenvolveu” (CANDIDO, 1993: p. 24). 13. Hazlitt fez sua profissão de fé política precisamente na última de suas publicações, Life of Napoleon. No capítulo “The Establishment of the Empire”, diz ele: “Nunca e em parte alguma de meus escritos declarei-me um republicano; tampouco creio que valha a pena ser um mártir e defensor desta ou daquela forma de governo. Mas se arrisquei minha saúde e riqueza, meu nome e fama a alguma coisa, a qual estaria disposto a me arriscar novamente e até a última gota de suor, foi à ideia de que há um poder no povo para mudar o seu governo e governantes. Numa palavra, sou um revolucionário”, (HAZLITT, 1930, v. 14: p. 236). Para uma discussão sobre essa passagem, ver Gilmartin “Revolutionist”, In. William Hazlitt, Political Essayist, pp. 186-200.

RESUMOS

O presente artigo se propõe tanto a documentar a presença de William Hazlitt (1778-1830) na América Latina quanto a analisar aqueles escritos do autor nos quais ele comenta a situação política e literária do Novo Mundo. Ainda que discreta, essa presença é notável em alguns dos escritores mais renomados da América Latina. Seguindo o argumento de Hazlitt de que não há progresso nas artes, trabalharemos com a sugestão do autor de que, de um lado, a mais nova e rica produção literária do mundo ocidental ainda estava por nascer nas américas, do outro, que

Artelogie, 14 | 2019 125

essa mesma literatura irá se desenvolver sobre o solo da transição: entre o passado e o futuro e entre os continentes europeu e americano.

Le présent article propose de documenter la présence de William Hazlitt (1778-1830) en Amérique latine. Il analyse ses commentaires sur la situation politique et littéraire du Nouveau Monde. Bien que discrète, cette présence est remarquable chez certains des écrivains les plus renommés du continent. En suivant l’argument de Hazlitt selon lequel il n’y a pas de progrès dans les arts, nous discuterons sa thèse selon laquelle la production littéraire la plus riche du monde occidental était encore à naître dans les Amériques et que cette même littérature se développerait sur un terrain de transition : entre le passé et l’avenir et entre les continents européen et américain.

ÍNDICE

Mots-clés: William Hazlitt, Littérature latino-américaine, Littérature anglaise, Essai, Critique. Palavras-chave: William Hazlitt, Literatura Latino Americana, Literatura Inglesa, Ensaio, Crítica.

AUTOR

DANIEL LAGO MONTEIRO

Doutor em teoria literária e literatura comparada, Universidade de são Paulo E-mail: [email protected]

Artelogie, 14 | 2019 126

Representaciones de la experiencia parisina. ¡No contaban con mi astucia! – Sobre héroes, demonios y narcóticos en América Latina

Carlos Velázquez

Preámbulo demonológico

1 Un Chulachaqui. Es eso lo que vaga a la deriva sobre las aguas rasas de la riqueza especulativa. Y lo peor es que vaga creyendo que está en el control. Chulachaqui. Así le llaman los indígenas de la selva amazónica a un espíritu que se perdió de su alma, como explica el sabio Karamakate del pueblo Cohiuano1: “Todos tenemos un chulachaqui. Se parece con nosotros, pero está vacío, hueco. Es solo el recuerdo de un tiempo que pasó. Un chulachaqui no tiene memoria. Vaga por el mundo, vacío, como un fantasma, perdido en un tiempo sin tiempo.” (GUERRA, 2015) Se trata de lo que Jung también observó entre los llamados hombres primitivos: la pavorosa pérdida del alma, lo que, en términos más técnicos – como él mismo dijo – conoceríamos hoy como disociación de la consciencia (JUNG, 1964: p.24).

2 Es que por estas tierras, como en tantas otras, el proyecto moderno de mundialización – o tal vez apenas de economía global – aconteció como es debido, para tomar la expresión de Morin. Es decir, “se desarrolló en y por la violencia, destrucción, esclavatura, explotación feroz” (MORIN; CIURANA; MOTTA, 2003: p.69) y como aún vivimos bajo esos preceptos y estamos demasiado preocupados con la sobrevivencia, creo que no hemos dado la debida atención a otro tipo de violencia que, por pasar desavisada, el chulachaqui aprovecha para poseernos. Se trata de la violencia del choque entre sueños, como lo observó Le Clézio en México y como sucedió con los otros pueblos bárbaros que también fueron violados por el imperialismo occidental. “De un lado, el mundo individualista y posesivo de Hernán Cortés; mundo de cazador, ladrón de oro, que mata los hombres y conquista las mujeres y las tierras. Del otro, el mundo colectivo y mágico de los

Artelogie, 14 | 2019 127

indios, cultores de maíz y de frijol, campesinos sumisos a un clero y a una milicia, adoradores del Rey Sol que representa sus dioses sobre la tierra.” (LE CLÉZIO, 1988: p.21)

3 Como es debido, dice Morin, y estoy de acuerdo con él; no hay transformación sin violencia, por eso la guerra. Solo que, mientras la guerra de los primitivos era ritual, de antemano definida para experimentar los acuerdos misteriosos entre potencias celestes; la guerra civilizada procura la pose y la ganancia, a despecho del apaciguamiento de los dioses que se alimentarían del corazón y de la sangre de vencidos y vencedores. ¿Cómo ganar la guerra? ¿Cómo, si eran hombres “que integraban un todo, una única y misma alma dominada por sus dioses, […] frente al hombre individualista y escéptico del mundo moderno?” (LE CLÉZIO, 1988: pp.20-21)

4 Nos lo había advertido también Lévy-Bruhl (2002: p.37), lo visible y lo invisible, en la mentalidad primitiva, son inseparables. De hecho, lo invisible es mucho más presente, activo y temible, por lo que ocupa el alma de forma determinante y evita que el espíritu se profundice en el tipo de reflexión que conocemos como objetiva. ¿De qué serviría, si la felicidad, la salud, el orden natural, en fin, todo, a cada instante, depende de los poderes místicos? El esfuerzo humano no debe malgastarse en tentativas de reglamentar su ambiente; es mejor interpretarlo para integrarse a él. Así que, como pensaba Le Clézio, “a pesar de los sacrificios sangrientos, de la antropofagia ritual, de su tiranía teocrática, no hay duda de que los Aztecas – como los Mayas o los Tarascos – [en ese enfrentamiento] eran la parte civilizada” (LE CLÉZIO, 1988: p.41) o, por lo menos, diría yo, habían construido una civilización digna de ponderación análoga a la del invasor.

5 De todos modos, eso no impidió que el chulachaqui Vespucio estimara justo que este vasto territorio – el nuevo mundo – portara su nombre, América, y substituyera sus escrituras jeroglíficas por los sistemas fonéticos de las lenguas derivadas del latín.

6 Hay que reconocer, sin embargo, que no todo era a favor de los latinos europeos. La disociación neurótica que venía preparándose en el viejo continente hacía gala de su odio al cuerpo (LE BRETON, 2013) procurando substituir la fuerza de trabajo por la fuerza de las máquinas y, en esa neurosis, los anglosajones lideraban. Más una vez apelo a la lúcida sensibilidad de Le Clézio, al observar que “al mundo fantástico, mágico y cruel de los Aztecas, Mayas y Purépechas, seguirá lo que llamamos civilización: esclavitud, oro, explotación de tierras y hombres, todo lo que anuncia la era industrial.” (LE CLÉZIO, 1988: p. 59) De esta forma, el chulachaqui garantizó un triunfo de proporciones continentales. Los anglosajones vinieron, se apropiaron de los recursos e hicieron de la América Latina su América ideal, libre de latín. Es cierto que, geográficamente, aún somos dos Américas, América y América Latina; pero es que justamente es ese el hechizo de nuestro demonio: El espíritu desconoce el alma, cree haberse librado de ella, aunque el alma no desaparece, se torna invisible y, si bien recordamos, lo invisible es más presente, activo y temible.

7 En Perú, por ejemplo, la gente tiene miedo de que, alejados de la seguridad que brindan las dependencias urbanas de la civilización, les aparezca el chulachaqui. Un ser antropomorfo, pero mínimo y deformado, con un pie humano y otro animal y que engaña a las personas para que se pierdan en la selva (ARGUEDAS; RÍOS, 2009: pp. 127-129). Pero lo que las personas han visto no es el demonio propiamente. Los seres fantásticos no tienen forma. Lo que ven es la forma que le atribuyen a una parte de ellos mismos y que no es tomada en cuenta por su consciencia. Veamos: el chulachaqui es antropomorfo porque es parte de una persona, pero mínimo y deformado porque aquella parte del ser fue marginalizada por la personalidad consciente; tiene un pie

Artelogie, 14 | 2019 128

humano porque hace parte de lo humano, pero el otro es animal porque asume la naturaleza animal que el hombre civilizado niega. Ya que lo han excluido del complejo cultural, amenaza secuestrar los habitantes urbanos para entregarlos, de nuevo y para siempre, a la naturaleza, donde se perderán. Dicho de otra forma, lo que la consciencia rechaza es relegado al inconsciente, pero no se pierde; desde allá es proyectado sobre otros objetos, circunstancias o delirios y acaba que las personas, o los grupos sociales, ven en lo ajeno lo que desconocen en sí. La psicología analítica conoce este fenómeno como proyección (JUNG, 2013: pp.66-71). Con esta noción podemos comprender que, perceptivamente, la América anglosajona – como lo dije – es América y que la parte que se niega por ser mínima, sucia y deformada, dominada por la animalidad de los instintos y que amenaza tragar y extraviar para siempre a quien tenga la osadía de aproximarse, es el dominio del chulachaqui; el alma disociada; el inconsciente latino del continente americano.

8 Lógicamente, en la realidad cívica, las personas y los países del continente americano tienen sus propias fragmentaciones y oposiciones internas; sin embargo, en beneficio de la perspectiva continental que pretendo desenvolver y en alusión a la clara auto- referencialidad anglosajona, reiterada por una parte significativa de la América Latina, suspenderé particularidades para metaforizar la cultura americana como centro egóico de la consciencia y América Latina como su contraparte inconsciente.

La escisión

9 San Agustín de Hipona, empero europeo, era un sabio preocupado con la disociación entre alma y espíritu. Decía él que el cuerpo es dado a las pasiones y, como el alma habita el cuerpo, al alma le interesan las pasiones también. Pero si el espíritu es unilateralmente focalizado en el deleite pasional puede acabar aprisionando el alma en el cuerpo y, de esa forma, extraviando su propio sentido, dado que el alma aprisionada no estaría más en condiciones de articularse con lo transcendental, lo invisible o, en su decir, con Dios. El ser quedaría pues a la deriva, a merced de un espíritu vacío y sufriría, en consecuencia, enfermedades provocadas por los incomodos del alma confinada a tan limitado espacio. Una posible solución sería ofrecer al espíritu estímulos perceptivos capaces de resonar en el alma e incitarla, por lo tanto, a renovar sus articulaciones con lo divino. (SAN AGUSTÍN, 2008: pp. 364-381) No es un acaso que estos pensamientos se encuentren en el tratado de música del presbítero de Hipona, evidentemente, ciertas estructuras musicales serían ideales para hacer resonar el alma; pero volveré a este aspecto un poco adelante. Por el momento, interesa percibir que, frente a una situación de disociación de la consciencia, como la descrita, el alma activa reacciones auto- reguladoras, a ejemplo de las enfermedades que asolan al ser disociado.

10 En los albores del siglo XX, C. G. Jung ponderó abiertamente ese carácter auto- regulador de la psique, acrecentando que de los incomodos del alma confinada provienen materiales inconscientes, constelados en símbolos y temas míticos que precisan ser interpretados para que la consciencia los asimile (JUNG, 2009: pp. 398-400), es decir, para que el espíritu (consciencia) y el alma renueven su articulación unificadora. Es por eso que los mitos y sistemas simbólicos que el psiquiatra destaca se encuentran a la base de cualquier religión (ELIADE, 2001), pues su función es re-ligar las partes disociadas (CAMPBELL, 2008: p.31). Es, entretanto, necesario tener cautela con la interpretación de símbolos y mitos que Jung preconiza, pues se trata de un movimiento

Artelogie, 14 | 2019 129

adaptativo e integrativo, en los moldes descritos por Lévy-Bruhl, antes que de una apropiación meramente intelectual. Como dijo Eliade, una experiencia verdaderamente religiosa implica vivir los mitos (1972: p.18). En todo caso, de esta perspectiva podemos destacar que la religión y sus mitos vividos, o sea, sus ritos (ELIADE, 1992), son excelentes vías para la re-articulación de espíritu y alma. Aunque permanece la cuestión de la música de San Agustín. De hecho, el sabio cohiuano Karamakate recomendaba a los niños indígenas lo siguiente: “Nunca olviden quienes son y de donde vinieron. No permitan que su música desaparezca.” (GUERRA, 2015)

11 Una solución fácil sería declarar que el Arte, la Religión y los Ritos constituyen el trípode de la articulación espíritu y alma, sobre todo cuando sabemos que esas tres actividades humanas, en sociedades mágicas como las que habitaban el continente precolombino, no eran distintas entre sí. Xochicuicatl, flor-y-canto, la verdad hecha poesía, era el lenguaje de los Tlamatinime de las culturas nahuatl, hombres sabios, ejemplares, temerosos de los dioses y líderes en pruebas y sacrificios rituales (LEÓN- PORTILLA, 2001: p.320). Poesía y canto son artes, claro, pero ¿nos referimos a lo mismo cuando hablamos de arte en la actualidad? Para San Agustín, la música es la “ciencia del mover bien, de manera que el movimiento sea apetecido por sí mismo y por ello deleite por sí mismo” (SAN AGUSTÍN, 2008: p.95) y no podría ser diferente, ya que el nombre le viene de la omnipotencia que suele concederse a las Musas sobre el cantar (SAN AGUSTÍN, 2008: p.89). Según Platón, la música implica un “comercio inteligente con las musas” (2002: p.110), como lo confirma Gómez de Silva al definir la música como “cualquier arte protegido por las musas” (1998: p.474). Y es que, el recurso a las musas no es una licencia poética, sino una concepción mítica. Hijas de Mnemosine, la memoria arcaica, las musas eran regidas por Apolo, la consciencia expansiva, oracular, la cual, a través de las artes musicales, procura comunicación articulada con la memoria fantasmal, arquetípica. (VELÁZQUEZ, 2015: pp.83-ss) Dicho de otra forma, las musas procuran comunicación con el nunca-olviden-quienes-son-y-de-donde-vinieron de los cohiuanos, o con las resonancias del alma de San Agustín. Hay aquí un evidente movimiento espiritual; pero el movimiento ponderado por San Agustín es literal e integral. Las nueve musas fueron criadas para alabar la gloria del Olimpo (BRANDÃO, 2014: p.438), lo que realizan básicamente cantando y danzando (KURY, 2009). Si tenemos en cuenta que el canto exige una letra, tendremos que las artes de las musas implican la retórica, la música y la danza, orquestando el movimiento corporal con la vibración material en el ambiente y el dislocamiento espiritual, a partir del lenguaje (cultura), a procura de sus raíces mnemónicas. Es, sin duda, sobre esta base que Plotino afirmó que la retórica, la música y la danza son las artes que modifican a los hombres, tornándolos mejores o peores (PLOTINO, 2012). La misma noción es cristalina en la voz de los indígenas chibcha de la Sierra Nevada de Santa Marta: la danza nos une a las fuerzas divinas porque tiene la memoria de dónde venimos y la espiritualidad de la cultura (GUTIÉRREZ; TORRES, 2016). En fin, pretendo mostrar que el arte, en la concepción de los pueblos mágicos, procuraba transcender la precariedad espiritual, implicando la participación del ser total. Una verdadera participación mística en los moldes que Jung atribuía a Lévy-Bruhl (JUNG, 1964: p.24). Noción que prevaleció en Europa hasta el final de la Edad Media y que Subirachs designa como, “las artes que se desarrollan prioritariamente en el tiempo” (1995: p.09); artes del movimiento, en oposición a las artes de la forma y del color que la Historia del Arte tradicionalmente acepta, como advierte Xavier Barral (1990: p. 10-11).

Artelogie, 14 | 2019 130

12 El caso es que la concepción de arte que los colonizadores renacentistas impusieron en el Nuevo Mundo fue la segunda, la de la Historia del Arte. Según Francastel, en torno del siglo XV, el arte europeo, por un proceso semejante al de la formación de la consciencia descrito por Piaget, abandonó su carácter mítico, mágicamente significante, por una visualidad cientificista que aún profundiza un distanciamiento psíquico entre el hombre y la naturaleza (FRANCASTEL, 1990). En palabras de Lévi-Strauss, el arte “perdió el contacto con su función significativa en la escultura griega y tornó a perderlo en la pintura italiana del Renacimiento. […] tomó durante mucho tiempo un carácter cada vez más representativo y cada vez menos significativo.” (CHARBONNIER, 1989: p.57-63) El espacio- tiempo, antes dimensión del mover bien de San Agustín, fue reducido por las molduras de los cuadros a momentos aislados, a la instantaneidad que la fotografía más tarde consumó1.

13 Son innegables los beneficios que las artes plásticas y visuales pueden ofrecer en materia de rearticulación espíritu y alma; basta conocer, por ejemplo, la inestimable labor de Nise da Silveira contra los procedimientos manicomiales en Brasil. Entretanto, como ella misma declaró, la pintura de los internos en el Engenho de Dentro tornó visibles inúmeras condiciones vividas subjetivamente (MUSEU DE IMAGENS DO INCONSCIENTE, 1987: p.5), lo que significa que incentivar a los pacientes a pintar fue un recurso terapéutico eficaz en la colecta de materiales anímicos particulares, pasibles de significación, o sea, pasibles de rearticulación cultural. De acuerdo con Lévi-Strauss, “la pintura organiza intelectualmente, por medio de la cultura, una naturaleza que ya estaba frente a ella como organización sensible. La música realiza un trayecto exactamente inverso, pues es la cultura la que estaba frente a ella, solo que de forma sensible.” (2010: p.42) Y es precisamente ese movimiento de salir para colectar, para tomar posesión de algo, el que, con relativa facilidad, puede cobrar dimensiones poco deseables. Poseer una imagen en lugar de entregarse a una experiencia, a la participación-del-ser-total, fue el motivo de la desconfianza de Platón en relación a la pintura (2000: p.324); análogamente, en el marco del arte moderno, es esa la motivación de Lévi-Strauss al declarar que “es en esa exigencia ávida, en esa ambición de capturar el objeto en beneficio del propietario o incluso del espectador, donde parece residir una de las grandes originalidades del arte de nuestra civilización.” (CHARBONNIER, 1989: p.58) Declaración que talvez corresponda a la necesidad occidental, observada por Jung, de reducir la vida a imágenes y conceptos, aun cuando el precio sea apartar-se de sus misterios. (JUNG, 1971: p.66)

14 De todas formas, lo que en la historia del arte es una evolución, en materia anímica configura un proceso de disociación: el arte de la crisis vanguardista en Europa, asolado por las guerras mundiales, fue transportado para América (GUILBAUT, 2007) – para la parte sin latín – donde, para ser aceptable, Clement Greenberg lo hizo propio y exclusivo de las clases adineradas (1997) y Arthur Danto lo emancipó de lo sensible para consagrarlo como pura teoría (2000, 2006). Hoy, para ser sinceros, nadie sabe muy bien lo que es arte y pocos se atreven a reconocerlo, a ejemplo del eminente historiador del arte Ernst Gombrich quien, de forma un tanto juguetona, reconoce que el arte con A mayúscula no existe2.

15 El arte actual es volátil, se presenta en estado gaseoso como lo dice Michaud (2007). El campo del arte es blanco de múltiples inserciones sociales, políticas, económicas y mediáticas que lo sobrepasan, lo rasgan y lo desfiguran; haciendo que los circuitos cerrados – ególatras y posesivos – que en un pasado reciente legitimaban a los que podían decir lo que era arte también se desvanezcan (CANCLINI, 2012: pp.29-38). Como

Artelogie, 14 | 2019 131

dije, resta un chulachaqui. Y creo que nadie ha captado ese espíritu maligno como lo hizo García Canclini al observar el comportamiento de los actuales “peregrinos del turismo cultural: […] en Europa, primero Paris; en Paris el Louvre; dentro del Louvre, la Venus de Milo y la Gioconda, [pero] si no tengo tiempo de ver la Venus de Milo, tengo que ver al menos la Gioconda, porque he leído El código Da Vinci.” (CANCLINI, 2013: p.10)

16 El problema no es el patrimonio artístico. El problema es que la pérdida de la función transcendente en el arte enterró con ella la propia noción de transcendencia. Transcender la precariedad del espíritu humano para articularse con el alma era el verdadero tesoro del mítico El Dorado; pero fue también la riqueza perdida en el violento choque entre sueños que despertó América. Sin ideal de transcendencia, la humanidad se encierra en una inmovilidad moral que suspende todo lo vivo. Todo riesgo, desgaste o sufrimiento es negado, renegado sobre la imagen de un mesías que sufrió en nuestro lugar, a despecho de un modelo heroico que, internamente, somos compelidos a imitar. Por eso formulamos el pecado; no importa si nuestros actos son graves o incongruentes, pues la penitencia para librarnos de la culpa no es tan inalcanzable. En tales circunstancias, el hombre religioso se ve obligado a acompañar apenas en parte la imagen del redentor o a optar por no acompañarla de ninguna manera. A su vez, la iglesia, atenta a la debilidad inherente a la especie humana, se siente obligada a flexibilizar su rigor doctrinario, reforzando así una relativización moral que debilita y desgasta sus símbolos básicos y, con ellos, su propia autoridad (JUNG, 2011: pp.33-34).

17 Sin arte y sin religión el chulachaqui piensa que ganó, solo que, recuerde, el alma queda presa en el cuerpo y por más que ese espíritu, que se cree emancipado, niegue, desdeñe, insulte y agreda, inevitablemente habita el mismo cuerpo. Es ese el dilema que nos revela la antropología del cuerpo de Breton. El sueño de una humanidad libre del cuerpo es lógica en el ambiente excesivamente tecnificado, devoto de la mediación y la simulación, en el que transcurre la vida diaria. El sueño – o el proyecto – de transferir el espíritu a un computador para vivir plenamente el espacio cibernético es tan flagrante como el delirio de los niños perfectos, fabricados por la medicina y entregados con sello de cualidad morfológica y genética. El sexo fue substituido por el texto, por múltiples grafismos que buscan transmitir la emoción y el gozo en un erotismo de suprema higiene que elimina el cuerpo físico en provecho del virtual. Pero el cuerpo es testarudo y permanece ¡Que odio! Entonces comienza la guerra por perfeccionar lo imperfecto y vienen tatuajes, piercings, body-modificatios, anabolizantes, transexualismos, body- building, body-art… como si mudar el cuerpo fuese suficiente para mudar la vida (LE BRETON, 2013). Pero nada de eso basta. Y es que no quisimos escuchar a San Agustín; atacamos al cuerpo, pero es el alma presa la que se manifiesta en síntomas y enfermedades. Así, en el lugar de la recapacitación hay medicalización, manipulación de sí, fármacos para dormir, despertar, estar en forma, tener energía, memoria, vencer la ansiedad, el estrés (LE BRETON, 2013: p.22), en fin, una a una se amontonan las prótesis químicas hasta alcanzar el punto de la fuga, la asimilación de la ruptura en la que la instrumentación psicotrópica mantendrá a flote una pseudoexistencia, un resto a la deriva entre ser y huir de sí.

Artelogie, 14 | 2019 132

La astucia

18 Fernando Benítez es uno de los pocos antropólogos a quien se le ha permitido acompañar la peregrinación mística de los huicholes de México en busca del peyote. El peyote es un cactus con propiedades psicotrópicas, por lo que, a un momento dado, el antropólogo se pregunta sobre el consumo de drogas en las civilizaciones contemporáneas. Desde nuestra perspectiva – sin arte y sin religión – podríamos abrigar esperanzas de que, al menos, mantendríamos el rito como posibilidad de reencuentro con El Dorado perdido; de hecho, tatuajes, piercings, body-modifications o el uso de substancias psicoactivas, vigentes en nuestro tiempo, han sido constantes en celebraciones rituales de numerosas culturas por todo el planeta. No obstante, la observación sensible de Benitez, sin mucho esfuerzo, diluye esa expectativa, argumentando que, carentes de una “expectativa de salvación”, es decir, de noción de transcendencia, los actuales adeptos a las drogas limitarían su experiencia a una fuga hacia dentro de sí; diferente de los huicholes que conducirían el efecto psicotrópico al goce de una participación cósmica3.

19 Coincido con Salis al observar que la tentativa de deshacernos de los dioses es una tentativa de amputar una parte de nosotros mismos y que de la parte amenazada surgen malestares e enfermedades que nos asolan (SALIS, 2017: p.12). En atención a mis propósitos y competencias, entretanto, dejaré de lado los registros pandémicos de la angustia, la depresión y el suicidio2 para focalizar, como lo he señalado, en el problema mundial de la dependencia química que, según la Organización Mundial de la Salud, es responsable por nada menos que 450,000 muertes por año3.

20 Es altamente significativo que los narcóticos se hallan tornado un problema apenas recientemente. Según Duarte, solo a mediados del siglo XIX la idea de que el opio, por ejemplo, no tenía efectos nocivos comenzó a disiparse (2005: p.138). Entre los siglos IX e XIX de nuestra era, el opio y sus derivados gozaban de gran prestigio en la medicina. En China, durante casi mil años, la substancia fue usada en el tratamiento de diarrea y en la era Victoriana fue un apreciado soporte terapéutico (DUARTE, 2005: p.137). En la antigüedad, abundan los registros del uso ritual de narcóticos entre los egipcios, griegos y judíos (DUARTE, 2005); en Asia central y en Siberia (ELIADE, 1964); así como en América, por supuesto (GONZÁLES TORRES, 2001)(LABATE; ARAÚJO, 2002).

21 Ilustro otro dato interesante en una muestra constituida por tres casos: Primero, la denuncia de Ciro Guerra en su citada película, El Abrazo de la Serpiente, de que el restante del pueblo cohiuano, después de violentado por los temidos Barones del caucho, se tornó dependiente químico de la ficticia Yakruna4, planta de propiedades narcóticas que, en la vigencia de la cultura mágica cohiuana, había sido el centro de su complejo ritual (GUERRA, 2015). Esto se confirma en el trabajo de Leila Tardivo, resultante de su visita al pueblo tukano del Alto Rio Negro, en Amazonas, donde observó que como parte del proceso de aculturación de esa etnia a los moldes occidentalizados de la federación brasileña – a despecho de sus mitos, rituales y costumbres – se desencadenó una creciente onda depresiva, violenta y suicida que gira entorno de la dependencia química (TARDIVO, 2007). En tercer lugar, traigo a la memoria el trágico pasaje histórico de las llamadas Guerras de Opio. Como mencioné, los chinos consumían opio había muchos siglos; sin embargo, ese consumo solo se tornó problemático a partir del siglo XVIII con los inescrupulosos incentivos portugueses, franceses e ingleses, interesados en la expansión de sus mercados (DUARTE, 2005).

Artelogie, 14 | 2019 133

22 Estos datos sugieren que la dependencia química es un fenómeno que sobreviene con la posesión del chulachaqui, es decir, es un riesgo que acompaña la disociación neurótica que caractericé inicialmente. Hipótesis que se ve respaldada por los datos publicados por la OMS, los cuales confirman que las mayores incidencias en el consumo adictivo de drogas lícitas e ilícitas se encuentran en Canadá, Estados Unidos y Europa occidental (OMS, 2004). En otras palabras, el problema de la dependencia química se concentra con mayor fuerza en los países desarrollados; recordando que ese desarrollo se mide principalmente en términos económicos, lo que, según Bauman y May (2010), en perspectiva capitalista, guarda una estrecha relación con la capacidad que esos países tienen de apropiarse, por múltiples medios, de los recursos materiales y humanos de sus congéneres. Si reducimos esta imagen al continente americano, obtendremos que América – la parte sin latín – es la consciencia continental que, centrada en su Ego, tiene la convicción de que puede disponer de todo, pues todo le pertenece. Bueno, pues ese espíritu escindido, ególatra, tiene un serio problema de dependencia química. Del otro lado, está el sucio y desparpajado demonio latinoamericano. La parte no desarrollada, la de los bajos instintos de pura sobrevivencia, la que, al intuir problemas prefiere sus santos, su virgen morena, sus muertos, fiestas, salsa, cumbia y samba antes que cualquier esfuerzo de reflexión. América latina es el alma presa en el cuerpo, el alma oprimida por la retirada constante de sus recursos y posibilidades. Paradójicamente, esta es la parte que produce y distribuye la droga que sustenta el vicio de la parte desarrollada. ¿Qué hacer? No lo sé. Yo acudiría a la vieja fórmula: ¿Y ahora, quién podrá defendernos? Aunque la atención al llamado, evidentemente, no sería la misma para las dos partes:

23 En la parte VIP (Very Important Person), la parte ególatra de los opuestos, el llamado, para tener algún sentido, tendría que ser dirigido a un ser superior; solo que, I’m sorry, ¡No hay ser superior! Es un espíritu escindido justamente porque amputó sus dioses, algo así como el famoso: Dios está muerto, que alguna vez ocurrió a Nietzsche. Como explica Jung, el llamado a un ser superior, a falta de correspondencia externa, retorna al sujeto, haciéndolo creer que alcanzó las características del ser que convocaba y constituyendo una prepotente y destructiva Semejanza con Dios (JUNG, 1990: p.35). Vale destacar el testimonio de James A. Hall, quien narra que, actuando como psiquiatra del ejército norteamericano, escuchó de varios pacientes usuarios de LSD la convicción de que su inadaptación se debía a la incomprensión, por parte de los demás, de que Dios era su verdadera identidad (HALL, 1995: p. 55). Así, quien acude al llamado norteamericano es el Capitán América, un siempre joven casto y abnegado, sacrificado y resucitado, actuante por encima de la ley, dada su invulnerabilidad moral, detentor de poderes tecnológicos súper-avanzados; a pesar de único e inalcanzable, pues la tecnología que lo hizo murió con su creador. Capitán América viste los colores y las estrellas de la nación, pues es la imagen resultante del proceso psíquico de la semejanza con dios. En el plano práctico, por lo tanto, no debemos esperar grandes transformaciones por parte del superhéroe. Como flota encima de la ley, no se cuestiona y su invulnerabilidad moral, oriunda de aquella inmovilidad moral que referí, se empeña en mantener todo como está. Dicho de otra forma, un ser perfecto, incuestionable e inalcanzable, no se interesa por cualquier tipo de transformación.

24 ¿Quién entonces podrá defendernos? Y en la parte marginal, el inconsciente continental, retumba la respuesta: ¡Yo, el Chapulín Colorado!

Artelogie, 14 | 2019 134

25 Capitán América no es un héroe, el prefijo super denuncia una manipulación artificiosa de sus cualidades arquetípicas (SOARES; VELÁZQUEZ, 2017). Como dijo Jacobi, un arquetipo, a pesar de tender al mundo de las imágenes e ideas, del otro lado se sujeta en los procesos biológicos de la naturaleza (JACOBI, 1995: p.43). La dinámica natural es la transformación y eso es un principio que el superhéroe rechaza. El Chapulín Colorado, al contrario, es un héroe típico del primer ciclo. Un héroe tramposo, estafador, el héroe trickster; el que con su estupidez consigue lo que otros, más hábiles y mejor instrumentados, no consiguen. Talvez la estupidez sea su mayor cualidad, pues supone inocencia e inconsecuencia, lo que lo libera para actuar impulsado apenas por el ímpetu de la transformación. Como “reflejo fiel de una consciencia humana indiferenciada en todos los aspectos, correspondiente a una psique que, por decirlo de alguna manera, aún no ha dejado el nivel animal” (JUNG, 2014: p.262), sin saberlo ni pretenderlo, su trayectoria se orienta a la conquista de los ciclos heroicos siguientes. En este sentido, el Chapulín revela su faz demoniaca, pues se presenta como energía disponible para hacer frente a una adversidad (VELÁZQUEZ, 2017: pp.63-64). Demonio deriva del griego daímōn, que significa divinidad, destino, una fuerza o potestad que ejerce algo (BRANDÃO, 2014: p. 168). En pocas palabras, el Capitán América es perfecto y, por lo tanto, estático, pues nada precisa conquistar; el Chapulín Colorado, en cambio, es tan primario e imperfecto que tiene toda la saga heroica, es decir, toda la potencialidad de crecimiento e perfeccionamiento por realizar.

26 En términos psíquicos, la aparición de este nuevo demonio se configura como un complejo autónomo. De acuerdo con Jung, ante una adversidad para la cual la consciencia no tiene respuesta, la energía psíquica (libido) disminuye en funciones conscientes para correr en sentido contrario (enantiodromia), hacia el inconsciente, donde activa alguna región, hasta entonces pasiva, que tenderá a desarrollarse con la asimilación de materiales afines, en vista de formular una respuesta creativa (JUNG, 1971: p. 68). Esta nueva constelación de materiales inconscientes es autónoma porque no es comandada por la consciencia – al menos no completamente – al tiempo en que la región inconsciente que constela las nuevas potencialidades era ajena al problema, estaba inactiva.

27 Sobre lo expuesto, podemos revisitar un poco de historia. Como mencioné, Portugal, Francia y, sobretodo, Inglaterra, incrementaron de forma inescrupulosa el consumo adictivo del opio en China. Pues sucede que, más tarde, a finales del siglo XIX, parte de los chinos adictos fue llevada a México para trabajar en la construcción de líneas férreas y en la explotación de minas. Como afirma Valdés Castellanos, los chinos“[…] trajeron las semillas de amapola y el conocimiento para cultivarlas y transformarlas en opio” (2013: p. 3), lo que incentivó pequeños grupos adictos en los círculos sociales adinerados y, en consecuencia, una rudimentaria e inexpresiva red, legal durante un tiempo, de producción y distribución de opio en México.

28 El siglo XX transcurrió lleno de significativos conflictos armados y, como dice Saviano, “sin morfina no se hace una guerra, porque la guerra es dolor de huesos quebrados y carnes laceradas [y] […] para la carne que quema sólo hay una cosa: la morfina.” (2013: pp.24–25) Así, América necesitó morfina para la guerra, pero, siendo ya ilícita en la época, su inmovilidad moral impidió su producción local. Parte de la atención angloamericana se volvió, por lo tanto, para su vecino del sur. En México, liminar del inconsciente continental, podrían, lejos de la vista, desarrollarse los procesos necesarios que no se quiere reconocer en el inmaculado territorio de la consciencia. Entonces, secretamente,

Artelogie, 14 | 2019 135

América solicitó a México la producción del opio que necesitaba y hasta construyó trechos de ferrovías para agilizar su transporte (SAVIANO, 2013: p.26).

29 Recapitulemos: ante la consciencia americana se presentó una adversidad, la guerra, para la cual no se tenía experiencia ni preparo. Esta buscó entonces reunir elementos de los que no disponía y, consecuentemente, parte de su atención, de la energía empleada en el problema, corrió en sentido contrario, hacia América Latina, el inconsciente continental, donde activó una región que hasta ese momento era insignificante. ¡No contaban con mi astucia! El núcleo que originó la enorme red de crimen organizado que hoy ampliamente transborda la América Latina sigue los estándares de un complejo autónomo.

30 Recordemos que el complejo autónomo se desarrolla en vista de formular respuestas creativas. Por eso, ante la vasta necesidad de opio para la guerra, la creatividad latinoamericana reunió lo necesario para responder a la demanda. Pero la cuestión es que el fin de la guerra no hizo cesar la demanda, como observa Valdés Castellanos, “la razón de ser de los narcotraficantes mexicanos ha sido el mercado estadounidense” (2013: p.22), un mercado que, lejos de minguar, hoy alcanza los países del primer mundo en los cinco continentes. Naturalmente, una demanda de tal porte favorece el continuo crecimiento del tejido narcotraficante, al punto de confundirse actualmente con las instituciones políticas de los territorios que ocupa (VALDÉS CASTELLANOS, 2013). Su progresión, no obstante, es claramente orgánica pues, a pesar de ser comparable a grandes empresas transnacionales, no es oriunda de la lógica empresarial; antes se encuadra en la lógica criminalística de las redes, estructuras que se auto organizan “[…] a partir de la conducta que van adquiriendo las partes que la componen.” (VALDÉS CASTELLANOS, 2013: pp.36-37) Y es, de hecho, en la conducta donde se justifica la fusión de los carteles de drogas con las instituciones de estado, ya que no es raro que se constituyan como verdaderos estados paralelos. Una evidente consecuencia de la omisión irresponsable y corrupta de instituciones y de agentes institucionales que, en América Latina, marginalizan importantes parcelas connacionales en favor propio, de sus elites y de sus articulaciones transnacionales. Tomo como ejemplo el caso del cártel La Familia, que estuvo en auge en el estado mexicano de Michoacán, en torno del año de 2006. Esta organización, además de financiar proyectos comunitarios en materia de educación, salud, urbanismo y espiritualidad, también controlaba la microcriminalidad en su región. En su código moral, estableció claramente que las drogas que producía eran destinadas al consumo extranjero y, bajo ninguna circunstancia, al consumo local. Los jóvenes adictos de la región fueron incentivados y financiados para su desintoxicación y acogidos con garantías sociales y empleos en las redes criminales. En contrapartida, los reincidentes fueron asesinados (SAVIANO, 2013: pp.79-82). En este contexto, no parece extraño que una parcela significativa de la población joven de Latinoamérica considere como perspectiva viable – y a veces única – su incursión en el crimen organizado (SOUS GONZÁLES, 2013: p.27). A pesar de invisible a ojos lícitos, las redes latinoamericanas de narcotráfico constituyen hoy una potente cultura emergente.

Consideraciones soteriológicas

31 Parecería que estamos ante el espectáculo de una lucha entre la licitud consciente y la metástasis imparable del crimen organizado; pero no es así. El Capitán América cree que todo está perfecto y por eso es guardián del orden establecido. En sus delirios

Artelogie, 14 | 2019 136

financieros estima la dependencia química no como un problema, sino como una importante fuente de rendimientos. El oleaje nauseabundo del lavado de dinero y del tráfico de armas, esencial al narcotráfico, también es de grande estima en la preservación saludable de sus acciones capitales. Como dije inicialmente, es un chulachaqui vagando a la deriva sobre las aguas razas de la riqueza especulativa.

32 Por su lado, el Chapulín Colorado crece. Para eso surgió. Y en la medida que crece, madura ¿Quién sabe si las paulatinas legalizaciones de estupefacientes que surgen por el continente no son los primeros brotes de un complejo que transborda? Infelizmente no hay un enfrentamiento. Y digo infelizmente porque un combate, por detrás de su nube de violencia, podría descubrir una articulación entre combatientes o el apaciguamiento de una de sus partes; pero, en vez de eso, cada un procede ensimismado en su tendencia.

33 No se puede, por eso, pensar este cuadro como una lucha entre el bien y el mal. Bien y mal son apenas perspectivas y ambas existen en número equivalente en los dos puntos de vista. Lo que se puede constatar es que, en cuanto haya demanda, el complejo de los narcóticos continuará constelando materiales y ofreciendo respuestas. Observamos más bien el surgimiento de un nuevo nicho cultural, talvez del porte del cristianismo que subvirtió la Roma del pan y circo e inauguró la Edad Media; o de la clase burguesa que desbancó los cánones nobles y dio lugar a la era moderna e, insisto, no es posible afirmar que en esos procesos alguna de las partes, o el proceso en sí, fue absolutamente bueno o malo.

34 En todo caso, se trata de un proceso inconsciente, en buena parte, porque nos negamos a reconocerlo. Sabemos que la simple represión no lo resuelve; semejante a un proceso clínico-analítico, habrá que reconocerlo, comprenderlo y negociar con él, a fin de asimilarlo.

35 ¿Cómo hacerlo? No lo sé. Ni siquiera sé si aún es tiempo. Lo que sé es que nada se oculta para siempre, represas transbordan y cuando materiales hartos y potentes derraman sobre la pulcritud de la consciencia provocan ataques psicóticos. ¡Síganme los buenos!

BIBLIOGRAFÍA

Resultados parciales de esta investigación fueron presentados en el Congreso Regional de la Sociedad Internacional de Musicología “Music as Art, Artefact and Fact. Music Research in the 21st Century”, Stavanger, 05.07.2016; y en el Primer Coloquio Internacional Violeta Parra, Santiago de Chile, 30.08.2017. Este artículo se nutre de valiosas discusiones surgidas con colegas en ambas instancias.

ARGUEDAS, J. M.; RÍOS, F. I. Mitos, leyendas y cuentos peruanos. Lima: Siruela, 2009.

BARRAL I ALTET, X. História da arte. Campinas, SP: Papirus, 1990.

BAUMAN, Z.; MAY, T. Capitalismo parasitário: e outros temas contemporâneos. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

Artelogie, 14 | 2019 137

BENÍTEZ, F. En la tierra mágica del peyote. México: Era/Lom/Trilce/Txalaparta, 2010.

BRANDÃO, J. DE S. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

CAMPBELL, J. Mito e transformação. São Paulo: Ágora, 2008.

CANCLINI, N. G. A Sociedade sem Relato: Antropologia e Estética da Iminência. São Paulo: EDUSP, 2012.

CANCLINI, N. G. La expansión de la cultura: Incomodidades para las ciudades y el arte. In: CANCLINI, N. G.; VILLORO, J. (Org.). . La creatividad redistribuída. 1a ed. México: Siglo XXI editores / Centro Cultural de españa en México, 2013. p. 9–83.

CHARBONNIER, G. Arte, linguagem, etnologia - Entrevistas com Claude Lévi-Strauss. Campinas, SP: Papirus, 1989.

DANTO, A. El fin del arte. Adamar, p. 1–19, 2000. Disponível em: .

DANTO, A. O mundo da arte. Artefilosofia, p. 13–25, 2006. Disponível em: .

DUARTE, D. F. Uma Breve História do Ópio e dos Opióides. Revista Brasileira de Anestesiologia, v. 55, n. No 1, Janeiro-Fevereiro, p. 135–146, 2005.

ELIADE, M. Mito do eterno retorno. São Paulo: Mercuryo, 1992.

ELIADE, M. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972.

ELIADE, M. O sagrado e o profano. 5a tir. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

ELIADE, M. Shamanism. Digital ed. London: Princeton University Press, 1964.

FRANCASTEL, P. Pintura e sociedade. 1a ed. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

GOMBRICH, E. H. A história da arte. 16a ed. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2008.

GÓMEZ DE SILVA, G. Breve diccionário etimológico de la lengua española. 2a ed. México: FCE, 1998.

GONZÁLES TORRES, Y. (Org.). Animales y plantas en la cosmovisión mesoamericana. México: Plaza y Valdés, 2001.

GREEMBERG, C. Vanguarda e Kitsch. In: FERREIRA, G.; MELLO, C. C. DE (Org.). . Clement Gremberg e o debate crítico. Rio de Janeiro: Funarte Jorge Zahar, 1997. v. 9. p. 27–43.

GUERRA, C. El abrazo de la serpiente. . Colombia: Oscilloscope Pictures / Diaphana Films. , 2015

GUILBAUT, S. De cómo Nueva York robó la idea de arte moderno. Valencia: Tirant Lo Blanch, 2007.

GUTIÉRREZ, L. M.; TORRES, M. A. Así soñaron los antiguos. Bogotá: Viento, 2016.

HALL, J. A. A experiência junguiana - análise e individuação. 10a ed. São Paulo: Cultrix, 1995.

JACOBI, J. Complexo, Arquétipo, Símbolo na psicologia de Jung. 10a ed. São Paulo: Cultrix, 1995.

JUNG, C. G. A natureza da psique. 10a ed. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.

JUNG, C. G. Aspectos do drama contemporâneo. 2a Ed. ed. Petrópolis: Vozes, 1990.

JUNG, C. G. O espírito na Arte e na Ciência. Petrópolis, RJ: Vozes, 1971.

JUNG, C. G. O homem e seus símbolos. 6a ed. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964.

JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 11a ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2014.

JUNG, C. G. Psicologia e alquimia. 5a ed. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

JUNG, C. G. Tipos psicológicos. 3a ed. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

Artelogie, 14 | 2019 138

KURY, M. DA G. Dicionário de mitologia grega e romana. 8a ed. v. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

LABATE, B. C.; ARAÚJO, W. S. (Org.). O uso ritual da ayahuasca. Campinas, SP: FAPESP/Mercado das Letras, 2002.

LE BRETON, D. Adeus ao corpo: Antropologia e sociedade. Campinas, SP: Papirus, 2013.

LE CLÉZIO, J. M. G. Le rêve mexicain. La Flèche, France: Gallimard, 1988.

LE GOFF, J. Para uma outra Idade Média - Tempo, trabalho e cultura no ocidente. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

LEÓN-PORTILLA, M. La filosofia Náhuatl estudiada en sus fuentes. 9a ed. México: UNAM, 2001.

LÉVI-STRAUSS, C. O cru e o cozido. 2a ed. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

LÉVY-BRUHL, L. La mentalité primitive - Chapitres 1 à 7. électroniq ed. Chicoutimi, Québec: Bibliothèque Paul-Émile-Boulet de l’Université du Québec à Chicoutimi, 2002.

MICHAUD, Y. El arte en estado goseoso - Ensayo sobre el triunfo de la estética. 1a ed. en ed. México: FCE, 2007.

MORIN, E.; CIURANA, E.-R.; MOTTA, R. D. Educar na era planetária - O pensamento complexo como método de aprendizagem pelo erro e incerteza humana. São Paulo: Cortez, 2003.

MUSEU DE IMAGENS DO INCONSCIENTE (Org.). Exposição: Os inumeráveis estados do ser. Rio de Janeiro: Sociedade Amigos do Museu de Imagens do inconsciente, 1987.

OMS. Neurociências: consumo e dependência de substâncias psicoativas: resumo. . Genebra: [s.n.], 2004.

PENNA, E. M. D. O paradigma junguiano no contexto da metodologia qualitativa de pesquisa. Psicologia USP, v. 16, n. C, p. 71–94, 2004.

PLATÃO. A República (E. Corvisieri trad.). São Paulo: Nova Cultural, 2000.

PLATÃO. Timeu e Crítias ou a Atlântida. Curitiba, PR: Hemus, 2002.

PLOTINO. Ennéades. Tome IV. Paris: Les Belles Lettres, 2012.

SALIS, V. D. Prefácio: Mito, olhar e magia. In: VELÁZQUEZ, C. (Org.). . Pensar no MITHO. 1a ed. Jundiaí, SP: Paco, 2017. p. 11–16.

SAN AGUSTÍN. Sobre la música. Madrid: Editorial Gredos, 2008.

SAVIANO, R. Zero zer zero. e-pub ed. São Paulo: Companhia das letras / Editora Schwarcz, 2013.

SOARES, A.; VELÁZQUEZ, C. Eu, meu herói - Entre o Mito e o Super. 1a ed. ed. Joinville, SC: Unifor / Clube de autores, 2017.

SOUS GONZÁLES, J. L. Neoliberalismo y crimen organizado en México: El surgimiento del Estado narco. Frontera norte, v. 25, n. 50, p. 7–34, 2013.

SUBIRACHS, J. M. Um buraco no espaço. História Geral da Arte - Escultura I. Madrid: Ediciones del Prado, 1995. p. 9–12.

TARDIVO, L. S. DE L. P. C. Sofrimento, desenraizamento e exclusão: relato de uma experiência com indígenas aculturados do Amazonas. Psicologo informação, v. 11, n. 11, p. 113–126, 2007.

VALDÉS CASTELLANOS, G. História del narcotráfico en México. EPUB ed. México: Santillana, 2013.

VELÁZQUEZ, C. Mas afinal, o que é estética? Por uma redescoberta da educação sensível. Lisboa: Chiado Editora, 2015.

VELÁZQUEZ, C. Mitologias para o século XXI - Facultas Characteristica. Jundiaí, SP: Paco, 2017.

Artelogie, 14 | 2019 139

NOTAS

1. Como dice Le Goff, “triunfa el retrato, que ya no es la imagen abstracta de un personaje representado por símbolos, signos que materializan el lugar y la categoría que Dios les asignó, sino otra que presenta al individuo capturado por el tiempo, en el concreto espacial y temporal, no en su esencia eterna, sino en su ser efímero, que exactamente el arte, en su nueva función, tiene por objeto inmortalizar.” (2013: p. 73) 2. Nada existe realmente que pueda ser llamado Arte. Solamente existen artistas. [...] No perjudica a nadie darle el nombre de arte a todas esas actividades, desde que se conserve en mente que tal palabra puede significar cosas muy diversas, en tempos e lugares diferentes, y que el Arte con A mayúscula no existe. La verdad, Arte con A mayúscula pasó a ser algo como el coco, como un fetiche. Podemos aplastar un artista diciéndole que lo que acaba de hacer puede ser excelente a su modo, solo que no es "Arte". Y podemos desconcertar cualquier persona que esté contemplando con deleite un cuadro, declarando que lo que tanto aprecia no es Arte sino algo muy diferente. (GOMBRICH, 2008: p.15) 3. […] los adeptos de la LSD, a diferencia de los huicholes, carecen de una ‘expectativa de salvación’. […] El cliente de la LSD, de acuerdo con la propaganda turística, hará un viaje al centro de su cerebro. Traspasadas las barreras defensivas de su coherencia, alterado su funcionamiento mental, asistirá indefenso a la dispersión y fragmentación de su yo, no tendrá antídotos contra el miedo, y el vislumbre de sus pequeños infiernos, de la inutilidad de su vida, lo sumirá con frecuencia en un estado depresivo que no compensará el deleite momentáneo que pueda proporcionarle la droga. El viaje para los huicholes, en cambio, está sujeto a un itinerario fijo: son los dioses los que lo han trazado a lo largo de las serranías y de los desiertos. En cada una de sus jornadas ha ocurrido un hecho relacionado con hazañas sobrenaturales. […] Dentro de ese proceso de sacralización, no figuran las reacciones personales. La psicología apenas juega un papel, lo que cuenta no es la individualidad sino las ideas colectivas. (BENÍTEZ, 2010: pp.97-98)

NOTAS FINALES

1. La etnia cohiuana, como su sabio Karamakate, son ficciones cinematográficas alusivas a grandes trazos de la organización y pensamiento mágicos, comunes a diversos pueblos de la selva amazónica. 2. OPAS / OMS en https://goo.gl/pQdzZ4 Accedido en 31 de junio de 2018. 3. OMS em https://goo.gl/8FZnfJ Accedido en 31 de junio de 2018. 4. Probablemente la chacrona, planta usada en la preparación del té del Santo Daime, según Viveros de Castro. https://bit.ly/2CXsmaX, Accedido en 2 de agosto de 2018

RESÚMENES

Mediante la comparación de la historia constitutiva del continente americano con un proceso disociativo de la consciencia, con recurso a los preceptos de la investigación cualitativa de paradigma junguiano (PENNA, 2004), metaforizo el continente con las cualidades psíquicas de la dicotomía consciencia / inconsciente, a fin de, en reducción, observar el fenómeno del surgimiento y desarrollo del narcotráfico. Imágenes de cuño mitológico surgen en el proceso y ofrecen indicios al ejercicio interpretativo. Concluyo con la sugestión del surgimiento de un nuevo nicho cultural, capaz de impulsar significativos cambios en el orden social contemporáneo.

Artelogie, 14 | 2019 140

Guidé par les préceptes de la recherche qualitative sur le paradigme jungien (PENNA, 2004), je procède à métaphoriser le continent en le donnant des qualités psychiques à partir de la dichotomie conscience / inconscience, afin d’observer le phénomène de l’émergence et du développement du trafic de drogues. Certaines images ayant l’air mythologiques, émergent dans le processus, offrant des pistes à l’exercice d’interprétation. Je conclus par la suggestion d’un nouveau domaine culturel, capable de promouvoir de changements importants dans l’ordre social contemporain.

ÍNDICE

Mots-clés: Héros; Trickster; Démon ; Complexe autonome ; Trafic de drogues. Palabras claves: Héroe; Trickster; Demonio; Complejo autónomo; Narcotráfico.

AUTOR

CARLOS VELÁZQUEZ

Profesor titular de la Universidade de Fortaleza – Unifor, Brasil / Colaborador del CLLC de la Universidade de Aveiro, Portugal. [email protected]

Artelogie, 14 | 2019 141

Joel Silveira: um repórter em diretrizes

Joëlle Rouchou

A pesquisa para a produção deste artigo contou com a colaboração fundamental do bolsista PIBIC/CNPq Yuri Resende, que contribuiu com o levantamento de informações e com as discussões a respeito das matérias publicadas por Joel Silveira em ‘Diretrizes’.

Introdução

1 Dois anos antes da criação da revista Diretrizes (1938-1944), o jornalista Joel Silveira já se interessava por literatura e pelos escritores, morando na sua Aracaju natal. Em sua autobiografia Na fogueira – memórias, Joel conta como foi com outros 4 alunos do colégio Ateneu Pedro II até a casa de Jorge Amado para conhecer o escritor. Na cara e na coragem, pediram licença para entrar no casarão do pai de Amado, João, na cidade de Estância. Queriam conhecer o ídolo. O baiano os recebeu em sua rede. Estava se escondendo de uma caça aos comunistas – logo após o fracasso da chamada Revolta Comunista em 1935 - resolvendo passar uns dias recolhido. “- Somos alunos do Ateneu Pedro II, de Aracaju... Sem deixar a rede, e após apertar a mão de todos nós, Jorge falou: - vocês me desculpem eu não me levantar. É que sair e entrar nesta rede dá uma trabalheira dos diabos (...)” (SILVEIRA, 1998: p. 18)

2 Os alunos ficaram fascinados pelo escritor, um herói desses tempos pré-guerra. As democracias estavam em perigo na Europa, Hitler e Mussolini protagonizavam o panorama político com ideias fascistas, e eles acompanhavam o noticiário pelas ondas da rádio BBC, de Londres. As notícias chegavam também pela assinatura do pai de Joel de A noite, O Globo o Jornal do Comércio, que vinham de navio, sempre atrasados em relação às datas das capas.

3 Lia revistas cariocas, entre elas O malho e Para-Todos, e o jornal A Tarde de Salvador trazia informações mais recentes. Militância política estudantil, vontade de estudar mais, deixaram a capital de Sergipe pequena demais para Joel. Em 1937 decide ir par ao Rio de Janeiro fazer um curso de Direito, e assim desembarcou na Praça Mauá, a bordo

Artelogie, 14 | 2019 142

do navio Itanagé. No Rio, se decepciona com a faculdade de Direito e decide ganhar a vida escrevendo textos. Seu interesse pela escrita, o move no sentido de construir uma rede de contatos ligados essencialmente à literatura e vai seguindo sua intuição e a necessidade financeira para conseguir publicar crônicas. Assim, graças a seu talento e perseverança, publica na revista Vamos Ler seu primeiro livro, Desespero, que havia sido vencedor de um concurso literário ainda na escola. Fica amigo de Raimundo Magalhães Jr que percebe o talento e lhe oferece espaço para publicar crônicas, entrevistas e assim Silveira vai conseguindo sobreviver no Rio de Janeiro. A partir dos novos amigos e buscando sempre manter uma turma de colegas mais afinados com suas posições políticas anti-getulistas, Silveira vai trabalhar na redação de Dom Casmurro, dirigida à época pelo poeta e jornalista Alvaro Moreyra. Permanece na redação por três anos e logo depois vai para a redação de Diretrizes, sob comando do jornalista Samuel Wainer, numa redação combativa, sofrendo censura do DIP (Departamento de Informação e Propaganda) mas com seus pares fortalecidos pela luta pela liberdade de imprensa. Esse sentimento de escrever como arma por um mundo mais justo, vai perpassar a carreira de Joel. Mas nesse momento ainda com com 20 e poucos anos, o sentimento e a garra ficam mais evidentes e intensos. Ele entra como repórter e em pouco tempo chega ao posto de secretário de redação. “Na verdade, nós jornalistas, naqueles primeiros tempos do Estado Novo (ou melhor, durante todo ele), sabíamos mais do que passava no país e no governo do que o povão brasileiro. Com seus telefonemas, o DIP de Lourival Fontes acabava nos informando indiretamente de tudo que a censura não permitia que fosse divulgado pelos jornais; ou então nos dava a pista para aquilo que só nos era informado pela metade. O clima (...) em todas as redações do Brasil tornava-se pesado, sufocante, já não pilheriávamos tanto” (...). (SILVEIRA, 1998)

4 O fato de estar na revista não o impedia de colaborar com outras publicações como Vamos Ler, e Carioca (que faziam parte do grupo A Noite). Em Diretrizes, contabilizamos mais de quarenta textos entre reportagens e crônicas, que costumavam ser destacadas nas edições da revista. Sai a revista quando ela termina em 1944, vítima de perseguições políticas. Segue na profissão, no mesmo ano trabalhando nos Diários Associados de Assis Chateaubriand. Lá teve a oportunidade de se tornar correspondente de guerra, e em 23 de novembro de 1944 embarca com 6 mil soldados rumo à Itália. Em seu primeiro relato, Joel sente o peso da entrada na guerra: “Escrevo esta minha primeira reportagem após 22 horas a bordo do transporte que nos desembarcará dentro de 16 dias em Nápoles. A mim e a cerca de seis mil soldados brasileiros que comigo seguem para a guerra. É um mundo estranho e misterioso que possivelmente levará muito tempo para ser revelado. Ando pelos porões do imenso navio, perco-me em seus corredores que parecem não ter fim, e cada porta de ferro se abre para uma nova surpresa. (...) Estamos em guerra, somos uma multidão que segue para a guerra, e muita coisa não se deve fazer: não se deve, por exemplo, atirar qualquer coisa ao mar. Sou apenas um recruta, bisonho e desprevenido como todo recruta, um pobre e indefeso civil em poucas semanas transformado num soldado da ativa, e me emaranho e me confundo num mundo que nunca foi meu. (...) Bem, meu nome é Joel Silveira, jornalista de 26 anos, e estou indo para a guerra. Voltarei? Lembro-me das palavras de Assis Chateubriand, meu padrão, quando dele me fui despedir, já devidamente fardado: ‘Seu Silveira, me faça um favor de ordem pessoal. Vá para a guerra mas não morra. Repórter não é para morrer, é para mandar notícias.’. Prometi obedecer cegamente a suas ordens, e tenho de cumprir a promessa”. (SILVEIRA, 1983)

5 Joel Silveira cobre a guerra ao longo de nove meses, incluindo a tomada brasileira da cidade de Monte Castelo Cobriu também, em Milão, a execução do ditador Benito

Artelogie, 14 | 2019 143

Mussolini, em Milão. Em 1947 foi um dos fundadores do Partido Socialista Brasileiro, faz parte do conselho editorial da Revista Nacional, passou pela Revista da Semana e em 1952, com o amigo e escritor Rubem Braga, funda o jornal O comício. Quatro meses antes do suicídio de Getúlio Vargas em agosto de 1954, Joel consegue uma entrevista com o presidente. Nos dez anos seguintes, o jornalista trabalha no Serviço de Documentação do Ministério do Trabalho e colabora no jornal Correio da Manhã. Durante ditadura, Joel faz reportagens para a revista Manchete e decide deixar as redações para se dedicar a projetos de escrita de suas memórias, o que faz com sucesso. Entre os títulos estão O inverno da guerra (Objetiva, 2005) e II Guerra: momentos críticos (Mauad, 1995).

O trabalho em Diretrizes

6 Num primeiro momento, a revista foi mensal, e dois anos depois, passou a ser uma publicação semanal. Durante seus mais de 200 números, o hebdomadário conseguiu independência dos demais jornais e revistas do país, buscando liberdade de expressão e uma linguagem reflexiva em seus textos pertinentes. Foram vários embates com o severo Departamento de Imprensa e Propaganda, o DIP, criado por decreto presidencial em 1939 e dirigido por Lourival Fontes. Foram dezenas de artigos censurados, embates permanentes com o DIP, diversas tentativas de burlar a censura algumas com sucesso, outras não. O governo de Vargas mantinha relações simpatizantes ao Eixo, logo que eclodiu a II Guerra Mundial e o jornalista Samuel Wainer, defendendo ideias liberais e acreditando em alguma imparcialidade da imprensa, lutou, junto com seus colegas de redação, pela diversidade das informações.

7 A luta durou cerca de dois anos, pois assim que o Brasil em 1942 entra ao lado dos Aliados na guerra, a revista inaugura um novo momento com maior liberdade, sem pressão do DIP. Durante a Segunda Guerra, a revista pode expandir suas ideias liberais e democráticas, pois o Brasil esteve ao lado dos Aliados. Apoiou a entrada do país na Guerra em 1942, publicava artigos contra os países do Eixo e levantou bandeiras importantes como o apoio à siderurgia nacional, a campanha do “petróleo é nosso” e ataque incondicional ao nazi-fascismo. Para WERNECK SODRÉ, Wainer conseguiu com elegância e persistência, esgueirar-se pela rígida estrutura estadonovista: "(...) com esforços curiosos, muita malícia e alguma ousadia, passando assunto entre as estreitas malhas do vastíssimo rol dos assuntos proibidos, essa revista teve, realmente, papel de relevo na época, que foi ainda maior à medida em que, desde 1942 (...), os Estados Unidos juntaram-se aos Aliados. A participação da União Soviética na guerra, forçando a suspensão da propaganda anticomunista no ocidente, permitiu o combate ao nazi-fascismo e o Estado Novo começou a ser esvaziado de seu conteúdo originário e a debilitar-se” (WERNECK SODRÉ, 1999: p. 386)

8 Silveira foi uma estrela enquanto repórter e dirigente da revista. Aquela redação, com amigos unidos pelo ideal anti estadonovista, contra a censura e vivendo uma sociabilidade ao mesmo tempo boêmia e militante pelo fim da censura e defendendo ideias libertários, formou uma geração importante de intelectuais e jornalistas em tempos de sensíveis pré, durante e pós II guerra, vivendo no Rio de Janeiro, capital federal. Construíam textos e laços de amizade entre literatos e jornalistas, num tecido costurados pelo ideal. SANDRA PESAVENTO chama atenção para essa rede de sociabilidade que se forma nas cidades, apontando agentes, relações sociais, grupos: “A cidade é concentração populacional, tem um pulsar de vida e cumpre plenamente o sentido da noção do habitar, e essas características a tornam indissociavelmente ligada ao sentido do

Artelogie, 14 | 2019 144

humano: cidade, lugar do homem; cidade, obra coletiva que é impensável no individual; cidade, moradia de muitos, a compor um tecido sempre renovado de relações sociais”. (PESAVENTO, 2007)

9 Joel conquistou a cidade, fixou-se nela, deixando para trás a Aracaju natal que não tinha espaço para seu talento. Seus textos foram seminais para um estilo jornalístico que misturava técnicas e estilo literários, o que e convencionou chamar de jornalismo literário, uma apropriação do estilo de New Journalism americano, escola que teve Gay Talese, Truman Capote, Norman Mailer e Tom Wolfe. Foi uma era pré-lead, a técnica jornalística que vai se formar nos anos 50 com um estilo mais conciso, resumindo todas as informações no primeiro parágrafo da matéria (o lead) que contém as perguntas básicas para transmissão das informações: O quê? Por quê? Como? Aonde? Quem? Quando?

10 Em Diretrizes emplacou diversas capas, mais de doze entrevistas, e muitas delas foram o destaque de capa de suas respectivas edições. Destacamos aqui algumas matérias, concentradas entre os anos de 1942 e 1943, nas quais o jornalista optou por conversar com intelectuais renomados que emitiram opiniões a respeito da Segunda Guerra Mundial e da ameaça do fascismo no território brasileiro. Foram eles: João Neves da Fontoura, J. Carlos, Góis Monteiro, Gabriel Gonzalez Videla, Ernesto Feder, Monteiro Lobato e Mauricio de Lacerda. É uma produção importante dentro da profissão de repórter, e Joel se apresenta como um dos melhores de sua geração. Vale chamar a atenção que os tempos eram sombrios, o mundo viva a Segunda Guerra mundial, iniciada em 1939, muitas dúvidas e preocupações nas reuniões de pautas e nas ruas, sobre a posição política e o rumo que o Brasil seguiria naqueles anos. Seguem alguns exemplos com resumo do conteúdo para que se possa perceber a qualidade das pautas, a escolha dos assuntos que misturavam a vida em sociedade, política, críticas ao integralismo.

11 Por não caber a análise de todos os artigos, optamos por disponibilizar uma pequena seleção do que consideramos o mais interessante e pertinente na escrita de Silveira (ver Tabela 1, em anexo ao fim do artigo).

12 As reportagens eram muito bem apuradas, com personagens bem desenhados e escolhidos além de uma sensibilidade para descrevê-los. Em Escravos do contato (DIRETRIZES, 1941: ED 49, p. 12-13) Joel descreve a história de Joca, o negrinho que venceu Procópio, uma história que se desenrola num barracão em Cachambi. Um diretor de cinema português, Chianca de Garcia, desembarca no Rio para filmar o romance de José Lins do Rego, Pureza. “Retratava o ambiente acanhadíssimo de uma estação ferroviária da Great Western, perdida no sertão nordestino. Duas moças, coitadas, viviam ai, com uma porção de- ilusões na cabeça e doidinhas para ganhar a cidade. Queriam amar, e não encontravam ninguém. Então tomavam banho no riacho, passeavam pela mata e viam todos os dias, os trens passarem. Havia um pai, havia uma mãe. um molequinho, uma negra gorda, dois rapazes, sendo- que um era de lá mesmo, e o outro um franzino que viera doente aspirar o ar do campo. Muito bem. O leitor vê logo que o livro pode ser muito bom, mas o ambiente é por demais curto para um filme”. (DIRETRIZES, 1941: ED 49, p. 12)

13 O que Silveira trouxe para seu leitor não foi a história completa do romance, mas a vida de Joca, Jayme Pedro da Silva, o jovem que protagonizou o filme por quem o jornalista se encantou. Joca, 14 anos, era filho de dona Leopoldina, órfão de pai aos 3, e a possibilidade se tornar ator, animou a vida de Dona Leopoldina e seus filhos, assim entraria algum dinheiro para sustentar a família moradora do Meier. Silveira descreve

Artelogie, 14 | 2019 145

a esperança de toda a família quando Chianca o contrata para fazer o filme e o inscreve numa escola. “(...) Ora, é lógico que Jóca pensava em diversas coisas que poderiam acontecer. Por exemplo: em arranjar um emprego melhorzinho, um bom ponto de jornal, uma barbearia mais pródiga, etc. Isso não quer dizer que Jóca não sonhasse. Sonhava e sonha. De vez em quando, nas noites úmidas do barracão de Cachambi, Jóca sonhava que era rico. Bem como os sonhos de d. Leopoldina com o seu filho Hélio. Mas Jóca nunca sonhou em ser artista de cinema. Isso não! De maneiras que quando Chianca chegou e perguntou se Jóca queria trabalhar num filme, o negrinho ficou calado, procurando onde estava o espirito da brincadeira. Mas depois viu que não era brincadeira nem nada, o português estava falando serio. O português falava assim: - Nós estamos fazendo um filme que vai se chamar "Pureza". Um dos interpretes do filme é um negrinho — está no argumento. Falta-nos este negrinho. Apelamos para você. Pagamos 40$000 por filmagem que você faça. Feito?” (DIRETRIZES, 1941: ED 49, p. 13)

14 Começava uma nova fase na vida de Joca, indo aos estúdios da Cinédia, ficou amigo de José Lins do Rego e Doriaval Caymmi. Mas a crítica não aprovou o filme e depois das filmagens Joca ficou sem fazer nada e a denúncia de Joel era exatamente em contar a história do menino que sentira o gosto pelas telas e pela sedutora vida nos palcos e nas telas. Joca lembra a história do personagem Pixote, de Hector Babenco (1981) quando o ator Fernanda Ramos Sá, um menino excluído social foi selecionado para interpretar o menino de rua. Acabou sendo executado aos 19 anos, em 1981. Joca não quis voltar para a vida em Cachambi e resolveu seguir carreira e foi até o Cassino da Urca: “— Eu sou Jóca, aquele negrinho dc "Pureza". Sei cantar, interpretar qualquer coisa, vim pedir um emprego ao senhor. Quero trabalhar no cassino. (...) / Sr. Rolas remeteu Jóca para Luiz Peixoto, que, por sua vez, passou-o ás mãos de Chiquinho Sales. Chiquinho começou a ensaiar Jóca nos sambas de breque. Rolas viu logo que o negrinho dava certo. Fez um contrato e mandou Jóca assinar: — Enquanto você estiver ensaiando ganhará trezentos mil réis mensais. Logo que comece a trabalhar, receberá seiscentos mil réis. E de seis em seis meses será aumentado em 100$000. / (...) Mas, de qualquer maneira Jóca está preso, por contrato, durante três anos. Não poderá fazer nada, não poderá se exibir publicamente, não poderá aceitar propostas outras, mais vantajosas. Pertence ao cassino que, durante três anos, terá na figura do negrinho uma ótima fonte de renda. Sim, porque é lógico que se Jóca não fosse fazer sucesso, Rolas não o trataria com tão paternal bondade. (...)Na estação Pedro II, Joca diz que vai para a Urca. Vai mesmo a pé, debaixo da chuva, porque não tem dinheiro para o transporte. O repórter adianta-lhe um níquel. E o negrinho, miúdo e inquieto, toma o bonde, feliz, muito feliz, a roupa branca salpicada da lama escura do subúrbio. Grita do bonde para o repórter: - Good bye!” (DIRETRIZES, 1941: ED 49, p. 20)

15 Dentro do universo cáustico, irônico e crítico de Joel Silveira há um artigo especialmente mordaz, na edição 178, Granfinos em São Paulo: dos lucros da guerra, nasce o esplendor da “haute gomme” paulista, no qual Silveira vai apresentar a classe dominante paulista depois de passar uma semana em São Paulo e circulado no grand monde, ter conhecido banqueiros, intelectuais, monarquistas e mulheres belíssimas. Haute gomme é o mundo elegante.

16 Segundo Patrícia Peixão, em seu blog no portal Comunique-se, esta seria uma das reportagens de maior repercussão. Riqueza e luxo parecem ser dois ingredientes que atraem leitores para alimentar sonhos e delírios vividos por alguns happy few. Visitar as casas luxuosas classe dominante, conhecer as famílias quatrocentonas, ser convidados a inúmeras festas foi uma ideia – segundo Patrícia – do amigo e pintor modernista Di Cavalcanti: “O artista tinha acabado de voltar de Paris e comentou com Joel que não estava sendo bem aceito pela grã-finagem paulistana, que era muito fechada, rejeitando o

Artelogie, 14 | 2019 146

ingresso de pessoas que não pertenciam àquele mundo. Joel achou que aquilo rendia uma reportagem e começou suas incursões naquele universo, disfarçado como gentleman. Foi assim que nasceu o texto intitulado “1943: Eram assim os grã-finos em São Paulo”, que descreve, com ironia e detalhes, toda futilidade de parte da elite paulistana daquele período. Por conta do estilo ácido e ferino, ganhou de Assis Chateaubriand, dono da maior rede de comunicação da época (os Diários Associados, responsável pela introdução da TV no Brasil), o apelido de “víbora”, e foi convidado para trabalhar com ele”. (PAIXÃO, 2017)

17 O texto é uma aula de escrita e pode ser comparada ao texto Frank Sinatra está resfriado, de Gay Talese, publicado na revista norte-americana Esquire, em 1965 (Fama e anonimato, Cia das Letras, 2004) quando o repórter faz um perfil de Sinatra sem entrevistar o cantor, apenas ouvindo amigos familiares, colegas de trabalho, pois o cantor não poderia falar com ele por estar resfriado. “Os rapazes se vestem muito bem e telefonam. Telefonam de cinco em cinco minutos e conversam com Lili, com Fifi, com Lelé. Recebem também telefonemas de Fifi, de Lili e de Lelé. (…)” (DIRETRIZES, 1943: ED 178, p. 1) relata Joel, em um dos trechos sarcásticos da matéria.

18 O que mais chama atenção no texto de Joel é grande quantidade de adjetivos que Silveira utiliza, além de uma proposital repetição - quase em cada parágrafo da longa matéria – da palavra granfino, no feminino, masculino, singular e plural. O texto tem uma apuração primorosa, ouvindo várias fontes entre os ricos e cuidando dos detalhes e dos contrastes presentes na São Paulo durante a Guerra. Faz várias comparações entre o dolce far niente da classe privilegiada e os operários que se organizam em mais de um turno para darem conta das máquinas de guerra que estão sendo fabricadas na capital paulista, movendo a economia. Joel abre a matéria contando que passou uma semana em São Paulo observando aquele nicho da sociedade no seu habitat: festas em casas deslumbrantes e o chá do Jequiti Bar: “Durante uma semana, fiquei atordoado com a vida elegante de São Paulo. Haviam-me levado para algumas festas: primeiro um aperitivo, colorido e com pedaços de fruta dentro, depois uma carreira rápida de automóvel. Estive em jantares faiscantes. As mulheres muito belas e perfumadas. Particularmente aquelas que puxam os cabelos para cima, num jeito que abandona aos nossos olhos as lindas nucas nuas. Durante uma tarde inteira, fiquei semi-deitado numa poltrona de um apartamento chique, no centro da cidade. (...) Fui de mistura com outros, como penetra. Os rapazes se vestem muito bem, e telefonam. Telefonam de cinco em cinco minutos e conversam com Lili, com Fifi, com Lélé. Recebem também telefonemas de Fifi, de Lili e de Lelé. (...) Um dos hábitos: conversar sobre os feitos da noite anterior na pista do Jequití.São Paulo sempre teve seu mundo de luxo, um mundo essencialmente gran fino. É coisa que acontece com todas as cidades que enriquecem. A riqueza paulista, é sabido, vem de suas fábricas. Agora as fábricas estão trabalhando da ainda mais, porque a guerra é exigente. Dia e noite, os motores não param. Há uma turma de operários que passa o dia inteiro diante dos motores. Quando a noite chega, a turma diurna vai embora, muito cansada, e chega outra que se cansará até de madrugada”. (DIRETRIZES, 1943: ED 178, p. 1)

19 Adjetivos como atordoado, faiscante, belas e perfumadas, chique, repetições de telefone, telefonemas – também impensáveis em tetos informativos – aqui cabem para marcar o grau de empenho em se comunicar com pessoas do grand monde. Esse turbilhão de perfumes de salão e farfalhar de roupas caras em nenhum momento seduzem Joel que em meio à descrição dessa classe, constrói um texto sensível à brutal diferença desse grupo que pouco trabalhar e mais telefona com a classe operária qe está longe do paraíso. Monta um parágrafo usando o edifício Martinelli um dos ícones da arquitetura paulista como palco de um suicídio “um rapaz paulista, faminto e

Artelogie, 14 | 2019 147

desempregado, resolveu se matar.” Ao chegar no topo o jovem desiste do que seria o maior salto da América do Sul.

20 Pode se perceber que em quase todos os parágrafos ele elege um adjetivo que vai repetir ao longo daquele espaço, como milionário, por exemplo: “Mas os milionários são muitos. Raros são os milionários poetas em São Paulo, mas há muitos outros que não fazem versos. Uma noite, no Jequití Bar, conheci alguns deles: o milionário Lafer, o milionário Pignatari, o milionário Matarazzo, o milionário Crespi. Era uma festa somente para milionários, e sobre todos aqueles sobrenomes repousava a força paulista de hoje. (...) Com um gesto de mão, qualquer um deles poderia me aniquilar, me tanger longe, lá na rua. Mas os milionários apenas sorriam”. (DIRETRIZES, 1943: ED 178, p. 1)

21 Lembra que há muitos endinheirados mas poucos poetas e que aqueles sobrenomes que desfilavam nas festas, rodopiam nas pistas ou se movem pelas casa de chá, na verdade são filhos de imigrantes pobres que chegaram ao Brasil com a esperança de melhorarem suas vidas e nenhum dinheiro no bolso, que trabalharam e agora a segunda geração aproveitava as delícias do luxo e da riqueza. Critica os jogos de carta tanto dos homens quanto das mulheres “fazendo coisas inúteis” e os homens vão ao Automóvel Clube, no final da tarde, lugar que descreve como “triste como um cemitério. Se no Rio, a praia congrega as diferentes turmas, aprende-se com Silveira que “O Jequiti é o mar noturno onde todos se encontram. Um mar de felicidade onde todas as possíveis tristezas e decepções se diluem e se inutilizam” (SILVEIRA, 1998).

22 E o chá na Jaraguá? É lá que as mulheres vão desfilar seus novos modelos e os cortes de cabelo Lili, Zezé e Lelé não perdem um chá na Jaraguá, que era uma livraria com um café nos fundos. O que era para ser um ponto de encontro de intelectuais, abriga a maior parte do high society paulista. Silveira ainda traça um raio X dos ricos dividindo- os em 3 categorias: os granfinos de pedigree, os paulistas quatrocentões, o grupo “reserva” que sonha em fazer parte do primeiro grupo. São as filhas dos italianos ricos e o terceiro grupo “lamentável e melancólico” , os médicos de Barretos ou comerciantes de Bauru. Uma gente que não tem dinheiro. Os homens vivem de seus pequenos ganchos e comissões: “Os homens se dependuram na vida mundana de São Paulo como se estivessem num bonde cheio. As mulheres usam terríveis penachos, porque acreditam ser isto a característica principal da granfina, como o dente de ouro é característica de todo turco”. (...) (DIRETRIZES, 1943: ED 178, p. 2)

23 E há os colunistas sociais Jerry e Bilm. Nenhuma festa acontece sem a presença deles que escrevem em jornais distintos, mas registram as presenças de todos os granfinos em suas colunas. Eles são mais importantes do que os Matarazzo ou Crespi. Eles garantem o sucesso ou fracasso dos granfinos. Poucos literatos fazem parte dessa tribo. Oswaldo de Andrade chegou a entrar para o seleto grupo, mas caiu em desgraça ao perder sua fortuna. Alfineta Di Cavalcanti que costuma ir às festas e vender alguns de seus quadros. “Não é um diletante”.

24 Ao entrevistar uma das Fifis, ela lhe confessa que a vida social em São Paulo nunca foi tão intensa. Ao que Silveira termina seu texto lembrando que enquanto uns gastam outros se matam de trabalhar, correndo em ônibus e trens apertados. “O Brasil está vivendo uma era de fartura. Uma fartura que, na verdade, não chega para todos. Mas chega para Fifi, para Lélé e para Mimi, orquídeas raras. De noite, quando se acendem as luzes de São Paulo, a cidade fica ainda mais imponente. Os anúncios luminosos rasgam o céu: são anúncios das melhores e mais poderosas coisas da América do Sul. Há centenas de indústrias em São Paulo. Cada indústria tem um anúncio luminoso, um anuncio alegre. Cada indústria pede centenas de

Artelogie, 14 | 2019 148

motores, cada motor pede dezenas de operários. Dia e noite os operários manejam os motores. Os motores fazem dinheiro. Os olhos e o sorriso de Jerry se derramam satisfeitos sobre Fifi, como se Fifi fosse criação da sua coluna mundana na ‘Folha da Manhã’”. (...) (DIRETRIZES, 1943: ED 178, p. 26)

Tabela

25 Tabela 1: Relação de matérias publicadas por Joel Silveira em Diretrizes. Na primeira coluna, consta a edição de Diretrizes na qual o texto foi publicado; na segunda, o título original da reportagem; por fim, na terceira, uma breve síntese do assunto abordado.

ED TÍTULO DA MATÉRIA SÍNTESE

Reportagem sobre o jovem ator negro Jayme Pedro da Silva, apelidado Joca, de origens humildes e que está preso por um 49 Escravos de Contrato contrato ao Cassino após fazer sucesso na adaptação para o cinema de ‘Pureza’. O filme foi muito criticado, mas o trabalho do ator foi exaltado pela crítica.

Entrevistas com humoristas como Terra de Sena, Yantok 53 Vendedores de Humor Cesarino e Raul Perdeneiras sobre as condições de trabalho e questões como a popularidade dos trocadilhos.

As aventuras de um médico da Reportagem sobre Esperidião de Carvalho, médico que fez uma 68 missão Rondon intervenção cirurgia em Roosevelt.

Entrevista com Narazeth Prado, viúva do modernista Graça Aranha. A entrevista está repleta de relatos de Prado sobre A mais bela história de amor 80 experiências intimas do casal e a viúva chega a dizer que o do Brasil marido jamais foi um Modernista, que a Semana de Arte Moderna só foi um pretexto para visita-la em São Paulo.

Entrevista com João Neves da Fontoura, que revela alguns O integralismo vive detalhes dos bastidores da chamada “Revolução de 30” e se 100 atualmente uma existência de defende das acusações realizadas por Plínio Salgado, anos antes, conspiração subterrânea que havia lhe chamado de integralista.

Reportagem sobre a postura dos estudantes brasileiros que, por Os estudantes do Brasil intermédio da UNE, tomaram a frente de diversas manifestações 116 mobilizados contra o nazismo pelo país contra os regimes fascistas e publicaram alguns internacional manifestos.

Entrevista com Góis Monteiro à época Presidente do Conselho “O trabalhador brasileiro Nacional do Trabalho. O coronel emite opiniões extremamente 117 repudia completamente o radicas a respeito dos imigrantes oriundos de países do Eixo, nazi-nipo-fascismo” defendendo que o governo deveria tratar a todos como inimigos.

Artelogie, 14 | 2019 149

Reportagem sobre a greve dos motoristas de bondes, que se organizaram a fim de alcançar melhores condições de trabalho 122 Dez homens contra uma classe com o aumento da demanda pelos transportes devido à crise dos combustíveis.

Entrevista com Góis Monteiro à época Presidente do Conselho “O trabalhador brasileiro Nacional do Trabalho. O coronel emite opiniões extremamente 167 repudia completamente o radicas a respeito dos imigrantes oriundos de países do Eixo, nazi-nipo-fascismo” defendendo que o governo deveria tratar a todos como inimigos.

“Sou contra os sindicatos Entrevista com Genolino Amado, que explica sua ausência nas literários”: Genolino Amado páginas dos jornais durante a guerra. Ele diz que o momento não 163 denuncia a ação das era propício para o tipo de texto que costumava publicar, uma “igrejinhas” intelectuais vez que o horror da guerra dominava as manchetes.

Granfinos em São Paulo: dos Reportagem mais importante publicada por Joel Silveira em lucros da guerra, nasce o Diretrizes, rendendo-lhe a admiração de Assis Chateaubriand e o 178 esplendor da “haute gomme” apelido de “víbora”. No texto, Silveira relata o cotidiano da elite paulista paulista debochando da futilidade das pessoas.

Reportagem sobre as condições desumanas vivenciadas por 203 A miséria cria um mundo famílias no Rio Grande do Sul

Reportagem sobre o possível fechamento da Fundação Gafrée e Os rios da miséria correm Guinle, no Rio de Janeiro, local de atendimentos médicos para 207 para aquele mar pessoas de baixa renda e que prestava grande contribuição no controle de doenças como a sífilis.

BIBLIOGRAFIA

DIRETRIZES: Política, Economia e Cultura. Rio de Janeiro, 1938-1944. Disponível em: . Acesso em: 10. abr. 2018.

DUQUE FILHO, A. X.. Política Internacional na revista Diretrizes (1938-1944). Disponível em:< http:// repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/93438/duquefilho_ax_me_assis.pdf>. Acesso em: 10. abr. 2018.

FERRARI, Danilo Wenseslau. A atuação de Joel Silveira na imprensa carioca (1937-1944). Cultura Acadêmica, São Paulo, 2012.

OLIVEIRA, C. F. P. A Política Externa do governo Vargas durante o Estado Novo e a construção da Companhia Siderúrgica Nacional. Disponível em: < https://ojs.franca.unesp.br/index.php/ historiaecultura/article/view/1480>. Acesso em: 10. abr. 2018.

Artelogie, 14 | 2019 150

PAIXÃO, Patrícia. Dez anos sem Joel Silveira: textos e lições de um dos grande repórter. Disponivel em: . Acesso em 10 ago. 2018.

PESAVENTO, Sandra. Cidades. Disponível em: . Acesso em 10. jul. 2018.

ROUCHOU, Joëlle; RESENDE, Yuri. Diretrizes e as crônicas de Rubem Braga (1938-1939). Disponível em: < http://www.historiadamidiasudeste.com/uploads/8/0/3/0/80305748/mi02.pdf>. Acesso em 10. abr. 2018.

SILVEIRA, Joel. Na fogueira, memórias Mauad, Rio de Janeiro, 1998.

WAINER, Samuel Minha razão de viver. Record, Rio de Janeiro, 1987.

WERNECK SODRÉ, Nelson. História da Imprensa. Mauad, Rio de Janeiro, 1999.

RESUMOS

Dando continuidade à pesquisa sobre a revista Diretrizes (1938-1944), nos interessa analisar o trabalho do jornalista Joel Silveira que foi secretário de redação e repórter na publicação dirigida por Samuel Wainer. Vamos inicialmente trabalhar com as matérias de capa de Silveira durante o período da II Guerra Mundial e buscar compreender as relações entre o cotidiano nacional, o clima de guerra e a função do jornalista em momento de exceção, como é um estado de guerra. Não se pode deixar de trabalhar com a questão da censura do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda – do governo de Getúlio Vargas). Nos interessa olhar para as relações entre os jornalistas e a disputa velada em qual matéria irá para a capa da revista, as sensibilidades latentes no ambiente da redação.

Nous analyserons le travail du journaliste Joel Silveira dans le magazine Diretrizes (1938-1944), secrétaire de rédaction et reporter dans l´hebdomadaire dirigé par le journaliste Samuel Wainer. Dans un premier moment nous travaillerons sur les reportages publiés à la une de la revue pendant la Deuxième Guerre mondiale, en essayant de comprendre le quotidien national, l’ambiance de la guerre et la fonction du journalisme et du journaliste dans ces moments d’exception que sont les temps de guerre. Nous allons étudier aussi les démarches de la rédaction contre la censure venue du DIP (Département de Presse et de propagande – du gouvernement de Getúlio Vargas). La lutte des journalistes pour être publiés en première page sera aussi visitée ainsi que le climat sensible qui règne dans les rédactions.

ÍNDICE

Mots-clés: journalisme - repórter – presse - Joel Silveira - Diretrizes Palavras-chave: jornalismo – repórter - imprensa -Joel Silveira - Diretrizes

AUTOR

JOËLLE ROUCHOU

Doutora pela ECA/USP e pesquisadora na Fundação Casa de Rui Barbosa, com foco em história da imprensa. [email protected]

Artelogie, 14 | 2019 151

Comptes rendus / Partenariat Critique d'art

Artelogie, 14 | 2019 152

Les arts précolombiens : Transferts et métamorphoses de l’Amérique latine à la France, 1875-1945, VAUDRY, Élodie, Rennes, PUR, 2019.

María Isabel Quintana Marín

1 L’ouvrage Les arts précolombiens. Transferts et métamorphoses de l’Amérique latine à la France, 1875-1945 d’Élodie Vaudry, est issu de sa thèse de doctorat en Histoire de l’art, préparée à l’Université Paris Nanterre sous la direction de Rémi Labrusse et soutenue en décembre 2016. Prix de thèse 2017 de l’Institut des Amériques, ce livre de 318 pages, illustré en noir et blanc, est paru en juin 2019 aux Presses Universitaires de Rennes. Il fait partie de la collection transdisciplinaire « Des Amériques » qui valorise des travaux relevant des sciences sociales.

2 À la croisée de l’histoire culturelle de l’art et des études politiques, Élodie Vaudry s’intéresse à la réception des arts précolombiens – notamment Mexicains et Péruviens – en France. L’évolution de leur présence, leurs représentations et leurs usages est analysée en mettant en exergue des rapports diplomatiques franco-mexicains et franco-péruviens décisifs dans cette évolution. Le choix de ces deux pays latino- américains s’impose à l’auteure en raison de leurs plus forts liens avec la France à l’époque traitée, les rendant plus représentés dans les fonds d’art français. Le moment de départ de l’analyse est le Premier Congrès des Américanistes organisé à Nancy en 1875, formalisant un ralliement scientifique international et interdisciplinaire pour l’étude du continent américain.

3 Sans négliger les antécédents qui mènent au rassemblement américaniste, la première partie rend compte d’une création de liens franco-péruviens et franco-mexicains de divers ordres se répercutant sur la réception des arts précolombiens au XIXe siècle. La transformation du regard français sur une Amérique désormais « latine », partant attachée culturellement à la France ; une volonté d’expansion française sur le continent américain en lien avec les expéditions archéologiques et ethnographiques ; les débuts d’une instrumentalisation du passé précolombien par le Mexique et le Pérou qui se

Artelogie, 14 | 2019 153

forgent une identité nationale ; la mise en place de rapports culturels et économiques privilégiés entre la France et ces deux jeunes nations : toutes ces circonstances provoqueront le déplacement d’objets précolombiens qui se retrouveront dans les collections, les expositions et les musées de France, servant à la compréhension de l’ « Autre » et de « Soi ».

4 Ensuite, Élodie Vaudry analyse comment, après les questions archéologiques et ethnologiques, des considérations esthétiques surgissent conférant aux productions précoloniales le statut d’œuvres d’art à l’instar de celles de l’Égypte. Alors que la France, tout en affirmant sa présence culturelle au Pérou et au Mexique, explore et valorise davantage leurs arts anciens, ces deux pays se servent de stratégies éducatives et artistiques pour transmettre, aussi bien à leurs citoyens qu’aux Français, des représentations identitaires nationales basées en partie sur le passé précolonial. Dans un but de « séduction diplomatique et culturelle » - pour citer les propos de l’auteure -, les arts précolombiens du Pérou et du Mexique feront l’objet d’une instrumentalisation notable sur la scène artistique parisienne dans les années 1920, exposés comme des œuvres d’art. Les arts anciens en provenance d’autres pays latino-américains se verront entraînés dans cette dynamique qui suscite l’amplification de tout un réseau commercial et critique, ainsi que la multiplication d’artefacts précolombiens et de contrefaçons.

5 Enfin, Élodie Vaudry explique le biais par lequel les formes précolombiennes se retrouvent associées au décoratif, inspirant la création française. Le symbole ancien devient ornement dans Método de dibujo : tradición, resurgimiento y evolución del arte mexicano de l’artiste Adolfo Best-Maugard et El arte peruano en la escuela de l’artiste péruvienne Elena Izcue. Ces deux recueils d’ornements financés par les gouvernements mexicain et péruvien – l’un publié à Mexico en 1923 ; l’autre en 1926 à Paris - répondent à leurs stratégies éducatives et artistiques instrumentalisant les arts anciens à des fins identitaires ; et ce seront, comme l’indique l’auteure, « des outils en faveur d’une présentation et d’une re-présentation nationales à l’étranger ». Le pavillon péruvien de l’Exposition international de 1937, décoré par Reynaldo Luza, Elena et Victoria Izcue, relève aussi de ces stratégies. Au détriment de leurs connotations symboliques et de leurs valeurs d’usage d’origine, les motifs précolombiens, déplacés de leurs territoires ancestraux vers une scène étrangère mais préparée à leur réception, feront l’objet d’appropriations chez les décorateurs en France. Elena Izcue collabore avec Elsa Schiaparelli et Jean-Charles Worth, dont les travaux sont imprégnés du goût pour les formes précolombiennes et l’imaginaire latino-américain. Avec Jean Van Dongen, Émile Lenoble, Ivan da Silva Bruhns et Paule Leleu, ils feront partie d’une première vague de décorateurs intéressés par ces formes. Lors d’une seconde vague, Ivan da Silva Bruhns, Elsa Schiaparelli et Jean Puiforcat feront recours aussi à ces motifs anciens stylisés. Ces formes « immigrées », comme l’auteure les appelle, satisferont tout de même les ambitions propagandistes des gouvernements. L’étude s’achève en 1945, date de la mort de Puiforcat et de la fin de la Seconde Guerre mondiale, quand les échanges franco-mexicains et franco-péruviens se modifient et l’intérêt pour les arts d’Amérique latine se concentre sur la création contemporaine.

6 Outre les évènements marquant le début et la fin de l’étude, il convient de relever des temps forts soulignés par Élodie Vaudry, où les arts précolombiens se trouvent notablement instrumentalisés : les Expositions universelles au XIXe siècle, l’exposition Les arts anciens de l’Amérique aux Arts Décoratifs en 1928 et l’Exposition internationale des

Artelogie, 14 | 2019 154

arts et techniques appliqués à la vie moderne de 1937. Ces moments sont essentiels pour leur rôle déterminant aussi bien dans l’évolution du goût français pour les arts précolombiens que dans la perception du Mexique et du Pérou en tant que nations. Ils entraînent aussi des dynamiques de recherche et de production artistique, les expositions de 1928 et 1937 coïncidant, comme l’auteure le prouve, avec les deux vagues de création décorative française précédemment mentionnées. Cet effet sur les mentalités et les pratiques n’est pas anodin, puisque voulu par les pouvoirs politiques qui, au travers de choix muséographiques, soumettent l’art à une « théâtralisation » - ce vocable revient plusieurs fois dans l’ouvrage - à laquelle se rattachent des modifications de sens et de valeur. Les recueils d’ornements découlent également de cette démarche. Cette démonstration autour des rapports franco-péruviens et franco- mexicains constitue, à mon sens, l’apport fondamental et caractéristique de l’ouvrage.

7 Avec un corpus composé, entre autres, de nombreux documents d’archives françaises et étrangères, l’auteure, qui se déclare souvent non exhaustive, dresse tout de même un répertoire important d’institutions, dispositifs et personnalités européennes et latino- américaines ayant contribué à l’évolution de la réception des arts précolombiens en France : musées, expéditions, publications, expositions, ventes, hommes politiques, savants, collectionneurs, marchands et acheteurs, spécialistes et critiques, artistes et intellectuels d’avant-garde, décorateurs ; ce qui en fait un ouvrage de référence. En outre, ce livre matérialise une volonté de contribuer à l’écriture d’une histoire de l’art décentrée de l’Europe, tenant compte des contributions tantôt françaises, tantôt latino- américaines, dans l’élaboration de discours esthétiques transatlantiques.

8 Quant à la participation des avant-gardes artistiques dans le processus de réception des arts précolombiens, l’attitude de la constellation surréaliste est largement évoquée dans l’ouvrage. Cet aspect de l’étude reste à compléter en ce qui concerne les peintres mexicains pendant la Grande Guerre et au lendemain du conflit. Diego Rivera dit avoir poursuivi dans El Guerrillero1 et d’autres tableaux cubistes de l’époque la « tradition de l’art mexicain d’avant la conquête » de façon intuitive2. Dans une lettre à Marius de Zayas datée de 1916, il parle des qualités plastiques de la sculpture mexicaine et nègre, paradigmes des démarches esthétiques à suivre par les peintres3. David Alfaro Siqueiros adopte cette approche moderne de l’art ancien du Mexique en compagnie de Rivera en Europe4. Fruit de leur réflexion commune, son manifeste « 3 llamamientos de orientación actual a los pintores y escultores de la nueva generación americana », voit le jour à Barcelone dans la revue Vida americana en mai 1921. L’écrivain russe Ilya Ehrenbourg se souvient que Diego Rivera, rencontré souvent à La Rotonde ou chez des amis, « aimait parler du Mexique ». « En écoutant Rivera, se souvient-il, je me suis mis à aimer le Mexique ; les sculptures des Aztèques se fondaient avec les partisans de Zapata. »5 Après le départ de Rivera en 1921, les recherches d’Ángel Zárraga sont mentionnées par Guillaume Janneau qui remarque une « renaissance mexicaine qui s’accomplit aujourd’hui » en précisant : « Quelques artistes, retournant aux sources d’inspiration des ancêtres – faut-il nommer Ángel Zárraga ? – en retrouvent les grands accents. »6 Il conviendrait de creuser davantage au sujet de ces peintres à cette période7.

9 Le titre de l’ouvrage, métonymique quant à l’aire culturelle latino-américaine, ne prépare pas à la lecture d’une étude qui problématise uniquement les cas du Pérou et du Mexique, bien qu’on puisse déceler une possible difficulté à cloisonner les esprits quand on tient compte des amalgames effectuées à l’époque – même par les artistes

Artelogie, 14 | 2019 155

analysés dans la dernière partie -, et que la deuxième partie du livre recense de façon riche la présence et la circulation en France d’arts précolombiens de l’Amérique latine en général. Ce recensement permet de constater l’augmentation considérable d’artefacts en provenance de Colombie et du Costa Rica dans les années 1920. Cette métonymie incite à creuser à propos des représentations et de l’instrumentalisation des arts anciens en provenance des pays latino-américains moins représentés en France. Dans El Redescubrimiento del pasado prehispánico de Colombia : viajeros, arqueólogos y coleccionistas, 1820-1945 publié en 2006, Clara Isabel Botero Cuervo, morte en 2018, traite des questions en concordance avec celles d’Élodie Vaudry ; en décrivant de nombreux allers-retours transatlantiques, elle étudie les sources et les aspects ayant déterminé la perception et les discours à propos des arts préhispaniques de Colombie entre 1820 - époque où cette nouvelle république est en pleine création -, et 1940 - quand la recherche scientifique s’institutionnalise. Élodie Vaudry et Clara Isabel Botero ont en commun certaines sources comme Bruno Latour et Krzysztof Pomian. Ces deux ouvrages représentent d’importants progrès dans la connaissance de cette vaste histoire des transferts et des représentations des arts précolombiens, mais des portes restent ouvertes à de nouvelles enquêtes sur l’ensemble des pays latino-américains. Dans le cas du Costa Rica, cette dernière décennie, des questions se portent sur la recherche d’une identité nationale à travers une appropriation actuelle des formes et des motifs précolombiens dans le domaine artistique. Les expositions El Remanente precolombino. Arte + Diseño en 2013, Mayinca. Tiestos de una cultura en 2015, ainsi que l’appel à exposition Cerámica precolombina en el imaginario actual en 2014, témoignent de cette démarche aussi bien sur le plan du design que des arts plastiques. Des manifestations ont eu lieu également dans le domaine du tatouage. Dans son article « El Arte prehispánico costarricense como fuente para el diseño plástico contemporáneo », Rodolfo Mejías Cubero incite les étudiants de design à participer à la construction des identités nationales par l’adoption d’éléments plastiques tirés des arts préhispaniques costariciens, démarche indispensable pour contrer l’effet homogénéisant de la mondialisation8. Il s’agit bien d’une quête d’affirmation identitaire vis-à-vis des autres pays. En 2015, paraît Diseño precolombino en Costa Rica : análisis de objetos de cerámica y piedra del Museo Nacional de Henry Orlando Vargas Benavides. Cet ouvrage, qui étudie les proportions, les couleurs et les structures des objets, est considéré par Luis Fernando Quirós comme « un texte à étudier urgemment dans le système éducatif costaricien9 ». À travers ce modeste aperçu du cas de ce pays, on constate la pertinence et l’utilité actuelle de l’étude d’Élodie Vaudry. Son ouvrage constitue une archéologie de l’instrumentalisation politique et culturelle de l’art par les nations latino- américaines, de ses enjeux esthétiques et de ses dynamiques créatives, et incite à en suivre les traces jusqu’aux temps présents.

NOTES

1. Ou Paisaje Zapatista.

Artelogie, 14 | 2019 156

2. Diego Rivera, My Art, My Life : An Autobiography / collab. Gladys March. Nouv. Ed, New-York, Dover publications, Inc., 1991, p. 65. 3. Voir lettre de Diego Rivera à Marius de Zayas datée de 1916. In : Diego Rivera. Obras : 3. Correspondencia / réunie et présentée par Esther Acevedo, Leticia Torres Carmona et Alicia Sánchez Mejorada, Mexico, El Colegio Nacional, 1999, p. 27-29. 4. Voir Irene Herner Reiss, Siqueiros, del paraíso a la utopía, Mexico, CONACULTA, Arte et imagen, 2004, p.89. 5. Ilya Ehrenbourg, Les Gens, les années, la vie / traduit du russe par Michèle Kahn, Lyon, Parangon/Vs, 2008, p. 197. 6. Guillaume Janneau, « Au Musée de l’ethnographie », Bulletin de la vie artistique, 15 octobre 1922, 3e année, n° 20, p. 469. 7. C’est l’un des sujets de recherche de l’auteure du présent compte rendu, en lien avec sa communication « Diego Rivera et Élie Faure : Contributions du peintre à la critique française des arts de l’ancien Mexique », prononcée le 28 octobre 2016 à la journée d’étude Artistes et voyageurs latino-américains en France de 1875 à nos jours : De la reconnaissance à l’influence artistique sur la création française, organisée par Élodie Vaudry. 8. Voir Rodolfo Mejías Cubero, « El Arte prehispánico costarricense como fuente para el diseño plástico contemporáneo”, Káñiga : Revista de Artes y Letras de la Universidad de Costa Rica [en ligne], 2010, n° XXXIV, (2), p. 1 [Référence du 27 août 2019], accès Internet : . 9. Voir Luis Fernando Quirós, « Henry Vargas : Diseño Precolombino en costa Rica”, Experimenta [en ligne], [2015] [Référence du 27 août 2019], accès Internet: : “El libro oferta la posibilidad de que sea un texto urgente de estudiar en el sistema educativo costarricense.”

AUTEUR

MARÍA ISABEL QUINTANA MARÍN

Docteure en Histoire de l’art, auteure de la thèse Du cubisme à d’autres cathédrales : Diego Rivera et l’ « Art social » d’Élie Faure, préparée sous la direction de Philippe Dagen à l’Université Paris 1 et soutenue le 26 novembre 2016.

Artelogie, 14 | 2019 157

História & História Cultural. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

Maximiano Martins de Meireles

1 A obra intitulada História & História Cultural, de autoria de Sandra Jatahy Pesavento, uma de suas primeiras publicações relevantes sobre o tema, sistematiza o pensamento e os estudos sobre este campo, do qual ela foi uma das pioneiras no Brasil. Ao longo de oito capítulos, a autora evidencia parâmetros epistemológicos, teóricos e metodológicos que o balizam e o avalizam como campo historiográfico contemporâneo de profícuas produções e interlocuções com outras áreas do saber.

2 Neste livro, Pesavento percorre um itinerário de escrita bastante didático e elucidativo, cuja finalidade é delimitar o campo da História Cultural (HC), não como algo estritamente fechado e rígido em seus preceitos, mas sim na perspectiva de manter a ciência histórica dentro de mudanças epistemológicas e metodológicas que se impunham a partir de novos olhares e formas de pensar o mundo e os homens, consequentemente, o próprio trabalho do historiador.

3 O que a autora faz entrever é o advento da História Cultural e seus desdobramentos, as mudanças epistemológicas, teóricas e metodológicas, ou seja, a entrada em cena de um novo olhar, dentro de um quadro teórico equacionado por historiadores renomados (nacionais, franceses, italianos e americanos, principalmente) e percursores do referido Campo. Destacam-se, assim, conceitos e pressupostos que o delineiam, ao mesmo tempo que o validam.

4 O primeiro deles é a rediscussão do conceito de representação, que se tornou central e reorientou a postura epistemológica do historiador. Reapresentar alguma coisa, que se coloca no lugar do referente, introduz, assim, a noção de simbólico e do sentido, dentro da História. O segundo conceito é o de imaginário que, segundo a autora, trata-se de um conjunto ou um sistema de ideias e imagens de representação coletiva que os homens, em todas as épocas, constroem para si, atribuindo sentido ao mundo. A terceira concepção é a da narrativa histórica, narrativa do historiador que a monta baseado na

Artelogie, 14 | 2019 158

investigação, no método, nos indícios e nas fontes. Esse pressuposto, segundo Pesavento, traz à tona um quarto elemento conceitual, que é o de ficção. Tal aspecto, se por um lado reaproxima a História da Literatura, por outro a afasta, porque é uma ficção controlada pelos indícios, pelas fontes e métodos, pois é ciência. A quinta noção associada aos novos pressupostos epistemológicos da HC é o de sensibilidade, implicando na percepção e tradução sensível da experiência humana no mundo, através de práticas sociais, discursos, imagens e materialidades, tais como espaços e objetos construídos.

5 Esta perspectiva coloca em cena, segundo a historiadora, a questão do indivíduo, das subjetividades e das histórias de vida, que se tornam importantes nas narrativas históricas, reconfigurando temporalidades. Pensar as Sensibilidades a partir das reflexões de Pesavento é entender que a história não se move fora da experiência, das subjetividades, da imaginação, das emoções, das ideias, dos desejos, dos temores, posto que a relação dos homens com o mundo está para além do conhecimento científico. Como ela mesma afirma, é reconhecer, em todas as épocas, a permanência dos sentimentos, do sensível, daquilo que não é apreendido unicamente pelo racional.

6 É através das Sensibilidades como campo, objeto e método que o historiador pode capturar a vida no tempo; trabalhar com experiências individuais e coletivas; reconstruir formas de conhecimento do mundo; conhecer o modo como os homens pensam, sentem e se colocam diante do mundo em um contexto cultural e temporal específico; ou seja, como apreendem o mundo em que vivem.

7 Portanto, nesta obra inovadora, Pesavento nos apresenta um horizonte de possibilidades e desafios teóricos e metodológicos da História Cultural e das Sensibilidades, colocando em cena novas questões metodológicas, temas, objetos de pesquisa e fontes, nesta roda dinâmica que é a história e o trabalho do historiador, do pesquisador. Seu pensamento sistemático, movente e dinâmico abre-nos a novas reflexões e planos de leitura sobre a realidade e a produção científica. É a aventura do conhecimento de que fala esta importante historiadora brasileira do século XXI, inspirando-nos a percorrer outras veredas no pensar e fazer História.

AUTOR

MAXIMIANO MARTINS DE MEIRELES

Doutor em Educação/ UNEB

Artelogie, 14 | 2019 159

Sensibilidades: escrita e leitura da alma. PESAVENTO, Sandra Jatahy. In: Pesavento, Sandra Jatahy; Langue, Frédérique. (Org.). Sensibilidades na história: memórias singulares e identidades sociais. 1ed.Porto Alegre: UFRGS, 2007, v. 1, p. 9-21.

Luciana Rodrigues Gransotto

1 Sandra Jatahy Pesavento (1946-2009) foi uma historiadora brasileira, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Após iniciar formação acadêmica na França, no princípio da década de 1990, teve uma importante ruptura epistemológica em sua trajetória intelectual, quando rumou da História Econômica para a História Cultural, posicionamento justificado, sobretudo, pelo incômodo da rigidez metodológica quanto aos fatos e acontecimentos do passado. Em um empreendimento intelectual, as sensibildades foram, desde então, uma das discussões teórico- metodológicas que permearam seus estudos e produções científicas.

2 Pesavento foi uma das organizadoras, juntamente com Frédérique Langue, da obra coletiva Sensibilidades na História: memórias singulares e identidades sociais, publicada do ano de 2007. Ambas trabalharam no grupo de pesquisa Histoire des Sensibilités, do CERMA/EHESS, durante a década de 2000. O livro é composto por onze capítulos, escritos por pesquisadores (as) de vários países e uma entrevista feita à Arlette Farge. A obra tem o texto de abertura de Serge Gruzinski. No capítulo Sensibilidades: Escrita e Leitura da Alma, Pesavento realiza a historicização da noção de sensibilidade – e sua constituição - estabelecendo conexões, aproximações e distanciamentos entre

Artelogie, 14 | 2019 160

correntes teóricas de diferentes intelectuais. A grande questão que norteia o texto é: como apreender e/ou capturar as razões e os sentimentos que qualificam a realidade? Através da sua narrativa é possível vislumbrar um quadro intelectual de pensadores e suas interpretações sobre as sensibilidades, entre eles Epicuro e Lucrécio, Platão e Aristóteles, passando por Rousseau, Johan Huizinga, Carl Gustav Jung, Roland Barthes, Carlo Ginzburg, Lucien Febvre, Arlette Farge, Johann Gustav Droysen, Wilhelm Dilthey e Walter Benjamin.

3 No início do século XX, o holandês Johan Huizinga indicava a diferença nos modos de pensar e agir dos seres humanos, permitindo a reflexão sobre a alteridade e a diversidade das formas de perceber o mundo. A preocupação dos (as) historiadores (as) em compreender uma época, vinculando os sentidos dado pelos indivíduos ao mundo, se fortalece na Escola dos Annales, a exemplo de Lucien Febvre e o estudo da História das Mentalidades.

4 Pesavento indica que as sensibilidades não partem do conhecimento científico, do racional, mas se constituem através das experiências humanas, as quais mobilizam o corpo, as sensações, os sentimentos e as emoções em reação aos acontecimentos físicos ou psíquicos. Por outro lado, estão vinculadas à manifestação do pensamento, onde a percepção de um certo momento está relacionada a uma outra lembrança. Dentro desse contexto, é relevante a referência que ela traz sobre a proposição de Roland Barthes, ao estabeler as diferenças - mas também a indissociabilidade – entre “studium” e “punctum”, ou seja, entre o campo do saber e da cultura (práticas sociais) e aquele das emoções (subjetividades), como formas de conhecimento do mundo. Pensando em uma certa “estrangeiridade” com o que se passou em um outro tempo e em relação ao ‘outro’, a autora inclui um elemento importante articulado ao conceito de sensibilidade: a alteridade. Para Paul Ricouer, a alteridade está vinculada à complexa forma de perceber o mundo e os indivíduos, considerando as distintas temporalidades, as quais já estabelecem um certo distanciamento com os (as) historiadores (as). Nesse sentido, seria necessário incorporar uma “atitude hermenêutica”, para pensar e compreender as experiências humanas, ultrapassando as distâncias entre tempo e cultura.

5 A materialidade das sensibilidades, através das fontes e dos registros, são compreendidas por Pesavento como “testemunhos do sensível”, por se relacionarem com as subjetividades inseridas nas experiências individuais e coletivas. Nessa operação, ainda há a importância do esforço da imaginação, aliada ao acúmulo de saberes de um (a) historiador (a). Citando Walter Benjamin, a autora percebe as imagens como uma das expressões significativas das sensibilidades, fazendo parte de um conjunto de narrativas que permeiam o imaginário, tendo o poder da provocação.

Artelogie, 14 | 2019 161

AUTOR

LUCIANA RODRIGUES GRANSOTTO

Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Doutoranda no Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas. Área Estudos de Gênero (EGE).

Artelogie, 14 | 2019 162

O homem que se achava Napoleão – por uma história política da loucura. MURAT, Laure. Três Estrelas, São Paulo, 2012.

Isabel Lustosa

A revolução, os Napoleões de hospício e a psiquiatria no século XIX.

A história da loucura pode deixar de levar em conta a loucura da história?

1 Quem sempre quis saber a origem do chamado “Napoleão de hospício”, - a mania de alguns loucos acharem que são o imperador Napoleão Bonaparte – vai descobrir lendo O homem que se achava Napoleão (MURAT, 2012). Mas, apesar do apelo do título, esse é apenas um dos temas fascinantes da obra de Laure Murat que tanto fez sucesso na Europa e no Brasil passou em silêncio quando foi lançada pela Editora Três Estrelas em 2012. O livro é fruto de centenas de horas dedicadas a pesquisas nos registros de observações médicas dos grandes asilos de alienados parisienses. Ressaltando a utilidade desse acervo para estudos de história social, Murat chama a atenção para o fato desses arquivos também serem os grandes livros da miséria social, na qual encalha o destino de milhares de homens e mulheres, vários deles oriundos da classe operária que muitas vezes perderam tudo antes de terem perdido a razão.

2 Conectar as revoluções que marcaram o século XIX com a emergência da psiquiatria e com manifestações de loucura foi o objetivo de Murat. Além dos registros médicos, um acervo considerável de fontes, que vão desde estudos sobre o tema publicados no século XIX às biografias dos mais importantes psiquiatras, foram mobilizados pela autora. Sua

Artelogie, 14 | 2019 163

obra nos proporciona um panorama do impacto que as revoluções de 1789, 1830, 1848 e 1871 tiveram sobre a saúde mental dos parisienses.

3 Segundo Laure Murat, foi a Revolução Francesa que inventou a loucura moderna, lançando as bases de sua organização administrativa e de seu tratamento médico. É a partir desse momento fundador que a psiquiatria conhece sua idade de ouro e amplia seu poder. A grande rival dessa ciência nascente era a religião que tinha, anteriormente, o monopólio da loucura, com o tratamento sendo confiado ao confessor e/ou às ordens religiosas de caridade. Mas conventos e mosteiros não teriam vez no século da razão. O fanatismo religioso e a exaltação mística precisavam ser separados de uma ciência positiva, racional e disposta a triunfar sobre o obscurantismo. Os psiquiatras do século XIX acreditavam mesmo que, dentre as diferentes espécies de alienação mental, a que tinha origem na religião era a mais difícil de curar, a que mais conduziria ao furor e à crueldade. Com o advento da psiquiatria, as práticas religiosas com seus flagelos, suas privações e seus êxtases perderam sua aura e passaram a ser descritas como casos médicos a serem analisados.

4 Outra vitória da psiquiatria foi a de fazer reconhecer pela justiça a noção "científica” de “monomania homicida”. Doença que só a psiquiatra pode diagnosticar, consagrando a superioridade do seu “campo filosófico". O psiquiatra passa a ter o poder de teorizar, elaborar e administrar uma política de saúde, classificando, separando e internando pacientes. A loucura trouxe o médico para o coração da administração pública e, no século XIX, poucos cargos foram tão políticos quanto os dos psiquiatras. A partir de 1838, uma lei relativa ao tratamento das doenças mentais e que vigoraria até 1990, oficializou a política do Estado relativa à criação de asilos, estabelecendo que cada departamento da França, tivesse um asilo especializado, em que se separassem os loucos dos demais doentes. Essas instituições e a política de internação relativas tanto aos estabelecimentos públicos quanto aos privados passaram a ser reguladas pelo Ministério do Interior.

5 Murat considera uma ironia o fato de ter sido a partir da Revolução Francesa, com seus desdobramentos, que alguns estados de loucura passaram a ser atribuídos a traumas causados pela própria Revolução. Apesar da loucura ter sempre sido associada às paixões, foi só então que os acontecimentos políticos foram considerados como uma das possíveis causas da alienação mental. Especialmente durante o momento mais sangrento da Revolução, o Terror, um clima de medo e de ameaça teria se difundido de tal maneira em Paris que provocara a elevação do número de internações em asilos públicos e privados. O povo estava literalmente, diz a autora, medusado. Pois tal como a cabeça cortada da Medusa tem o poder de petrificar, o espetáculo de milhares de cenas de execução em praça pública mexera com o imaginário da população.

6 Trazida para a intimidade e o cotidiano dos parisienses, usada como detalhes de brincos e colares pelas mulheres, a guilhotina, apelidada de a viúva, navalha nacional, foice da igualdade etc. (enquanto a execução também motivava expressões populares: pôr a cabeça na ratoeira, olhar pelo postigo, espirrar no saco), nem por isso, deixava de assombrar. Até alguém cuja mente deveria ser menos sensível a visões tenebrosas, como a do Marquês de Sade, confessaria que, durante o ano de 1794, em que esteve internado num asilo de loucos situado diante da atual place de la Nation, em Paris, a visão que sua janela descortinava da guilhotina em intensa atividade lhe teria feito um mal cem vezes pior do que me fizeram todas as Bastilhas imagináveis. Afinal entre março de 1793 e agosto

Artelogie, 14 | 2019 164

de 1794, entre 2.600 e 3.000 pessoas foram guilhotinadas e, apenas no dia 7 de julho de 1794, foram realizadas 68 execuções.

7 Laure Murat relata vários casos de loucura em que o paciente acreditava ter sido guilhotinado e que, sua cabeça, separada do corpo, ganhara vida própria. A seu ver, essas cabeças cortadas que agem e falam são outros tantos mortos vivos de uma época que não se desfez dos seus segredos e da qual se esperam revelações de além túmulo. Elas alimentam as fantasias mais lúgubres de um povo que não consegue liquidar a herança revolucionária. O nascimento da psiquiatria coincide com a invenção da guilhotina e essa correlação histórica seria, segundo a autora, mais do que casual, incluindo-se o duplo sentido da expressão “perder a cabeça”. Afinal, completa, tanto a psiquiatria quanto a guilhotina diziam respeito à relação da cabeça com o corpo, sua ligação ou seu divórcio.

Pinel, os asilos e o tratamento moral

8 O grande protagonista desse processo de ascensão da psiquiatria foi o dr. Philippe Pinel. Formado em medicina pela Universidade de Toulouse, em 1773, Pinel completou seus estudos em Montpellier e foi se estabelecer em Paris, em 1778. De origem modesta, a dificuldade na fala - Pinel era gago -, além da timidez e de um caráter naturalmente reservado, atrapalharam o começo de sua carreira. Viveu inicialmente dando aulas de matemática até começar a escrever na Gazette de Santé, em 1794 e, a partir de 1786, passar a atender na Casa Belhomme. Esse tipo de instituição, tal como até recentemente, era a alternativa que as famílias abastadas tinham para guardar os seus indesejáveis (“um velho senil, de um filho retardado ou de uma tia demente”), sem expô-los à miséria dos hospitais-asilos.

9 Leitor de Rousseau e de Montesquieu, amigo de Condorcet, Pinel será um entusiasta da Revolução e desenvolverá teorias em que estabelece uma relação especular entre suas convicções políticas e seu método terapêutico. Em artigo publicado em 18 de janeiro de 1790, Pinel relaciona o corpo político ao corpo do indivíduo, associando o Antigo Regime a graves disfunções que teriam atingido setores da população cujos luxo, indolência e intensa vida social estariam na origem de seus males dos nervos. No entanto, diz Pinel, já começavam a se sentir os efeitos salutares do novo regime pois ouvia pessoas dizerem: “sinto-me melhor depois da revolução”. Mesmo assim, Pinel reconhece que a energia injetada na sociedade pelas ideias novas produzia, entre exaltação e depressão, desordens no espírito e no comportamento das pessoas. Afinal, indagava: que alma permaneceria fria diante da derrubada de todas as instituições e da insurreição de um povo decidido a se libertar da tirania? Diante do formidável espetáculo do fim do mundo?

10 Entre a militância na imprensa e a atividade na Casa Belhomme, Pinel desenvolveu uma terapêutica para recuperar nos alienados a corrente regular das ideias: o tratamento moral. Moral como lembra Murat, se refere tanto ao estado mental em oposição ao estado físico, mas se refere também aos bons costumes, a uma conduta adequada, em oposição ao comportamento imoral. Suas ideias foram reunidas em um livro, Observações sobre a mania para servir à história natural do homem, publicado em 1794, e que é considerado o documento fundador da psiquiatria francesa.

11 O livro de Laurie Murat também nos proporciona um passeio pelo interior dos asilos parisienses para loucos que foram centrais para o desenvolvimento da psiquiatria no século XIX. Bicêtre, Salpetrière, Charenton e Sainte-Anne foram espaços de

Artelogie, 14 | 2019 165

concentração e de experimentos psiquiátricos, proporcionando aos especialistas que os dirigiram grande nomeada. Pinel trabalhou nos dois primeiros, os mais importantes e, chegando a Bicêtre em agosto de 1793, foi responsável por considerável melhora na qualidade do tratamento aplicado aos internos daquele hospital-prisão, então descrito como um verdadeiro inferno, em que 200 loucos se misturavam a 4 mil doentes e criminosos.

12 O tratamento moral aplicado por ele consistia em escutar, consolar, tranquilizar e procurar distrair o paciente do objeto exclusivo do seu delírio. Ele recomendava que o terapeuta adotasse sempre uma atitude amável e benevolente, evitando ao máximo recorrer à violência física. Mas essa terapêutica também envolvia uma atitude de poder em que era preciso dominar e intimidar o louco, falando com voz forte, clara e sem hesitação, mas nunca recorrendo à violência física. No limite, nos casos mais graves, ainda sem recorrer a castigos físicos, era preciso implantar o terror para dominá-los, convencê-los de que não podiam seguir a própria vontade e que era melhor obedecer. Murat ressalta a contradição que percorreu toda a história do tratamento moral preconizado por Pinel: a vontade de estabelecer o diálogo com o louco e a necessidade de dominá-lo.

A doença dos pobres e a tara do Marquês

13 Embora as causas da loucura não possam ser reduzidas a um acontecimento isolado, para Laure Murat, a história tem seu papel na etiologia dos delírios. Afim de entender qual seria esse papel a autora coloca para si mesma a questão: como se delira na história e como, em troca, se inventa ou se desfaz a nosologia em função das mudanças de regime? A seu ver a loucura é uma doença da sensibilidade cujas causas devem ser buscadas nos tormentos da existência: luto, desespero, ciúme, amor à gloria, excesso de estudos ou de devoção. Muitas vezes, pequenas histórias de desgostos domésticos ou reveses da fortuna são superdimensionados por acontecimentos da grande história afetando naturezas frágeis. O delírio seria a fuga de indivíduos às voltas com as guerras, os massacres, a violência e o horror econômico para uma realidade paralela.

14 Uma das dificuldades enfrentadas pelo historiador que se disponha a estudar a loucura se encontra na impossibilidade de ouvir os interessados, os loucos. Sua voz aparece mediada pela voz do psiquiatra que registrou em suas fichas as características do paciente e de seu delírio. Por isso a história da loucura pertenceria à história dos iletrados, dos anônimos, dos excluídos, dos marginais, dos sem voz e o historiador é obrigado a se restringir ao discurso político do poder e do saber para atingir seu objeto. Para tentar relativizar esse discurso, Murat procura estabelecer a hierarquia dos critérios empregados pelo alienista, tendo sempre em mente que, como todo mundo, ele tem uma história pessoal, convicções religiosas e opiniões políticas.

15 Para isso a autora procura conhecer os médicos que, ao longo do século XIX, depois de Pinel, atuaram nos asilos parisienses e produziram suas próprias terapêuticas. O segundo nome de sua lista é Jean-Étienne-Dominique Esquirol, cuja trajetória é muito semelhante à de Pinel, do qual foi o discípulo favorito. Tendo também estudado em Toulouse e em Montpellier, Esquirol dirigiu Bicêtre depois do mestre e atuava em Salpetrière desde 1799, quando, em 1820, foi nomeado substituto de Pinel, que se aposentou naquele ano.

Artelogie, 14 | 2019 166

16 Esquirol, também adepto do tratamento moral, achava que havia de fato uma relação de causa e efeito entre os acontecimentos políticos e a alienação mental. Se a história em si não era a causadora da loucura, acidentes históricos podiam propiciar o desenvolvimento de uma loucura latente. A razão do aumento dos casos de alienação na França seria a alteração nos costumes propiciada pela Revolução. Para Esquirol, a loucura era uma doença da civilização, menos tributária das contingências políticas que das questões morais. Quanto mais a civilização avançava, mais a loucura ganhava terreno. Segundo Murat, essa ideia de uma loucura indexada ao progresso e às formas de governo marca todo o século XIX.

17 Mas, na contramão desses avanços da psiquiatria representados por Pinel e Esquirol, Charenton foi palco de um verdadeiro choque de mentalidades envolvendo o paciente mais famoso dos asilos psiquiátricos do tempo: o marquês de Sade. Cliente preferencial de prisões e asilos há vários anos por conta de suas depravações reais e ficcionais, Sade foi enviado para Charenton em 1803. Ali reinava sobre a equipe e os pacientes um aristocrata, o diretor François Simonnet de Coulmier, personalidade típica do Antigo Regime, que desenvolverá uma relação de grande amizade com seu ilustre paciente.

18 Diz Laure Murat que esses dois homens do século XVIII, marcados pelos privilégios de nascimento, conservavam do antigo mundo uma visão cósmica, interna, repleta de fantasia em torno do prazer e da volúpia, temas tão contrários à era da virtude cívica inaugurada com a Revolução. Coulmier deu vida boa para Sade em Charenton: tinta e papel para escrever, liberdade para circular e, o mais importante, o direito de produzir e encenar peças. As peças de Sade e o ambiente licencioso que se constituiu em torno desse pequeno teatro, que fazia muito sucesso atraindo plateia sofisticada, acabaram provocando reações negativas. A ligação íntima do diretor com um monstro votado à execração pública, foi alvo de uma campanha conduzida por um funcionário de Charenton, o médico Antoine-Athanase Royer-Collard.

19 Estabeleceu-se então um conflito entre esses dois homens com visões de mundo opostas, Royer-Collard, encarnação da virtude e da autoridade moral, considerava sua missão impedir que um degenerado como o marquês de Sade influísse sobre o ânimo dos pacientes. Pois Coulmier os incluía nas peças de Sade como parte de sua própria visão do que deveria ser o “tratamento moral”. Mas o que Royer-Collard considerava como o verdadeiro escândalo não dizia respeito às questões terapêuticas, apesar de Coulmier ter sido também criticado por excitar as paixões dos loucos aos expô-los às risadas e às zombarias do público. O grande problema era a abertura do mundo fechado do asilo para essas representações conduzidas por um personagem cuja depravação era usada como exemplo maior do que fora o comportamento da aristocracia no Antigo Regime.

20 Para Royer-Collard, Sade não era louco, ao contrário, era perfeitamente lúcido e essa lucidez é que tornava suas ações mais hediondas. Afinal, a simples presença de personagem tão emblemático no asilo não seria suficiente para abalar a imaginação mesmo daqueles que não o veem? Sade precisava ser erradicado e Royer-Collard propõe delicadamente ao ministro: Não posso me impedir de indicar a Vossa Excelência que uma prisão de segurança ou um castelo-fortaleza lhe conviria muito melhor... Assim, durante o reinado de Napoleão Bonaparte, a psiquiatria avançava mais algumas casas e adquiria legitimidade para se erigir como juiz dos desvios de conduta, ainda que estes, e de maneira mais explícita, nada tivessem a ver com a alienação mental. Em 1812, Royer-Collard ganhou a parada, Coulmier foi afastado, ele se tornou diretor de Charenton e suprimiu toda a

Artelogie, 14 | 2019 167

espécie de bailes e representações teatrais e, no hospício, em vez do ambiente alegre anterior, seus pacientes experimentavam a cura pelo trabalho: para as loucas, os ateliês de costura e para os loucos as colônias agrícolas.

Napoleão Bonaparte derrota Luís Felipe

21 Foi depois da grandiosa cerimônia promovida pelo rei Luís Felipe em torno da volta dos restos mortais de Napoleão Bonaparte à França, em 1840, que começaram a aparecer os napoleões de hospício. Só naquele ano entraram em Bicêtre catorze imperadores. A partir de sua queda definitiva em 1815, com a consequente deportação para a distante ilha de Santa Helena, o fascínio pela figura de Napoleão fora crescendo, à medida também que problemas políticos e econômicos diminuíam a força simbólica dos últimos Bourbon: Luis XVIII e Carlos X. Segundo Murat, a trajetória de Napoleão, o fato de sua legitimidade não ter sido herdada mas conquistada pelas armas e por seu gênio político; o fato de ser caso único, até então, de um aventureiro que conseguiu chegar sozinho ao comando do Estado, favoreciam a construção de uma mítica e estimulavam na sociedade o culto ao grande homem e o desejo da glória individual.

22 É grande o contraste entre o herói guerreiro e sua saga e o rei-cidadão, Luís Felipe e seu reinado sem alma nem bravura, dominado por banqueiros e especuladores. A Luís Felipe, como disse um contemporâneo, faltava majestade. Sua figura despojada de pai de família bonachão, sem os acessórios, as atitudes e o cerimonial da realeza, deixava frias as imaginações. Os alienados, diz Murat, quando pensavam nele, na maioria das vezes, o confundiam com um outro paciente ou, no máximo, com o diretor do asilo. Luís Felipe desativava o delírio identificatório, não estimulava a loucura, pois, ainda segundo a autora, o simbolismo da função real precisa ser encarnado para se tornar delirável. Na descrição de Murat, o homem que se acha Napoleão assume um perfil autoritário, caprichoso e colérico. Sua atitude é sempre imperial porque ele não reina só sobre a França, é o senhor do universo, cujos poderes são ilimitados e a cuja vontade tudo deve se curvar.

23 A esse tipo de loucura que consiste em tomar-se por uma grande personalidade, Esquirol deu o nome de monomania orgulhosa ou ambiciosa. Seus portadores seriam vítimas de uma paixão anterior à manifestação da doença e esta não seria senão o exagero das ideias, dos desejos, das ilusões de futuro pré-existentes, seu excesso mórbido. A monomania orgulhosa seria uma doença tipicamente romântica, pois a loucura do século XIX, segundo um especialista, é o orgulho. Antes, nunca se tinha visto tantos homens se apresentando como salvadores, capacidades, talentos de primeira ordem. Mas, indaga Murat, da análise do acontecimento desencadeador à elaboração de uma monomania dita “orgulhosa” ou “ambiciosa” por quais etapas se passa à construção intelectual da loucura e de suas relações com a história política?

1848 – Os democratas alucinados ou a doença democrática

24 Como se elabora e se articula, no século XIX, o discurso entre o ideológico e o patológico?

25 Em 1850, Carl Theodor Grodeck (pai de Georg, considerado por Freud analista incomparável), lançou na Alemanha um livro intitulado A doença democrática: nova espécie de loucura. Inspirado na revolução de 1848, na França, o livro de Grodeck era o

Artelogie, 14 | 2019 168

produto das reflexões de um nacionalista ultraconservador acerca dos efeitos daninhos das revoluções. Ali, Grodeck desenvolvia ideias do tipo: o estado deve ser o defensor da ordem; o casamento, a educação, a disciplina, a moralidade, a obediência, o sentimento nacional e o amor à pátria constituem a base da sociedade. Considerava que os que os desrespeitavam, cedendo às paixões egoístas, promovendo um sistema de negação, e de amor à liberdade sem direção e sem limites, caíam no erro da loucura.

26 A grande ampliação do corpo de eleitores promovida em 1848, a partir da inclusão de todos os homens, inclusive criados, soldados e pobres em geral, fizeram com que este passasse de 250 mil cidadãos a 9,5 milhões. No espaço de alguns meses, a política passou a ser assunto de que se ocupavam todas as pessoas, inclusive as mulheres. A ascensão do movimento feminista a partir da atuação de saint-simonianos e fourrieristas, trouxera as mulheres para a vida política. No entanto, essas ativistas suscitavam mais ódio que admiração por parte da sociedade, inclusive no próprio campo político a que estavam vinculadas. Nos arquivos de Charenton, as ativistas de 1848 que por razões diversas ali ingressaram, são apresentadas em relatos irônicos, nos quais os alienistas comentam sobre a arrogância de suas pretensões e sobre o quanto são pitorescas as situações e atitudes em que se colocam. Herdeiras das tricoteiras do Terror, eram descritas assim pelos contemporâneos: essa virago abandonou o papel de esposa e mãe, passa o tempo lendo os jornais sem compreender o conteúdo e a tagarelar em improváveis clubes políticos.

27 Seu par perfeito seria o louco herdeiro do jacobino dos massacres do Terror e do insurreto dos três dias gloriosos da Revolução de 1830. Hirsuto, infatigável, galvanizado pela paixão política, esse ativista movido por uma paixão febril se torna figura consagrada em 1848. O sentimento de orgulho democrático propiciado pelas mudanças nas regras eleitorais havia exaltado as cabeças dessas pessoas que nunca tiveram nada e que, agora, munidas do voto, tinham pressa em melhorar de condição. Para Murat, o delírio a que eventualmente essa paixão cívica levava seria um refúgio e uma consolação diante do horror de uma vida que, mesmo depois das conquistas democráticas, continuava sem saída.

28 É no contexto da revolução de 1848 que o asilo se transforma em uma gigantesca máquina de corrigir erros, submeter corpos e controlar consciências, o que demonstraria a associação precoce da psiquiatria com uma tendência totalitária. Um dos precursores dessa tendência foi Bergeret, que não fazia diferença entre um delírio e um programa político. Insurretos e insanos passaram a ser mostrados como frutos da mesma árvore: afinal, se uns querem derrubar a ordem estabelecida, os outros contestam a ordem da razão. 1848 desencadeia uma onda repressiva no tratamento destinado a curar a loucura democrática, e essa tendência a tratar radicais como loucos se acentuaria a partir da Comuna, em 1871. A partir de então, muitos procurariam definir o que seria o monomaníaco comunista: aquele que não reconhece mais senão um valor, a virtude, e que elimina todas as separações artificiais, as distinções arbitrárias; aquele que só tem uma preocupação, a felicidade comum e que acredita que uma fraternidade deve governar o mundo.

29 Se esses comunistas são ou não loucos é a questão que divide o campo psiquiátrico. Para Morel, os communards não seriam alienados, mas, sim, monstros da ordem moral, marginais responsáveis por seus atos. Ele se dedica a denunciar as origens marxistas e, portanto, alemãs da Internacional e procura estabelecer o que separa a alienação mental da responsabilidade moral. Conclui Murat: ao dar-lhes uma consciência, Morel

Artelogie, 14 | 2019 169

reabilita os insurretos em sua lucidez para melhor condená-los como perigosos delinquentes. Já Boismont os considera loucos furiosos, doentes a serem encarcerados. Tanto os energúmenos, quanto seus simpatizantes seriam fanáticos que sonhariam com uma revolução do mundo por meios impraticáveis. Vítimas da loucura demagógica, teriam sobre a família, a propriedade, a individualidade, a liberdade, a inteligência, a constituição da sociedade ideias tão contrárias à natureza humana que somente a loucura as poderia explicar. Restava saber a origem dessa doença.

30 Laborde dizia que se tratava de uma tara hereditária que os predispunha à loucura: uma espécie de loucura orgânica que se encontrava adormecida até ter sido despertada pelos acontecimentos políticos. Já Prosper Despine dava a essa epidemia um nome: socialismo, doença daqueles cujo objetivo era destruir os valores fundamentais da civilização. Guiados pela cobiça e o amargor, pela inveja e a preguiça, os revolucionários seriam niilistas sem programa. Sua palavra era desacreditada, pois não podiam ser normais pessoas que pregavam: a separação da igreja do estado; o ensino leigo, gratuito e obrigatório; a igualdade salarial entre homens e mulheres; a gratuidade das certidões de cartório, a supressão do trabalho noturno dos padeiros, etc.

31 Percorrendo praticamente todo o século XIX, a pesquisa de Laure Murat nos proporciona um painel das políticas públicas parisienses voltadas para o tratamento dos loucos. Ao mesmo tempo, apresenta também um quadro das manifestações de alienados cujos delírios estiveram associados aos episódios políticos mais dramáticos daquele século. A era das revoluções foi também a era da loucura e de experiências sobre a melhor forma de tratá-la. Os médicos que se dedicaram às investigações sobre a doença foram também atingidos de alguma maneira pelos episódios históricos que engolfaram toda a sociedade. De evento salutar para Pinel, no final do XVIII, a revolução se converteria em expressão máxima da loucura com o aparecimento dos revolucionários comunistas na década de 70 do XIX. As duas perspectivas, em que o diagnóstico da doença estava contaminado por questões ideológicas, pareceriam falhas aos olhos do século que viria. Ainda seria preciso esperar algumas décadas para o surgimento de Sigmund Freud.

32 MURAT, Laure. O homem que se achava Napoleão – por uma história política da loucura. Três Estrelas, São Paulo, 2012, tradutor Paulo Neves.

33 .

AUTOR

ISABEL LUSTOSA

Fundação Casa de Rui Barbosa. Pesquisa em história.

Artelogie, 14 | 2019 170

Entretien(s)

Artelogie, 14 | 2019 171

Artelogie N°14 : Entretien avec Rosalina Estrada Urroz.

Rosalina Estrada Urroz, Benemérita Universidad Autónoma de Puebla y México

Este medio no se puede ver aquí. Por favor refiérase a la edición en línea http:// 1 journals.openedition.org/artelogie/4162

Artelogie, 14 | 2019 172

Varia

Artelogie, 14 | 2019 173

“The sense of the past”: the historical sensibility in Lionel Trilling’s literary criticism

Luiza Larangeira da Silva Mello

1

2 Since Hayden White published Metahistory, in 1973, theorists of history and historians in general have been interested in the poetical and rhetorical aspects of historiographical texts. Inversely, they have more recently inquired into the epistemological potential of literature and the historical dimension of the knowledge produced by literary works. In a special issue of the prestigious French review Annales, entitled Savoire de la littérature and published in 2010, the editors Étienne Anheim and Antoine Lilti declare that “rather than track down the portion of fiction, narration, or stylistic invention in the texts of historians,” the essays in the issue intend “to question the nature of the knowledge carried by literature.” (Anheim; Lilti, 2010: 253)1 New as these questions might have seemed to the historical theorist in 2010, they had already been posed, explicitly or implicitly, by twentieth century literary theorists and critics such as Erich Auerbach, Mikhail Bakhtin, and Lionel Trilling.

3 In this essay I intend to explore some possibilities of dialogue between History and Literature through the works of the American literary critic Lionel Trilling (1905-1975). I will be doing this in two different ways: I will both analyze Trilling’s argument in favor of the historicity of literature and will relate this argument to Trilling´s interest in the history of sensibilities, especially the history of moral sensibility, or, to use his own phrases, the “moral imagination” (Trilling, 2008: 107) and the “moral life” (id., 1972:1). Finally, I intend to trace the historicity of Trilling’s own arguments. In doing so, I hope to show how Trilling´s literary criticism can still – nearly 45 years after his death – offer a contribution to historians who are interested in analyzing literary works, particularly those interested in the history of sensibilities.

4 If I succeed to do so, I will be able to argue that Trilling´s defense of literature´s historicity implies a cultural criticism in both a broad and a narrow sense. In a broad

Artelogie, 14 | 2019 174

sense, Trilling’s cultural criticism puts him among some eminent nineteenth and twentieth century philosophers, sociologists, and literary critics, who developed theories about modern western societies, such as Max Weber, Georg Simmel, Karl Marx, Friedrich Nietzsche and Sigmund Freud (the latter three being avowedly major intellectual influences on him). In a narrower sense, Trilling focuses his criticism on American culture and its lack of historical sense – which makes it modern par excellence. His criticism of American culture makes him part of a strong American intellectual tradition, which includes writers such as Nathaniel Hawthorne and Henry James.

5 However, unlike Hawthorne and James, who came from Anglo-American protestant stock, Trilling came from a Jewish middle-class immigrant family settled in New York and moved upward on the social ladder by means of intellectual and academic life, graduating from Columbia College in 1925. In the following decade, he became part of the group known as the New York Intellectuals and frequently published in the Partisan Review, both associated, in the late 1930s and the 1940s, with a Jewish anti-Stalinist left. 2 Nonetheless, as Thomas Bender has noted, though the New York Intellectuals are usually connected to leftist radicalism, at least during the 1930s, Trilling’s formative influences can be traced not so much to Marxism as to the “liberal humanism” of the Columbia College Anglophilic curriculum in the 1920s (cf. ibid., 1931).

6 In the next sections I intend to show that there is a connection between Trilling’s liberal humanism and his argument in favor of the historicity of literature. Furthermore, I will contend that at the heart of this connection is the pivotal subject of Trilling’s work, that is, the ways in which the self is figured by literature. Though this is the theme of many of his essays, especially in his late work, I will focus on his famous 1972 book, Sincerity and Authenticity, which was based on a series of lectures delivered at Harvard University two years prior. Finally, I will venture to relate his analyses of the moral sensibility in this book to his defense, in his earlier work, of liberal humanism and the historicity of literature. To this end, I will draw upon several essays published in the 1940s in the Partisan Review and The Kenyon Review, and republished, in 1950, in his first volume of essays, The Liberal Imagination; with his 1943 book on E. M. Forster; and with the volume of essays called The Opposing Self, published in 1955.

Literature as a historical art

7 In Sincerity and Authenticity Trilling analyses the emergence of two historical values in the European literature and philosophy of the early modern and modern periods. These values can be grasped in the concepts of “sincerity” and “authenticity”. He opens the book’s first chapter, which is called “Sincerity: its origin and rise”, describing the ambivalent reaction shared by both academic works and common sense towards the idea that moral values are historical constructs. If, on the one hand, he argues, as we are generally aware of “the differences between the moral assumptions of one culture and those of another […] we find it hard to believe there is such thing as an essential human nature” (Trilling, 1972: 1); on the other hand, the moral life represented in Homer’s, Sophocles’, or Shakespeare’s works may seem so familiar to us that we are easily persuaded the values which form our moral sensibility are universally experienced in all cultures, all places, all times. This very ambivalence, continues Trilling, is felt towards the “element, the state or quality of the self which we call sincerity” (ibid.: 2). If, at first, we are inclined to think the word “sincerity” and the

Artelogie, 14 | 2019 175

value referred by it are “as old as speech and gesture” (ibid.), on deeper reflection we feel compelled to agree “that the word cannot be applied to a person without regard to his [or hers] cultural circumstances” (ibid.).Thus, while it is absurd to find the biblical Abraham, or Homer’s Achilles, or Beowulf either sincere or insincere, it is perfectly reasonable to inquire into the sincerity of Shakespeare’s, or Goethe’s, or Jane Austen’s characters.

8 In the pages following this preliminary presentation of his subject, Trilling tries to give the reader a more or less stable definition of the word “sincerity” through the analyses of some major works of European literature from Shakespeare to Matthew Arnold. I will come to this definition presently. I would first like to focus on Trilling’s hermeneutic method, which is a historical method. Trilling states that sincerity begins to be more and more figured by literary works at the moment when, in the early modern period of European history, the increase in social mobility is counterbalanced by the increase in the repression of social mobility. This dynamic unsettles the traditional individual identity as a group identity and generates the possibility for someone to “rise above the station to which he [or she] was born” (ibid.: 16), to become something other than he or she originally was. Thus, the preeminence of sincerity in early modern literature can only be fully understood if we take the historical sensibility related to the concept of sincerity into consideration. It is Trilling’s historical method that grounds René Wellek’s argument that Trilling’s criticism of literature should be understood as a criticism of culture (Wellek, 1979: 26)3.

9 Trilling’s historical method is not the result of an unconscious criticism practice. On the contrary, it is the outcome of decades of theoretical reflection on the principles of literary criticism. In an early essay titled “The sense of the past”, first published in 1942 in the Partisan Review and eight years later in The Liberal Imagination, Trilling contends that literature is related to history in three different if complementary ways. First, literature is historical, in his view, in the sense that it usually narrates, as the official history itself does, “personal, national, and cosmological events” (Trilling, 2008: 184). Secondly, literature is historical because it inevitably relates to a literary tradition and, in doing so, it incorporates and modifies literary history. Finally, for Trilling, literature is related to history in the sense that “side by side with the formal elements of the work, and modifying these elements, there is the element of history, which, in any complete aesthetic analysis, must be taken into account” (ibid.).

10 Trilling’s effort to demonstrate the historicity of literature and its close relation to the formal, aesthetic aspects of literary texts is avowedly an argument against the position taken by American literary theorists and critics who took part in the movement known as New Criticism. Trilling’s relationship with the New Critics is a complex one. Both criticized a kind of literary criticism that sought the meaning of literature in the social, economic, or political reality, a reality outside literature; or, as Thomas Bender put it, both had the “ambition to develop nonpolitical categories of literary analysis” (Bender, 1990: 327). However, as Joseph Frank has noted, Trilling, as opposed to the New Critics, implied that, even while literature could not and should not be explained by an external sociopolitical reality, literary works were able to shed some light on the sociopolitical and cultural reality (cf. Frank, 1978: 33-34). Adam Kirsch, in a 2011 book titled Why Trilling Matters, contends that twenty-first century critics and writers can still look up to Trilling, since “more than any twentieth-century American intellectual, Trilling stood for the principle that society and politics cannot be fully understood without the

Artelogie, 14 | 2019 176

literary imagination.” (Kirsch, 2011: s.p.) What those critics are saying – and I am inclined to agree with them here – is that, though Trilling rejects a kind of literary criticism that explains literature via an extra literary reality, he believes literature fashions and is fashioned by the culture it is a part of, and, therefore, can help us understand that culture. In other words, though Trilling acknowledges the relevance of the New Critics’ contention against the traditional nineteenth century liberal literary history, which grounds its scientific method in the search for the reflex of the external reality on the literary text, he claims that the New Critics defense of an absolute autonomy of literary works and of a purely formalistic analyses of these works disregard the ineluctable fact that “literature is an historical art” (Trilling, 2008: 184).

11 The lack of the sense of the past in American formalist criticism is understood by Trilling as part of a broader tendency of American liberalism to operate inside the realm of abstract ideas. When the New Critics, pronouncing literature’s complete autonomy, disregard the complex relationship between literature and history, they are claiming the independence of literature from culture and its social density. In doing so, they come close to the very liberal imagination they sought to keep away from. If the New Criticism and the liberal criticism are on opposite sides concerning their principles and methods of literary criticism – the first defending the autonomy of literature and the latter explaining it as a reflex of sociopolitical reality –, they are similar in their denial of the historicity of literary, cultural, social, and political values. In other words, Trilling seems to be implying that New Criticism is itself part of a broad American liberal tradition. Therefore, in order to understand the full extent of Trilling’s defense of the historicity of literature, it is first necessary to understand his criticism of American liberalism and his defense of a liberal humanism.

Liberal humanism

12 Academic studies on Trilling’s work usually argue that, in spite of his affiliation with the New York Intellectuals and the Partisan Review, during the 1930s, his Marxism “was more a passing episode” (Bender, 1990: 330) and “there is little Marxism in his works unless we consider simply historicism and determinism or a strong interest in class relations and in the problem of ‘alienation’ as Marxists” (Wellek, 1979: 27). If that is so, it is not a coincidence that the Marx quoted by Trilling in Sincerity and Authenticity is the young Marx of the Economic and Philosophical Manuscripts, whose mind “is more humanistic, in the sense of being less ambitious of scientific rectitude, than that of the author of the canonical works” (Trilling, 1972: 122). It is not a coincidence either that Trilling’s first collection of essays is entitled The Liberal Imagination. The collection’s title was not only a common phrase in the essays he published in the Partisan Review, but it had also already appeared in the title of the introductory chapter of his 1943 book on the work of the English writer Edward Morgan Forster, “Forster and the liberal imagination”.

13 It is not an easy task to tease out Trilling’s meaning of the words “liberal” and “liberalism” – and the same thing can be said about nearly all key categories in his work. However, as Thomas Bender has noted, there are two broad meanings of the word liberalism in Trilling’s writings. The liberalism he found dangerous was the one tied to political ideologies, in a “wide spectrum of American political opinion, from conventional progressive attitudes to those of fellow travelers and Stalinists” (Bender,

Artelogie, 14 | 2019 177

1990: 325), that is, a liberalism connected to Enlightenment rationalism and its sometimes blind faith in progress. The liberalism he appreciated was tinged with the colors of two main literary and philosophical traditions: a broad humanistic tradition, which prompted a “critical spirit” (ibid.) of self-scrutiny and the critical examination of the values shared in one’s society; and a British romantic literary tradition, “which proposed a richer awareness of power and a fuller appreciation of tragedy” (ibid.: 326), comprised of authors such as Keats, Wordsworth, and Matthew Arnold, all subjects of Trilling’s essays, books, and the courses he offered with Jacques Barzun at Columbia University for years.

14 This particular approach to liberalism, allied with his disillusionment of Soviet communism, by the end of the 1940s, and his unsympathetic comments on the students’ revolt in the late 1960s, earned Trilling the label of a conservative. Joseph Frank applied this label in an article entitled “Lionel Trilling and the Conservative Imagination” (Frank, 1978), published in 1956, a year after the publication of Trilling’s The Opposing Self. More recently, Michael Kimmage analyzed Trilling’s moderate liberalism together with Whittaker Chambers new-conservatism as part of what he calls the American culture “conservative turn” (Kimmage, 2009). I am, however, inclined to agree with René Wellek, when he argues that we cannot properly apply this label to Trilling “if we take ‘conservatism’ in any current political sense either in England or in the United States” (Wellek, 1979: 28). In spite of his criticism of the liberal imagination, “Trilling remained, undoubtedly, committed to the principles of liberalism and its criticism of the American business civilization as well as the ideals of equality, justice and freedom.” (ibid.)

15 However, I am here less concerned with Trilling’s political views or biases than with his interpretation of the liberal imagination as it is represented in literature. If we cannot precisely grasp the meaning of the word liberalism in Trilling’s essays, we can say, nonetheless, with some degree of certainty that, although Trilling is sympathetic to what he calls the “essential” liberal imagination (Trilling, 2008: xxi), which values the individual above institutions and collective allegiances, he also warns his readers against the liberal tendency to oversimplification. I believe the relation to the liberal tradition he attributes to Forster is very close to the relation to this tradition he himself nurtured. The following passage of his book on Forster seems to be representative of it: [Forster] stands in a peculiar relation to what, for want of a better word, we may call the liberal tradition, that loose body of middle class opinion which includes such ideas as progress, collectivism and humanitarianism. To this tradition Forster has long be committed – all his novels are politically and morally tendentious and always in the liberal direction. Yet he is deeply at odds with the liberal mind, and while liberal readers can go a long way with Forster, they can seldom go all the way. They can understand him when he attacks the manners and morals of the British middle class, when he speaks out for spontaneity of feeling, for the virtues of sexual fulfillment, for the values of intelligence; they go along with him when he speaks against the class system, satirizes soldiers and officials, questions the British Empire, and attacks the business ethics and the public schools. But sooner or later they begin to make reservations and draw back. They suspect Forster is not quiet playing their game; they feel he is challenging them as well as what they dislike. And they are right. For all his long commitment to the doctrines of liberalism, Forster is at war with the liberal imagination. (id.,1965: 13)

Artelogie, 14 | 2019 178

16 If Trilling shows his admiration for the liberalism of Forster, “who might say with Swift, ‘I have hated all nations, professions and communities, and all my love is for the individuals’” (ibid.: 9), he also admires him for escaping the “liberal mind’s […] simple logic” for which “good is good and bad is bad” (ibid.: 14). What Trilling likes about Forster’s manner is that it “will not tolerate absolutes” (ibid.: 12).

17 The same ambivalence towards liberalism appears in the preface to The Liberal Imagination. There, Trilling claims that there is an essential liberal imagination, which is open to reality’s “variousness and possibilities, which implies the awareness of complexity and difficulty”, but he also fiercely criticizes liberalism’s efforts to “organize the elements of life in a rational way” (id., 2008: xx); an effort that is blind to the fact that “the world is a complex and unexpected and terrible place which is not always to be understood by the mind as we use it in our everyday tasks” (ibid.). And although, when trying to define the liberal imagination he mentions European writers such as John Stuart Mill, Goethe, and Forster, on the other hand, when he talks about the nefarious tendencies of liberalism he focuses on American liberalism and how it shows itself in the American critics’, writers’, and readers’ relationship with literature.

18 Trilling is here fighting against a tendency in American culture – and also, as we have seen, in American literature and American literary criticism – to ignore reality’s ambiguities and paradoxes; a tendency as well to ignore the fact that the way human beings grasp reality is socially and culturally fashioned. These tendencies are related to the lack of the sense of the past, which traditionally distinguishes American culture.

Individual and society; self and culture

19 At the heart of Trilling’s criticism of American culture is his perception of the liberal imagination’s blindness to the ambiguities of reality, the belief that the relationship between human beings and the real is straightforward and instantaneous, and the ensuing difficulty Americans traditionally have in realizing that values are historical constructs. These features are grounded in the way American culture usually values individual autonomy over societal relationships.

20 This issue is more fully developed in another essay in the same collection, called “Manners, Morals, and the Novel”, published originally in The Kenyon Review, in 1948, and specially dedicated to the features of the novel and the way it relates to reality. In this essay, Trilling argues that the novel, as it evolves from the eighteenth century on, is a literary genre which specificity is to deal with the question of reality. He defines the question of reality as the “old opposition of reality and appearance, between what really is and what it merely seems” (ibid.: 207). This opposition between reality and appearance is, for Trilling, a social one, as it is grounded in the tense relationship between the individual and society. In other words, it is the opposition between what the individual really is and what she or he appears to be to society. The European novel, from the eighteenth to the twentieth century, grasps this opposition, which lies at the core of its main subject, namely, “the manners”.

21 Trilling understands manners not only as the expression of cultural customs, as the mores, but more inclusively as “that part of a culture which is made up of half-uttered or unutterable expressions of value” (ibid.: 206). His definition of manners points to the social dimension of culture, which is precisely the subject of the novel. According to

Artelogie, 14 | 2019 179

Trilling, the novel is born in a moment when the strictly rigid, almost static feudal social structure gives way to a more flexible one, in which “money is the medium that, for good or bad, makes for a fluent society. It does not make for an equal society but for one in which there is a constant shifting of classes, a frequent change in the personnel of the dominant class. In a shifting society great emphasis is put on appearance” (ibid.: 210). Thus, argues Trilling, snobbery, hypocrisy, and class are three pivotal subjects of the novelistic tradition.

22 At this point, Trilling declares that, with the exception of Henry James’ work, his description of the novel does not fit the American novel. And that is because, in Trilling’s words, “Americans have a kind of resistance to looking closely at society” (ibid.: 213) and to taking seriously the subjects of class, snobbery, and manners. He tries to understand this resistance by inquiring into the relationship of the American liberal imagination to reality. If, on the one hand, reality is of central importance to Americans, on the other hand, they usually refuse to deal with it in terms of reality’s ambiguities and paradoxes. For them, the opposition between reality and appearance is not a component of reality itself, but an opposition that excludes appearance from reality. In other words, for the American liberal imagination, “reality is whatever is external and hard, gross, unpleasant” (ibid.: 215), while the subject of novels is whatever is evanescent, frivolous, and internal to the author’s subjectivity.

23 Most of the issues Trilling deals with in “Manners, Morals, and the Novel” are expanded and more fully developed more than twenty years later in Sincerity and Authenticity. In his later book, Trilling resumes his old interest in the tense relation between reality and appearance, which is at the core of the novelistic genre. In the book’s first chapter, Trilling argues that the idea of sincerity implies three types of congruency. Firstly, a congruency between what someone really is and what he or she is aware of being. This aspect of sincerity is summed up in the verses of Shakespeare’s Hamlet, when Polonius advises his son Laertes This above all: to thine self be true And it doth follow, as night the day Thou canst not then be false to any man. (apud. Trilling, 1972: 3)

24 Secondly, sincerity implies a congruency between what someone really is and what she or he should be according to cultural values shared by a specific society, even if these values are thought to be universal values. They are related to what Schiller called “the archetype human being”, “an ideal man”, or, in Matthew Arnold phrase, the “best self” (ibid.: 5). Finally, sincerity implies a congruency between what someone really is and what he or she professes to be to society. This aspect of sincerity is present in Hawthorne admonition: “Be true! Be true! Be true! Show freely to the world, if not your worst, yet some trait by which the worst may be inferred” (ibid.).

25 At the core of these three types of congruency is the congruency between reality and appearance. It is no mere coincidence, then, that both the emergence of the idea of sincerity and the genesis of the novel can be located in the early modern period. What is, however, even more significant is that sincerity (as well as its opposites, hypocrisy and dissimulation) depends on the relationship between individual and society, which is the novel’s main subject. This dependency grounds the paradox of sincerity. Since sincerity depends on the congruency between someone’s true self and what this person seems to be in the eyes of society or what he or she should be according to the social

Artelogie, 14 | 2019 180

values, the very necessity of responding to society demands corrupts the integrity of the self. Though sincerity has had a long prestigious life, since its appearance in Shakespeare’s plays in the sixteenth century and until its centrality in the Victorian novel, the paradox inherent to the very economy of sincerity is responsible for its decline at the end of the nineteenth and during the twentieth century.

26 From the paradox of sincerity emerges, nonetheless, the idea of authenticity. The logic here is that the effort to be sincere to others, to adequate one’s self to the demands of society, alienates one from one’s true, authentic self: Society requires of us that we present ourselves as being sincere, and the most efficacious way of satisfying this demand is to see it that we really are sincere, that we actually are what we want our community to know we are. In short, we play the role of being ourselves, we sincerely act the part of the sincere person, with the result that a judgment may be passed upon our sincerity that it is not authentic (ibid.: 10-11).

27 Society not only represents a menace to a person sincerity, but, above all, to his or her authenticity. Society may corrupt the sincerity of an individual, but, paradoxically, any individual depends on society to be sincere. Authenticity, on the other hand, dispenses (or presumably dispenses) the relationship between the individual and society, as it dispenses both the congruency between what someone appears to be and what she or he really is and the congruency between what someone truly is and the general social values. The only congruency required to reach the state of authenticity is the congruency between one and oneself. The only congruency required is the one prompted by the first of Shakespeare’s lines quoted above: “This above all: to thine own self be true.” In others words, to be authentic we must be true to our authentic self. But where and what is this authentic self?

28 One attempt to answer this question was made by turn of the twentieth century psychoanalysis, which Trilling addresses in the last chapter of the book, entitled “The Authentic Unconscious”. Freud’s idea that “in the human mind there are two systems, one manifest, the other latent or covert” (ibid.: 140-141), that is, one conscious, the other unconscious, renders sincerity an obsolete value, while demonstrating affinity to the idea of authenticity: The therapeutic process of psychoanalysis would seem to constitute a very considerable effort of self-knowledge, a strenuous attempt to identify and overcome in the mental life of the individual an inauthenticity which is not the less to be developed because it is enforced and universal. And this is so not only by reason of the nature of what has been concealed and is now to be discovered, because, that is, the idea of authenticity readily attaches itself to instinct, especially libidinal instinct, but also because a profound inauthenticity of the mental life is implied by the nature of neurosis, by its being a disguised substitute for something else. Psychoanalysis speaks of the pain or malfunction of neurosis as a ‘substitute gratification’ – what could be more inauthentic than an impulse towards pleasure which gains admission into consciousness by masquerading as its opposite?” (ibid.: 143-144)

29 The kinship between the idea of authenticity and the theory of psychoanalysis is reinforced, according to Trilling, by the fact that “a conception of society had been central to Freud’s psychology” (ibid.: 150). While the conscious part of the mind, the ego, “was surrogate of society”, the other part (I believe we could call it the authentic part), the id, “was defined by its pre-social impulses” (ibid.). However, later developments of psychoanalytic theory, in particular in Freud’s 1930 book, Civilization

Artelogie, 14 | 2019 181

and Its Discontents, render this dualism of the mind much more complex. In this book, Freud argues that there is an unconscious part of the ego which is not the id, but, on the contrary, is the part responsible for the id’s repression, the part responsible for “moral judgment and self-criticism” (ibid.: 151), the part he calls the “superego”. Though it “derives its authority from society, […] in point of repressiveness the superego is far more severe than society, whose purposes are largely practical and therefore controlled by reason” (ibid.: 152).

30 Trilling’s analysis of the Freudian theory of the mind points to one of the inherent paradoxes posed by the modern aspiration to authenticity. The paradox is that, while we are inclined to search for the true, authentic self in our unconscious self, the “movement of the superego from rational pragmatic authority to gratuitous cruel tyranny” (ibid.: 154) makes this unconscious part of our self deeply inauthentic. Moreover, Trilling will contend that “the hegemony of this ferocious idol of the psychic cave may indeed not have been required or intended by civilization, but surely in tolerating the great fraud civilization is profoundly implicated in its grotesque inauthenticity” (ibid.: 155).

31 The paradox of authenticity can also be found in the very meaning of the concept. Authenticity’s admonition that we should be true to our own selves exhorts us to free ourselves from the repressions and the limits imposed on us by society, and even by culture. Authenticity supposes the existence of a self that is not inscribed in the limits of society or culture, a self that is only one’s own self, that is, one’s true self. The search for authenticity, then, tends to destroy the cultural particularities that fashion a singular self. And in doing so, it ultimately destroys the self’s singularity. If the authentic self is a self that is not socially and culturally fashioned, we may assume the possible existence of a self fashioned by a pre-cultural human nature, a self that is, therefore, universally human. How can a universal self be a singular self?

32 This is a problem that most of the modern western intelligentsia had to deal with. A problem that was at the heart not only of the sociological, anthropological, and philosophical theories of modernity, but also at the heart of some literary works at the turn of the twentieth century. In his well-known 1903 essay The Metropolis and the Mental Life, George Simmel states that “the broadest and the most general contents and forms of life are intimately bound up with the most individual ones” (Simmel, 1971: 333). Simmel seems to be implying that the less a person is subject to the pressures of communitarian relationships, the less his or her identity is defined by his or her belonging to a group – be it family, church, corporation, country, social position etc. – the more this person gains in individual freedom and the more his or her identity is defined by the universal features that characterize human beings. This idea is at the core of a humanistic conception of the self and of the modern notion of individuality – tributaries of both Enlightened and Romantic traditions –, which evolved from the second half of the eighteenth century and reached its apex during the nineteenth century.

33 As James Clifford has noted, “the European bourgeois ideal of an autonomous individuality was widely believed to be the natural outcome of a long development, a process that, though pressured by various disruptions, was assumed to be the basic, progressive movement of humanity” (Clifford, 1986: 140). Clifford argues that this ideal is connected to a conception of culture as “a single evolutionary process” (ibid.). By the turn of the twentieth century, however, “a new ethnographic conception of culture

Artelogie, 14 | 2019 182

became possible. The word began to be used in the plural suggesting a world of separate, distinctive, and equally meaningful ways of life” (ibid.). This new historical meaning of culture became intertwined with the idea that the self is culturally constituted. The idea that “a self belongs to a specific cultural world much as it speaks a native language” (ibid.), an idea that seemed self-evident during the entire twentieth century – and that, in large measure, still seems so even in the second decade of the 21th century – was being hammered out around 1900.

34 Trilling is aware of this historical shifting in the meaning of the word culture, and aware, as well, of the historicity of the idea that selves are culturally constituted. In his view, it is no coincidence that the period during which prevailed the “ideal of an autonomous individuality” was the same period during which was gestated the idea of authenticity. This idea had been in gestation at least since the second half of the eighteenth century, when the paradoxes of sincerity were figured in works such as Rousseau’s Confessions and Molière’s Le Misanthrope. As authenticity suggests “a more strenuous moral experience than ‘sincerity’, a more exigent conception of the self and of what being true to it consists in, […] and a less acceptant and genial view of the social circumstances of life” (Trilling, 1972: 11), it begins to be conceptualized at the end of the eighteenth century, when the idea of self becomes characterized by “its intense and adverse imagination of the culture in which it has its being” (id., 1979: I).

35 It is also no coincidence that a hundred years later, around 1900, at the same moment when emerges the idea that selves are culturally constituted, authenticity as a value reaches its preeminence over the value of sincerity. This simultaneity is at the heart of the paradox that marks the concept of authenticity. “At the behest of the criterion of authenticity”, says Trilling, “much that was once thought to make up the very fabric of culture has come to seem of little account, mere fantasy or ritual, or downright falsification” (id., 1972: 11). In other words, in order to be authentic, to be true exclusively to one’s self, one has to free oneself from the bonds of culture. But how is this possible if it is culture itself that constitutes the self? Being authentic, being true to one’s self paradoxically involves becoming free from one’s self, since the self is fashioned by culture.

36 If this paradox could hardly be solved, Trilling argues that it was at least much exploited by the modern theories of art. The paradox was present in Oscar Wilde statements that “the first duty in life is to be as artificial as possible” (apud. Trilling, 1972: 118) and that “Man is least himself, when he talks in his own person. Give him a mask and he will tell you the truth” (apud. Trilling, 1972: 119). Being the symbol of a mere social appearance, the mask was also a sign of inauthenticity, as it had been a sign of insincerity. But, paradoxically, using a mask was deemed the way to become free from the culturally fashioned self, to become authentic. Wilde was aware that this enterprise was only possible through art. “In art,” he says, “there is no such thing as a universal truth. A truth in art is that whose contradictory is also true” (apud. Trilling, 1972: 120).

37 It is, thus, not by chance that authenticity has become a central value both to modern literature and literary criticism at the first half of the twentieth century. The praise of authenticity is, according to Trilling, at the core of modern literature and criticism’s paradoxical relation to the idea of self. While twentieth century writers and critics are supremely “preoccupied […] with the self and with the difficulties of being true to it” (ibid.: 7), they nonetheless emulate authors of literary works to transcend their own

Artelogie, 14 | 2019 183

selves – particularly the aspects of their selves that are shaped by culture and society – and to become authorial personas. “The doctrine of the impersonality of the artist” (ibid.: 8), as Trilling calls it, and its inherent paradox were followed by literary artists and critics in their sensitivity to “the implications of the poet’s voice in its unique quality” and their “insistence that the poet is not a person at all, only a persona” (ibid.), and that his or her work is therefore independent from his or her cultural, social, and historical circumstances.

38 According to Trilling, if this longing for an authentic art generally characterized the modern western literature and criticism in the first half of the twentieth century, both in Europe and in America, in the latter it was increased by the American tendency to conceive the individual both as a unique and a universal being, disregarding the fact that an individual’s self is culturally constructed. Therefore, though Trilling does not deal particularly with the American case, when he analyses the appreciation for authenticity associated with modern literature, in Sincerity and Authenticity, he does not refrain from specifying the nature of American sincerity and American authenticity in the book. More than that, his analysis suggests that if the search for authenticity is a characteristic of modern art in general, it is stronger in the American case, since American culture traditional lack of the sense of the past makes it “modern” par excellence.

Trilling and the American intellectual tradition

39 The fifth chapter of Sincerity and Authenticity, entitled “Society and Authenticity”, reworks the historical dynamics between sincerity and authenticity focusing on nineteenth century English literature. Quoting a well-known George Eliot anecdote, Trilling contends that both English common sense and English literature are marked by the idea of categorical duty to which the individual has to submit in order to preserve his or her authenticity: …plainly this was the implicit belief of the English novelists of the nineteenth century. They would all of them appear to be in agreement that the person who accepts his situation, whatever it may be, as given and necessary condition of his life will be sincere beyond question. He will be sincere and authentic, sincere because authentic. Indeed, the novelists understand class to be a chief condition of personal authenticity; it is their assumption that the individual who accepts what a rubric of the Anglican catechism calls his 'station and its duties' is pretty sure to have a quality of integral selfhood [...] a man is what he is by virtue of his class membership. His sentiment of being, his awareness of his discrete and personal existence, derives from his sentiment of class. And the converse was also true. The novelists gave judicious approval to upward social mobility so far as it could be achieved by energy and talent and without loss of probity. But they mercilessly scrutinized those of their characters who were ambitious to rise in the world, vigilant for signs of such weakening of the fabric of personal authenticity as might follow from the abandonment of an original class position. It was their presumption that such weakening was likely to occur; the names given to its evidences, to the indication of diminished authenticity, were snobbery and vulgarity.” (ibid.: 114-115)

40 The idea that the individual’s integrity and authenticity depend on his or her propriety, on the adequacy to his or her social position, or class, is an extension, to the society as a whole, of the relationship between the aristocracy and its social position. The English concept of gentleman is perhaps the most eloquent manifestation of this. To the English

Artelogie, 14 | 2019 184

versions of sincerity and authenticity Trilling compares the American versions of these values, which is intertwined with the idea of innocence. Referring to Henry James’s treatment of this point, Trilling ironically declares that: Henry James is not simple on the subject of anything that has to do with Americans, but the general tendency of his work would seem to confirm the opinion which once prevailed – how curious it now seems! – that Americans, being wholly innocent, were wholly sincere, that American sincerity was as certified as that of children, peasants and nineteenth-century dogs. (ibid.: 112)

41 The Emersonian theme of the child as a representative of the innocence that ought to characterize the individual in a democratic society, a theme taken up in most of James’s novels, is the substance of Trilling's comments on James’s work. The American innocence greatly differs from the sincerity that characterizes the relationship between individual and society in English culture. English sincerity is grounded in the social sphere. American sincerity – we should say American innocence – is pre-social. It is an Adamic, prelapsarian innocence. Just as there exists a dynamic relation between the values of sincerity and authenticity in English literature, there is a similar dynamic in American literature. In the latter, authenticity is conceived as the quality expressed by the individual’s exclusive fidelity to their inner self, a fidelity corrupted by the influence of society. English sincerity and American innocence, as well as their conceptions of authenticity, refer to two modes of self-fashioning, to which Trilling alludes through the Hegelian categories of “honest soul” and “disintegrated consciousness:” Americans, we might say - D. H. Lawrence did in fact say fifty years ago - had moved into that historical stage of Spirit which produces the ‘disintegrated’ or ‘alienated’ consciousness. What defines this consciousness, according to Hegel, is its antagonism to ‘the external power of society’, the wish to be free of imposed social circumstances. The English Belonged to an earlier historical development, in which Spirit manifests itself as the ‘honest soul’ whose relation to society is one of ‘obedient service’ and ‘inner reverence’. The Hegel represents the ‘disintegrated consciousness’ it is beyond considerations of sincerity. But the ‘honest soul’ has sincerity as its essence. [...] The English sincerity depends on the English class structure. (ibid.: 114)

42 The passage touches on some points worth developing. The Hegelian categories are taken from Hegel's commentary on Diderot’s essay Le Neveu de Rameau, which Trilling had previously analyzed in the book’s second chapter. Diderot’s essay takes the form of a dialogue between the nephew of the famous French composer Jean-Philippe Rameau and Diderot himself. A composer himself, the nephew is relegated to ostracism, while his uncle receives all the laurels of fame. The dialectical relationship between career failure and the constant pursuit of success, in addition to an exacerbated discipline, leads the nephew to develop the ability to mimic the social roles that may be useful to him in gaining career benefits. It leads, too, to a harsh judgment on the very notion of society. Society is seen by the nephew as corrupting human virtues and as “a mere histrionic representation” in which “every man takes one or another ‘position’ as the choreography of society directs” (ibid.: 31). This criticism, in tune with that of the French moralists of a hundred years prior, and based on an Augustinian conception of virtue, does not take sincerity as the ground for societal relations, but takes these relations as essentially insincere. For Hegel, the Diderot in the dialogue represents the “honest soul”, which has a submissive relation to the “external power of society” (ibid.: 35), while Rameau’s nephew represents an individuality that is “disintegrated

Artelogie, 14 | 2019 185

consciousness” (ibid.), whose relation with the external social power is a relation of antagonism.

43 What is at stake when Trilling compares the English culture to the American is the difference between a society in which individuality is formed as the “honest soul” and a society in which individuality appears as a “disintegrated consciousness”, an individuality that antagonizes the society – and the culture – of which it is a part. Quoting Henry James, Trilling defines American society, compared to the English society, as “thinly composed, lacking the thick, coarse actuality which the novelist […] needed for the practice his [or her] craft. It did not offer him the palpable material, the stuff, out of which novels are made” (ibid.: 113).

44 I believe Trilling’s criticism of the New Critics’ formalism in his early essays is a reaction to a similar formalism he perceives in American national culture. According to him, Americans might be characterized, in Hegel’s words, by their “‘disintegrated’ or ‘alienated’ consciousness”. In other words, they wish to be free from the very grip of history. Though not mentioning it explicitly, Trilling is referring to a nineteenth century branch of American literary history, which includes authors such as Ralph Waldo Emerson, Walt Whitman, and Henry David Thoreau, affiliated with a movement known as Romantic Transcendentalism, which sees history mostly as a burden that impairs the individual creative energy and moral sense.

45 However difficult it may be to sum up, in a few lines, the essence of this complex movement, it is possible to say it has created a new interpretation of the English- American Calvinist tradition, in which the sovereignty and transcendence of the Christian deity are transferred to the individual. In the Puritan tradition, the values of the community sprung from a transcendent, sovereign, and mysterious God, and assumed, in this fashion, an uncontestably absolute character. The Romantics shift those absolute foundations from God to the individual. In this perspective, the relationship of the individual to truth and to the real is direct, objective and absolute – it is not mediated by the particular and variable character of history, of social traditions and cultural conventions. It is in this sense that Emerson, in his famous essay, Self-Reliance, praises the individual who trusts his own mind completely, who trusts his deeply personal and almost intuitive wisdom that is free from any obligation to any past or present authority, which would only restrain the authenticity of individual thinking. For Emerson and his fellows in the transcendentalist movement, the ways of life and the values of the European societies, precisely because their claim to legitimacy derived from the authority of tradition, were regarded as corrupted and degenerated versions of the original Christian values that could only be reclaimed in a direct relationship between individuals and the world around them (cf. Emerson, 1983)4.

46 This was not, however, an exclusive point of view about the relation of the individual to society within the American intellectual tradition. An alternative point of view was offered by American authors such as Nathaniel Hawthorne and Henry James, who believed that the sense of the past was not only the very foundation of both the individual’s aesthetic sensibility and moral sense, but also the lens that mediates every person’s perception of the world. Both Hawthorne and James were interested in the individual’s search for autonomy from the external power of society, but they were, at the same time, aware to the fact that every individual exists only through his or her relationship with society.

Artelogie, 14 | 2019 186

47 I believe Trilling himself becomes part of this alternative branch of American literary history when he approaches literature and history in his literary criticism. Although he does not conceal his admiration for what he calls the “classic modern literature” (Trilling, 1972: 8) and its search for authenticity and the autonomy of the self, he especially admires this search when it is accompanied by the awareness, present in the works of writers such as Hawthorne, James, and Forster, that every self is inevitably historically shaped. It is this awareness that also shapes Trilling’s own search for the historicity of literature.

BIBLIOGRAPHY

ANHEIM, E.; LILTI, A. Introduction: Savoir de la littérature, Annales. Histoire, Sciences Sociales, 65e année, n. 2, 2010, pp. 253-260.

BENDER, Thomas. Lionel Trilling and American Culture, American Quarterly, Vol. 42, No. 2 (Jun., 1990), pp. 324-347.

BLOOM, Alexander. The Prodigal Sons. The New York Intellectuals and Their World. New York; Oxford: Oxford University Press, 1986.

CLIFFORD, James. On Ethnographical Self-fashioning. In: Thomas C. Heller, Morton Sosna, David E. Wellbery. Reconstructing individualism: autonomy, individuality, and the self in Western thought. Stanford: Stanford University Press, 1986.

EMERSON, R. W. Essays & lectures. New York, N.Y.: The Library of America, 1983.

FRANK, Joseph. Lionel Trilling and the Conservative Imagination, Salmagundi, No. 41, Lionel Trilling (Spring 1978), pp. 33-54.

KIMMAGE, Michael. The Conservative Turn: Lionel Trilling; Whittaker Chambers, and the lessons of Anti-Communism. Cambridge, MA; London: Harvard University Press, 2009.

KIRSCH, Adam. Why Trilling Matters. New Haven: Yale University Press, 2011.

SIMMEL, Georg. The Metropolis and the Mental Life. In: On Individuality and Social Forms. Chicago: The University of Chicago Press, 1971.

TRILLING, L. E. M. Forster. New York: New Directions Paperbook, 1965.

TRILLING, L. The Liberal Imagination: Essays on Literature and Society. New York: New York Review Books, 2008.

TRILLING, L. The Opposing Self. Nine Essays in Criticism. New York; London: Harvest/ HBJ Edition, 1979.

TRILLING, L. Sincerity and Authenticity. Cambridge; London: Harvard University Press, 1972.

WELLEK, René. The Literary Criticism of Lionel Trilling, New England Review, Vol. 2, No. 1 (Autumn, 1979), pp. 26-49.

Artelogie, 14 | 2019 187

ENDNOTES

1. “Plutôt que de traquer la part de fiction, de narration ou d’invention stylistique dans les textes des historiens, pourquoi ne pas s’interroger sur la nature du savoir dont la littérature est elle- même porteuse ?” 2. As Alexander Bloom noted, though they resisted to identify themselves as a group, the New York Intellectuals came together in the 1930s and had many things in common: “Coming from the immigrant ghettos in which theirs parents have settled upon arrival in America, they moved toward the center of American intellectual life by a circuitous route through left politics and the avant-garde cultural life of the 1930s.” (Bloom, 1986: 4). 3. According to Wellek “it is not easy to focus on the literary criticism of Lionel Trilling if literary criticism is understood strictly as comment on literature: theories about it, principles, and specific texts. Trilling belongs, with Edmund Wilson, to critics of culture, in particular American culture, and he is often concerned with questions of politics, pedagogy, psychology, and self- definition, which are only remotely related to literature.” (Wellek, 1979:26) 4. The following passage of Emerson Self-Reliance is representative pf this position: “I remember an answer which when quite young I was prompted to make to a valued adviser, who was wont to importune me with the dear old doctrines of the church. On my saying, What have I to do with the sacredness of traditions, if I live wholly from within? My friend suggested, - ‘But these impulses may be from below, not from above.’ – I replied, “They do not seem to me to be such; but if I am the Devil’s child, I will live then from the Devil.’ No law can be sacred to me but that of my nature. Good and bad are but names very readily transferable to that or this; the only right is what is after my constitution, the only wrong what is against it. A man is to carry himself in the presence of all opposition, as if everything was titular and ephemeral but he. I am ashamed to think how easily we capitulate to badges and names, to large societies and dead institutions. Every decent and well-spoken individual affects and sways me more than is right.” (Emerson, 1983: 261-262)

ABSTRACTS

In this article, I intend to look into the issue of the relation of History to Literature through the works of the American literary critic Lionel Trilling (1905-1975). Therefore, I will both analyze Trilling’s argument in favor of the historicity of literature and will relate this argument to Trilling´s interest in the history of sensibilities. Finally, I intend to look into the historicity of Trilling’s own arguments. In doing so, I hope to show that Trilling becomes part of a particular branch of American literary history, alongside Nathaniel Hawthorne and Henry James, which is marked by the awareness that every self is inevitably historically shaped.

Dans cet article, j’aborde la question de la relation entre l’histoire et la littérature à travers l’oeuvre du critique littéraire américain Lionel Trilling (1905-1975). Ainsi, je vais analyser son argument en faveur de l’historicité de la littérature, le mettant en rapport avec son intérêt par l’histoire des sensibilités. En outre, je me penche sur l’historicité propre à la démonstration de L. Trilling. Ce faisant, j’espère montrer que l'auteur, tout comme Nathaniel Hawthorne et Henry James, inscrit sa pensée dans une tradition de l’histoire littéraire américaine dont la marque distinctive est de comprendre tout individu comme étant, de manière inévitable, historiquement façonné.

Artelogie, 14 | 2019 188

INDEX

Mots-clés: Lionel Trilling; historicité de la littérature, tradition littéraire américaine. Keywords: historicity of literature; American literary tradition.

AUTHOR

LUIZA LARANGEIRA DA SILVA MELLO

Professor at Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Artelogie, 14 | 2019 189

Artelogie Expo Revue

Artelogie, 14 | 2019 190

Apresentação do Acervo Sandra Jatahy Pesavento do IHGRGS (Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul)

Nádia Maria Weber Santos

Apresentação do Acervo Sandra Jatahy Pesavento do IHGRGS (Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul)

Introdução

1 O arquivo pessoal Sandra Jatahy Pesavento (1946-2009) – Acervo SJP, como denominamos – está depositado no Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRGS) desde final de 2014, por doação da família Pesavento. Desde então, passa pelas diversas fases de organização e acomodação do acervo. A equipe curatorial do Acervo SJP, constituída em meados de 2015, é responsável pela organização primária do acervo em seus diferentes momentos (triagem, limpeza, classificação - organização nas caixas, pastas, prateleiras e gavetas, descrição e divulgação –, realização de eventos e exposições). É composta pelos seguintes membros: Curadora – Dra. Nádia Maria Weber Santos (historiadora); Me. Anelda Oliveira (historiadora); Me Luciana Gransotto (Mestre em Bens Culturais); Dra. Hilda Jaqueline Fraga (historiadora), Lic. Francielle Garcia (historiadora); Lic. Simone Steigleder (conservadora e restauradora de bens culturais).

2 O material completo do Acervo, até agosto de 2019, abrange três fundos ou coleções: I – Coleção Bibliográfica: a biblioteca da historiadora, estimada em 4 mil obras (este material não está catalogado ainda), II – Fundo Documental (estimado em 60 mil itens): o material de estudo e de pesquisa dos 40 anos de trabalho da professora e pesquisadora, compreendendo: II/1 – Pastas suspensas, caixas e gavetões com material

Artelogie, 14 | 2019 191

de estudo de 40 anos; II/2 – Arquivo digital: obras completas de SJP digitalizadas e II/3 – Arquivo especial de fichas manuscritas: fichário completo, com móvel, pertencente à historiadora, incluindo fichamento de jornais do século XIX e início do século XX do Rio Grande do Sul; II/4 - Documentos de viagens (Álbuns com fotografias de viagens; Diários de viagens [cadernetas e pequenos cadernos, desde 1975]); III – Documentos tridimensionais/acervo museológico: III/1 – Objetos de viagem (Caixas, pedras, vasos, imagens, etc.); III/2 – Colares de Sandra Pesavento. Esta última parte que compõe o acervo museológico recém foi colocado à disposição pela família Pesavento e está em fase de inventário, através da elaboração de fichas individuais para dimensionar o acervo museológico e poder executar a gestão desta documentação, que inclui: higienização, guarda, conservação, expografia, produção de documentação, etc.

3 O acervo está apresentado e descrito no site do IHGRGS http://www.ihgrgs.org.br/ , no seguinte caminho, havendo online o inventário provisório das caixas, pastas suspensas e gavetas: http://www.ihgrgs.org.br/ - IHG digital – Arquivo online – Acervo Sandra Jatahy Pesavento 2017. As obras digitalizadas da autora encontram-se no seguinte link http://ihgrgs.org.br/#SandraPesavento .

4 Entre final de 2014 e 2017, a família teve duas iniciativas importantes: a criação de um website sobre a historiadora e a digitalização completa de sua obra (livros individuais e capítulos de livros, perfazendo 121 itens). Com isto, proporcionam uma democratização no compartilhamento público de seus escritos: suas obras digitalizadas estão disponíveis, desde meados de 2017, junto ao website do IHGRGS e o site sobre ela foi colocado em linha em maio também de 2017, nele constando uma linha do tempo da pesquisadora, com imagens selecionadas pela família, incluindo sua vida pessoal e produção das obras, os inéditos carnets de Voyage, escritos em viagem a Paris em 2004, vídeos de entrevistas e fotos, livros individuais publicados e agora digitalizados.1

5 Uma mais recente iniciativa em curso (proposta pela família em janeiro de 2019) familiar está sendo a doação de objetos pertencentes à Sandra Pesavento (Fundo III, Museológico, conforme acima), a maioria trazida de viagens da historiadora, para o acervo. Não foram ainda dimensionados em quantidade e estão em vias de serem transportados ao arquivo para guarda e posterior classificação. Com isto, o acervo pessoal SJP está ganhando em potencialidade de análise.

6 O Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRGS), referida instituição de custódia do acervo, se caracteriza como uma instituição privada sem fins lucrativos, fundada a 05 de agosto de 19202, cuja finalidade é promover estudos e investigações sobre História, Geografia, Arqueologia, Filologia, Antropologia e campos correlatos do conhecimento, principalmente centrados no Rio Grande do Sul. Sua principal finalidade é preservar a “memória rio-grandense através de fundos documentais e acervos bibliográficos que servem, também, para embasar as investigações e a construção de massa crítica sobre seu objeto de trabalho” 3. Possui uma sede no centro de Porto Alegre, que faz parte do patrimônio recebido do governo do Estado em 1948 e foi inaugurada em 25 de março de 1972. A edificação conta com três andares: a Sala de Pesquisa e a Biblioteca Tomás Carlos Duarte situam-se no 1º andar; a Sala dos Arquivos, a Biblioteca geral e a Mapoteca, no 2º andar e o Auditório para 150 pessoas ocupa o 3º andar. O Guia de arquivos pessoais e coleções do IHGRGS, publicado em 20134, registra 72 Fundos (arquivos pessoais de intelectuais, políticos, historiadores, literatos gaúchos) e 9 coleções. Porém, de lá para cá, outros fundos foram associados, assim como obras à sua biblioteca. Os conteúdos do Acervo SJP estão dispersos em vários locais do Instituto:

Artelogie, 14 | 2019 192

a biblioteca sem catalogação está em prateleiras da Biblioteca Geral do segundo andar; as pastas suspensas no arquivo deslizante do segundo andar; as 56 caixas estão em uma pequena sala também do segundo andar, chaveada; os 32 fichários com transcrição de jornais do século XIX e início do XX estão na sala do presidente do IHGRHS. Embora bem protegidos, o fundo documental que pertenceu à historiadora e pesquisadora Sandra Pesavento e sua biblioteca precisam de uma organização mais condizente com sua importância.

7 No ano que inicia, 2019, ganhamos um financiamento pelo edital Universal do CNPq do Brasil para organizarmos o acervo, catalogando sua biblioteca, classificando os documentos e digitalizando-os a fim de torná-los acessíveis à comunidade acadêmica e aos interessados em geral, o que se dará em parceria da Universidade Federal de Goiás e o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. O projeto de pesquisa, com 10 participantes, terá a duração de 36 meses e pretende, além da organização do acervo, promover eventos e realizar publicações e produtos culturais que divulguem seu conteúdo, assim como promovam a memória da historiadora e de sua obra.

8 Em anexo a este texto, estão colocadas algumas imagens do acervo, desde o início de sua constituição até a forma como se apresenta hoje, além de alguns documentos.

Imagens do acervo

9 Fotos do Acervo Sandra Jatahy Pesavento (SJP), no Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul

10 Todas as fotos são de propriedade de Nádia Maria Weber Santos

I

Imagem 1

Artelogie, 14 | 2019 193

Fundo documental - caixas (sala especial)

11

12

13

Imagem 2

Fundo documental – caixas (sala especial)

14

15

16

17

Imagem 3

Artelogie, 14 | 2019 194

Fundo documental – pastas suspensas

18

19

20

Imagem 4

Fundo documental – fichários

21

22

23

24

25

26

Artelogie, 14 | 2019 195

27

Imagem 5

Fundo documental – álbuns de fotografias

28

29

30

Artelogie, 14 | 2019 196

Imagem 6

Coleção Bibliográfica - Biblioteca Sandra Jatahy Pesavento

31

32

33

Artelogie, 14 | 2019 197

34

Imagem 7

Acervo museológico – Objetos tridimensionais (fase de inventário)

35

36

37

Artelogie, 14 | 2019 198

Imagem 8

Documento do Acervo – Caixa 33 A (plano de aula de pós-graduação)

38

39

Artelogie, 14 | 2019 199

40

Imagem 9

Documento do Acervo – Caixa 33 A (estudos, plano para livro)

41

42

Imagem 10

Documento do Acervo – Caixa 33 A (manuscrito de artigo)

43

NOTAS DE FIM

1. O endereço do site é http://sandrapesavento.org/ . Acessado em 02-09-2018. 2. Fundadores: Octavio Augusto de Faria, capitão Manoel Joaquim de Faria Corrêa, tenente Emílio Fernandes de Souza Docca, Afonso Aurélio Porto e o Pe. João Batista Hafkemeyer, juntamente com o Desembargador Florêncio de Abreu e o apoio decisivo do Governador Borges de Medeiros.

Artelogie, 14 | 2019 200

3. Informações retiradas do site do IHGRGS. Para mais informações consultar o site http:// www.ihgrgs.org.br. 4. http://www.ihgrgs.org.br/arquivo/GuiaAcervoIHG_site.pdf

RESUMOS

O material completo do Acervo Sandra Jatahy Pesavento depositado no Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRGS) desde final de 2014, tem em torno de 114 metros lineares e, dentre os diversos focos de conteúdos, que perpassam as várias fases da historiadora e pesquisadora da UFRGS.

Le matériel complet de la collection Sandra Jatahy Pesavento, déposé à l'Institut d'histoire et géographique de Rio Grande do Sul depuis fin 2014, est d’environ 114 mètres linéaires et, il est possible trouver, parmi les différents contenus abordés, des documents qui traversent les différentes phases de l’historien et chercheur de l’UFRGS.

ÍNDICE

Palavras-chave: Arquivo pessoal. Sensibilidades. Teoria e Metodologia. Sandra Pesavento. História Cultural. Mots-clés: Archives personnelles. Sensibilités. Théorie et méthodologie

AUTOR

NÁDIA MARIA WEBER SANTOS

Dra. em História. Professora do PPG em Performances Culturais da UFG (Universidade Federal de Goiás). Autora de vários livros e artigos na área da História Cultural, com ênfase em História da Loucura e da Psiquiatria, Memória Social, Sensibilidades, Arquivos pessoais e Performances Culturais. Destacam-se as obras individuais: Histórias de vidas ausentes: a tênue fronteira entre a saúde e a doença mental (2ª edição ampliada e revista, SP: Edições Verona, 2013); Histórias de sensibilidades e narrativas da Loucura (Porto Alegre, Ed. da Universidade/ UFRGS, 2008)

Artelogie, 14 | 2019