Espaço e Economia Revista brasileira de geografa econômica

10 | 2017 Ano V, número 10

Edição electrónica URL: http://journals.openedition.org/espacoeconomia/2602 DOI: 10.4000/espacoeconomia.2602 ISSN: 2317-7837

Editora Núcleo de Pesquisa Espaço & Economia

Refêrencia eletrónica Espaço e Economia, 10 | 2017, « Ano V, número 10 » [Online], posto online no dia 19 junho 2017, consultado o 23 setembro 2020. URL : http://journals.openedition.org/espacoeconomia/2602 ; DOI : https://doi.org/10.4000/espacoeconomia.2602

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SUMÁRIO

Editorial

Espaço e Economia: dez edições de análises, enfrentamentos e utopias Leandro Dias de Oliveira

Artigos

El análisis del territorio desde una ‘totalidad dialéctica’. Más allá de la dicotomía ciudad- campo, de un ‘par dialéctico’ o de una ‘urbanidad rural’ Miriam Hermi Zaar

Políticas de transferência de renda: componentes utópicos e realização na América Latina Eveline Algebaile, Denise Rissato e Roberto Arruda

Das aflições políticas à cooperação econômica entre Moçambique – Rússia: debates, dilemas e perspectivas Nelson Mabucanhane

A emergência da América do Sul na agenda da política externa brasileira nos governos Lula da Silva (2003-2010) Jorge Luiz Raposo Braga

Alternative tourism in – general characteristics Milen Penerliev

O lógico, o lógico-matemático e a crítica da economia política do espaço: elementos para um debate Marcio Rufino Silva

O(A) LÓGICO(A) – (O)A LÓGICO-MATEMÁTICA(O) Henri Lefebvre

Trilhas de Pesquisa

“Praias privativas”: as formas de fragmentação sócio-espacial no município de Mangaratiba-RJ Raiza Carolina Diniz Silva

Resenhas

Duque de Caxias: novos e velhos desafios em questão André Luiz Teodoro Rodrigues

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Pareceristas

Pareceristas – Ano V, Número 10, janeiro-junho de 2017

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Editorial

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Espaço e Economia: dez edições de análises, enfrentamentos e utopias

Leandro Dias de Oliveira

1 O periódico Espaço e Economia: Revista Brasileira de Geografia Econômica, com o volume que agora apresentamos, chega a sua décima edição. São cinco anos ininterruptos publicando as mais diferentes investigações, críticas e interpretações, o que se reflete nas mais diversas leituras e filiações teórico-analíticas de seus trabalhos e nas mais distintas escalas de tempo e espaço. Somando os trabalhos da edição atual, são praticamente cem autores que contribuíram com nosso periódico durante este período de sua existência, vinculados a universidades e centros de pesquisa de inúmeras cidades, estados e países. Entre editoriais, artigos, trilhas de pesquisa e resenhas, foram noventa e quatro contributos oferecidos aos leitores, indicando as tensões deste período complexo, controverso e de profundas transformações da realidade brasileira. Temos a honra de agradecer publicamente a todos os autores, pareceristas, consultores e leitores pela confiança depositada em Espaço e Economia: Revista Brasileira de Geografia Econômica nestes cinco anos de existência.

2 Temas importantes foram tratados no âmbito deste periódico. Paul Claval, professor da Université de Paris-Sorbonne, já no artigo inaugural de Espaço e Economia, nos apresentou o que intitulou “bifurcações” da Geografia Econômica no presente1: entre urbanistas e planejadores, entre a geografia regional e a morfologia social, entre o desenvolvimento desigual e as taxas de crescimento, na passagem de uma economia dominada pela oferta para uma economia dominada pela demanda, o autor já demonstrava em seu texto o quão grande era o desafio deste periódico, numa área tão suscetível a mudanças – epidérmicas ou profundas – nos ritmos e formas da geografia econômica que se realiza.

3 Assim, entre o primeiro volume, publicado em dezembro de 2012, e este, editado no primeiro semestre de 2017, é possível dizer que de fato assistimos muitas mudanças – infelizmente, na maioria dos casos, para uma realidade pior. As duas últimas capas deste periódico refletiram bem os tempos difíceis que assistimos: se antes se investigava em várias frentes a realidade brasileira, mesclando a desconfiança com

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otimismo, possibilidades e críticas construtivas, com os últimos acontecimentos da política nacional o pessimismo ganhou força na intepretação do Brasil.

4 Afinal, nosso país viu ruir um período de esperança na construção de um estado social minimamente capaz de confrontar as profundas mazelas do passado, mesmo que por vezes restrito pelas próprias amarras do nosso modelo republicano-parlamentar instituído. Vivemos tempos difíceis, resultado do abalo nos alicerces de nossa então jovem democracia. Ainda que jamais se tenha perdido em nosso periódico o horizonte da crítica, era possível acreditar em pequenos, contudo importantes avanços em nossa realidade sócio-econômico-espacial.

5 Mas o que se assistiu no Brasil neste período que podemos chamar de pós-democrático – algo que se espera correção em 2018 com o protagonismo e autoridade do voto e respeito às ideias vitoriosas no pleito – foi o empobrecimento econômico, com base em plataformas que mesclam surtos de impropícia ortodoxia neoliberal e superficialismos de responsabilidade fiscal, que acabaram por mediocrizar a política econômica brasileira. Não há espaço para dúvidas: ainda que não seja somente em território brasileiro que isto ocorra – a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos é um exemplo preciso, eloquente e igualmente preocupante –, a gênese de um conservadorismo-reacionarismo intempestivo, com doses violentas de intolerância social, de gênero e de saberes, implicou no retrocesso do próprio debate público. O pacote que inclui cortes nos direitos do trabalho, na previdência social e nos investimentos públicos revela tanto a face agressiva daqueles que se apossaram do poder – bem como de seus apoiadores e financiadores – quanto a própria inépcia, disfarçada pela arrogância, austeridade e vocabulário corporativo, da nossa “intelligentsia” político-econômica, incapaz de aprender minimamente com os erros do passado.

6 O Rio de Janeiro seguiu caminho semelhante, ao conjugar a crise de sua principal commodity, o petróleo – diversas vezes tratado aqui neste periódico, quando se invocou desde a formação de uma cadeia macroprodutiva até as mudanças local-regionais –, o investimento colossal em eventos esportivos efêmeros e profundamente segregadores e a incapacidade, improbidade e desfaçatez de seus gestores; assim, a província fluminense assistiu o ocaso de uma atmosfera de otimismo e a explosão de uma crise sem precedentes em sua história. O ritmo lento da construção do COMPERJ, outrora epicentro do desenvolvimento econômico do estado; o paulatino abandono do Arco Metropolitano Fluminense, transformado em uma perigosíssima rodovia com casos cinematográficos de assaltos e violências diversas; o desinvestimento massivo na esfera produtiva e o fechamento de postos de trabalho; a ruína ideológica das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) e o espraiamento da violência metropolitana para o interior; a profunda crise na UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, na UENF – Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro e na UEZO – Centro Universitário Estadual da Zona Oeste, que vivem dias de penúria, atingindo no alvo aqueles que poderiam pensar criticamente esta realidade desastrosa, trazem máculas espaciais de demorada cicatrização.

7 Com tantos aportes financeiros em tantas frentes de desenvolvimento no estado, há que reforçar sem entremeios: assim como no caso brasileiro, o que assistimos em território fluminense não é tão somente uma forma político-econômica de obtenção de vantagens pessoais e corporativas nas ações do estado, mas também a incompetência, a inaptidão e o miopismo dos gestores responsáveis por conduzir o futuro do Rio de Janeiro.

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Infelizmente, este amálgama entre políticos e grandes empresários não é somente motivo de investigação policial, mas também a prova da limitação intelectual, interpretativa e planejadora de nossas elites econômica e política.

8 Não é por outro motivo que os desafios de Espaço e Economia: Revista Brasileira de Geografia Econômica se renovam e se avolumam. Reforçamos aqui nesta edição o escopo do Núcleo de Pesquisa Espaço & Economia (NuPEE): compreender, por meio de referencial analítico da geografia e das demais ciências sociais e através de pesquisas teóricas e empíricas, as implicações entre o espaço, o Estado e a economia. Aliás, o NuPEE, resultado dos esforços iniciados em 2008 com a criação do as reuniões mensais que culminaram com a realização de dois Seminários Nacionais Espaço & Economia, em 2009 e em 2011, se consolidou como catalisador de debates multi e interinstitucionais. Atualmente, o NuPEE é composto por docentes e discentes do Departamento de Geografia da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ-FFP), do Departamento de Geografia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), do Instituto Federal Fluminense (IFF-Campos dos Coytacazes), dos Programas de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH- UERJ) e do Programa de Pós-Graduação em Geografia (PPGGEO-UFRRJ) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, e do Mestrado Profissional em Engenharia Ambiental do Instituto Federal Fluminense (IFF-Campos dos Goytacazes). O amadurecimento do NuPEE permitiu a consolidação do seu diálogo com INCT – Rede de Política, Inovação e Desenvolvimento (IPPUR-UFRJ), com o Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO), especialmente através do Grupo de Trabalho “Espoliação Imobiliária e Lutas Contra Hegemônicas” e com os grupos de pesquisa Reestruturação Econômico-Espacial Contemporânea, do Laboratório de Geografia Econômica e Política e Práticas Educativas (LAGEPPE-UFRRJ); Laboratório de Política, Epistemologia e História da Geografia (LAPEHGE-UFRRJ) e Núcleo de Estudos em Estratégias e Desenvolvimento (NEED-IFF).

9 A Geografia Econômica permanece um terreno fértil de conflitos ideológicos e construção de utopias, que tensionam perenemente o novo e o antigo, as permanências e as transformações. Assim como no belíssimo entardecer na Praia de São Vicente (no Litoral de São Paulo) que ilustra a capa desta décima edição, aguardamos ansiosamente o crepúsculo desta era de angústias e incertezas que acometem tanto o Brasil quanto especificamente o estado do Rio de Janeiro. Espaço e Economia: Revista Brasileira de Geografia Econômica, em processo de abertura e ampliação de debates, propostas de dossiês e interpretações de desafios local-regionais, nacionais e internacionais, pretende contribuir intensamente para isso.

NOTAS

1. Consultar “Espaço e território: as bifurcações da ciência regional”, disponível em: https:// espacoeconomia.revues.org/94.

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AUTOR

LEANDRO DIAS DE OLIVEIRA

Doutor em Geografia pela UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas, Mestre e Licenciado em Geografia pela UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professor do Programa de Pós-Graduação em Geografia [PPGGEO / UFRRJ] e de Geografia Econômica e da Indústria do Departamento de Geografia da UFRRJ – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Líder do Grupo de Pesquisa Reestruturação Econômico-Espacial Contemporânea e coordenador do LAGEPPE – Laboratório de Geografia Econômica e Política e Práticas Educativas. Coordenador do PIBID [Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência] – Geografia – UFRRJ. E-mails: [email protected] / [email protected].

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Artigos

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El análisis del territorio desde una ‘totalidad dialéctica’. Más allá de la dicotomía ciudad-campo, de un ‘par dialéctico’ o de una ‘urbanidad rural’ El análisis del territorio desde una ‘totalidad dialéctica’. Más allá de la dicotomía ciudad-campo, de un ‘par dialéctico’ o de una ‘urbanidad rural’ A análise do território a partir de uma ‘totalidade dialética’. Além da dicotomia cidade-campo, de um ‘par dialético’ ou de uma ‘urbanidade rural’ L’analyse territoriale à partir d’une « totalité dialectique » : au-délà de la dichotomie ville-campagne, d’un « couple dialectique » ou d’une « urbanité rurale » The analysis of the territory from a 'dialectical totality'. Beyond of the town- country dichotomy, of a 'dialectical par' or of a 'rural urbanity'

Miriam Hermi Zaar

Introducción

1 Reflexionar sobre las dinámicas que abarcan como un ‘todo’ el campo y la ciudad, lo rural y lo urbano exige, a priori, plantear la reproducción social en el espacio y en el tiempo, en la que conjugan una diversidad de elementos, acciones y procesos que se articulan, se contradicen y actúan en múltiples escalas en un movimiento dialéctico continuo.

2 Una tarea que se ha desarrollado con intensidad en las distintas áreas de las Ciencias Humanas y Sociales en las últimas décadas, con el objetivo de analizar las profundas

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transformaciones que el espacio ha tenido, a medida que el sistema de producción capitalista le ha agregado nuevos contenidos y formas.

3 En este cometido, existe una gama de enfoques que pone énfasis en las ideas que, de una o de otra forma, defienden la comprensión de la producción del espacio a partir de una ‘totalidad concreta’ y a la vez dialéctica, en la que además de la interacción y conexión de las ‘partes’ entre sí y con el ‘todo’, este ‘todo’ se crea y recrea en la interacción de sus partes. Esto es así, porque la totalidad concreta no es un ‘todo’ acabado cuyas ‘partes’ se rellenan con sus calidades, contenidos y relaciones, sino también la creación del ‘todo’1.

4 Un concepto metodológico, cuyo origen remite al filósofo alemán Georg Friedrich Hegel y que recibió importantes contribuciones durante los siglos XIX y XX. El geógrafo Élisée Reclus lo concibió al aprehender el mundo como un sistema complejo formado por elementos, ‘partes’ de un ‘todo’ sustentado por interrelaciones continuas que evolucionan en una doble dimensión, en el “plan sincrónico” (medio-espacio) y en el “plan diacrónico” (medio-tiempo)2.

5 Por otra parte, Karl Marx en un diálogo con Hegel, en el que formuló el materialismo histórico, defendió la tesis de que la relación de los hombres con su medio natural condiciona las relaciones de los hombres entre sí, y, viceversa, la relación de hombres entre si condiciona las relaciones de los hombres con su medio natural3.

6 Conceptos de los que derivaron muchos otros, relacionando la producción del espacio, en cuanto práctica social, con la reproducción de la sociedad. Así, por ejemplo para Manuel Castells: O espaço é um produto material em relação com outros elementos materiais – entre outros, os homens, que entram também em relações determinadas, que dão ao espaço (bem como aos outros elementos da combinação), uma forma, uma função, uma significação social. Portanto ele não é uma pura ocasião de desdobramento da estrutura social, mas a expressão concreta de cada conjunto histórico, no qual uma sociedade se especifica4.

7 Esta es la razón, porque el espacio convertido en medio, condición y producto de las relaciones sociales, adquiere peculiaridades que se reproducen y se superan continuamente en función de las dinámicas socioeconómicas que rigen los períodos históricos, y en las que se incluyen las prácticas y las ideas de lo que actualmente entendemos por ciudad y campo, por lo urbano y lo rural.

8 Es desde este movimiento que la reproducción de la sociedad conduce a la producción del espacio, en el que se crean y recrean formas y contenidos cuyas funciones son, a la vez, producción de bienes y mercancías, y reproducción de la vida cotidiana. La ‘apropiación del espacio’ y la producción y reproducción del territorio encierran, en su esencia, un proceso contradictorio que impulsa nuevas configuraciones territoriales en las que están presentes tanto las continuidades y discontinuidades, como la integración y la fragmentación, el diálogo y la indiferencia entre las porciones de una misma unidad, o entre diferentes unidades espaciales.

9 Una condición que nos remite a la caracterización que Ana Fani Carlos hace cuando afirma que A produção do espaço enquanto produto social é produto histórico e, ao mesmo tempo, realidade presente e imediata. Esta se realiza no cotidiano social e aparece como forma de ocupação e/ou utilização de determinado lugar, num momento específico – revelando a dimensão do lugar como espaço-tempo da prática sócio espacial5.

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10 En este proceso local y a la vez global, gran parte de los flujos locales son sustituidos por otros que abarcan ámbitos más amplios. Las clásicas relaciones entre la ciudad y el campo, basadas en la división técnica, social y territorial del trabajo, se intensifican y se hacen más complejas, de modo que los elementos que integran sus formas espaciales se imbrican y se sobreponen en diferentes ámbitos.

11 Estamos, por tanto, ante una dinámica que conlleva la perdida de las referencias que establecen los límites de las unidades espaciales. Esto ocurre en función de las interacciones espaciales, ya que no es posible concebir y delimitar la ciudad actual como una unidad, sino analizarla “como un espacio abierto, desde el punto de vista de las formas y del flujo, desde el punto de vista objetivo y subjetivo, desde el punto de vista concreto y abstracto”6.

12 Este nuevo contexto exige un replanteamiento de las metodologías aplicadas al estudio del territorio, ya que las que se venían empleando y que en algunos casos todavía se consideran válidas, se presentan insuficientes para la comprensión de un fenómeno que aprehende múltiples elementos y dimensiones articulados en el tiempo y en un espacio multiescalar, y que confiere al territorio, una complejidad que se presenta como un desafío a los investigadores del tema.

13 Para esta reflexión se parte de planteamientos realizados durante los siglos XIX y primera mitad del siglo XX, en los que la dualidad ciudad-campo aparece de modo explícito en diferentes estudios urbanos realizados a lo largo de este período y que reflejan las funciones que estos espacios desempeñaban en la reproducción socio económico de los territorios.

14 A continuación, y desde un contexto global, en que la difusión tecnológica e informacional y el proceso de restructuración productiva intensifican los flujos e impulsan nuevas dinámicas socioeconómicas que diluyen, e incluso suprimen la supuesta oposición campo-ciudad, se elabora una discusión metodológica hacia la investigación de un territorio más dinámico y por lo tanto más complejo. Para esto, se parte de un planteamiento que reconoce la existencia de un ‘espacio geográfico híbrido’ 7 y se da prioridad al estudio de las reproducciones socio-espaciales a partir de una ‘totalidad’, entendida como un ‘todo dialéctico’, en el que conjuntos de hechos pueden llegar a ser racionalmente comprendidos8, y en el que elementos interdependientes y a la vez contradictorios interaccionan en el tiempo y en el espacio.

Ciudad y campo: ¿espacios dicotómicos?

15 Las concepciones dicotómicas sobre ciudad y campo remiten a las primeras fases de la Revolución Industrial. Hasta entonces, estos ámbitos no eran asimilados bajo este parámetro.

16 Algunos trabajos, como los de Lewis Mumford y Jane Jacobs corroboran esta afirmación al señalar que el origen de la agricultura estuvo vinculado a las aldeas y a las ciudades. Para Mumford en las pequeñas aldeas de las últimas fases del Neolítico, hace aproximadamente 15 mil años, ya se vislumbraba el aprovisionamiento doméstico con reproducción de plantas y la cría de animales. Un proceso que, según el mismo autor, se prolongó hasta la Edad Media, cuando, a excepción de algunos centros congestionados, la ciudad formaba parte del campo9.

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17 Jacobs defiende la tesis de que las actividades rurales se engendraron en las ciudades. En éstas, la agricultura habría sido solamente una fracción de una economía mucho más amplia. Conforme la autora, la razón de la transferencia de la agricultura a los ámbitos extra urbanos, ocurrió en función de la escasez de terrenos urbanos y de la necesidad de áreas más extensas para la cría de ganado10.

18 Estas interpretaciones se aproximan a los análisis que aluden a las edades Media y Moderna, cuando el espacio intramurallas, contemplaba una gran cantidad de huertos. En un estudio de los planes urbanísticos de Madrid del siglo XVII, realizado por Miguel Molina Campuzano, se observa cómo en el interior de sus trazados urbanos, se contemplaba, además de la vivienda, huertos y extensiones sin edificar11.

19 Pero este contexto fue despareciendo gradualmente en casi todas las ciudades, a medida que nuevas lógicas urbanísticas promoviesen su densificación. También coadyuvaron de modo significativo, las profundas alteraciones por las que pasaron las prácticas agrícolas a través del uso de fertilizantes y otros mecanismos, que se por un lado, posibilitaron el aumento de la productividad y consecuentemente de la producción, por otro produjeron importantes consecuencias socio-espaciales, alejando del ámbito urbano las actividades agrícolas y alterando la dinámica que aproximaba al hombre urbano a la naturaleza, contribuyendo de modo significativo a que se estableciera una separación entre las actividades urbanas y las rurales y se delimitasen las funciones ejercidas en la ciudad y en el campo.

20 Para la elaboración de este análisis se parte del contexto histórico vigente en el siglo XIX, cuando, en los países capitalistas avanzados, la yuxtaposición regional de la industria y de la agricultura, organizada a través de complejos territoriales que abarcaban anillos agrícolas proveedores de alimentos, materia-primas y mano de obra barata a los centros industriales, estaba profundamente imbricada en las conexiones ciudad-campo.

21 Se remite, por lo tanto, a un vínculo ciudad-campo que, basado en la división regional del trabajo, se expandió a medida que la estructuración regional y la “acumulación primitiva” marcaban los orígenes del capitalismo, y que tuvo continuidad en la era del imperialismo (1880-1914) y con la ascensión de los monopolios y oligopolios empresariales, en una estructura caracteriza por las relaciones centro-periferia.

22 Un contexto en el que, aunque no existiese una preocupación formal en definir lo rural, ya que este, casi siempre era tratado como residuo de lo que todavía no era urbano, muchos autores se proponían defender la contraposición entre ciudad y campo, basados inicialmente en criterios fundamentados en las primeras divisiones del trabajo, en las que se destacaba la separación entre el trabajo intelectual y manual.

23 Karl Marx y Friedrich Engels, interpretaban la separación entre la ciudad y el campo como la forma más preeminente de división entre el trabajo intelectual y material. Para ellos, la ciudad constituía el locus de la concentración de la población, de los instrumentos de producción, del capital, de los placeres y de las necesidades, mientras que el campo evidenciaba lo opuesto, el aislamiento, y la dispersión. Entendían igualmente que la separación entre la ciudad y el campo podría concebirse también como la separación entre el capital y la propiedad de la tierra, como el comienzo de una existencia y de un desarrollo del capital independiente de la propiedad de la tierra, como el inicio de una propiedad basada en el trabajo y en el intercambio”12.

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24 Ideas que, vigentes entre los marxistas del siglo XX, fueron así interpretadas por Henri Lefebvre: mientras a la ciudad le incumbe el trabajo intelectual – funciones de organización y de dirección, actividades políticas y militares, elaboración del conocimiento científico (filosofía y ciencia) – que trae las imágenes del esfuerzo, de la voluntad, de la subjetividad, de la razón, sin que estas representaciones se distancien de las actividades reales; por su parte, el campo es, al mismo tiempo, realidad práctica y representación, que traen las imágenes de la naturaleza, del ser, del original13.

25 Volviendo al siglo XIX, origen de nuestro análisis, se observa que en función de las transformaciones que venían produciéndose en la ciudad industrial en su último tercio, hubo muchas tentativas de formular argumentos que definiesen la ciudad y el campo, algunos a partir de sus actividades, y otros basados en los valores y en el comportamiento que caracterizaban citadinos y campesinos.

26 Algunas de estas definiciones, razonadas desde parámetros como la densidad demográfica y las actividades económicas, hicieron hincapié en la supuesta oposición que caracterizaba la ciudad y el campo. Estas fueron, por ejemplo, las posturas de Ferdinand von Richthofen, Friedrich Ratzel y Marcel Aurousseau publicadas en el siglo XIX y en las primeras décadas del siglo XX, respectivamente.

27 En el transcurso del siglo XIX al XX, Ferdinand von Richthofen (1833-1905), geógrafo y geólogo alemán, se ocupó de precisar la ciudad como una agrupación cuyos medios de existencia normales consisten en la concentración de formas de trabajo que no están consagradas a la agricultura, sino particularmente al comercio y a la industria. También, las definiciones de Friedrich Ratzel en su obra Anthropogeografía (1882), hacían alusión a la ciudad y al campo a partir de algunos aspectos antitéticos, como: a) las actividades practicadas en las aldeas, basadas en la agricultura y en la ganadería, ante las realizadas en las ciudades, basadas en la industria y en el comercio, y b) la estructura de las viviendas, individuales en los pueblos y concentradas en las ciudades14.

28 Algunas décadas más tarde, corroborando y ampliando las caracterizaciones de los autores anteriores, Marcel Aurousseau afirmó en 1921 que: rurales son aquellos sectores de población que se extienden en la región y se dedican a la producción de los artículos primarios que rinde la tierra; los sectores urbanos, en cambio, incluyen a las grandes masas concentradas que no se interesan, al menos en forma inmediata, por la obtención de materias primas, alimenticias, textiles o de confort en general, sino que están vinculadas a los transportes, a las industrias, al comercio, a la instrucción de la población, a la administración del Estado o simplemente a vivir en la ciudad15.

29 Criterios que, ampliamente difundidos, fueron desarrollados por otros estudiosos del tema. Max Weber señaló para la ciudad otra atribución fundamental, la organizativa. Aludió a que la ciudad puede adquirir esta acepción, bajo diferentes criterios, tales como a) una aglomeración dotada de una identidad y por lo tanto de unos condicionamientos culturales; o b) desde una perspectiva puramente económica, ya que la mayor porción de sus habitantes viven de la industria y del comercio y no de la agricultura. En esta última condición, la ciudad aparece en la calidad de “lugar de mercado” por sus intercambios comerciales regulares, pero igualmente como “ciudad de los productores” (industrias de manufacturas y artesanales), o “ciudad de consumidores”, constituida principalmente por nobles rentistas, funcionarios y políticos.

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30 Pese a estas definiciones, Max Weber también se refirió a “la ciudad de ciudadanos del campo”, en la que coexistían lugares de comercio, de oficios típicamente urbanos y “una amplia capa de ciudadanos que satisfacía sus necesidades alimentarias a través de una economía propia que con frecuencia producía excedentes para vender”. Una condición, que según el autor, era muy común en la Antigüedad en la que el ciudadano de pleno derecho era propietario de una tierra que lo abastecía, por lo tanto, ‘un ciudadano del campo’, y que se volvió contradictoria en la coyuntura urbana del siglo XX16.

31 A inicios de la década de 1960, Robert Dickinson, al caracterizar las ciudades como "núcleos de poblamiento compacto, dedicados principalmente a ocupaciones no agrícolas y cuya principales actividades se basan en los servicios", dejaba implícitas las características y el rol reservado al campo: el rasgo peculiar de la ciudad se deduce del modo de vida y de las actividades de sus habitantes; difiere del pueblo en la dedicación de su población, no ligada de forma directa a las faenas agrícolas, que vive y labora en el organismo urbano tomando parte de su vida y organización (...) El carácter de verdadera ciudad implica la posesión de cierto grado de servicios y organización de la comunidad en forma más o menos equilibrada. Como tal es objeto de abastecimiento por parte de una zona que incluye a todos los habitantes de los núcleos y regiones de los alrededores (…) El agrupamiento de servicios centralizados en todo el núcleo concentrado constituye el rasgo más característico de la ciudad y, en un grado superior, el sello peculiar de la capital17.

32 Aunque también afirmó en algunas páginas posteriores, que en los últimos cien años

han tenido lugar cambios profundos en la estructura social de mundo rural y en sus relaciones de éste con la ciudad. La comunidad rural se ha visto afectada considerablemente por el crecimiento y concentración de servicios en los pueblos o pequeñas ciudades de los alrededores. Igualmente lo han sido los cultivos del campo ante el impacto de los modos de vida urbanos. En las proximidades a las grandes aglomeraciones urbanas se transforman las condiciones y los modos de vida rurales alterando el equilibrio de su sociedad. Tan estrechamente ligados están la ciudad y el pueblo en sus mutuas relaciones que, de hecho, no puede establecerse una distinción neta entre los modos de vida urbanos y rurales18.

33 Vinculados a las corrientes que analizan la ciudad y el campo a partir del modo de vida de sus habitantes, y cuyo origen podrían ser las obras de Vidal de La Blache, el estudio de las ciudades desde la cultura urbana tuvo, por parte de sociólogos y economistas, muchos intentos de definir lo urbano, contraponiéndolo a lo rural. Así el filósofo y sociólogo alemán Georg Simmel destacó, en el inicio del siglo XX, que el vínculo con el dinero y las transacciones comerciales, a la vez que estimulaban la abstracción y favorecían el desarrollo intelectual en las ciudades, influían en la personalidad y en modo de relacionar-se con los demás urbanitas. Subraya que ante la libertad que la ciudad ofrece, se produce, en la misma, una actitud de reserva y de soledad, como resultado de la generalización y despersonalización de los vínculos humanos y sociales19, cualidades inversamente proporcionales a medida que el entorno rural se hacía presente.

34 El cuestionamiento de la indiferencia y la incomunicación en las ciudades y la idea de las ‘culturas urbanas’ fueron retomados por los culturalistas de la Escuela Sociológica de Chicago, bajo la influencia de Robert Park. Louis Wirth, uno de sus principales integrantes, señaló como el aislamiento social, el anonimato, la segmentación de los

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papeles desempeñados y la especialización funcional, los vínculos sociales caracterizados por la superficialidad, la debilitación de los lazos sociales y estructuras familiares, el predominio de las relaciones secundarias e impersonales y la competencia urbanas, aparecen frente a las relaciones primarias y el asociacionismo de las sociedades rurales. Para el autor, la cultura urbana sería un resultado de la acción de tres factores esenciales: dimensión, densidad y heterogeneidad social20.

35 Estas comparaciones derivaron hacia conceptos como el concebido por Richard L. Meier, en el que afirma que frente a las comunidades rurales, donde el tiempo dedicado a actividades personales, individuales y privadas es muy elevado, "la urbanización lleva consigo una "despersonalización" del tiempo; sea cual sea el lugar en el que aparezca la urbanización, ya sea en la ciudad misma como en el espacio periférico el tiempo de las gentes está cada vez más consagrado a los intercambios humanos21.

36 Con la intención de superar esta hipotética dicotomía campo- ciudad y el aislamiento social en las ciudades, ampliamente defendidos por los autores hasta aquí analizados, surgieron durante la primera mitad del siglo XX, varios proyectos vinculados a los preceptos ácratas formulados por Pierre Joseph Proudhon, Piotr Kropotkin y Elisée Reclus, en los que se reconocen las raíces de la corriente planificadora. En palabras de Peter Hall “lo que realmente sorprende es que muchas, aunque no todas, de las primeras visiones del urbanismo nacieron dentro del pensamiento anarquista que floreció en las últimas décadas del siglo XIX y en las primeras del XX”22. Por su relevancia, se hará, a continuación, una síntesis sobre sus aportaciones al tema desarrollado en este texto.

Experiencias utópicas, una propuesta de superación

37 Las contradicciones socio-espaciales y económicas, y sus consecuencias, como la pérdida de organicidad de las ciudades, la segregación socio-espacial y la separación ciudad-campo fueron objeto de estudio por los principales exponentes del pensamiento ácrata del siglo XIX.

38 Para Piotr Kropotkin, la ciudad una ha cesado de existir; no existe más comunión de ideas. La ciudad no es más que un revoltijo casual de gentes que no se conocen, que no tienen ningún interés común, salvo el enriquecerse unos a expensas de otros; no existe la patria... ¿Qué patria común pueden tener el banquero internacional y el trapero?23.

39 Por su parte, Elisée Reclus no dudó en afirmar: Quantas forças vivas se extinguiram por falta de aplicação, ou então foram semidestruídas pelo ódio nestas cidades de ar impuro, de contágios mortais, de lutas desordenadas! Mas também não foi destes agrupamentos brotaram as ideias, que se criaram novas obras, que explodiram revoluções que libertaram a humanidade das gangrenas senis?24.

40 Este fue el punto de partida para elucubrar la ciudad utópica. Kropotkin proyectó un modelo de ciudad con base en las necesidades de los individuos, esto es, en el abastecimiento, y con él planteó otra organización del territorio, que protagonizado por nuevas relaciones laborales adquiriese formas y funciones que deberían sustituir a las anteriores. Propuso una ciudad que estuviese unida a su campo, y en la que el trabajo colectivo vinculado a las actividades intelectuales y manuales y la autogestión fuesen las principales metas a alcanzar.

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41 Concepciones que inspiran proyectos que se concretizaron durante la primera mitad de siglo XX y cuyos objetivos eran proporcionar el bienestar y la convivencia harmónica entre los hombres y entre estos y la naturaleza.

42 En este empeño destacaron los pensamientos y respectivos proyectos de Patrick Geddes, Ebenezer Howard y Frank Lloyd Wright. Patrick Geddes fue uno de los mentores de un planeamiento que proponía una ciudad orgánica que se asemejase a la vida, lo que conllevaba que fuera construida por sus propios ciudadanos25.

43 Ya el proyecto ciudad-jardín, concebido entre 1880 y 1890 por Ebenezer Howard y publicado en su principal obra Les Cités-Jardins de demain (1898 y 1902) previó la organización de la ciudad a partir de tres imanes (town, country e town-country) en los que conjugarían, en determinado territorio, las ventajas de la ciudad y del campo. Tratase de una “troisième possibilité de choix par laquelle on peut s’assurer dans une combinaison parfaite, les avantajes de la avie urbaine, plus dynamique et plus active, por en même temps que tout la beauté et les plaisirs de la campagne”26.

44 Comprendía un núcleo urbano híbrido que contemplaba el trabajo cooperativo, la alternancia entre actividades manuales e intelectuales, y una propuesta de ordenamiento territorial que integraba la ciudad con sus áreas industriales y el campo circundante, priorizando los canales cortos de comercialización. Al preservar, a un tiempo, la ciudad y el campo, este modelo dota la ciudad y su territorio circundante de unas condiciones que mejoraría la vida urbana y disminuiría la migración campo- ciudad. Sus proyectos fueron materializados en experiencias conocidas como Letchworth (1904-1905) y Welwyn Garden City en la década de 1920, en Inglaterra27, aunque también pseudo reproduzido en muchas otras formas de mercantilización del espacio periurbano.

45 Otro ejemplo está vinculado al arquitecto norteamericano Frank Lloyd Wright, que así como los autores citados anteriormente, cuestionaba la vida antinatural de la gran ciudad asociada a la metrópolis industrial, así como su calidad de vida, además de la división social del trabajo y la separación entre hombre y naturaleza que ésta suponía28. La solución que encontró fue proyectar, en la década de 1930, una ciudad en la que las funciones urbanas dispersas y aisladas, en forma de unidades reducidas, posibilitasen el desarrollo de actividades que estuviesen en simbiosis con la naturaleza. Su prototipo se denominó Broadacre City y estaba constituido por pequeñas comunidades que contemplaban una serie de atributos, como la libertad individual, el autogobierno, la asociación entre trabajos con diferentes rasgos, el contacto con la naturaleza y una relativa autosuficiencia29. Una propuesta que procuraba superar la separación entre lo urbano y lo rural y en la que estaba presente la preocupación por la calidad de vida.

46 Se trata de modelos que contienen el mismo enfoque elaborado por Kropotkin en el que defiende la asociación entre actividades diversas, el cultivo de la tierra en las ciudades y su autosuficiencia. En sus palabras: “Después de haber dividido el trabajo, es preciso integrar: tal es la marcha seguida por toda la naturaleza”30.

La hegemonía de la ciudad sobre el campo

47 Aparte de los modelos, la dinámica espacio-temporal que caracterizó inicialmente las áreas metropolitanas de los países más desarrollados, ha generado múltiples procesos

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que han aproximado la ciudad y el campo y que fueron ampliamente analizados por muchos geógrafos.

48 Entre estos procesos, la masiva migración campo-ciudad reestructuró significativamente las teorías que hacían significativas distinciones entre ciudad y campo, urbano y rural, para inscribir un nuevo orden espacial en el que la producción de un excedente social no sólo estaba coordinado y controlado por la ciudad, sino que también, por primera vez en la historia, tenía lugar en la propia ciudad, dentro y alrededor del denso centro del espacio urbano31.

49 En esta línea, Max Derruau señala el protagonismo que la migración rural-urbana y demás desplazamientos tuvieron en la intensificación de los vínculos entre estos ámbitos. Afirma que es a través de estas interrelaciones, a la vez residenciales, alimentarias, intelectuales, sicológicas y sociales, que las ciudades, adquieren un papel dirigente, ya que se presentan con una vida intelectual más activa y como lugar de procedencia de las innovaciones. Un modo de vida urbano cuyos elementos son adoptados por el campo con más o menos retraso: “Debido a una serie de causas económicas y sociológicas, el rural sólo acepta con retraso la innovación del ciudadano, considerada a la vez como envidiable, y un poco peligrosa, y en todo caso apta únicamente para una población muy distinta. Pero con el tiempo, el campo adopta también sus modas o sus técnicas”32.

50 Un argumento que se confirma en las décadas de 1960 y 1970, cuando la ciudad fue considerada por muchos científicos sociales, el locus por excelencia, para maximizar las relaciones sociales. Henri Lefebvre ratifica: “en su nivel específico, la ciudad se presenta como un subsistema privilegiado porque es capaz de reflejar, de exponer los otros sistemas y de ofrecerlos como un ‘mundo’ como una totalidad única, en la ilusión de lo inmediato y de lo vivido”33. Del mismo modo, Paul Claval caracteriza la ciudad como el lugar "que permite maximizar el nivel total de interrelación existente en la sociedad"34, y Fernando Chueca subraya que “el motivo por el que las ciudades son decisivas en toda la sociedad, inclusive en aquellas de predominio rural, es porque representan el órgano de la sociabilidad”35.

51 Razonamientos que los geógrafos norteamericanos Ronald Abler, John Adams y Peter Gould complementaron al reconocer que una ciudad es "una organización espacial de personas y actividades especializadas diseñadas para maximizar las transacciones”. A escala local “es el mejor medio de interrelacionar actividades sociales y económicas con el máximo beneficio en todas ellas”, y a escala regional comprenden “sistemas de ciudades que organizan intercambios entre lugares distantes y proveen a las áreas circundantes no urbanas de bienes y servicios que requieren"36.

52 La ciudad como lugar eminente de intercambio de conocimientos, un concepto que Éliseé Reclus a finales del siglo XIX ya admitía, al reconocer los efectos benéficos que la aproximación de los hombres puede traer: aquellos que viven [en las ciudades] pueden ampliar el círculo de sus ideas; ellos vieron lugares diferentes unos de los otros; se formaron en contacto con otros hombres; se tornaron más inteligentes, más instruidos, y todos esos progresos individuales constituyen para la sociedad entera una ventaja inestimable37.

53 Además, a partir de la década de 1970 la ciudad adquirió un nuevo atributo vinculado a la difusión tecnológica, como centro de innovaciones. Jean Remy, al analizar la difusión de las innovaciones tecnológicas en el entorno belga, al mismo tiempo en que concibió la ciudad como un medio privilegiado que estimula las innovaciones de crecimiento y

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facilita la invención y la difusión de valores nuevos, enfatizó, cómo esta dinámica se difunde de forma semejante entre la ciudad y el campo, neutralizando una de las desventajas del campo frente a la ciudad38.

54 Puntos de vista que la mayoría de las veces dejaban explícitas las grandes diferencias existentes entre la ciudad y el campo, la vida urbana y la rural, lo que denotaba una aceptación de la visión dicotómica de estos subsistemas; aunque había igualmente, autores que defendían que esta oposición podría adquirir sentidos muy diferentes, dado que “a cada forma de civilización corresponde una concepción de ciudad”39. Una interpretación a la que podríamos añadir “… y del campo también”, ya que, como se expone a continuación, se trata de un ámbito en el que han transcurrido cambios técnicos y culturales muy significativos en los últimos cincuenta años.

55 En medio a esta discusión, es muy probable que el Coloquio de Sociología y Urbanismo, celebrado en Royaumont, Francia, en 1968, haya sido clave para el cambio definitivo de las reflexiones que condujeron el debate sobre la ciudad y el campo durante muchas décadas, primero desde la Sociología y después en la Geografía y otras áreas afines. Sus participantes, según Horacio Capel, pusieron en duda la validez de la contraposición entre lo urbano y lo rural en los países altamente industrializados, aunque desde la perspectiva de los países subdesarrollados esta contraposición pudiese continuar teniendo validez debido a sus precarias condiciones técnicas40.

56 Una coyuntura, a partir de la que Manuel Castells aseguró el interés de las especificidades culturales en los diferentes medios sociales, aunque también señaló la evidencia de que esta división no pasaba más por la separación ciudad-campo. Para el autor, la explicación de cada modo de vida exige que la articulemos al conjunto de una estructura social, ya que lo que está en cuestión es el análisis del proceso de producción social de los sistemas de representación y de comunicación41.

57 Esta circunstancia y los debates académicos del inicio de la década de 1970 llevaron Horacio Capel a afirmar que “frente a la antigua y tradicional dicotomía, que distinguía simplemente entre lo rural y lo urbano, debemos hoy aceptar una diversidad de situaciones caracterizadas por una complejidad creciente desde el punto de vista de la organización espacial” , en la que cuentan la planificación territorial y la coincidencia general en aceptar que en algunas áreas, especialmente las metropolitanas se incluyen también parcelas rurales y otras cuestiones que introducen matices y niveles intermedios dentro de lo urbano42.

58 Un planteamiento que ganó fuerza con la implantación y consolidación del ‘régimen de acumulación flexible’, proceso que engendró nuevas dinámicas económicas y socio espaciales, reconfiguró los territorios dotando el campo y la ciudad de nuevos rasgos y haciendo cada vez más complejos sus vínculos.

La consolidación de un nuevo orden económico y territorial

59 La mayor movilidad del capital, su desregulación y financiarización, la flexibilidad de las relaciones capital-trabajo y la difusión de nuevas tecnologías, que han promovido la desconcentración y, a la vez, la localización dispersa de las actividades económicas, al instituir nuevas dinámicas territoriales han eliminado antiguas barreras que existían entre ciudad y campo.

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60 En este proceso, que se produjo con mayor o menor intensidad en todos, o casi todos los ‘lugares’ del planeta, las actividades tradicionalmente desarrolladas en el campo, como la agricultura y la ganadería, se han insertado en la lógica de la reproducción capitalista, y debido a esto, han quedado expuestas a un amplio proceso de modernización.

61 La asociación entre instituciones financieras y conglomerados agroindustriales, además de proporcionar mayor fluidez al capital, ha subordinado las actividades agrícolas al sistema económico general y profundizado las relaciones entre la industria, articulada y con elevados recursos, y una gama de medianos y pequeños agricultores, generalmente con escasos recursos financieros y técnicos. También, ha estimulado la formación de redes globales que asocian actividades afines a la producción y a la cooperación, a través de una estructura de circuitos espaciales rurales y urbanos en la que se encuentran integrados laboratorios de investigación biotecnológica, proveedores de insumos químicos, máquinas y aperos de labranza, prestadores de servicios, empresas de marketing, agroindustrias, empresas comerciales de distribución (cadenas de supermercados, fast food), entre otros.

62 Como corolario de este amplio movimiento, se introdujo en el campo un abanico de nuevos elementos que transformaron por completo las prácticas agropecuarias y el modo de vida rural tradicional. Por un lado, además del proceso de mecanización de las actividades rurales, que se venía produciendo en Brasil y América Latina desde hace décadas y más de un siglo en el caso europeo, se intensificó la producción agrícola a través de la mejora genética de semillas y embriones, y del empleo de insumos más eficaces. También se incorporaron nuevos cultivos con mayor demanda en el mercado internacional, muchas veces en detrimento de la producción de alimentos básicos, y se extendió al campo la informatización de los sistemas. Una lógica que propició nuevas posibilidades de uso y ocupación del espacio rural y expandió al campo las posibilidades de reproducción de los excedentes del capital.

63 Por otro lado, se intensificó la división del trabajo en el campo por medio de intercambios intersectoriales, se establecieron nuevas relaciones entre productores e industriales o comerciantes, que van más allá de la compra-venta, como es el caso de los contratos de integración productiva43, y se instituyó una especialización espacial que, al estar fuertemente integrada en la economía urbana, genera una extensa gama de nuevas conexiones, aumentando la conectividad y dinamizando las relaciones entre las actividades desarrolladas tanto en el campo cómo en la ciudad.

64 Para esto, ha sido esencial la consolidación de las Tecnologías de la Información y de las Comunicaciones (TICs) que han conseguido introducir, aunque con diferentes intensidades, procesos tecnológicos muy similares a nivel global, promoviendo la extinción de hábitos sociales y laborales tradicionales, e intensificando la transformación del medio natural y social al servicio de la ampliación de la plusvalía. En este proceso, en el que se alteran las anteriores formas de aprehender el tiempo y el espacio y, por lo tanto la manera de actuar en ellos, se produce una homogeneización de las relaciones sociales y del territorio en el que los elementos que integran las particularidades de cada “lugar” o región, reaccionan en un movimiento contradictorio continuo, dando origen a transformaciones, permanencias y diferentes combinaciones. El resultado es la configuración que cada territorio adquiere, a partir de la dinamicidad de los elementos históricos que componen su estructura.

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65 Además, mientras la ciudad preexistente estaba formada por una unidad geográfica que podía ser fácilmente delimitada de su entorno rural, la metrópolis contemporánea arrebata el campo como su propia zona simbólica. El campo y las zonas residenciales situadas a las afueras de las ciudades, comunicadas a través de tecnologías recientes, como teléfonos móviles, ordenadores o GPSs se constituyen en el locus de un mundo compartido y configurado colectivamente. Las ciudades y los pueblos se transforman en puntos de una intensa red urbana cuyos flujos económicos y culturales continuos y a la vez flexibles, atenúan y a veces tornan imperceptibles los límites de los espacios que tradicionalmente entendemos como ciudad y campo, dificultando el encaje administrativo de significativas parcelas de suelo, hacia una u otra connotación.

66 Los mecanismos que componen este nuevo ordenamiento político, económico y social, han contribuido a que lo rural incorpore la misma racionalidad que define la sociedad organizada a partir de la ciudad y de sus principales actividades, industrias básicas y de tecnología, turismo y demás servicios a través de los que la reproducción del capital se hace viable. Con esto, los referentes que anteriormente distinguían a la ciudad del campo, lo artificial de lo natural, han sido reproducidos indistintamente, en un territorio que según Luis Llanos-Hernández “ha pasado a convertirse en uno de los referentes conceptuales que explican las transformaciones del espacio correspondiente a la era de la globalización y de la posmodernidad”44.

67 En las ciudades, y también como parte integrante de este proceso, la incorporación a su núcleo central de nuevas áreas continuas o descontinuas, a través de la urbanización y de la suburbanización de áreas periurbanas o rurales, impulsada por las necesidades del capital inmobiliario y nuevas infraestructuras de transportes y flujos de información y comunicación, si por un lado promueve el desarraigo al campesino de su “terruño” natal, por otro, establece nuevos estilos de vida a los urbanitas ávidos por residir en el campo y, si es posible, añadir a su cotidiano actividades que les aproxime a la naturaleza, aunque se vean, en muchos casos, obligados al uso intensivo del transporte privado45.

68 Estas formas contradictorias están presentes igualmente en el ámbito urbano central, en el que la reconfiguración de los barrios antiguos, a través de las políticas de incentivo al proceso de gentrificación, ha expulsado a sus vecinos y destruido su urbanidad, y en su lugar ha creado tanto áreas residenciales ocupadas por grupos profesionales prósperos, directivos y técnicos, cómo zonas estratégicas que estimulan nuevos usos y estilos de vida, vinculados a la industria del consumo, del ocio y del turismo, beneficiando a determinados grupos económicos.

69 En definitiva, estamos, como afirma Ana Fani Carlos, ante un proceso antagónico, en el que la producción del espacio se realiza socialmente, a través de la creación de la totalidad de la sociedad, pero su apropiación es privada; esto es, el acceso a los lugares de materialización de la vida, producidos socialmente, se realiza de forma dominante por mediación del mercado inmobiliario, asegurando la lógica del valor de cambio sobre el valor de uso46.

70 En esta dinámica, en la que el ‘espacio-mercancía’ se sobrepone a los espacios en los que se realiza la vida social, ha sido esencial la idiosincrasia de cada lugar, por lo tanto de cada ciudad y de cada ámbito rural. La ciudad de modo más expresivo, aunque el campo también, han asumido nuevas formas y contenidos que los aproximan, y en los que se evidencian significativas contradicciones, tales como la apropiación desigual del territorio y la segregación socio espacial.

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71 Son estas cuestiones, las que llevan a la discusión que planteamos desde ahora, en la que invitamos a reflexionar sobre los territorios globalizados, que al ser re-significados superan el antagonismo ciudad-campo y, en su lugar, emerge una coyuntura cuya dinámica impone pensar el espacio como una totalidad única, en la que para asimilar el ‘todo’ a partir de sus ‘partes’, es imperativo el empleo de métodos que aprehendan este proceso dialéctico.

El territorio concebido a partir de una totalidad, en la que la dinámica socioeconómica supera los conceptos dicotómicos

72 El nuevo modelo de acumulación y reproducción ampliada del capital está fuertemente asociado a lo que denominamos de ‘compresión tiempo-espacio’. La gran movilidad que el capital ha logrado alcanzar en las últimas décadas, tiene como principal propósito ‘buscar’ nuevos territorios con mayor capacidad de apropiación de rendimientos, en los que pueda establecer una base que comprende, además de las estructuras, un intricado entramado de flujos y redes (materiales e inmateriales) que actúa a múltiples escalas, sin que para ello se establezca una división territorial precisa, mediante la que se pueda discernirlas y delimitarlas.

73 La incorporación de nuevas áreas a la lógica de este proceso y la difusión de los últimos avances técnicos, científicos e informacionales han alterado las dinámicas espaciales urbanas y rurales establecidas anteriormente. Éstas han sido emplazadas por nuevos mecanismos que realimentan las relaciones existentes, y a la vez destruyen otras hasta entonces estables, en un impulso que al asegurar una continuidad espacial, reconfigura el modo de organización territorial, dándole mayor complejidad47.

74 De este modo, la durabilidad de las formas, de las estructuras, de los procesos y también de los vínculos preexistentes que pudiesen limitar el movimiento que asegura la reproducción del capital, se ven suplantadas, en diferentes grados de intensidad, tanto en la ciudad como en el campo, dando origen, como ya afirmamos anteriormente, a una significativa homogeneización de las relaciones sociales y económicas.

75 Las ciudades, sus áreas metropolitanas y los pequeños núcleos regionales, aunque con diversos niveles de empuje, dejan de ser concebidos únicamente por su condición de centro administrativo, industrial o de servicios, y el campo comprende un conjunto de actividades que van más allá de la agropecuaria o de la agroindustria.

76 Estamos, por lo tanto, ante una nueva coyuntura en la que, defender razonamientos que hacen distinciones entre el campo y la ciudad desde la cultura o a partir de sus formas y estructuras, se vuelve incoherente en muchas regiones del mundo, ya que, como afirma Françoise Choay “a este sistema operativo, válido y factible en cualquier lugar, en la ciudad como en el campo, en los pueblos como en los suburbios, se le puede llamar lo Urbano”48.

77 Los profundos cambios por los que han pasado las actividades propiamente rurales y las nuevas funciones que ha adquirido el campo, corroboran esta premisa. El traslado a las zonas periféricas o rurales de algunos sectores industriales vinculados o no a las actividades agropecuarias; el ejercicio de la agricultura a tiempo parcial o de la pluriactividad, practicada entre los pequeños productores agrícolas, cuyos empleos temporales o a tiempo parcial proporcionan nuevas alternativas de ingresos a la

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familia49, lo que ha viabilizado que su reproducción como agricultores perdure, son algunas de las consecuencias de la rápida articulación entre ciudad y campo, décadas atrás más alejados.

78 Coadyuvan en este proceso, el nuevo modelo de ciudad que menosprecia los núcleos y las zonas urbanas que se desindustrializaron con la crisis fordista, y que a la vez fomenta un proceso de reindustrialización en nuevos espacios alejados de los viejos centros urbanos, en los que se establecen las industrias de alta tecnología50.

79 Complementa esta nueva lógica un nuevo modelo de urbanización51 en la que el suelo suburbano o rural se valora intensamente con la edificación de núcleos urbanos donde se establecen primeras o segundas residencias52, estimulando el desarrollo de actividades vinculadas al sector servicios y al ocio o al turismo, estas últimas en las que la tarea de preservación y conservación de los parques naturales ha fomentado el eco- turismo y demandado nuevas funciones administrativas y científicas.

80 ¿Estaríamos ante un proceso en el que, en muchas regiones, lo rural se compondría de algunos intersticios situados en el interior de grandes urbanizaciones? La reflexión de Javier García-Bellido, indica una realidad que ya sucede en algunas zonas más densamente pobladas: El campo, el espacio rural antes aparentemente ilimitado, deviene ahora escaso y limitado, reserva necesaria para prestar la vital producción de su clorofila como espacio verde a los habitantes de la ciudad, para su uso ansioso, no sólo como fuente de alimentación por su vegetación comestible, fungible o convertible en pastos para carne, sino además porque se presta al disfrute de la ciudad, para su respiración, ocio, expansión y reposo, como reserva de oxígeno, como bosques convertidos por los ecotecnócratas en simples sumideros de dióxido de carbono, computables a descontar para poder seguir contaminando53.

81 Un nuevo escenario que remite a las palabras de Horacio Capel cuando éste señala los obstáculos conceptuales para formalizar una definición que atienda a la complejidad y los matices que abarcan estas dos subesferas: Efectivamente la diferencia entre ciudad y campo estaba antes más o menos clara; en las dos acepciones que consideraban los romanos, la urbs y la civitas. Hoy en un aspecto y otro las cosas han cambiado. La urbs, el espacio construido con una densidad de edificación, resulta difícil de delimitar y de definir, por la extensión de la urbanización difusa, que la ha expandido ampliamente por todo el territorio de lo que, primero, se llamaban ciudades, luego se convirtieron a veces en áreas metropolitanas y ahora, cada vez más, se configuran como regiones metropolitanas, e incluso rebasan ampliamente ese marco territorial. En cuanto a la civitas, los problemas son todavía mayores. Antes estaba muy clara la diferencia entre ciudadano y campesino. Estos últimos eran frecuentemente objeto de menosprecio y de burla por los primeros, debido a sus modos rústicos, a su falta de cultura y de urbanidad. Hoy la situación ha cambiado. Hay campesinos que viven como ciudadanos, con acceso a los mismos niveles de educación y bienestar; y ciudadanos que valoran o añoran la naturaleza o el campo, y deciden vivir en el espacio rural, o en lo que ellos consideran tal54.

82 En su conjunto, este debate corrobora la tesis aquí desarrollada. En las últimas décadas las relaciones sociales, económicas y políticas que abarcan ciudad y campo han desencadenado un nuevo proceso espacio-temporal en el que nuevos elementos más o menos interdependientes y en algunos casos contradictorios, se han presentado cada vez más asociados, y parte de un movimiento continuo indisociable. Un ejemplo es la industrialización y la expansión del sector servicios en el campo, cuyas formas- contenido55, aunque sean complementarias a las actividades agrícolas, pueden entrar en

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contradicción entre sí, y con el paisaje rural tradicional. Del mismo modo, la práctica de la agricultura en las ciudades podría considerarse ajena a las actividades genuinamente urbanas, aunque concierna a una de las necesidades más inmediatas, la alimentación de proximidad56.

83 Teniendo en cuenta las concepciones desarrolladas por el antropólogo Manuel Delgado, también se puede afirmar que la ciudad no es lo mismo que lo urbano, ya que, lo que implica la urbanidad es precisamente la movilidad, los equilibrios precarios en las relaciones humanas, la agitación como fuente de vertebración social, lo que da pie a la constante formación de sociedades coyunturales e inopinadas, cuyo destino es disolverse al poco tiempo de haberse generado57.

84 Para el autor, lo opuesto a lo urbano no es lo rural, sino una forma de vida en la que registra una estricta conjunción entre la morfología espacial y la estructuración de las funciones sociales, y que puede asociarse a su vez al conjunto de formas de vida social basadas en obligaciones rutinarias, una distribución clara de roles y acontecimientos previsibles, fórmulas que suelen agruparse bajo el epígrafe de tradicionales o premodernas58.

85 A estas lógicas, se incorporan procesos que van más allá de la difusión del comportamiento urbano en el campo. Se produce una interacción en la que los componentes que originan y mantienen las tradiciones y los valores rurales se combinan con los hábitos y estilos urbanos y viceversa, aunque casi siempre conservando algunas ‘permanencias’. Un proceso de hibridación cultural y material que al abarcar estos ámbitos, explican, por un lado, la existencia de huertos o de vaquerías en áreas consideradas urbanas que, como ‘islotes de ruralidad,’ resisten a los diferentes procedimientos de especulación inmobiliaria y de urbanización59. Por otro recoge, cómo el sistema de 'fijos' espaciales, al instalarse incluso en zonas rurales más dispersas, además de impulsar flujos muy similares a los encontrados en las ciudades, pone al alcance de los grupos con rentas más elevadas, tecnologías específicas como las de la ‘agricultura de precisión’ que asocia la utilización del GPS con Sistemas de Información Geográfica y otros sistemas de teledetección, que sorprendería a cualquier urbanita que todavía poseyese una imagen idílica de lo rural. Estamos, por lo tanto, ante una articulación de mecanismos que al posibilitar la permanencia de las antiguas formas (desde la resistencia y de la reacción), y el avance de nuevas dinámicas (impulso, acción), promueve nuevas composiciones del paisaje, en su dimensión aparente de lo real.

86 Una coyuntura en la que, como afirma Melvin M. Webber, ocurre una casi inversión de la concepción tradicional que distinguía urbanitas y ruralitas, puesto que, “los urbanitas no residen ya exclusivamente en asentamientos metropolitanos, ni los ruralistas viven exclusivamente en los hinterlands60.

87 Como propulsores de este paradigma se encuentran los flujos que caracterizan las actividades económicas y laborales, y cuya dinamicidad dota al territorio de una continuidad que supera el límite físico ciudad-campo, sobre todo cuando estos, representados por demarcaciones administrativas, son fijados sin tener en cuenta los variados elementos que actúan en este ámbito.

88 Los límites de las ciudades y de sus alrededores son cada vez más ‘porosos’, lo que dificulta o impide precisar los diferentes ámbitos que las conforman. Es el caso de muchas áreas metropolitanas.

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89 Nos encontramos, por tanto, ante una fuerza que al engendrar nuevos procesos, produce elementos contradictorios que al mismo tiempo que “atacan, corroen y disuelven” las prácticas que caracterizan el campo tradicional, “atenúan la oposición ciudad-campo e intensifican la relación ‘urbanidad-ruralidad’”61.

90 Una condición que configura un movimiento múltiple y a la vez paradójico, que ubicado en el centro de los distintos marcos de resistencias se manifiesta tanto en las diversas formas-contenido espaciales, como en los diferentes modos de vida urbano y rural, o sea, en un conjunto de acciones y reacciones inherentes a ellos. Así, los conceptos de ciudad y de campo no exprimen más realidades concretas y reconocibles integralmente en el espacio social contemporáneo. La sustantivación del calificativo urbano, representando la realidad urbano-industrial actual, pasa de esta manera a representar el tercer término de la tríada dialéctica, la síntesis de la contradicción ciudad-campo62.

91 Esta coyuntura exige nuevas metodologías de investigación, a partir de las que es imprescindible pensar en los fenómenos sociales que se producen en el territorio, como ‘fracciones’ de un determinado ‘todo’ que desempeñan una doble función: la de definirse a sí misma y la de definir el ‘todo’. Como una totalidad63, en la que se imbrican actores que actúan en varias escalas y que en función de intereses varios, sean ellos sociales, políticos, económicos o medioambientales se articulan en diversos movimientos y composiciones cada vez más complejas, creando y renovando sus esferas de actuación.

92 A través del estudio de esta interdependencia, que a veces se traduce por una contigüidad espacial y otras por un aparente distanciamiento, conseguimos aprehender los elementos de este conjunto y sus respectivas variables, extrayendo del mismo su esencia. Una esencia que nos revela las combinaciones y contradicciones de sus estructuras y de sus ‘formas-contenido’, cada vez más yuxtapuestas, y nos exponen cómo las rugosidades64 o permanencias son transformadas o adaptadas, obedeciendo a las prioridades de las nuevas funciones que los territorios van adquiriendo en su dimensión temporal.

93 Un análisis que, como afirman David Harvey y Milton Santos y, ya había sido anunciado por Élisée Reclus, impone la comprensión de la indisociabilidad del espacio y del tiempo. Un fenómeno que David Harvey asocia a los procesos materiales de reproducción social en general, Milton Santos lo vinculó a las formas-contenido, y Élisée Reclus lo apoyó en la dialéctica del medio-espacio y del medio-tiempo, concibiéndolos como conceptos interdependientes: las fuerzas naturales (medio) varían de un lugar a otro (en el espacio) y de época en época (en el tiempo) a medida que la sociedad se transforma65.

94 Incorporadas a este debate académico están las propias acepciones de ciudad y urbano, y de campo y rural, que implican flujos y reflujos, modo de vida, y modos de reproducción del capital y de la fuerza de trabajo, pero también múltiples procesos e interacciones, cuyos elementos materializados en diferentes esferas que, en lo que concierne a su localización, forma o función, se contradicen con los argumentos que defienden una supuesta dicotomía entre estos subsistemas.

95 Para que se conozca la esencia de esta dinámica, responsable de alimentar y retroalimentar la construcción y reconstrucción de los espacios, es imprescindible descartar las viejas concepciones, superando la oposición urbano-rural y el concepto de continuum territorial, en su visión clásica66. Solo así es posible identificar los

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mecanismos que impulsan y orientan los elementos comunes a esta lógica, hacia una u otra tendencia, incluso porque: Lo urbano no es sinónimo de urbanidad. Ni tan solo propiedad exclusiva de la ciudad. Podemos, así, volver a Giovannoni e imaginar núcleos de urbanidad, de múltiples tamaños y formas, susceptibles de entrar en una dialéctica con lo urbano homóloga a la que en otro tiempo vinculaba ciudad y campo67.

96 Aprehender el territorio desde una totalidad dialéctica, nos faculta comprender la realidad social en su totalidad, desde su propia estructura en la que diferentes acciones, técnicas y relaciones sociales y de trabajo, imbricadas dialécticamente entre sí y articuladas en varias esferas, instituyen materialidades e inmaterialidades, asignándole peculiaridades propias. Por lo tanto, una dinámica en la que homogeneidad y diversidad coexisten a través del tiempo y del espacio en sus múltiples niveles, produciendo contradicciones, combinaciones, transformaciones y permanencias, en un equilibrio, cuya ruptura puede traer, como consecuencia, la suplantación de elementos y de prácticas locales.

97 Este es el proceso que nos posibilita entender la complejidad de los lugares cada vez más globalizados, y en el que las diferencias entre la ciudad y el campo, lo urbano y lo rural quedan para segundo o tercer planos. Esto es así porque las articulaciones que se han establecido entre ciudad y campo son más intensas que nunca, y comprenden, además de las conexiones relativas a la división técnica, social y territorial del trabajo, las formas espaciales en las que se imbrican, sobreponiéndose a las escalas locales y a muchas otras68.

98 Los estudios elaborados por Milton Santos a finales de la década de 1990 ya señalaban el territorio como un conjunto inseparable de sistemas, objetos y acciones al que denominó “espacio geográfico híbrido” y en el que se entiende que están incluidos todos los vínculos intrínsecos a sus elementos, y por consiguiente los ámbitos entendidos como urbano y rural.

El análisis ciudad-campo a partir de una “totalidad dialéctica”

99 En este contexto, nos hallamos, pues, analizando un territorio cada vez más globalizado cuya totalidad es resultado de un proceso simbiótico en el que interaccionan sistemas y flujos de relaciones (acciones y reacciones) que al materializarse en objetos (a través de sus formas-contenido), representan una dinámica mucho más amplia que la identificación y caracterización de actividades que sugieren o explicitan la continuidad de la dualidad entre ciudad y campo.

100 Es así porque, para asimilar cómo las relaciones sociales, políticas y económicas desencadenan los procesos espacio-temporales, en los que elementos contradictorios y más o menos interdependientes que componen el campo y la ciudad (y lo rural y lo urbano) se presentan asociados de forma agregada y contrapuesta, es necesario ir más allá de los elementos y mecanismos que recuerden espacios cerrados, o de perspectivas duales como las que conforman un “par dialéctico”.

101 Del mismo modo es insuficiente pensar que los procesos que se producen en el campo pueden ser clasificados como ‘urbanidad en el rural’, especialmente por dos razones. La primera está vinculada al hecho de que el origen de los sistemas que transforman lo

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urbano y lo rural se encuentra en las necesidades que el capital posee de elegir territorios, cuyas especificidades puedan proporcionar importantes excedentes y de este modo viabilizar su reproducción.

102 En este proceso, la Tierra representa la totalidad, y el elemento decisivo ya no es la ciudad que vive del campo, sino los hombres y sus dinámicas de reproducción que ocupan, consumen y deterioran todo lo que hay sobre ella, no sólo en el campo, sino también de modo global, contaminando el agua, el aire y la flora. Ante esta situación, en la que tanto el campo cómo la ciudad se transforman en medios, en instrumentos que posibilitan la ampliación de la plusvalía, afirmar que la ciudad se adentra en el campo, es negar la dinámica que integra este proceso.

103 La segunda razón se fundamenta en que, por más que se afirme que una fracción importante de las transformaciones innovadoras que hoy forman parte del espacio rural, antes integraban el paisaje urbano, es primordial subrayar que hay un segmento significativo de innovaciones que se diseñaron con la finalidad específica de dotar las actividades rurales de mayor diversidad y productividad. Si denominamos los cambios que se produjeron en el campo como ‘urbanidades en lo rural’ estamos excluyendo las formas cuyos contenidos son esencialmente rurales.

104 Otro concepto muy empleado es el de que ciudad y campo conforman un “par dialéctico” y en el que se insiere, obviamente, aunque camuflado por el térmico ‘dialéctico’, el viejo antagonismo entre estos espacios. Para que este enfoque retome una dimensión actual, en la que se pueda aprehender la importante trama de nodos y flujos que se esparce en el territorio, construyéndolo y remodelándolo contantemente, y como consecuencia engendrando una contigüidad territorial, es fundamental pensar un análisis a partir de un ‘conjunto dialéctico’, una ‘totalidad dialéctica’, en el que se integran todas las dimensiones de un proceso único.

105 Trátase, por lo tanto, de una herramienta metodológica que abarca el ‘conjunto dialéctico’ de un fenómeno o de un proceso estudiado, que posibilita asimilar todos sus matices.

106 Esta es la propuesta del texto, traer a discusión un tema que por su altercado y pluralidad de situaciones ha suscitado muchos debates en las últimas décadas. Su estudio, independiente del contexto de cada lugar, debe en todos los casos, superar la dualidad espacial, y en su lugar, priorizar el conjunto simbiótico de elementos o de fenómenos (naturales, humanos, sociales y económicos), cuyas acciones y reacciones, combinadas y simultáneamente contradictorias, componen el espacio en su totalidad. Esta es una condición sine qua non para que se aprehenda la esencia del movimiento dialéctico que integra los diferentes procesos que produce el territorio y a la vez se reproducen en el mismo, y del que la ciudad y el campo en sus diversidades, son los protagonistas.

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NOTAS

1. Karel Kosik, 1989, p. 42- 50. 2. Miriam Zaar, 2015, p. 25 (a). 3. Karl Marx y Friedrich Engels, 1986, p. 27 y 28. 4. Manuel Castells, [1972], 2011, p. 181-182. 5. Ana Fani Carlos, 2016, p. 68. 6. Mª. Encarnação Sposito, 2016, p. 135. Traducción de la autora. 7. Expresión concebida por Milton Santos. 8. Karel Kosik, 1989, p. 35. 9. Lewis Mumford, 1957 y 1966. 10. Jane Jacobs, 1971. 11. Julio Caro Baroja, 1966, p. 195. 12. Karl Marx y Friedrich Engels, 1986, p. 77-79. 13. Henri Lefebvre [1968], 1991, p. 28-29. 14. Jacqueline Beaujeu-Garnier y Georges Chabot, 1970, p. 27 y 28. 15. Marcel Aurousseau, 1921; apud Robert Dickinson, 1961, p. 42. 16. Max Weber [1958], 1987, p. 3-11. 17. Robert Dickinson, 1961, p. 41. 18. Robert Dickinson, 1961, p. 73. 19. Georg Simmel, 1903 apud Françoise Choay, 1970, p. 505-520. 20. Louis Wirth, 1938, p. 1-27, apud Manuel Castells [1972], 2011, p. 127-140. 21. Richard Meier, 1962 apud Horacio Capel, 1975. 22. Peter Hall, 2013, p. 13. 23. Piotr Kropotkin, [1892], 1973, p. 88-89; Miriam Zaar, 2016, p. 10. 24. Elisée Reclus, 1985, p. 144; Miriam Zaar, 2016, p. 8. 25. En el texto Renovação de uma cidade, 2010, p. 81-94, Reclus analiza el pensamiento y la obra de Patrick Gueddes. 26. Ebenezer Howard, 1969, p. 6. 27. Ebenezer Howard, 1969; Miriam Zaar, 2016. 28. Estas y otras ideas suyas fueran publicadas en su obra The Living City, Milán, Skira [1958], 1998. 29. Frank Wright, 1978, p. 269; Miriam Zaar, 2016. 30. Piotr Kropotkin, [1892], 1973, p. 62. 31. Edward Soja, 2008, p. 125. 32. Max Derruau, 1964, p. 608-611. 33. Henri Lefebvre [1968], 1991, p. 65. 34. Paul Claval, 1968, 1-2, p. 3-56, apud Horacio Capel, 1975. 35. Fernando Chueca, 1968, p. 42.

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36. Ronald Abler; John Adams; Peter Gould, 1977, p. 354. 37. Élisée Reclus [1866], 2010, p. 79-80. 38. Jean Remy, 1974, p. 45. 39. Jacqueline Beaujeu-Garnier y Georges Chabot, 1970, p. 26. 40. Horacio Capel, 1975. 41. Manuel Castells [1972], 2011, p. 138. 42. Horacio Capel, 1975. 43. Incorporados a la reestructuración productiva del sector agropecuario, los contratos de integración establecen obligaciones que, para el productor, radican en la realización de los cultivos o la cría de los animales de conformidad con las normas técnicas que aseguren la producción de una cantidad y calidad de productos, la entrega en tiempo y forma del resultado de la actividad; mientras el industrial o comerciante está obligado a recibir la producción y realizar el pago en la forma, precio y condiciones pactadas. Son muy comunes los contratos de integración de avicultura de carne, porcina o ganadera. 44. Luis Llanos-Hernández, 2010, p. 219; Horacio Capel, 2016, p. 15. 45. Aunque esta dinámica se intensificó a partir de mediados del siglo XX, a finales del siglo XIX el geógrafo ácrata Élisée Reclus, ya intuía que los avances tecnológicos (medios de comunicación y de transporte) y la expansión urbana, estrechaban las relaciones entre el campo y la ciudad. (ZAAR, 2016, p. 7 y 8) 46. Ana Fani Carlos, 2016, p. 60. 47. Sobre la relación entre espacio, tempo y técnica véase Milton Santos. A natureza do Espaço, 2012. 48. Françoise Choay, 2005, p. 70. 49. Como analiza Miren Etxezarreta, 1983 y 1995, para o ámbito español y europeo. 50. Edward Soja, 2008, p. 344. 51. Conocido por urban sprawl, ciudad difusa, ciudad dispersa, ciudad ilimitada o megaciudad, entre otras expresiones. 52. Como analiza Maria Aparecida Fonseca Pontes, 2012, para la Região Metropolitana de Natal, RN. 53. Javier García-Bellido, 2003, p. 343. 54. Horacio Capel, 2010. 55. “No existe forma sin contenido. No existe contenido sin forma”, afirmó Henri Lefebvre [1968], 1991, p. 87. En esta misma línea de pensamiento Milton Santos defiende que la forma-contenido une el proceso y el resultado, la función y la forma, el pasado y el futuro, el objeto y el sujeto, el natural y el social, lo que supone el tratamiento analítico del espacio como un conjunto inseparable de sistemas de objetos y sistemas de acciones. [1996], 2012, p. 103. 56. Para ornamentación o como fuente de alimentación, su origen está vinculada a los jardines egipcios, griegos, romanos, bizantinos o musulmanes, a los monasterios y conventos de la Edad Media, así como a los palacios renacentistas. Más recientemente, está práctica está siendo estimulada con el objetivo de proveer alimentos sanos a la población con carencias alimentarias, pero igualmente a grupos plantean un cambio alimentar, basado en la agroecología y en los productos de proximidad. Para ampliar la información vea-se Miriam H. Zaar, 2011 y 2015 (b). 57. Manuel Delgado, 1999, p. 11-12. 58. Manuel Delgado, 1999, p. 24. 59. Como es el caso de las vaquerías en el municipio de João Pessoa, analizado por Doralice Sátyro Maia, 2005, y de las huertas urbanas del Gramorezinho, en el municipio de Natal, estudiado por Miriam Zaar. 60. Melvin Webber, 2005, p. 15. 61. Henri Lefebvre [1968], 1991, p. 68-69. 62. Ester Limonad y Roberto Luís Monte-Mór, 2012, p. 10.

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63. Por ‘totalidad’ también podemos entender una realidad en su íntegra que se trasforma (metamorfosea) en sus partes desde procesos de fragmentación y de recomposición, como resultado de cambios sociales y espaciales. Milton Santos, [1996], 2012, p. 113-128. 64. Aquí utilizadas a partir de la concepción de Milton Santos, como formas espacias residuales de estructuras sociales anteriores. 65. David Harvey, 1993; Milton Santos, 1996; Élisée Reclus [1866], 2010. 66. A partir de nuevos procesos que interaccionan en el urbano y en el rural, este concepto ha evolucionado. Pasó a entenderse el continuum rural-urbano desde una percepción que aproxima e integra estos espacios, y en la que dejan de ser opuestos y se integran, aunque manteniendo su heterogeneidad. Para ampliar esta idea, ver, por ejemplo, Maria de Nazareth Wanderley, 2000. 67. Françoise Choay, 2005, p. 72. 68. Mª Encarnação Sposito, 2011, p. 134.

RESUMOS

As características que definem a urbe e o campo e seus atributos têm sido objeto de amplas discussões desde o século XIX. Os critérios empregados estiveram diretamente vinculados a conjunturas espaço-temporais concretas e refletem as alterações que se produziram em função da difusão tecnológica e a constituição de tramas de nós e fluxos que, com maior ou menor intensidade, disseminaram-se por todo o território construindo-o e remodelando-o. Neste novo contexto em que as articulações que se estabeleceram entre cidade e campo são mais intensas e complexas que nunca, torna-se imprescindível analisar esta dinâmica através de métodos que superem os conceitos dicotômicos ou que lembrem espaços cerrados ou duais. Para apreender o processo que reproduz o campo e a cidade, o rural e o urbano, é primordial pensar o território a partir da ‘hibricidade’ e do conjunto de elementos que o conformam e que o dinamizam em um movimento dialético.

Las características que definen la ciudad y el campo y sus atributos, han sido objeto de amplias discusiones desde el siglo XIX. Los criterios empleados han estado directamente vinculados a coyunturas espacio temporales concretas y reflejan los cambios que se han producido en función de la difusión tecnológica y la constitución de tramas de nodos y flujos que, con mayor o menor intensidad se esparcen en el territorio, construyéndolo y remodelándolo contantemente. En este contexto, en el que las articulaciones que se han establecido entre ciudad y campo son más intensas y complejas que nunca, hace imprescindible analizar esta dinámica a través de métodos que superen los conceptos dicotómicos o que recuerden espacios cerrados o duales. Para aprehender el proceso que reproduce el campo y la ciudad, lo rural y lo urbano es primordial plantear el territorio a partir de su ‘hibricidad’ y del conjunto de elementos que lo conforman y que lo dinamizan en un movimiento dialéctico.

Les définitions des concepts de urbe et de campagne ont été largement discutés depuis le XIXème siècle. Les critères sont liés à des conjonctures spatiales et temporelles concrètes et reflètent les changements provoqués par la technologie et sa diffusion territoriale. Au moment où les liens entre la ville et la campagne sont chaque fois plus intenses, il faut les analyser à travers des méthodes anti-dichotomiques, en analysant le territoire à partir de « l’hibricité » et de l’ensemble d’éléments qui les conforment dans un mouvement dialectique.

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The characteristics that define the city and the country and their attributes, have been the subject of extensive discussions since the nineteenth Century. The criteria have been directly linked to the conjunctures spatiotemporal specific and reflect the changes that have occurred due to technology diffusion, and the establishment of networks of nodes and flows, with more or less intensity is extends throughout the territory, remodelling it constantly. In this context, in which the articulations that have been established between city and country are more intense and complex than ever, it is essential to analyse this dynamics through methods that overcome dichotomous concepts or recall closed or dual spaces. To apprehend the process that reproduces the countryside and the city, the rural and the urban, it is essential to considerer the territory from its 'hibridity’ and the set of elements that it conforms and it dynamizes in a dialectical movement.

ÍNDICE

Mots-clés: territoire, ville-campagne, urbain-rural, totalité dialectique, méthodologie de recherche. Keywords: territory; town-country; urban-rural; dialectical totality; research methodologies. Palabras claves: territorio; ciudad-campo; urbano-rural; totalidad dialéctica; metodología de análisis. Palavras-chave: território; cidade-campo; urbano-rural; totalidade dialética; metodologia de pesquisa.

AUTOR

MIRIAM HERMI ZAAR

Doctora en Geografía Humana por la Universidad de Barcelona (España). Coordinadora del Portal Geocrítica y Secretaria del Consejo de Redacción de la Revista Biblio 3W, Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales, vinculados al Departamento de Geografía de la Universidad de Barcelona. Miembro del Grupo de Estudos urbanos – GeUrb (PPGG – UFPB), del Grupo Interdisciplinar de Pesquisa Turismo e Sociedade (UFRN) e del Centre de Recursos per l’Ecologia Social – CRES (UB). [email protected]

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Políticas de transferência de renda: componentes utópicos e realização na América Latina POLÍTICAS DE TRANSFERÊNCIA DE RENDA: COMPONENTES UTÓPICOS E REALIZAÇÃO NA AMÉRICA LATINA Políticas de transferencia de rentas: componentes utópicos y realizaciones en América Latina. Politiques de transferts sur le revenu : éléments utopiques et réalisations dans l’Amérique Latine Basic income policies: utopian components and achievement in Latin America

Eveline Algebaile, Denise Rissato e Roberto Arruda

1 Entre fins do século XIX e meados do século XX, em diversos países, especialmente na Europa e Norte da América, foram constituídos modernos sistemas de proteção social relacionados às situações hegemonicamente identificadas como de risco para a vida coletiva, como o desemprego, a fome, a doença, a invalidez e a velhice. Os sistemas concretizados nesse contexto e seus componentes utópicos constituem uma conquista das democracias modernas, por assegurarem formas de estabilidade socioeconômica frente às instabilidades da vida social ou por delinearem horizontes de possibilidades capazes de mover lutas e ações orientadas para transformações políticas.

2 Com a crise e as consequentes alterações no modelo de acumulação capitalista ocorridas a partir na década de 1970, mesmo os países que haviam alcançado altos padrões de organização econômico-social, constituindo sólidos sistemas de proteção vinculados ao trabalho, passam a se confrontar com a ampliação e o agravamento de problemas sociais relacionados às condições de inserção econômica de variados segmentos populacionais.

3 Como mostram, dentre outros autores, Robert Castel e Fernando Álvarez-Uría1, vários dos elementos estruturantes da promessa integradora do Estado de Bem Estar Social então consolidada, com destaque para o pleno emprego e a universalização de políticas

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sociais, passam a apresentar crescentes limitações, resultando no aumento do número de pessoas cuja relação com o trabalho passa a se dar segundo padrões que não asseguram condições estáveis de provisão de necessidades básicas e de planejamento do futuro.

4 Em regiões periféricas, a crise apresenta especificidades relevantes em relação aos problemas sociais e aos modos de sua problematização. No caso da América Latina, como mostram Florestan Fernandes e Francisco de Oliveira2, a formação econômico- social dos países da região já havia legado um estoque de desigualdades econômicas e sociais de difícil superação devido a sua gravidade, extensão e profundo enraizamento na própria organização do território, incidindo incisivamente na constituição tanto das forças sociais e políticas quanto da estrutura e das práticas político-institucionais que regem os processos por meio dos quais os problemas da vida coletiva são reconhecidos e enfrentados como problemas da vida pública3.

5 Nesses países, portanto, como mostram os estudos de Aldaíza Spozati e Lena Lavinas4, o estoque de problemas a enfrentar no contexto da crise relaciona-se não apenas a situações econômico-sociais instauradas no presente, mas também, e de forma bastante destacada, à forma como estas se fundem com as desigualdades estruturais historicamente consolidadas, incluindo suas ramificações nas formas de organização do Estado e de utilização do fundo público e da estrutura estatal, regidas por culturas políticas que tendem à reprodução ampliada do que Florestan Fernandes5 chamou de “excedente de poder”. Por meio desse termo, o autor acentua o fato de que as desigualdades, na periferia do capitalismo, não assentam primordialmente na repartição desigual do excedente econômico, mas nas fusões entre poder econômico e poder político que, além de renovarem formas de apropriação patrimonialista do Estado, reiteram as distâncias sociais que impedem a disputa menos assimétrica das políticas econômica e social.

6 Contudo, ainda que nesse contexto as propostas de ajuste do Estado às necessidades do capital se mostrem hegemônicas, surgem, como lembra Horácio Capel6, diversas proposições de enfrentamento dos problemas sociais portadoras de referências utópicas importantes para a compreensão do presente e das possibilidades de futuro.

7 A compreensão da afirmação acima apresentada requer uma explicitação da noção de utopia com a qual trabalhamos neste artigo. Sem ignorar a variedade de sentidos atribuídos ao termo, entendemos primariamente as utopias como sistemas de ideias que conjugam, obrigatoriamente, a crítica à realidade presente com proposições de realidades alternativas. Cabe lembrar que, como alerta Eagleton7, há formulações utópicas constituídas em perspectivas políticas variadas, inclusive claramente opostas. Tanto as críticas como as alternativas propostas podem portar visões fantasiosas que projetam sociedades idílicas, sem compromisso com quaisquer referências às condições concretas de produção da vida coletiva. Ou podem expressar compreensões conservadoras que consagram o passado ou o presente, reiterando suas regras e hierarquias e as elevando à condição de normas que devem ser aplicadas implacavelmente sobre o futuro, de modo a colonizá-lo. Para Eagleton, “o melhor tipo de pensamento utópico” deve rejeitar “ambos os casos”, mantendo “presente e futuro em tensão, apontando para as forças ativas no presente que podem levar além dele”.

8 A problematização de Eaglethon permite ponderar que, em uma utopia compromissada com as condições coletivas de sua realização no curso da história, o cenário futuro traçado não deve ser entendido como uma realidade a ser produzida sem mediações.

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Sua potência, neste caso, não está na sua capacidade de se realizar plenamente, mas nas tensões que é capaz de colocar em movimento no presente. A lembrança de Eduardo Galeano8 a respeito da definição de utopia feita pelo diretor de cinema argentino Fernando Birri, expressa com clareza e com rara beleza essa perspectiva: “ella [a utopia] está en el horizonte. Me acerco dos pasos, ella se aleja dos pasos. Camino diez pasos y el horizonte se corre diez pasos más allá. Por mucho que yo camine, nunca la alcanzaré. Para que sirve la utopia? Para eso sirve: para caminhar.”

9 Essas considerações nos permitem retornar com maior propriedade à discussão das propostas de enfrentamento dos problemas sociais que surgem no contexto da crise dos anos 1970, lembrando que um exemplo expressivo, neste caso, são as inúmeras proposições de políticas de transferência de renda orientadas para cobrir as lacunas de inserção econômica e social então constituídas, políticas estas elaboradas como tentativa de resposta aos desafios de organização da vida coletiva evidenciados no referido contexto.

10 Um marco a destacar, neste âmbito, é a criação da Basic Income European Network (Rede Europeia da Renda Básica) – BIEN, que assume, em 2004, a forma de uma rede mundial, a partir de então denominada Basic Income Earth Network, nome que possibilita tanto a manutenção da sigla original, BIEN, como a ampliação de seu sentido.

11 Constituída no início da década de 1980 como uma organização destinada a difundir concepções, políticas e práticas de concessão de uma renda básica a todo cidadão com o objetivo de se lhes garantir condições mínimas de subsistência independentemente das suas condições de acesso ao trabalho9, a BIEN pode ser entendida como um movimento cuja expansão tem influído na disseminação de políticas de transferência de renda no continente europeu e em outras regiões do mundo. Sua ideia de renda básica tem componentes utópicos relevantes, expressos tanto na crítica à realidade presente, quanto na proposta de realidade apresentada como horizonte a ser construído e alcançado, e quanto, ainda, nas formas como as referências utópicas são convertidas em ferramenta política, já que a realidade proposta é sistematicamente vinculada a programas de ação orientados para a disseminação das práticas entendidas como necessárias à sua construção.

12 As formas concretas predominantemente assumidas pelas políticas de renda efetivamente implantadas nesse contexto, no entanto, têm diferenças importantes em relação às proposições originais de renda básica que constituem o ideário e os programas de ação da BIEN.

13 Tendo por base pesquisas sobre o surgimento e a expansão de programas de transferência de renda condicionada (PTRC) no contexto latino americano10, este artigo se dirige à análise dessas proposições e de sua disseminação, considerando sua ramificação na América Latina e o quadro dos PTRC constituídos nos países da região a partir de então, correlacionando suas características com o ideário disseminado pela proposta da BIEN e discutindo os impasses, limitações, potencialidades e desafios evidenciados a partir dessa correlação.

Aspectos da criação, organização e proposições da BIEN

14 Como dito anteriormente, a BIEN foi formada no início da década de 1980 como um movimento vinculado a um projeto de desenvolvimento e difusão de ideias e ações relacionadas à concessão de uma renda básica incondicional para todos os cidadãos. Tal

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movimento, no entanto, adquiriu rapidamente a forma de uma organização estruturada, cuja consolidação e ramificação têm se dado, desde o início, por meio de diversas vias11, destacando-se, para os fins deste trabalho, a realização de congressos bianuais em diferentes países e a constituição de redes nacionais ou regionais associadas.

15 Os congressos da BIEN foram originalmente realizados na Europa, em conformidade com as próprias delimitações iniciais da referida rede ao continente europeu. O 1º congresso da BIEN ocorreu em 1986, na Bélgica, na Universidade Católica de Louvain, Louvain-la-Neuva, no período de 4 a 6 de setembro daquele ano. Nos dezesseis anos seguintes, os congressos bianuais ocorreram novamente na Bélgica (1988) e, na sequência, na França (1990), Itália (1992), Reino Unido (1994), Áustria (1996), Países Baixos (1998), Alemanha (2000), Suíça (2002) e Espanha (2004).

16 Em 2004, oficializa-se a ampliação da rede para escala mundial, modificando-se seu nome e parte de seu programa de ações. Assim, dezoito anos após o 1º congresso, sua realização sai pela primeira vez do continente europeu, cabendo à África do Sul sediar o 11º congresso, de 2 a 4 de novembro de 2006, na Universidade de Cape Town, Cidade do Cabo. No mesmo ano (2006) foi fundada a rede da África do Sul afiliada à BIEN, denominada “Studies in Poverty and Inequality Institute (SPII)”.

17 A filiação do Brasil à BIEN ocorreu em 2004 com a fundação da “Rede Brasileira de Renda Básica de Cidadania”. Foi nesse país, 6 anos depois, de 30 de junho a 02 de julho de 2010, que ocorreu o primeiro congresso da BIEN realizado na América do Sul, sediado na Universidade de São Paulo (USP).

18 O deslocamento do congresso da BIEN para o continente asiático ocorre apenas em 2016, com a realização do 16º congresso em Seul, Coreia do Sul, no período de 7 a 9 de julho, com a temática “Transformação Social Ecológica e a Renda Básica”.

19 No que diz respeito às redes associadas, em 2016 a BIEN reconhecia 29 redes nacionais de renda básica e duas redes regionais, presentes nos continentes Europeu, Africano, Americano, Asiático e Oceania, conforme apresentado no Quadro 1.

Quadro 1

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Redes nacionais e regionais associadas à Basic Income Earth Network (BIEN)

Fonte: BIEN. Disponível em: http://www.basicincome.org/about-bien/affiliates/ (Os nomes das redes foram traduzidos livremente pelos autores).

20 Nas proposições dessas redes, podem ser observados alguns pontos convergentes importantes. Elas têm como base comum a proposta de distribuição de uma renda básica, universal, incondicional e individual, potencialmente suficiente para prover as

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necessidades básicas de cada indivíduo. A defesa da renda básica universal encontra fundamento na constatação das desigualdades de condições de acesso e produção da vida material. A distribuição equitativa de uma renda básica objetiva minimizar os efeitos da base social desigual e atenuar os efeitos da pobreza, presentes nos diferentes continentes e modos de vida.

21 Quanto à relação da renda básica com o trabalho, parte-se em geral do pressuposto de que, garantido o acesso a uma renda básica incondicional, o indivíduo teria liberdade para escolher qual tipo de trabalho executaria, considerando-se que já disporia, por meio da renda básica, de um lastro para suprir as necessidades básicas. Assim, dos pontos de vista teórico e prático, liberdade e necessidade, quando combinadas, atuariam como reguladoras das relações no campo do trabalho. Dito de outro modo, as pessoas disporiam de certas condições que lhes permitiriam escolher, com certo grau de liberdade, atividades laborais que gostariam de desempenhar. Por sua vez, por conta dessa liberdade, as atividades com menor propensão de execução, em cada contexto, devido a sua penosidade, insalubridade ou desprestígio, dentre outras desvantagens, seriam provavelmente melhor remunerados pelos empregadores e contariam com melhores condições de realização, minimizando-se os efeitos do trabalho precarizado e as baixas taxas de remuneração.

22 Como indicado anteriormente, pode-se reconhecer componentes utópicos importantes nesse núcleo de princípios e orientações que constituem a ideia de renda básica da BIEN. E a dimensão utópica parece estar presente não apenas no fato da proposta de renda básica se configurar como uma proposta de realidade apresentada como horizonte a ser construído e alcançado, mas também na sua clara vinculação a um programa de ação orientado para a disseminação tanto do ideário da renda básica quanto das práticas entendidas como necessárias a essa construção. O horizonte utopicamente delineado, neste caso, converte-se em ferramenta de ação política no presente. Isto fica evidente, por exemplo, no fato de que diversos aspectos estruturantes da realidade futura esperada, como a universalidade incondicional de uma renda básica, não são apenas “pontos de chegada”, mas elementos a serem operados desde o presente como ferramentas capazes de tensionar as concepções, políticas e práticas vigentes, colocando-as em crise, e de construir gradualmente bases objetivas e subjetivas necessárias à implantação plena (ou seja, à consecução da universalidade) da renda básica.

23 De outro lado, cabe observar que tais componentes utópicos não se vinculam a pretensões igualitárias, mas a um projeto ético-político de redução de desigualdades que seria mais adequadamente situado no campo social democrático. A proposta da BIEN busca, neste sentido, atualizar valores de integração social constituídos em bases democráticas que só se sustentam se forem repactuados os mínimos toleráveis no novo quadro de vida coletiva em constituição12. Passemos a uma apreciação mais detida de seus elementos centrais.

24 A proposta da BIEN consiste na defesa da concessão universal – e, portanto, a todo cidadão - de uma renda básica desvinculada do trabalho, da renda real e de qualquer condicionalidade. Universalidade, incondicionalidade, individualidade/pessoalidade e uniformidade devem ser considerados, neste caso, os elementos centrais que definem e estruturam a proposta nos seus traços fundamentais.

25 A universalidade é o primeiro elemento de contraposição direta a qualquer tipo de discriminação, seletividade e discricionariedade. Pela perspectiva da universalidade, a

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referência de uma política de renda básica, no que diz respeito à cobertura, seria a população em toda a sua extensão, sem diferenciações relativas a renda, posses ou quaisquer outros elementos constitutivos das condições de vida.

26 O princípio da incondicionalidade reforça isto, já que, ao impedir a instituição de condições para o recebimento da renda, também impede o estabelecimento de dinâmicas de controle que impliquem restrições e suspensões temporárias ou definitivas em decorrência de eventuais descumprimentos de condicionalidades. O alcance desse princípio, porém, é mais amplo que o reforço da universalidade. Por vincular-se também ao objetivo de não restringir, por quaisquer meios ou critérios, a elegibilidade de qualquer pessoa à concessão da renda, implica decisiva contraposição a mecanismos de controle social, reforçando uma compreensão da renda básica como direito inalienável, cuja garantia não implica a sobreposição de valores morais, normas e códigos de conduta de alguns grupos sobre outros, e não gera por si hierarquias de autoridade, sentimentos de dependências e práticas de vigilância e suspeição.

27 O princípio da individualidade ou pessoalidade busca afirmar o indivíduo como unidade padrão que referencia as ações da política de renda básica. Não se trata, neste caso, da afirmação do individualismo como valor, mas da individualidade como medida e critério de uma renda destinada ao bem-estar que deve independer das redes de pertencimento de cada indivíduo.

28 O princípio da uniformidade, por fim, assenta-se na ideia de que, na medida em que todas as pessoas são elegíveis, todas devem receber de forma equitativa. Reforça, neste sentido, os argumentos vinculados aos demais princípios, já que a universalidade, a incondicionalidade e a individualidade pressupõem não discricionariedade e, portanto, oposição a que a caracterização de cada indivíduo interfira na implementação da renda. Segundo o princípio da uniformidade, se a concessão independe das características individuais e familiares, tais características também não podem balizar diferenciações na própria renda concedida.

29 Nas formulações e debates da BIEN, esses quatro princípios também aparecem correlacionados à operacionalização da renda básica, já que sua aplicação rigorosa restringe a montagem de aparatos burocráticos vinculados ao cadastramento, caracterização e controle dos beneficiários, assim como ao cálculo da diferenciação das rendas concedidas.

30 Deve-se observar, contudo, que o debate desses princípios e orientações gerais não se mantém apartado dos contextos de realização de políticas de algum modo relacionadas às proposições da BIEN. A análise dos congressos da Rede, neste caso, evidencia que, no decorrer da sua constituição e ampliação, suas proposições fundamentais foram sendo gradualmente correlacionadas tanto aos problemas enfrentados pelos Estados nacionais em face das alterações econômicas e políticas vinculadas à reestruturação da acumulação capitalista, quanto aos projetos e experiências que passam a emergir, nesse contexto, como tentativa de resposta aos novos quadros econômico-sociais.

31 A sequência de temas dos congressos expressa essa crescente correlação. Observa-se, inicialmente, a reiteração das questões centrais da Rede na constituição dos temas: como o aprofundamento da própria ideia de renda básica e da discussão das condições de bem estar coletivo, de combate à pobreza, ao desemprego e à fome, e dos tipos de desestruturação dos mecanismos de proteção social. Gradualmente, porém, vão sendo incorporados temas relacionados a questões macroestruturais, como as relativas à reestruturação econômica e aos impasses entre modelos produtivos e a questão

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ecológica observada desde o ponto de vista das condições sociais de vida. No congresso realizado em 2016, na Coreia do Sul, o tema apresenta exatamente a questão da conservação/restauração ecológica na interface com a questão da renda básica, evidenciando a intenção da Rede em reconhecer o debate sobre as mudanças estruturais nas formas de produção da vida material como fundamento necessário para o debate teórico e prático sobre a renda básica.

32 Porém, a análise dos processos de implantação de políticas de transferência de renda e dos variados perfis a elas atribuídos em diferentes contextos evidencia que existem distanciamentos e contradições importantes entre as formas concretas assumidas por essas políticas e a proposição de renda básica da BIEN.

Renda básica e renda mínima na composição e disseminação das políticas de transferência de renda na América Latina

33 Todo o movimento e a organização gerados pela BIEN nas suas três décadas de existência têm influenciado, por diferentes vias, a constituição de propostas de políticas de transferência de renda em diversos países e regiões. Não raramente, porém, as propostas concretas de políticas de renda implantadas na maior parte dos países se diferenciam significativamente da ideia de renda básica e de seus quatro princípios fundamentais. Nas políticas concretas, prevalece um modelo de renda mínima, não universal, vinculada a condicionalidades, definida e diversificada em função de características individuais, familiares e, mesmo, territoriais.

34 Num quadro comparativo entre a renda básica e a renda mínima, as questões relativas à incondicionalidade e à relação com o trabalho parecem constituir o núcleo central de diferenciação. É muito presente nas proposições e nas políticas de renda mínima a ênfase na identificação de características que possibilitem agrupar indivíduos segundo condições específicas de necessidades sociais que sirvam de base ao estabelecimento de diferentes categorias de programas (ou de concessões e exigências diferenciadas dentro de um mesmo programa). É também bastante presente a ideia de transitoriedade da concessão da renda em função do objetivo de “autonomização” do indivíduo (em relação à renda concedida), autonomização esta correntemente vinculada ao trabalho. Ou seja, correntemente, a política de renda mínima é concebida como um mecanismo transitório que deve ser complementado por estratégias que auxiliem os indivíduos a ingressarem ou reingressarem em relações de trabalho em tese capazes de lhes garantir as condições básicas de sobrevivência e de assim lhes propiciar a “autonomização” em relação à concessão de renda.

35 Observe-se, neste caso, que essa concepção está vinculada a modelos de programas de renda focalizados e definidos segundo marcadas diferenciações, em sentidos exatamente opostos aos princípios de universalidade e uniformidade que constituem a proposta da BIEN.

36 A disseminação dos programas de transferência de renda na Europa e em outros continentes tem implicado o predomínio dessa segunda perspectiva, denotando que a ideia de políticas de renda vem sendo apropriada hegemonicamente em um formato redutor quando comparado ao formato preconizado pelo movimento a favor da renda básica. Esse formato redutor dos programas de transferência de renda suscita críticas em relação a sua utilização como política de ajuste que acaba, muitas vezes, por

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favorecer o gradual desmonte do Estado social referenciado na constituição de serviços correlacionados a direitos universais.

37 Não faltam, porém, estudos, como os de Robert Castel13, que, ao assinalarem as contradições presentes nas políticas reais, também dão visibilidade a potencialidades que podem municiar lutas e disputas no campo dos direitos sociais e das políticas e eles referidas.

38 O levantamento das políticas de transferência de renda instituídas em diferentes regiões do mundo a partir dos anos 1980, bem como a análise dos seus processos de implantação e dos variados perfis a elas atribuídos, acessíveis por meio de pesquisa documental, especialmente no repositório de estudos da BIEN, ou em estudos acadêmicos como o de Zimmerman e Silva14, não deixam dúvidas quanto ao distanciamento entre a realidade e a proposta de renda básica da BIEN. E, como mostram estudos como os de Cecchini e Madariaga15 e Silva16, a análise dos programas de transferência de renda condicionadas (PTRC) na América Latina no mesmo período evidencia aspectos especialmente expressivos desse distanciamento, já que seus escopos e padrões de cobertura populacional tendem a limitá-los à contenção de situações muito agudas de destituição econômico-social.

39 Na América Latina, o debate sobre renda básica e sobre renda mínima já se mostra presente desde os anos iniciais da década de 1980. Mas é no final dessa década que começam a ser criados os primeiros programas instituídos em nível nacional.

40 O Quadro 2 apresenta, segundo uma ordem cronológica, os principais programas nacionais de transferência condicionada de renda17 criados a partir de então.

Quadro 2

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Programas de transferência condicionada de renda implantados em países da América Latina, segundo o ano de implantação

Fonte: Elaborado a partir de informações constantes em CEPAL, 2016 e Rissato (2015)18.

41 A análise dos perfis desses programas, bem como do conjunto por eles constituído, possibilita perceber aspectos relevantes de seus distanciamentos e contradições em relação à proposta de renda básica universal.

42 Primeiramente, cabe destacar que os escopos e os padrões de cobertura populacional de tais programas evidenciam a tendência predominante de sua utilização para a contenção das situações mais agudas de destituição econômico-social. Nesse caso, a definição desses escopos e delimitações de cobertura populacional, em geral, envolve a definição de linhas de pobreza e/ou miséria muito baixas.

43 De modo geral, tais programas estão voltados a segmentos populacionais e famílias pobres e extremamente pobres, implicando o estabelecimento de linhas de corte e critérios de elegibilidade extremamente restritivos.

44 No que diz respeito aos critérios de elegibilidade, a maioria dos programas pesquisados prioriza crianças e adolescentes menores de 18 anos, pessoas com deficiência, idosos, gestantes ou lactantes.

45 A centralidade da família como unidade beneficiária não se confirma como generalidade. A renda e/ou condição familiar aparecem com frequência como referência de destaque para a análise da elegibilidade dos beneficiários, mas não são por si o critério determinante da elegibilidade. Apenas em alguns casos (como Brasil, Chile, Colômbia, México, Nicarágua, Panamá e Paraguai) a família extremamente pobre recebe algum benefício quando não tem em sua composição pessoas nas condições acima identificadas. Pode haver variações nessas definições também em função de

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focalizações territoriais. Na Argentina, por exemplo, somente famílias extremamente pobres que vivem em Buenos Aires têm direito a um benefício fixo.

46 De modo geral, os programas analisados parecem desconsiderar ou tratar como aspecto bastante secundário a presença do homem na família. Raramente foram identificadas, nos programas pesquisados, atividades voltadas ao homem adulto (seja no âmbito da educação, da saúde ou da assistência). Essa ideia é reforçada pela centralidade conferida à mulher-mãe enquanto titular do benefício e foco de atividades nos âmbitos da saúde e da assistência. Ainda que a nucleação dos programas nas mulheres seja objeto de inúmeras avaliações positivas, em face do fenômeno contemporâneo da feminização da pobreza e, por conseguinte, do caráter mais regular de sua presença na vida familiar, dentre outros aspectos destacados, esse relativo apagamento do homem adulto como beneficiário das ações vinculadas aos programas parece naturalizar e mesmo reforçar a ausência do homem em atividades relacionadas aos cuidados e ao acompanhamento dos filhos, ensejando problematizações.

47 Os debates iniciais sobre a instituição de políticas de transferência de renda, em alguns países da região, como notadamente o Brasil19, destacavam o desemprego como situação nuclear para essa transferência. Nessa perspectiva, o homem adulto aparecia, inevitavelmente, como uma das categorias beneficiárias da renda e de programas complementares orientados para a inserção social e laboral.

48 As características das administrações públicas nos países da região acabaram levando à adoção de programas centrados nas famílias e em condicionalidades vinculadas aos setores de educação e saúde. Nos países em que esses setores eram os mais estruturados, educação e saúde se tornaram os núcleos de operacionalização dos programas. Com o passar do tempo, observa-se, porém, uma expansão do setor de assistência social que, entre outros aspectos, tem implicado a criação de programas voltados à reinserção laboral que cobrem os segmentos masculinos adultos.

49 É interessante notar, contudo, que esta retomada não se dá no caso dos programas de transferência condicionada de renda de largo espectro, o que significa a não constituição de uma importante porta de entrada de homens pobres e com baixa expectativa de vida em um conjunto de práticas institucionais relacionadas ao trabalho e à saúde.

50 Uma outra observação necessária diz respeito à tendência a que os programas e ações relacionados à transferência de renda sejam significativamente diferenciados em um número significativo de país. Ou seja, nos estudos realizados, nota-se que a maioria dos países adotou diferentes programas e ações para atender a diferentes segmentos de beneficiários: crianças, adolescentes, mulheres, deficientes e idosos, como, por exemplo, na Argentina, na Colômbia, em El Salvador, no Paraguai, na Guatemala e no Equador. Em sentido diverso, Brasil, Chile, Nicarágua e México destacam-se por adotarem um único e abrangente Programa Nacional, voltado para todos os públicos, ainda que com diferenciações internas e sem detrimento da instituição de programas mais delimitados que acabam cobrindo parcialmente e de forma complementar as novas lacunas de inserção social que vão sendo reconhecidas.

51 Por fim, como já comentado, os programas de transferência de renda implementados na América Latina, de modo geral, têm condicionalidades vinculadas à educação e à saúde. A vinculação à educação exige, correntemente, matrícula e controle de frequência. A vinculação à saúde pode implicar uma variedade de acompanhamentos ou controles, como acompanhamento nutricional e de práticas preventivas como de

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vacinação. Na evolução de vários programas ao longo do tempo, no entanto, nota-se uma gradual ampliação da assistência social como setor responsável ou corresponsável pela coordenação e/ou execução do programa. É corrente, atualmente, a assistência social pagar o benefício e desenvolver atividades de controle, qualificação e reinserção no mercado de trabalho das populações beneficiárias.

Considerações finais: limites e potencialidades na relação entre as práticas de renda mínima e a proposta de renda básica

52 O acompanhamento do processo ao longo do qual foram constituídas as proposições de renda básica e as políticas de renda mínima permite perceber que a ideia de renda básica contribuiu para impulsionar a formulação, implementação e expansão de políticas de transferência de renda que, no entanto, tiveram seu perfil especialmente definido pelo ajuste estrutural do Estado realizado no contexto de crise de acumulação do capital. Observa-se, neste caso, que os elementos centrais da proposta de renda básica – universalidade, incondicionalidade, individualidade/pessoalidade e uniformidade – além de se vincularem à problematização do presente e a proposições de uma realidade futura alternativa (aspectos típicos das formulações utópicas), são convertidos em fundamento de ações políticas que, porém, têm seus sentidos contraditoriamente modificados no curso de sua realização, envolvendo perdas em relação aos sentidos das proposições originais, mas também contraditórias e inusitadas conquistas.

53 O estudo dos programas de transferência de renda condicionada na América Latina dá visibilidade a várias dessas contradições cuja compreensão pode favorecer não apenas as lutas pela superação de limites, mas também mobilizações a favor de potencialidades às vezes pouco percebidas e exploradas.

54 Observa-se, por exemplo, grande assimetria entre os países no que diz respeito à cobertura, ao valor dos benefícios, ao caráter assumido pelas condicionalidades e à consolidação ou expansão dos programas ao longo do tempo. Alguns países avançaram mais do que outros, na medida em que abandonaram políticas isoladas e adotaram programas mais abrangentes, ampliando a população beneficiária, incluindo idosos, deficientes, jovens e a própria família de baixa renda, independentemente de que tenham em sua composição crianças e adolescentes. Isso pode ser entendido como avanço em direção aos princípios que estruturam a proposta da BIEN, já que uma política mais regular, com maior cobertura, mais unificada em sua operacionalização e menos diferenciada internamente tende a ser mais claramente identificada pelos beneficiários reais e potenciais, propiciando tanto uma procura mais regular quanto condições melhores de acompanhamento público.

55 Mas é igualmente interessante observar que, apesar dos inúmeros casos em que os programas se mostram incipientes, o conjunto de programas e sua disseminação são, por si, um dado expressivo. Tal disseminação está implicada com uma ampliação significativa do debate na região, o que pode significar avanços em termos do aprofundamento das especificidades latino-americanas, da maior organicidade dos países da região e do estabelecimento de agendas, pautas e espaços comuns de debate e formulação.

56 Outro aspecto a destacar diz respeito ao fato de que a implantação e a expansão dos programas em diversos países geraram inúmeras tensões relativas à incipiência de

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bases institucionais próprias (e mais apropriadas) para sua realização. A incipiência da estrutura institucional de setores de ação estatal, como o da assistência social, fez com que os setores de educação e saúde fossem escolhidos inicialmente, em alguns países, como operadores de alguns programas. Isto acabou gerando sobrecargas financeiras, materiais e funcionais para esses setores, mas também acabou pautando de forma mais intensa, no debate interno de cada um desses setores e no debate entre setores, os desafios relativos ao enfrentamento da pobreza em países nos quais as situações de destituição, além de não se circunscreverem aos aspectos econômicos imediatos, mais diretamente relacionados à inserção laboral, estão profundamente implicadas com o não acesso ou acesso precário a políticas públicas referidas aos mais fundamentais direitos humanos e sociais.

57 As ampliações dos programas (especialmente no sentido da ampliação de seus escopos e de seus padrões de cobertura populacional e territorial) implicaram, por conseguinte, alterações nas bases institucionais responsáveis por sua realização, envolvendo modificações nos setores inicialmente responsáveis, mas também novos padrões de constituição de setores antes pouco estruturados. É exemplar o caso da assistência social no Brasil que, nos anos 2000, com a definição, no âmbito da Política Nacional de Assistência Social (PNAS), de um Sistema Único de Assistência Social (SUAS), passa a ter a realização de programas sociais amparada na estruturação de Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), entendidos como equipamentos públicos de base distrital a serem instalados e organizados em todo o território nacional, como parte das responsabilidades compartilhadas entre os três entes federativos – União, Estados e Municípios.

58 As novas estruturas em constituição crescem fermentadas por interessantes contradições. De um lado, é evidente o reiterado descompasso entre o volume e variedade de atividades anunciadas pelos governos e as bases reais disponíveis para sua realização, sendo frequentes as avaliações que apontam insuficiência e inadequação de espaços, materiais, equipamentos, recursos financeiros e equipes profissionais. De outro lado, comparando-se as novas bases funcionais com as anteriores, é igualmente evidente o seu crescimento, sendo forçoso reconhecer que, ao longo desse processo, tanto os problemas sociais inicialmente pautados, quanto outros ainda não incorporados pelas políticas governamentais, passaram a ter nova visibilidade, peso e reconhecimento no debate público sobre a questão social.

59 Essas contradições, por sua vez, dão lastro a novas formas de problematização da questão das condicionalidades. Vimos que, no debate clássico sobre renda básica, a incondicionalidade é defendida tanto por favorecer a universalização de uma política, quando por restringir práticas de controle, vigilância, suspeição e diferenciação que reiterariam ou ampliariam as hierarquias sociais. A realização concreta de programas de transferência condicionada de renda na América Latina, no entanto, mostra que as condicionalidades têm sido operadas, em diversos casos, mais como um recurso para aproximar sujeitos de instituições às quais não tinham acesso, e para familiarizá-los com práticas institucionais que deveriam compor o rol de suas legítimas reivindicações. Nessa perspectiva, ainda que a condicionalidade mantenha aspectos capazes de favorecer a vigilância e o controle, também funciona como um mecanismo impulsionador da assunção de responsabilidades por parte do Estado, pressionando a expansão da própria estrutura estatal necessária à operacionalização da política social e ampliando a busca e o acesso dos sujeitos às ações a ela vinculadas.

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60 Nesse contexto, notam-se três novos aspectos que, devidamente encarados como conquista social, podem vir a gerar novos frutos nas lutas por políticas públicas referidas a direitos: o crescimento exponencial do número de profissionais atuantes no campo ampliado da política social; o aprofundamento, maior qualificação e maior presença do debate crítico na formação desses profissionais; e sua maior mobilização em torno de questões, práticas e ações que extrapolam em muito os limites dos interesses corporativos de cada setor, orientando-se para a construção de formas de relação intersetorial e de produção de acúmulos coletivos vinculados às lutas por direitos sociais e de políticas públicas que garantam seu exercício. Essa nova força social tem, no nosso entender, características que favorecem sua organização como força política20 capaz de disputar os sentidos dos programas instituídos e de vincular essa disputa a projetos utópicos que coloquem a questão dos direitos humanos e sociais no centro do debate e da ação pública.

61 Assim, malgrado suas limitações, esses programas demonstram potencialidades relevantes em termos do debate, das lutas e das conquistas concretas em relação à questão das desigualdades sociais. Seja pela sua forma de presença no debate público, dando visibilidade aos quadros de pobreza, às assimetrias econômico-sociais, aos descompassos entre promessas políticas e formas reais de disputa e apropriação do fundo público, dentre outros aspectos polêmicos. Seja pelas novas bases institucionais, cuja constituição é inevitavelmente provocada pelas necessidades de sua operacionalização. Seja pelo novo quadro de inter-relações entre políticas setoriais que vai sendo constituído em face das novas condições de visibilidade e debate das situações complexas de destituição. Seja, por fim, pela intensificação da presença do debate crítico na formação inicial e continuada de profissionais do campo das políticas sociais.

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NOTAS

1. Castel, 1998 e 2008, e Álvarez-Uría, 1998. 2. Fernandes, 1974 e 1975, e Oliveira, 1972 e 1998. 3. Telles, 2001. 4. Spozati,1997, e Lavinas, 2012. 5. Fernandes, 1974. 6. Capel, 2014. 7. Eagleton, 2015 (os trechos transcritos foram traduzidos livremente pelos autores). 8. Galeano, 1993, p. 310. 9. Van Parijs, 2000. 10. Algebaile, 2015, Rissato, 2015 e Arruda, 2015. Metodologicamente, as pesquisas se reportam a fontes bibliográficas e documentais relacionadas tanto às proposições de políticas de renda por parte de organizações de diversas linhagens e de diversas escalas, quanto às políticas efetivamente instituídas em diferentes países a partir dos anos 1980. No caso dos países latino- americanos, para além da identificação dos programas instituídos, buscam-se dados e informações que possibilitem definir em seus traços fundamentais o perfil dos diferentes programas, bem como identificar aspectos do seu processo de implementação que interfiram no delineamento de seu perfil, cobertura e desdobramentos. Uma fonte fundamental, neste caso, são os anuários de estatísticas sociais da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL, 2006a, 2006b, 2012a, 2012b, 2013). As condições de realização das políticas são ainda investigadas por meio da análise de relatórios institucionais, relatórios de auditoria e estudos acadêmicos. Por fim, a experiência brasileira é também investigada por meio de pesquisa de campo junto a instituições públicas em diferentes regiões do país. 11. A principal forma de constituição da Rede se dá por meio da inscrição individual de membros, mediante uma contribuição financeira definida, em 2016, em um mínimo de 100 euros. Constituem atualmente a rede acadêmicos e ativistas dos mais variados países, destacando-se

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nomes como o sociólogo alemão Claus Off, a economista brasileira Lena Lavinas e o filósofo austríaco André Gorz. 12. A respeito das políticas sociais como instrumento de repactuação da vida coletiva em diferentes contextos, reportamo-nos, entre outros, a Castel, 1998 e 2008, e Van Parijs, 2000. 13. Castel, 1998 e 2008. 14. Zimmerman e Silva, 2008. 15. Cecchini e Madariaga, 2011. 16. Silva, 2015. 17. Nos países pesquisados, há variados programas de transferência não condicionada de renda que ampliariam e diversificariam em muito a correlação entre renda básica e renda mínima. Como, porém, na região, os programas de transferência condicionada são os que obtêm maior destaque, apresentando um desenvolvimento bastante implicado com alterações na estrutura estatal relacionada à política social, optamos por circunscrever a discussão a essa categoria de programas, considerando as contribuições ao debate que disso pode derivar. 18. O Quadro 2 é uma versão sintética de um quadro bem mais extenso, com a caracterização dos programas, elaborado por Rissato (2015) em sua Tese Doutoral e ampliado pela autora no âmbito da pesquisa por ela realizada em vinculação com este trabalho. 19. Conforme, por exemplo, ainda na década de 1970, a discussão feita por Silveira (1975) e, em seguida, por Eduardo Suplicy, em debates, pronunciamentos e matérias posteriormente sistematizados em textos como Suplicy (2002). 20. Para a distinção entre força social e força política, reportamo-nos à discussão clássica feita nas “Breves notas sobre a política de Maquiavel”, por Antonio Gramsci (2000). Dessa discussão, é possível depreender, sinteticamente, que, para o autor, o termo “forças sociais” designa os variados agrupamentos sociais relacionados às diversas posições dos sujeitos no processo de produção de sua existência, enquanto o termo “forças políticas” designa os sujeitos coletivos constituídos pelas associações intencionais de sujeitos de um mesmo grupo ou de grupos afins em torno de interesses, questões, lutas e projetos comuns, ainda que essas associações apresentem, entre si e no curso da história, diferenciados graus de coesão e homogeneidade.

RESUMOS

Com as mudanças ocorridas a partir da década de 1970 no modelo de acumulação capitalista e nos sistemas de proteção social, surgem proposições de políticas sociais portadoras de relevantes referências para a compreensão do presente e das possibilidades de futuro. As políticas de transferência de renda orientadas para cobrir as lacunas de inserção econômico-social são um exemplo importante dessas proposições, e um marco relevante, neste caso, é a criação da Basic Income European Network (BIEN), nos anos 1980, posteriormente redefinida como rede mundial. Neste artigo, a partir da discussão da proposta de Renda Básica da BIEN, com ênfase nos princípios de universalidade e incondicionalidade, apresentamos e discutimos aspectos das políticas de transferência condicionada de renda disseminadas no mesmo contexto, com foco na América Latina, correlacionando suas características formais com o ideário apresentado pela proposta da BIEN e discutindo os impasses, limitações, potencialidades e desafios evidenciados a partir dessa correlação.

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Con las transformaciones ocurridas a partir de la década de 1970 en el modelo de acumulación capitalista y en los sistemas de protección social, surgen propuestas de políticas sociales que son referentes para la comprensión del presente y de las posibilidades del futuro. Las políticas de transferencia de rentas orientadas a llenar los vacíos de la inserción económica y social, son un ejemplo importante de este tipo de propuestas, para este caso se toma la creación en la década de 1980 del Basic Income European Network (BIEN) (Red de Ingreso Básico Europeo). En este artículo se discute la propuesta de renta básica contenida en la - BIEN – bajo la óptica de los principios de universalidad e incondicionalidad. Igualmente se presenta una discusión de los aspectos de la transferencia de renta condicionada enfocadas en América Latina, correlacionando sus características formales con el ideario presentado por la política de BIEN y discutiendo las dificultades, limitaciones, potencialidades y desafíos evidenciados a partir de esta correlación.

Les changements dans le modele d’accumulation capitaliste et dans les systèmes d’assurance social proposent une série de politiques sociales dont l’analyse nous permet d’éclaircir le présent et l’avenir. Dans ce contexte, il faut greffer les transferts sur le revenu, notamment en ce qui concerne à la création du Basic Income European Network (BIEN) dans les années 1980. A partir de la proposition de l’allocation universelle inscrite dans le BIEN, on analyse les politiques de transferts conditionnée sur le revenu en focalisant les défis, limitations et potentialités par rapport à l’Amérique Latine.

Changes in the capitalist model of accumulation and social protection systems from the 1970s resulted in the emergence of propositions of social policies that carried relevant references for understanding the present time and the future possibilities. Income policies directed to covering economic and social integration gaps are an important example of these propositions, and an important landmark is the creation of the Basic Income European Network (BIEN) in the 1980s, later redefined as a global network. From the discussion of the basic income proposal in BIEN, emphasizing the principles of universality and unconditional nature, we present and discuss aspects of conditioned income transfer policies spread in the same context, focusing on Latin America, correlating their characteristics to ideas presented in BIEN’s proposal and discussing impasses, limitations, potential and challenges highlighted by this correlation.

ÍNDICE

Mots-clés: politiques de transferts conditionnée sur le revenu, politique sociale, allocation universelle, Basic Income European Network (BIEN), Amérique Latine. Palabras claves: Políticas de renta condicionadas, política social, renta básica, Red de Ingreso Básico. Keywords: Conditional income transfer policies, social policy, basic income, Basic Income Earth Network. Palavras-chave: Políticas de transferência condicionada de renda, política social, renda básica, Basic Income Earth Network

AUTORES

EVELINE ALGEBAILE

Universidade do Estado do Rio de Janeiro [email protected]

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DENISE RISSATO

Universidade Estadual do Oeste do Paraná [email protected]

ROBERTO ARRUDA

Universidade do Estado do Mato Grosso [email protected]

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Das aflições políticas à cooperação econômica entre Moçambique – Rússia: debates, dilemas e perspectivas De las aflicciones políticas, la cooperación económica ente Mozambique y Rusia. Debates, dilemas y perspectivas Des tourments politiques à la coopération économique entre Mozambique et Russie : débats, dillemes, perspectives Of the Afflictions Politics to the Economic Cooperation between Moçambique - Russia: Debates, Quandaries and Perspectives

Nelson Mabucanhane

Introdução

1 As relações de cooperação entre Moçambique e União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) registraram efervescência assinalável nos anos 60 e 70 do século passado, sobretudo no campo político-militar durante a Luta de Libertação Nacional de Moçambique contra o colonialismo português. Todavia, o apoio bélico à Moçambique nos finais dos anos 70 ocorria num contexto da guerra fria, no qual a maior preocupação militar e geoestratégicas da URSS era se fortalecer como potência mundial frente aos Estados Unidos da América (EUA).

2 A corrida espacial russa implicava maiores investimentos na indústria bélica, deslocando, no interior do país, os investimentos de outros setores econômicos e sociais. Assim, a desintegração da URSS e o fim da guerra fria1, mostraram graves problemas econômicos, que obrigaram a Rússia a se concentrar no enfrentamento de problemas domésticos e regionais.

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3 Ao perceber que Rússia não tinha mais capacidade para contribuir no enfrentamento de seus problemas humanitários2 de emergência, consequentes da guerra civil, de secas alternadas com cheias, em particular nos anos de 1980, Moçambique diversificou as suas fontes de ajuda externa. Isto é, para além de receber o apoio proveniente da Rússia, da China e dos países Nórdicos (1975 – 1982), também aderiu, em 1984, às instituições da Bretton Woods3 e demais países ocidentais. Trata-se, como indica Hanlon (1997, p.12), de uma virada obrigatória, dado que as estratégias de sabotagem a Moçambique pelos Estados Unidos da América (EUA), África do Sul (do apartheid) e demais países como forma de combater o comunismo, aumentavam e a guerra civil não dava sinais de término. Esta virada de Moçambique permitiu, em primeiro lugar, que o país não fosse mais visto em nível internacional como um dos bastiões do comunismo. Daí resultou o aumento e a diversificação das fontes de captação de ajuda externa, tendo o número de doadores, passado dos 7, em 1980, para 180, em 1990. Como indica o Relatório da Direção para Cooperação Internacional (DCI) do então Ministério da Planificação e Desenvolvimento de 2013, a ajuda externa assegurou os direitos de sobrevivência dos moçambicanos durante a guerra civil (1976 – 1992) e após esta, por meio do desenvolvimento de programas de reconstrução nacional e do pleno funcionamento das instituições sociais e econômicas.

4 A descoberta de valiosos recursos naturais, sobretudo a partir dos anos 2000, fez com que Moçambique passasse a receber não só a ajuda externa, como também, investimento direto estrangeiro. Este fato acontece numa fase em que a Rússia exibia pujança econômica e se configurava como um dos maiores exportadores de capitais financeiros do mundo. Adicionalmente, a Rússia detém vantagens tecnológicas competitivas, como resultado de larga experiência de pesquisa e exploração de recursos minerais. Não obstante estes dois fatores e conjugados com o fato das relações de cooperação entre os dois países terem sido boas, principalmente na área militar, os investimentos russos em Moçambique são desprezíveis quando comparados com os demais países dos BRICS4.

5 O paradoxo acima apresentado constitui o objeto de análise deste artigo. Deste modo, o exercício investigativo tem em vista encontrar evidências que possam explicar a dificuldade de traduzir as históricas e frutíferas relações de cooperação político-militar para o domínio econômico, em particular comerciais e de investimentos diretos. Adicionalmente, o artigo pretende participar do debate sobre os atuais desenvolvimentos da cooperação Moçambique – Rússia, o que é considerado relevante na medida em que permite compreender as principais transformações que assistem os dois países como resultado em parte, do fim da Guerra Fria. Mais ainda, ajuda a intuir sobre nova configuração geopolítica e geoestratégia dos dois países, no contexto da nova organização BRICS, da qual Rússia é um dos interlocutores válidos por reunir duas credenciais essenciais para as dinâmicas da economia política internacional, nomeadamente: o poder político militar e o poder econômico.

6 A questão de investigação do artigo é: quais os fatores que explicam a dificuldade de transposição das históricas e bem-sucedidas relações de cooperação político-militar para o domínio econômico, considerando que Moçambique registra a descoberta de recursos minerais nos setores em que a Rússia detém vantagens tecnológicas competitivas? A hipótese de investigação indica que os problemas de busca de segurança no entorno russo, bem como econômicos, são insuficientes para explicar os desprezíveis investimentos diretos do gigante euroasiático em Moçambique, sem ter em

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conta a relevância geopolítica, geoeconômica e geoestratégica que Rússia atribui à Moçambique sobretudo com o fim da Guerra Fria.

7 Na busca de evidências empíricas, o artigo privilegiou a revisão da literatura e a análise documental. A revisão da literatura é considerada no contexto deste artigo como um potencial instrumento para entender as várias perspectivas teóricas de pensamentos existentes sobre o objeto em estudo. Tal entendimento permite desconstruir, como defende Fernandes (2004), as diferentes mediações e determinações do objeto de estudo, cuja reconstrução não só ocorre pela problematização dos conhecimentos preexistentes, como também, pode fortalecer ou distanciar-se dos mesmos.

8 A análise documental é concebida por Mitano (2016) como um verdadeiro instrumento para ampliar conhecimentos “cujo entendimento necessita de um recorte histórico contextual, permitindo a compreensão sobre os processos de evolução de práticas, comportamentos, tendências e aplicação de algumas medidas” (p.2). Em conformidade com o posicionamento anterior do autor, os dados usados por este artigo para análise foram obtidos em diversas instituições oficiais moçambicanas. Trata-se, como será visto a seguir, de dados sobre linhas de créditos, perdão da dívida, bolsas de estudo e de investimento direto da Rússia em Moçambique. Esses dados foram recolhidos em quatro instituições moçambicanas, nomeadamente: o Centro de Promoção de Investimento (CPI), o Gabinete das Zonas Econômicas do Desenvolvimento Acelerado (GAZEDA), a Direção Nacional do Tesouro (DNT) e Instituto de Bolsas de Moçambique. As primeiras duas instituições citadas lidam com investimentos diretos estrangeiros, ao passo que, das duas últimas, a primeira trata de finanças públicas e inclusive empréstimos e a outra das bolsas de estudos. Foram igualmente consultados anuários estatísticos do Instituto Nacional de Estatística (INE) e os relatórios da Direção para Cooperação Internacional (DCI) do Ministério da Economia e Finanças (MEF) – DCI-MEF. Como já dito anteriormente, outros dados foram obtidos através da revisão da literatura.

9 O presente artigo está organizado em duas partes. Na primeira parte, discute-se a cooperação Moçambique – Rússia tomando como unidades de análise evidências sobre as doações, assistência técnica e financeira e bolsas de estudo. A segunda parte analisa a cooperação entre os dois países a nível das relações comerciais, em particular de investimentos diretos russos, procurando igualmente perceber os fatores que explicam os baixos investimentos e trocas comerciais entre os dois países. Ao final, o artigo apresenta as considerações finais e as referências bibliográficas.

Cooperação Moçambique – Rússia

10 De acordo com o Jornal Notícias de Moçambique5 a primeira missão da URSS, composta por 14 delegados chefiados por Tomberg, visitou Lourenço Marques, atual Maputo (capital de Moçambique), em abril de 1975. O objetivo da visita era estabelecer as bases de cooperação entre os dois países. Na sua nota de boas-vindas, o então Ministro de Educação e Cultura, Gideon Ndobe, em representação do até então Primeiro-Ministro Joaquim Chissano, afirmou que tais relações visavam acabar com a exploração do homem pelo homem. O mesmo jornal Notícias, na sua edição de 4 de junho de 1975, aponta outra visita da delegação da URSS, chefiada por Arkdi Glukhov, ministro extraordinário e plenipotenciário da URSS e Boris Sinelchtchikov, vice chefe. A visita tinha em vista dar seguimento à visita anterior, mas, desta vez, com enfoque prático, ou

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seja, criar condições indispensáveis para a instalação da embaixada da URSS em Moçambique após 25 de junho de 1975 (data de independência de Moçambique).

11 É no auge destas relações de cooperação e amizade que a delegação da URSS chegou a Moçambique, a 22 de junho de 1975, para assistir a cerimônia de comemoração da independência nacional. O chefe da delegação da URSS, Kirill Ilyashenko, vice- Presidente do Soviete Supremo da URSS e membro do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), afirmou que o povo daquele país felicitava Moçambique por mais uma etapa histórica para a sua determinação como povo unitário. Foi neste ambiente de relações de cooperação que a delegação da URSS convidou o então Presidente da República Popular de Moçambique, Samora Moisés Machel, para visitar as Repúblicas Socialistas Soviéticas.

12 Estas felicitações e visitas ocorrem após o apoio político-militar da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) na Luta de Libertação Nacional, e durante o governo de transição moçambicano. Deste modo, convém notar que desde a era de luta pelas independências africanas em geral e moçambicana em particular, a Rússia tem sido um país que cultiva relações próximas com a África, participando, também, de missões de paz e perdão de dívidas dos países africanos altamente endividados.

13 O Jornal Notícias, em sua edição de 21 de abril de 1975, publica que o então embaixador da União Soviética em Moçambique não descartava na época a possibilidade de cooperação econômica entre Moçambique e URSS. Na mesma edição, o jornal aponta que o embaixador da União Soviética considera a política externa da URSS como sendo aquela que prima pela colaboração fraternal com todos os países progressistas e continuará a prestar auxílio a todas as economias em desenvolvimento. E assegura que na cooperação econômica com os países em desenvolvimento não exigiria o pagamento de impostos e outras formas de tributação por que a URSS sempre foi e continuará sendo partidária ao comércio exterior com países do Terceiro Mundo, numa relação solidária guiada por reciprocidade.

14 É neste contexto de relações de amizade e de solidariedade que Moçambique adota o Socialismo que considera, como indica Jafar (2014), um caminho fácil para vencer o subdesenvolvimento. Nessa altura, havia uma crença de que a ajuda soviética aos países em via de desenvolvimento visava criar e consolidar o poder político, promovendo ao mesmo tempo a independência econômica e igualdade entre as pessoas. Estes eram, igualmente, os princípios do povo moçambicano quando optou pela luta armada contra o colonialismo português. Estes princípios eram opostos aos ocidentais aos quais se acreditava que a ajuda ocidental havia de promover a dependência econômica. A situação moçambicana em particular e da maioria dos países do terceiro mundo, de dependência econômica destruidora, confirma largamente os princípios anteriores. Como consequência deste princípio de que o ocidente era o caminho da penúria e, principalmente, da rejeição dos EUA em apoiar Moçambique contra a luta de libertação colonial, o país passou a receber apoio ideológico marxista-leninista, treinamento militar e material bélico para a Luta Armada de Libertação Nacional.

15 Ao lado da URSS estava a China e os países Nórdicos que apoiavam Moçambique sob diferentes formas, desde armamento, treinamento, alimentação, assistência técnica, médica e financeira, o que garantiu a preservação dos direitos de sobrevivência do povo moçambicano. Para além de armas e maquinarias, a URSS enviava seus técnicos, que não só ensinavam como manejar, mas também asseguravam a manutenção e as melhores estratégias de luta.

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16 Vale ressaltar que, como consequência das boas relações de cooperação e amizade desde os anos 60, de forma recorrente são efetuadas até então visitas por membros de governos dos dois países com a finalidade de dar maior dinâmica em novos domínios, sobretudo no âmbito econômico. Como indica Wache (2014), por exemplo, em 2014 o Ministro dos Negócios Estrangeiros e Cooperação e o então Primeiro-Ministro, Oldemiro Balói e Alberto Vaquina, respectivamente, escalaram Moscou em visitas separadas. Estas visitas, de acordo com o comunicado da Embaixada da Rússia em Maputo, ocorrem como resposta à visita efetuada em fevereiro de 2013, por Sergey Lavrov, Ministro dos Negócios Estrangeiros e Cooperação da Federação Russa. No encontro entre o ex-Primeiro-Ministro de Moçambique e o Chefe do Governo da Federação russa, Dmitry Medvedev, foi assinado o Memorando de Entendimento entre o Ministro da Educação e Ciências da Rússia e o Ministro da Educação de Moçambique na área do Ensino Superior. Este memorando reforça as relações de cooperação na área de formação de quadros e estudantes moçambicanos, por meio da oferta de bolsas de estudos desde 1996. Foi assim que as bolsas de estudos oferecidas a Moçambique pela Rússia passaram de 20 nos anos 90 para 40 a partir da segunda metade do século XXI. Dados do Instituto de Bolsas de Estudo do Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano de Moçambique de 2007 a 2015, confirmam esta tendência crescente na oferta de bolsas de estudos a Moçambique. Por exemplo, se em 2007 Rússia ofereceu apenas 48 bolsas, em 2015, este valor foi multiplicado por 3, colocando a Rússia como o segundo país no seio dos BRICS que mais bolsas de estudos oferece a Moçambique, depois da China.

17 Não obstante esta pujança russa em termos de bolsas de estudos, as relações comerciais entre os dois países são lastimáveis. Por exemplo, de acordo com os dados dos Anuários estatísticos de 2000 a 2014 do Instituto Nacional de Estatística (INE), as relações comerciais entre Moçambique e Rússia não são dinâmicas. Ou melhor, nos catorze anos acima referidos, apenas em 2013 é que os dois países apresentam dados de trocas comerciais. Foi neste período que as relações comerciais geraram um superávit de US$ 5.2 mil para Moçambique, isto é, o volume de exportações alcançou US$ 10.0 mil contra as importações de US$ 4.7 mil.

18 O acanhamento das relações econômicas é notório, também, nas linhas de créditos e nas doações russas quando comparados com os restantes países dos BRICS6. Os dados, por exemplo, da Direção Nacional do Tesouro (DNT) mostram que em 2013 a Rússia concedeu apenas linha de crédito de 143.9 milhões de dólares norte-americanos a Moçambique. Até 31 de dezembro de 2015, Moçambique havia reembolsado apenas 19.4%. Rússia foi o único país no seio dos BRICS que concedeu a Moçambique na totalidade o valor solicitado. Em relação aos demais países, a Índia é o país que mais equidistante se coloca em termos de resposta mais próxima ao solicitado por Moçambique, com 3.2%. O Brasil e a China concederam 37.3% e 67.0% do total do valor solicitado por Moçambique, respectivamente. Como acontece igualmente com os demais países dos BRICS, as principais características destas linhas de créditos são a ausência de juros e de condicionalidades e ter um período longo antes de iniciar o reembolso após o desembolso pelo credor. Outra característica que é geral para os países da organização BRICS em Moçambique é a sua tendência flutuante e crescente.

19 Em termos de classificação destes países em função dos valores desembolsados, a Rússia se posicionou em quarto lugar, estando apenas acima da República da África do Sul (RSA) que não oferece nenhuma linha de crédito a Moçambique, pelo menos com base

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nos dados da DNT. China com 1.4 bilhões de dólares norte-americanos, está em primeiro lugar, seguido pela Índia com US$ 197.1 milhões e pelo Brasil com US$ 165.9 milhões, entre 2000 a 2014.

20 Para além das linhas de créditos e bolsas de estudos, uma nota no site7 da Embaixada da Federação Russa em Moçambique aponta intenção de perdoar a dívida de 144 milhões de dólares a Moçambique. O valor em causa deve ser utilizado, de acordo com o mesmo site, para o reforço de cooperação bilateral, em particular, nas áreas da defesa, agricultura, prospecção geológica e formação. Um comunicado da Embaixada Russa de Outubro de 2007 constantes no site ora citado apontava a celebração de Memorando Trilateral de Entendimento entre a Federação Russa, o Banco Mundial (BM) e a Organização Mundial da Saúde (OMS), sob a dotação russa de US$ 20 milhões. Esse Memorando de Washington se enquadra no âmbito do Programa de Combate à Malária na África e, particularmente, Moçambique foi um dos maiores beneficiários com 35.4% do valor. Outro acordo de reforço das relações de cooperação e amizade foi fechado em dezembro de 2009 preconizando a isenção de vistos para titulares de passaportes diplomáticos e de serviços. Ao lado destes acordos, a Rússia, em conformidade com os demais países, como por exemplo, a China, a Índia, o Brasil e países ocidentais, prestou apoio humanitário à Moçambique em 2013 no contexto das cheias que fustigaram uma parte das regiões do sul e centro do país. O apoio russo consistiu em 35 toneladas de bens diversos, que incluem, tendas, cobertores, alimentos, estação elétrica portátil e outros bens.

21 O desempenho russo no apoio de Moçambique para além de histórico é igualmente maior em volume de capitais e outros bens, no âmbito do memorando de Washington. Este fato, de liderança na ajuda e repentino abrandamento, gera, por um lado, espanto, e por outro, faz acreditar que a política de não alinhamento e o desejo de organização interna junto aos países vizinhos por parte da Rússia podem ser alguns dos fatores que explicam o afrouxamento das relações entre ambos os países. Aliás, este é o argumento defendido por Wache (2014) ao afirmar que uma das maiores preocupações do gigante euroasiático é se tornar forte economicamente e ao mesmo tempo melhorar as relações regionais com os seus vizinhos próximos. O autor aponta como uma das formas de melhoria das relações da Rússia com os países do seu entorno, a gestão dos conflitos internos, como é o caso do separatismo checheno e a criação de alianças com os países vizinhos. Estas e mais ações levadas a cabo pela Rússia fizeram com que abrandassem as relações russas com os países africanos em geral e Moçambique em particular, sobretudo nos anos 90 e, para o autor, tal afrouxamento não significou abandono.

22 Collins (2013) não coloca o problema nos termos acima citados, mas sim, problematiza a questão, apontando que a abertura russa ao mercado externo não foi acompanhada pela manutenção das anteriores alianças. Havia, de acordo com o autor, o sentimento de autossuficiência em termos de recursos naturais, o que limitou a internacionalização das suas empresas em todo o mundo. Todavia, é importante assinalar que foi exatamente a abertura do mercado russo e o rápido processo de liberalização e privatização de suas empresas8 nos anos 90, que permitiram a internacionalização das empresas russas. Deste modo, as relações históricas no campo político-militar, se renovaria em novas modalidades, isto é, no âmbito político-econômica. Assim, as aflições políticas africanas de luta pelas independências e a busca de aliados pela Rússia no contexto da Guerra Fria, abriram caminho para relações políticas que a partir dos anos 2000 deveriam ter se transfigurado para o campo econômico. Collins (2013) aponta

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que com a política conhecida por Putin Foreign Policy Concepts de Vladimir Putin que prevê aumento do intervencionismo econômico russo, seja em termos de investimentos, bem como em termos da sua abertura ao capital externo. O que se esperava nesta política não era só a abertura ao mercado externo, mas também a renovação das antigas alianças no contexto da Guerra Fria.

23 Apesar dos investimentos russos em Moçambique serem incipientes, existem sinais de renovação das antigas relações. Após quase duas décadas de hibernação das relações com Moçambique, os dois países deram mais imputs e dinamismo às formas de cooperação. Um dos indicadores de reatamento das relações foi perdão a 95% da dívida moçambicana, uma estratégia alargada, também, para os países como Zâmbia, Tanzânia, entre outros, segundo dados da Direção Nacional de Tesouro (2015) e Wache (2014). Moçambique não só correspondeu positivamente às intenções russas de perdão da dívida, como também, aplaudiu a visita do Vice-Ministro das Finanças da Federação Russa em 2006. A Rússia perdoou dívidas de vários países africanos num total de US$ 904 milhões, além disso, os investimentos russos registraram um estoque de aproximadamente US$ 2.1 bilhões em 2012 (FIDAN; ARAS apud GRACIA, 2016, p.35).

24 É nesse âmbito de melhoria e alargamento das áreas de cooperação que Moçambique retribuiu visita à Federação Russa, por meio da então Ministra dos Negócios Estrangeiros & Cooperação Alcinda Abreu, em 2007. De acordo com Wache (2014, p.168), nessa visita a ministra moçambicana, junto ao Ministro dos Negócios Estrangeiros russo, tratou dos problemas de desenvolvimento no contexto das relações bilaterais e multilaterais.

25 Os resultados imediatos deste reatar da cooperação se materializaram em isenção de vistos aos passaportes diplomáticos e de serviços em 2009, além disso, o avolumar das transações comerciais entre os dois países, que em 2010 atingiram US$ 40 milhões, tendo duplicado para US$ 83 milhões em 2011 (WACHE, 2014, p.168). Tanto Moçambique quanto a Rússia consideram estas transações ainda incipientes quando comparadas com as fervorosas relações políticas na era de luta pela independência de Moçambique.

26 Em 2012, em Bloemfontein, África do Sul, – no contexto do centésimo aniversário do African National Congress (ANC), partido no poder desde 1994 – foi realizado um encontro entre Moçambique e Rússia. Este encontro teve continuidade em Maputo, com o então presidente da República de Moçambique Armando Guebuza e o ex-Primeiro-Ministro Aires Ali, com o representante russo Margelov, cujo enfoque era a economia extrativa (Wache, 2014).

27 Das várias formas de aliciamento de Moçambique pela Rússia, destaca-se o interesse manifestado pela Rússia, por meio do seu Ministro da Indústria e Comércio que visitou Moçambique em 2012, da construção de infraestruturas com especial destaque para ferro-portuárias e fornecimento de helicópteros para diversos fins (WACHE, 2014, p. 169).

28 Sobre negociações comerciais, Fidan e Aras, citados por Gracia (2016) indicam a reativação das relações históricas de comércio das armas como as que maior dinamizam tal ligação. A título de exemplo, Gracia (2016) olha com maior preocupação a venda de armas para a África pela Rússia, tendo fechado em 2011 um negócio de US$ 66.8 bilhões. A Argélia, “onde há forte presença da Gazprom, gastou quase US$ 54 milhões no período de 2003 a 2012 em compras militares, dos quais 90.8% foram importados da Rússia” (GRACIA, 2016, p.52). Na mesma perspectiva, Lechini citada por Gracia (2016),

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indica que a participação da Rússia no comércio de armas com a África tem raízes na guerra fria, quando muitos exércitos africanos se tornaram dependentes do abastecimento e das tecnologias militares soviéticas. Sendo o maior país mundial em termos de extensão, com 138 milhões de pessoas em 2011 – nono maior em termos populacionais, como mostra Woehrel “a Rússia detém 30% do total das reservas de gás natural mundial e produz cerca de 10% do petróleo comercializado a nível global” (WOEHREL apud WACHE, 2014, p.133). As indústrias tanto de gás quanto do petróleo são majoritariamente controladas pelo governo russo. A partir do entendimento de Collins (2013) sobre o projeto reformista da política externa da Rússia dos anos 2000, pode-se inferir que a emergência econômica do gigante euroasiático que coincide com o boom das descobertas de recursos minerais em Moçambique, tem sido um dos fatores que poderiam reativar com maior vigor a dinâmica das relações de cooperação econômica entre os dois países. Tal processo, para este artigo, está acontecendo de forma acanhada, como se demonstra do tópico que se segue.

Investimento Direto da Rússia em Moçambique

29 De acordo com Wache (2014), em 2007, Rússia e Moçambique concordaram em dinamizar as relações de cooperação econômica nos domínios de exploração geológica, mineração, siderurgia, petroquímica, pesca, projetos de energia e infraestruturas, formação e capacitação institucional. Não obstante estes acordos, dados sobre os investimentos diretos russos em Moçambique são escassos pelo menos a partir do Centro de Promoção de Investimento (CPI) e do Gabinete das Zonas Econômicas para Desenvolvimento Acelerado (GAZEDA). As únicas notas disponíveis com base nos dados do CPI apontam para investimento russo global de US$ 3.2 milhões em três projetos e gerando 162 novos empregos, investimentos realizados apenas em 2000 e 2009. Estes dados, colocam a Rússia numa classificação mais baixa, ou seja, na situação de menor investidor, quando comparado com o volume dos investimentos dos demais países dos BRICS em Moçambique. O investimento russo em Moçambique representa 4% do total dos investimentos diretos dos demais países dos BRICS. No seio da organização BRICS, a República da África do Sul (RSA) com 52% do investimento, ocupa o primeiro lugar com US$ 4.2 bilhões, seguindo em segundo a China com 25.0%, o Brasil com 11.7% e finalmente a Índia com 7.3%. Embora não seja objeto de estudo deste artigo, é importante sublinhar que os investimentos diretos da Índia em Moçambique, geram mais empregos do que os demais países dos BRICS9. Por exemplo, a partir dos dados do CPI e GAZEDA, foi possível calcular por cada um milhão de dólares norte-americanos quantos novos empregos são gerados se mantidos todos os determinantes do emprego e verificou-se que Índia gere cerca de 150 novos empregos. A China com 132 novos empregos em cada um milhão de dólares, seguem em segundo lugar e em terceiro vem a RSA com 63. É verdade que os setores de investimentos e o fator tecnológico são bem diferentes, porém, era de se esperar que Índia e China que concentram 54.1% e 47.3%, respetivamente, do seu investimento direto em Moçambique, na indústria gerassem menos empregos. Esta esperança se apoia no fator tecnológico considerando o setor de recursos minerais, mas tudo indica que é preciso desagregar os dados do CPI e GAZEDA sobre os vários ramos da indústria para verificar as áreas específicas nos quais estes dois países investem realmente. Presume-se que sejam setores de baixa intensidade tecnológica e, por conseguinte, de alta intensidade de mão-de-obra.

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30 Por seu turno, a RSA e o Brasil concentram 35.0% e 36.8% dos seus investimentos na hotelaria e turismo e serviços, respectivamente. Para Gracia (2016) os dois países tendem a não gerar mais empregos devido à tendência de contratar mão-de-obra altamente qualificada. Por economia do espaço e por não ser este o objeto deste estudo, não será desenvolvida esta questão. No entanto, é preciso afirmar que o argumento de Gracia, não procede, sobretudo para o caso da RSA que concentra seu investimento no setor da hotelaria e turismo e que a experiência deste país em Moçambique, mostra que seus investidores preferem mão-de-obra não qualificada. Aliás, mesmo na África do Sul, as empresas mineiras e demais empresas privadas vivem da mão-de-obra não qualificada e estrangeira, em particular de Moçambique, Zimbabwe, Malai, Botsuana, Suazilândia etc.

31 Retomando as relações de cooperação Moçambique – Rússia, é importante afirmar que considerando como base de comparação o Produto Interno Bruto (PIB) russo, constata- se que este é maior que o indiano e o Sul africano. Para além disso, em 2009 Rússia foi um dos maiores exportadores do investimento direto estrangeiro (IDE) no seio das economias emergentes, estando atrás apenas de Hong Kong e a frente do Brasil, da Índia e da China (IPEA, 2011, p.3), ou seja, foi o maior investidor externo no seio dos BRICS.

32 A partir dos dados do CPI e do GAZEDA sobre investimentos diretos russos em Moçambique que representam apenas 4% da soma total do Investimento Direto Estrangeiro (IDE) dos BRICS, pode se levantar alguns questionamentos: quais os fatores que podem explicar os incipientes investimentos diretos russos? Este estudo reconhece a bipolarização dos fatores, isto é, do lado Moçambicano e russo.

33 Do lado russo, Collins (2013) aponta que desde a adoção do modelo da economia de mercado após o colapso da União Soviética em 1991, a Rússia se transformou num país moderno que tem se firmado como um dos gigantes econômicos com base em dois fatores: abundância de recursos naturais e o setor privado bem capitalizado. Collins (2013) avança ainda que a abundância de recursos naturais e políticas governamentais restritivas de expansão do capital financeiro têm se mostrado, atualmente, ineficazes. A ineficácia das políticas restritivas é associada pelo autor, ao fato de as empresas reconhecerem que numa situação de ambiente interno de turbulência econômica sua salvação dependia do mercado externo, o que lhes levou a criar conexões. Collins (2013, p.48) continua indicando que este fato obrigou o governo a iniciar reformas econômicas de forma que o ambiente interno fosse favorável ao negócio e que pudesse atrair investimentos, sejam eles nacionais ou externos. Mais do que uma política restritiva de expansão das empresas, o governo começou a alocar, de acordo com a fonte, capital financeiro e a apoiar a internacionalização das empresas. É assim que em 2001, o banco da Troika de Diálogo sobre investimentos russo estimou que 40% do PIB russo era controlado pelas 70 maiores empresas.

34 Segundo Collins (2013), como consequências das políticas reformistas dos anos 80, a economia russa floresceu. O autor considera como políticas reformistas, por exemplo, a abertura ao mercado externo, em particular a entrada em 2012 na Organização Mundial do Comércio (OMC), e as privatizações que, na concepção de Collins, tornaram a economia russa mais forte. Deste modo, Rússia foi capaz de manter um crescimento de 4.3 por cento em 2010 e 2011, mesmo após crise de 2008 – 2009. O PIB russo de US$ 2.4 trilhões e PIB per capita de US$ 17.000, tornaram o país a sétima maior economia do mundo em 2011. Dados importantes, apresentados por Collins (2013), mostram o quão

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relevante é a participação do setor privado e estatal na economia russa. Por exemplo, 60% do PIB russo, provem de serviços que contam com 60% da força de trabalho. Adicionalmente, a Rússia está melhor posicionada em termos de exportação de capitais financeiros e no seu mercado foram investidos nos finais de 2011, US$ 315 bilhões, um investimento cotado como o décimo sexto maior do mundo (COLLINS, 2013, p. 47). Por sua vez, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) mostra que entre 2000 e 2008, o Investimento Direto Estrangeiro (IDE) russo crescia a uma taxa de 43% ao ano, muito acima dos 6% do crescimento do IDE mundial. Nesse período, a Rússia lançou para o mercado global US$170.7 bilhões, tendo as fusões e aquisições se situado em US$55.9 bilhões, entre 2005 e 2008. O IPEA (2011) mostra ainda que a internacionalização das empresas russas ocorreu no final da desaceleração e estagnação da economia a partir de 2000. Este fato é consequência, segundo Collins (2013), das políticas reformistas, as chamadas “Eagle multinationals” que se concentravam majoritariamente no setor de energia e que começaram a estabelecer a sua presença internacional em pouco tempo da sua existência, quando comparadas com as firmas ocidentais. Impulsionadas pelo elevado preço de commodities e não só, mas também, devido às novas políticas empresariais dos Estado russo, as empresas transnacionais iniciaram um processo agressivo de internacionalização.

35 As políticas de privatizações na Rússia é um dos fatores que dá lastro a dinâmica da economia do país. Fato bem diferente para o caso de Moçambique, que nos anos 1980, por exemplo, constituíram um fracasso abismal, dado que a elite moçambicana descapitalizada tomou as empresas públicas mesmo sem experiência empresarial de gestão e empresarial. Além disso, a elite política de Moçambique a despeito do dilaceramento do país pela guerra civil e das secas alternada com cheias cíclicas, confiava na propaganda ocidental de que a escassez de recursos era a razão do subdesenvolvimento. O resultado desta confiança, foi gerar uma pesada dívida externa que não só arruinou os cofres do Estado em serviços da mesma, ao lado de assistência técnica, como também, provou que tais empréstimos eram a causa primeira da penúria moçambicana e incapaz de engendrar, por si só, o desenvolvimento socioeconômico.

36 Retomando a questão dos IDE russo, Barka e Mlambo (2011 apud GRACIA, 2016), apontam, por exemplo, que entre os países africanos, os investimentos do gigante euroasiático, colocam Moçambique numa situação marginal. Volumosos investimentos da petrolífera russa Lukoil estão presentes na Costa do Marfim e Gana e da mineradora de diamantes Alrosa e Sintez em Angola, Namíbia e República Democrática do Congo e África do Sul. A fonte aponta ainda que a estatal Gazprom explora gás natural na Argélia e detém parte da petrolífera argelina Sonatrach, para além, da estatal de energia nuclear Rosatom que está no Egito.

37 Como se pode notar, apesar de as empresas norte-americanas Anadarko e italiana ENI terem anunciado em 2011 a descoberta de 22.5 trilhões de metros cúbicos de gás, o que coloca Moçambique como um dos países que detém uma das maiores reservas de gás no mundo, uma das áreas de especialidade das empresas russas, os investimentos daquele país em Moçambique são ainda marginais. Não existe nenhuma pretensão e nem poder para forçar a Rússia a realizar investimentos avultados em Moçambique em detrimento dos demais países do mundo, mas simplesmente, um esforço intelectual de busca de explicações para entender a forma como as históricas relações de amizade político- militar se transfiguram em amizades econômicas. Recordar que a Rússia foi um “grande amigo” de Moçambique que ajudou de forma decisiva na luta contra o colonialismo

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português e o seu silêncio na área econômica deve ser pesquisado. Existe uma consciência firme de que os investimentos russos em Moçambique seguiriam o mesmo padrão neoliberal de pauperização e espoliação das comunidades, mas é muito importante procurar as causas do menor interesse do gigante euroasiático em investir em Moçambique. O certo é que Rússia realiza investimentos, mas ainda não tem maior interesse em investir em Moçambique. Para este artigo, o que explica o desinteresse russo em investir em Moçambique são fatores estratégicos de orientação política e econômica. Ou seja, os maiores recursos que colocam Moçambique no mapa mundial ou que constituem atrativos para investimentos, a Rússia os detém em maiores quantidades no seu território e provavelmente, não está interessado em entrar em disputas com os países ocidentais. É igualmente provável que em termos estratégicos que a Rússia não encontre vantagens políticas e econômicas para os seus interesses. Deste modo, se os interesses geopolíticos e geoestratégicos não são atualmente satisfeitos por Moçambique no âmbito de investimentos, é de se esperar que a Rússia não se coloque numa situação de disputar os gigantes ENI, Anadarko e ExiMobil que exploram gás e petróleo na bacia do Rovuma, província nortenha de Cabo Delgado em Moçambique. O tópico que se segue, procura explorar com mais detalhes esta questão de interesse geopolíticos no contexto do princípio da multilateralidade. Para os propósitos deste artigo, a geopolítica é entendida como arte, técnica ou estratégia de formulação de princípios do Estado que orientam e preservam a sua relação com os demais Estados. Não numa perspectiva de estratégia agressiva a nível internacional, mas uma preservação da soberania do Estado, ao mesmo tempo que faz com que os interesses internacionais desse Estado sejam alcançados.

Princípio da Multipolaridade

38 O princípio da multipolaridade não é objeto de estudo deste artigo, mas é importante pois ajuda a explicitar o argumento de que a Rússia foi determinante para a libertação de Moçambique, em particular e da maioria dos países do terceiro mundo em geral. Este interesse da Rússia de ver os povos livres e capazes de orientarem por si o seu destino, se enquadra neste princípio da multipolaridade. Uma vez que a multipolaridade se compadece com poder descentralizado, ou seja, com o mundo no qual as decisões internacionais são tomadas por todos. Para que isso aconteça, o primeiro requisito é a liberdade, ser reconhecido como Estado soberano e isso não é possível enquanto colônia. A Rússia, a China, os países africanos e Nórdicos e tantos outros, ao ajudar Moçambique em particular e os demais países colonizados a se libertar do jugo colonial, estavam procurando criar um mundo mais justo, pacífico no qual predomina a segurança coletiva, mesmo reconhecendo a impossibilidade de equilíbrio do poder. Trata-se, em última instância, da ansiedade de um mundo sem poder hegemônico centralizado numa única potência, sem colônias e colonizadores, um mundo no qual os iguais interagem, cooperam horizontalmente em benefícios mútuos.

39 Este é um dos fatores que gera preocupação deste artigo quando a Rússia não investe em Moçambique. Não por que, como já se disse, esteja distanciado do modelo neoliberal, mas é preciso procurar analiticamente as circunstâncias geopolíticas, geoestratégicas e geoeconômicas que distanciam os dois “amigos”, ou ao menos, dois países que comungavam a mesma ideologia marxista-leninista e com relações consolidadas.

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40 Posto isto, é possível chegar à inferência de que Rússia orientada pelos princípios da multipolaridade, provavelmente não teria receio de investir seu capital financeiro juntamente com os países ocidentais, como ocorre com o Brasil. Se não o faz atualmente, não é um problema de poder, mas sim, de ver seus princípios geoestratégicos e geopolíticos mal salvaguardados.

41 O poder russo na arena internacional é sobejamente conhecido. Ou seja, Rússia reúne os principais requisitos para que um país possa ser uma grande potência mundial na perspectiva dos teóricos realistas que são: extensão territorial ocupada e integrada, força militar, poder econômico, poder ideológico, coesão nacional e fronteiras e soberania assegurada. O estudo de Patriota et al. (2012), que analisa os 10 países atualmente mais poderosos, permite perceber que de fato, a Rússia reúne os requisitos acima descritos. Para além disso, é sobejamente conhecido o poder do gigante euroasiático como o único com larga experiência de disputa com sucesso contra o império norte-americano e os seus aliados. Assim, os indicadores de Patriota comparam dez países10 e olham especificamente para: população; PIB em trilhões de dólares norte- americanos pela paridade de poder de compra (PPC); disponibilidade do efetivo militar da primeira linha; reservas em moedas estrangeiras e ouro em bilhões de dólares norte- americano e consumo diário de barris de petróleo, estando a Rússia nessa classificação em nono, sétimo, oitavo, terceiro e quarto lugares respectivamente. Este poderio demonstrado nestes indicadores, ainda que não tenha conseguido retratar a realidade do poder russo, é bem verdadeiro afirmar que Rússia é bem conhecida como intervencionista, principalmente na área militar, em fase das disputas travadas com os EUA. Atualmente, Rússia ao lado dos países dos BRICS vê o seu poder hegemônico reforçado e espera-se que seu culto a multipolaridade possa ser reforçado e quiçá ocorra uma implementação efetiva. Este desejo manifesto está associado ao fato de que a multipolaridade supõe a existência de vários centros de poder, o que pode permitir respeitar as diferentes perspectivas, rumo a um mundo melhor – a chamada nova ordem mundial.

42 A breve análise sobre o poder russo, não responde à questão central, que é encontrar através dos conceitos geopolítica, geoeconomia e geoestratégia, elementos capazes de explicar o desinteresse russo em investir em Moçambique, mas cria condições analíticas. Outra forma de fazer esta busca ou de criar condições analíticas é olhar o contexto de Moçambique, ou seja, terreno de implementação dos projetos através da experiência dos demais países dos BRICS que já estão ativos. Ou seja, qual é a experiência em termos de relacionamento de cada um dos países dos BRICS na implementação de projetos trilaterais? Considera-se para efeitos desta análise a experiência do Brasil que tem sido um dos poucos países no seio dos BRICS que implementa projetos com as agências e governos ocidentais.

Breves notas sobre a Experiência de Cooperação Trilateral do Brasil em Moçambique

43 O título deste tópico traduz uma ideia clara de que se trata, de fato, de breves notas sobre a experiência do Brasil na implementação de projetos de forma trilateral e/ou multilateral com algumas agências ou Estados ocidentais. Estas notas são consideradas neste artigo uma outra dimensão de análise cuja finalidade é verificar se o desinteresse russo em investir em Moçambique está ou não associado à presença dos gigantes

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hegemônicos ou ocidentais em Moçambique? E que essa presença é considerada por este artigo como um dos fatores que desvirtua os princípios de cooperação horizontal, no contexto da solidariedade terceiro mundista defendida pelos países do Sul.

44 Moçambique e o Brasil partilham um passado histórico comum, que tem como alguns indicadores o fato de terem sido colônias portuguesas. Para além disso, são sob o ponto de vista da posição internacional, considerados sob diferentes degraus países do Sul e com sentimento de interajuda. É assim que após a independência de Moçambique em 25 de junho de 1975, Brasil abriu a sua embaixada em Moçambique em 1976 e em 1981 assinou vários acordos de cooperação. Antes mesmo da independência, Brasil apoiou militares a FRELIMO11 contra o regime fascista colonial português e a partir dos anos 80, ajudou através de doações, assistência técnica e financeira e, atualmente, realiza igualmente investimentos diretos. Após um período de abrandamento das relações entre os dois países, nos anos 90 e sobretudo 2000, assiste-se uma efervescência das relações, em particular nos domínios de investimentos diretos.

45 É neste período, por exemplo, que como indicam Inoue e Vaz (2012) e Lundin (2014) dos US$ 33 milhões que o Brasil colocou em alguns países de África, da América Latina, Central e Caraíba e Ásia, Moçambique foi o maior receptor, pois absorveu 15.7% do total da ajuda12. Na mesma perspectiva, Gracia, Katos e Fontes (2012) apontam que Brasil gastou entre 2010 e 2013, mais de US$ 70 milhões em projetos de cooperação bilaterais com Moçambique. Porém, para Lundin (2014, p.114) apenas em 2011 e 2012, a cooperação entre os dois países é estimada em US$ 146 milhões, em 2012. Para a autora, o valor de 2012, representou um aumento de 54.79% em comparação aos US$ 80 milhões de 2011. A fonte destaca as compras de aviões pela empresa Linhas Aéreas de Moçambique (LAM) à fabricante de aviões EMBRAER (Empresa Brasileira de Aeronáutica S/A) como um dos fatores da dinâmica comercial entre os dois países. De um modo geral, como apontam Gracia, Katos e Fontes (2012), Moçambique é o maior receptor da ajuda externa brasileira no seio dos países falantes da língua portuguesa em África e Angola, o país que recebe mais investimentos diretos.

46 Os propósitos deste artigo não permitem enumerar as várias incursões brasileiras em Moçambique, o que deve ser considerado é que o gigante econômico Latino Americano é um dos maiores países do mundo que largamente apoia Moçambique. De várias formas, desde doações, perdão da dívida, assistência técnica e financeira e investimentos diretos. A nível de investimentos e quando comparado com os demais países dos BRICS, no período de 2000 a 2014, com base nos dados do CPI e GAZEDA, Brasil é o terceiro maior investidor com quase um bilhão de dólares norte-americanos, atrás apenas da RSA e da China. As principais empresas que investem em Moçambique são igualmente inumeráveis, porém, há que destacar, Petrobras, Queiroz Galvão, Odebrecht, Andrade Gutierrez, Camargo Correa e Vale Moçambique13. Em termos de apoio e solidariedade brasileira, pode-se, por exemplo, indicar a Agência Brasileira para Cooperação (ABC), Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), Escola Nacional de Administração Pública (ENAP), entre outras. Atualmente, Moçambique com o apoio do Brasil, tem uma das maiores Sociedades Moçambicanas de Medicamentos da região, colocando anualmente nas universidades brasileiras cerca de 50 estudantes, sob financiamento do Brasil, modernizou o Aeroporto Internacional de Nacala, a linha férrea de Sena e é um dos maiores produtores e exportadores de carvão mineral na África.

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47 Como foi dito, não é possível enumerar as vastas e valiosas contribuições do Brasil em Moçambique dos últimos 41 anos, mas por enquanto, interessa fazer um breve recorte sobre os dois projetos que o gigante Latino Americano implementa com algumas agências e Estados ocidentais e que são objeto de várias críticas, seja a partir dos centros acadêmicos, quanto a nível da Sociedade Civil, como por exemplo, associações de camponeses. Em resumo, tais críticas se circunscrevem no caráter neoliberal do Brasil por meio da expropriação das terras, do menor impacto social dos projetos, da falta de transparência, do menor envolvimento dos afetados na discussão e as elaboração dos projetos, entre outros males.

48 Desses projetos e para os propósitos deste artigo, interessa destacar o ProSAVANA e ProALIMENTOS que o Brasil implementa com as agências e Estados ocidentais. Estes projetos são implementados em Moçambique pelo Brasil juntamente com a Agência Japonesa para o Desenvolvimento Internacional (JICA – sigla em inglês) e a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), respectivamente. Vários estudos têm se preocupado em examinar a sobrevivência, por exemplo, dos princípios brasileiros de parceiros de desenvolvimento, de cooperação horizontal, de solidariedade terceiro mundista. Este interesse se alicerça na ideia de que a cooperação Norte-Sul é bem diferente da cooperação Sul-Sul, sem, no entanto, negar a existência de intercessões ou elos de complementaridade, dado que existe uma falsa ideia de que os dois modelos de cooperação almejam o mesmo fim. Dos Santos (2004) demonstrou sob diferentes maneiras que os países que cooperam ou que consideram o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BM) como salvador devem saber que terão que renunciar uma parte da sua soberania. De fato, após quase quatro décadas de formidáveis empréstimos a Moçambique por estas instituições, o único resultado que o país obteve foi a administração dos mesmos empréstimos e da miséria.

49 Uma breve demarcação das diferenças entre as duas modalidades de cooperação é dada por Fingermann (2014). A autora aponta que na cooperação Norte-Sul predomina a linguagem de doadores e recipientes e é uma cooperação vertical com fortes condicionalidades. Este modelo é bem diferente da cooperação Sul-Sul que defende horizontalidade, reciprocidade, solidariedade, igualdade e incondicionalidade e é representada pelos países que não são membros da CAD-OCED14, mas sim, por países do Sul.

50 Sobre o caso específico dos projetos acima referenciados, Fingermann (2014, p.112) mostra que o projeto ProALIMENTOS foi desenhado de modo a satisfazer os interesses norte-americanos. Deste modo, os princípios brasileiros de cooperação terceiro mundista não se efetivam nos moldes da sua política. A este respeito, o relato da entrevista realizada pela Fingermann (2014) a um dos funcionários da USAID- Moçambique, mostra a existência de uma clara desigualdade institucional entre a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) e a ABC em termos de investimentos realizados. Mais ainda, enquanto os escritórios da USAID- Moçambique contam com uma formidável equipe técnica com larga experiência em Moçambique, a ABC tem apenas quatro representantes. A autora aponta problemas associados à assimetria de informação entre as principais instituições implementadores e limitada participação das agências executoras norte-americanas na elaboração dos projetos. Mais do que isso, a autora aponta diferenças nas modalidades de repasses financeiros às instituições executoras, sendo descentralizado o modelo da USAID que delega a responsabilidade de gestão dos fundos pelas diferentes subunidades

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contratadas para apoiar na implementação do projeto. Todas as despesas da ABC sobretudo viagens são efetivadas via PNUD e isso requer um alto nível de planejamento o que gera inflexibilidade e lentidão no agir, uma vez que o poder decisório não está descentralizado. Isto é, a falta de autonomia financeira gera restrições nos repasses para as atividades dos técnicos da ABC, o que compromete, não só os resultados, mas também, os princípios da política externa brasileira.

51 Esta e outras experiências amargas para os interesses da política externa brasileira não só ocorrme no projeto ProALIMENTOS, como também, nos demais, com destaque para o ProSAVANA. Gracia (2016) e De Morais (2014), por exemplo, indicam que um dos problemas na implementação deste projeto está associado com o medo de os camponeses perderem as terras. De Morais (2014, p.69) explicita que o “processo de concepção e inspeção do projeto ProSAVANA foi caracterizado por falta total de transparências sobretudo na explicação das comunidades abrangidas no que se refere ao seu futuro em vista à implementação do projeto”. Por sua vez, Fingermann (2014) afirma que o projeto está enfermado por total falta de estratégia e clareza das agências implementadoras do projeto, o que coloca em causa os princípios brasileiros de cooperação solidária.

52 Do exposto acima, não se deve entender que o Brasil não é um dos veículos neoliberais, mas sim, pretende-se enfatizar que nos projetos que implementa com algumas agências ocidentais, seus princípios de cooperação horizontal, de reciprocidade e igualdade não sobrevivem.

53 Esta experiência amarga do Brasil faz com que a China, a Índia e a Rússia não optem por implementar projetos trilaterais em Moçambique. Admite-se a existência de alguns casos em que implementam conjuntamente, mas esta reflexão pretende propor mais pesquisas de modo a perceber porque a Rússia não realiza seus investimentos com a efervescência necessária, considerando a experiência de cooperação já consolidada em Moçambique.

54 Este artigo argumenta que um dos fatores do afastamento da Rússia em realizar investimentos em Moçambique junto com as empresas e agências ocidentais pode estar associado com a experiência desagradável, como se viu, para o caso do Brasil. Principalmente por que a Rússia tem sido um dos países que sofrem ciclicamente embargos econômicos devido às várias discordâncias da política e da economia internacional que a opõem aos países ocidentais, como por exemplo, o caso sírio e ucraniano pelo controle da Cremeia. Isto coloca a Rússia numa situação quase sempre de tensão com as principais potências ocidentais e que atualmente controlam a indústria de gás e petróleo em Moçambique, sobretudo por meio da italiana ENI, das norte-americanas Anadarko e ExiMobil. Deste modo, pode ser que os interesse geoestratégicos e geopolíticos da Rússia em Moçambique não possam estar salvaguardados.

55 Estes podem ser uns dos fatores que fazem com que as trocas comerciais e investimentos diretos russos em Moçambique não registrem efervescência equiparável ao passado das relações militares no contexto da luta de libertação nacional. Não obstante a afirmação acima colocada, Gracia (2016) indica que existem interesses da Rússia investir em Moçambique nos domínios de equipamentos militares em troca de petróleo e outros tipos de recursos com destaque para mineração, combustível, metalurgia, infraestrutura, telecomunicação, pesca, educação, saúde, turismo e defesa.

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56 Outra informação a respeito do exposto acima, é dada por Wache (2014) que mostra que apesar da embaixada da Rússia ter permanecido em Moçambique com o fim da Guerra Fria, as relações diplomáticas entre os dois países registraram um esfriamento. Tal abrandamento é associado pelo autor à adesão de Moçambique às instituições da Bretton Woods em 1984. Além disso, houve a rescisão dos contratos com os médicos russos devido à decisão unilateral do governo moçambicano em 2005 de pagá-los via orçamento do Estado e não com base em fundos externos. A fonte continua indicando que o governo de Moçambique converteu o “pooling”, um sistema de pagamento de salários dos médicos estrangeiros, (subsidiado com fundos externos) para o modelo “B” pago por fundos do governo através do dinheiro do Orçamento Geral do Estado. Em resultado da referida conversão, o salário dos médicos abrangido caiu de 3 mil USD/mês para 1.300 USD/mês. [...] muitos médicos especializados de nacionalidade russa, não aderiram ao novo modelo de pagamento e, em consequência disso, receberam do Ministério da Saúde, o médico Paulo Ivo Garrido, cartas de despedidas, devendo partir para o seu país de origem até 31 de março de 2005, marcando assim o fim da cooperação entre Moçambique e aquele país (WACHE, 2014, p.166).

57 Wache (2014) faz perceber, no trecho acima, que não se tratou do fim da cooperação entre os dois países, mas sim, rompimento da cooperação apenas na área médica, tendo a Rússia aberto uma nova página de cooperação econômica.

58 É neste contexto que a companhia petrolífera russa ‘Nobel Oil’ iniciou por meio do governo russo conversações para exploração de gás, ouro, petróleo e outros minérios em Moçambique. Ao lado desta companhia, foram também manifestos os interesses da empresa russa – RUSAL, o que o governo de Moçambique viu como retomada das relações de cooperação e “amizade” entre os dois países. Deste modo, o presidente da câmara de comércio de Moçambique, Jacinto Veloso, citado por Wache (2014, p. 167) afirma que apesar de a Rússia ter boas relações diplomáticas com Moçambique, o mundo atual não é guiado apenas pelas relações bipolares, mas também, pela cooperação multilateral. E acrescenta que apesar de não existirem ações concretas de relações econômicas e investimentos empresariais entre os dois países, iniciaram conversações com vistas a dinamizar as relações comerciais. Hoje constata-se uma retomada de diálogo entre os dois países que permite Wache (2014) evidenciar, a partir das afirmações de Veloso, duas coisas: primeiro que apesar de abrandamento das relações entre os dois países, Rússia não abandonou Moçambique; segundo, as relações criadas no contexto das aflições políticas estão ganhando novo significado, desta vez no campo econômico.

59 Apesar da preferência pelo modelo de intervenção militar, a Rússia, assim como seus homólogos dos BRICS, defende a superioridade dos princípios básicos internacionais. Defende igualmente a multipolaridade, ou seja, a distribuição de poder dentro de um sistema internacional. Para Wache, a unipolaridade é inaceitável e a dominação inadmissível (WACHE, 2014, p.126).

60 A partir dos anos 2000, Putin se apercebeu que o valor da África não é só econômico, mas também, estratégico e geopolítico para contrabalançar a unipolaridade e hegemonia dos Estados Unidos da América (EUA). É assim que o presidente russo reiniciou o processo de reaproximação com o continente africano. Como indica Collins (2013), em 2000, o governo de Putin, redesenhou a sua política externa com a África em geral e com Moçambique em particular ao se aperceber que o continente é um

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interlocutor válido para a luta pela construção de um sistema internacional multipolar capaz de instaurar uma nova ordem mundial. Neste contexto, em 2013, a Federação russa mantinha relações diplomáticas com todos os países da África Subsaariana e tinha embaixadas em 33 países desta região e, 32 embaixadas de países africanos funcionavam em Moscou (WACHE, 2014, p.159). O autor continua apontando a remoção da unipolaridade e construção do sistema multipolar como fator que fez com que a Rússia apostasse na diplomacia econômica com a África, sob três esferas: investimento direto estrangeiro, comércio e perdão da dívida.

61 Apesar do argumento de Wache (2014) apontar para o interesse russo em melhorar as relações com os seus países vizinhos, a nível econômico, não foram encontradas evidências desse esforço. Talvez porque, como acontece com Moçambique, os países da Comunidade dos Estados Independentes (CEI) não satisfazem o quesito de busca de eficiência à dimensão do interesse russo. Isto por que a classificação de Alves (2014, p. 187), por exemplo, sobre o ambiente de negócio nesses países permite agrupá-los em três: i) no primeiro grupo está a Geórgia cujo ambiente de negócios tem se aproximado ao padrão prevalecente nas economias desenvolvidas ocidentais; ii) no segundo grupo estão no extremo oposto e negativo a Bielorrússia, Moldávia, Tadjiquistão, Turcomenistão, Ucrânia e Uzbequistão, necessitando uma série de reformas para melhorar seus ambientes de negócio e; iii) o grupo intermediário cuja característica é possuir grandes deficiências de controle de corrupção e é composto por Armênia, Azerbaijão, Cazaquistão e Quirguistão. Em termos de atratividade do mercado interno, como a disponibilidade de mão-de-obra qualificada e de baixo custo, a qualidade da infraestrutura e a disponibilidade de recursos naturais, Alves (2014, p. 193) com base nos dados do ranking global posiciona os países da CEI na seguinte ordem: os países posicionados na metade inferior são Ucrânia (22ª), Bielorrússia (27ª), e; Cazaquistão (33ª). A Geórgia (104ª), Quirguistão (108ª), Moldávia (122ª), Tadjiquistão (131ª) e Armênia (136ª). Em função do quadro literário predominante que defende boas condições de negócios como fator crucial, os dados acima sugerem baixa atratividade do IDE. De fato, Alves (2014) aponta que os países da Comunidade dos Estados Independentes (CEI) respondem por parcela ínfima ao IDE recebido pela economia russa, menos de 0.5% dos US$ 493.4 bilhões em 2010.

62 Desta análise ressalta-se a ideia de que não são só os fatores econômicos que explicam o interesse russo pelos países da CEI, mas também, fatores geopolíticos, geoestratégicos e segurança regional. Welhelmsen e Flikke (2011) sustentam este argumento ao apontar que as novas relações entre China e Rússia têm em vista reduzir a influência dos Estados Unidos da América (EUA) na Ásia Central. Paralelamente às questões de segurança, como afirmam os autores, a Rússia por meio da Gazprom recuou ao período Soviético e retomou a instalação dos pipelines de gás para se manter como maior provedor até 2028. É assim que Rússia incrementou seus investimentos nas áreas de hidrocarbonetos energéticos na Ásia Central, principalmente entre 2001 a 2004. Os autores apontam que com crescimento da influência russa na região, garante-se o controle pelo gigante euroasiático dos recursos marinhos e isto permite o alcance dos objetivos estratégicos de reduzir a influência dos EUA na região.

63 O poder da Rússia em termos de recursos naturais e, sobretudo, energético, é apontado por Collins (2013) como sendo o fator que explica a falta de motivos para a internacionalização das suas empresas. Mesmo reconhecendo o peso deste argumento, o investimento direto estrangeiro (IDE) russo nos países da Comunidade dos Estados

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Independentes (CEI), ou seja, ex-integrantes da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas é marginal. Guiado pela teoria econômica de procura de melhor ambiente de negócio, o IDE russo se concentrou mais no mercado ocidental do que no seu entorno e pouco menos na África e América Latina. Estimativas de Vehtra (2009 apud IPEA, 2011, p.4) apontam fusões e aquisições de 78%, entre 2005 e 2008, envolvendo empresas russas no Ocidente. Destarte, a Rússia é o maior país mundial em termos de extensão, com 138 milhões de pessoas em 2011 – nono maior em termos populacionais, como mostra Woehrel citado por Wache (2014, p.133). Adicionalmente, e de acordo com o mesmo autor, Rússia detém 30% do total das reservas de gás natural mundial e produz cerca de 10% do petróleo comercializado a nível global. As indústrias tanto de gás quanto do petróleo são majoritariamente controladas pelo governo russo.

64 Como mostram os dados do IPEA (2011) até 2008 quando o IDE mundial apresentava uma retração de 14.9%, os investimentos russos no mundo, aumentaram 22.2%, tendo lançado US$ 60 bilhões no mesmo período. Embora o período de glória do investimento russo no exterior que iniciou em 2000 tenha entrado em crise em 2009, ao registrar uma contração de 17.9% quando comparado ao de 2008, ele continuou elevado em relação à queda de 42.9% do IDE mundial. Igualmente, o IDE russo se recompôs ao registrar um crescimento de 12.2% em 2010, ou seja, atingindo os níveis de 2008. Na mesma perspectiva, Collins (2013, p.50), por exemplo, aponta que o IDE russo saiu dos US$ 1.2 bilhões em 1998 para US$ 12.7 bilhões em 2005. Em 2006, Rússia alcançou a cifra de US$ 23.1 bilhões e 2007 quase que duplicou o valor anterior ao atingir US$ 45.9 bilhões15.

65 Os dados acima apresentados permitem perceber, como já foi dito, que não é o problema de escassez de capital financeiro que explica os ínfimos investimentos russos em Moçambique. Mostram ainda que os recursos naturais que Moçambique usa como sua “bandeira” são os que a Rússia detém em quantidades bem superiores a Moçambique. A partir destas evidências, pode se inferir a ilação de que a retomada das relações de cooperação Moçambique – Rússia, ainda que a retórica oficial aponte o enfoque econômico, continua orientada para o âmbito político. Isto não deve ser entendido como não existindo interesses geoeconômicos da Rússia em Moçambique, tanto que a Rússia tem incentivado os países da organização BRICS a alargar a sua influência sobre os países do Sul, através da internacionalização das suas empresas, com maior destaque as da indústria extrativa e energética. Evidências sobre a internacionalização do capital financeiro russo foram apresentados na primeira parte deste artigo e por agora resta apontar que os demais países dos BRICS colocaram conjuntamente, no período entre 2000 a 2014, US$ 8.2 bilhões em Moçambique, apenas usando os dados do CPI e GAZEDA.

66 Do exposto acima, ficou claro que os indicadores de análise para dar resposta com base em evidências empíricas sobre a questão que orienta este artigo, foram consistentes e válidos. Só para recordar, a questão é por que é que os investimentos diretos da Rússia em Moçambique são diminutos quando comparados com os demais países dos BRICS considerando o passado histórico de boas relações no domínio político-militar? Disto, ficou como argumento a ideia que ressalta que Rússia detem potencial político, diplomático e econômico para realizar investimentos diretos em Moçambique e, por isso, não são estes fatores que explicam o seu desinteresse, mas sim, fatores geopolíticos, geoeconômicos e geoestratégicos. Deste modo, a última parte deste artigo, relativa às considerações finais, procura resumir as principais evidências que ajudaram a construir o argumento central desta pesquisa.

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Considerações Finais

67 Com objetivo de analisar o processo de transposição das relações político-militares para cooperação econômica entre Moçambique – Rússia, foi produzido o presente artigo. O problema que motivou esta investigação é o entendimento de que as relações históricas no domínio político e militar eram boas. Para além disso, Moçambique registra atualmente descobertas de valiosos recursos minerais em áreas nas quais Rússia detém vantagens tecnológicas e financeiras, no entanto, seus investimentos diretos são desprezíveis quando comparados com os demais países dos BRICS.

68 Como se sabe, Rússia foi interlocutor importante para a libertação de Moçambique do jugo colonial português. E por isso acumula uma experiência bem consolidada e histórica na cooperação com Moçambique. Assim, não se pode perder de vista um “grande amigo” sem, no entanto, conhecer as razões. É aqui onde se situa o interesse deste artigo, ou seja, capturar as evidências empíricas que explicam os menores investimentos russos em Moçambique. A busca de evidências para a construção de argumentos analíticos tomou como base metodológica a revisão da literatura e análise documental.

69 Com base nesta metodologia, foi possível perceber que, de fato, os investimentos russos e a assistência técnica e financeira à Moçambique é relativamente incipiente quando comparada com os demais países da organização BRICS. Os dados mostram ainda que os diminutos investimentos russos em Moçambique não estão associados à fragilidade econômica e financeira, mas sim, às opções políticas e econômicas do Estado russo e do setor privado. Em termos de relações comerciais entre os dois países, os dados mostram que o volume das exportações moçambicanas para Rússia foi duas vezes maior que as importações, ou seja, exporta mais num superávit de US$ 5.2 milhões. Estes números baixos quando comparados com a dimensão da economia russa, se replicam como investimentos diretos que representam apenas 4% do volume total dos investimentos de todos os países dos BRICS. A partir dos dados do CPI e do GAZEDA foi possível notar que, de 2000 a 2014, as relações comerciais estiveram bem abaixo de um bilhão de dólares norte-americanos e os investimentos diretos russos situaram-se em US$ 3 milhões. O mesmo acontece a nível de doações, assistência técnica e financeira. Os dados da Direção Nacional de Tesouro apresentam apenas uma linha de crédito e o site da Embaixada da Federação Russa em Moçambique aponta a concessão de bolsas de estudos e o perdão da dívida como algumas realizações do gigante euroasiático. Isto acontece em um momento em que Moçambique registra a maior descoberta desde a independência em termos de recursos minerais, sobretudo gás, petróleo, carvão, entre outros. Partindo da noção de que nestes setores a Rússia detém vantagens tecnológicas competitivas e ainda do reconhecimento do papel do gigante euroasiático na libertação colonial de Moçambique, foram analisadas duas hipóteses que explicam o menor intervencionismo russo na área econômica. Essas suposições apontam para um único argumento de que não é escassez de capital financeiro que explica os menores investimentos russos em Moçambique. E nem é o problema de poder político- diplomático para o fazer, mas sim, razões geoeconômicas e geoestratégicas. Ou, por outro lado, é provável que para Rússia investir em Moçambique ainda que possa ser viável sob ponto de vista econômico, pode não ser estrategicamente bom. Sobretudo por que o contexto político atual é bem diferente aos dos anos 60, sobretudo, durante a

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guerra fria no qual se caracterizava pela corrida em busca de aliados militares e difusão das ideologias socialistas. Atualmente, este movimento está quase adormecido, o que permite uma relativa rivalidade política entre as grandes potências. Esta calmaria deveria, de acordo com o argumento deste artigo, gerar elos de cooperação entre países estratégica e geopoliticamente diferentes.

70 Há ainda outros fatores que explicam o serenar das relações entre os dois países, uns relativos a Rússia e outros a Moçambique. Wache (2014), por exemplo, aponta as preocupações econômicas decorrentes da desintegração da URSS e o interesse de fortificação das relações com os países vizinhos como um desses fatores. Não obstante esta realidade, a Rússia foi, nos anos 2000, um dos maiores exportadores de capitais financeiros, sobretudo, para o Ocidente. Do lado moçambicano, ficou claro que o sentido de reconhecimento do papel histórico da Rússia prevalece a medir pelas visitas efetuadas pelos oficiais do governo moçambicano.

71 Como sempre foi dito, o artigo não está ansioso em ver a Rússia realizar investimentos em Moçambique, mas em compreender por que os investimentos deste país são diminutos quando comparado com os demais países dos BRICS. Isto porque o artigo reconhece que o gigante euroasiático não é equidistante do modelo neoliberal de pauperização e espoliação das comunidades dos países pobres. Igualmente reconhece que as teorias da economia do desenvolvimento de que a escassez de recursos financeiros explica o subdesenvolvimento é uma falácia, dado que percorridos cerca de quatro décadas de empréstimos e administração de dívidas e miséria e, atualmente de investimentos, Moçambique continua a ser classificado como um dos países mais pobres do mundo. É pouco provável que Moçambique consiga engendrar desenvolvimento social com base em capitais financeiros que não geram infraestruturas econômicas, autonomia financeira, mas que garante direitos de sobrevivência por meio do alargamento da dependência externa. E os capitais financeiros russos e das demais economias emergentes não são uma exceção, mas pretendem dar a entender que doações, empréstimos e assistência técnica que não geram autonomia financeira, instituições políticas e econômicas inclusivas têm menor probabilidade de desenvolver um país.

72 Em nível econômico e com base nos estudos de Collins (2013), Patriota et al. (2012), IPEA (2011) e Wache (2014) foi possível verificar que o poder russo, seja em termos de população, pelo PIB e poder de compra, seja em relação à internacionalização do seu capital financeiro, entre outros indicadores acima discutidos. Este fato permitiu “deitar abaixo” o argumento dominante que tendem associar os menores investimentos russos em Moçambique a problemas econômico e de interesses em investir nos países do seu entorno. A partir do princípio de multilateralidade, de cooperação Norte-Sul e Sul-Sul, sobretudo de Fingermann (2013) e na experiência do Brasil em termos de implementação de projetos trilaterais e/ou multilaterais em Moçambique com as agências e Estados ocidentais, foi possível discutir o indicador político-diplomático. A experiência russa em termos de ser o único país no mundo com capacidade comprovada para disputar o império norte-americano, o que coloca o gigante euroasiático como segunda grande potência mundial, não sustenta a suposição de que talvez seja a presença ocidental em Moçambique que retrai os investimentos russos. Os dados da Direção Nacional do Tesouro do Ministério da Economia e Finanças, do Centro de Promoção de Investimentos e do Gabinete das Zonas Econômicas para o Desenvolvimento Acelerado foram as principais evidências que construíram o objeto de

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estudo. E adicionalmente, evidenciaram o quão diminuto são os apoios e os investimentos diretos russos em Moçambique quando comparado com os demais países dos BRICS.

73 Do exposto acima, prevalece neste artigo, o argumento de que a Rússia detém potencial político, diplomático e econômico para realizar investimentos diretos em Moçambique. Assim, se não os realiza não é apenas o problema da preocupação com os problemas de segurança do seu entorno, ou ainda problemas financeiros, mas também, o fim da Guerra Fria fez com que Moçambique deixasse de ser estratégico para os interesses russos.

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NOTAS

1. De acordo com Jafar (2014), em 1947, após a Segunda Guerra Mundial, iniciou a Guerra Fria. Trata-se de uma guerra político-ideológica que opunha, sobretudo, as duas grandes potências - EUA e URSS, pela expansão do capitalismo e socialismo, respectivamente. As consequências foram sentidas quase por todos os países do mundo e traduziram-se, no caso de Moçambique, em guerra civil com consequências econômicas e sociais. A divisão da Alemanha (1961), a guerra no

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Vietnam (1950/68); o Canal de Suez (1956); a crise dos mísseis de Cuba (1962), guerra no Afeganistão (1979/88) entre outros conflitos, tiveram como causa a Guerra Fria. 2. Hanlon (1997, p.13-14) fala de prejuízos estimados em mais de US$ 20 bilhões; um milhão de mortos; 5.886 (escolas) e 500 centros de saúdes destruídos, quase 2 milhões de refugiados, fome severa, etc. 3. Bretton Woods é uma pequena cidade norte-americana na qual foi realizada a conferência monetária e financeira para o gerenciamento da economia internacional em julho de 1944. Foram adotadas nesta conferência de Mount Washington Hotel em Bretton Woods regras para as relações comerciais e financeiras entre os países industrializados. Tais acordos culminaram com a criação das instituições financeiras como Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial (BM), instituições que se tornaram os principais credores internacionais. 4. BRICS é um termo cunhado pelo Grupo Econômico Goldman Sachs e que inicialmente fazia referência apenas BRIC – diretamente relacionado as letras iniciais dos nomes dos seguintes países emergentes: Brasil, Rússia, Índia e China, cujo agrupamento efetivo, na forma de uma associação informal, foi oficializado em 2006. Desde a criação do acrônimo, tais países, como conjunto, passaram a ser referidos como “os BRICs”, a letra “s” minúscula apenas designando a passagem do termo para o plural. Com a agregação da África do Sul, em 2011, a letra “S”, em maiúsculo, relacionada à grafia em língua inglesa do nome deste país (South Africa), foi incorporada ao termo, cuja grafia passa a ser BRICS. 5. Edição de 2 de abril de 1975. 6. Nota que este artigo é parte do trabalho da tese em que estudo o investimento direto de cada um dos países dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) em Moçambique. Por causa disso, sempre irá fazer comparações com os demais países da organização. 7. Disponível em http://mozambik.mid.ru/web/mozambik_pt/russia-mocambique, acesso em: 13/7/2016. 8. Dados de Gracia (2016) apontam a presença de empresas russas, principalmente nos seguintes países (todos os valores estão em milhões de dólares norte-americanos): Angola (93); Egito (61); África do Sul (35); Líbia (30), Namíbia (3); Etiópia, Guiné Equatorial, Nigéria e Argélia. 9. Estes dados são parte da tese que está ainda em processo de produção. E foram calculados a partir dos dados apenas do CPI e GAZEDA. 10. São eles EUA, China, Japão, Rússia, Brasil, Índia, Alemanha, Arábia Saudita, Canadá e Coreia do Sul. 11. FRELIMO significa Frente de Libertação de Moçambique, é o partido que liderou a Luta Armana de Libertação Nacional contra o colonialismo português e é o partido no poder em Moçambique desde 1975. 12. Gracia, Katos e Fontes (2012, p.13) apontam como outros países que receberam para dos valores de 2003 e 2010 em forma de assistência técnica e ajuda financeira brasileiras Timor Leste (15.16%); Guiné-Bissau (14.43%); Haiti (13.11%); Cabo Verde (9.79%); Paraguai (7.45%); São Tomé e Príncipe (6.99%); Guatemala (6.37%); Angola (4.76%); Uruguai (3.26%) e Cuba (2.90%). 13. De acordo com Bielschowsky (2000), até 1997 a Vale era a terceira mineradora do mundo com 3.3% da produção de minerais no mundo, ficando apenas abaixo da Anglo American e da Rio Tinto Zinco com 8.6% e 5.4%, respetivamente da produção mundial. 14. Comité de Assistência ao Desenvolvimento (CAD) e Organização para Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE). 15. Apesar das relativas discrepância dos dados das duas fontes, IPEA (2011) e Collins (2013), o que deve se entender é que o IDE russo crescem no período em referência.

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RESUMOS

O objetivo deste artigo é analisar o processo de transposição das relações político-militares para cooperação econômica entre Moçambique – Rússia. O artigo argumenta que os problemas de segurança na região russa, bem como os econômicos, são insuficientes para explicar os desprezíveis investimentos russos em Moçambique, sem ter em conta a relevância geopolítica, geoeconomia e geoestratégica que a Rússia atribui à Moçambique com o fim da guerra fria. A busca de evidência para sustentar este argumento tomou como metodologia a revisão da literatura e análise documental. O artigo conclui que, de fato, os investimentos russos em Moçambique são insignificantes quando comparados com os dos demais países dos BRICS.

El objetivo de este artículo es analizar el proceso de transposición de las relaciones político- militares para cooperación entre Mozambique y Rusia. El artículo argumenta que los problemas de seguridad y economía de la región Rusas son insuficientes para explicar las reducidas inversiones de este país en Mozambique, teniendo en cuenta las relevancia geoestratégica que da la nación Rusa a Mozambique después de la guerra fría. La búsqueda de evidencia para sustentar este artículo tiene como metodología la revisión y análisis de la literatura existente. El articulo concluye que efectivamente los las inversiones Rusas en Mozambique son insignificantes comparadas con las realizadas en los demás BRICS. (Brasil, Rusia, India, China, Sud África)

A travers des données empiriques et de la littérature académique, cet article analyse le passage des rapports politico-militaires à la coopération économique entre Mozambique et Russie. Cependant, il faut interroger cette coopération, surtout quand on sait l’importance géopolitique et géoéconomique attribuée à Mozambique par la Russie après la fin de la Guerre Froide. Ainsi, on pense que les problèmes économiques et de sécurités de la Russie ne justifient pas la faiblesse de ses investissements dans le pays africain par rapport aux autres pays des BRICS.

This article aims to analyze the current economic cooperation between Mozambique and Russia. The main argument is that the security problems in the Russian region, as well as economic ones, are insufficient in themselves to explain the small Russian investments in Mozambique, without taking into account also the geopolitical, geo-economics and geostrategic relevance of Mozambique to Russia after the end of cold war. The literature review and documentary analysis where used as basic methodology on this article. The article concludes that in fact, Russian directs investments in Mozambique are negligible when are compared with other BRICS countries.

ÍNDICE

Mots-clés: coopération économique, investissement étranger, Russie, Mozambique, développément régional. Palavras-chave: cooperação econômica, investimento direto estrangeiro, Rússia, Moçambique, desenvolvimento regional Palabras claves: Palabras clave: Cooperación económica, inversión extranjera, Rusia, Mozambique, Desarrollo Regional. Keywords: economic cooperation, direct foreign investment, Russia, Moçambique, regional development

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AUTOR

NELSON MABUCANHANE

Assistente Universitário no Instituto Superior de Administração Pública (ISAP)de Moçambique. Mestre em Gestão na Especialidade de Políticas Públicas pela Universidade de Pequim – China. Bolsista do Ministério da Educação da China (2008 - 2010). Email: [email protected]

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A emergência da América do Sul na agenda da política externa brasileira nos governos Lula da Silva (2003-2010) La emergencia de la América del Sur en la agenda de la política externa brasileña en los gobiernos de Lula da Silva (2003-2010) L’émérgence de l’Amérique du Sud dans la politique extérieure brésilienne pendant les gouvernements Lula da Silva (2003-2010) The emergency of the South America in the agenda of the Brazilian external politics in the governments Lula da Silva (2003-2010)

Jorge Luiz Raposo Braga

Introdução

1 Na década de 2000, a emergência de uma nova configuração política na América do Sul decorrente do fiasco das promessas neoliberais favoreceu a ascensão de presidentes com apoio das diferentes matrizes culturais, formadoras dos movimentos sociais, e dos diversos segmentos do empresariado nacional descontentes com as medidas de abertura comercial, conduzidas indiscriminadamente pelos governos anteriores. As mudanças nas condições materiais do Brasil se alteraram em virtude do cenário econômico internacional positivo, trazendo a cena o presidente Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT).

2 Na escala regional-global, o governo Lula deslocou a trajetória da política externa da esfera defensiva em direção a posições mais proativas. O objetivo era recuperar o vetor de atuação do país por intermédio da constituição de coalizões Sul-Sul para intervir no ordenamento internacional através das organizações intergovernamentais (OIG’s). Conquanto, o discurso oficial procurou valorizar a América do Sul na agenda brasileira

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e a integração regional como instrumento funcional, na intenção de assegurar maior autonomia do país no espaço mundial. Dentro desse contexto, o Brasil ocupou um lugar singular ao promover iniciativas de expressão política e econômica sul-americanas, como por exemplo, a criação da UNASUL (União das Nações Sul-Americanas) e a ampliação dos investimentos de empresas brasileiras por intermédio do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Social). Desse modo, a política externa e o Ministério das Relações Exteriores aumentaram o seu grau de prioridade na administração petista com forte rebatimento nas relações do Brasil com a região.

3 Nos últimos anos têm-se produzido uma diversidade de trabalhos acerca da administração Lula da Silva em diferentes campos do conhecimento. As abordagens constituem-se em esquemas teóricos e analíticos sustentados preferencialmente na dimensão econômica e/ou política, porém, raramente espacial. Este trabalho se inscreve em um esforço interpretativo na perspectiva brasileira sobre as práticas adotadas pelo presidente Lula da Silva no âmbito dos projetos regionais. O debate integracionista tornou-se relevante em função de ainda ser um tema persuasivo na agenda da política externa dos países sul-americanos. Entretanto, os resultados são limitados e têm revelado o descompasso entre o discurso diplomático brasileiro e suas ações no fortalecimento da integração regional.

Mudanças no perfil da política externa brasileira

4 A crescente presença brasileira no espaço regional, em especial, após a primeira eleição do presidente Lula da Silva, reacendeu os debates sobre a retomada do projeto do país à condição de “potência regional” e “global”. As discussões estão pautadas nas ações políticas, econômicas, sociais, militares e culturais colocadas em curso pelo Brasil, e sustentadas na articulação entre a agenda doméstica e a estratégia de inserção internacional. Embora a política externa do governo Lula operasse sobre a matriz que foi esboçada já no final do segundo governo Fernando Henrique Cardoso (FHC), no período de 1999 a 2002, a correção de rumos em direção a matriz de contornos novo- desenvolvimentistas1 deu maior visibilidade às proposições idealizadas pela administração petista, já em seu primeiro mandato. As escolhas do Embaixador Celso Amorim ao Ministério das Relações Exteriores, do Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães como Secretário-Geral e do Professor Marco Aurélio Garcia a assessoria da presidência para assuntos internacionais promoveram a tônica desse modelo desenvolvimentista e autonomista no interior do Itamaraty.

5 O redimensionamento do Itamaraty ocorreu por meio do aumento no quadro de diplomatas, da elevação dos recursos financeiros, da abertura de novas embaixadas na África e na Ásia, das alterações no processo de seleção de diplomatas, entre outros, indicavam as pretensões do Brasil nas relações internacionais. Essas mudanças são assinaladas por CERVO (2008) em três pontos centrais, a saber: a) a defesa do multilateralismo de reciprocidade nas negociações comerciais a partir da formação de coalizões entre “países emergentes”, com intuito de discutir a natureza das regras não somente no regime do comércio internacional, mas também em outras temáticas; b) o enfrentamento da dependência estrutural em diferentes esferas (financeira, empresarial e tecnológica) através de parcerias estratégicas, de novo enfoque nas relações Norte-Sul e da Cooperação Sul-Sul2; c) a intenção de constituir a América do

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Sul como polo de poder e plataforma política para a expansão dos empreendimentos brasileiros ao exterior.

6 Desde os anos 2000 o Brasil vem ao mesmo tempo aumentando a sua capacidade de projetar-se e de ser reconhecido como ator importante nas discussões das principais questões internacionais. Para tanto, o país buscou estabelecer um diálogo mais próximo as “potências emergentes” (China, Índia e África do Sul, entre outras) e no âmbito do MERCOSUL, a diplomacia brasileira objetivou construir um projeto estratégico que não só ressaltasse os interesses econômicos, mas resgatasse a dimensão política do processo de integração, constituindo assim, as chamadas parcerias estratégicas (SARAIVA, 2007). Procurando afastar a política externa de sua característica defensiva e de sustentáculo da estabilidade macroeconômica dos períodos anteriores, o governo Lula da Silva a conduziu para a posição mais ofensiva e pragmática, objetivando: “a manutenção da estabilidade econômica; a retomada do papel do Estado na coordenação de uma agenda neo-desenvolvimentista; a inclusão social e a formação de um expressivo mercado de massas. (HIRST, SOARES DE LIMA e PINHEIRO, 2010, p.1)

7 A política de Lula da Silva buscou aproveitar as experiências do seu partido, o PT (Partido dos Trabalhadores), nas prefeituras de vários estados brasileiros para a construção do Plano Plurianual (PPA 2004-2007). A estratégia visava identificar os principais problemas a serem enfrentados, como a concentração social e espacial de renda, a pobreza, a degradação ambiental, a cidadania, o desemprego e a transformação dos ganhos de produtividade em aumento de renda para os trabalhadores (LESSA, COUTO e FARIAS, 2009). Tais proposições domésticas foram elencadas para a política externa brasileira, o que tornou o Brasil possível “porta voz” para os demais “países do Sul”. A fórmula adotada pelo governo Lula tem sido vincular um novo acervo de políticas sociais que atacam a pobreza e a desigualdade no plano doméstico com uma ativa diplomacia presidencial. Ao mesmo tempo em que se transformou a questão social numa bandeira de política externa(...) (HIRST, SOARES DE LIMA e PINHEIRO, 2010, p. 6).

8 No plano global, o governo Lula da Silva utilizou a credibilidade do país, propondo consensos com os demais “países emergentes” como forma de contrapor as ações unilaterais das grandes potências nas discussões dos organismos internacionais. De maneira pragmática, o Brasil aproveitou as lacunas deixadas pela política de securitização do presidente estadunidense, George W. Bush, após o onze de setembro de 2001, para ampliar as exportações de bens e serviços e expandir os negócios do empresariado brasileiro. Baseado no multilateralismo universal, o Brasil articulou junto aos governos da Índia, da China, da África do Sul, entre outros, a criação do G-20 Comercial no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), a partir de 2003, em Cancun. A intenção era debater o tratamento dado pelos “países centrais” as questões referentes à abertura dos mercados, visto que a posição da Europa e dos Estados Unidos pressionava os “países do Sul” a liberalizar a importação de produtos industriais e serviços sem contrapartida para as exportações dos produtos agrícolas desses países. A falta de propostas consistentes sobre a suspensão das barreiras alfandegárias e a concessão de subsídios que distorcem o comércio agrícola internacional em favor dos produtores europeus e norte-americanos levou os negociadores brasileiros a se colocarem contrários aos termos apresentados. Tal fato propiciou aos “países do Sul” a defesa de uma posição comum na OMC. Porém, o embate entre os dois grupos paralisou

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as negociações da Rodada de Doha em 2006 e o impasse prosseguiu até o final da década.

9 A crise financeira e econômica iniciada em 2008 nos Estados Unidos e estendida a Europa em 2009 produziu incertezas no cenário internacional. O G-8 que reunia os sete países mais ricos, mais a Rússia, incorporou os “países emergentes” como Brasil, China, Índia e África do Sul nas discussões sobre a governança econômica global. A posição brasileira que foi vencedora defendeu o aumento no número de países nos esforços para conter os efeitos perversos da desregulamentação financeira. Assim, o G-8 perdeu efetividade e, em seu lugar, entrou em cena o G-20 financeiro, cuja primeira reunião ocorreu em novembro de 2008 na cidade de Washington e a segunda em abril de 2009 em Londres. Diante dos efeitos da estagnação econômica, o governo brasileiro adotou três iniciativas: a intensificação dos investimentos internos através do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), a consolidação de coalizões ao sul com objetivo de obter apoio para as reformas do sistema financeiro internacional, do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial e destinou dez bilhões de dólares ao FMI com o objetivo de aumentar os aportes de capital dessa instituição (CERVO e BUENO, 2012).

10 Nos foros ambientais, como por exemplo, sobre Mudança do Clima (COP 15), o Brasil adotou uma postura mais assertiva ao propor metas de redução de emissão de carbono e cobrar maior responsabilidade dos países mais poluidores. Posteriormente, esse desempenho resultou no acordo para a realização da Rio + 20, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (VISENTINI, 2013).

11 Na esfera da segurança coletiva, a diplomacia brasileira criticou a ação preventiva unilateral estadunidense, a doutrina da ingerência europeia e o terrorismo, enaltecendo a importância do Brasil nos processos de solução de conflitos e manutenção da paz. Para isso defendeu a democratização das decisões do Conselho de Segurança da ONU e, com intuito de desempenhar papel relevante no campo da segurança, abandonou a posição da não intervenção, ao assumir a liderança da missão de peacekeeping da MINUSTAH (Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti) a partir de 2004. Ainda nesse tema, por ter uma política externa pacifista e defensora das negociações como mecanismo de solução de conflitos, o país propôs uma reforma no Conselho de Segurança na intenção de torná-lo mais representativo diante do cenário do século XXI. Tal proposição contou com apoio de outros países que aspiram à condição de membros permanentes, o chamado G-4 (Brasil, Alemanha, Índia e Japão). “O receio de perda de poder pelos cinco membros permanentes, as rivalidades regionais entre potências e a discordância quanto aos termos da reforma mantêm o Conselho nos moldes obsoletos em que foi criado logo após a Segunda Guerra” (CERVO e BUENO, 2012, p.541).

12 No plano das parcerias estratégicas e da cooperação Sul-Sul, o Brasil diversificou e expandiu suas relações internacionais. Outras iniciativas relevantes foram à aproximação com o continente africano através das negociações envolvendo o MERCOSUL e a União Aduaneira da África Austral (SACU); do incremento de apoio técnico com a disseminação de informações sobre os biocombustíveis; a cooperação nas áreas de agricultura, saúde, educação, esportes, defesa e promoção dos direitos humanos; do aumento de visitas oficiais de Chefes de Estado entre o Brasil e governos de diferentes Continentes3; do reforço nas relações com a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP); da implantação de novas Embaixadas e da presença crescente de empresas brasileiras na economia de diversos países africanos. Em relação

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ao Oriente Médio, o presidente Lula consolidou a realização de Encontros de Cúpula América do Sul-Países Árabes (ASPA) e acordos de cooperação MERCOSUL-Conselho de Cooperação do Golfo (CCG), defendeu a participação brasileira nos esforços de paz no conflito israelo-palestino, da mesma forma junto a Turquia propôs solução não confrontacional em relação ao programa nuclear iraniano.

13 A política externa brasileira era favorável a formação de coalizões com “potências emergentes” na convicção que esses países se constituiriam em importantes aliados tanto nas negociações entre suas economias quanto na articulação das diplomacias em diferentes instâncias de decisão global. A participação do Brasil nos foros de governança global reflete não apenas uma política proativa de constituição de ‘coalizões de geometria variável’, envolvendo algumas nações emergentes, como os limites derivados das carências de recursos de poder que permitam ao país uma carreira ‘solo’ em instâncias globais (HIRST, SOARES DE LIMA e PINHEIRO, 2010, p.8).

14 A visibilidade desses países deveu-se ao crescimento acelerado de suas economias diante da recessão vivenciada pelos países mais ricos. Dentre os grupos políticos, destacam-se a criação do IBAS ou G-3 (Índia, Brasil e África do Sul) em 2003, e a institucionalização em 2007, do BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China), com posterior adesão da África do Sul em 2010. O primeiro grupo reúne três países-chave na Cooperação Sul-Sul por serem importantes democracias em seus continentes. Além dos interesses globais como a instituição da temática do desenvolvimento e dos problemas sociais na agenda das organizações multilaterais, os países procuram estreitar acordos em setores específicos, como indústria, comércio, agricultura, serviços e tecnologia. Outro ponto relevante é a intenção de concretizar um eixo transoceânico- transcontinental meridional capaz de forjar uma articulação entre seus espaços regionais. Isso ocorre no momento em que o Oceano Atlântico Sul e o Oceano Índico despontam como zona de imensos recursos energéticos e opção para uma base logística do comércio mundial. Daí o desejo dos mesmos em instituir parceria que garanta a manutenção de uma zona de paz para a navegação e bloqueio a qualquer tentativa de militarização por parte das potências extrarregionais.

15 O segundo grupo se destaca não só pela grandiosidade de sua Geografia, mas por se constituir uma alternativa a ordem global vigente. Por terem economias crescentes, Brasil, Rússia, China e Índia poderiam produzir intensas modificações no panorama geopolítico internacional. A instituição Goldman Sachs, criadora do acrônimo, ressaltava na ocasião, o potencial desses países de se tornarem peças-chave no cenário político-econômico mundial, levando os BRICs a receberem maior atenção do meio acadêmico e da imprensa. Assim, o diálogo político dos BRICs em 2006, na intenção de discutir temas comuns deu origem à primeira cúpula em 2009, na cidade russa de Ekaterimburgo, cujo foco esteve centrado na economia. Em 2010, a segunda reunião ocorreu em Brasília, onde as discussões versavam preferencialmente sobre crise financeira e as reformas das instituições. O destaque foi para a assinatura de um memorando de cooperação entre os Bancos de Desenvolvimento dos quatro países, o que possibilitou a criação do Banco dos BRICs em 2014. Entretanto, a pretensa unidade desse bloco esbarra nas diferenças substanciais de seus membros, em termos de peso econômico, importância geopolítica, grau de integração à economia global, diversidade cultural, as condições domésticas, a relação com a potência hegemônica, entre outros. Diante desse quadro, os analistas levantam questionamentos sobre a capacidade de

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poder que os BRICs possuem para funcionar como um novo pilar da ordem global e ajudar a construir um sistema internacional mais próspero e estável.

O lugar da América do Sul na agenda da política externa brasileira

16 As mudanças no quadro de poder mundial promovida pela atmosfera da Guerra Fria levou o Brasil a se adequar ao ambiente mais globalizado. O posicionamento mais autônomo permitiu que o país diversificasse os seus parceiros internacionais. Assim, apesar da manutenção da relação vertical Norte-Sul, em particular com os Estados Unidos, a diplomacia brasileira também intensificou o diálogo horizontal Sul-Sul4 e o eixo diagonal Sul-Leste, ou seja, com os países “terceiro-mundistas” e com os “países socialistas” respectivamente (VISENTINI, 1999). Essa característica de diversificar parcerias conduziu as práticas da política externa brasileira no contexto pós-Guerra Fria. O forte caráter integracionista utilizou “os processos de integração para estabelecer ou consolidar a rede de cooperação e poder [preferencialmente] ao sul, partindo da América do Sul e avançando para alianças com outras regiões com o fim de realizar sua meta de país globalista” (CERVO e BUENO, 2012, p.548).

17 Os esforços do governo Lula estavam pautados no resgate do papel da política externa brasileira nas relações internacionais. Por isso, o crescente número de viagens era um indicador das pretensões do presidente de tornar o Brasil um global player, isto é, tornar o país membro constante em eventos internacionais, presente nas reuniões de cúpula e nos diálogos com os principais líderes de outros países. Tal intento passava pela constituição de uma diplomacia ativa e afirmativa, por isso era fundamental fortalecer as relações com os países vizinhos, consolidar a América do Sul como área prioritária na agenda nacional e superar o baixo perfil sul-americano na função de eixo alternativo de poder na escala mundial. Assim, dos presidentes brasileiros a visitar os Estados sul- americanos, Lula da Silva foi o que deu maior prioridade a região. Por conseguinte, a invenção da tradição de “sul-americanidade” acoplada à política externa brasileira “não significa a propagação de uma inverdade, mas a reconstrução do mundo a nossa volta, ou seja, um espaço sul-americano organizado que visa restabelecer o prestígio internacional de seus Estados e os afastar do estereótipo latino-americano atrasado e subdesenvolvido” (GALVÃO, 2009, p. 67). Daí, a intenção do discurso oficial em reconstruir o MERCOSUL e privilegiar a integração regional em diferentes esferas (econômica, cultural, social, infraestrutura, segurança, entre outros) no intuito de criar uma zona própria de poder e legitimar a liderança brasileira.

18 A promoção da integração regional estava focada no desenvolvimento do MERCOSUL, acordo originário do reaquecimento das relações diplomáticas e do arrefecimento das tensões entre Brasil e Argentina. Essa reaproximação permitiu aos países a consolidação de um regime de intercâmbio livre e a instituição de uma união aduaneira que foi estendida, pelo Tratado de Assunção de 1991, aos países limítrofes do Cone Sul, o Paraguai e o Uruguai. O MERCOSUL representava um marco histórico importante para a região, pois além de possibilitar o desenvolvimento dos países locais também funcionava como um instrumento de dissuasão entre as duas maiores economias da América do Sul. Essa aproximação favoreceu a constituição de uma área de paz e de confiabilidade mútua, pautada em valores democráticos; tornou o bloco em sujeito de direito internacional com capacidade de negociação em várias esferas; fortaleceu o

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poder de barganha do Cone Sul como bloco e alavancou a ideia de América do Sul a partir das negociações com a Comunidade Andina na Cúpula de Brasília de 2000 (CERVO, 2002).

19 Apesar da ampliação do comércio entre os países membros do Tratado de Assunção, o MERCOSUL enfrenta dissonâncias, pois nem sempre as economias do Brasil e Argentina são convergentes, em muitos setores são competidores e não complementares. Quando Lula da Silva assumiu em 2003, o MERCOSUL agonizava em virtude da oscilação cambial promovida pela desvalorização do Real em 1998/1999 e pela crise econômica argentina em 2001. Nos dois países se falava na necessidade de relançá-lo. A grande prioridade da política externa durante o meu Governo será a construção de uma América do Sul politicamente estável, próspera e unida, com base em ideais democráticos e de justiça social. Para isso é essencial uma ação decidida de revitalização do MERCOSUL, enfraquecido pelas crises de cada um de seus membros e por visões muitas vezes estreitas e egoístas do significado da integração. O MERCOSUL, assim como a integração da América do Sul em seu conjunto, é sobretudo um projeto político. Mas esse projeto repousa em alicerces que precisam ser urgentemente reparados e reforçados (FUNAG – discurso do presidente Lula, 2008, p.14).

20 No entanto, segundo BUENO (2010), havia um descompasso entre os interesses de ambos, pois, a Argentina concebia o bloco como instrumento de expansão de suas exportações, portanto, um negócio. Por conseguinte, agindo com pragmatismo, os argentinos estabeleceram imposições, como as cotas comerciais e as licenças prévias de importação a certas mercadorias brasileiras. Já o Brasil via o MERCOSUL para além do comércio, ou seja, um instrumento de projeção de poder nas negociações internacionais. Assim, segundo FLORES (2006, p.12), “a Argentina não compartilha em igual intensidade o entusiasmo do governo brasileiro por uma nova geografia comercial pautada na diversificação dos atores, com ênfase no ‘sul econômico’”, porque seu potencial é restrito. Desta forma, a união regional encontra-se fragilizada em virtude das assimetrias, perspectivas e interesses distintos entre os parceiros do MERCOSUL. Então, para FLORES (2006), o nacionalismo continua acima do regionalismo e globalismo, dificultando a concretização de uma geografia comercial mais atuante.

21 A preferência pelo aprofundamento das relações com os países vizinhos sustentava-se no desejo de uma maior abertura das economias, mas os resultados esbarraram nas assimetrias ente os Estados e em um modelo voltado para as políticas industriais nacionais que direcionam os seus compromissos para o mercado externo. “A ideia de criar uma economia regional de escala nunca chegou a ser implementada devido a agentes econômicos nacionais que colocaram obstáculos e ao caráter defensivo dos processos de integração na região” (SARAIVA, 2010, p.6). Essas resistências das “burguesias nacionais” tendem colocar em primeiro plano os seus próprios interesses, o que impede qualquer tentativa de formalização de um bloco sul-americano. Tais ações impõem desafios ao Brasil que procura compatibilizar as suas aspirações universalistas e protagonistas ao desejo de liderança regional (VIGEVANI, RAMANZINI JUNIOR e CORREIA, 2008).

22 A tônica do governo Lula da Silva era revitalizar as relações de cooperação com a América do Sul em virtude das debilidades estruturais do MERCOSUL. As dificuldades de consolidar aliança estratégica com a Argentina tornavam-se mais evidentes por parte da diplomacia brasileira. Segundo RUSSELL e TOKATLIAN (2014), o governo de Néstor Kirchner (2003-2007) procurou dar resposta ao poderio “sul-americano” do Brasil, para

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isso adotou estratégias que pudessem contrabalançar o peso político econômico do seu vizinho. A inquietação diante de uma eventual hegemonia brasileira na região levou Buenos Aires acompanhar de maneira relutante as pretensões geopolíticas de valorização da América do Sul por Brasília. Dessa forma, como medidas de “proteção”, o governo argentino buscou retomar a integração no patamar latino-americano ao assinar acordos econômicos e comerciais com o México, na intenção de aproximá-lo do MERCOSUL; via na construção do eixo Santiago-Buenos Aires meio de limitar as aspirações do Brasil no Cone Sul e, apoiava a inserção da Venezuela, de Hugo Chávez, no MERCOSUL como contraponto regional alternativo as intenções do governo Lula. Na análise de ALBUQUERQUE (2009-2010), as melhores chances para o Brasil exercer a sua liderança tanto no nível regional quanto global era numa região de equilíbrio convergente. Por isso, a intenção era pensar uma nova fase que procurasse a aprofundar a integração com os países vizinhos e, a partir daí, fazer com que a região passasse a ter um papel mais relevante no cenário mundial.

23 A crença na organização do espaço sul-americano aos olhos de Brasília passava por construir um cenário moldado pela interação entre o Estado e o mercado. Dadas as condições estruturais, segundo CERVO (2008), a estratégia do governo articulou elementos do liberalismo ao desenvolvimentismo de modo que essa experiência permitisse o país agir no cenário global não no papel de coadjuvante, mas de protagonista. A introdução do paradigma logístico firmou-se em termos operacionais com objetivo de elevar o patamar nacional ao nível das nações mais ricas. Essa mescla, iniciada por FHC e consolidada na administração Lula diferencia-se do paradigma desenvolvimentista, com o qual pode conviver em certa dose, ao transferir à sociedade as responsabilidades do estado empresário. Diferencia-se do normal, consignando ao Estado não apenas a função de prover a estabilidade econômica, mas a de secundar a sociedade na realização de seus interesses. Limita a prevalência absoluta do Estado que caracterizava o primeiro e elimina do segundo a crença anticientífica no poder ilimitado do mercado de prover tudo o mais (CERVO, 2008, p.86).

24 O paradigma logístico se apresentava como experiência brasileira e latino-americana em que o Estado conduzia a política externa para atender os “interesses nacionais”. No entanto, conforme assinala POULANTZAS (1978), o Estado é arena de luta entre as classes dominantes, portanto, a política externa traz no seu bojo os interesses das classes ou frações hegemônicas no interior do bloco no poder, ou mesmo, de alianças entre as classes. Assim, por intermédio de uma atuação mais assertiva da diplomacia brasileira, os grandes empreendimentos de empresas estatais e de alguns grupos nacionais privados tiveram seus objetivos econômicos se expandindo sobre os países vizinhos e no interior de nações extracontinentais (principalmente em países africanos) por intermédio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

25 Na América do Sul, as empresas brasileiras adquiriram através das fusões e incorporações várias empresas locais e/ou tiveram acesso a exploração de recursos naturais na região. Esse movimento de “transbordamento” da economia brasileira em direção aos países sul-americanos foi impulsionado pela valorização das commodities e respaldado pelos investimentos diretos brasileiros, capitaneados nas linhas de crédito do BNDES a juros subsidiados. O objetivo do financiamento promovido pelo BNDES visava aumentar mercados aos empreendimentos brasileiros no exterior e produzir grandes saldos na balança comercial. Assim, a internacionalização do Banco apoiada em políticas públicas possibilitou que os interesses da burguesia interna se fizessem cada

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vez mais presentes nos projetos de integração regional sul-americanos. Portanto, a política externa do presidente Lula vinculada à dinâmica do plano doméstico tornou-se um instrumento importante para a atuação internacional dessa fração de classe. Outra medida importante adota pelo governo brasileiro foi abrir em 2009, na cidade de Montevidéu, o primeiro escritório do BNDES no exterior. A cidade uruguaia possui localização estratégica por sua centralidade em negócios no MERCOSUL e ser a Capital da ALADI (Associação Latino-Americana de Desenvolvimento e Integração). O escritório visa funcionar como apoio aos projetos de integração e de infraestrutura, a facilitação das atividades das empresas brasileiras na região e a cooperação técnica.

26 A existência de conflitos entre as frações de classe que compõem a burguesia interna no interior do bloco no poder, não impediu a aglutinação dessas frações em defesa de interesses comuns nos planos regional e mundial. A orientação da política externa brasileira nos governos Lula estava associada às mudanças que ocorriam no ambiente doméstico. Nesse sentido, a ascensão da grande burguesia interna industrial e agrária influenciou a atuação internacional do Estado brasileiro, definindo suas prioridades, estratégias e espaços de acumulação de capital. Daí decorre um discurso presidencial mais afinado junto os desejos da burguesia interna, a saber: i) o fortalecimento das relações Sul-Sul contribui para a diversificação dos mercados e, consequentemente, amplia as oportunidades de investimentos; ii) a priorização da América do Sul como plataforma de expansão dos negócios brasileiros interfere no ordenamento territorial vigente; iii) a desenvoltura nas seguintes negociações: as multilaterais, tendo como caso expressivo a atuação na Organização Mundial do Comércio (OMC), onde o governo Lula procurava dar suporte aos grandes produtores agrícolas ao se posicionar contrário aos subsídios e ao protecionismo dos países mais ricos que prejudicavam a competitividade do agronegócio nacional; as bilaterais, representadas pela negociação entre MERCOSUL- União Europeia como contraponto as pressões norte-americanas em defesa de uma integração hemisférica e as regionais, exemplificadas pelo arquivamento da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), principalmente pela medidas unilaterais estadunidenses e iv) o impulso à internacionalização das empresas brasileiras em setores intensivos em recursos naturais e no setor financeiro com a crescente expansão dos bancos (BOITO JUNIOR e BERRINGER, 2013).

27 Por certo, iniciativas brasileiras deram densidade ao diálogo com os países vizinhos no intuito de estruturar um novo arranjo regional que promovesse à expansão das relações econômicas entre seus membros, a propagação dos valores democráticos nacionais e o apoio automático as aspirações globais do Brasil. Essas questões exigiram maior esforço do país para ir além da mera integração comercial, possibilitando outras formas de cooperação regional. Daí, a relevância da América do Sul “teve menos a ver com novas ideias sobre governança coletiva ou sobre uma suposta identidade regional comum do que com um cálculo instrumental calcado em considerações de poder e autonomia” (SPEKTOR, 2010, p. 34). Trata-se, portanto, da crescente presença brasileira na ingerência dos assuntos sul-americanos, o que tem gerado desconfianças na redondeza sobre as intenções das propostas do Brasil. Nas análises de SORJ e FAUSTO (2011), esse temor dos vizinhos perpassa pelo enfrentamento da aliança entre as empresas nacionais e o Estado brasileiro. A percepção ganha efeito não somente em função da assimetria das economias, mas principalmente na capacidade estatal do Brasil de responder aos interesses da burguesia interna tanto no âmbito doméstico quanto no interior dos países da região5.

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28 O desafio do paradigma logístico consiste em reforçar o núcleo duro nacional, torná-lo competitivo e alçá-lo ao nível comparativo das nações mais ricas. Conquanto, cabe ao Estado empresário restringir a vulnerabilidade externa por meio da canalização de recursos para robustecer os empreendimentos públicos e, principalmente os privados, estimulando-os a expansão global, a iniciar pela vizinhança. De acordo com CERVO (2008), a conduta logística a partir do governo Lula modificou as relações do Brasil com seus vizinhos através do aumento de suas capacidades de poder. Segundo o autor, três requisitos podem ser observados. Em primeiro lugar, o reconhecimento da interdependência real da globalização supõe a incorporação das vantagens comparativas intangíveis à administração das relações exteriores. Em segundo lugar, ocorre a crença na integração regional como instrumento de acúmulo de poder, tanto próprio quanto dos membros do bloco em construção. Em terceiro lugar, o encaminhamento do processo de internacionalização da economia nacional elenca a América do Sul em plataforma de expansão dos negócios brasileiros.

29 A estratégia regional do Itamaraty e o ativismo do presidente Lula conferiam densidade aos acordos sul-americanos. A iniciativa da Integração da Infraestrutura Regional Sul- Americana (IIRSA) representava o avanço em direção à integração funcional dos territórios por meio da construção da infraestrutura em transportes, energia e telecomunicações. A idealização dos megaprojetos e as centenas de obras prometiam redesenhar a Geografia da América do Sul, abrindo oportunidades às empresas brasileiras, principalmente no momento em que a retomada da política de desenvolvimento do BNDES atua na interface com as diretrizes do paradigma logístico de incentivo ao empresariado. “Esse foi um momento de grande êxito da logística internacional de Lula, em razão do ritmo forte que ostenta e da segurança que a reverso imprime à economia nacional” (CERVO, 2008, p.89). O entusiasmo pela intensificação das relações Sul-Sul, apontava para uma maior articulação do país com a América do Sul, já que o presidente defendia que o aumento da complementaridade entre as economias poderia consolidar um desenvolvimento da região. O discurso pautado numa política de cooperação técnica e na instalação de uma infraestrutura mais moderna permitiu o avanço das oportunidades de negócios para empresas brasileiras como a Petrobrás, Banco do Brasil, Odebrecht, Camargo Correa, Gerdau, Votorantim, Vale do Rio Doce, JBS, Companhia Siderúrgica Nacional, entre outras.

30 Em suma, os efeitos das crises da década de 1990, a conjuntura internacional balizada pela emergência de um eixo de desenvolvimento constituído pelas “potências emergentes” (China, Índia, África do Sul e Rússia) e as transformações regionais que redesenham a geopolítica através da ascensão de governos de “ideologia desenvolvimentista”, renovam as possibilidades de se constituir uma integração multinível. Somados a isso, o crescimento econômico e a demanda por energia em países como os Estados Unidos e a China, a partir de 2003, elevaram os preços das commodities e a competitividade internacional. Por ter enormes disponibilidades de recursos naturais, a América do Sul foi elencada ao jogo geopolítico dos governos e dos atores transnacionais, principalmente das “empresas transnacionais” (ETNs). Assim, a posição do presidente Lula era aprofundar a política de desenvolvimento da infraestrutura física regional esboçada pelo segundo mandato do governo FHC, na primeira Cúpula de países sul-americanos em Brasília, em 2000, que originou a criação da IIRSA. Posteriormente, houve o aumento dos investimentos brasileiros diretos na região, o que tensionou as relações entre sociedades, governos e empresas brasileiras

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devido ao encaminhamento dos projetos direcionados a setores intensivos em recursos naturais e de grandes impactos sociais e ambientais.

31 A visibilidade da diplomacia brasileira no plano sul-americano obteve avanços, principalmente na esfera política e na segurança, embora os resultados na área econômica ainda se mantêm limitados. Dessa forma, no final de 2004, o Brasil procurou encaminhar ações mais concretas para a criação da Comunidade Sul Americana de Nações (CASA), depois rebatizada em 2007 de União de Nações Sul-Americanas (UNASUL), incluindo também o Suriname e a Guiana. A UNASUL se constitui locus de diálogo para tratar de temas político, da integração física do território, do meio ambiente, da integração energética, dos mecanismos financeiros, entre outros, demonstrando o seu interesse na cooperação técnica e financeira.

32 Segundo SARAIVA (2010), a UNASUL se aproxima mais de um instrumento de governança regional do que dos modelos clássicos de integração, já que tem um caráter estritamente intergovernamental e de institucionalidade limitada. Por isso ela pode acomodar diferentes iniciativas sub-regionais como o MERCOSUL, a Comunidade Andina ou a Alternativa Bolivariana das Américas (ALBA). Assim, para o Brasil, “ampliar a institucionalidade do bloco por mecanismos supranacionais significaria engessamentos e limitações advindas de uma governança regional que poderiam limitar as pretensões internacionais do Brasil (DUPAS e OLIVEIRA, 2008, p.241).

33 O interesse pelos processos de integração econômica é decorrente das mudanças no Sistema Mundial que tem produzido uma variedade de acordos regionais, sub-regionais e bilaterais, despertando em diferentes atores oportunidades de inserção mais eficiente e ativa no comércio internacional. Essas possibilidades de ampliação dos mercados, de acesso as cadeias produtivas, da recepção de investimentos, da projeção de liderança regional, mobilizaram os países sul-americanos a compor diferentes arranjos cooperativos. Então, na década de 2000, a tendência se traduziu em estratégias diversas. De um lado alguns países (principalmente Chile, Peru e Colômbia) firmaram Tratados de Livre Comércio (TLCs) com Estados Unidos e União Europeia para bens e serviços, estabilidade de regras e proteção aos investimentos estrangeiros. De outro, consolidou- se posições (Argentina, Brasil, Venezuela, Bolívia e Equador) mais resistentes a abertura comercial expressiva e a desconfiança em aderir a regras não estritamente voltadas ao comércio nos acordos. Além disso, registram-se também, alguns países que expropriaram ativos estrangeiros (Venezuela e Bolívia). Assim, as divergências entre as estratégias nacionais ameaçam levar os projetos integracionistas à crise. Isso ilustra as clivagens políticas que impedem a decolagem do “regionalismo pós-liberal”6 e coloca em debate o papel que se poderia esperar do Brasil como vetor de integração regional (MOTTA VEIGA e RIOS, 2011).

Dilemas e desafios e a liderança brasileira na América do Sul

34 A estratégia da política externa do governo Lula visava à busca pelo desenvolvimento com autonomia, para isso tornava-se fundamental a diversificação das parcerias econômicas na intenção de respaldar o projeto por maior protagonismo no sistema internacional (VIGEVANI e CEPALUNI, 2007). Portanto, as suas relações com o mundo estão ancoradas no sucesso da liderança regional (ALBUQUERQUE, 2009-2010). O fato de erigir a América do Sul na agenda brasileira perpassa pela expertise diplomática de dar

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sentido geográfico e identitário a região. A tarefa de criar consenso sobre a integração regional objetivava desviar a atenção do cálculo de poder que estava embutido na reinvenção conceitual7. “Existia, então, a percepção de que a integração regional seria funcional para o Brasil desempenhar o papel de player global, e o prognóstico de certa divisão de influência do espaço geopolítico e econômico com os Estados Unidos” (SORJ e FAUSTO, 2011, p. 12).

35 Para CAMPOS (2008), a América do Sul enfrenta três desafios para a concretização de um projeto maior: a tendência à fragmentação regional; a necessidade de conviver num clima de pluralismo ideológico; a interpretação do tema das lideranças como uma fortaleza para a coletividade. Tais desafios tende a exigir do Brasil maior flexibilidade em suas decisões, já que se no meio internacional o país possui um ativismo reconhecido, no contexto regional existe uma inconsistência de sua posição e de sua atuação como líder. Mesmo que haja uma afinidade ideológica entre os presidentes isso não significa aceitação automática às posições do Brasil nos temas regionais e internacionais8. “Para não perder apoio político doméstico, essas lideranças por vezes exacerbam seus discursos e práticas de política externa. (...) a nova onda sul-americana de líderes ‘esquerdistas’ (...) acaba por operar contra essa tendência” (DUPAS e OLIVEIRA, 2008, p.239).

36 As capacidades materiais e o peso político assimétricos do Brasil comparados aos demais países sul-americanos não o credencia a uma liderança9 inconteste. O país tem lidado com situações de conflitos na área econômica envolvendo interesses do empresariado nacional e governos e sociedades de países por onde se estendem o capitalismo brasileiro. O quadro complexo impõe desafios de escolhas ao Brasil, ou seja, preferir jogar na escala global ou ter influência política real na região. “Os limites e possibilidades da atuação do Brasil como vetor de integração regional requer a análise das condicionantes econômicas, das estratégias de inserção internacional dos países sul-americanos e das prioridades brasileiras em suas relações com a região e com o mundo” (MOTTA VEIGA e RIOS, 2011, p.73). O dilema para o governo brasileiro, então, passaria especialmente, “por optar pelo tipo de liderança mais compatível com seus objetivos e, sobretudo, com seus recursos de poder” (ALBUQUERQUE, 2009-2010, p.17).

37 No entanto, a liderança brasileira tem enfrentado posicionamentos reativos justamente na área eleita como prioritária. A América do Sul tem reforçado seu caráter diverso e heterogêneo, principalmente no momento em que os países procuram reorientar os interesses e objetivos no relacionamento com o Brasil. Na análise de MOTTA VEIGA e RIOS (2011), nos últimos anos, os países sul-americanos e os atores que intervém na arena de política externa adotam preferências políticas e econômicas distintas frente ao seu grande vizinho regional. No grupo dos países revisionistas (Argentina, Bolívia, Equador e Venezuela), a política externa foi conduzida muitas vezes pelas práticas da política doméstica, assim as relações com o Brasil foram convergentes quando o conteúdo era essencialmente político ou reticente aos mecanismos e regimes internacionais de regulação. Entretanto, quando o assunto diz respeito à esfera econômica bilateral, esses países fazem outra leitura do tipo “Norte X Sul”, comportando-se como “países do Sul” diante da potência “imperialista”10. No tocante ao grupo de países (Chile, Colômbia e Peru) que seguiu com mais afinco as diretrizes neoliberais da década de 1990, o mesmo adota posturas menos entusiasmadas em relação às iniciativas políticas regionais de Brasília. A intenção dos governos e empresários daqueles países é melhorar a participação de seus produtos no mercado

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brasileiro e atrair investimentos de empresas do Brasil, o que reforçaria a sua posição de apoio a um projeto liberalizante regional. Finalmente, Uruguai e Paraguai, apesar de terem fortes relações econômicas dentro do MERCOSUL se sentem negligenciados por Brasil e Argentina. Dessa forma, aqueles países têm acenado para propostas que os aproximam das agendas de Peru e Colômbia. Neste cenário, onde as estratégias nacionais são cada vez mais divergentes, os autores citados apontam que os esforços políticos realizados no âmbito da UNASUL tampouco conseguiram superar os obstáculos impostos pelo nacionalismo econômico e o predomínio das agendas domésticas sobre a regional. Dessa forma, o projeto de integração sul-americana parece cada vez mais confinado à retórica.

38 Embora a importância do Brasil na agenda externa dos países do entorno parece ter crescido, ainda permanecem em aberto questões-chave sobre a percepção dos vizinhos acerca da liderança regional brasileira. Por conseguinte, o governo brasileiro enfrenta desafios quanto às expectativas dessas nações em relação ao peso do país na América do Sul. SOARES DE LIMA e HIRST (2009, p. 16-17) assinala tal dilema: “(...) o tamanho econômico do país é quase a metade de toda a região respectiva, o que acirra o temor de pretensões hegemônicas e, simultaneamente, fortes expectativas de cooperação e de tratamento diferenciado”. Essas visões reacendem os questionamentos sobre a capacidade e o interesse de Brasília em conduzir o ativismo regional.

39 Na análise de SPEKTOR (2010), a ausência no Brasil de um consenso que apóie uma política mais articulada aos anseios da região, favoreceu uma baixa expectativa na vizinhança sobre os compromissos ou preocupações brasileiras voltadas para o projeto regional. Assim, como aplacar as desconfianças mútuas, se a “potência regional” parece conduzir a política externa em baixo perfil? O movimento em direção à região convive com uma política externa que enfatiza soluções nacionais mesmo quando os problemas são compartilhados, busca o desenvolvimento econômico interno, mantêm firmes suspeitas sobre as intenções dos vizinhos, é cautelosa e avessa ao risco. Na vizinhança, a percepção dominante em relação ao Brasil é a de que o país, apesar de ser o principal centro de poder regional, não traduz essa ascendência em liderança amigável. Segundo essa visão, não é fácil seguir o Brasil a reboque. Mesmo que os vizinhos não temam uma suposta dominação brasileira nem tenham uma visão negativa das intenções do Brasil, eles sentem que o país não responde eficazmente à vasta assimetria de poder que marca a região. Paraguai, Uruguai, Bolívia e Argentina sentem-se comumente negligenciados pelo Brasil. Assim, apesar do peso relativo do Brasil, nas praças diplomáticas sul-americanas, não é óbvio que Brasília seja capaz ou tenha interesse em catalisar o ordenamento regional (SPEKTOR, 2010, p.29).

40 De acordo com SOARES DE LIMA (2013) existe ambiguidade entre analistas e lideranças políticas dos países vizinhos sobre essa questão. No mesmo instante em que temem a hegemonia brasileira, principalmente diante do peso econômico do país na América do Sul, setores políticos e acadêmicos criticam o pouco envolvimento do Brasil com a região e/ou desejam que o país assuma o seu papel de paymaster, ou seja, Brasília absorva os custos da integração através de maiores concessões na produção de bens coletivos regionais. No entanto, segundo BUENO (2010), o exercício da hegemonia ou mesmo liderança impõe elevados custos econômicos e financeiros para efetivação de projetos que unam a região em um destino comum e, a aceitação da liderança significa participar do futuro do líder. Porém, auxílios pontuais realizados pelo hegemon como forma de solidarizar-se com os objetivos de desenvolvimento das nações do seu entorno são insuficientes para superar resistências e desconfianças. E o Brasil tem graves

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problemas sociais que ofuscam o poder de atração e de referência para as sociedades locais. Além disso, não existe um consenso entre os brasileiros sobre que prioridades devem ser atribuídas à inserção do Brasil na América do Sul e, muito menos, a percepção das vantagens em tal liderança.

41 Na abordagem de SPEKTOR (2010), o Brasil tende atuar de maneira seletiva, voltado preferencialmente para o “interesse nacional” em vez de promover um amplo projeto que atenda as necessidades regionais. Para o autor, embora o país tenha institucionalizado diálogos em questões econômicas e de segurança e apoiado iniciativas de integração, o Brasil hesita em patrocinar instituições e normas regionais profundas que limitem sua autonomia face aos vizinhos. No mesmo contexto, a redondeza tampouco percebe na atitude do Brasil o desejo de desenvolver um projeto coletivo, principalmente quando o país exercita sua liderança ao acionar o poder de veto11 sobre iniciativas que prejudicam os interesses das empresas públicas e privadas brasileiras. Porém, segundo SOARES DE LIMA (2013), já em outras questões, o Brasil exerceu a liderança cooperativa. Isso poderia ser exemplificado pela criação do Fundo de Convergência Estrutural do MERCOSUL (FOCEM), a resposta conciliadora à nacionalização dos hidrocarbonetos pela Bolívia em 2006 e a renegociação com o Paraguai do acordo de Itaipu em 2009. Contudo, tal interpretação não encontrou consenso na literatura especializada que viu nessas atitudes brasileiras gestos de “generosidade”, “ingenuidade”, “indulgência” e “partidarização” (ALMEIDA: 2010; BUENO: 2010; BODINIER: 2014, entre outros).

42 Por outro lado, há uma preocupação acerca do grau de importância da integração regional na agenda da política externa brasileira, principalmente no momento em que o Brasil diversifica o seu horizonte geográfico. “O país não assume a posição de principal agente da ordem regional e hesita diante de situações onde é forçado a se impor. (...), especialmente quando isto significa pressionar vizinhos menores a respeitar o número crescente de regras formais que estrutura a vizinhança” (SPEKTOR, 2010, p.26). Assim, o ativismo regional brasileiro assume um caráter oscilante, ou seja, suas ações pontuais ora convergem a favor dos anseios de desenvolvimento dos países sul-americanos ora reacendem o temor das pretensões “imperialistas” de Brasília. Portanto, “a idéia de que o peso relativo do Brasil atrai (e não afasta) os vizinhos é relativamente nova e revela uma interpretação sobre o funcionamento do poder na região que valoriza uma dinâmica que a literatura especializada denomina bandwagoning”12 (SPEKTOR, 2010, p. 37). No entanto, essa concepção do Brasil como “locomotiva” do processo integracionista esbarra tanto nas percepções divergentes da sociedade brasileira acerca da estrutura de governança regional quanto na aceitação dos demais governos do papel exercido pelo Brasil.

43 De fato, o governo brasileiro adensou o seu envolvimento em negociações multitemáticas no intuito de ressaltar a relevância do país nos foros globais. A estratégia do presidente Lula visava melhorar as capacidades de poder do Brasil articulando as ações políticas em diferentes escalas. Entretanto, a diplomacia do mandatário foi criticada por querer adotar as mesmas prerrogativas tanto para o plano regional quanto para o plano internacional, vistas como inconcebíveis por alguns autores (ALBUQUERQUE, 2009-2010; ALMEIDA, 2010; BUENO, 2010). Portanto, a condução da política externa no âmbito das relações global-regional nem sempre eram convergentes, pois a demasiada atenção as questões tratadas em várias arenas multilaterais ameaçava reduzir gradualmente a importância da América do Sul na

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agenda brasileira. Se isso ocorreu de fato, corroborou “com a posição de paciência estratégica e de complacência diante da paralisia da agenda econômica de cooperação e integração que caracterizou o governo Lula” (MOTTA VEIGA e RIOS, 2011, p.86-87).

44 A América do Sul, ao longo da década de 2000, passou a conviver com inúmeras iniciativas integracionistas promovidas pelo Brasil com intuito de mobilizar recursos para a concretização de uma governança regional. No entanto, o governo brasileiro não mostrou capacidade e/ou a vontade política de conduzir o regionalismo em alto perfil, com ações compartilhadas que enfrentassem os desafios comuns, como por exemplo, o combate ao tráfico de drogas; a expansão dos fluxos migratórios; a cooperação e integração de assuntos referentes à energia, ao meio ambiente, aos direitos humanos, entre outros. Também as relações intrarregionais esbarraram nas orientações político- ideológicas dos governos locais, nas assimetrias de suas economias e nas diferentes percepções dos países sobre inserção internacional. Assim, múltiplos arranjos e baixa unidade na discussão de temas comuns possibilitaram que potências extrarregionais e demais atores não-estatais ocupassem espaços no interior da região e projetassem seus interesses em busca de recursos naturais, de mercados e do aumento de poder nas escalas regional e mundial. Em razão disso, tomou impulso às relações triangulares Estados Unidos-Brasil-China que têm se constituído o vetor de desafio a liderança brasileira e aos processos de integração sul-americana.

45 Na avaliação de PECEQUILO (2013), podemos dividir cronologicamente as interações entre as três potências em dois momentos. Primeiro, o período referenciado a partir de 2000 até 2008, marcado pelo predomínio das ações Brasil-China e o segundo pela ofensiva norte-americana após a crise financeira de 2008, correspondendo o último ano do governo George W. Bush e a gestão de Barack Obama. Nesse contexto, ocorreu o encolhimento relativo brasileiro e a ascensão do país asiático. Quanto à relação Brasil- China, o governo de Benjing pautado numa política desenvolvimentista e “pacifista” nas relações internacionais, intensificou o diálogo com o eixo Sul-Sul. A intenção chinesa visava fortalecer a sua posição autônoma através de medidas que reduzissem as vulnerabilidades político-econômico-estratégicas frente aos Estados Unidos. Para isso, o governo pôs em prática a estratégia chamada de “going global”, isto é, uma forma de apoio financeiro e logístico, dentre outras formas de ajuda, com o objetivo de incentivar as empresas chinesas a investirem no exterior. Assim, o poder público definia os setores que eram considerados essenciais para manutenção do crescimento, da modernização da economia e da estabilização social interna da China. Na América do Sul, o governo de Beijing assinou acordos comerciais com países da região cujo objetivo era torná-los consumidores de produtos manufaturados e fornecedores de matérias-primas e insumos energéticos. Além disso, procurava enfraquecer a proximidade de Taiwan com governos locais, evitando possíveis apoios futuros à declaração de independência taiwanesa.

46 Segundo os estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) (2010), entre 2003 e 2008 o comércio chinês na região cresceu 700% no valor bruto enquanto, no mesmo período, as exportações brasileiras aumentaram 282,8%. Em muitos mercados (Peru e Chile), a China já se tornou o principal destino das exportações, em outros, como o argentino e o venezuelano, o país asiático ameaça superar o Brasil na função de principal parceiro comercial. Os investimentos chineses na América do Sul vão principalmente para setores de recursos naturais como cobre, soja, minério de ferro e petróleo. Entretanto, para viabilizar o acesso a esses produtos e exportá-los, a China

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também canaliza recursos em direção a infraestrutura dos países (ferrovias, portos, rodovias, hidrelétricas, dentre outros). Na região é crescente a presença de empresas chinesas que injetaram bilhões de dólares tanto na compra de empresas locais quanto na formação de joint ventures com empresários sul-americanos.

47 A possibilidade de fazer negócios com os investidores estrangeiros tem levado os Chefes de Estado a adotar esforços mais contundentes para a concretização de acordos voltados para o potencial regional. Essas “vantagens comparativas” têm atraído a atenção de empresas e governos na exploração dos recursos naturais. É o que ressalta a reportagem de COSTA (2008, p.45) sobre os interesses diversificados dos chineses junto aos países: [...]Chávez assinou em Pequim acordos para ampliar a exportação de petróleo de 364 mil para 500 mil barris/dia (esperando chegar em 2012 a 1 milhão , 38% da atual produção venezuelana), construir uma nova refinaria de 300 mil barris/dia na Venezuela , três refinarias para petróleo venezuelano em Cantão e elevar de 6 bilhões para 12 bilhões o fundo de investimento conjunto dos dois países, a ser usado em infra-estrutura e projetos petrolíferos na Venezuela, ocupando o espaço abandonado pelas transnacionais anglo-americanas. A China já compra mais de metade da soja e 30% do minério de ferro exportados pelo Brasil, 70% da soja em grãos e um terço do óleo da Argentina e 20% do cobre do Chile. Tem projetos conjuntos com a Petrobras (petroquímica, tecnologia e exploração de águas profundas) e a Vale (CSV Baosteel, no Espírito Santo), investe 5 bilhões de dólares no setor petrolífero argentino, tem projetos de minério de ferro e gás na Bolívia, participa de empresas petrolíferas no Peru e Colômbia, vende armas para Cuba e se aproxima do Paraguai.

48 Nesse cenário de adensamento das relações econômicas sino-sul-americanas, a emergência chinesa ameaça redesenhar a geografia comercial do subcontinente, impactando os interesses das demais potências na região. A China em sua trajetória de projeção de poder em escala regional pôs em prática a tática de se tornar o parceiro central de cada país. Para isso, procura diminuir a influência dos demais poderes, em particular o Brasil e os Estados Unidos, privilegiando as relações econômicas como estratégia de aproximação junto aos Estados sul-americanos (PECEQUILO, 2013). O predomínio do capital chinês já é perceptível em determinados setores dos países, conforme os estudos do IPEA (2010). No Uruguai, produzem automóveis; no Peru e Venezuela, financiam obras de infraestrutura; no Chile, fomentam a pesca; na Colômbia, pretendem se associar na construção de um oleoduto de grandes proporções. Conquanto, o principal interesse dos chineses na América do Sul está associado aos recursos naturais e minerais, por isso a presença crescente nas licitações dos governos locais tem objetivo de dominar setores estratégicos e tornar-se um contraponto aos capitais norte-americanos e brasileiros. Entretanto, o governo de Beijing procura ampliar sua influência na região ao reafirmar repetidamente que a intenção chinesa é contribuir para estabilidade e prosperidade, portanto, não dá sinais de envolvimento em questões geopolíticas sul-americanas nas próximas décadas, confirmando a posição “pacifista” fora da Ásia-Pacífico.

49 A intensificação das relações sino-brasileiras não se limitou ao intercâmbio comercial e tecnológico, mas objetivava construir uma agenda comum que pudesse mitigar o peso político-econômico-militar dos Estados Unidos no cenário internacional. Assim, os governos de Brasília e de Beijing privilegiaram as ações bilaterais e multilaterais na intenção de solidificar parcerias em temas estratégicos e consolidar o eixo Sul-Sul como polo de poder alternativo a potência hegemônica. De acordo com CERVO (2008), as

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relações Brasil e China devem ser compreendidas a luz do que ele chamou de “parceria ascendente”, ou seja, ela foi construída à base de vontade nacional, potencial similar e nível emparelhado de desenvolvimento alcançado. Por conseguinte, essa afinidade impulsionaria futuramente novas oportunidades que impactariam a economia brasileira e deixariam um legado tão relevante quanto à parceria constituída entre Brasil e Estados Unidos.

50 Embora esse eixo sino-brasileiro, por um lado, tenha trazido benefícios ao Brasil devido aos recursos direcionados ao agronegócio, a ampliação da infraestrutura, a instalação de montadoras de automóveis, a compra de papeis de empresas brasileiras como a Vale e a Petrobras, ou seja, colocado a relação dos dois no plano de prioridades e elevado a China ao patamar de principal parceiro comercial do Brasil, por outro, veio acompanhado de possíveis efeitos negativos de longo prazo, não só pela ameaça à especialização regressiva da pauta exportadora e da estrutura da indústria nacional, mas também, pela posição que os chineses assumem na percepção dos países sul- americanos, isto é, uma opção a assimetria geoeconômica e geopolítica entre o Brasil e a região.

51 A crise financeira de 2008 que assolou a economia norte-americana e contaminou muitos países europeus, levou os Estados Unidos a darem maior atenção a América Latina, principalmente a partir do governo de Barack Obama, embora esse mandatário continuasse a política externa de George W. Bush. A intenção do presidente Obama era tornar a região válvula de escape tanto às tensões econômicas quanto passível a introdução de medidas ordenadoras de segurança. Isso coincidiu com o momento da expansão chinesa e da projeção brasileira na América do Sul. Assim, a política de reafirmação da supremacia norte-americana não emergiu de “uma política construtiva para o continente ou que vise o aprofundamento da colaboração, mas sim de uma necessidade de preservar a zona de influência hemisférica e conter o avanço dos novos polos de poder nesta região e em escala mundial” (PECEQUILO, 2013, p.112). A política norte-americana visava transformar o mundo em campo de operações militares, no intuito de combater o terrorismo visto como uma ameaça de caráter global. Nesse cenário de instabilidade permanente, Washington põe em prática o modelo de reequilíbrio estratégico em diversas regiões, articulando os seus interesses econômicos à temática da segurança. Na América do Sul, o objetivo está balizado na renovação e ampliação das alianças no subcontinente como meio de conter a expansão das economias da China e do Brasil, já que essas potências através de suas empresas intensificariam a corrida pelos recursos naturais.

52 De acordo com BATTAGLINO (2009), o projeto hegemônico de Washington estruturou- se na projeção do poderio militar. No âmbito regional, as disputas pelos recursos naturais, principalmente os energéticos, e a deterioração da democracia foram combustíveis para que os Estados Unidos reativassem a IV Frota, fortalecessem o Comando Militar do Sul (USSOUTHCOM) e criassem o Comando militar da África (USAFRICOM). O discurso de Washington estava pautado na construção de coalizões com países sul-americanos na intenção de dissuadir possíveis agressões aos mesmos. Porém, havia fortes desconfianças entre os Estados da região quanto às reais intenções estadunidenses. O presidente Lula da Silva cogitou que tais medidas estariam relacionadas à descoberta de petróleo no litoral brasileiro. Por conseguinte, para os Estados Unidos, o Atlântico Sul tornou-se geoestratégico “devido à crescente presença brasileira, chinesa e indiana neste espaço, destacando-se sua relevância como zona de

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passagem e de produção de recursos energéticos (pré-sal, acesso a petróleo e gás) e de commodities” (PECEQUILO, 2013, p.112).

53 Nesse jogo de forças, os Estados Unidos reconfiguraram suas políticas e sua rede de posições militares de forma que lhe garanta responder de maneira preventiva qualquer tipo de ameaça. Para tanto, Washington desenvolveu um poderio tecnológico que dá ao país o controle concentrado de diversas regiões consideradas prioritárias tanto pela disponibilidade de recursos estratégicos quanto por necessitarem de atenção devido à presença de governos refratários as práticas norte-americanas (CECEÑA, 2008). Assim, ao voltar seus interesses em direção a América Latina, o governo estadunidense procura assegurar de maneira irrestrita o acesso aos territórios, utilizando-se do discurso de combate ao narcotráfico e das guerrilhas esquerdistas como as FARC-EP (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo) e o ELN (Exército de Libertação Nacional). Nesse sentido, a intenção perpassa pelo apoio orçamentário do Legislativo do país e da permissão de governos para que os Estados Unidos instalem/ ampliem bases militares na região, as quais podem ser exemplificadas por aquelas materializadas no Plano Colômbia13. Portanto, a condução da política externa norte- americana para a América Latina pode ser compreendida a luz da influência dos códigos geopolíticos. De acordo com PINA (2007, p.102), a política externa de um Estado é moldada a partir de um código geopolítico em vigor, isto é, “um código é definido por diversas idéias conjugadas que explicam as intencionalidades de um Estado em relação a outros Estados, e ainda definem que tipo de conduta deve-se realizar para responder aos riscos que existem (ou são inventados) externamente”.

54 A escalada militar introduzida nas relações intrarregionais pelo governo norte- americano não foi o único desafio aos processos de integração sul-americana. O fracasso da concretização da ALCA levou Washington a desenvolver acordos bilaterais, os chamados TLC´s com países da região. Utilizando-se da assimetria econômica, os Estados Unidos procuraram alcançar maiores vantagens em assuntos como acesso a compras governamentais, investimentos e serviços financeiros, direitos de propriedade intelectual, e também acordos militares. Certamente, a intenção era contornar limitações impostas pela resistência do eixo Brasil-Argentina-Venezuela a proposta da Casa Branca, e apoiar novos projetos enquadrados na concepção do regionalismo aberto. Todavia, a recente formação da Aliança do Pacífico14 (México, Chile, Colômbia e Peru, dentre outros) que tem 209 milhões de habitantes e somatório do PIB de US$ 2 trilhões contra 279 milhões de habitantes e PIB de US$ 3,3 trilhões referentes ao MERCOSUL, acrescentou mais diversidade ao espaço regional ao ser visto como contraponto ao regionalismo pós-liberal.

55 Tais países da Aliança já possuem vínculos com os Estados Unidos e a constituição dessa proposta instala uma possível competição entre dois modelos. SOARES DE LIMA (2013, p.186), ressalta que esse projeto dá mais visibilidade ao grupo de países que “enfatizam as soluções de mercado, a liberalização comercial e a integração às cadeias produtivas globais, com políticas externas mais convergentes com os Estados Unidos e favoráveis ao status quo da governança global”. Essa percepção põe em xeque a proposta denominada pós-liberal encaminhada por iniciativas bastante heterogêneas como a CASA, a UNASUL e a ALBA. Esse regionalismo pós-neoliberal procura reduzir o peso dado à dimensão comercial e ressaltar outras temáticas na agenda, principalmente aquelas que resgatam o desenvolvimento e/ou a equidade, segundo a anuência da administração estatal.

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56 Neste contexto, as iniciativas de integração propostas nas décadas de 1990 e de 2000 perderam fôlego e estão fragilizadas diante das expectativas de países da América do Sul em busca de inserção nos mercados globais. Assim, a possibilidade de articular a região sul-americana à dinamicidade das economias asiáticas tem ameaçado produzir clivagens no subcontinente entre posições liberais e nacionalistas, o que favoreceriam, sobretudo, a influência política e econômica de potências extrarregionais e de suas grandes corporações transnacionais no subcontinente. Desse modo, a Aliança do Pacífico serviria como um instrumento para a projeção de poder norte-americano no intuito de frear a ascensão chinesa na América do Sul e possivelmente na Bacia do Pacífico - instituindo outra ordem geoeconômica no Arco do Pacífico. Por conseguinte, o apoio a um projeto de integração regional neoliberal esvaziaria a importância das iniciativas regionais lideradas pelo Brasil, principalmente o MERCOSUL e a UNASUL, e manteria a fragmentação regional (PADULA, 2013).

Conclusão

57 Ao analisarmos a relevância da escala internacional nas gestões do governo Lula da Silva, observamos que o objetivo era diversificar o vetor de atuação do país no cenário global e consolidar a liderança regional, para isso era fundamental elevar a política externa à categoria dos temas prioritários na agenda brasileira. Assim, houve o redimensionamento do status quo do Ministério das Relações Exteriores e a ingerência da diplomacia presidencial nos assuntos internacionais. Em termos gerais, ocorreu uma mudança de percepção sobre a capacidade de atuação do país nos assuntos externos por meio de postura mais autônoma e pela diversificação das parcerias estratégicas, principalmente sustentadas no diálogo horizontal Sul-Sul. Nesse contexto, a orientação da política externa do governo Lula estava voltada para a promoção de oportunidades para o capital doméstico. Então, a postura governista era enfatizar a cooperação com os países da América do Sul como plataforma de expansão dos negócios brasileiros. Dessa forma, a integração tornou-se tema recorrente no Itamaraty e no ativismo do presidente Lula que conferiram densidade aos acordos regionais.

58 Embora a América do Sul ocupe posição prioritária na agenda brasileira, assistimos atualmente a inflexão de alguns países em direção a outras potências e regiões. O adensamento das relações intrarregionais visíveis na década de 1990 e início dos anos 2000 acentuou as assimetrias econômicas com vantagens expressivas ao Brasil. Certamente, a região possui relevância na pauta de exportação brasileira, principalmente de manufaturas, mas, também, é o principal destino de investimentos de empresas nacionais, além dos vários projetos de cooperação em diversas temáticas. O potencial mercado brasileiro poderia representar oportunidades aos países vizinhos e criar interdependências, afastando a ingerência de potências externas em assuntos regionais e as propostas cunhadas no regionalismo aberto. No entanto, a busca do governo Lula da Silva de circunscrever o país na esfera internacional relativizou a importância do subcontinente na política externa brasileira. Essa atenção vacilante em relação ao seu “entorno geográfico imediato” tem permitido que potências extrarregionais aumentem o seu peso na América do Sul e desloque a liderança brasileira para a retórica. Somados a isso, a relação entre Brasil e países sul-americanos enfrenta desafios tanto em virtude das iniciativas integracionistas que ameaçam não “decolar” quanto no aprofundamento dos focos de tensão política nos territórios dos

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países vizinhos, já que os crescentes investimentos de empresas brasileiras, financiadas pelo BNDES, em setores de energia e recursos naturais têm causado impactos sociais e ambientais nos países onde estão disseminadas.

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NOTAS

1. O novo-desenvolvimentismo incorporou temas que ficaram relegados ao segundo plano no período desenvolvimentista, como o da dimensão social e da expansão do mercado interno de consumo, juntamente aos elementos da estabilidade econômica, implementados pelo neoliberalismo. Essa combinação foi ressaltada no trabalho de SICSÚ et al ( 2007), ao centrar suas percepções nos seguintes eixos: (i) na estabilidade macroeconômica e na redução das vulnerabilidades externas, garantidas pela manutenção de uma taxa de câmbio competitiva, coordenada com as demais esferas da política macroeconômica; (ii) na existência de um empresariado nacional forte e de investimento em inovação técnica; (iii) no crescimento econômico elevado e continuado para redução das desigualdades e (iv) na adoção de políticas

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sociais universais, com o objetivo de reduzir as assimetrias sociais e potencializar o capital humano. 2. “A ideia de promover a cooperação entre os países do Sul surgiu como complemento e ao mesmo tempo como alternativa à relação assimétrica Norte-Sul. O processo de aproximação entre os países da América Latina e da África se dá no contexto das relações Sul-Sul. Mas o conceito ‘Sul’ ultrapassa a categoria geográfica e se assenta sobre uma concepção política e econômica. Os países do Sul são países em vias de desenvolvimento, periféricos, que compartilham situações socioeconômicas e político-culturais tanto entre seus contextos locais como nos âmbitos regionais. No entanto, podem aspirar a manter relações mais igualitárias e cooperativas, compartilhando experiências e somando força política e econômica para ganhar mais autonomia na hora de organizar a agenda global e defender seus interesses” (LECHINI, 2014, p. 21). 3. Segundo SOARES DE LIMA e DUARTE (2013), as viagens presidenciais representaram o grau de importância que o governo brasileiro atribuiu a outro país ou mesmo a um Continente. Embora o número de visitas não ilustra, em última instância, a relevância e a profundidade das conversas. No entanto, a visita oficial do Presidente da República a um país vizinho ou distante de sua região revela a existência de uma vontade política de maior estreitamento dos laços políticos. 4. O eixo horizontal é representado pelas parcerias com as nações emergentes, por suas semelhanças como grandes Estados periféricos e países em desenvolvimento como Índia, China, África do Sul e a Rússia (sendo que informalmente, o Brasil, a Rússia, a Índia e a China formam o chamado bloco BRIC). A agenda é composta também pelos países menos desenvolvidos (LDCs) da África, Ásia e Oriente Médio, cujo poder relativo é menor do que o brasileiro. Este eixo representa a dimensão terceiro-mundista da política externa, também definida como relações Sul-Sul. Os benefícios potenciais deste eixo são econômicos, estratégicos e políticos (PECEQUILO, 2008, p. 145). 5. Aqui, podemos utilizar como caso emblemático dessa relação à contenda envolvendo Brasil e Equador em relação às falhas graves na obra da hidrelétrica San Francisco, construída pela Odebrecht. As ameaças do governo equatoriano de suspender o pagamento da mesma levaram o presidente Lula a colocar aquele país na “geladeira” para futuros empréstimos do BNDES. 6. “A hipótese básica do regionalismo pós-liberal é que a liberalização dos fluxos de comércio e investimentos e sua consolidação em acordos comerciais não apenas não são capazes de gerar ‘endogenamente’ benefícios para o desenvolvimento, mas ainda podem reduzir substancialmente o espaço para a implementação de políticas nacionais ‘de desenvolvimento’ e adoção de uma agenda de integração preocupada com temas de desenvolvimento e de equidade” (MOTTA VEIGA e RIOS, 2011, p.84). 7. “É importante lembrar que os Estados Unidos estavam empenhados em criar a ALCA nos mesmos moldes do NAFTA, acordo que, aos olhos do Brasil, reduziria o México à condição de apêndice da economia norte-americana. Com esta ameaça em vista, o governo brasileiro percebia na integração regional e, particularmente no MERCOSUL, um sistema de proteção e uma plataforma para assegurar condições que permitissem ao Brasil realizar todo o seu potencial de global player” (SORJ e FAUSTO, 2011, p.12). 8. O Brasil vem tendo divergências com os países vizinhos em virtude das formas de condução de suas empresas nos projetos de desenvolvimento locais. Observamos esses problemas no Equador com a empresa Odrebrecht; na Bolívia com a nacionalização das instalações da Petrobrás e no Paraguai com a revisão do Tratado de Itaipu. 9. Na análise de SOARES DE LIMA (2013, p.197), geralmente a liderança é entendida por pesquisadores tanto na capacidade influenciar terceiros quanto reconhecê-los. Porém, a complexidade de mensurar o grau de influência sobre terceiros pode confundir conceitualmente liderança com reconhecimento. Portanto, para estabelecer a diferença, a autora sugeriu que “se defina liderança não como influência sobre terceiros, mas como influência sobre os resultados.

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(...) Essa é exatamente a definição de um ator com poder de veto: aquele sem cuja anuência um acordo, iniciativa, ou negociação não se realizam”. 10. Carlos Mesa GISBERT (2011) interpreta a relação Brasil-Bolívia como preocupante devido à excessiva dependência do seu país a economia brasileira, promovendo resistências a um possível “imperialismo” do seu vizinho do Leste. 11. “De fato, o Brasil tem sido um ator de veto nas questões financeiras, tomando-se como evidência as resistências do BNDES à criação de um Banco do Sul e sua exigência quanto ao cumprimento das normas técnicas em todas as questões de financiamento. Por não ter interesse no projeto, a Petrobras também foi um ator de veto à proposta da Venezuela de construção do gasoduto ligando o norte ao sul da América do Sul” (SOARES DE LIMA, 2013, p.197). 12. Segundo HURREL (2009), tal estratégia representa o ato de se aliar ao país ou coalizão mais forte. Esse comportamento se diferencia da posição do “balanceamento” que é o ato de unir forças contra os mais poderosos. 13. Segundo CECEÑA (2008, p.22), as bases norte-americanas se multiplicaram dentro da Colômbia e foram distribuídas geoestrategicamente para cobrir a área do país e, ao mesmo tempo, a fronteira com a Venezuela. Essas bases estão incorporadas “a FOL (Forward Operating Locations) em Aruba-Curaçao para controlar o passo do Darién que conecta a Colômbia com o Panamá, a entrada da sela amazônica e a saída do petróleo venezuelano para o oeste”. 14. De acordo com PADULA (2013, p.7-8), “a Aliança do Pacífico, firmada em 06 de junho de 2012, também é uma iniciativa primeiramente do Peru, reforçada pela Colômbia, envolvendo também Chile e México. Conta com o apoio dos EUA, e poderá contar com adesão em breve de Panamá, Costa Rica, Japão e Indonésia. Já conta com o Uruguai como observador e o Paraguai sinalizou que deseja se tornar um observador, ambos países do MERCOSUL”.

RESUMOS

A crescente presença brasileira no espaço regional, em especial, após a primeira eleição do presidente Lula da Silva, reacendeu os debates sobre a retomada do projeto do país à condição de “potência regional” e “global”. As discussões estiveram pautadas nas ações políticas, econômicas, sociais, militares e culturais colocadas em curso pelo Brasil, e sustentadas na articulação entre a agenda doméstica e a estratégia de inserção internacional. Tal intento passava pela constituição de uma diplomacia ativa e afirmativa, por isso era fundamental fortalecer as relações com os países vizinhos, consolidar a América do Sul como área prioritária na agenda nacional e superar o baixo perfil sul-americano na função de eixo alternativo de poder na escala mundial.

La creciente presencia brasileña en el espacio regional, en especial, después de la primera elección de presidente Lula da Silva, reaccionó las discusiones sobre volver a tomar del proyecto del país a la condición “potencia regional” y “global”. Las peleas habían sido pautadas en las políticas de las acciones económicas, sociales, militares y culturales, colocado en el curso para el Brasil, y apoyadas en el articulación entre la agenda doméstica y la estrategia de la inserción internacional. Tal intención pasada para la constitución de una diplomacia activa y afirmativa, por lo tanto era básico fortificar las relaciones con los países vecinos, consolidar la América del Sur como área de prioridad en la agenda nacional y sobrepasar el perfil bajo americano del sur en la función del árbol alternativo de poder en la escala mundial.

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Les croissantes interventions politiques, économiques, militaires, sociaux et culturelles du Brésil dans l’Amérique du Sud — surtout après le premier gouvernement Lula da Silva — a repris la condition brésilienne de « puissance régionale » et même « globale ». Dans ce contexte, la diplomacie brésilienne a renforcé les liens avec les pays voisins à fin de consolider l’Amérique du Sud en tant qu’espace prioritaire de ses intérêts.

The growing Brazilian presence in the regional space, especially after the first election of President Lula da Silva, reignited the debates about the resumption of the country's project to the status of "regional power" and "global power." The discussions were based on the political, economic, social, military and cultural actions put in place by Brazil, and based on the articulation between the domestic agenda and the international insertion strategy. Such attempt went through the constitution of an active and affirmative diplomacy, so it was essential to strengthen relations with neighboring countries, to consolidate South America as a priority area in the national agenda and to overcome the low South American profile as an alternative axis of power on a global scale.

ÍNDICE

Mots-clés: politique extérieure, puissance régionale, Amérique du Sud, Lula da Silva, rapports Sud-Sud Keywords: Foreign policy - South America - Lula da Silva - South-South relations. Palabras claves: Política externa – América del Sur – Lula da Silva – relaciones Sur-Sur Palavras-chave: Política externa – América do Sul – Lula da Silva – Relações Sul-Sul.

AUTOR

JORGE LUIZ RAPOSO BRAGA

Professor Doutor do Departamento de Geografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Faculdade de Formação de Professores – São Gonçalo – RJ. Professor do Colégio Naval – Angra dos Reis – RJ. Doutorado em Geografia na Universidade Estadual de Campinas.

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Alternative – general characteristics Turismo alternativo na Bulgária – características gerais Le tourisme alternatif en Bulgarie : traits générales Turismo alternativo en Bulgaria: características generales.

Milen Penerliev

1 Alternative tourism is a form of tourism which represents an alternative to the conventional mass tourism. Its forms are small-scale, low-density, divided into forms practiced in urban (religious, cultural, business) and rural areas. Alternative tourism is an attempt to preserve, protect and improve the quality of the existing resource base, which is fundamental for tourism itself. Alternative tourism is featured by active encouragement and care for the development of additional andspecific attractions as well the infrastructure, which are based on the local resources, while at the same time aiding the latter. It has an impact on the quality of life in the region, improves the infrastructure and increases the educational and cultural level of the local community.

2 Alternative forms of tourism contribute to the economic diversity, focusing on environmental and cultural sustainability. Those forms of tourism do not harm the culture of the host community and are based on natural, social and community values. This allows both - the guest and the host - to experience positive, meaningful interaction and to share their experiences and cultural specifics. Alternative forms of tourism directly support the local population and the economic diversity.

3 Alternative tourism includes cultural, educational, scientific, adventure, business, rural, extreme, agricultural (farm), hunting, wine, hobby, eco, religious, spa, health, sex tourism.

4 Alternative tourism as a concept and a form of tourism emerged at the end of the 1970s. Over the last decade it has already acquired considerable “weight” in the tourism industry and became a separate segment of the international tourist market. There was an increasing demand and a trend of "returning" to the original sources of natural and socio-cultural environment.

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5 Alternative tourism means "new", "different", specialized, not the one that is regarded as common. According to J. Gazes (quoted by PENERLIEV, 2009) alternative tourism develops at three main levels:

6 1) socio-cultural and tourist ethics,

7 2) economic realism and

8 3) protection of the environment.

9 According to Jost Krippendorf (quoted by PENERLIEV, 2009) alternative tourism is a kind of dynamic system that is not explained by its component parts, but by the existence of steady mandatory simultaneous real connections between those parts.

Rural tourism

10 The term “rural tourism” has different meanings in different countries. In Finland, for example, it is associated with renting farmhouses or provisions supply in remote areas. In Hungary, there is a separate term for rural tourism, which stresses that this type of tourism only includes activities and services offered in rural areas (as we shall see later, agritourism development includes cheap places to stay, but not participation in agricultural activities or other events of local character). In Slovenia, the most important type of rural tourism is that of family farms, where guests stay either in the house of the farmers or in individually designed houses, while visiting farms in order to dine or to make a tour around the farm is also very popular (VERBOL, 1995, quoted by PENERLIEV, 2009). In the Netherlands the rural tourism is mostly camping on farms, as most services are limited to activities which employ trails (cycling, walking and horseback riding). In Greece, the main part of rural tourism consists of providing a bed and breakfast in traditionally furnished rooms or studios, while food mainly consists of homemade dishes. Additional services, which are currently limited, include also restaurants, taverns and cafes or organizing cultural and recreational activities.

11 Rural tourism is one of the main tourism sub-types that exhibit a priority development in many European countries, including Hungary. The rural recreation market is growing just at a time when the future of many rural areas is uncertain due to changes in agricultural policy (this was subsequently adopted by the Common Agricultural Policy of the European Union) and the increasing attractiveness of urban life. Rural tourism seems to be one of the most appropriate tools of reviving the fading rural areas and of ensuring their future. This is done by maintaining or even increasing the employment, the diversification of jobs, the preservation of services, farms aiding, increasing the number of cultural events, nature conservation or revitalization of rural arts and crafts in order to attract tourists. Rural tourism often provides incentives (and part of the funding needed) for infrastructural development, which in turn contributes to the growth of other economic branches in rural áreas

12 Rural areas are characterized by favorable natural resources and climatic conditions. Those are an important prerequisite for the development of multilateral economic activities: agriculture, forestry, industry, tourism etc. The development of (mainly) food and souvenir industry, especially when small and medium enterprises are concerned, is already dependant on the tourism sector in such rural settlements which already offer tourist activities. A process of recovery of important strategic sub-sectors is observed, such as viticulture, cultivation of perennial crops - especially strawberries

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and raspberries, roses, mint, lavender as well as the development of sericulture and beekeeping. The main task of the municipal administrations is to promote the development of rural tourism and the tourism-related economic activities such as ecological agriculture and animal husbandry, production of souvenirs with motifs of the region (woodcarving, pyrography, pottery, knitting, carpet weaving, nautical- themed souvenirs etc.).

13 The compact settlements inhabited by rural communities with preserved strong traditions and identity, along with the well-developed social infrastructure in the past, need renovation and expansion, especially of the existing road network. It is necessary to solve the problems related to ill-maintained or in some cases - lacking sewerage systems, water supply and public utilities. In some geographical areas such settlements could become attractive centers for economic development.

14 Although there has been a well-developed road infrastructure, but poorly maintained, over the years following 1989 – this now represents a huge obstacle for the development of rural tourism. There are many interesting tourist sites that are unknown to foreigners and even to themselves because of poor road network. Many rural areas remain remote and isolated from the major urban centers. Usually the most sought after tourist destinations and rural features are the clean air, the tranquility, the proximity to water bodies and mineral springs, mountains and forests, authentic architecture, the opportunities for sports and open-air activities. Typical examples of that are the villages and small towns which attract tourists such as Trigrad, Momchilovtsi, Arbanasi, Ribaritsa, Voneshta voda, Shipkovo, Chepelare etc.

Spa tourism

15 Bulgaria has registered a total of 525 mineral water deposits with over 1.600 mineral springs with a total capacity of 4900 l/sec.

16 The national spa resorts can be regionalized as follows: • the Srednogorie zone – where the main spa centers are Hisarya, Pavel banya, Stara Zagora mineral baths, Sliven mineral baths, etc .; • the -Rhodopes zone - Sapareva banya, Dolna banya, Momin prohod, Kostenets, Kyustendil, Velingrad, Narechen, Mihalkovo, Haskovo mineral baths, Ognyanovo, Levunovo, Marikostinovo etc.; • the Black Sea coast – the seaside resorts such as Albena, Zlatni pyasatsi, Slanchev bryag etc.; • the Balkan Range (Stara planina) zone - Varshets, Shipkovo, Slivek, Voneshta voda, Klimentovo (Veliko Turnovo district) etc .; • Mud bath centers - Pomorie, Albena, Marikostinovo etc .; • Climatic resorts - Sandanski, Tryavna, Apriltsi, Teteven, Shipkovo, Shiroka laka, Dryanovo, Berkovitsa, Yundola, Rozhen, Pamporovo etc.

17 The majority of Bulgarian mineral springs are located in areas with favorable climate, suitable for treatment of various diseases. This provides an exceptional opportunity to combine spa therapy with climatic treatment. This also applies to the Bulgarian Black Sea coast and the mountain resorts as well. The beautiful scenery, the clean air, the negative air ionization and the mineral waters in the mountain resorts of Bulgaria have a positive effect on human health. It comes as no surprise that in Velingrad, Narechen,

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Varshets, Kyustendil, Kostenets, Sapareva banya, Sandanski, Pavel banya etc., spa and wellness are combined with climatic treatment.

18 The population of the country has long realized the benefits of using mineral water for treatment. During the Ottoman rule and during the first years after the Liberation, captation of springs and building spas began, together with the relevant accommodation and dining infrastructure. It is at that time when resorts such as Bankya, Gorna banya, Boyana, Varshets, Kyustendil, Chepino, Ladzhene, Strelcha, Sapareva banya, Haskovo mineral baths, Voneshta voda, Pavel banya and others emerged. In the years following World War II the recreation expanded and increased its mass character.

19 The Bulgarian spa resources can be zoned in 10 geographical areas (Stamov, Aleksieva, 2003). These are: • the Danube Plain; • the Balkan Range (Stara planina) area (Shipkovo, Voneshta voda, Varshets, Stoletovo etc.). • the Sub-Balkan valleys (Gorna Banya, Pavel banya, Bankya, Banya, Sliven mineral baths); • Kraishte and Srednogorie; • the Thracian-Strandzha area (Stara Zagora mineral baths, Merichleri, Asenovgrad springs, the "Tri vodi" springs etc.); • the -Belasitsa mountain range and the Middle Struma valley (Sandanski, Levunovski mineral springs, Marikostinovo); • Rila Mountain (Sapareva banya, Dolna banya, Momin prohod etc.). • Mountain and the Mesta River valley (Dobrinishte, Ognyanovo); • the (Chepino, Ladzhene and Kamenitsa quarters of Velingrad, Mihalkovo, Devin, Narechen); • the Black Sea coast.

Religious tourism

20 Religious tourism is a type of specialized tourism, which satisfies the religious and spiritual needs, as well as the relevant arts, cultural, historical and other values.

21 Depending on the purpose, religious tourism sub-divisions are: missionary tourism – a specialized travel (a mission) aimed at disseminating the Christian doctrine; pilgrimage - a journey outside the place of residence for religious reasons; educational religious tourism - specialized trips for educational purposes and increasing the qualification of the participants – those can be organized as "study tours", “religious congress tourism”; religious festival tourism – attending organized celebrations of religious motive, which have a mass character - celebrating saints or religious events (in Spain, Italy, France etc.).

22 As it was already mentioned above, religious tourism is related to visiting sites of religious significance such as churches, monasteries, synagogues, mosques etc. Since the main temples of the various religions are located in settlements – they have a relatively good accessibility. The larger Christian monasteries in Bulgaria also have a well-developed transport infrastructure allowing access to them. According to surveys, about 94 % of all monasteries in Bulgaria are accessible by well-maintained roads, while 61 % of the roads are in very good condition. Accommodation facilities in Bulgarian monasteries, however, are in very poor condition. Souvenir shops only exist in four of

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the largest monasteries – in Rila, Bachkovo, Troyan and Klisurski monastery. Emerging of such trade is observed also in Samokov, Dryanovski Osenovlak and some other monasteries. The church boards of trustees play a major role in increasing the tourist attendance of monasteries. Because of lack of such will, away from tourist routes remain the Chiprovtzi, Maglizhi, Rakovishki and others monasteries. Only 11 of all monasteries in the country are able to develop tourist activities in the true sense of religious tourism (Bachkovo, Troyan, Gabrovo, Klisurski, Lopushanski, Dryanovo, Samokov, Strupets, Kapinovo, Sokolovski, Kalofer monastery). A visit to a monastery is associated with an array of reasons for the different tourists.

23 In Bulgaria there are many religious complexes dating back to the country’s ancient history - rock churches, monasteries etc. (Aladzha Monastery, the rock monasteries in the Shumen plateau, the Ivanovo rock monastery along the Rusenski Lom River etc.). These sites can also be related to cultural and educational tourism. Similar intermediate positions hold the ancient shrines located throughout the country. One of the least known but increasingly visited places is the ancient cromlech (a religious complex of huge megalithic boulders near the town of Madzharovo in the Rhodope Mountains, similar to the famous Stonehenge in England). Such places are numerous and should be developed mainly with support of the state authorities and be provided with transport access.

Golf tourism

24 Golf tourism - part of the sports tourism. Sports tourism (ALEKSIEVA, STAMOV, 2003) is a specialized type of (alternative) tourism that meets the needs of tourists of sports, recreation and active recreation by participating in various sports and activities.

25 Very often this type of tourism is not practiced separately, but is usually combined with other types of tourism: cultural-cognitive, entertainment, health and spa tourism, ecotourism. In its more elitist aspect, sports tourism is practiced by highly paid corporate executives. In this case, the latter are willing to devote their weekend to a rest in an exotic location, being able in the same time to practice their favorite sport - , squash, climbing, paragliding, golf etc. In that case the requirements for accommodation facilities are much higher - considering the financial profile of such tourists. In such cases, it is possible to combine sports with congress tourism.

26 The first golf course in Bulgaria was opened in 2000 in the town of Ihtiman, district. The course stretches across an area of 400 acres and has 18 holes. The elitism of this sport in Bulgaria can be seen by the cost of a one-year-membership in the "Air Sofia" club, which is over 1 700 BGN. In that same complex horseback riding, bowling, squash, fitness and other activities can be practiced as well. The accommodation facilities are represented by 4 villas in various architectural styles (a Bulgarian Koprivshtitsa house, a Japanese house, a Western European and a universal house) with a total of 9 bedrooms and one apartment. All villas overlook the course. Additionally, the “Ihtiman” hotel can also be used - with its 32 rooms, several apartments, a bowling and a squash hall, a summer garden, a restaurant, conference halls.

27 In May 2004, the second golf course in Bulgaria opened near the town of Sliven. It has an area of 500 acres and it too has 18 holes. One of the most modern golf courses is currently being built near the town of Razgrad, with an area of 600 acres, located between 6 hills. It is expected to attract some of the best golfers in the world and to

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significantly increase the town’s revenues. However, the accommodation facilities in the town are still not at the appropriate level so as to meet the higher requirements that golf tourists would have. This is one of the essential problems of tourism in Bulgaria in general – namely - the missing link between the construction of sports facilities on one hand, and the specificity and capacity of the superstructure and the adjacent infrastructure, on the other.

28 Due to the growing interest in Bulgaria by foreign tourists in recent times, several other golf courses are expected to be built. One of those courses will be located in Razgrad - in the north-east of the country, some 90 km from the Black Sea. Other courses along the Black Sea coast are planned to be ready within the next few years: two at Kavarna and one at Primorsko, near Sozopol.

29 As far as mountainous and ski resorts are concerned, golf courses exist in the resort town of Bansko, and there is a huge golf complex located in Dolna banya – a small town between Kostenets and Borovets (the latter being the largest ski resort in the country.).

30 The fact that the Black Sea coast is the most popular and attractive tourist destination in Bulgaria, explains the increased investments in golf projects in this region. For the time being, the most impressive among them all stand out the Black Sea Rama, the Lighthouse Golf Resort and the Thracian Cliffs Golf & SPA Resort.

31 The most refined and exclusive golf destination is the Black Sea Rama, near the seaside town of Kavarna. One of the courses is already functioning. The construction of hotels and supporting infrastructure is due.

32 Another distinctive project in that region is the Summerland Golf & Beach Club. This is one of the complexes that combine high quality construction, good location and excellent conditions for small and large investors. Located in a quiet place about 300 meters from the wide, sandy beach of Kavarna, the Summerland Golf & Beach Club is a wonderful combination of charming traditional Bulgarian architecture and modern design. It is divided into 4 sections, including 77 apartments (studios, single-, double- and three-room apartments), each of which will be equipped with air conditioning and a fully equipped kitchen. The apartments offered for sale are unfurnished but an alternative option exists, allowing the purchase of a full furnishing package, tailored entirely to the individual requirements of the customer.

Cultural - cognitive tourism

33 The emergence of cultural tourism as a research topic dates back to the early 20th century, but it was not until 2002 that the International Council on Monuments and Sites published an official definition as follows: "Cultural or cultural-cognitive tourism is the form of tourism, which focuses on the cultural environment, which in turn may include cultural and historical attractions of a given destination or cultural heritage, values and lifestyle, arts, crafts, traditions and customs of the local population. Moreover, cultural and cognitive routes can be extended visits or participation in cultural events, visits to museums, concerts, exhibitions, galleries etc. (International Council on Monuments and Sites (ICOMOS)).

34 Cultural tourism is defined by the World Tourism Organization (WTO Report, 2012) as "journeys whose main or additional goal is visiting sites and events whose cultural and historical value has become part of the cultural heritage of a given community."

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35 Since Bulgaria is a country with centuries-old cultural layers, there are plenty of resources for this type of tourism. The best indicator of cultural tourism regionalization in Bulgaria is the distribution of the museum network across the country.

36 Assuming that tourism resources are an objective indicator in the process of regionalization of cultural tourism, we can focus our attention on sites other than archaeological ones, located in situ in a given environment. The distribution of the museum network by districts also allows the spotting of the leading regions for this type of tourism. Moreover, since the development of the museum network is in an urban environment, it largely determines the tourist flow into those regions.

Table 1: Museum network in Bulgaria as of 2011 (by districts)

Penkova, S. 2012. Museum network in Bulgaria, National Military History Museum, S.

37 In this case too – as in the review of the archaeological sites – several districts can be distinguished: Sofia-grad, Plovdiv, Stara Zagora, Shumen, Veliko Tarnovo and Burgas stand out with over 10 museums each. Naturally, the capital city tops, in line with the global trend. Those districts form the group of very high spatial concentration of museums. Another group is composed by districts with a number of museums between 5 and 10, such as Gabrovo, Varna, Pazardzhik, Sofia, Lovech, Montana. This second group can be defined as a group of moderate concentration of museums. The group of districts with the lowest concentration of museums is composed by Targovishte, Yambol, Kardzhali, Ruse, Pleven and the rest of the districts. The level of significance of the museums is not taken into account in this case; however, the status of the museums can be used as an additional indicator – national museums, regional museums etc. This would reveal the importance of the territory as a quality indicator. For example, although Pleven district falls in the third group, its tourist flow can hardly be the same as the one of Yambol district, for example: due to the presence of objects of national importance (the Pleven Panorama etc.), Pleven district is quite significant in terms of cultural tourism.

38 If we combine the two discussed indicators (the concentration of 1 - architectural sites and 2 - museums) the leading areas in the country can be determined, and hence - a

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reasonable regionalization of Bulgarian cultural tourism can be suggested. By both indicators the Shumen-Preslav region is leading, therefore it is only logical that it should be considered a separate cultural and tourist region. Stara Zagora - Kazanlak, Veliko Tarnovo, Plovdiv and other regions follow. We should keep in mind that despite the small proportion of archaeological sites, the over-concentration of museums gives us grounds to consider Sofia-grad district as a separate region of cultural tourism. We believe those are the two leading regions of this kind of alternative tourism in Bulgaria.

Profile of the practitioners of alternative tourism in Bulgaria

39 The profile of tourists by type of tourism exhibits some differences in behaviour, preferences and demographic structure (Penerliev, 2016). • The tourist profile of those practicing cultural and educational tourism in Bulgaria is the following: • Men and women are distributed almost evenly, with a slight prevalence of men (men – 54 %, women – 46 %). Forty nine percent are aged between 36 and 55 years, 36 % - between 15 and 35, 73 % are employed. The share of people with higher education is 68 %; • Followers of cultural tourism come mainly from Western Europe, the Balkan countries and Russia; 55 % of those practicing cultural tourism have already been in Bulgaria before. They are here for “adventure” holiday and are attracted mainly by the cultural and historical landmarks, the low prices and the nature; • 37 % arrived through a travel agency. Nearly 2/3 of the tourists plan their trip a month or even 2-3 months upfront; A quarter of the interviewed arrived in the country without a reservation; • The average number of overnight stays is 6.4 days, during which they spent an average of € 80 per day per person, or € 458 per person for the entire holiday.

40 Those practicing eco-tourism, on the other hand, have the following profile: • eco-tourists combine their holiday mostly with mountainous (45 %), culinary (20 %) and cultural tourism (15 %); • eco- and cultural tourism are perceived similarly by visitors practicing ecological tourism; therefore, it would be appropriate to consider combining those two types, even more so since both types are united by the concept of "adventure holiday"; • regarding the organization of their vacation, eco-tourists have a specific behavior - they rely mostly on the services of tour operators – 60 % of the interviewed group had chosen to organize their trip with the help of a tourist intermediary. • According to the generating market, eco-tourists in Bulgaria are mostly residents of the United Kingdom (about 1/3 of all) and Western Europe (about 1/4). Some 20 % come from Balkan countries and 15 % come from Russia; • men prevail over women (58 %); • most often "eco" tourists are aged 36-55 years (about half of all tourists), but the share of young people is also high - about 43 %. University graduates are dominant (70 %), 78 % are employed and 18 % of them - hold a managerial position; • Rural tourism too has its own specific features in terms of behaviour and profile of tourists who prefer it. For example: • 45 % of the target group of foreign tourists (rural tourism) have used the services of travel agencies. 1/3 of the tourists have arrived in the country without a reservation;

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• 73 % of rural tourism practitioners prepare their journey from one to three months before the trip itself; the time of preliminary planning is directly dependent on the length of stay - the longer the duration of stay, the earlier the planning of the trip is; • the average stay of those practicing rural tourism in Bulgaria is 6.1 nights. Tourists from Scandinavia and North America spend time in Bulgaria the longest (an average of 9 nights), while visitors from the Balkan countries stay the least (an average of 3.6 nights); • the average expense per person per day in rural tourism was just under € 62, while for the whole holiday - € 326. • rural tourism is practiced mainly by middle-aged people (36-55 years) – 58 % of all; 72 % are employed, out of which 20 % hold managerial positions. Tourists with higher education dominate (nearly 2/3 of all).

Key conclusions

41 Although relatively small by area, Bulgaria exhibits various resources for the development of alternative forms of tourism. Those forms of tourism, however, have but little significance in the general balance of the tourism industry in the country. This is due to the high concentration of accommodation facilities along the Bulgarian Black Sea coast and the continuing advertising of the country mostly as a summer tourist destination. Alternative forms of tourism are for people from the big city, looking for "different" kind of calm and clean environment. These forms of tourism are featured by a higher income per tourist compared to traditional forms of tourism. Alternative forms of tourism are practiced by tourists with a higher education level and income, and they represent a true alternative to our hectic modern life. Due to the limited volume of this paper, other alternative types of tourism developed in Bulgaria will be characterized in the second part of the current paper.

Attachments - Landscapes of Bulgaria

Balneological and Culture Center Hisar

www.gradhisar.info

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Rocks near the town of Belogradchik – Candidate for the 7 Wonders of the World in 2010

http://www.detelinatours.com

Tryavna Vilidge

www.kenguru.bg

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Golf Center “Trakiya Clifs”

www.pochivka.bg

Global Symbol of Bulgaria: Madara Horseman (UNESCO) – Hewn on stone bas-relief by an unknown author – VІІІ A.D

www.bgglobe.net

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Old Town of Plovdiv City - Center for Cultural Tourism

http://fest-bg.com

BIBLIOGRAPHY

KEREMIDARSKA E. Ethnocultural features of international tourists in Bulgaria, Shumen University Press, Shumen, 2015.

KEREMIDARSKA E. et al. Active recreation and leisure in tourism. Blagoevgrad, 2015.

PENERLIEV, M., D. Rumenov. Museum exhibitions as part of the tourist product in cultural tourism - seasonality, dynamics and sustainability, Proceedings of the RHM-Shumen, Volume 16, 2014.

PENERLIEV, M. The state and perspective of Balneological and SPA tourism in Bulgaria, Acta Scientifica Naturalis, vol. 1, 2014, pp. 249-256 (co-author: Sv. Stankova).

PENERLIEV, M. Possibility for spatial organization of the rural tourism in Bulgaria on the basis of Bulgarian folklore regions, Journal Quaestus, n. 8, a. V, 2016, Timishoara, Romania, pp. 153-160.

PENERLIEV, M. Study of the tourist behavior and the profile of tourists in Bulgaria, XI Jornadas Internacionais Grandes Problemáticas do Espaco Europeu, maio, 2016, Porto, Portugal.

PENERLIEV, M. Tourism: modern theoretical aspects, Shumen University Press, Shumen, 2016.

STAMOV S., ALEKSIEVA, 2003. Specialized types of tourism, “Kota”, St. Zagora.

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ABSTRACTS

This paper presents a general overview about the most common types of alternative forms of tourism observed in Bulgaria, considering the regional differences in the concentration of the respective types of tourism, as well as the specialization of the different regions. Basic definitions adopted in Bulgaria and the most important resources for the development of alternative forms of tourism have also been indicated. The study reveals the most important centers and areas of alternative tourism in the country and describes the profile of those practicing various types of alternative tourism in Bulgaria.

Este artigo apresenta uma visão geral sobre os tipos mais comuns de formas alternativas de turismo observadas na Bulgária, considerando as diferenças regionais na concentração dos respectivos tipos de turismo, bem como a especialização das diferentes regiões. Também foram indicadas definições básicas adotadas na Bulgária e os recursos mais importantes para o desenvolvimento de formas alternativas de turismo. O estudo revela os mais importantes centros e áreas de turismo alternativo no país e descreve o perfil daqueles que praticam vários tipos de turismo alternativo na Bulgária.

Cet article presente une vision générale autour du tourisme alternatif en Bulgarie — y compris quelques définitions — en soulignant notamment les différences et les spécialisation régionales. On remarque les centres du tourisme alternatif les plus importants et le profil des pratiquants, ainsi que les ressources naturelles.

Este artículo presenta una visión general sobre los tipos más comunes de formas alternativas de turismo observadas en Bulgaria, considerando las diferencias regionales en la concentración de los diferentes tipos de turismo, de acuerdo con la especialización de las diferentes regiones. Igualmente, son presentadas las definiciones básicas adoptadas en Bulgaria y los recursos más importantes para el desarrollo de formas alternativas de turismo. El estudio revela los mas importantes centros de turismo alternativo en el país y describe los diferentes perfiles de turismo alternativo presentes en Bulgaria.

INDEX

Mots-clés: tourisme, tourisme alternatif, genres de tourisme, différences régionales, Bulgarie. Palavras-chave: turismo, turismo alternativo, tipos de turismo, diferenças regionais, Bulgária. Palabras claves: turismo, turismo alternativo, tipos de turismo, diferencias regionales, Bulgaria Keywords: tourism, alternative tourism, types of tourism, regional diferences, Bulgaria.

AUTHOR

MILEN PENERLIEV

PhD, Assoc. Prof., “Bishop Konstantin Preslavsky” University of Shumen”, Faculty of Natural Sciences, Department of “Geography”, Shumen, Bulgaria. E-mail: [email protected]

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O lógico, o lógico-matemático e a crítica da economia política do espaço: elementos para um debate El lógico, el lógico-matemático y la crítica de la economía política del espacio: elementos para un debate Le logique, le logico-mathématique et la critique de l’économie politique de l’espace : éléments pour un débat The logical, the logic-mathematical and the critique of political economy of space: elements for a debate

Marcio Rufino Silva

Episódios de uma situação social crítica

Resumindo, o que encontrará o leitor nessas páginas? Um projeto ou “o” projeto de sociedade? Não e sim! Primeiramente, não. O livro busca, antes de tudo, apresentar, renovando um pouco, um caminho, um projeto dialético: o pensamento dialético. Porém, ele tenta igualmente trazer alguns elementos de um projeto prático (concernente, então, à sociedade). Ele parte de uma espécie de axioma ou de um postulado, que muitos recusam de início: os “modelos”, o “capitalismo” e o “socialismo”, caem sob o esgotamento e a obsolescência. Lentamente, porém certeiramente. (LEFEBVRE, 1986, p. 14)

1 Nestes cinzentos dias que marcam a virada da primeira para a segunda metade do ano de 2017, a economia e a política rendem polêmicas e angústias mundo afora. Ensaiando um exercício de análise de conjuntura, as cinzas se colocam desde as peripécias xenófobas e neo-imperialistas do executivo estadunidense ocupado pelo megaempresário Donald Trump (incluindo o “impedimento” de cidadãos de nove países da África e Ásia – do eixo do assim chamado “Oriente Médio” – de ingressarem em solo pátrio estadunidense, bem como as conhecidos e perigosos reclames de “liberdade” e “democracia” para as “ditaduras comunistas” da América Latina, por parte das mesmas forças políticas) até as desventuras fluminenses (do estado do Rio de Janeiro) de um

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atraso um pouco mais estendido dos salários dos servidores públicos estaduais, dos quase “naturalizados” dois meses para três meses sem a pecúnia básica. Nada de muito novo sob o império da passividade moderna, lembrando famoso dito situacionista de fins da década de 1960, este que completa cinquenta anos com um invejável shape pós- adolescente. O eterno presente se realiza pela coagulação do espaço-tempo.

2 Em abril de 2017, a agência russa de notícias Sputnik divulgou depoimento do “especialista em relações internacionais” e “ex-diplomata venezuelano”1 Ghazi Nassereddine, que os Estados Unidos estariam “preparando o terreno na América Latina” de modo a construir uma “intervenção a longo prazo”, criando “uma situação muito semelhante à do Oriente Médio”.2 Para o estudioso/especialista/ex-diplomata consultado por agências russas de imprensa, seria necessário fazer uma avaliação, “a nível mundial”, do fluxo do “pensamento salafista-wahhabita”, atribuindo a essas tendências ultraconservadoras do islamismo a fonte primordial da organização futura de grupos terroristas. A partir de uma suspeita do possível fluxo de tais grupos pela América Latina, Nassereddine pontifica que “os governos da região, sejam de esquerda ou de direita”, não possuiriam “maturidade política e governabilidade necessária para prevenir essa situação”, reiterando a extrema vulnerabilidade desse território a essas esferas de ação. A espreita de perspectivas mais “sofisticadas” e “avançadas” de imperialismo para além da assim chamada “dominação econômica” via ajuste fiscal e outras peripécias neoliberais pós-neodesenvolvimentistas abre um perigoso flanco para uma guerra aberta, essa “política por outros meios” em terras latino-americanas.

3 Do solo especificamente brasileiro, Igor Fuser destaca o “nada” da atual política externa brasileira, praticada, desde maio de 2016, pelo ex-ministro das Relações Exteriores, o Senador paulista José Serra, e pelo atual, o também Senador e também paulista Aloysio Nunes.3 Como uma contraposição à política externa “ativa e altiva” do período 2003-2016 (com todas as suas nuances, ênfases e crises momentâneas), a atual “política externa” brasileira atual resumiria-se a um “alinhamento incondicional aos Estados Unidos em todos os temas, fóruns e instâncias do sistema internacional”, uma “adesão irrestrita à globalização neoliberal” e, por último, um “envolvimento ostensivo na campanha internacional para depor o presidente venezuelano Nicolás Maduro”, em uma tentativa de esmagamento da “Revolução Bolivariana” e de entrega do poder central à “direita local”, também aliada dos Estados Unidos. Lembrando a “doutrina” martelada pelo parlamentar cearense/baiano Juracy Magalhães, logo que assumira o posto de Embaixador do Brasil em Washington após a quartelada de 1964 (“o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”), Fuser destaca as medidas de alinhamento automático do governo golpista de então aos interesses estadunidenses: rompimento de relações com Cuba, envio de tropas brasileiras à República Dominicana no golpe de Estado naquele país em 1965 e a proposta (posteriormente não realizada) de envio de tropas tupiniquins ao Vietnã. As peripécias dos representantes atuais do “governo golpista” trazido à luz em 2016 não deixam por menos: desde o esvaziamento tático e estratégico da presença brasileira na Unasul, Celac e Brics até a “pressa” no selamento (fracassado, sobretudo devido à vitória eleitoral de Donald Trump na presidência dos EUA) do Acordo Transpacífico de Comércio e Investimentos (o “famoso” TPP). Finalizando, ao ironizar a “viralatice” dos “neoliberais tupiniquins” que se arrogam em “ser mais realistas que o rei”, Fuser denuncia o “entreguismo” de blocos de exploração petrolífera a preços módicos a empresas estrangeiras, as negociações da cessão do centro de lançamento de foguetes de Alcântara, no Maranhão, às “Forças Armadas dos

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Estados Unidos” e a “irresponsável” participação ativa do governo brasileiro na desestabilização do atual governo venezuelano, a exemplo do ocorrido no momento imediato pós-golpe militar (e empresarial) no Chile, em 1973. Se a história não se repete como tragédia, mas como farsa, tal assertiva hegeliana/marxiana proferida em meados do século 19 para nomear o golpe de “18 Brumário de Luís Bonaparte” segue com uma atualidade terrivelmente desconcertante.

4 Ainda quanto ao Brasil, o editor Saul Leblon comenta o “exílio” de elementos da alta “elite” nacional de solo pátrio: especificamente, sócios privilegiados da banca rentista, controladores de fundos de investimentos e banqueiros envolvidos em maior ou menor grau com o “centro” da gestão da política econômica brasileira.4 Tais personagens, especificamente Pérsio Arida (“o ex-menino prodígio do Plano Real” e ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social [BNDES] na era de Itamar Franco [1993-1995]) e André Lara Resende (igualmente ex-presidente do BNDES, já em meados da era FHC [1998]), exemplificam o “êxodo” mapeado por Leblon, verificável na quantidade de Declarações de Saída Definitiva do Brasil, em dados da Receita Federal: de 8.510, em 2011, para 20.469, em 2016. A leitura do editor, ardoroso defensor do “destravamento” de um “novo ciclo de investimento no país”, caminha no sentido de denunciar uma situação social na qual a garantia da “remuneração da riqueza privada”, que “tem na dívida pública a sua contrapartida de miséria”, seria o resultado mais palpável da sublevação do “mercado”, da “mídia” e da “escória política” na derrubada do governo de Dilma Rousseff, há cerca de um ano. Desse modo, “nem o Estado investe em infraestrutura” e “nem os gestores privados querem correr o risco”, garantindo um futuro “esfarelado” nas “remessas imediatistas das grandes corporações”. O embotamento do tempo-espaço revela justamente os limites dessa modalidade crítica de acumulação: o choro lamentoso para uma “elite” que “abdicou” de “responsabilidades e valores compartilhados” é o que clama pela “nação” em lugar de um “ajuntamento demográfico” puro e simples. O “nacionalismo”, em um mundo que progressivamente varre as “economias nacionais” diante da crise, aparece como um amargo holograma de tempos “gloriosos” varridos para um futuro de novas associações possíveis em um novo “pacto” nacional para o desenvolvimento. No caso do Brasil, um novo “ciclo de desenvolvimento” aproveitar-se-ia das “potencialidades” pouco exploradas de seus recursos naturais e humanos. Nesses tristes dias que correm, um outro lamento lacrimoso tem feito parte da constatação da tragédia desprovida de futuro: “o velho ainda não morreu e o novo ainda não nasceu”, diria as emulações gramscianas.

5 David Harvey, em “17 contradições e o fim do capitalismo” (2016), distingue três “categorias” de contradições próprias a este vigente modo de produção (segundo a obra de Marx e Engels) ou o “sistema de metabolismo social” e seus “sistemas de mediações” (segundo leitura de Ricardo Antunes, baseando-se em obra de Istvan Mészáros): as “contradições fundamentais”, as “contradições mutáveis” e as “contradições perigosas”. Uma das “contradições perigosas” mais expressivas apontadas pelo geógrafo britânico consiste justamente no “crescimento exponencial infinito”. Como é possível esse “infinito”? Quais as suas consequências sociais e políticas? Que lógicas comandam essa realidade?

6 Em uma afirmação surpreendentemente simples, Harvey revela uma realidade: “a maioria das pessoas não entende a matemática dos juros compostos”, e sequer “o fenômeno do crescimento exponencial (ou composto)”, bem como “o perigo potencial

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que ele representa” (2016, p. 207). Se, em um passado mais “glorioso” das primeiras “revoluções industriais”, os “ciclos de inovação” correspondentes foram suficientes para garantir o crescimento ilimitado do “consumo real per capita”, os ciclos posteriores à década de 1960, embora tenham efetivado pequenas “revoluções” no campo da cultura do consumo espetacular ao nível individual e social (os gadgets em geral), não foram capazes de atender a esses anseios globais. Desse modo, até mesmo a medida subjetiva de riqueza se transforma inclusive ao nível do senso comum, nível esse que torna simplesmente incomensurável qualquer medida em relação às bolhas cifradas de “riquezas” que circulam nas altas esferas da economia fictícia. De fato, as casas dos “bilhões” e “trilhões” são pouco apreensíveis em escalas que mal ultrapassam os “milhares”. E Harvey, mais adiante, menciona a metafísica cifra “ótima” de 3% de crescimento composto ao ano, limite que separa as economias “saudáveis” daquelas “letárgicas” ou “depressivas”. É a “taxa de retorno positiva sobre o capital” (2016, p. 213), considerando criticamente as leituras visivelmente biologicizadas no campo analítico mais raso, e mesmo aquelas de caráter mais “científico”, ressuscitando um neopositivismo não muito distante do clássico positivismo de fins do século 19.

7 Mas os juros compostos (considerando, também, que os juros simples não afastam muito o problema, apenas o atenuam um pouco...) trazem situações bizarras. Desde a “matemática social” malthusiana e a sua contestação parcial pela realidade materialmente histórico-geográfica (sobretudo pela chamada “transição demográfica”, onde a população mais idosa supera a população mais jovem) até as tentativas de emulação do padrão de “crescimento” e “desenvolvimento econômico” estadunidense (século 20) e chinês (século 21), de que modo “o capital pode continuar a se acumular e se expandir perpetuamente a taxas compostas” (HARVEY, 2016, p. 216)? Não seria a forma-dinheiro a permitir essa acumulação sem limites? E não seria justamente esse dinheiro tornado ficção a cumprir esse papel? Dinheiro esse calibrável pelos mecanismos bélico-produtivos da maquinaria de dólar comandada pelos Estados Unidos em par com a China e as “economias dinâmicas” do mundo pseudo-produtivo, bem como pelo achatamento universal do “poder de compra” via esmagamento dos salários, desemprego em massa e a cada vez mais banalizada descartabilidade humana universal, sem contar ainda a popularização dos créditos e microcréditos a permitirem o azeite de uma máquina falida e o comprometimento perpétuo do futuro individual e coletivo.

8 Se as novas marés de “desenvolvimento econômico” hoje parecem uma mentira tão mal contada quanto confessadamente revelada em benefício da sobrevivência ampliada, esse campo lógico e social, pautado pela cisão universal e o automovimento do dinheiro em sua forma mais abstrata, traz o seu alcance e o seu limite. O fluxo de uma política alienada atrelada a uma economia terrorista, no escopo de uma sociabilidade pautada pela vida ao fio da navalha, no limiar constante entre a vida e a morte, é o substrato necessário dessa ordem social profundamente tautológica.

9 Encerrando nossa “análise de conjuntura”, a tautologia dessa sociedade é manifesta por Luis Casado, refletindo a respeito do “grande salto atrás” da “Economia Política”.5 Casado não traz boas notícias aos simpatizantes da pouco simpática Economia Política: uma figura como o “Chicago-boy” Milton Friedman já afirmava, nos píncaros de sua homilia monetarista, que a grande “novidade” daquela ciência (e da prática) era justamente o veterano e clássico “Adam Smith”. A exemplo do que Henri Lefebvre, em clássico texto onde o filósofo/sociólogo francês construía a sua “crítica da economia política do espaço” (2008 [1973]), Casado, apoiando em citações de Bernard Maris

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(jornalista/economista francês morto no massacre do Charlie Hebdo, em janeiro de 2015), expõe o caráter desiludido dos “primeiros economistas” (mais especificamente, Jean-Baptiste Say e Adam Smith) quanto a essa “ciência econômica, a ciência do mal”, ou “a ciência sinistra”: a Economia Política. Além disso, o economista (que, na visão de Casado/Maris, “não passa de um vigarista, um charlatão que esconde em seu palavrório, geralmente complicado, o objetivo imposto por seus senhores, que é manter os homens na servidão”) é o ser que, personificando “o canto gregoriano da submissão do homem”, fez Marx e John Maynard Keynes tentarem, sem sucesso, “libertar o homem da economia”. Adiante, a exposição de Casado quanto à presença dos vilipêndios “atuais” dessa economia vodu (truques da dupla contabilidade, os monopólios, o tráfico de influência, o conflito de interesses, o engano, a fraude, o golpe, o roubo, a arbitrariedade, a pilhagem, a exploração, a dissimulação, a informação privilegiada, os privilégios, a incúria, a prevaricação, as propinas, a usura, o abuso do poder, a conspiração etc.) já nos primórdios da “transição” do Feudalismo ao Capitalismo, na “Baixa Idade Média” eurasiática, completa o ciclo descurado de um farsesco eterno retorno. Seja como for, se essa economia (enquanto prática ou lógica social e enquanto ciência) parece monstruosa e incontrolável, não seria justamente ela uma base fundamental para o desvendamento das contradições próprias do mundo moderno?

Lógicas, matemáticas e métricas: uma aproximação com a obra de Henri Lefebvre

10 Entre coágulos e fluxos acelerados, surge um importante retrato de nossos dias. O geógrafo Diego Ruiz, em “La reforma métrica” (2017), traz uma interessante análise a propósito da perspectiva das medidas e, mais particularmente, do Sistema Métrico Decimal e do Tempo Universal Coordenado, na construção de uma moderna “sócio- lógica” no espaço urbano latino-americano. Seu “recorte espaço-temporal”, localizado no Rio de Janeiro e na Cidade do México de fins do século 19 e da primeira metade do século 20, traz uma contribuição ímpar para o desvendamento da imissão dessas lógicas ao campo social.

11 Questionando-se a propósito das formas e conteúdos implicados a essas “medidas” padronizadas, como fundamento teórico-prático da normatização dos produtos e da produção, afirma o autor, trazendo elementos do “direito à preguiça” preconizado por Paul Lafargue: A distribuição da riqueza e dos meios de produção deve conter uma proposta a respeito dos sistemas de medição. Aquela proposta não pode ser gerada a partir do que eu chamo de nossa compreensão fragmentada da medição e as medidas. A fragmentação à qual me refiro inicia-se no momento de dividir o espaço com o tempo. Já separado o tempo, a medição se divide em “pesar” e “medir”. Aquela operação mental, que dota de certas características a um objeto x com a finalidade de compará-lo com um outro y, ocorre para o tempo, a longitude, o peso, o nível de álcool do sangue ad infinitum. Falta uma explicação que quebre com a segmentação de nosso entendimento sobre a medição e essa explicação poderia formular-se a partir da Geografia. Será porque a mudança da qual quero falar no “medir” e no “pesar” coincidiram com uma mudança na medição do tempo? (RUIZ, 2017, p. 2)

12 Adiante, ao trazer os “elementos cotidianos” dessa metrificação, a associação entre essa realidade e o campo analítico da chamada “ritmanálise”, conforme proposição

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desenvolvida mais ou menos tardiamente na obra de Henri Lefebvre, o autor expõe a perspectiva da “cidade semáforo”. Em termos gerais, tal “proposta conceitual” refere-se à “sincronização dos tempos das pessoas em relação a um tempo legal único que determina e regula um espectro que vai desde os segundos até os anos” (2017, p. 11). A sincronização desses tempos, “responsável por temporalidades hierárquicas”. Amiúde, trata-se de uma “cidade-plano cartesiano”, uma eterna “cidade-projeto”, compostas por uma “verticalização falocrática”... Uma cidade (um espaço-tempo) na qual outros sistemas de medição seguem convivendo com os banais metros, gramas e horas e onde tal reles banalidade é constantemente assaltada em sua pretensão universal. Como medir o corpo? Como medir o vivido? Como medir o espaço?

13 No momento atual, mostra-se sobremaneira evidente o quanto as estratégias do espaço se põem a serviço da realização de uma economia crítica, expondo os limites e as fronteiras da valorização do valor, em suas múltiplas escalas.

14 Para tanto, há que se colocar o expoente de uma composição no campo da política, não se restringindo apenas à ideia de uma crítica à política pública em si, o que consideramos insuficiente ao tratamento do problema que expomos neste artigo. Uma crítica desse quilate, dependendo de seu viés político ou ideológico, poderia servir muito mais ao aperfeiçoamento do Estado e de sua lógica da equivalência, ou de seu assentimento ao funcionamento da maquinaria social urbana, do que propriamente a uma crítica que se pretenda, de fato, radical.

15 Assim, voltemo-nos ao que Lefebvre nos ensina a respeito.

Uma leitura a partir da obra de Henri Lefebvre: tática, estratégia, operador e operatório.

16 A proposição lefebvreana sobre as táticas e estratégias aparece em variados momentos de sua obra, sobretudo no segundo volume da Crítica da vida quotidiana II ([1961] 1980), no quarto volume da coleção Estado (1978), em O manifesto diferencialista (1970) e, mais sistematicamente, em O retorno da dialética (1986). Em relação à primeira obra citada, tratando especificamente da vida cotidiana enquanto um nível da prática social, e a sua crítica enquanto uma possibilidade concreta do conhecimento e desvelamento dessa mesma vida quotidiana, o autor afirma que: O estudo crítico da vida cotidiana desvelará a tática e a estratégia dos grupos parciais (as mulheres, os jovens, os intelectuais etc.) na sociedade global. Ela saberá revelá-los, através das ambiguidades, o quanto elas se revelam e se significam, o quanto elas se revelam e se dissimulam, mas ainda assim se expressam. O estudo da cotidianidade apreenderá as relações dos agrupamentos que os tornam opacos em seus contatos, ou que os fazem acessíveis uns aos outros, a despeito dos mal- entendidos, das manobras táticas, dos disfarces, das aberturas e aventuras estratégicas. [...] Quanto aos momentos nos quais predomina a estratégia, são justamente esses os grandes momentos históricos, as efervescências. A estratégia confere o sentido dos grupos e de sua vida. O “sentido”, direção, orientação, expressão e objetivo, não tem nada de uma tranquila entidade especulativa, a ser filosoficamente desobstruída por um especialista, o filósofo. O sentido é o drama. É a estratégia – referente ao grupo – que o constitui. Ela o cria. O nível da cotidianidade enquanto “realidade” seria, portanto, aquele da tática, intermediário entre o nível onde não há mais o ato, onde a realidade estagna e se espessa, onde domina o trivial – e o referente à decisão, ao drama, à história, à estratégia e à revolução. (LEFEBVRE, 1980 [1961], pp. 138-139)6

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17 E este seria o sentido, então, das táticas e estratégias ao nível do vivido entre diversos agrupamentos sociais, tomando os períodos dominados pelas estratégias como os grandes momentos históricos, pelo menos por parte desses chamados “grupos parciais”. No entanto, predominando a tática, temos em mãos somente o espessamento da vida tornada “realidade” e toda a sorte de ambiguidades decorrentes da imissão dessa vida chamada “real”. A cotidianidade seria, assim, o reino das táticas. Quanto à estratégia, poderíamos lê-la enquanto uma tomada efetiva do tempo da história, superando a banal linearidade do tempo pseudocíclico?

18 Quanto à obra Estado, o autor trata especificamente das estratégias que se levam adiante a partir do viés estatista, afirmando que “o conceito de estratégia e a prática correspondente tomam uma importância capital”, colocando, logo a seguir, que “toda estratégia implica uma lógica”, aplicada a uma situação, “a recursos, a objetivos e alvos, à lógica geral (logística)”. Vale a pena seguir um pouco mais o raciocínio do autor a respeito: A teoria das estratégias modifica sem abolir a análise clássica da ação como tríade: “determinismos-riscos-vontades”. É verdade que ela coloca em primeiro plano o cálculo, referente aos recursos e às possibilidades: o cálculo não suprime nem as decisões e nem as chances. A parte cega da ação histórica (os homens fazendo sua história sem saber ao certo o que fazem, sem saber onde suas ações os levam, segundo Marx) tende a diminuir. O que não quer dizer que ela desapareceu. De qualquer forma, os interesses particulares, tanto no socialismo de Estado quanto no capitalismo de Estado, se subordinam à coesão do conjunto político e à coerência ofensiva ou defensiva da estratégia. As separações desvanecem entre o econômico, o social, o político, e também entre o legislativo, o executivo e o político. Caem as separações, substituídas pela lógica do poder separado (gerando pelo alto, a sociedade) e, no entanto, perpassado a sociedade inteira, portanto onipresente. O que Hegel, primeiro, concebeu. (LEFEBVRE, 1978, p. 24)

19 Quanto à coerência e à coesão do conjunto político e da ação defensiva ou ofensiva do Estado, conforme apontado pelo autor, bem que poderíamos tomar, ainda, a lógica implicada às táticas e estratégias operadas a partir da ação estatista. Em O manifesto diferencialista, o autor ressalta a complexidade de uma forma social que não se desdobra em apenas uma lógica, e sim em várias lógicas, ou seja, “vários procedimentos para impor uma consciência”, a saber: “uma lógica do repetível (combinatório), uma lógica do espaço, uma lógica das trocas e da coisa, uma lógica das significações etc.”. Considerando a pluralidade dessas lógicas, Lefebvre coloca, ainda, que tal pluralidade “proíbe a coerência que elas desejam estabelecer”, sendo “essas múltiplas sócio-lógicas e ideo-lógicas” impeditivas à “constituição de um sistema fechado, ainda que haja ininterruptamente tentações (sobre o plano ideo-lógico) e tentativas (sobre o plano sócio-lógico) de fechamento e conclusão”. Avante no raciocínio do autor: A racionalidade limitada se limita inevitavelmente às táticas. O fetichismo da coerência e o da eficácia dissimulam essa redução. E, no entanto, há estratégias. Teriam elas seus lugares de formulação e de aplicação fora do pensamento que se diz teórico? Certamente. Onde? Entre os políticos? Talvez, mas sobretudo entre os militares. Quando aos técnicos e tecnocratas, eles só podem ter um primeiro objetivo, o de tornar capazes de uma estratégia, ou seja, de se erigir em grupo, casta ou classe. (LEFEBVRE, 1970, p. 100-101)

20 Quanto ao trabalho, no interior da lógica estatista e de sua afirmação rumo à interposição da equivalência como seu fundamento, bem que o expediente militar à tática e estratégia conduziria, para muito além de uma banal e metáfora gratuita, a uma lógica imanente à forma e ao conteúdo da equivalência: a guerra. E não poderia ser

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tomado como um simples adereço pitoresco ou folclórico determinadas políticas e/ou falas de representantes políticos e/ou agentes econômicos mais ou menos farsescos ou ridículos: trata-se, efetivamente, de uma guerra, um conjunto de batalhas táticas, de modo a renovar os territórios e lugares e a colocá-los, efetivamente, na exposição universal das mercadorias e fundos de investimentos.

21 Desse modo, todo o território, toda a sociedade e todo o espaço tornam-se, enfim, estratégia! Espacialidade, portanto, suprimindo a temporalidade, impondo uma sócio-lógica, uma ideo-lógica, conforme os termos apontados em Lefebvre. E isso não é tudo. Ainda no pensamento lefebvreano a respeito dessa lógica se interpondo à forma social, invadida pelos ritmos e ditames da maquinaria mundializada de valorização do valor, fiquemos com um expressivo texto, publicado já na segunda metade da década de 1980, quando formas mais aprofundadas de estratégias do espaço se punham à mesa do aludido planejamento urbano e suas congêneres políticas públicas. Vejamos.

22 Em O retorno da dialética, o qual o autor propunha ser “um livro-ação, um guia no labirinto do mundial”, onde “cada ‘artigo’ almeja oferecer uma entrada em um conjunto a compor seus fragmentos, em uma perspectiva e uma concepção que não concluem, que não se completam”, (LEFEBVRE, 1986, p. 11) destaca-se o tratamento a “doze palavras-chave para o mundo moderno”, onde o Estado é justamente a primeira palavra a ser contemplada. Destilando o sentido lógico e histórico da afirmação do Estado moderno, Lefebvre afirma, por exemplo, que “o Estado-nação perfeito realizaria a identidade perfeita”, ou seja, a partir da “redução das diferenças, homogeneidade dos elementos, localização e fracionamentos controlados”. Continuando, afirma que “cada estratégia comporta uma lógica”, facilitando “a tarefa dos cientistas da computação”, mas que não contribuiria “com a tão desejada coesão da sociedade” (1986, p. 28).

23 E já que ingressamos nessa seara, seguindo o raciocínio do autor e relacionando suas concepções ao teor dos acontecimentos conjunturais elencados no início deste texto, partamos, enfim, rumo às suas considerações a respeito do(a) lógico(a) e do(a) lógico- matemático. Em primeiro lugar, considera-se o ingresso do(a) lógico(a) na prática social, não “pela única ação potente do pensamento”, mas a partir de extrema violência, cuja relação com o(a) lógico(a) se põe a partir de “toda ação levada de modo coerente, não somente a partir do individual e de tais indivíduos que dirigem tal ou tal operação”. Assinalando que “há luta constante entre a(o) lógica(o) e a dialética”, (ibid.: 60) cabe refletir sobre as considerações do autor a respeito da negatividade: À imensa positividade regida pela lógica nos diversos domínios (poderíamos dizer: no reino ou no império do lógico) se opõe uma negatividade, não menos formidável. O que caracteriza a modernidade: inverso e reverso. Aqui, não se trata de uma oposição abstrata e paradigmática, produtora de significações e de sentido, mas de um conflito prático, em profundidade: de um trabalho de destruição e de autodestruição, imanente ao “real”. Se é verdade que o que insistimos nomear ingenuamente de “crise” não se circunscreve mais ao econômico, ou a esta e àquela ideologia, essa palavra designa um vasto processo que estremece a cultura, depois o político, o econômico, o Estado e, em seguida a totalidade (constituindo essa totalidade pela via da negação, e de modo algum, como acreditaram os hegelianos e muitos outros, pela via do afirmativo e do positivo). (LEFEBVRE, 1986, p. 64)

24 Contudo, a lógica se destacaria da filosofia, ingressando no saber e na prática. De que modo? Afirmando o reclame pela lógica “em todos os lados”, o autor incorre na abordagem das matemáticas e sua intrínseca relação à lógica. Partindo da tautologia A=A, tomada clara e inteligível, porém vazia, redundante, poder-se-ia tomar a vastidão da tautologia

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operada a partir do zero e do um, onde inúmeras combinações (sequências, somas etc.) conduzem ao domínio das matemáticas, “ciência da quantidade”. A partir das “propriedades” dos números (par, ímpar, números primos etc.) e as suas infinitas possibilidades (equações “indecidíveis”, a sua qualidade de infinitude etc.), parece que a rigorosa lógica formal teria recaído, pela sua própria natureza, em certos paradoxos, cuja demonstração, “da prova pela dedução”, preparariam a desforra da dialética. Mas, persistindo na forma... Caso famoso: conta-se que Gauss, ainda criança, com oito ou nove anos, foi conduzido pelos seus pais à escola de sua aldeia. O mestre de escola, para verificar o nível intelectual e de instrução do novo aluno, perguntou-lhe: “Um e um, isso dá...?” “Dá um”, respondeu a criança; obstinadamente. O professor, conforme se conta, o reenviou para sua casa, como débil mental. Os pais retornaram e disseram: “Mas ele já faz cálculos muitos sábios...” O professor refez a questão. Mesma resposta. A criança apenas adicionou: “Um mais um, isso dá dois”. – Ele libertou da tautologia a noção de operação, ato mental produtivo, que ajunta algo (a menor diferença) ao dado. O mais difere do e, o qual implica a simples repetição ao idêntico. O ato mental pode também remover e subtrair, cortar (segmentar, fazer um corte), fazer deslizar, ou rodar etc. A noção de operador está liberada de uma prática: a operação, ato mental cumprido desde os tempos mais remotos. Ela se generaliza recentemente; as linguagens das máquinas definem as operações lógicas, antes de definir as operações próprias. A teoria das formas permite elucidar o conceito de operador, sem esgotá-lo, no entanto. A forma “pura”, a identidade, A é A, vazia, tem, entretanto, uma capacidade produtiva (e não somente reprodutiva). (1986, pp. 68-69)

25 O operador, assim, contendo uma potência produtiva, para além da mera tautologia da reprodução, demonstraria a operação do pensamento: em primeiro lugar, “o rigor lógico, o mesmo, o silogismo, a demonstração”; em segundo lugar, “na prática”, a identidade engendrando outras formas, “inteligíveis”, não sem alguns resíduos, tais como “a equivalência, a simultaneidade, a reciprocidade”; e, finalmente, em terceiro lugar, engendrado a “ilusão filosófica concernente ao Ser idêntico (que é o que é), a Substância, a Verdade, o Absoluto”. E todas essas formas, para Lefebvre, ingressariam na prática, confeririam as operações e operadores. E tudo é tornado simultâneo. E toda a maquinaria se põe, efetivamente, a funcionar, e a gerar, captar e reciclar valor, seguindo a linguagem exata e rigorosamente lógica dos documentos oficiais quanto aos “rumos” e “estratégias” futuras para a sobrevivência econômica de um mundo conflagrado em uma economia moribunda.

26 E toda a violência, decorrente desses atos mentais, lógicos, acontece na prática, apesar de sua não-ocorrência nas matemáticas, onde simplesmente opera o operador tout court, sem muitas mediações. Desse modo, um ato mental põe e simultaneiza essa sequência indefinida de números gerados uns após os outros; nascem assim as noções capitais de conjunto, de infinito demonstrável, de transfinito. A potência da forma, tornada operacional, gerou ou engendrou (não somente produziu) alguma coisa de nova. O repetitivo e a diferença têm uma capacidade criadora. Dessa maneira, dissipa-se uma segunda ilusão dos filósofos, surgida após a primeira. “O Ser é”, essa evidência não somente nada explica, mas consagra o sensível, o fenomenal e o movente ao nada. Admite-se, então, que a matemática é do pensamento; que não se deve pensá-las, mas aceitá-las enquanto pensamento já ali, não somente real, mas absoluto. Então: “Dum deus calculat fit mundus” (Leibniz). (LEFEBVRE, 1986, p. 69)

27 Quando Deus calculava, fez o mundo... Ou quando a maquinaria se punha a efetivamente funcionar, pela via da lógica, teria refeito o mundo? Como poderia essa

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lógica se tornar tão absoluta e se constituir, de fato, em um operador, aprofundando a figura da operação? O debate sobre as formas contemporâneas de alienação poderia incorporar esse modo de conceber a realidade: o Estado, em um período onde as formas mais críticas se reafirmam, se põem na espacialidade de um mundo onde sua tautologia relativa (um e um) produz a quantificação necessária (um mais um), de modo a restituir a lógica da equivalência. E a partir da equalização (violenta) dos desiguais, unificando as diferenças na lógica formal operada pela via estatista.7 O econômico, assim, se vê em sua almejada realização, tornada plena.

28 No entanto, Lefebvre aponta os limites da coerência e coesão próprias da lógica, em sua interface às matemáticas, sobretudo no tocante às contradições: afirma que, enquanto a lógica teria a sua força, conforme discutimos até aqui, a dialética teria a sua “contra- força”. De que modo? O autor alude a uma possível dialetização das matemáticas, na qual a possibilidade de pensá-las admitiria a simples unidade do ponto (um “nada” e, ao mesmo tempo, um “alguma coisa”, cuja sequência opera um ato mental, instaurando e dimensionando o espaço: “o mensurável e o medidor”), a alusão à linha e ao corte (repondo a questão do “contínuo e do descontínuo”), ao transfinito (números ao mesmo tempo finitos e infinitos) e aos números “primos”. Para o autor, as contradições, embora aparentemente resolutas pelo mecanismo binário (zero e um), fundamental na construção das máquinas de calcular, reaparecem “sobretudo no pensamento crítico que continua”, já que “o número e o pensamento do número não coincidem” (ibid.: 72).

Considerações finais

29 Encerrando, qual seria, assim, a relação entre tática, estratégia, operatório e operador? De modo a colocar essa questão em níveis mais avançados, a proposta é que se pese a possibilidade de se reconsiderar os termos contemporâneos das formas de alienação, seja no tempo, seja no espaço: no mundo do trabalho, da educação, da política... E que a figura do Estado seja realmente posta em questão, e que se desvelem as práticas operatórias dessa economia a partir de seus expedientes táticos e estratégicos.

30 O que se buscou discutir, neste texto, foi justamente a ação, o drama, a concepção e as possibilidades. Não se trata, contudo, de uma espécie de “teoria dos jogos”, ou ainda uma tentativa de refinar essas ou aquelas táticas ou estratégias “político-econômicas”. Trata-se de revelar, justamente, os limites intrínsecos à própria forma política, ao próprio Estado como figura primaz da alienação política contemporânea, esse grande mediador, operador e operatório, onde o consenso parece mover a inexorável razia do espaço (como no caso apresentado), manifestando-se em suas múltiplas escalas: em toda e qualquer cidade e território deste país e deste mundo.

31 O grau zero do espaço, a sua assepsia, comportando a varredura operada pela violência da lógica, incluem a tática e a estratégia, portanto, como ações coordenadas, simultâneas, operadas, de modo a efetivar e azeitar a maquinaria da valorização do valor. Trata-se, assim, de enfrentar uma sobreposição de diversas formas de alienação, e considerar o quanto a dialética, a contra-força, reporia o movimento e a contradição como fundamentos sociais, considerando a negatividade e apontando efetivos caminhos ou vias, aberturas, de modo a enfrentar essas alienações. É o drama, sempre o drama!

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SILVA, Marcio Rufino, « Produção e reprodução: uma leitura contemporânea », Espaço e Economia [Online], 8 | 2016, posto online no dia 30 Setembro 2016, consultado o 04 Julho 2017. URL : http:// espacoeconomia.revues.org/2168 ; DOI : 10.4000/espacoeconomia.2168

NOTAS

1. “Exdiplomático buscado por el FBI: ‘EE.UU. compra a un amigo y vende a un aliado de un día para otro’”, 2 nov. 2015. Cf. https://es.rt.com/42u0. Acesso em: 3 jul. 2017. 2. “EUA buscam criar na América Latina situação militar igual à do Oriente Médio”, 13 abr. 2017. Cf. https://sptnkne.ws/edPM. Acesso em: 3 jul. 2017. Cabe registar, aqui, a interessante entrevista de Ziauddin Sardar, “reformista muçulmano” paquistanês, ao periódico português “Público”, a propósito do assim chamado “Daesh”. “O Estado islâmico sempre existiu, é a Arábia Saudita”. 7 dez. 2015. Cumpre destacar um trecho de sua entrevista: Até aos anos 1920, os wahhabitas eram

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uma seita muito minoritária e as pessoas gozavam com eles, eram considerados fanáticos iletrados sem relevância. Mas esta seita tornou-se na ortodoxia muçulmana. E hoje, há duas questões fundamentais aqui. Por um lado, os muçulmanos aceitam esta ideologia porque reverenciam a Arábia Saudita de forma acrítica. Por ser lá que estão Meca e Medina, assume-se que como o Profeta nasceu em Meca estas pessoas teriam o melhor conhecimento do islão, quando têm o pior. Por outro, as potências ocidentais, a América, o Reino Unido, a França, a Alemanha, apoiaram a Arábia Saudita e os estados do Golfo por motivos económicos e militares, eles compram as armas que estes países produzem. Ao apoiar a Arábia Saudita, ignorando o seu fanatismo, dão-lhes liberdade de acção.” Cf. https://www.publico.pt/2015/12/07/mundo/ noticia/o-estado-islamico-sempre-existiu-e-a-arabia-saudita-1716649. Acesso em: 3 jul. 2017. 3. FUSER, Igor. “A política externa do nada”, 22 jun. 2017. Cf. http://outraspalavras.net/brasil/a- politica-externa-do-nada/. Acesso em: 3 jul. 2017. 4. LEBLON, Saul. “Bye, bye, Brasil”, 27 jun. 2017. Cf. http://www.cartamaior.com.br/?/Editorial/ Bye-bye-Brasil/38336. Acesso em: 3 jul. 2017. 5. CASADO, Luis. “A Economia Política e o grande salto atrás”, 22 jun. 2017. Cf. http:// outraspalavras.net/posts/a-economia-politica-e-o-grande-salto-atras/. Acesso em: 3 jul. 2017. 6. Vale a pena continuar essa passagem. “Retomamos aqui, ainda, em uma outra perspectiva, enunciados anteriores. Entretanto, essas proposições não devem se prender literalmente. A cotidianidade, enquanto realidade a metamorfosear, contestável e contestada por sua crítica, se constata ao nível das táticas, das forças e de suas relações, ardis e desconfianças. É ao nível dos eventos, das estratégias, e dos momentos históricos que ela se transforma. Não fixamos estaticamente, portanto, um nível na vida quotidiana e em seu estudo. Isso resvalaria ou em direção ao baixo e ao trivial, ou em direção ao alto e ao eventual (no sentido estipulado). [...] Passando ao nível da estratégia, buscar-se-á como os grupos tendem a minimizar as chances de ganho máximas dos parceiros ou adversários – ou ao contrário a maximizar seu próprio ganho mínimo”. LEFEBVRE, Henri. Critique de la vie quotidienne II..., 1980 [1961], p. 139. 7. Podemos inclusive lembrar uma importante alusão de Karl Marx à figura do Estado, em seu diálogo com Bruno Bauer, em Sobre a questão judaica. “O Estado político pleno constitui, por sua essência, a vida do gênero humano em oposição à sua vida material. Todos os pressupostos dessa vida egoísta continuam subsistindo fora da esfera estatal na sociedade burguesa. Onde o Estado político atingiu a sua verdadeira forma definitiva, o homem leva uma vida dupla não só mentalmente, na consciência, mas também na realidade, na vida concreta; ele leva uma vida celestial e uma vida terrena, a vida na comunidade política, na qual ele se considera um ente comunitário, e a vida na sociedade burguesa, na qual ele atua como pessoa particular, encara as demais pessoas como meios, degrada a si próprio à condição de meio e se torna um joguete na mão de poderes estranhos a ele. A relação entre Estado político e a sociedade burguesa é tão espiritualista quanto a relação entre o céu e a terra. A antítese entre os dois é a mesma, e o Estado político a supera da mesma maneira que a religião supera a limitação do mundo profano, isto é, sendo igualmente forçado a reconhecê-la, produzi-la e deixar-se dominar por ela. Na sua realidade mais imediata, na sociedade burguesa, o homem é um ente profano. Nesta, onde constitui para si mesmo e para outros um indivíduo real, ele é um fenômeno inverídico. No Estado, em contrapartida, no qual o homem equivale a um ente genérico, ele é o membro imaginário de uma soberania fictícia, tendo sido privado de sua vida individual real e preenchido com uma universalidade irreal.” MARX, Karl. Sobre a questão judaica, 2010, pp. 40-41.

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RESUMOS

O texto a seguir inspira-se no debate aventado pela obra “O retorno da dialética: doze palavras- chave para o mundo moderno”, de Henri Lefebvre, originalmente publicado em 1986. Apresentamos o trecho onde o autor discorre sobre o termo “o lógico e o lógico-matemático”, contextualizando o rico debate filosófico implicado ao livro. Essa obra, uma das últimas publicações em vida do autor francês, remete ao conjunto de seu pensamento e nos traz uma valiosa contribuição para pensarmos os desdobramentos contemporâneos da economia mundial, no escopo de sua naturalização, tal como uma forma “sócio-lógica” e “ideo-lógica”.

El texto a seguir se inspiró en el debate de la obra “la vuelta de la dialéctica: doce palabras chave para el mundo moderno”, de Henri Lefebvre, publicado originalmente en 1986. Presentamos el trecho donde el autor discurre sobre el término “el lógico y el lógico-matemático”, contextualizando la discusión filosófica implicado en el libro. Esta obra, una de las últimas publicaciones en vida del autor francés, envía al sistema de su pensamiento y en nos trae una valiosa contribución para pensar a los desdoblamientos contemporáneos en la economía mundial, en el ámbito de su naturalización, como una forma “socio-lógica” y “ideológica” “.

Le texte suivant est inspiré par le débat de l’œuvre « Le retour de la dialectique : douze mots-clés pour le monde moderne » , signée par Henri Lefebvre en 1986. On présente l’extrait où il discute le mot-clé « le(la) logique – le(la) logico-mathématique ». L’une des dernières publications de Lefebvre, l’ouvrage nous permet de comprendre l’ensemble de sa pensée, ainsi que sa contribution pour penser les dédoublements contemporains de l’économie mondiale dans la portée de sa naturalisation en tant qu’une forme « socio-logique » et « idéo-logique. »

The following paper draws inspiration from the work “The return of dialectics: twelve keywords for the modern world”, by Henri Lefebvre, originally published in 1986. We present the excerpt where the author discourses about the term “the logical and the logic-mathematical”, contextualizing a rich philosophical debate implied to the book. This work, one of the last publications in the life of the French author, refers to the whole of his thought and makes a valuable contribution for thinking about the contemporary unfolding of the world economy, within the scope of its naturalization, as a “socio-logic” and a “ideo-logic” form.

ÍNDICE

Palavras-chave: lógico; matemático; crítica da economia política do espaço Palabras claves: lógico; matemático; crítica de la economía política del espacio Mots-clés: logique, mathématique, dialectique, critique de l’économie politique de l’espace, Henri Lefebvre. Keywords: logical, mathematical, critique of political economy.

AUTOR

MARCIO RUFINO SILVA

Mestre e Doutor em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo. Professor Adjunto do Curso de Geografia (Bacharelado e Licenciatura) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Coordenador do grupo de pesquisa “Para uma crítica da Economia Política do Espaço” (UFRRJ) e

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pesquisador do grupo “Geografia urbana: a vida cotidiana e o urbano” (USP). Pesquisador Permanente do Programa de Pós-Graduação em Geografia (PPGGEO/UFRRJ) e Pesquisador Associado do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Territorial e Políticas Públicas (PPGDT/UFRRJ). Email: [email protected]

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O(A) LÓGICO(A) – (O)A LÓGICO- MATEMÁTICA(O)

Henri Lefebvre Tradução : Marcio Rufino Silva (Professor Adjunto DEGEO/UFRRJ)

REFERÊNCIA

LEFEBVRE, Henri. Le (La) logique – (Le) La logico-mathématique. In: Le retour de la dialectique: 12 mots-clefs pour le monde moderne. Paris: Messidor/Éditions Sociales, 1986, pp. 59-74.

A lógica e as lógicas

1 Que a ciência ingressa na produção (nas forças produtivas), isso era uma afirmação já banalizada antes da publicidade da “revolução científica e tecnológica”. Esta, por outro lado, veio a seu tempo, preparada por múltiplas “condições”, circunstâncias, razões e causas (dos fracassos, relativos, da revolução política e social). O que parece menos banalizado é compreender que o(a) lógico(a) ingressou, ele(a) também, na prática social. Sem nenhuma violência? Pela única ação potente do pensamento? Não. Vislumbrou-se, conforme veremos, que existe uma relação entre violência e lógica, bem como uma violência (uma força e uma potência) própria da(o) lógica(o). E isso oculta o fato de que a lógica, enquanto forma, seja separadamente ensinada (fora da prática), seja a propósito da filosofia e de sua história, seja nas especialidades altamente técnicas (lógica operacional, teoria das estratégias etc.). Não se trata apenas da lógica operacional. Trata-se de toda ação conduzida de modo coerente, não somente a partir do individual e de tais indivíduos que dirigem esta ou aquela operação, mas igualmente no âmbito dos grupos, das instituições e mesmo de uma globalidade: o Estado (este Estado) ou o capitalismo.

2 Toda ação tem sua lógica; a extensão do termo vai mais além, já que obras importantes utilizaram esses títulos: lógica do vivente – lógica do inconsciente – lógica da sociedade,

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etc. Decorrem duas consequências da fragmentação da(o) lógica(o) em múltiplas lógicas, ou seja, em lógicas cuja diversidade não tem limites. Existem, portanto, lógicas relativas, cuja relação com a lógica (formal, rigorosa) já é um problema. No mais, se cada ser humano pratica mais ou menos claramente uma lógica, servindo-lhe ou dela se servindo, aquele não se encontra, devido a isso, menos preso nas contradições igualmente múltiplas. Ele as refuta, recusa tomá-las pelo que elas são: contradições. Ele encontra outros nomes (paradoxo, desafio, confrontação etc.). As contradições, mesmo não percebidas ou não elucidadas, não estão mais ali (aqui). A lógica se encontra atormentada pela dialética – a teoria e a prática da coerência encontram-se presas às contradições, ainda que se descarte a teoria das contradições. E isso desde o emprego (ideológico ou retórico) do discurso e das palavras. Há uma luta constante entre a(o) lógica(o) e a dialética. Esta última se encontra incontestavelmente na defensiva, já há alguns anos. Mas a mundialidade, bem como o pontual, mostram que ela não desapareceu, ainda que ela pareça obscurecida.

As exposições da dialética

3 Ela pode ser exposta (teoria, procedimento ou conceito) de várias maneiras: a partir da natureza (material) – a partir da história – e a partir da(o) lógica(o). A primeira exposição tornou-se clássica desde que Engels (discípulo de Schelling, filósofo da natureza, mais do que de Hegel, filósofo da história) retira seus argumentos do exame das forças em conflito, das lutas e da relação entre o humano e o ambiente, etc. O materialismo claramente vincula-se, então, à presença da natureza, à descoberta do determinismo (gravitação, energia). Esse vínculo com a ciência, claro e distinto no século XIX, engendrou mais tarde um dogmatismo, ele próprio ligado ao poder político, tendo suas consequências: uma recusa das descobertas realizadas do lado “burguês”, rapidamente taxadas de idealismo e de ideologia.1

4 Além disso, os argumentos nessa direção não evitam os sofismas: mais e menos, grande e pequeno, ação e reação não são contradições. Substituir a contradição, sem outras precauções, por “contrariedade”, acarreta dificuldades, especialmente quando se deseja compreender as matemáticas: o grande e o pequeno, isto é, o infinitamente grande e o infinitamente pequeno. As dificuldades de uma tal exposição e seus limites provêm do que se considera exclusivamente relações de dois termos (nas quais costuma-se dizer que tais termos se confrontam). Do mesmo modo, a luz e as trevas, o repouso e o movimento, o passivo e o ativo, o gradual e o súbito.

5 Ora, o dual introduz apenas oposições, constituindo uma estrutura e, cedo ou tarde, uma fixidez. A análise que evita esse lado redutor da reflexão dual, assim como da racionalidade unitária (identitária), sempre descobre três termos. Já para Hegel, a linguagem corrente e o intelecto, que fragmentam e reduzem, apercebem-se somente de um ou dois termos. A razão e o pensamento dialético restituem uma tríade: “Tese – antítese – síntese”. Hoje, mais de um século após Marx, a análise não pretende mais resultar em uma síntese; ela descobre três termos (ao menos). Citemos, ainda, para ilustrar novamente essa afirmação, a tríade da potência: “Ter – poder – saber”. Ou a tríade da mediação: “Voz – texto – imagem”. Ou a tríade da ação: “Determinismo – decisão – acaso”, etc.

6 A natureza? Esse antigo conceito não encerrou sua longa carreira, mas ele se desembaraça de um finalismo ingênuo e se completa com outras noções: matéria,

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energia, processo, campos etc. Estabelecer uma conexão dogmática entre “matéria” e “dialética” é arriscar uma extrapolação. Invertendo essa posição (mais “idealista” que parece, em uma primeira aproximação, pois ela põe e supõe uma espécie de essência da natureza material), pode-se dizer que uma pesquisa animada pelo procedimento dialético descobre na “natureza” dos processos o que outros procedimentos desconheceriam.

7 Essa afirmação não é suficiente. Ela remete à teoria geral das relações entre o finito e o infinito, entre o contínuo e o descontínuo, entre a repetição e o devir. Essa teoria prolonga a filosofia clássica, mas não é mais filosófica, pois ela considera a lógica e a dialética, bem como os procedimentos do conhecimento em matemática, em física e em cosmologia. Ela difere bastante da epistemologia. Esta se contenta em inventariar o adquirido; ela faz a “nomenclatura” e classifica os conceitos considerados como definidos e definitivos. No melhor dos casos, ela arranja-os em oposições em caráter limitativo, tais como o aberto e o fechado, o demonstrável e o indecidível, o lógico e o paradoxal. O que esquiva-se, de início, da(o) dialética(o). Ao passo que o procedimento (método) aqui explicitado deixa aberto (mas nunca escancarado) os campos da pesquisa em cosmologia, em física etc., ele não põe em anterioridade nenhum esquema geral e deixa espaço a descobertas e surpresas na exploração do universo.

8 Sabe-se há muito tempo que é possível expor a dialética e fundá-la sobre a história. O materialismo histórico, assinado por Marx e Engels, se define como sua descoberta crucial, como uma virada decisiva no conhecimento; implicaria, assim, essa fundação da dialética. Ainda que a relação entre o materialismo histórico e o materialismo dialético seja frequentemente admitida como autoexplicativa, enquanto exige uma elucidação.

9 Argumento: quando o essencial da história se desvela nas lutas de classes, agentes e motores do tempo histórico, aí se descobre o fundamento do pensamento dialético. Se negarmos que a dialética enraíza-se e funda-se desse modo, recusamos de vez as lutas de classes e a importância dos conflitos no tempo histórico. Abandonamos o marxismo em benefício de um racionalismo evolutivo, conciliatório e reformista desde a teoria – antes mesmo de ingressar na prática; desde então, o conhecimento da história se perde em anedotas, em fatos isolados ou em detalhes concernentes seja aos eventos, seja às instituições. Sem fio condutor. Sem eixo, nem centro.

10 Admitamos que a luta de classes tenha “animado” o tempo histórico. É necessário, ainda, acrescentar imediatamente que o esquema que representa essas lutas como uma oposição entre duas classes, sendo uma a dominante e outra a dominada, simplifica as situações, colocando uma espécie de estrutura conflituosa de dois termos.

11 Para que se dê conta disso, basta ler os escritos históricos de Marx, onde ele analisa tal conjuntura política: por exemplo, O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Esse estudo conjuntural expõe as relações de classes altamente complexas, irredutíveis a uma oposição “estrutural” polarizada, a uma luta, portanto, no sentido esquemático geralmente admitido. Haveria incompatibilidade entre as análises que opõem estruturas de classes determinadas (plebe e aristocracia, na Antiguidade – burguesia e proletariado no modo de produção capitalista) e os estudos de conjuntura, expondo uma situação concreta? Não. As noções de estrutura e de conjuntura têm uma relação dialética: em conflito e, no entanto, complementares, sob a condição de não separar o que se dá em conjunto.

12 Parece difícil caracterizar, portanto, sem redução, a história e o tempo histórico, pelas simples relações (conflituosas) de classes e, assim, fundar a dialética. É necessário adicionar a essas relações de classe a relação entre as sociedades globais e a “natureza”,

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o crescimento das forças produtivas, a inovação técnica, o movimento (conflituoso) das estruturas e das conjunturas, que corresponde à complexidade das sociedades levadas ao devir histórico. Uma consideração já anunciada reforça esses argumentos: a mercadoria surge no Ocidente, durante a Antiguidade grega, nas relações de troca entre as cidades mediterrâneas (não sem violência, pirataria, agressões, rivalidades e guerras). Ela aparece “nos poros” (Marx) dessas sociedades. Entretanto, a forma da troca, com seus meios (as moedas) não é menos produzida (ou criada, pois se trata de uma criação, a criação de uma forma) pela troca que, por sua vez, produz riqueza; as aquisições estendem o domínio da forma, fornecendo-lhe conteúdo. Serão necessários mais de vinte séculos para que a forma ganhe o mundo inteiro, no mercado mundial. O capitalismo, com suas relações específicas, aparece sobre esse fundo, o qual ele contribui para acentuar, desenvolver e mundializar.

13 Retornamos aqui sobre uma tese exposta de outro modo diversas vezes. Não haveria vastos campos e processos que a dialética permite explorar? Sem esquematizar de antemão, mas fornecendo-lhes seus conceitos? As relações dessa forma de troca (mercadoria) e de conteúdo (as coisas materiais) – as relações do mercado e da mercadoria com a formação, acumulação e extensão do capital são exploradas, são campos de pesquisa. Resumidamente, uma historicidade ligada às classes, mas irredutível a uma espécie de mecânica de classes e irredutível tanto aos eventos quanto às instituições (aos procedimentos e métodos eventuais e institucionalistas, portanto), é esclarecida “dialeticamente”.

14 Já é possível concluir. O método (o pensamento) dialético não pode nem se expor nem tampouco se fundar segundo os esquemas geralmente admitidos; nem segundo a filosofia (e a oposição “sujeito-objeto”), nem segundo a natureza e a filosofia da natureza, nem segundo a história, a filosofia da história e o materialismo histórico. Ao contrário: uma vez estabelecido, o pensamento dialético esclarece esses domínios. Ele deve se expor a partir da lógica, exigido pela lógica, a partir dos limites de sua lógica e das deficiências definidas pelo seu funcionamento e em sua incontestável eficácia.

15 À imensa positividade regida pela lógica nos diversos domínios (poderíamos dizer: no reino ou no império do lógico) se opõe uma negatividade, não menos formidável. O que caracteriza a modernidade: inverso e reverso. Aqui, não se trata de uma oposição abstrata e paradigmática, produtora de significações e de sentido, mas de um conflito prático, em profundidade: de um trabalho de destruição e de autodestruição, imanente ao “real”. Se é verdade que o que insistimos nomear ingenuamente de “crise” não se circunscreve mais ao econômico, ou a esta e àquela ideologia, essa palavra designa um vasto processo que estremece a cultura, depois o político, o econômico, o Estado e, em seguida a totalidade (constituindo essa totalidade pela via da negação, e de modo algum, como acreditaram os hegelianos e muitos outros, pela via do afirmativo e do positivo).

16 Permanece um enigma, entre outros menos insistentes, um paradoxo e uma interrogação: o destino da filosofia. Descartada como fundamento da dialética, não realizada segundo a promessa e o anúncio de Marx, como ela resistiria na incursão na “crise”? Se há “crise total”, isto é, engendrando pela via do negativo uma nova totalidade, do finito (historicamente concluído), há uma crise da filosofia...

17 Seria possível definir essa “crise”? Sim, através de certos traços da crise em geral, mas também por traços específicos. Se há “revolução cultural”, com ou sem revolução política, a filosofia pode sofrer algumas consequências. Ela se transforma. Senão, ela se

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degrada, com alguns especialistas fazendo louváveis esforços para mantê-la na sua forma “clássica”...

18 Mas, como se diz, a lógica reina. Sem divisão. Reclama-se por ela em todos os lados; ora, a lógica faz parte da filosofia. Resposta: justamente, ambas se separam; a lógica ingressa, por sua conta, no saber e na prática. A “crise” da filosofia provém, entre outras razões, dessa ascensão e desse emprego autônomo da(o) lógica(o). Emprego que se constata, que não faz mais sentido contestar. Ao contrário: é necessário aceitá-lo e tomá-lo como ponto de partida, como princípio. Mostrando as bordas, os limites da lógica. Mostrando-a presa à dialética, de modo que a situação se inverta; hoje dominante, a lógica será dominada. Para o momento, é o movimento, o devir e o processo que fazem “o objeto” da teoria: o momento no qual a situação se volta (na teoria).

19 A grande força da lógica e dos lógicos é: a) Ter buscado pensar a matemática (o que geralmente os dialéticos simplificaram, descuidando-se da matemática “de ideologia burguesa”). b) Ter posto que a matemática, sendo em essência um pensamento, ou ainda, o pensamento, seria necessário e suficiente refletir sobre ela, para responder às questões ditas filosóficas, metafísicas e religiosas. Para eliminar os problemas relacionados à incoerência do discurso, sem solução nem resposta. Porque são “efeitos de linguagem”.

20 O que há de aceitável nessas ambições, estreitamente ligadas à filosofia clássica? A filosofia continua. Sem a menor dúvida. Porém, se ela não se transforma, não sucumbirá aos rigores da lei da degradação, da lei do negativo e do mortal, que atinge toda energia mental, social e natural?

21 A questão da filosofia como tal nunca deixou de estar no centro do debate. Ela o é neste instante, aqui e agora, mais do que nunca; pois se é questão de lógica e de dialética, é que não há uma questão filosófica, mas a questão da filosofia.

22 Até porque os termos do problema se deslocam e mudam, ao longo da “crise” e na crise. Realizar a filosofia, segundo a palavra de ordem de Marx, ainda tem um sentido? A informática e a lógica caminham neste sentido – ou em sentido contrário? Pode-se ignorá-las? Desviá-las? Se a filosofia teve dificuldades em ingressar no real e no vivido, em sua forma “clássica”, não seria necessário modificar essa forma? Inventar, então, para inseri-la em um projeto global, outra forma de filosofia? É que essa invenção não faz parte da revolução cultural que prossegue (por meio das mudanças ou contra as mudanças sociopolíticas); isso será tratado mais tarde.

23 Se hoje tiramos as lições do passado histórico, não é mais apenas a matemática e a lógico-matemática sobre as quais se convêm pensar (levar ao pensamento). É também a arte. Marx propôs realizar a filosofia. Efetivado ou não, esse projeto se transformou e ainda se transforma. Não seria também a arte, inteiramente, desde os poetas e trágicos gregos até os músicos modernos, que deve entranhar-se ao vivido? Na prática e no cotidiano? O que nomeamos “cultura” caminha nesse sentido ou em sentido inverso?

Lógica e matemática

24 Nesse cruzamento particularmente complexo, itinerários se cruzam e se enredam. Qual a relação entre a lógica e a matemática? Os temas e as teorias se opõem; o empirismo lógico, cujos adeptos fizeram trabalhos notáveis, detêm fortes posições. Resumindo,

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pode-se dizer que eles insistem no rigor (absoluto) do raciocínio matemático: na demonstração. Em uma demonstração, a conclusão deve se descobrir, porém, inerente aos axiomas, princípios ou premissas. Tipo: o silogismo aristotélico, o mais próximo possível da repetição ao idêntico, da redundância, perfeitamente claro e inteligível, portanto. “Todos os homens são mortais; ora, Sócrates é um homem”. A proposição: “A é A” é clara e inteligível – óbvia, mas vazia. Como se introduz um “algo” em uma sequência de proposições tais que “A é B, ou B é C; logo, A é C”. Variante: “Se A é verdadeiro e que B seja verdadeiro, que C seja verdadeiro quando B é verdadeiro, portanto C é verdadeiro quando A é verdadeiro...” É o que introduz a noção de verdade.

25 Em resumo, uma tendência na reflexão sobre a matemática a reduz (busca reduzi-la) a uma vasta tautologia. Consideremos o zero (ou suponhamos, sem mais análise) e o um. A repetição dá o dois. Um e um são dois. Dois e um são três. Temos, portanto, todos os números, a partir dos quais se constrói (ou se deduz) a matemática, ciência da quantidade. Essa sucessão se assemelha ao que fazemos na prática imediata: colocar os objetos uns ao lado dos outros (ovelhas, grãos de trigo etc.) e contá-los. A matemática “reflete” a prática... O que não ocorre sem dificuldades. Admitamos que passemos, sem muitos problemas, da aritmética e dos números inteiros à geometria. Isso deve acontecer, no entanto, a partir de um certo número de hipóteses e de axiomáticas, como o espaço, o ponto, a linha, a superfície, as dimensões etc.

26 Mas, permaneçamos nos números. Descobre-se prontamente que eles têm “propriedades” notáveis: o par e o ímpar, os assim chamados números “primos”, etc. Propriedades que se apresentam como “fatos” e não como evidências tautológicas. Ou ainda, os números chamados (ao longo da história da matemática e do conhecimento) “irracionais” ou “imaginários”, tais como o π (relação entre o diâmetro e a circunferência, que pode se referir a um número finito de números); ou ainda , número “impossível”, mas do qual se necessita nos cálculos. Essas dificuldades aparecem desde a Antiguidade. Elas suscitam uma outra teoria, muito oposta. Os números têm uma “realidade”, que se distingue tanto da evidência quanto da realidade prática e sensível: uma idealidade. Tese pitagórica, retomada e alargada por Platão. Os números são (e têm) Ideias (uma realidade quase mística, quase divina). Essa concepção do Número (ideal, ou se preferir, substancialista, essencialista, portanto, idealista etc.) tem muita influência (por exemplo, o Número de Ouro em arquitetura etc.). O aspecto qualitativo dos números se expõe plenamente, mas padece o rigor. As “propriedades”? Busca-se descobri-las e demonstrá-las, nem sempre obtendo sucesso. Isso suscita paradoxos, a partir dos quais se leva a negar o número e mesmo a sacrossanta Verdade. Que fazer do infinito? Do número em uma sequência ilimitada de cifras, de séries infinitas? Nomeamos e classificamo-los “irracionais”. Ora, é por aí que acontece a invenção matemática.

27 É curioso constatar que a interpretação platonizante não desapareceu, revigorada nos tempos recentes, pelo fato de haver “teoremas de existência”, proposições indemonstráveis ou indecidíveis, e outras cujo “objeto” não se apresenta, ao passo que se sabe matematicamente que ele “existe”. De outra parte, a descoberta em matemática frequentemente deu a impressão de que ela atendia um “algo” pré-existente e não engendrado pela iteração, reiteração ou pela recorrência. No mais, a matemática, desde Leibniz, Newton e o cálculo infinitesimal (diferencial ou integral), pela teoria dos conjuntos, exploram o infinito. Ora, o repetitivo e o tautológico se perdem no ilimitado; dificilmente chegam a pôr o “infinito”. A tese da idealidade, portanto, encontrou defensores! Para a infelicidade deles, a aplicação da matemática ao “real” – à “prática”,

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à técnica – elucida-se mal nessa perspectiva. Ora, o prolongamento da matemática é, ao mesmo tempo, critério e problema.

28 Essa problemática seria suficiente para mostrar que a matemática não se pensa ela mesma, que ela não é “per si” e “em si” do pensamento; que haja, portanto, um lugar de pensá-la. Isso é feito em filosofia desde a aparição de teorias críticas (Kant), mas foi um pouco negligenciado ao lado “marxista”, e suscitou ou ressuscitou o empirismo lógico (associado a inovações em lógica). Adiciona-se também que esse enigma, mal resolvido há mais de cinco mil anos (o que não impediu o desenvolvimento da matemática, pelo contrário), suscitou também os paradoxos, paralelos às invenções matemáticas, colocando-os em questão, estimulando a pesquisa e, portanto, tão importantes quanto as descobertas. Desde o paradoxo de Zenão, o Eleata, incluindo o do Mentiroso (o Epimênide) e, enfim, até os paradoxos da teoria dos conjuntos (Zermelo, Gödel etc.), os paradoxos expuseram as contradições inerentes à pesquisa matemática, e que as demonstrações simultaneamente dissimulam e resolvem (assim, conforme Zenão, a relação entre o contínuo do espaço e o descontínuo dos atos ocupa o espaço: os passos de tartaruga e de Aquiles e o trajeto da flecha). Os paradoxos preparam, no interior da lógica, da demonstração e da prova pela dedução, a revanche da dialética.

29 Entretanto, a pesquisa sobre o processo de invenção matemática lentamente saiu da alternativa e do dilema: ou rigor e tautologia – ou invenção e descoberta, realidade quase misteriosa dos números. Um capítulo parece provir da noção de operador (intermediário entre a lógica “pura”, formal, e o pensamento dialético).

30 Caso famoso: conta-se que Gauss, ainda criança, com oito ou nove anos, foi conduzido pelos seus pais à escola de sua aldeia. O mestre de escola, para verificar o nível intelectual e de instrução do novo aluno, perguntou-lhe: “Um e um, isso dá...?” “Dá um”, respondeu a criança; obstinadamente. O professor, conforme se conta, o reenviou para sua casa, como débil mental. Os pais retornaram e disseram: “Mas ele já faz cálculos muitos sábios...” O professor refez a questão. Mesma resposta. A criança apenas adicionou: “Um mais um, isso dá dois”. – Ele libertou da tautologia a noção de operação, ato mental produtivo, que ajunta algo (a menor diferença) ao dado. O mais difere do e, o qual implica a simples repetição ao idêntico. O ato mental pode também remover e subtrair, cortar (segmentar, fazer um corte), fazer deslizar, ou rodar etc.

31 A noção de operador está liberada de uma prática: a operação, ato mental cumprido desde os tempos mais remotos. Ela se generaliza recentemente; as linguagens das máquinas definem as operações lógicas, antes de definir as operações próprias.

32 A teoria das formas permite elucidar o conceito de operador, sem esgotá-lo, no entanto. A forma “pura”, a identidade, A é A, vazia, tem, entretanto, uma capacidade produtiva (e não somente reprodutiva). E isso de várias formas, de modo que se apresenta imediatamente ao pensamento uma espécie de bifurcação. Em primeiro lugar, a forma pura é fonte da abstração: o rigor lógico, o mesmo, o silogismo e a demonstração, de modo que um mínimo necessário de conteúdo e de diferença, definidos como tais, ingresse na série de proposições. Segundo, na prática, a identidade engendra distintas formas, porém com o mínimo de diferença possível; “inteligíveis”, portanto, mas não sem alguns resíduos: a equivalência, a simultaneidade e a reciprocidade. Terceiro, ela engendra a ilusão filosófica concernente ao Ser idêntico (que é o que é), a Substância, a Verdade, o Absoluto. Mas essas formas ingressam na prática, conferem operações e operadores. Por exemplo, a identidade na identificação; incluindo a simultaneidade: de um lado, forma próxima da identidade e, de outro, ato mental (operação) pelo qual o

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intelecto torna simultâneo o que no tempo e no espaço aparece sucessivamente. Assim, a sequência dos números: um mais um mais um... Ou, então, o espaço de uma cidade, da informação. A “simultaneização” opera, por princípio, sobre o não simultâneo, o sucessivo; do mesmo modo, a equalização opera sobre o desigual – a reciprocidade sobre o não recíproco. Há, portanto, uma espécie de violência nessa eficácia das formas. Violência mental, que pode ter efeitos na prática. Porém, na matemática, essa “violência” não tem lugar, ela não se exerce. O cálculo matemático põe: um mais um fazem dois – dois mais um fazem três, etc, etc. E assim indefinidamente. Desse modo, um ato mental põe e simultaneiza essa sequência indefinida de números gerados uns após os outros; nascem assim as noções capitais de conjunto, de infinito demonstrável, de transfinito. A potência da forma, tornada operacional, gerou ou engendrou (não somente produziu) alguma coisa de nova. O repetitivo e a diferença têm uma capacidade criadora.

33 Dessa maneira, dissipa-se uma segunda ilusão dos filósofos, surgida após a primeira. “O Ser é”, essa evidência não somente nada explica, mas consagra o sensível, o fenomenal e o movente ao nada. Admite-se, então, que a matemática é do pensamento; que não se deve pensá-las, mas aceitá-las enquanto pensamento já ali, não somente real, mas absoluto. Então: “Dum deus calculat fit mundus” [Quando Deus calculava, fez o mundo] (Leibniz).

Matemáticas e dialética

34 Alguns grandes filósofos, dentre os quais Spinoza e Leibniz, conceberam a matemática como um vasto desdobramento, perfeitamente ordenado e rigoroso, interno a ele mesmo, do Ser: um Autômato divino. Seria ainda possível “pensar”, adotar uma tal concepção do número e do mundo, e não somente após o criticismo filosófico (Kant e seus sucessores) mas considerando as matemáticas como um “produto” (ou uma invenção, ou uma obra) do qual se pode rastrear a gênese da história? Não. Insistamos. As matemáticas não “são” o pensamento, mas é fundamental pensar as matemáticas! Ora, pode-se sustentar que, para levá-las ao “pensar”, deve-se introduzir a(o) dialética(o) e conceber desde já uma confrontação, um afrontamento (sem violência) entre a forma e o conteúdo, entre a(o) lógica(o) e a(o) dialética(o). O que torna a pôr em questão as contradições estimulantes para o raciocínio matemático, com o intuito de resolvê-los (ou aboli-los!).

35 Essa dialetização das matemáticas se inicia por algumas proposições, cujas origens remontam à Grécia e aos pré-socráticos e que, desde então, foram enunciados e denunciados, muitas vezes.

36 a) O que é o ponto? Se há uma espessura, um comprimento, uma superfície, como o que marcamos sobre a página com um lápis, toda linha, toda superfície e todo volume contém um número finito (determinável) de pontos. Se não há nenhum comprimento, nenhuma superfície e nenhum volume, não é nada. Ora, uma infinidade de nadas não faz nada! Seria, pois, ao mesmo tempo, nada e alguma coisa. Um buraco? Um vazio? A questão não se encontra nem resolvida, nem alterada. Então, o que é um ponto? Uma linha? Seria uma ficção, um sonho, um imaginário? Ou uma pura abstração? Não. É primordialmente uma forma, posta por um ato mental, que não tem nada de um a priori. É a medida que o ponto inicia, inaugura e instaura, dimensionando o espaço: o mensurável e o medidor. Pode-se dizer que um ponto, como um “zero”, marca um

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início, um começo, uma referência; isso não lhe confere ainda uma existência geométrica. Pode-se, então, defini-lo (e isso é um progresso) por um corte em uma linha. Mas o que é essa linha? Teria ela uma espessura? Essa definição não é a melhor e, de outra parte, é a mais frequentemente adotada; ela faz intervir um ato mental e, entretanto, concreto: traçar a linha, cortá-la (segmentar) e definido o ponto pelo limite. Permanece, porém, algo de irredutível: a relação entre esse “ponto” e as dimensões que ele definiu, ao numerável e ao não-numerável.

37 b) A aporia (dialética) concernente ao “ponto” se reencontra na relação (cuja Antiguidade conheceu o paradoxo) entre contínuo e descontínuo. Retomando o ato mental de corte, toda continuidade se recorta em uma infinidade de segmentos ou de partes, todas finitas. Entretanto, o contínuo não se resolve em fragmentos. Ele contém e envolve “algo” maior e irredutível: a potência do contínuo, o não-numerável, o inesgotável; isso que, no entanto, o matemático deseja apreender e que introduz em sua análise e em sua mensuração, após tê-lo nomeado. Isso acarreta uma “metamatemática” ou metateoria, na medida em que isso supõe o contínuo de inumerável ou não-numerável. O que não ocorre sem paradoxos, proposições indecidíveis, escolhas (bifurcações) entre várias matemáticas, segundo os axiomas escolhidos ou segundo a hipótese adotada (sobre “o conjunto dos conjuntos”). A exploração do “infinitamente infinito” através da aritmética dos transfinitos parece mostrar que a matemática moderna, campo ou multiplicidade de campos imensos, não pode se fechar nem ao debate, nem em direção ao começo (proposição paradoxal de Gödel: para numerar os teoremas ou os números dever-se-ia dispor deste conceito de número que se constitui) – nem em direção a um “fim”.

38 Vamos à sequência dos números inteiros. O ato mental que pôs “um mais um...”, e logo em seguida aboliu essa sucessão e os reuniu em uma simultaneidade. Assim se definiu o transfinito. Se pusermos sob um número, o 1, a sequência dos números inteiros, 1/1, 1/2, 1/3, 1/4, 1/5, 1/6 etc. ou ainda 1/1.2, 1/1.2.3, 1/1.2.3.4, etc., engendraremos novos conjuntos “transfinitos”, isto é, ao mesmo tempo finitos e infinitos, uns maiores que outros (transfinitos ordinais e cardinais). Enquanto a filosofia tentava saltar no infinito (meta- física) por um atalho – o “transensus” – o matemático, pacientemente, explora o infinito: dialeticamente, que ele o diga ou não, que ele o saiba ou não.

39 Sejam agora duas linhas retas se encontrando em um ponto O e duas outras linhas AB e A’B’ determinando dois triângulos OAB e OA’B’. Seja também uma reta partindo de O, cortando AB em C e A’B’ em C’. Em todo ponto C sobre AB corresponde um ponto C’ sobre A’B’. E reciprocamente. Há, portanto, o mesmo número de pontos sobre AB e sobre A’B’. Portanto, AB=A’B’ (quanto à potência do contínuo). Entretanto, A’B’ > B. Elas são ao mesmo tempo iguais e desiguais. O ato mental e a demonstração matemática equalizam o desigual. CQFD2.

40 c) Pode-se sustentar que os números têm propriedades qualitativas que são exploradas, simultaneamente às propriedades quantitativas, que são calculadas. Com os números “primos” e com esses singulares teoremas, os quais enunciamos e que demorou séculos para provar (teorema de Fermat). O número 12 (XII) corresponde ao cósmico, ao cíclico e ao “sagrado”, pelo papel que ele cumpre na mitologia e nas religiões, mas também a medida do tempo. Enquanto isso, o 10 e o decimal parecem se adequar bem ao linear e ao espaço; parece que é homogêneo e que tem sua métrica (medida).

41 Essas questões matemáticas não podem ser tratadas à parte de uma teoria geral da medida, que atualmente deve considerar a relatividade. Não há mais medida absoluta; toda

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medida é ao mesmo tempo mensuradora e mensurada, em nome de uma medida comum. Tenta-se fazer disso um absoluto; ora, praticamente e teoricamente, a escala humana – tamanho, tempo e ritmos – serve de começo, de referência implícita, do micro ao macro, da partícula às galáxias. Essa “dialetização” tem limites; ela fixa os limites da(o) lógica(o), mas permanece relativa: não se pode tomar nenhuma contradição por um absoluto. A matemática retira da lógica a teoria da coerência e da identidade, incluindo o procedimento da formalização, que busca resolver as contradições. A lógica tem sua força; uma sequência coerente de atos mentais. A dialética tem uma contra-força. Elas não possuem nem a mesma tática e nem a mesma estratégia. As numerações, dentre outras a binária (zero e um), tão “prática” e tão importante na construção das máquinas (para calcular – não para pensar) dão um passo adiante na formalização. Na redução do(a) dialético(a), portanto; essa é a sua revanche. Não em uma “luta” pela força, mas pelo renascimento das contradições, sobretudo no pensamento crítico que continua: o número e o pensamento do número não coincidem.

O sistema

42 A noção de sistema faz um grande uso e abuso da lógica. Ela vem de longe: da música e dos filósofos gregos, designando um conjunto de regras, de leis, de preceitos, constituindo um “todo”. A coerência exige a clausura ou fechamento desse “todo”. O que faz que cada “sistema”, uma vez constituído, busque bastar-se a si mesmo e, contudo, se difundir e se impor. Então, sobre a pressão do externo (fatos, eventos, descobertas, pesquisas) e do interno (contradições internas que se revelam “no uso”) todo sistema se rompe, cedo ou tarde. Muitas vezes, se seus pedaços são bons, pode-se remodelá-los e fazer deles outra coisa (assim com Hegel).

43 A noção de sistema se generaliza com a análise sistemática. Supõe-se que tudo o que se mantém (dura ou persevera no “ser”) constitui um sistema, que se autorregula, se restabelece após as perturbações e conserva sua identidade, através do tempo e dos problemas. Daí os conceitos, formalizados pela cibernética e a informática, de feed-back, de retroação, de equilíbrio autossustentável, de programação (softwares). E isso se estenderia aos organismos vivos, às cidades, às instituições etc.

44 Pusemos assim, não sem razão, o acento sobre a duração, em um sentido que não é mais o mesmo dos filósofos (Bergson), mas se reaproxima da “perseverança” (Spinoza). A duração resiste ao tempo. No entanto, ela torna-se. O que aprofundou o caráter dialético da temporalidade: o durável no tempo, que o devir carrega, apesar de seus esforços... A noção de sistema e de análise sistemática abusou do “sistemático”, generalizando-o. O conceito, entretanto, evolui: sistemas abertos – recepção e perda de energias (Prigogine). À vitória do lógico sucede uma contraofensiva dialética, sobre esse preciso terreno.

Lógica e ideologia

45 De onde provêm representações que não se classificam nem nas utopias e nos sonhos, nem no imaginário e na ficção? A ideologia sairia da ideologia, e assim por diante? Porém, como ela se mantém e como se difunde, enquanto o absurdo da ideologia aparece cedo ou tarde (os “preconceitos”, por exemplo, o racismo, ou ainda o individualismo “puro e simples” etc.)? As ideologias deteriam a interpretação errônea

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dos fatos científicos? Ou da linguagem? Ou brutalmente de interesses, referentes a uma classe (dominante)? A questão permanece aberta, dada a força das ideologias neste mundo atual, enquanto certos ideólogos gritam para proclamar seu fim (diante da ciência, da técnica, da informação, da “transparência”).

46 Hipótese: ao menos uma parte das ideologias nasceriam não mais do(a) lógico(a), mas de um abuso de lógica; elas sairiam assim da lógica, por extrapolação, identificando isso a aquilo: tal fato particular, tal fato individual, ao ser, à essência, à substância – tal indivíduo ao chefe, ao herói, ao deus. Conduzindo ao absoluto (o que se faz correntemente); avolumando a importância de uma constatação. Que de tais procedimentos depende o conhecimento crítico, é pouco necessário dizê-lo. Entretanto, eles não ocorrem sem perigo: fáceis, aparentemente legítimas, logicamente, enquanto eles saem do lógico, de tal lógica parcial e tendenciosa.

47 Pela ideologia (os ideólogos) por ela gerada, ainda que ela se oponha e os combata enquanto extrapolações e passagens inconsideradas aos limites, a(o) lógica(o) não escapa às rupturas no devir. Sequer a lógica escapa à dialética, que ela mesma origina e igualmente combate (não sem confusões), e que cedo ou tarde a faz romper!

48 Enquanto rege os “complexos discursivos”, o(a) lógico(a) se opõe também às metáforas. Ele os interdita: sem rigor, sem alcance. Contudo, não haveria linguagem sem metáforas. Constituída metamorfose das sensações e do percebido (ao qual regressa), a linguagem – isto é, o complexo discursivo – mistura o lógico e o tautológico com as metáforas e as ideologias. Quando se torna poesia ou ação criadora, passa da metáfora à metamorfose (incluindo isso e supondo aquilo).

NOTAS

1. A esse respeito, vale a pena mencionar um trecho do Prefácio à Segunda Edição (1969) de “Lógica Formal, Lógica Dialética” (originalmente publicado em 1947), de Henri Lefebvre, a respeito da interdição de seu projeto, intitulado Tratado de Materialismo Dialético, o qual, segundo o autor, seria publicado em oito volumes. Lógica Formal, Lógica Dialética, assim, corresponderia ao primeiro volume. Vejamos as razões do aborto do projeto. “Em pleno período stalinista, agravado pelo ‘zdhanovismo’ [referência a Andrei Jdanov (1896-1948), correligionário político do líder soviético Josef Stálin (1878-1953)], foi lançada na França uma palavra-de-ordem: ciência proletária contra a ciência burguesa. Uma palavra-de-ordem que – como diziam – era justificada pela situação mundial e transportava para o terreno teórico a luta de classes prática (política). Este volume, que se exigira não ser publicado numa editora ‘burguesa’ e que passava por uma vitória sobre os fanáticos stalinistas (a leitura e a exegese de Stalin eram suficientes, segundo eles, para a ‘formação ideológica’), este volume sofreu, desde o seu aparecimento, as mais severas críticas. Era acusado de não contribuir para a elaboração de uma lógica proletária, revolucionária, socialista. Os ideólogos, pretensamente marxistas, que defendiam essa ‘orientação’, se assim podemos chamá-la, não pediam a demonstração da lógica inerente ao mundo da mercadoria e à sua explicitação. Não pediam uma análise da coesão interna, malgrado as contradições, da sociedade burguesa (ou da sociedade socialista). Não. O pensamento deles, se ousamos dar-lhe esse nome, pretendia-se mais radical. Exigiam que uma lógica, enquanto tal,

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apresentasse um caráter de classe. E, se ela não podia ter ou receber esse caráter, então rejeitavam a lógica. Tendo o autor declarado que não compreendia as exigências que lhe eram feitas, nem como era possível substituir por uma verdade proletária o princípio da identidade (A = A) ou a identidade (a + b)² = a² + 2ab + b², veio a ordem de interromper a obra começada. Ou seja: o editor rompeu o contrato. [...] Entre as condenações, ocupava lugar destacado a de ter “hegelianizado” a dialética marxista. Condenação inexata e que atestava uma grande ignorância. Para refutar a acusação, bastava considerar o lugar concedido às matemáticas no conhecimento. O raciocínio matemático aparece no trajeto que vai do abstrato (elaborado) ao concreto (conhecido). Ele se liga à lógica dialética. Como essa, é mediador entre a forma e conteúdo. Em troca, Hegel rechaçou de sua filosofia o raciocínio matemático, impregnado – em sua opinião – de arbitrariedade, de construtivismo irreal. Ele afirmava assim o direito absoluto da dialética especulativa.” LEFEBVRE, Henri. Lógica formal, lógica dialética. 5ª ed. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. A esse respeito, ver também HESS, Rémi. Henri Lefebvre et l’aventure du siècle. Paris: Éditions A.M. Métaillé, 1988, especialmente o capítulo 12 (Science « bourgeoise » et science « prolétarienne »), onde Hess expõe um importante sentido à recusa de Henri Lefebvre ao dogmatismo stalinista, expondo a problemática da recusa oficial do regime stalinista à genética “ocidental” e “burguesa”, amparado nas pseudoteorias do biólogo e agrônomo ucraniano/soviético Trofim Lysenko (1896-1978). 2. CQFD (ce qui fallait démontrer): O que era preciso demonstrar.

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Trilhas de Pesquisa

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“Praias privativas”: as formas de fragmentação sócio-espacial no município de Mangaratiba-RJ “Plages privées” : les formes de fragmentation socio-spatiale dans la municipalité de Mangaratiba-Rio de Janeiro Playas privadas: formas de fragmentación socio-espacial en el municipio de Mangaratiba-RJ “Privative Beaches”: the forms of socio-spatial fragmentation in the city of mangaratiba-Rio de Janeiro

Raiza Carolina Diniz Silva

Introdução

1 A Região da Costa Verde1 constitui o mapa turístico do Rio de Janeiro, compreendendo a vasta área que compreende a paisagem costeira do extremo sul do estado do Rio de Janeiro e o extremo norte do litoral de São Paulo, cercada pela Mata Atlântica, com relevo acidentado, devido à proximidade da Serra do Mar. Lugar de cenários belíssimos, trata-se de uma região muito explorada, sobretudo pelo turismo. Na faixa fluminense desta região, os municípios que a integram são: Mangaratiba, Angra dos Reis e Paraty.

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Figura 1: Região da Costa Verde.

https://oglobo.globo.com/brasil/no-vale-vizinhos-do-paraiba-do-sul-nao-tem-abastecimento-dagua- adequado-13992230.

2 Mangaratiba é o município da região mais próximo da capital do Rio de Janeiro e desde os primórdios da sua ocupação assumiu caráter veranista, sendo pouso e área de lazer a população das áreas mais centrais do Rio de Janeiro. É composto por seis distritos: Itacuruçá, Muriqui, Praia Grande, Mangaratiba, Serra do Piloto e Conceição de Jacareí. Todos eles possuem similaridades na paisagem que permitem a exploração do setor turístico-hoteleiro, movimentando a economia do município.

3 Há muito tempo, o município já apresentava seu grande potencial turístico; todavia, a especulação imobiliária vem se expandindo massivamente, produzindo o espaço de Mangaratiba e constituindo formas de fragmentação pautadas na diferenciação de classes e no uso exclusivo de bens comuns.

4 Essa pesquisa busca evidenciar os condicionantes da sociedade contemporânea que engendram esse processo de privatização alicerçado na cultura do individualismo. O trabalho dialoga com autores como Lefebvre (1991), Santos (1985 e 2006), Corrêa (2000), Carlos (2013), entre outros, que discutem a valorização do espaço e as consequências sócio-espaciais na relação do valor de uso e valor de troca. A base metodológica é calcada nas quatro categorias de análise propostas por Milton Santos (1985): forma, função, estrutura e processo, que compreendem a metodologia aplicada para a observação do espaço do Município de Mangaratiba, o qual possibilitou definir diferentes formas de fragmentação sócio-espacial, apresentando estruturas e processos distintos.

5 Por fim, este trabalho se justifica pela necessidade de se avaliar a dinâmica da construção de condomínios fechados na zona costeira do Município de Mangaratiba, inviabilizando o acesso da população que não pode pagar por esse espaço, tornado um bem de consumo passível de venda, no qual se agrega valor à medida que mais próximo do natural ele estiver. A valorização é justificada pelo discurso ideológico de que a “qualidade de vida”, que estaria restrita a esses ambientes que dispõem da proximidade natureza. Nesse campo, a pesquisa busca responder os questionamentos norteados pela

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privatização das praias, onde a ação do capital transforma a natureza em mercadoria e direciona o uso exclusivo desse bem comum.

Análises preliminares: contribuições de Henri Lefebvre e Milton Santos para o debate metodológico desta pesquisa

6 O espaço, ao longo da história do pensamento geográfico, assumiu diversas posições quanto ao seu papel na ciência geográfica. Na década de 70, o conceito ganha força com as obras de Henri Lefebvre, pois o espaço começa a ser tratado como produto e produtor das ações da sociedade, pois envolve as contradições da realidade. Sendo assim, o espaço na sociedade capitalista é o meio e o modo, ao mesmo tempo, de uma organização do quadro de consumo, cuja reprodução da força de trabalho se manifesta por meio das contradições (BRITO e CASTELANO, 2014). Lefebvre nos ensina a pensar o espaço como lugar onde as relações capitalistas se reproduzem e se localizam com todas as suas manifestações de conflitos, lutas e contradições.

7 A análise metodológica de Lefebvre ultrapassa, desta maneira, a concepção de espaço como produto e centra-se no processo de produção do espaço. É aqui que emerge a formulação do conceito de reprodução das relações sociais de produção capitalista e a centralidade desempenhada pelos conceitos de espaço social e de vida cotidiana para a compreensão de tal dinâmica de reprodução (CARDOSO, 2011).

8 Quando Henri Lefebvre propõe o “direito à cidade”, por exemplo, isto se desdobra na revelação da contradição do espaço entre valor de uso e valor de troca. No caso do estudo em questão, percebe-se como a cidade funciona como mercadoria e o mercado imobiliário encontra no espaço uma maneira de acumular capital. Esse espaço mercantilizado implica diretamente aos acessos, que agora vão ser restritos à iniciativa privada e àqueles que podem pagar. O valor de uso, como condição necessária a realização da vida (CARLOS, 2013), está sendo superado pelo valor de troca, implicando no encolhimento da esfera pública. Afinal, “a proclamação e a realização da vida urbana como reino do uso (da troca e do encontro separados do valor de troca) exigem o domínio do econômico (do valor de troca, do mercado e da mercadoria)” (LEFEBVRE, 1991, p. 139).

9 Aliada à temática do direito a cidade, podemos alentar a uma espécie de “direito à natureza”, evidenciando de que maneira a natureza entra na esfera de valor de troca, assume papel mercadológico e é vendida em conjunto com os lazeres que a mesma pode oferecer. Constitui-se uma natureza artificializada passível à lógica do mercado; no caso, as praias representam papel fundamental para a reprodução desse discurso. Afinal, muito estranhamente, o direito à natureza (ao campo e à natureza pura) entrou para a prática social há alguns anos em favor dos lazeres. [...] Estranho percurso, dizemos: a natureza entra para o valor de troca e para a mercadoria; é comprada e vendida. Os lazeres comercializados, industrializados, organizados institucionalmente, destroem essa “naturalidade da qual as pessoas se ocupam a fim de trafica-la e trafegar por ela”. (LEFEBVRE, 1991, p. 117)

10 Milton Santos, em sua concepção de espaço social, também contribui para o entendimento das dinâmicas contemporâneas no espaço, ou simplesmente, formação espacial. Santos explica que uma sociedade só se torna concreta através de seu espaço, que ela produz, e por outro lado, o espaço só é compreensível através da sociedade. Em

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realidade, o espaço organizado pelo homem desempenha um papel na sociedade, condicionando-a, compartilhando do complexo processo de existência e reprodução social (CORRÊA, 2000, p. 28).

11 Santos (2006, p. 63) aponta a importância da análise espacial no processo de produção e reprodução das relações sociais, que considera que o “espaço é formado por um conjunto indissociável, solidário, e também contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados isoladamente, mas como o quadro único no qual a história se dá”. Milton Santos ainda estabelece categorias de análise do espaço que devem ser consideradas a partir de suas relações dialéticas: a forma, que é o aspecto visível, exterior de um objeto, como, por exemplo: casa, bairro, cidade e rede urbana; a função, que implica um papel a ser desempenhado pelo objeto criado, numa relação onde a forma é criada para desempenhar uma função; a estrutura, que é a natureza social e econômica de uma sociedade em um dado momento do tempo; e o processo, que é a estrutura em seu movimento de transformação ao longo do tempo. Assim, forma, função, estrutura e processo são quatro termos disjuntivos associados a empregar segundo um contexto do mundo de todo dia. Tomados individualmente, representam apenas realidades parciais, limitadas, do mundo. Considerados em conjunto, porém, e relacionados entre si, eles constroem uma base teórica e metodológica a partir da qual podemos discutir os fenômenos espaciais em totalidade. (SANTOS, 1985, p.71)

12 Expostas mitologicamente, tais categorias oferecem as trilhas para esta pesquisa. No caso de Mangaratiba observam-se diferentes formas de fragmentação sócio-espacial, onde cada uma desempenha sua função específica no cenário, de gênese distinta, que engendraram o processo de produção espacial do município.

13 Além disso, é de fundamental importância compreender o atual papel do espaço frente à lógica de acumulação e de como ele se comporta e se produz submetido ao capitalismo, em tempos de crise do espaço público que aqui se revela, sobretudo, na “privatização” das praias. A ótica mercantil herdada da indústria (CARLOS, 2013, p. 98) se materializou no solo urbano a partir dos valores agregados determinados pelo mercado imobiliário, transformando a todos em consumidores. Nesta condição, assume-se o espaço como valor de troca, ainda que se ressalte que um valor se sobreponha mas anule o outro, funcionando ao mesmo tempo e dialeticamente. O espaço subordinado à lógica da mercadoria – e posteriormente também transformado ele mesmo em uma mercadoria – é passível de ser fragmentado, homogeneizado, hierarquizado, tornado um espaço alienado e fonte de alienação.

14 Esse novo modelo de cidade mercantilizada que se configura novas formas de apropriação do espaço que agregam valor e o tornam exclusivos a uma parcela da população que pode ter acesso. A fragmentação espacial se reverbera nesse espaço assumido como valor de troca e fundamenta a produção do espaço urbano. Ou seja, transcende a concepção de propriedade privada em forma de moradia e começa a alcançar novos espaços, que seriam responsáveis pela manutenção da cidade, promovendo a socialização e a reprodução das práticas sociais, que são os espaços públicos.

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Fragmentação sócio-espacial: os Condomínios Fechados

15 As diferenças sociais expressas no espaço das cidades contemporâneas ganham novas formas que tornam complexos os estudos da morfologia urbana. Como já mencionado, são dominantes as ordens e valores do solo urbano, que acirram as diferenças sociais, tornando cada vez mais difícil imprimir no espaço essa distância social.

16 Caldeira (2000), quando estuda as formas de segregação do espaço de urbano em São Paulo, atribuiu três formas distintas que evoluíram ao longo do tempo: uma relativa ao tipo de moradia; uma quanto ao distanciamento espacial, como segregação sócio- espacial; e por fim, com a intensificação da segregação, a fragmentação sócio-espacial. A distância espacial já não é suficiente para explicar o processo de segregação, pois uma nova dinâmica assume o papel de produção do espaço urbano, que o divide em porções com realidades distintas. Entretanto, essas realidades sociais, mesmo que diversas, coexistem em um mesmo espaço.

17 Diante das contribuições da autora e inúmeras citações do conceito de fragmentação ao longo da pesquisa, é possível concluir que este será o objeto para entender o processo de produção do espaço de Mangaratiba. Logo, pode-se afirmar que o conceito de segregação sócio-espacial foi complexificado por um tipo atual de morfologia estruturada em fragmentos.

18 Segundo Spósito (2013), para ocorrer segregação é necessário que as formas de diferenciação levem a uma expressão espacial forte e radical. No caso de Mangaratiba essas formas de diferenciações correspondem aos condomínios fechados destinados às classes mais abastadas que vêm se instalando em seus distritos. Os condomínios fechados têm por característica comum a tendência de homogeneização do espaço interno – em contraste com a heterogeneidade do espaço – para além dos muros e cancelas. Isto pode implicar em confusão quanto ao conceito a empregar, já que as parcelas do espaço urbano às quais se associa a segregação caracterizam-se por forte homogeneidade interna, mas a autora chama a atenção para o fato de que essa constatação é insuficiente, pois pode haver homogeneidade interna sem ocorrer segregação.

“Costa Verde”: O Município de Mangaratiba

19 O município de Mangaratiba está localizado no estado do Rio de Janeiro, numa região conhecida como Costa Verde, que faz parte do Programa de Regionalização do Turismo, do Governo Federal, e é uma das áreas turísticas do Estado do Rio de Janeiro. Consiste em uma faixa costeira que se estende do litoral sul do estado do Rio de Janeiro ao litoral norte do estado de São Paulo. Mangaratiba é um dos primeiros municípios que englobam essa região, muito peculiar pela vasta presença da Mata Atlântica, na qual as cidades se situam entre o mar e a estrutura rochosa da Serra do Mar, e é muito desejada por estar tão perto da cidade do Rio – aproximadamente 85 km da capital – e possuir potencial turístico expressivo. Possui seis distritos, sendo o primeiro o distrito-sede, Mangaratiba, seguido de Conceição de Jacareí, Itacuruçá, Muriqui, Serra do Piloto e Praia Grande.

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Figura 2. Mapa de localização do Município de Mangaratiba.

Fonte: Elaborado pela autora.

20 A população de Mangaratiba não é composta em sua maioria por residentes da região. Por estar tão próximo da capital e ter desempenho turístico relevante, há muitas residências de veranistas ocasionando uma maior dinâmica no município com entrada e saída de pessoas, sobretudo nas altas temporadas. Segundo o censo do IBGE (2010) a população permanente correspondia 37 mil habitantes (88% urbana), mas estima-se que na época de temporadas a população total ultrapasse a 100 mil habitantes. Conforme o censo, existe no município 32 mil domicílios, dos quais apenas 36% tem ocupação permanente, 56% são temporários e 8% vagos. Os principais núcleos urbanos são a sede (Mangaratiba) e Muriqui, que juntas respondem por 70% dos domicílios.

21 Para compreender o uso do solo de Mangaratiba, há que se observar os diferentes segmentos turístico-imobiliários e defini-los, pois cada um desempenha um papel específico. Ainda que todos façam uso de cancelas e guaritas, usem a natureza como marketing e “privatizem” praias, há uma relação distinta na função de cada forma de enclave.

22 Uma forma de segregação estaria destinada ao uso para veraneio, que constitui aquela em que a maioria procura. Devido às vantagens locacionais do município – proximidade da cidade do Rio de Janeiro, cortado pela Rodovia Rio-Santos etc. – e por atrair grande contingente que busca na Costa Verde ofertas de lazer e turismo, os condomínios fechados se mostram úteis a esse estilo de função, pois oferecem segurança, algo fundamental para uma residência que será utilizada esporadicamente. Além disso, a exclusividade procurada por esses condôminos, que buscam fugir do caos urbano e almejam a calmaria e momento de contemplação da natureza, poderia ser ameaçada caso estivesse em contato com outras pessoas. Todo esse discurso de busca de tranquilidade e “qualidade de vida” justifica a crescente instalação desses segmentos na

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região. Alinha-se a isto a crescente proposta de condomínios ecologicamente corretos capazes de possibilitar um modo de vida sustentável, portanto, com indicações de preservação da natureza. Observa-se exemplos claros em todos os distritos, como o Condomínio Marina, em Itacuruçá, Fazenda Muriqui, no bairro homônimo, Condomínio Reserva Ecológica do Sahy, no distrito de Praia Grande, entre outros.

Figura 3. Condomínio Marina no distrito de Itacuruçá.

Fonte: Acervo pessoal

23 Outra forma de segregação consiste na de uso residencial – alguns compartilham dos mesmos segmentos destinados ao veraneio – sob a mesma ótica de segurança e proximidade da natureza, agora se soma ao fato de escolher “morar bem”, e isso implica diretamente na decisão final do consumidor do espaço, no momento de optar por mais “qualidade de vida” em ambientes ditos ecologicamente corretos

24 Esses espaços “exclusivos” selecionam economicamente o perfil dos moradores, segrega socialmente e criam muros concretos e simbólicos para com o entorno; além disso, implicam o uso do “bem-comum” como quintal de suas próprias casas, simplesmente pelo fato de chamar de “minha natureza”, característica comum da dita sociedade pós- moderna baseada no individualismo.

25 Uma terceira forma de segregação observada no município é fundamentada no turismo hoteleiro, neste caso, os resorts. Eles estão ganhando força nos municípios e se espalhando por todos os distritos. Os pacotes vendidos oferecem praias privativas e locação no coração da Mata Atlântica. Mangaratiba cumpre com os requisitos ideais para estas estâncias turísticas destinadas ao lazer, que buscam áreas afastadas dos centros urbanos, preferencialmente ricas em áreas verdes, oferecendo atividades recreativas, de relaxamento e entretenimento. O caso dos resorts na região da Costa Verde seria a mais grave das formas, por justamente ser a que menos propicia as trocas

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entre usuários e o lugar onde estão. Geralmente são vendidos pacotes a um público de fora, que ao passarem pelos portões encerram qualquer relação com o ambiente exterior, tendo acesso a tudo que desejam pelo sistema all-incluse (tudo incluso). Exemplos desses segmentos estão associados a grandes grupos hoteleiros internacionais, como o Club Med Rio da Pedras, pertencente ao grupo francês Club Méditerranée; Portobello Resort & Safari, dentre as extravagâncias oferecem praias privadas com marina e safari com animais exóticos; Porto Marina Resort, do grupo Mont Blanc; Porto Real Resort, com clube e uma piscina ocêanica.

Figura 4. Piscina oceânica do Porto Real Resort.

Fonte: http://www.portorealresort.com.br/fotos.html.

26 É importante ressaltar, que a definição de três formas de fragmentação sócio-espacial do Município foi um método para melhor exemplificar as diferentes funções desempenhadas nesses enclaves. Porém, o uso de cada forma não se limita a sua respectiva função, pois há em formas destinadas ao veraneio o uso residencial, como também, em resorts espaços de loteamentos destinados a uso residencial. A questão que deve ser debatida é a ilegalidade desses empreendimentos no uso restrito de praias, instalando-se estrategicamente em locais favoráveis a fragmentação.

Uma geografia fragmentada em Mangaratiba

27 Situada entre encosta da Serra do Mar e a faixa costeira, Mangaratiba possui inúmeras bacias hidrográficas cujos rios cortam os diferentes distritos ao encontro ao mar. Sabendo disso, é possível observar de que forma os empreendimentos imobiliários de cada distrito se aproveitaram deste artifício do espaço geográfico para constituir barreiras físicas que reafirmem o processo de fragmentação.

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Figura 5. Figura de drenagem do Município de Mangaratiba e suas principais bacias hidrográficas.

Fonte: http://www.mangaratiba.rj.gov.br/portal/arquivos/plano-municipal-saneamento-basico/pmm- pmsb-abastecimento-agua-esgotamento-sanitario.pdf.

28 A figura acima apresenta as principais bacias hidrográficas que cortam os centros urbanos de cada município. Considerando as bacias do Rio Cachoeira em Itacuruçá, do Rio Prata em Muriqui, do Rio Sahy, na Praia Grande, observou-se que as mesmas estabeleciam limites de acesso e repartiam a área do condomínio e a área urbana do distrito.

29 Os condomínios se instalam bem a frente das praias, paralelo a faixa costeira e os muros e cancelas impedem o acesso de pessoas não autorizadas à praia. Mas como limitar o acesso por quem caminha pela praia? A saída pode estar no próprio curso de drenagem dos rios.

30 No que tange às praias, seu regime jurídico é fixado pela referida Lei nº 7.661/88 que instituiu o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro (PNGC), que assim decreta em seu art. 10: “Art. 10. As praias são bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido, ressalvados os trechos considerados de interesse de segurança nacional ou incluídos em áreas protegidas por legislação específica. § 1º. Não será permitida a urbanização ou qualquer forma de utilização do solo na Zona Costeira que impeça ou dificulte o acesso assegurado no caput deste artigo. § 2º. A regulamentação desta lei determinará as características e as modalidades de acesso que garantam o uso público das praias e do mar. § 3º. Entende-se por praia a área coberta e descoberta periodicamente pelas águas, acrescida da faixa subseqüente de material detrítico, tal como areias, cascalhos, seixos e pedregulhos, até o limite onde se inicie a vegetação natural, ou, em sua ausência, onde comece outro ecossistema.”

31 Compreendendo que a Zona Costeira consiste no espaço geográfico de interação do ar, do mar e da terra, incluindo seus recursos renováveis ou não, abrangendo uma faixa marítima e outra terrestre, é possível compreender a ilegalidade desses condomínios fechados que se instalam em lugares indevidos e limitam o acesso ao resto da população. Colocam em pauta a esfacelamento das relações sociais e a crise do espaço

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público. Deste modo, a lei assegura a praia enquanto valor de uso para seus habitantes, não sendo permitido restringir – através de condomínios, casas particulares, hotéis ou qualquer que seja – o acesso à areia da praia e ao mar. (RIBEIRO, 2013, p.20) Na concessão de direito real de uso de ruas, praças, espaços livres, áreas verdes e institucionais para a formação dos loteamentos fechados, impera o desejo dos moradores na sua utilização privativa, de cunho individual (sossego, segurança e confortos pessoais), contrapondo o interesse privado ao coletivo, porque essas áreas públicas estão vocacionadas ao uso comum do povo. (FREITAS, 1998, p.17)

32 São nesses principais distritos que é possível observar essa tendência estratégica de instalação dos empreendimentos, pelo fato de serem os distritos mais adensados e que dividem o mesmo espaço com as áreas centrais dos mesmos. Porém existem condomínios mais ao sul do município, após o primeiro distrito, seguindo pela BR-101 que estão mais isolados do núcleo urbano, áreas preferíveis dos resorts, que usam do mesmo artifício de barreira física para constituir os seus “condados” e aproveitam para instalar marinas privativas com livre acesso ao mar.

Figura 6 – condomínio Fzenda Muriqui no distrito de Muriqui

Fonte : Wikimapia. Acesso em 30 de abril de 2017

33 Na imagem é possível observar a fragmentação nítida do espaço urbano, a direita do condomínio Fazenda Muriqui está o distrito de Muriqui e sua orla que é interrompida pela foz em estuário de um fluxo de drenagem que foi claramente retificado, criando um canal que vai de encontro ao mar (Figura 6). Com isso a orla a esquerda da foz é (in)diretamente privada ao uso comum. O acesso a Fazenda Muriqui pode ser feito de duas formas: pelo próprio centro do distrito ou pela saída para BR-101, que favorece aos condôminos que não querem entrar em contato com a realidade externa.

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Figura 7 – Praia do Sahy e os condomínios fechados

Fonte : Eikimapia. Acesso em 30 de abril de 2016

34 No caso da Praia do Sahy (Figura 7), no distrito da Praia Grande, a especulação imobiliária está atuando fortemente na área com a instalação de diversos segmentos imobiliários, são vários condomínios um próximo ao outro e dos dois lados da BR-101. No lado da praia, há um conjunto de condomínios destinados à classe média-alta, casas de alto padrão que seguem a mesma linha de fragmentação observada nos outros distritos. A área em destaque amarelo, no canto esquerdo da imagem, representa a Praia do Sahy que está ao acesso de todos, é uma pequena e estreita faixa de areia, enquanto na margem direita à foz do rio os condomínios se instalaram constituindo suas áreas privativas.

35 Outro marco para o município no processo de fragmentação sócio-espacial está anunciada com a chegada do empreendimento Alphaville Costa Verde. O Grupo Alphaville conhecido por propor cidades paralelas em grandes empreendimentos horizontais, bairros planejados e núcleos urbanos. A empresa vende mais que lotes, vende uma marca de morar sustentavelmente, o que à leva agregar mais valor do que os outros condomínios. A ideologia do grupo Alphaville objetiva-se em criar uma mercadoria para o setor imobiliário que preze por um estilo de vida bucólico e produtor de uma sociabilidade de auto-segregação que se manifesta em uma dinâmica de vida que busca a auto-suficiência para dentro dos muros do próprio loteamento (CALDEIRA, 2000).

36 Aliado a proposta sustentável do condomínio é possível observar que segue a mesma tendência dos outros condomínios se aproveitando de áreas que favoreçam o rompimento e a descontinuidade no espaço geográfico. O condomínio está localizado ao lado do Portobello Resort & Safari, no distrito de Conceição de Jacareí, numa área privilegiada por ser a parte mais aplainada do município o que favorece a construção desses condomínios horizontalizados.

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Figura 8 – imagem ilustrada da localização do Alphaville Costa verde

Fonte : Fonte: http://www.brasilbrokers.com.br/827639/imovel-novo/alphaville-costa-verde.html

37 A partir da imagem ilustrativa desse empreendimento recém-chegado no município, conclui-se que há sim um ponto comum na instalação desses segmentos imobiliários. Mas uma vez é notória a utilização dos artifícios físicos da paisagem como condicionantes no processo de fragmentação. Estabelecem-se limites e constituem porções corroborando para que o discurso mercadológico de isolamento, paz e tranquilidade sejam alcançados ao consumidor, além de facilitar na construção de marinas próprias, na qual facilitem a saída e entrada dos moradores ao mar explorando o turismo náutico da região. A natureza protege tais empreendimentos!

38 Para fortalecer a pesquisa no campo geográfico, torna-se necessário o olhar crítico da paisagem não desassociando os objetos físicos e humanos que auxiliam na produção do espaço. No caso de Mangaratiba, é exemplar o uso da paisagem na formulação de territórios independentes no município estreitando as desigualdades sociais, e uma abordagem da complexidade a partir de uma perspectiva geográfica torna-se de fundamental importância para o entendimento da relação homem-natureza. O que revela como a natureza está subjugada as ações humanas.

Considerações Finais

39 A produção do espaço das cidades tem seguido uma lógica capitalista de acumulação, com o fausto do individualismo e da propriedade privada. Neste panorama, os condomínios fechados estão fazendo parte do cenário urbano e ratificam essa tendência mercadológica do espaço. Porém, com esta pesquisa, foi possível observar que essa produção capitalista não está centrada apenas nos grandes centros urbanos. Cidades menores e com grande potencial turístico vem experimentando essa nova face do capital. Mangaratiba, além de se situar em uma posição média entre dois grandes centros urbanos e ter facilidade de acesso devido à proximidade de grandes eixos viários importantes no país, possui paisagens peculiares, pois se localiza entre escarpa da Serra do Mar e a faixa litorânea. Mesmo se tratando de um município pequeno, com aproximadamente 40 mil habitantes (IBGE, 2010), a especulação imobiliária vem

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atuando massivamente nos últimos dez anos. Houve uma grande expansão dos condomínios fechados, sobretudo os voltados para moradia, que estão associados ao aumento da insatisfação da vida nos grandes centros urbanos. Por estar tão próxima da capital do Rio de Janeiro, a cidade tem sido reduto de uma população que busca se afastar do caos urbano e encontrar locais que os assegurem o ofereçam atributos como lazer, tranquilidade e proximidade de áreas verdes. Esses seriam os itens necessários para se adquirir “qualidade de vida”, é nesse campo que o setor imobiliário viu formas de se propagar construindo novas demandas na sociedade.

40 Os espaços destinados a veraneio, que fazem parte desde a ocupação do município, e passam a coexistir com condomínios voltados para uso residencial, que tem mudado o perfil socioeconômico da região. Os resorts seriam outra forma observada no município que possui uma função um pouco diferente, pois se tratam de estâncias turísticas que visam o entretenimento e o lazer, e os consumidores desse espaço tem outro objetivo com a cidade de Mangaratiba, adentram os portões do empreendimento e usufruem da natureza e do lugar. Entretanto, não há relações com o ambiente externo, pois há, no ambiente interno, a provisão de tudo que é necessário. Apesar das funções serem distintas em cada forma, o processo e a estrutura se assemelham. Seja para morar, ficar por uma temporada, ou passar um final de semana nos resorts da região, é possível identificar características que ratifiquem o processo de fragmentação do espaço e a privatização da zona costeira de Mangaratiba.

41 Os muros altos, as cancelas, as guaritas, o grande aparato de segurança e a necessidade de identificação revelam a intencionalidade desses equipamentos imobiliários na tentativa de isolar e auto-segregar seus consumidores. Eles usam do espaço do município e o monopolizam da natureza local, porém não compartilham do mesmo espaço, justamente por não propiciar a troca nas relações sociais, restringindo o ambiente interno dos condomínios para os usuários que são capazes de pagar. As praias no litoral da Costa Verde, em especial em Mangaratiba, não representam o principal destino de sol e praia do Brasil; referimo-nos às praias urbanas, próximo aos centros dos distritos, que estão localizadas na Baía de Sepetiba, onde há um fluxo intenso de navios devido aos portos na região; entretanto, as praias das ilhas são bem mais atrativas e são elas que representam o potencial turístico da região. Em contrapartida, o turismo náutico, acaba por poluir ainda mais as praias urbanas.

42 Mesmo não estando no ranking das praias mais belas do litoral do Brasil, ainda sim, há uma grande procura pela área; pode-se questionar se tal interesse surge ao se perceber que as praias da região são privativas ao uso comum dos mais abastados. Trata-se da tendência da sociedade pós-moderna-consumista-empreendedora, que não está interessada na facilidade de acesso a praia, mas na possibilidade ter a praia exclusiva, ainda que irregularmente. Com já dito, o exclusivismo e o individualismo caracterizam essa sociedade contemporânea. Sabendo disso, o mercado imobiliário cria formas de atrair tais interessados com slogans que propaguem a posse sobre os bens naturais: “sua praia”, “sua natureza”, “sua Mata Atlântica”. A discussão entra no esfacelamento que essa tendência capitalista na cultura dos indivíduos pode estar causando nas relações sociais, além de tomar posse e controle sobre uma riqueza natural, que deveria ter o acesso a todos.

43 Mediante as novas necessidades que o capital produziu nos indivíduos discursos, como desenvolvimento sustentável e volta à natureza, ganham força para atrair mais pessoas e criar essa dependência ao meio natural, atribuindo a “qualidade de vida” a sua

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proximidade da natureza. A questão é que se trata de condomínios voltados para uma classe abastada, onde a homogeneidade para dentro dos muros está na equalização desta camada social a partir da venda desse espaço. Por isso, é notório que o acesso à natureza, mesmo que fetichizada, está ao alcance de poucos. A seletividade capitalista alcança a natureza e impõe suas lógicas mercadológicas.

44 Com isso, conclui-se que nem mesmo as riquezas naturais, no caso as praias, estão imunes da ação do mercado imobiliário, e estão se transformando em paisagens artificializadas para o processo de fragmentação. Mesmo sabendo que as praias configuram bens públicos garantidos por lei, a lógica exclusiva e de privilégios está colocando em pauta a resistência dos espaços públicos e a sua superação para espaços cercados e privados na cidade capitalista.

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NOTAS

1. Este artigo é uma breve reflexão oriunda do trabalho de conclusão do curso de Geografia na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, intitulado “Do Espaço Público ao Privado: Condomínios Fechados na Zona Costeira do Município de Mangaratiba – RJ”, apresentado no ano de 2016 com orientação do Prof. Dr. Leandro Dias de Oliveira.

RESUMOS

Este trabalho investigou o processo de “privatização” das praias na zona costeira de Mangaratiba, localizada na Região Turística da Costa Verde, no litoral sul do estado do Rio de Janeiro. Trata-se de uma análise acerca das modificações atuais na produção do espaço do município a partir da chegada de novos segmentos imobiliários destinados à moradia, veraneio e turismo. Trata-se de um município com natureza peculiar rica em paisagens exuberantes, onde o mercado imobiliário se apropriou do espaço, pautado por discursos de sustentabilidade e reaproximação da sociedade e natureza.

On analyse, dans ce texte, le procès de « privatisation » des plages situées dans la region touristique de la Côte Vert, notamment dans la municipalité de Mangaratiba-RJ. Grâce à la richesse de la nature et à la beauté des paysages, le marché immobilier a changé la production de l’espace en exploitant un discours de sustentabilité et de rapprochement entre la société et la milieu.

Este articulo muestra la “privatización” de las playas en la zona costera de Mangaratiba, localizada en la región turística de Costa Verde en la costa sur del estado de Rio de Janeiro. Es un estudio sobre el desarrollo inmobiliario habitacional enfocado en el turismo y vivienda

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recreativa, que muestra como el mercado inmobiliario privatizó el espacio con base en la idea de la sustentabilidad y la aproximación de la sociedad a la naturaleza.

This work investigated the process of “privatization” of beaches in the coastal zone of Mangaratiba, located in the Tourist Region of the Green Coast, in the south coast of the state of Rio De Janeiro. One is about an analysis concerning the current modifications in the production of the space of the city from the arrival of new real estate segments destined to the housing, summering and tourism. One is about a city with rich peculiar nature in exuberant landscapes, where the real estate market if appropriated of the space, lined for speeches of sustainability and rapprochement of the society and nature.

ÍNDICE

Keywords: Socio-spatial fragmentation, Beach Privatization, sustainability, Sahy, Mangaratiba. Palavras-chave: fragmentação sócio-espacial, privatização de praias, sustentabilidade, Sahy, Mangaratiba. Palabras claves: fragmentación socio-espacial, privatización de playas, sustentabilidad, sahy, Mangaratiba Mots-clés: fragmentation socio-spatiale, privatisation des plages, sustentabilité, Sahy, Mangaratiba-RJ.

AUTOR

RAIZA CAROLINA DINIZ SILVA

Mestranda do PPGGEO – Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

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Resenhas

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Duque de Caxias: novos e velhos desafios em questão

André Luiz Teodoro Rodrigues

Capa

Foto da capa

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TENREIRO, André (Org.). Duque de Caxias – A geografia de um espaço desigual. Nova Iguaçu, RJ: Entorno, 2015. 176 p.

1 “Duque de Caxias – A geografia de um espaço desigual”, livro organizado por André Terneiro, professor de geografia da rede municipal de Duque de Caxias e especialista em Sociologia Urbana, e com capítulos assinados por Cleonice Puggian, professora- adjunta da FFP-UERJ, Manoel Ricardo Simões, professor titular do IFRJ, Marcelo Ramos dos Santos, professor de Geografia da Secretaria Municipal de Educação de Duque de Caxias, e Sebastião Fernandes Raulino, doutor em planejamento urbano e regional e professor da Faculdade de Ciências e Letras de Duque de Caxias (FEUDUC), tem como objetivo estudar esta cidade tão importante da Região Metropolitana Fluminense, enumerando velhos e novos problemas, abordando desde transtornos ambientais até as mazelas sociais de uma das cidades economicamente mais ricas do Brasil.

2 As vicissitudes existentes nessa cidade, situada na Baixada Fluminense, nas margens da Baía de Guanabara, são extremamente evidentes1. Já no título da obra, que alude a um “espaço desigual”, já remete a esta dicotomia, fazendo com o livro seja assim pensado e dividido. Em primeiro capítulo, intitulado “Dentro de um espaço desigual” e de autoria de André Tenreiro, aborda a desproporcionalidade socioeconômica da cidade, com aéreas de grande suporte em infraestrutura e ambientes de insalubridade e com dilemas de afirmação identitária. No segundo e terceiro capítulos, de autoria de Manoel Ricardo Simões e intitulados respectivamente “Pequeno histórico da ocupação de Duque de Caxias” e “Duque de Caxias no contexto regional metropolitano e da Baixada Fluminense”, por meio da história regional e da ocupação da cidade do Rio de Janeiro, visa entender como se deu esse espraiamento urbano até o município de Duque de Caxias, revelando a importância desta cidade para o contexto regional metropolitano e de protagonismo na Baixada Fluminense. No quarto capítulo, “Duque de Caxias: Um estudo da economia local”, de Marcelo Ramos dos Santos, economia é a palavra-chave, pois Caxias deixa de ter característica unicamente de cidade-dormitório e passa a ter uma economia própria e ainda consegue polarizar municípios ao seu entorno, transformando-se em um centro regional.

3 O quinto capítulo – “Um ambiente de injustiças”, de Cleonice Puggian e Sebastião Fernandes Raulino – se concentra na reflexão acerca das injustiças ambientais e sociais e demonstra como historicamente essa região se tornou uma zona de sacrifício para o desenvolvimento da até então capital federal, Rio de Janeiro. Com a própria industrialização e urbanização do território de Duque de Caxias, a vinda da Fábrica Nacional de Motores (FNM), as instalações da Refinaria de Duque de Caxias (REDUC) e da Fábrica de Borracha Sintética (FABOR) – as duas últimas construídas às margens da Baía de Guanabara – e a atividade do Aterro Sanitário de Jardim Gramacho (o maior aterro sanitário da América Latina!)2 comprovam que o progresso e o desenvolvimento estão acima da preservação e uso sustentável. Fechando o livro, o sexto capítulo, também de autoria de André Tenreiro e intitulado “O trânsito parou. Qual é o plano?”, se concentra nos entraves e desafios da Cidade de Duque de Caxias no que diz respeito a mobilidade urbana, mediante as obras do plano diretor urbanístico (PDU) em grande parte paradas e inacabadas, a ausência de infraestrutura, o monopólio de empresas de

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ônibus no município, além da tarifa diferenciada para cada distrito de Caxias, que corrobora para um transporte caro e de péssima qualidade.

4 Mediante este quadro analítico, é possível destacar alguns dos principais debates presentes na obra.

I – A busca de uma compreensão histórica e a fuga do estigma pré- emancipação

5 A ocupação do município de Duque de Caxias se confunde com o histórico de ocupação da até então capital federal, o Rio de Janeiro. Toda esta região ficou sob a tutela administrativa do Rio de Janeiro até 1833, e somente após este ano foi para a então criada Vila de Iguaçu. Esse território anteriormente já havia sido ocupado por povos pré-históricos coletadores há 15 mil anos, com a evidência dos sambaquis tupi- guaranis, parcialmente destruídos pela ação antrópica. A partir do século XVI, com a colonização portuguesa e a administração territorial por meio das sesmarias, Cristóvão Monteiro obteve o direito de utilizá-la de sua maneira, às margens do Rio Iguaçu. Todavia, esta demarcação ganhou realmente importância no ciclo do ouro, no século XVII, onde a Igreja Nossa Senhora do Pilar, construção de 1612, tornou-se um entreposto para descanso, rituais religiosos, posto comercial, formando naquela região um dos primeiros núcleos urbanos da região. Os rios eram bastante úteis para transporte de mercadorias, principalmente para o ouro oriundo de Minas Gerais, e os portos fluviais da Baixada ganharam grande importância, pois os mesmos englobavam atividades econômicas e o transporte de pessoas.

6 Com a chegada da família real na cidade do Rio de Janeiro, então capital do Império, houve um significativo aumento da população e, consequentemente, o fluxo de atividades econômicas também teve um incremento, aumentando a importância dos portos da Baixada. Todavia, com os sucessivos desmatamentos, ausência de limpeza e assoreamentos dos brejos, os rios se tornaram menos eficientes causando prejuízos a todos os usuários, provocando um breve esvaziamento desta região com a infestação de doenças e epidemias locais. Este panorama começa a mudar a partir da construção da Estrada de Ferro Leopoldina ou Rio de Janeiro Northern Railway, em 1886, que cruzava o até então território de Iguaçu, realizando uma integração com a capital federal, concomitante aos esforços de políticas de saneamento na Baixada, em 1910, para acabar com a propagação de epidemia em áreas pantanosas.

7 As condições de vida melhoraram com a progressiva modernização local. Isto teve origem com o novo traçado da rodovia Rio-Petrópolis que permitiu a atração de novos moradores, mas o estigma da herança negativa da até então Merity ainda incomodava. A “Merity do Pavor” era passado, fato esse que foi de expressivo valor para os moradores, os quais em 1930 trocaram a placa da estação de trem de Merity para Caxias, em homenagem a Duque de Caxias, que tinha nascido na Fazenda Taquara, futura Duque de Caxias. Em 1931, Duque de Caxias tornou-se o oitavo distrito de Nova Iguaçu, após diversas tentativas por meio do Interventor Plínio Casado, e então os loteamentos foram ocupados, o distrito foi crescendo populacionalmente e as lideranças locais formaram a União Popular Caxiense. Tais lideranças almejavam se separar de Nova Iguaçu a qualquer custo, já que não se viam representados pelo mesmo. No dia 31 de Dezembro de 1943, o Interventor Estadual Amaral Peixoto eleva o distrito a município, emancipando-se de Nova Iguaçu. A instalação da Fábrica Nacional

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de Motores (FNM), em 1940, corroborou com uma das justificativas para emancipação de Duque de Caxias, pois já nascia como símbolo de em um modelo de desenvolvimento e progresso, idealização nacional de um emergente Brasil “moderno-industrial”. Com a construção da Avenida Brasil em 1946 e a implantação da Refinaria de Duque de Caxias, nas margens da Rodovia Washington Luís, em 1961, e a implementação da Fábrica de Borracha Sintética (FABOR) em 1962, proporcionaram a Duque de Caxias a tentativa de fuga de um passado negativo e na busca de um progresso a partir do processo de industrialização que o município estava enfrentando.

II – Uma cidade de ambiente com profundas adversidades socioambientais

8 O território de Duque de Caxias apresenta diversas particularidades, desde áreas com dificuldades de afirmação identitária até desmatamento descarado de áreas de preservação ambiental em detrimento de atividades econômicas. Esse ambiente é dividido em quatro distritos: Duque de Caxias (1°distrito), Campos Elíseos (2°distrito), Imbariê (3°distrito) e Xerém (4°distrito), onde o grau de desenvolvimento de cada um deles vária de acordo com a distância com a matriz distrital. Os distritos mais populosos e desenvolvidos são de Duque de Caxias e Campos Elíseos, já as terras longínquas de Xerém e Imbariê caracterizam-se por uma infraestrutura mais simples e de ausência de diálogo com o distrito-sede. Isto foi um dos motivos da mudança da sede da prefeitura municipal de Duque de Caxias para o centro geográfico do município, em Jardim Primavera (2°distrito), por conta de tensões emancipatórias dos dois últimos distritos e pela tentativa de integração com todos os distritos. Trata-se de um espaço desigual, pois mesmo tendo uma das maiores arrecadações de ICMS e Produto Interno Bruto do Estado do Rio de Janeiro, Duque de Caxias continua tendo baixos Índices de Desenvolvimento Humano, onde a diferença nos valores imobiliários é exorbitante – os imóveis mais valiosos possuem facilidades logísticas pela proximidade de hospitais, lojas, bancos, infraestrutura urbana e escolas mais qualificadas, enquanto áreas nas comunidades fronteiriças ao Rio Sarapuí não possuem nenhum tipo de infraestrutura, com habitações em condições extremamente insalubres, sem qualquer saneamento básico e convívio constante com o descaso das autoridades públicas. Tal realidade se estende a comunidades vizinhas ao Aterro Sanitário do Jardim Gramacho, que vivem, mesmo depois da sua desativação, em situação degradante, sem asfalto, saneamento básico e com moradias feitas de madeira. Por este motivo, uma característica muito utilizada pela população mais humilde, moradora de áreas periféricas, é a “autoconstrução”, onde o morador, com o auxílio de familiares e amigos, constrói por conta própria não somente a casa, mas também uma boa parte dos equipamentos coletivos do bairro.

9 As mazelas sociais corroboram ainda mais para o espraiamento das injustiças ambientais, pois se trata de um município onde o desenvolvimento se sobrepõe à necessidade de preservar ou cuidar da natureza, e que desde sua emancipação se preocupa pouco com a temática de conservação; isto se reflete no assoreamento das bacias fluviais que serviam de portos antes mesmo de se tornar município até a emissão de poluentes através do Complexo Petroquímico de Duque de Caxias. O “progresso” apareceu primeiramente com a “Cidade dos Motores” – oriunda da instalação da Fábrica Nacional de Motores, implementada numa área 54 milhões de metros quadrados – atualmente situada na reserva biológica de Tinguá; a seguir, a construção

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da Rodovia Rio-Petrópolis desmatou milhares de árvores originais de Mata Atlântica, bem como a implantação da Refinaria de Duque de Caxias, na margem da Baía de Guanabara, aumentou a poluição da bacia hidrográfica onde está situada, devido ao despejo de resíduos e vazamentos de petróleo – uma vez que seus efluentes líquidos contêm grandes quantidades de óleos e graxas, metais pesados, inclusive cádmio e mercúrio, fenóis e carga orgânica – ocasionaram grandes problemas ambientais. Os manguezais existentes foram diretamente impactados pela poluição da refinaria, os quais se localizam no litoral de Duque de Caxias. Além disso, bairros próximos à refinaria, como Campos Elíseos, Jardim Primavera, Saracuruna e São Bento sofrem impactos diretos da emissão de poluentes na atmosfera, provocando na população do entorno enfermidades respiratórias e dermatológicas, desvalorização do território, poluição dos lençóis freáticos, ar e do solo.

10 Há também problemas bem antigos e menos visíveis, como: [1] a remoção de saibro, extremamente prejudicial ao meio ambiente, pois retira a cobertura vegetal do solo deixando o mesmo vulnerável a processos erosivos, podendo causar deslizamentos, doenças respiratórias e após o esgotamento da reserva mineral, o local pode ser disputado por grileiros; [2] o aterramento de áreas de várzeas, por conta de atividades econômicas ocasionando como consequências inundações, assoreamento de rios e enchentes na cidade; [3] a construção do Arco Metropolitano, que impacta a Reserva biológica do Tinguá (Nova Iguaçu, Japeri, Duque de Caxias, Belford Roxo, Queimados e outros), o Parque Municipal de Nova Iguaçu (Nova Iguaçu e Mesquita) e a APA (Área de Proteção Ambiental) de Guapimirim (Itaboraí, Guapimirim, São Gonçalo e Magé); além disso, a poluição atmosférica e sonora é uma realidade presente nesse ambiente rodoviário, pois o Arco corta a Floreta Nacional Mário Xavier, ambiente de grande biodiversidade de fauna e flora; [4] exposição da região conhecida como Cidade dos Meninos à contaminação por 40 toneladas de Hexaclorohexano (HCH), popularmente conhecido como “pó-de-broca”, utilizado como pesticida. Este lugar, onde funcionava o antigo internato Fundação Abrigo Cristo Redentor para rapazes, devido à grande quantidade de casos de malária no segundo quartel do século XX, foi utilizada pelo Ministério de Educação e Saúde para construção de pavilhões do Instituto de Malariologia e posteriormente, a Fábrica de Produtos Profiláticos, onde eram produzidos: Hexaclorociclohexano (HCH), Arsenito de Cobre, Hexaclorobenzeno (BHC), Monofluoroaetato de Sódio, Cianeto de Cálcio e Diclorodifenil tricloretano (DDT). Mesmo fechada em 1961, a fábrica deixou na antiga instalação cerca de 400 toneladas de compostos tóxicos já explicitados, sem qualquer tipo de proteção, o que levou a contaminação do solo, da água e da população que vivia ao entorno; [5] por fim, a mineração de areia também está vigente na configuração econômica e ambiental do município, no bairro do Amapá, 4.° distrito de Caxias, causando muitos danos ao meio ambiente, com a contaminação dos lençóis, desmatamento e extinção da fauna e flora local.

11 De positivo, Duque de Caxias tem ampliado o número de unidades de conservação , com relevantes remanescentes da mata atlântica, aglutinando com o Mosaico da Mata Atlântica Central Fluminense (MCF). Nessa cidade, há quatro unidades de proteção integral e três unidades de uso sustentável, sendo quatro municipais, uma estadual e duas federais: a Área de Proteção Ambiental do São Bento, Área de Proteção Ambiental do Alto Iguaçu, Área de Proteção Ambiental de Petrópolis, Parque Natural Municipal da Taquara, Parque Natural Municipal da Caixa d´Água, Reserva Biológica do Parque Equitativa e Reserva Biológica do Tinguá. Todavia, constantes ataques a esses

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ambientes naturais têm sido realizadas, por especulação imobiliária, exploração de recursos minerais próximos e queimadas criminosas com o intuito de aumentar a incerteza das demarcações vigentes das APA’s.

III – A mobilidade urbana do município de Duque de Caxias

12 Com uma população em 2010 de 855.048 habitantes, em um território de 466,8 Km², a cidade de Duque de Caxias é a terceira mais populosa do Estado, atrás apenas de São Gonçalo e o Rio de Janeiro, representando cerca de 5% da população total do Estado. Com esses números, um problema de relevo é a mobilidade urbana. Caxias conta com a antiga Estrada de Ferro Leopoldina, com dois ramais ferroviários, ramal Saracuruna e Vila Inhomirim, contabilizando 10 estações de trem sob a administração da Supervia: Duque de Caxias, Corte 8, Gramacho, Campos Elíseos, Jardim Primavera e Saracuruna, no Ramal Saracuruna, e Morambi, Imbariê, Santa Lúcia e Parada Angélica, no Ramal Vila Inhomirim, que termina em Magé. A ocupação de Duque de Caxias se deu de forma mais dinâmica por meio da instalação desta linha férrea, tendo um crescimento populacional vertiginoso após a construção do novo traçado da Rodovia Rio-Petrópolis (BR-040). Duque de Caxias tem características históricas de cidade-dormitório, cujo advento da industrialização e urbanização impactaram na suavização desta característica, mas não em seu ocaso. Grandes fluxos de pessoas saem direção à capital fluminense por meio da Rodovia Washington Luís (BR-040), que tem acesso direto para a Avenida Brasil – um dos principais logradouros da cidade do Rio de Janeiro – e para a Linha Vermelha (RJ-071) por modais rodoviários, como carro, ônibus e vans; pelo modal ferroviário, os trens da Surpervia transportam cerca de 10 mil pessoas por dia.

13 Em consequência aos grandes fluxos de automóveis em direção a cidade do Rio de Janeiro e ao primeiro distrito de Duque de Caxias, engarrafamentos e lentidões são frequentes durante a semana, principalmente em horários de pico, no começo da Rodovia Washington Luís. Acreditava-se que com o término da construção do Arco Metropolitano do Rio de Janeiro, o trânsito em Duque de Caxias melhoraria, pois pensava-se que os caminhões de cargas que faziam trajetos Norte-sul passariam direto por está autoestrada, mas é isso que de fato está ocorrendo. Mesmo vizinho do município mais importante do Estado, próximo ao Aeroporto Internacional Antônio Carlos Jobim (Galeão) e da Rodovia Presidente Dutra (BR-116) e da Avenida Brasil, Duque de Caxias sofre com a própria ineficiência da infraestrutura municipal, e, em nossa opinião, com a ausência de um planejamento regional efetivo na esfera metropolitana.

14 A esperança reside, por exemplo, na efetivação do Plano Diretor Urbanístico (PDU) e na reengenharia de trânsito com o intuito de melhorar o tráfego nas imediações e centro de Duque de Caxias. Da mesma maneira, tanto o desenvolvimento de um modal hidroviário no litoral de Duque de Caxias, ligando a cidade ao Rio de Janeiro, São Gonçalo, Niterói, Ilha do Governador etc., diminuiria o fluxo de veículos automotores em direção ao centro e municípios da região metropolitana, quanto os projetos de BRT (Bus Rapid Transit), com a junção de ciclovias ao seu entorno, até o bairro de Santa Cruz da Serra na Rodovia Washington Luís (BR-040), a construção da Transbaixada I e II, interligando alguns municípios da Baixada Fluminense e a construção da Ciclovia Ilha- Caxias, com 17 trechos para servir de um transporte alternativo seriam propostas bastante interessantes de escoamento do trânsito.

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IV – Os arranjos econômicos de Duque de Caxias e sua posição no contexto regional

15 Uma das cidades mais populosas do Brasil e que está entre as 30 mais ricas, Duque de Caxias tem um perfil bem diferente das demais cidades da região metropolitana e do Estado do Rio de Janeiro. Essa cidade ficou estigmatizada como cidade-dormitório, reduto de trabalhadores de baixa renda e migrantes que não moravam na até então capital federal, Rio de Janeiro, por conta do alto preço do solo e de moradias. Operários e trabalhadores realizavam com intensidade a migração pendular, saindo de manhã cedo e voltando ao final da tarde em transportes públicos. Todavia, a Rodovia Washington Luís (BR-040), a Refinaria de Duque de Caxias (REDUC), Fábrica Nacional de Motores (FNM), a Estrada de Ferro Leopoldina, a Fábrica de Borracha Sintética (FABOR) garantiram à cidade uma nova feição, promovendo importante protagonismo na economia metropolitana.

16 Se no setor da agropecuária, a parcela de participação é pequena, restringindo-se apenas ao distrito de Xerém, com uma pequena criação “extensiva” de gado bovino que representa 0,05% na participação do PIB, o setor que apresenta maior destaque é o de serviços e comércio, responsável pela maior participação no somatório das riquezas produzidas no município, os quais se concentram nos dois primeiros distritos de Duque de Caxias. Grande parte desse crescimento do comércio, intermediação financeira, atividades imobiliárias e aluguéis, transportes e logística vem do atributo de tal município situar-se a 17 km da capital do Estado e do grande número de cidades vizinhas de importância no contexto metropolitano, como Magé, Nova Iguaçu, São João de Meriti, Petrópolis e Belford Roxo.

17 O setor industrial de Duque de Caxias é de enorme importância para a economia da cidade, implicando na formação deste município desde a instalação da Fábrica Nacional de Motores (FNM), em Xerém, presente até no brasão da cidade, até a Refinaria de Duque de Caxias (REDUC). A Refinaria de Duque de Caxias, responsável pelo surto industrial da cidade nas décadas de 1970 e 1980, continua sendo um das principais peças da economia caxiense, dada a sua relevância econômica e social. A ampliação do número de empregados na REDUC, chegando a 10.960 empregados, mesmo que menos da metade efetivos, revela a consolidação da cidade entre as cinco maiores no valor adicionado bruto da indústria do estado do Rio de Janeiro. O bairro de Campos Elíseos, nas margens da Rodovia Washington Luiz, tornou-se um importante complexo industrial com base nos setores petrolífero e químico e um forte eixo econômico da região metropolitana e do estado. Aliás, na mesma região emergiu o polo moveleiro, que apresenta uma grande variedade de móveis de excelente qualidade e considerável tradição no panorama regional, bem como o setor de vestuário, com vendas crescentes.

18 O livro que resenhamos é um material bastante abrangente da cidade de Duque de Caxias, ilustrando com qualidade os avanços econômicos da cidade e seu protagonismo na região metropolitana, que não se reflete nos aspectos sociais da cidade. Prova disso é que se trata de município com um dos maiores PIB per capita do Estado, aproximadamente R$ 30.000,00, mas que está em 49.° lugar no Índice Desenvolvimento Humano Municipal, entre 92 municípios. O território caxiense é sem sombra de dúvidas um espaço desigual, onde em certas áreas há um ambiente socioeconômico extremamente desenvolvido, com infraestrutura que corrobora para tal afirmação,

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como o bairro Jardim 25 de Agosto; todavia, em contraposição, bairros como Jardim Gramacho, Santa Lúcia, Parque das Missões, Parque Cangulo, carecem de infraestrutura básica de saúde, segurança e educação.Duque de Caxias não é apenas um local de moradia da classe trabalhadora, mas de existência de indústrias, atraídas desde pelo preço do solo até a flexibilidade de fiscalização. A busca por uma nova perspectiva socioeconômica deve estar atrelada com os aspectos ambientais, assim como de se lugar contra o sectarismo de seus habitantes e o coronelismo dos governantes desta cidade. A realidade de Duque de Caxias só mudará mediante a participação da população, tornando o município mais igual e justo em seus quatro distritos.

NOTAS

1. Consultar, neste mesmo periódico, o artigo de Fernando Ribeiro Camaz, intitulado “Duque de Caxias-Rio de Janeiro: contradições entre crescimento econômico e desenvolvimento social”, que também trata das contradições desta cidade “rica economicamente” e “pobre socialmente”. Disponível em: http://espacoeconomia.revues.org/2061. 2. Instalado em uma área de manguezal e próximo a Baía de Guanabara, este aterro ocasionou a remoção do saibro e a poluição do solo com Hexaclorociclohexano (HCH), popularmente conhecido como pó-de-broca, no bairro conhecido como Cidade dos Meninos.

AUTOR

ANDRÉ LUIZ TEODORO RODRIGUES

Aluno da Graduação em Geografia da UFRRJ – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e estudante do Grupo de Pesquisa Reestruturação Econômico-Espacial Contemporânea, vinculado ao LAGEPPE – Laboratório de Geografia Econômica e Política e Práticas Educativas. Bolsista do PIBID [Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência] – Geografia – UFRRJ, campus-sede.

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Pareceristas – Ano V, Número 10, janeiro-junho de 2017

1 Agradecemos a contribuição generosa dos seguintes pareceristas: • André Santos da Rocha (UFRRJ) • Artur Sergio Lopes (FEUC) • Benito Juncal - UFBA • Désirée Guichard Freire (UERJ) • Floriano José Godinho de Oliveira – UERJ • Gaudêncio Frigoto – UERJ • Hélio Gomes Filho (IFF-Campos dos Goytacazes) • Jorge Luiz Barbosa (UFF) • Leandro Dias de Oliveira – UFRRJ • Luis Leonardo García Guevara – Universidad Nacional de Colombia • Paulo Roberto Soares Rodrigues - UFRGS • Roberto Moraes Pessanha – IFF/Campos dos Goytacazes • Theotônio dos Santos - UERJ

2 Conselho Editorial

3 Espaço e Economia : Revista Brasileira de Geografia Econômica

4 NUPEE, Rio de Janeiro, junho de 2017

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