UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Mateus Amoedo Zani

Bravo: A água em um emaranhado de vidas no Cariri Paraibano

CAMPINAS 2019

Mateus Amoedo Zani

Bravo: A água em um emaranhado de vidas no Cariri Paraibano

Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutor em Antropologia Social

Orientadora: Profa. Dra. Emília Pietrafesa de Godoi

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELO ALUNO MATEUS AMOEDO ZANI, E ORIENTADA PELA PROFA. DRA. EMÍLIA PIETRAFESA DE GODOI.

CAMPINAS 2019

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 26 de março de 2019, considerou o candidato Mateus Amoedo Zani aprovado.

Profa. Dra. Emília Pietrafesa de Godoi Prof. Dr. Christiano Key Tambascia Profa. Dra. Marilda Aparecida de Menezes Prof. Dr. Renzo Romano Taddei Profa. Dra. Vanda Aparecida da Silva

A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

Às duas mulheres que fizeram de mim o homem que sou: minha mãe e minha avó

Agradecimentos

Ao longo dos cinco anos que se passaram desde início do doutorado muitas pessoas importantes passaram pelo meu caminho e entrelaçaram suas vidas na minha. Seria ingrato de minha parte não citar cada um neste momento. Porém, por não ter como citar todos e com o receio de esquecer alguém, digo que este trabalho não seria possível sem que os encontros e desencontros com dezenas de pessoas, ou milhares, contando com meus alunos, desde o início desta trajetória. Peço desculpas se não citarei todas e todos, mas, sou grato a cada amigo com quem caminhei neste período.

Agradeço aos professores Omar Thomaz e Suely Kofes por terem confiado em meu trabalho desde o início. Agradeço às professoras e aos professores do Programa de Pós-graduação em Antropologia que participaram de minha formação ao longo do doutorado. Em especial, agradeço minha orientadora e amiga Emília Pietrafesa, com quem iniciei a caminhada ainda no mestrado em 2010 e chegamos hoje a quase uma década de aprendizado. Agradeço pela confiança, atenção, paciência, pela compreensão em momentos difíceis e, principalmente, pela amizade.

Agradeço às amigas e amigos de Unicamp e Barão Geraldo que me ajudaram nessa caminhada. Agradeço aos irmãos Fernando Reis, Ana Scaravelli, Danilo Pádua, Francisco Flores, Carol Rigoni, Hugo Soares, Igor Scaramuzzi, pelas conversas sem fim. Como também, agradeço aos colegas de doutorado, em especial à amiga Maíra Vale, primeira amiga que fiz quando cheguei na Unicamp, pelo coração enorme que tem e compartilha. Agradeço à amiga Márcia, com quem tenho em comum o grande carinho pelo semiárido brasileiro. Agradeço muito aos irmãos com quem tive o prazer de dividir a casa e parte da vida: Isabela Macedo, Natan Zeichner, Raul Pinheiro, Aline Ferragutti e Andrea Santiago. Agradeço também todas outras pessoas que passaram pela nossa casa e estiveram comigo nesse período. Agradeço ainda a grande amiga Patrícia Carvalho pelas muitas tardes de chimarrão e ótima conversa e por todo apoio em momentos difíceis.

Tenho muito a agradecer também à professora e amiga Amneris Maroni que, com seu coração enorme, me recebeu em um momento muito difícil e tem participação decisiva para que

eu chegasse até o fim. Agradeço a ela ainda por me apresentar a pessoas tão queridas e importantes neste caminho dos últimos anos como Camila Jabur e João Paulo Ayub.

Sou grato também ao amigo Georgios Dimitriadis, que me deu a oportunidade de aprender e realizar trabalhos de campo para sua empresa em contextos diversos do Brasil. Agradeço ainda Sylvio Batalha, com quem trabalhei na elaboração do Inventario Nacional de Referências Culturais – INRC no Sul do Espírito Santo. Foram todas oportunidades de trabalho que me ensinaram muito.

Agradeço meus alunos e alunas do Ensino Fundamental, Médio e Universidade pelos momentos de ensinar e aprender que pudemos partilhar. Agradeço pelos dois anos no Colégio Objetivo de Campinas, de onde algumas alunas em especial ainda demonstram carinho pelas boas lembranças, e a recíproca é verdadeira. Agradeço também aos meus alunos e alunas do breve período em que trabalhei em Sumaré. Turmas formadas por adultos trabalhadores e extremamente esforçados em seguir seus sonhos. Agradeço meus alunos e alunas da Unifeob, onde já somam sete anos de trabalho e perto de mil alunos formados. Agradeço em especial aos amigos professores e coordenadores dos cursos de Administração e Ciências Contábeis, onde sempre tive a confiança para trabalhar e contribuir com o meu melhor. Agradeço ainda às crianças do Projeto de Aceleração da Aprendizagem em Poços de Caldas por me ensinarem tanto sobre a vida. Ainda, enquanto professor, agradeço muito aos colegas, alunas e alunos do Colégio Municipal de Poços de Caldas, onde trabalhei por dois anos, fiz grandes amigos e vivi experiências inesquecíveis que não caberiam nestas folhas.

Por fim, agradeço aos amigos de Cabaceiras, Toninho e Damião, que me receberam com grande hospitalidade. Em especial, devo agradecer ao povo do Bravo, amigos que levarei para toda vida. Não vou citar aqui os nomes, pois, são muitos e não quero me esquecer de ninguém. Como o leitor ou a leitora desta tese perceberá ao longo do texto, a receptividade e generosidade dessas pessoas se fizeram imprescindíveis para o sucesso do trabalho. Serei sempre grato pela amizade e pelos momentos que pudemos viver juntos e pelos que ainda temos por viver.

Não teria espaço nessas páginas para os nomes de todas as pessoas com quem partilhei a vida e me ajudaram, mesmo sem saber, nestes cinco anos de caminhada. Tal qual, amigos e irmãos de toda uma vida que nunca deixaram de estar ao meu lado, como aqueles que tanto me ouviram

falar do Cariri: Diney, Daniel, Michelle, Alison e tanto outros. Não consigo citar todos aqui, mas, todos eles sabem que temos ainda muitos bons momentos para partilhar e sou grato pelo apoio e pela companhia de hoje e sempre.

“Não somos aparelhos de objetivar e registrar de entranhar congeladas, temos de continuamente parir nossos pensamentos em meio a nossa dor, dando-lhes maternalmente todo sangue, coração, fogo, prazer, paixão, tormento, consciência, destino e fatalidade que há em nosso viver” (NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência)

Resumo

Mais que somente um elemento físico de uso cotidiano indispensável, a água nesta pesquisa aparece com vulto em um emaranhado de relações que envolve todo conjunto da vida, entre humanos e não humanos, em um vilarejo de nome Bravo, no Cariri Paraibano. As chuvas inconstantes e os extensos períodos de seca são marcas da vida no lugar que, como em todo semiárido brasileiro, pode se ver metamorfoseada por completo assim que o inverno, período de chuvas na região, chegar. Desta forma, objetivo nesta tese demonstrar que a água apresenta uma capacidade única entre todos os atores partícipes na vida do Bravo de se entrelaçar em sua trajetória a todo o conjunto e transformá-lo por completo. Por conseguinte, defendo que se não é possível controlar os fluxos da água na atmosfera, é possível e necessário o controle de seu fluxo após a precipitação das chuvas através de poços, cisternas e outras tecnologias que possibilitem acesso à água pelos sitiantes. O relato tecido ao longo da tese descreve a vida entre o auge da seca e a chegada do inverno de 2018, quando já eram completos sete anos sem um período de chuvas. Para esse fim, a abordagem escolhida parte de um debate sobre vida, atores, rede, malha, emaranhado e agência, como também sobre experiências e afetos. Assim, a abordagem e o caminho realizados nesta tese formam parte das contribuições que pretendo trazer com esse trabalho. A partir dessa perspectiva, descrevo as profundas transformações em tudo o que compõe a vida no Bravo conforme as variações sazonais, acompanhando junto aos seus habitantes as mudanças promovidas pela variação de acesso à água, da longa e penosa seca ao esperado, comemorado e curto inverno. Palavras-chave: Água, secas, semiárido – Cariri (PB)

Abstract

More than just a physical element of indispensable daily use, the water in this research appears in an entanglement of relationships that involves all life, human and nonhuman, in a village called Bravo, in the Cariri Paraibano. The inconstant rains and the prolonged periods of drought are marks of the life in a place that, as in all Brazilian semiarid, can be seen metamorphosed completely as soon as the winter, period of rains in the region, arrive. In this way, the aim of this thesis is to demonstrate that water presents a unique capacity among all actors involved in Bravo's life to intertwine in its trajectory to the whole set and to transform it completely. Therefore, I argue that if it is not possible to control the flow of water into the atmosphere, it is possible and necessary to control its flow after precipitation of rainfall through wells, cisterns and other technologies that allow access to water by the farmers. The narrative describes life between the peak of the drought and the arrival of the winter of 2018, when seven years without a rainy season were complete. To this end, the chosen approach starts from a debate about life, actors, network, meshwork, entanglement, and agency, as well as about experiences and affections. Thus, the approach and the path taken in this thesis are parts of the contributions that I intend to bring with this work. From this perspective, I describe the profound transformations in everything that makes life in the Bravo according to seasonal variations, following with its inhabitants the changes promoted by the variation of access to water, from the long and painful drought to the expected, celebrated and short winter. Key-words: Water, droughts, semiarid – Cariri (PB)

Lista de imagens

Mapas: Mapa 1 - Localização do Bravo no estado da Paraíba e precipitações máximas dos municípios em 2018 83

Fotografias: Foto 1 - Manhã no terreiro de Laura (Janeiro de 2017) ...... 181 Foto 2 - No fundo do terreiro de Laura, a moto, o juazeiro verde durante a seca, e a cisterna são parte da paisagem e são personagens da vida no Cariri. A moto em particular, é hoje “o jumento” do semiárido. (Janeiro, 2017)...... 182 Foto 3 - A sombra da baraúna marca na estrada os limites entre Boa Vista e Cabaceiras. A imagem registrada durante a seca, mostra a intensidade do sol próximo das 14 horas, enquanto baraúna e o restante da mata desfolhadas aguardam pelo inverno. (Janeiro, 2017) ...... 182 Foto 4 – As muitas cores do céu do Bravo. Foto registrada durante a seca ao entardecer (Janeiro de 2017) ...... 183 Foto 5 - As muitas cores do céu do Bravo. Foto registrada durante a seca próximo de meio-dia (Janeiro de 2017) ...... 183 Foto 6 - Na luta pela sobrevivência no semiárido, este calango escapou ao predador antes de me encontrar. (Janeiro de 2018) ...... 184 Foto 7 - Jumentos vagam pela caatinga em busca de água e alimento, algo comum de se ver, principalmente na seca, quando as fontes de alimento na natureza se tornam escassas. (Janeiro, 2017) ...... 184 Foto 8 - A tarefa diária de buscar água. A atividade se repete todos os dias e conforme a necessidade, várias vezes ao dia (Janeiro de 2017) ...... 185 Foto 9 - Com Val, a tarefa diária de buscar água. O poço público garante água para todos no Bravo e proximidades. (Janeiro de 2017) ...... 186 Foto 10 - Com Val, a tarefa diária de buscar água. (Janeiro de 2017) ...... 186 Foto 11 – Com Val, a tarefa diária de buscar água (2). (Janeiro de 2017) ...... 187 Foto 12 - Com Val, a tarefa diária de buscar água. Enquanto um "cardo santo" sobreive à seca próximo ao poço. (Dezembro/Janeiro de 2017) ...... 187 Foto 13 – Com Bati e Givaldo na queima do xiquexique (Janeiro de 2017) ...... 188 Foto 14 - Com Bati e Givaldo na queima do xiquexique (2) (Janeiro de 2017)...... 189

Foto 15 - Com Bati e Givaldo na queima do xiquexique. Um cacto grande é escolhido para servir de base para a tulha, acrescentando galho secos e as hastes dos xiquexiques ao redor. (Janeiro de 2017) . 189 Foto 16 - Com Bati e Givaldo na queima do xiquexique (3) ...... 190 Foto 17 - Com Bati e Givaldo na queima do xiquexique (4) ...... 190 Foto 18 - Com Bati e Givaldo na queima do xiquexique (5) ...... 191 Foto 19 - Com Bati e Givaldo na queima do xiquexique (6) ...... 191 Foto 20 - Com Bati e Givaldo na queima do xiquexique. O excesso de luz nessa foto mostra um pouco da sensação provocada pelo calor daquele momento, entre as 14 e 15 horas. (Janeiro de 2017) ...... 192 Foto 21 - Com Bati e Givaldo na queima do xiquexique. O resultado do trabalho é carregado pelo jumento até o sítio (Janeiro de 2017) ...... 192 Foto 22 - Com Givaldo na queima da macambira (Janeiro de 2017) ...... 193 Foto 23 - Com Givaldo na queima da macambira (2) ...... 194 Foto 24 - Com Givaldo na queima da macambira. Neste ambiente, diferente de onde se queima o xiquexique, a fumaça não dissipa com facilidade. (Janeiro de 2018) ...... 194 Foto 25 - Com Givaldo na queima da macambira (3) (Janeiro de 2017) ...... 195 Foto 26 - Com Givaldo na queima da macambira. As tulhas são armadas espalhadas alguns metros umas das outras em pequenas clareiras. (Janeiro de 2017) ...... 195 Foto 27 - Com Givaldo e Gilmar na queima da macambira ...... 196 Foto 28 - Com Givaldo e Gilmar na queima da macambira. Após resfriá-las, ensacam, costuram o saco com a fibra de uma outra bromélia, o Caroá, e Gilmar segue no jumento até o sítio. (Janeiro de 2017) ... 196 Foto 29 - Com Bati no roçado de palmas. É possível reparar que as chuvas extemporâneas de meados de 2017 fizeram brotar algum mato, mas não foram o suficiente para as palmas desenvolverem (Dezembro de 2017) ...... 197 Foto 30 - Com Bati no roçado de palmas. Ao fundo, dois umbuzeiros completamente secos mostram que tais chuvas não causaram impacto suficiente para ressurgir o verde da caatinga. A seca não havia terminado. (Dezembro de 2017) ...... 197 Foto 31 – Ainda durante o auge da seca, com Bati, Gilmar, Givaldo e Douglas. Os primeiros moem cactos e macambiras e os outros, sentados sobre os tamboretes, cortam palmas. (Janeiro de 2017) ...... 198 Foto 32 – Sobre os tamboretes, embaixo do juazeiro, com Givaldo e Douglas enquanto cortam palmas. (Janeiro de 2018) ...... 198 Foto 33 - Com Bati e Givaldo alimentando os animais. (Janeiro de 2017)...... 199 Foto 34 - Com Bati e Givaldo alimentando os animais (2) (Janeiro de 2017)...... 199 Foto 35 - Com Bati e Givaldo alimentando os animais (3) (Janeiro de 2017)...... 200

Foto 36 - Com Bati e Givaldo alimentando os animais (4) (Janeiro de 2017)...... 200 Foto 37 - Borreguinho se alimentando na mãe. (Janeiro de 2017) ...... 201 Foto 38 - Depois do almoço. (Janeiro de 2017) ...... 201 Foto 39 - Givaldo colhe o mato. Resultado da breve chuva de agosto de 2017 (Janeiro de 2018) ... 202 Foto 40 - Givaldo colhe o mato. Resultado da breve chuva de agosto de 2017. Essas palmas a frente estão na primeira fileira e pegam um pouco da água do gotejamento do roçado de Geraldo. Nota-se a diferença em seu desenvolvimento. (Janeiro de 2018) ...... 202 Foto 41 - Givaldo colhe o mato. Resultado da breve chuva de agosto de 2017 (2) (Janeiro de 2018)203 Foto 42 - Givaldo colhe o mato. Resultado da breve chuva de agosto de 2017 (3) (Janeiro de 2018)203 Foto 43 - Dia de chuva no Bravo, das últimas já fracas chuvas (Julho de 2018) ...... 204 Foto 44 - Dia de chuva no Bravo, nota-se que ao fundo não vemos mais as palmas, cobertas pelo mato. (Julho de 2018) ...... 204 Foto 45 – As águas que escorrem no telhado e pelas calhas alimentam as cisternas (Julho de 2018)205 Foto 46 - Dia de chuva no Bravo. (Julho de 2018) ...... 205 Foto 47 - A mutação. (Julho de 2018) ...... 206 Foto 48 - A mutação (2) (Julho de 2018) ...... 206 Foto 49 - A mutação (3) (Julho de 2018) ...... 207 Foto 50 - A mutação (4) (Julho de 2018) ...... 207 Foto 51 - Poço e roçado de Geraldo, irrigado por gotejamento. Ao fundo vemos uma parte do Lajedo do Bravo. (Janeiro de 2018)...... 208 Foto 52 - Poço e roçado de Geraldo em uma área que está em descanso para evitar o excesso de salinização do solo (Janeiro de 2018) ...... 208 Foto 53 - Poço e roçado de Geraldo: macaxeiras (Janeiro de 2018) ...... 209 Foto 54 - Poço e roçado de Geraldo, a água faz crescer o mamoeiro em meio à seca. (Janeiro de 2018) ...... 209 Foto 55 - Poço e roçado de Geraldo, capim para os animais mesmo durante a seca. (Janeiro de 2018)210 Foto 56 - Poço e roçado de Geraldo, capim para os animais mesmo durante a seca. [com sua neta] (Janeiro de 2018)...... 210 Foto 57 - O poço e roçado de Bati: em primeiro plano a perfuração que falhou, ao fundo o poço com água. (Julho de 2018) ...... 211 Foto 58 - Visto do outro lado, o poço de Bati funcionando e irrigando seu roçado com o velho cajueiro renascendo. (Julho de 2018) ...... 211

Foto 59 - Com Gilmar no novo roçado de Bati. À esquerda o capim crescendo com os aspersores, que agora irrigam área nova. O restante verde é roçado de inverno. Em destaque, o velho cajueiro. (Julho de 2018) ...... 212 Foto 60 - No roçado de inverno de Bati, milho, feijão macaça, palmas e maxixe. (Julho de 2018) ... 212 Foto 61 - Vacas e alimento em fartura próximo ao poço de cata-vento (Julho de 2018) ...... 213 Foto 62 - Alimento em fartura. (Julho de 2018) ...... 213 Foto 63 - Com Djair Fialho e grupo de turistas em visita ao Lajedo do Bravo. (Janeiro de 2017) ..... 214 Foto 64 - Com Djair Fialho, Douglas, Fabiano e grupo de turistas suecos em visita ao Lajedo do Bravo, ao fundo a Furna do Tapuias. (Janeiro de 2017) ...... 214 Foto 65 - Com Djair Fialho e grupo de turistas de Recife em visita aos lajedos. Na Pedra do Capacete, Lajedo Pai Mateus (Janeiro de 2017) ...... 215 Foto 66 - Com grupo de turistas suecos em visita ao Lajedo do Bravo (Janeiro de 2017) ...... 215 Foto 67 – Boa parte da comunidade do Bravo presente em uma boa conversa. (Janeiro de 2017) – Foto de Douglas Araújo ...... 216 Foto 68 – Em uma imagem as coisas se misturam: algaroba verde contrastando com cinza da caatinga e do lajedo, ainda, xiquexique, facheiro, palmatória, cardeiros, pinhão, o solo seco, poço de cata-vento, as cercas de arame (...)(Janeiro de 2017) ...... 217 Foto 69 – Por entre os galhos. (Janeiro de 2017) ...... 217 Foto 70 – De cima da Furna dos Tapuias, 36km em linha reta, vemos ao fundo o início da cidade de Campina Grande (Julho de 2018) ...... 218 Foto 71 - A receptividade do primeiro almoço na Paraíba, com Djair, Eurique, Jacilene e Junior (Janeiro de 2017) ...... 218 Foto 72 - Entrevista com Fernando que se torna longa e prazerosa conversa (Janeiro de 2017) - Foto de Douglas Araújo ...... 219 Foto 73 - Fim de tarde no terreiro de Geraldo, com Antônio, Denival, Maria e as crianças (Janeiro de 2017) - Foto de Douglas Araújo ...... 219 Foto 74 – No terreiro de Maria, as conversas de fim de tarde. Detalhe para seu filho Gleissinho, com uma sanfona que acabara de ganhar (Janeiro de 2017) ...... 220 Foto 75 - No caminho para visita de domingo à tarde ainda durante a seca, o que é nítido na paisagem e no contraste com o colorido das sombrinhas (Janeiro de 2017) ...... 220 Foto 76 - Com Laura e Bati em janeiro de 2017, no dia em que completaram 65 anos casados. Em 2019, antes da defesa desta tese, alcançaram 67 anos juntos. (Janeiro de 2017) ...... 221

Sumário

Introdução ...... 17

Capítulo 1. Os caminhos de uma etnografia: método ...... 25

Capítulo 2. Um emaranhado de vidas: sobre a abordagem e a escrita ...... 45

Capítulo 3. O Bravo: contexto físico da pesquisa ...... 82

Capítulo 4. O entrelaçamento de vidas a partir da relação com o roçado, a caatinga e a criação .... 102

Capítulo 5. A rotina de trabalho e as percepções sobre o fluxo da vida durante a seca ...... 122

Capítulo 6. A inserção de alternativas exógenas no emaranhado de vidas do Cariri: sobre a algaroba e a cochonilha-do-carmim ...... 144

Capítulo 7: A água no semiárido em suas profundas capacidades transformadoras ...... 156

Capítulo 8. Um outro olhar: o entrelaçar de vidas em fotografias ...... 175

Considerações finais ...... 222

Referências ...... 232

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Introdução

Cheguei no Bravo em meio a uma grande seca que já durava seis anos, não havia mais água ou comida para os animais do sítio. Vi cactos sucumbindo à falta d’água, jumentos vagueando pelas estradas em busca de água e comida, bode comendo urtiga, pois, é o que restava ainda verde, como também, espalhados pela mata, os cascos de jabutis que não conseguiram esperar pelas chuvas. Vi o desespero dos sitiantes se entregando a trabalhos insalubres com fogo e fumaça para que seus animais não ficassem sem ter o que comer. Mas por outro lado, vi também as mais profundas transformações que a água pode proporcionar para suas vidas, vi a chuva no semiárido, vi o cinza prateado se tornar um verde tropical, a terra seca se tornar roçado, estava lá para ver a mais completa transformação em suas vidas: vi a transmutação da Caatinga, da seca ao inverno. São essas experiências que o leitor vai encontrar relatadas nas páginas desta tese, experiências que expressam a incrível capacidade da vida no semiárido de se reinventar completamente a partir da presença da água ou de sua ausência. Neste sentido, um problema principal guia a tessitura do presente trabalho: 1. Como a água, pensada enquanto um dos atores, participa decisivamente da vida coletiva nos sítios do Bravo, no Cariri Paraibano? Por conseguinte, da primeira deriva uma segunda questão de fundamental importância: 2. Como responder ao problema acima apresentado considerando a água enquanto um ator no fluxo da vida? Ou seja, como abordar a questão a partir da presença marcante de não- humanos, em especial a água, na construção e transformação da vida no semiárido? O caminho e a abordagem utilizados, ou seja, a resposta à segunda questão, partem das contribuições de dois dos principais pensadores da chamada “virada ontológica”: Tim Ingold e Bruno Latour. As perspectivas defendidas em suas respectivas obras exigem uma base de pensamento que rompa com a clássica separação entre natureza e cultura e, principalmente, com a assimetria entre as ações humanas e não-humanas. Tal abordagem coloca a possibilidade de atuação simétrica de personagens antes tidos como apenas passivos em um movimento unilateral a partir da ação humana transformadora rumo a uma natureza que a aguarda. Assim, os trabalhos de Ingold e Latour ajudam a pensar as profundas transformações da vida trazidas pela ação da água no semiárido, onde sua presença em ambiente natural é escassa durante a maior parte do tempo.

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Sendo assim, objetivo nesta tese demonstrar, em resposta ao problema central acima mencionado, como que no conjunto da vida no semiárido a água é partícipe com grande capacidade de atuação e, portanto, de transformação de toda vida no lugar. Obviamente, a água está presente em qualquer estudo realizado sobre a vida no semiárido, mesmo que seja pelas marcas de sua escassez. Mas, diferentemente de outros trabalhos, pretendo aqui uma abordagem que coloque a água como cicerone em um percurso de observação e descrição que passa pelas grandes transformações na vida de um sítio no semiárido entre o auge da seca e o inverno de 2018. Neste trabalho busco trazer o leitor para acompanhar de perto os movimentos da vida em tais condições, para caminhar pelos sítios do Bravo, para partilhar as experiências e suas transformações entre a seca e o inverno. Ao longo do texto, vários interlocutores que trabalharam na região semiárida nordestina estarão presentes. Lembro aqui alguns deles, como Klass e Ellen Woortmann (1997), que estudaram a lógica do trabalho no semiárido sergipano, o primeiro possui também trabalho clássico acerca do que chama de uma “ética camponesa” (1990), Jorge Villela (2004) e Ana Claudia Marques (2002), que estudaram relações políticas e conflitos em Pernambuco, Emília Pietrafesa (1999), que publicou estudo sobre memória e ocupação territorial no sertão do Piauí, Renzo Taddei (2017), que estudou as relações entre o conhecimento dos chamados “profetas da chuva”, aquele produzido pela ciência meteorológica e os interesses do Estado, Marienne Cohen e Ghislaine Duqué (2001), que realizaram trabalho interdisciplinar entre as ciências sociais e da natureza sobre características da vida no Cariri Paraibano. Isso para citar apenas alguns trabalhos em antropologia com os quais dialogo, há ainda textos de referência sobre famílias agricultoras em outras áreas do Nordeste interior, como Zona da Mata e Agreste (PALMEIRA, 1977; HEREDIA, 1979; GARCIA JUNIOR, 1983 e 1989), e acerca de conflitos fundiários (SIGAUD, 1986; 1992 e 2005). Porém, nenhum desses trabalhos apresenta uma descrição com um olhar que permita acompanhar a vida em movimento com as experiências e relatos de seus atores a cada variação no acesso à água. É importante salientar que apesar de tratada muitas vezes no singular, a água, desde sua precipitação em chuva, se faz múltipla. A presença da água é notada em diversas formas e nas mais diversas relações: conservada nas raízes, troncos ou galhos de algumas espécies ou na seiva dos cactos (como o xiquexique, os facheiros, cardeiros e as palmas forrageiras), como também na forma de chuvas de inverno ou extemporâneas, há também a água nos tanques, dos barreiros, das torneiras, das cisternas, ou mesmo enquanto 70% da composição do corpo humano, a água está

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presente em todo fluxo da vida em suas mais diversas formas e destinos. Tal como, a água encanada de serviço público, que evita deslocamentos por quilômetros a pé ou em jumentos e é inegável que isso transforma a vida de qualquer casa. Se não há este serviço, a água dos tanques construídos entre as rochas dos lajedos dura por algum tempo durante a seca (a depender da demanda) e pode servir às famílias ou aos animais da criação e da mata. A água de barreiros cavados pelos sitiantes dura menos, seca rápido, mas nem por isso deixa de ser importante, como também, a água de cacimba já salvou muitas vidas, quando se cava o leito de um riacho seco até que, ao menos um pouco de água possa ser encontrada. A água do poço de cata-vento vem dos lençóis subterrâneos e sai pelo cano em um fio curto, mas, constante, dentro de uma cocheira e serve a vários animais de famílias diferentes e mesmo àqueles da caatinga. A água do dessalinizador público que existe próximo aos sítios do Bravo garante água limpa para alimentação e hidratação humana e a parte salgada ainda serve aos animais. Ainda temos a água conservada no interior de cactos e bromélias que servirão de alimento para a criação animal enquanto durar a seca. Por fim, se não é possível planejar o futuro com base no fluxo do tempo climático ou adiantar as chuvas de inverno, o sonho do sitiante é encontrar água embaixo de suas próprias terras, controlar a água que já se precipitou e, assim, cultivar um roçado independente das chuvas, ter água para trabalhar e que não falte mais. Algo que vem sendo feito em outras partes do semiárido com cisternas que armazenam até 52 mil litros de água a ser destinada para o plantio e pequenas criações. Serviço de água encanada, poços e cisternas podem salvar vidas ao longo dos períodos de seca, mas são novidades da última década e meia no semiárido, e apenas as cisternas de 16 mil litros (para o consumo humano) são encontradas já em todos os sítios, poço ainda é privilégio de poucos e a água encanada está longe de alcançar todas as casas do semiárido. Porém, apenas a água das chuvas de inverno, aquela que vem em volume e duração suficientes, por uma média de três meses, pode manter o solo molhado e fazer crescer o verde das folhas e cactos, os frutos e os roçados de todos, sem fazer exceção, da mesma forma que ainda recarregam as cisternas para o abastecimento das casas e sítios durante o próximo período de seca. A água das chuvas de inverno tem a exclusiva capacidade de metamorfosear toda vida no semiárido de uma só vez. Assim como ter acesso a ela por encanamentos, cisternas e poços muda a vida de famílias sitiantes, ou posso dizer que lhes dá direito à vida. Como afirmou Antônio Magalhães (2016: 9): “The most signifcant issue surrounding the droughts is the question of water, which is the source of all the other impacts”. Ao contrário das

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grandes obras de “combate à seca” que ao longo de todo século XX se mostraram, no mínimo, ineficazes às necessidades das populações mais pobres (NEVES, 2001; 2012; 2013), o grande desafio do semiárido em décadas recentes tem sido controlar o fluxo de perda das águas das chuvas para garantir formas de manutenção da vida durante as secas (SILVA, 2003; DUQUÉ, 2008; ANDRADE E QUEIROZ, 2009). Por isso tudo, defendo que neste trabalho a água deve ser o guia da narrativa, seguindo seus traços em momentos distintos da vida nos sítios. Bravo é o nome de um conjunto de sítios e casas com uma escola, uma pequena igreja e um campo de futebol que formam como que um centro deste vilarejo localizado na porta de entrada do Cariri Paraibano. As chuvas inconstantes e os longos períodos de seca são marcas da vida no local e influenciam diretamente todo ritmo e movimento da vida do caririzeiro. Portanto, trabalho com uma característica que é comum para todo Nordeste semiárido: as variações da vida entre os longos períodos de seca e os curtos, porém, muito esperados e frutíferos invernos. Sendo assim, escolhi realizar uma descrição o mais próximo possível da vida e das experiências em tais condições, percorrendo vários sítios e cidades vizinhas, mas, com foco no relato acerca da vida em um vilarejo apenas, vivendo junto a um conjunto pequeno de casas toda sua rotina, seus dramas e suas alegrias, partilhando com eles a vida e aprendendo com suas experiências. Isso, para conseguir relatar nesta tese, seja com palavras ou fotografias, mas, de toda forma, a partir da perspectiva da experiência, como que no entrelaçar de muitas trajetórias de vidas as famílias caririzeiras do Bravo buscam superar as condições postas pelas variações na presença da água. O texto, portanto, é narrado em primeira pessoa, buscando trazer as experiências etnográficas para o texto. Porém, busco construí-lo com o convite para que o leitor ou a leitora caminhe comigo pelo Bravo em momentos distintos, nas oscilações do tempo climático, entre seca e chuva, tendo a água como guia desta viagem, a linha que liga todo o trabalho. Por este motivo, o texto é construído como se eu o apresentasse pessoalmente e assim acredito que ele deva ser lido, como um relato, uma narrativa de experiências - mediada por conceitos que trabalharei um pouco mais adiante, como ator-rede, malha, emaranhado, vida - algumas experiências delas e deles do Bravo, outras minhas com elas e eles no Bravo. Dentro desta proposta de trabalho e de sua apresentação, as experiências e os saberes são trazidos tal qual foram narrados e com as circunstâncias em que foram narrados. Sendo assim, valorizo suas narrativas nos vários diálogos

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sobre a vida no Cariri que por vezes soam como aulas e que sempre revelam suas experiências e saberes sobre o lugar. Para grafar isso na tese, utilizo dois padrões para distinguir as citações, sendo aspas para a bibliografia e itálico para os diálogos. Os diferencio apenas para que fique nítido quem é o autor da frase, mas pretendo que haja simetria entre as falas ao longo da tese. A meu ver, os livros são construções de outra ordem sobre uma mesma realidade, mas, nem por isso são mais importantes do que as narrativas orais dos habitantes com quem trabalho. Neste mesmo sentido, busco reproduzir a fala conforme foi expressa no momento por eles, sem qualquer “correção” que possa ser exigida pelas regras formais da língua portuguesa. A língua é viva, está amarrada ao fluxo da vida, expressa essa mesma vida e assim acredito que deva ser transcrita, como ela é no momento da fala. Tais falas aqui reproduzidas, como perceberá o leitor, não são resultados de entrevistas dirigidas, mas de conversas em momentos diversos que pude partilhar com as pessoas do Bravo. São diálogos na mesa, no terraço, no terreiro, sob uma árvore, sentados sobre os sempre presentes tamboretes de madeira, diálogos esses compartilhados ao longo de meu relato e descrição. Por esse motivo, escolhi não os transcrever como uma entrevista, com perguntas, respostas, os nomes ou as iniciais antes das respectivas falas, etc. Mas sim, preferi manter o fluxo do diálogo sem excesso de informação extra, o mais próximo possível da experiência daquele momento. Assim, entrelaçando leituras e experiências (vividas e ouvidas) essa tese foi construída, ou tecida, a partir da partilha de momentos da vida com essas pessoas e dando atenção ao que tinham para contar e ensinar. Por esse motivo, o primeiro capítulo busca apresentar o método desta pesquisa, como no significado original no termo grego methodos, enquanto uma trajetória de pesquisa: os caminhos escolhidos, as falhas e dificuldades no percurso, assim como, caminhos outros que se mostraram possíveis ao itinerário inicial. Dito de outra forma, narro neste capítulo o meu caminho, minhas experiências e soluções encontradas para tornar essa tese realidade e chegar aos resultados que aqui apresento. No capítulo 2, “Um emaranhado de vidas: sobre a abordagem e a escrita”, busco justificar meu olhar para a vida no semiárido, a construção da etnografia, o trabalho de campo entre os habitantes, as formas de registro das experiências e a redação deste texto. Desenvolvo neste capítulo a ideia da água como ator diferenciado em um complexo e heterogêneo emaranhado, em

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outras palavras, a única entre os mais variados atores apta a transformar cada traço da vida, seja pelas chuvas de inverno ou pelas águas armazenadas em cisternas, tanques, etc. Para isso, defendo o ponto de vista de que é possível abrir um diálogo entre as proposições teóricas de Tim Ingold e Bruno Latour, guardadas suas divergências, para o estudo de uma realidade marcada tão fortemente pelas transformações decorrentes da variação e escassez das chuvas e todas as características ímpares do ambiente de caatinga. Ambos apresentam gratas indicações para compreender a vida em tais circunstâncias, considerando a ação de humanos e não humanos (como a água, por exemplo), mas, sem qualquer possibilidade de determinismos, e sim através do entrelaçar das trajetórias desses atores, através do fluxo de tudo o que, entre o céu, a terra e abaixo dela, compõe a vida. Seguindo o caminho aberto por esses autores, trago para o debate os conceitos de experiência e narrativa como pensados por Walter Benjamin e abro então uma reflexão acerca da minha presença em campo, entrelaçando de maneira inelutável as linhas de minhas experiências às deles. Defendo que se há um emaranhado de linhas de vida, quando em campo, queira ou não, sou parte dele. Neste sentido, apresento ainda ao final do capítulo e na conclusão da tese reflexões sobre os afetos provocados por esse entrelaçar de trajetórias, desta partilha da vida, como nas experiências de pesquisadores tais como Carlos Rodrigues Brandão (1995, 1999), Jeanne Favret- Saada (2005), Loïc Wacquant (2004) e Márcio Goldman (2003; 2005). Tudo isso, sem em nenhum momento retirar os pés do chão (parte indispensável da abordagem e da escrita a que me proponho), apresento o debate teórico sempre cotejado e entrelaçado às perspectivas da vida e de minhas experiências no Bravo. No capítulo 3, “O Bravo: contexto físico da pesquisa”, apresento o Bravo durante uma caminhada pelas suas estradas descrevendo os lugares por onde passo ao longo desse trajeto na companhia do leitor. Parto do litoral passando pela Zona da Mata, Agreste, metrópole campinense até Boa Vista. No Bravo, começamos, eu e o leitor, desde a parte Sul do vilarejo, pouco antes do poço público, passamos ao lado da igreja, do campo, da escola, avistamos casas, marcas da caatinga, os roçados de palmas, os lajedos e seus enormes matacões1, cruzamos a fronteira entre Boa Vista e Cabaceiras e andamos por um outro grupo de casas, o Bravo de Cabaceiras, e ao seguirmos pela estrada podemos chegar ao Lajedo de Pai Mateus (onde há um hotel fazenda), ao distrito da Ribeira (tradicional e hoje internacionalmente reconhecido produtor curtumeiro e de artesanatos em

1 Matacões são grandes rochas arredondadas formadas pela ação do intemperismo.

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couro), à cidade de Cabaceiras (cenário de muitos filmes e novelas) e também ao Açude Epitácio Pessoa, ou apenas Açude Boqueirão (distante cerca de vinte e cinco quilômetros por estradas vicinais), e todos de alguma forma se entrelaçam ao longo da narrativa desta tese. Como disse no início dessa Introdução, cheguei no Bravo em janeiro de 2017, no ápice de uma grande seca. Dois anos antes, em janeiro de 2015, havia estado em um campo exploratório para redação do projeto de pesquisa em sítios vizinhos ao Bravo, na cidade de Cabaceiras, e já era possível sentir as consequências do prolongamento da estiagem. Porém, ao longo de 2017, no mês de agosto, uma pequena precipitação salvou os sítios de uma possível catástrofe, quando qualquer fonte de alimento para os animais já teria se esgotado. Com sete anos sem inverno, as chuvas chegaram no Bravo em 2018 abrindo possibilidades para outras formas de viver. Desta forma, nos capítulos 4, 5, 6 e 7 o argumento central da participação da água na vida do semiárido é demonstrado acompanhando seus movimentos, principalmente as variações nas formas de organização da vida conforme sua presença ou em sua escassez. Tomo então o percurso entre as duas estações descrevendo como que ao longo desse processo se apresenta e se transforma a vida no lugar e, principalmente, as formas procuradas conforme as variações para garantia de sobrevivência da família e de seus animais. Se vejo a água com grande capacidade de transformação e condicionamento no emaranhado de vidas do Bravo e é ela nosso guia na caminhada da escrita, não é de se surpreender que ela nos leve aos mais diversos âmbitos da vida: a relação com o roçado, a caatinga e a criação (capítulo 4); a rotina de vida e as percepções sobre a seca (capítulo 5); as alternativas exógenas e a crise da cochonilha do carmim, que matou quase 100% das plantações de palma forrageira durante a seca (capítulo 6); e, a espera pela chegada do tempo das chuvas até o inverno de 2018 (capítulo 7). São essas, portanto, páginas nas quais busco tecer a trajetória e as narrativas de muitas conversas no Bravo com os fluxos do tempo climático, da disponibilidade de água e a trajetória de tantos outros atores cujas próprias trajetórias também se entrelaçam neste ambiente de complexo emaranhado. Por fim, acredito que as fotografias podem oferecer uma outra experiência de leitura e, nesse sentido, procurei compor o capítulo 8 apenas com elas, uma breve apresentação ao conjunto de imagens e à abordagem e um título com datação para identificar cada uma delas. São setenta e seis fotografias selecionadas de cerca de trezentas, que por sua vez foram selecionadas de milhares de tentativas e erros. Inspirado no trabalho clássico de Margareth Mead e Gregory Bateson,

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“Balinese Character: a photographic analysis” (1942), busco retratar neste capítulo o fluxo da vida no Bravo, suas profundas transformações, os diversos atores que o compõem e as possibilidades, habilidades e instrumentos para cada momento. Também para as fotografias vale todo o discurso sobre minha presença em campo, pois, são elas uma tentativa de levar o leitor comigo para caminhar pelo Bravo, queimar xiquexique e macambira, tomar café no terraço de Laura, buscar água com Val, partilhar o fim de tarde de boa conversa no terreiro de Geraldo, filho de Laura e Bati, com Maria, sua esposa, os amigos Antônio Xerém, Fernando, Bolô e as crianças. Mais que uma descrição da vida nos sítios do Bravo, este capítulo, como também o conjunto desta tese, são um convite para partilhar a vida com eles através da leitura de textos e fotografias. Por fim, nas considerações finais, busco através da retomada do argumento acerca dos fluxos dos materiais em um emaranhado de vidas humanas e não humanas, demonstrar que a água não age sozinha, ou em sua escassez, a seca também não age só. Em suma, as dificuldades de convivência com as vicissitudes do clima só se explicam pela ineficiência das alternativas criadas pelo Estado, visto que uma ampla bibliografia comprova a eficiência de alternativas relativamente simples para a convivência com o semiárido (CIRILO, 2003; DA SILVA, 2003; DA SILVA, 2007; DUQUÉ, 2008; ANDRADE E QUEIROZ, 2009; DE CAMPOS 2014; entre outros). Como muito bem mostrou Frederico Castro Neves (2000; 2001; 2013), as tentativas de se “combater as secas” através de grandes obras apenas concentraram poder e pouco ou nada amenizaram o sofrimento das famílias agricultoras. A partir da perspectiva de um emaranhado, a água ou a seca de forma alguma determinam a vida, mas participam dela. Por isso, destaco neste capítulo final as alternativas bem- sucedidas de convívio dentro deste emaranhado heterogêneo que compõe a vida no semiárido, com destaque para a importância dos benefícios previdenciários, programas sociais e, principalmente, a atuação da Articulação do Semiárido – ASA, que demonstraram durante esta última seca, a mais longa de que se tem notícia, que é possível conviver com as vicissitudes do clima semiárido. Assim como, com as mudanças climáticas em curso as secas tendem a se agravar (como já se fez notar nos últimos sete anos de seca, algo jamais registrado até então) e o incremento da capacidade de resiliência destas populações se faz ainda mais urgente.

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Capítulo 1. Os caminhos de uma etnografia: método

Os caminhos de uma etnografia são sempre imprevisíveis, labirínticos, podem nos levar a muitos destinos inesperados. O que vivemos em campo, por mais familiar que nos seja, tende sempre ao inusitado. Um antropólogo em campo deve delinear os passos principais, os objetivos a serem cumpridos, deve manter cadernos de campo, diários e todos aprendizados que trazemos desde Malinowski, mas, não deve se frustrar quando o dia-a-dia em campo o empurrar em outros sentidos. Ao contrário, por esse aspecto rizomático do trabalho etnográfico é que procuro neste capítulo valorizar todo caminho percorrido, passo a passo por onde estive e que estradas me trouxeram até o texto desta tese de doutorado. O caminho desta etnografia começou a ser traçado, ou ao menos planejado, ainda em 2013 por uma simples curiosidade que me levou a escrever o projeto e concorrer no processo seletivo para o doutorado. Porém, de início essa inquietação não tinha ambições e vinha de muito antes de pretender iniciar uma carreira acadêmica, ou mesmo de saber o que isso significava. A curiosidade de quem nasceu e cresceu à beira da Serra de São Domingos, em plena Serra da Mantiqueira, num ambiente de clima tropical de altitude com chuvas em abundância. Nasci e cresci em Poços de Caldas e algumas situações sempre me chamaram a atenção, apesar de corriqueiras: chovia muito! Com médias sempre acima de 1600 mm ao ano, à frente da casa onde cresci ainda se vê o verde da Serra de São Domingos e, ao fundo, um poço pouco utilizado e água que minava por todos os cantos em tempos mais chuvosos. Ao mesmo tempo em que me criava entre as serras do Sul de Minas em condições de abundância de água, os noticiários dos anos de 1990 traziam imagens das terríveis consequências das secas no Nordeste brasileiro, o solo seco e rachado, o desespero com as plantações perdidas e as cenas da fome das pessoas que ali viviam. Ainda hoje tenho na memória as imagens de mulheres com latas sobre as cabeças ou penduradas nos ombros buscando água a quilômetros de distância. Me recordo bem das reportagens sobre crianças que pouco ou nada tinham para comer e iam para a escola, quando possível, com o estômago vazio, como também aquelas que deixavam a escola para ajudar em casa, pois era a opção para que sobrevivessem todos na seca. Os animais por sua vez aparentavam não se suportar em pé, com os ossos saltados à pele. Essas eram as imagens dos noticiários nos anos de 1990 sobre o Nordeste. A antropóloga Nancy Scheper-Hughes (1993), que realiza trabalho de campo no interior do Nordeste brasileiro desde o

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final da década de 1960, descreve eu seu livro, “Death Without Weeping: The Violence of Everyday Life in Brazil”, um cenário de completo desastre humano. Na década de 1980, segundo ela, a fome e doenças como febre tifoide, doença de chagas, poliomielite, tuberculose, leptospirose, peste bulbônica, matavam milhares de crianças da região. Nesta época, do total de mortes de crianças na América Latina, um quarto eram crianças do Nordeste brasileiro (Ibid: 31) A imagem da terra seca e rachada e da miséria me impressionavam desde novo. Essa imagem de um Nordeste seco e abandonado, que me lembrava a saga de Fabiano, Sinhá Vitória, Baleia e as crianças no clássico “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, ou Severino, o lavrador retirante de “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto (1996), me levou a refletir sobre o papel central da água para a garantia da vida. De forma simples, me perguntava como se organizava a vida em tais condições onde chuvas são ocasionais e mesmo sua soma rende pouco, me perguntava como era a vida em contexto de semiaridez. Meu foco de questionamento em um primeiro momento estava focalizado, portanto, na seca, na falta de recursos, na falta d’água, ou seja, na falta (perspectiva logo revista ao longo dos estudos e ainda mais após o trabalho de campo). Tais ideias e questões deram início aos estudos sobre o semiárido e me levaram para o interior do Nordeste pela primeira vez em janeiro de 2015. Pude conhecer ali um Nordeste castigado pela mais longa seca já registrada, mas, com vida e cores que vão muito além do cinza e do marrom, representações da ausência ou pobreza da vida, em contraste com o verde. Encontrei um Nordeste pobre sim em economia, mas rico em formas de vida, pessoas que mesmo no decorrer de uma grande estiagem, que perduraria ainda por 3 longos anos, construíam o dia a dia com as condições que o ambiente lhes proporcionava, esperando sem depositar expectativas no dia em que as chuvas viriam, buscando construir condições para a sobrevivência. A mudança de perspectiva, essa outra visão do semiárido, mudou o interesse de minha pesquisa, não mais me interessava a seca apenas, ou a falta d’água, mas a água em si e a vida como um todo no semiárido. Até porque, o grande problema do habitante do semiárido brasileiro não é a falta de chuvas, mas de condições adequadas antecipadamente estabelecidas para que seja possível sobreviver à seca e esperar pelo próximo inverno2. Tal como afirmou Carolina Vidaurri (2010: 62-63 – tradução é minha)

2 Prova disso é o sucesso do Programa Um Milhão de Cisternas, projeto da Articulação do Semiárido – ASA que virou política pública em 2003 e hoje está sendo implantado de forma semelhante na região do Sahel, no continente africano, por iniciativa da FAO – Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura. (FAO, 2019; ROSSI, 2018). As cisternas de captação por calhas ou enxurrada armazenam água das chuvas e evitam a perda por evaporação, desta

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acerca da seca no contexto amazônico, e o mesmo se aplica ao semiárido, a vulnerabilidade “entre muitos fatores socioeconômicos, se deve à débil infraestrutura política para enfrentar as ameaças climáticas da região”. Porém, ainda antes de chegar na Paraíba em 2015, minhas leituras se direcionavam mais ao Sul, mais perto de casa e ainda em Minas Gerais, no Vale do Jequitinhonha, início da região oficial do Semiárido Brasileiro. Assim como afirmei que o Nordeste é quase sempre descrito apenas pela faceta da pobreza, o Jequitinhonha, em Minas Gerais, como bem define Margarida Maria Moura (1988: 3), era tido como “um paroxismo de pobreza”. Porém, muitas leituras sobre arte e cultura popular no Jequitinhonha (MATTOS, 2001; DALGLISH, 2006), assim como trabalhos sobre os modelos tradicionais de gestão da água (especialmente a tese de Flávia Galizoni [2005]) mostravam outra face dessa realidade: para além da pobreza, havia vida, criação, inventividade nas formas de resolver os problemas decorrentes da seca e o abandono político-econômico. O campo e a pesquisa no Jequitinhonha não se realizaram, mas, as leituras apresentaram novos olhares sobre vida em condições de semiaridez. Não quero dizer com isso que a seca em si não possa ser questão, mas, que é preciso vê-la dentro de um complexo de vida, criação e movimento, a seca ou inverno são partes de um emaranhado, não são agentes que determinam como a vida deva ser. O semiárido é muito mais que falta d’água e nenhuma forma de vida espera imóvel passivamente a chegada das chuvas. A vida continua durante a seca, identificando e criando novos caminhos para qualquer momento e é reorganizada a cada novo retorno do tempo das chuvas. Neste sentido, me chamou a atenção uma cidade no interior da Paraíba que afirmavam em noticiários ser “a cidade que menos chove no Brasil” e ao mesmo tempo cenário de filmes, séries e novelas. A cidade é Cabaceiras, com baixíssimos índices pluviométricos e sua reinvenção através turismo atraído pelas produções ali realizadas para o cinema e a televisão me levaram para o Cariri Paraibano. A partir de então o foco de meu interesse para a pesquisa deixou o Jequitinhonha para cerca de 1500 km ao Norte, uma escolha que dificultava o deslocamento, mas, apresentava situações que se mostravam muito interessantes para uma pesquisa. A filmografia de Cabaceiras, em primeiro

forma, garantem água doce ao lado da cozinha de casa. Obviamente isso não resolve todos os problemas vividos pela população do semiárido, mas evita enormes deslocamentos para abastecer a casa com pouca água e, possivelmente, não adequada ao consumo humano.

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lugar, em especial a série e longa-metragem “O Alto da Compadecida” (1997)3 levaram as imagens da pequena cidade para todo o Brasil e outros cantos do mundo. Esse e outros tantos trabalhos de audiovisual tornaram a cidade conhecida e procurada por equipes de reportagem e turistas, a ponto de ganhar além do epíteto de “Roliúde Nordestina”, uma placa similar a californiana fixada na entrada da cidade. Tais informações me levaram à Paraíba, pela primeira vez, em janeiro de 2015 para um campo exploratório em busca de mais informações sobre a vida nessa cidade. Recebi na ocasião o apoio financeiro da Unicamp para o custeio das despesas de viagem. Com o investimento total de três mil reais, entre o auxílio e recursos próprios, foi possível pagar a passagem de avião até Campina Grande e ainda alugar um carro para agilizar, ou mesmo tornar possível, o deslocamento por vilarejos e fazendas na área rural que até o momento não conhecia. A proposta era um campo através do qual, dentre outras atividades, pudesse identificar na área rural de Cabaceiras a delimitação do lócus da pesquisa, um vilarejo, sítios ou assentamentos, assim como conheceria um pouco das pessoas com quem poderia trabalhar. Antes da viagem passei alguns dias escrevendo para inúmeras pessoas entre contatos que encontrava na internet e que acreditava poderiam me apresentar à cidade. Entre inúmeras mensagens enviadas a professores, pesquisadores, jornalistas e outros, apenas uma pessoa me respondeu colocando-se à disposição, um jovem vereador local de nome Toninho Menezes. Quando de minha chegada, Toninho com seu filho e o amigo Damião, radialista na cidade vizinha de Boqueirão, me receberam, guiaram e apresentaram às pessoas e lugares em dias trabalhando juntos. A relação de amizade construída facilmente e pessoas extremamente receptivas tornaram o pouco tempo da primeira viagem bastante produtivo. As andanças por todos os cantos de Cabaceiras expuseram um conjunto de personagens que, cada um a seu modo, buscava viver em um ambiente de semiaridez, diversas formas de vida e também diversas formas de organizar a vida: desde os caprinos que andam quilômetros para encontrar alimento e água e nunca perdem o itinerário da volta, os lajedos que armazenam água, os poços, as cisternas, fazendeiros, políticos, turistas, artistas de TV e cinema, o povo da cidade e do campo, pequenos sitiantes e suas muitas estratégias para garantir a subsistência da família e dos

3 Produção audiovisual de grande sucesso em todo Brasil baseada no clássico de 1955 do dramaturgo paraibano Ariano Suassuna para o teatro: Auto da compadecida (2018)

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animais da criação. A vida no Cariri mostrava que havia desenvolvido meios e habilidades para, certa das dificuldades, tentar se manter em tais condições. Dado a condições econômicas, visto que fiz todo doutorado sem bolsa, deste momento do campo exploratório até meu retorno à Paraíba passaram-se dois anos. Neste tempo, segui trabalhando como professor e tive a grata experiência de trabalho em uma pequena empresa de consultoria em patrimônio material e imaterial. Em um ano trabalhando com o amigo Georgios Dimitriadis, arqueólogo grego radicado no Brasil, tive experiências em trabalhos de campo em várias cidades do país. Trabalhei não só com cultura imaterial, mas também aprendi a rotina do trabalho com arqueologia preventiva. Aprendi a fazer os trabalhos de sondagem prospectiva, coleta de amostragens do solo e monitoramento de escavações. Realizei ainda trabalhos de educação patrimonial e pesquisas sobre cultura imaterial em cidades diversas do interior de São Paulo, em Minas Gerais e em Goiás. Cito tais experiências, pois, todas ocorreram enquanto buscava retomar o trabalho de campo para o doutorado e percebi, então, como seria possível montar uma estratégia de trabalhos de campo curtos a cada período de férias utilizando para isso todo aprendizado destes trabalhos sempre de curta duração e com prazos reduzidos para entrega de relatórios. Situações nas quais é necessário organizar e realizar planejamentos para cada etapa do dia e, principalmente, ser criativo, a empresa não pagará para que você retorne a campo para rever informações e todo trabalho de campo é repleto, ou quase que totalmente formado por imprevistos. Assim, se o campo exploratório em janeiro de 2015 me apontava para o assentamento rural do Pocinho ou para o Sítio Tapera, ambos em Cabaceiras, como locais de interesse para a continuidade do trabalho, a retomada da pesquisa de campo na Paraíba ocorreu apenas em janeiro de 2017 e nesse ínterim as coisas mudaram, desta vez fui direto para os sítios do Bravo, onde, a partir de então, seria o lócus de minhas observações. O contato se deu ao acaso e teve início logo de meu retorno de Cabaceiras, em 2015. Dentre as visitas que fiz, estive com Toninho e seu filho no Hotel Fazenda Pai Mateus, importante ponto turístico da região localizado ao lado da Tapera e cerca de quinze quilômetros do Bravo. Logo que parti, um morador local que não tive a oportunidade de conhecer pessoalmente na primeira viagem me adicionou aos contatos do Facebook. Era Djair Fialho, guia de turismo nos lajedos, pesquisador da área de arqueologia e geociências, nascido e criado no Bravo e a frente de uma série de projetos que buscam ajudar a população e desenvolver o turismo local. Por dois anos acompanhei suas postagens pelas redes sociais, entre fotos, vídeos e

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textos, assim como, diversas reportagens sobre os lajedos já veiculadas na TV. Após quase dois anos afastado e acompanhando de longe o agravamento da crise hídrica por todo semiárido, em final de 2016 entrei em contato com Djair para combinarmos uma visita de um mês ao vilarejo e aos lajedos do Bravo. Desde que cheguei no Bravo fiquei hospedado na casa desocupada do pai de Djair, Eurique, e sempre que esse chega nas primeiras horas da manhã com o objetivo de buscar ração, o acompanho pelas estradas de terra de Boa Vista, Cabaceiras e Boqueirão. Eurique havia se mudado para a área urbana de Boa Vista havia pouco mais de um ano, deixando na casa apenas seus materiais de trabalho, desde então Djair teve a ideia de transformá-la em uma sede provisória para seu projeto: um centro de vivências da área que virá a ser o Geoparque Cariri Paraibano. Limpamos e demos uma pequena organizada na casa e pude estrear o que hoje é um ambiente de recepção de visitantes e pesquisadores. Minha base no Bravo estava fixada na família de Djair, rodei todo vilarejo casa por casa, conversei com quase todos moradores (que de alguma forma estão também ligados por algum laço de parentesco, seja consanguíneo ou afetivo), gravei entrevistas e registrei cada conversa, o que não era gravado era registrado com cuidado no caderno de campo. Mas, os momentos de maior proximidade foram construídos junto aos tios, pais, avós e primos de Djair. Com o tempo, meu cotidiano foi se tornando cada vez mais próximo desta família, acompanhando de dentro o trabalho de homens e mulheres, as brincadeiras das crianças, as festividades, o lazer, as discussões, os momentos de dificuldade. Procurei ser mais que uma visita distante, quis partilhar a vida com eles de forma sincera e valorizar ao máximo tais experiências, até porquê, de outra forma estaria forjando em mim enquanto pesquisador um ser humano que não sou. Morava sozinho, ou melhor, na companhia da cachorra Bolinha, na sede do Centro de Vivências. Ao passar por Campina Grande comprei tudo que precisaria para cozinhar em casa, porém, desde o primeiro dia até minha mais recente passagem pelo Bravo isso não aconteceu de fato, a exceção do brigadeiro que fiz poucas vezes para compartilharmos no prato. Laura e Rejane sempre insistiram que era besteira eu querer cozinhar enquanto estivesse ali, que comida tinha para todo mundo e eu deveria comer com eles. Assim almocei e jantei todos dias, de segunda a segunda, com Laura e Bati, avós de Djair, Rejane, sua mãe, e Genival (ou apenas Val, como todos o chamam), seu tio e Suelânia, sua prima. Chegava sempre antes para partilhar a conversa nos tamboretes do

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terraço ou na sala enquanto assistíamos TV, erguia e ajustava o lugar da mesa com Bati para todos se sentarem e ouvia com atenção cada história sobre a vida no Cariri contada ao redor da mesa após jantarmos. De forma que posso dizer que no Bravo minha casa esteve sempre estendida para além dos cômodos em que residia, vivia entre a casa em que me hospedava e a casa de Laura e Bati, fazendo desses momentos parte indispensável do trabalho de campo. A partir da partilha da vida obtive as melhores informações e experiências para a tessitura desta tese e trago isso como uma das contribuições de meu trabalho para se pensar a pesquisa em campo. A receptividade e generosidade destas pessoas impressionavam. Fui recebido desde o primeiro dia como se tivéssemos já uma vida de convivência e afinidade. A cada dia que, ainda tímido, pensava em fazer minha própria comida em casa, na hora da refeição vinha Val para dizer: “Mateus: mãe mandou chamar pra comer que a comida tá na mesa”. Enquanto eu não chegasse, a comida não era servida e o lugar posto na ponta esquerda da mesa estava sempre reservado. Certamente, a primeira forte impressão causada pelo Cariri foi a abertura e generosidade de seu povo durante à seca mais longínqua de suas vidas. Algo como me recorda a passagem do clássico “Os Nuer” em que Evans-Pritchard afirma que “Esse hábito de partilhar, e, da mesma forma, a partilha, é facilmente compreensível dentro de uma comunidade onde é provável que todos se encontrem em dificuldade de tempos em tempos, pois é a escassez e não a abundância que torna as pessoas generosas” (Evans-Pritchard, 2011: 98). Este quadro de proximidade generosa rapidamente construído, me abriu a possibilidade de um convívio íntimo com o cotidiano no Bravo, percorrendo todo vilarejo e região, mas, com foco nas experiências ao redor da família de Laura e Bati. Desde o primeiro momento, todos compreenderam que eu era um estudante de doutorado fazendo uma pesquisa que era parte do curso e todos buscaram sempre ajudar para que eu pudesse acompanhar e registrar as atividades, salvo em momentos de trabalhos que envolvem algum perigo, como a queima de cactos para alimentação animal, trabalho absolutamente insalubre e para o qual era preciso insistir para que me deixassem acompanhá-los. Sendo assim, devo salientar que a amizade e o apoio logístico oferecidos por Djair e por toda sua toda família no Bravo foram substanciais e decisivos para o sucesso deste trabalho. Sempre que deixo o Bravo dizem que a “minha casa” está disponível para quando eu voltar. Esta casa, a do Centro de Vivências, tem um modelo arquitetônico comum no Cariri, com três

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quartos emparelhados ao lado direito, terraço à frente e um terreiro ao fundo, cozinha, banheiro e uma sala. Os quartos em casas mais antigas não costumam ter portas, mas cortinas e o telhado é sem forro, o que facilita também a ventilação e reduz o calor. Em minha primeira visita, a casa estava fechada havia um ano e o primeiro passo foi contratar duas pessoas do Bravo para uma grande faxina. As duas amigas do Bravo transformaram em um dia a casa de semiabandonada em um ambiente agradável, meu espaço de descanso, leitura e escrita. Neste primeiro mês no Bravo não tive geladeira nem acesso à água encanada, assim como, a cisterna estava quebrada e vazia. Por conseguinte, conservava o mínimo de alimento em casa e no caso da água, essa era obtida de duas maneiras: 1) A água que bebia vinha da cisterna de Laura e me era oferecida em uma garrafa térmica de cinco litros por minha vizinha, Ilda, casada com Givaldo, um dos filhos de Laura e Bati. 2) A água para uso geral, como banho e limpeza da casa vinha do rejeito do dessalinizador. Uma vez na semana, eu acompanhava Val com o jumento até o poço e buscávamos uma carrada de água que me abastecia com 200 litros. Tomava banho utilizando um balde, prática comum no Cariri, e procurando economizar a pouca água de que dispunha. A descarga no vaso sanitário é sempre, ou preferencialmente, com água de reuso, utilizava principalmente a água que sobrava da lavagem das roupas. Um mês em que involuntariamente vivi, por esse caminho imprevisível do trabalho etnográfico, a experiência de como, até pouco mais de uma década atrás, ainda era a vida no Bravo, sem cisterna ou água encanada, e ainda o é para uma enorme parcela da população do semiárido. Em meu retorno, no fim de 2017, a estrutura havia mudado muito. Com a ajuda de Aluísio, professor que havia lecionado na escola do Bravo anos antes, Djair conseguiu instituir, com todos requisitos legais, uma associação visando realizar ideias que desenvolvam o turismo no Bravo e gerem renda para a população. A fachada da casa havia sido pintada com o logotipo da associação e o interior estava muito organizado, com biblioteca, mesa para reunião e estudo, internet, geladeira, água encanada. Já não precisava me deslocar para buscar a água para higiene e tinha, graças à energia elétrica, meu queijo, goma de tapioca e água na geladeira. A sede da associação recebe desde então pessoas de vários lugares do Brasil e vários objetivos. O projeto ainda está distante de dar retorno financeiro, Djair mantém a sede com dinheiro de sua própria renda, mas, ano a ano percebo o projeto ganhar maior corpo. Há plantas de projetos arquitetônicos, pagas por

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amigos de Djair, para uma praça e uma sede definitiva para a associação com um hotel para receber turistas. De toda forma, mesmo sem a sede definitiva e a associação ainda nascendo, a antiga casa de Eurique tem boas condições para receber visitantes ou pesquisadores. No meu caso, contar com um refúgio calmo para o pensamento e a escrita foi de grande valia. A cada fim de período, após o almoço ou após jantarmos, me recolhia em meu próprio canto para escrever, rever e organizar as fotos ou apenas refletir sobre as experiências que havia vivido com eles desde as primeiras horas do dia. Isso porque, o dia no Cariri começa cedo, a luz do dia aparece antes das 5 e perto de 4 da manhã já se ouve ovelhas, galos, galinhas e jumentos. Encontrava quase todos os dias com Eurique, que buscava o caminhão, estacionado no galpão ao lado, e suas ferramentas ou sacos de ração. Eurique comercializa ração nas proximidades do Bravo, entre Boa Vista e Cabaceiras, um homem esperto que sabe negociar e não tem medo de trabalho pesado. Por diversas vezes, por volta de 6 da manhã o acompanhei até Boqueirão, cidade vizinha, para buscar ração e em seguida fomos entregar os sacos de milho, farelo de milho, resíduo de algodão, etc. Era a melhor oportunidade de viajar pelas estradas de terra do Cariri, conversar e ouvir histórias e experiências do local, ver paisagens, casas, pessoas, situações pelo caminho e obter boas histórias sobre elas. Durante a seca, um forasteiro pode julgar as estradas da caatinga um tanto quanto semelhantes, quase indistinguíveis entre si, mas, para quem nasceu, cresceu e vive caminhando por elas, cada curva, cada morro, cada casa, cada riacho ou açude secos têm suas histórias a serem contadas. Essas viagens para Boqueirão possibilitavam ainda que eu acompanhasse o movimento que envolve a seca e o comércio de ração, do grande distribuidor, dono do depósito e de vários caminhões que buscam a ração nos portos do litoral, passando pelo pequeno comerciante que vende para os sítios em seu pequeno caminhão. Uma vez por semana sentei-me na boleia e o acompanhei até Boqueirão e por algumas vezes fui até os sítios para a distribuição. De toda forma, a boleia do caminhão foi um importante meio de partilhar momentos da vida durante a seca e conhecer um pouco mais do Cariri da Paraíba. Porém, a maior quilometragem que obtive nas estradas do Cariri foi, sem dúvida, na moto de Douglas, amigo e guia durante a maior parte de todo meu trabalho de campo. Procurava sempre encher o tanque de sua moto e pegava carona por todo canto: Tapera, Boa Vista, Cabaceiras, distrito

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da Ribeira e cada casa do Bravo, uma a uma, e ainda nos lajedos, áreas de mineração e na caatinga, por cada canto para onde o planejamento ou as conversas me guiavam. Em uma dessas passagens, ganhei para sempre uma marca do Cariri: uma pequena cicatriz de cerca de 3 por 3 cm na parte superior do pé esquerdo. Fruto de uma ferida no motor da moto que ficou carne viva e levaria dois meses entre antibióticos e antinflamatórios para cicatrizar por completo. No dia seguinte ao ocorrido, sem uma roupa social adequada para o momento e com chinelos de dedo por conta da queimadura, fui ao casamento dos amigos Diego e Samara, ele, neto de Laura e Bati, irmão de Djair. Um comboio de motos se formou por volta de 7 da noite para seguirmos em direção à Boa Vista. Cito tais momentos de cuidado com a ferida no pé e o casamento de Diego e Samara, uma vez que foram momentos paradigmáticos na construção do campo. Esses acontecimentos ocorreram cerca de 15 dias após minha chegada e me mostraram que já tinha construído uma relação de convívio muito próxima, foram momentos para tecer relações de grande afinidade. Durante o jantar de casamento na casa dos noivos apenas familiares estavam presentes e Diego fazia questão de afirmar e reafirmar que eu não era visita, mas parte deles. Dois dias depois, quando a ferida aberta pela queimadura infeccionou, ao ponto de não suportar mais pisar com esquerdo, Bati parou o trabalho de Douglas no sítio pela manhã para que ele me levasse até o posto de saúde em Boa Vista. Rejane me deu as ataduras e me ensinava a fazer assepsia do local, Ilda me deu Rifocina e Socorro o antinflamatório. Douglas, mesmo não tendo culpa alguma no pequeno incidente, pediu desculpas por dias e ainda no ano seguinte, quando voltei, pedia desculpas pelo meu pé queimado. Não seria a única cicatriz, caí ainda outras vezes da bicicleta, da moto e até mesmo pulando os cercados do sítio. Passei a estar presente em todos os momentos de reunião íntima familiar, além de já estar presente na mesa de refeições todos os dias. O fim de tarde no terreiro da casa de Geraldo já era obrigatório, quando faltava, perguntavam de mim: “Cadê o mineirinho que não veio hoje”? Socorro cobrava minha visita, assim como Fernando, que me cobrava uma tarde de visita e conversas em sua casa. Fernando é um homem inteligente, de ótima conversa, muita sabedoria e gosta muito de ouvir, perguntar e aprender, por isso, perguntava muito sobre Minas, São Paulo e por onde já passei. Motivo pelo qual Djair me disse rindo quando fui pela primeira vez visitar Fernando: “Você vai ver se é você que vai entrevistar Fernando ou é ele que vai te entrevistar”. A forma como essa entrevista

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se tornou uma ótima conversa é o mesmo que passou a ocorrer em todas as entrevistas no Bravo: começava como uma entrevista, mas logo na primeira pergunta se tornava uma conversa fluida. Em pouquíssimo tempo em campo percebia que minha condição de pesquisador visitante mudava por completo. Assim, não os procurava apenas nos momentos de entrevistas ou observação. Estava ali partilhando todos os momentos, vivendo aqueles bons e também os ruins, ou simplesmente sentado no tamborete vendo o dia acabar, assistindo as nuvens negras e relâmpagos no horizonte distante, ou, como quase toda noite, sentado no sofá com Bati, Laura, Val, Rejane e Gleisinho, acompanhando as notícias (quase sempre ruins) nos jornais televisivos de fim de tarde. Estava presente em algumas novenas, fui à missa de primeira comunhão de Deivinho, filho de Diego, ali mesmo no vilarejo, assistia as peladas de sábado no campinho em frente de casa sentado na porta da Igreja conversando com Givaldo, fui junto de Rejane, Suelda, Maria Helena e Douglas caminhar pela caatinga e fazer a visita familiar de domingo. Todos bem vestidos e com sombrinhas para proteger do forte sol da tarde no Cariri. O colorido das sombrinhas contrastava com a secura da caatinga naquele período. Visitamos a professora Rosane e sua mãe Inácia, antiga professora do Bravo, visitamos Luizinho, onde paramos um minuto para conversar e comemos algumas fatias de queijo, e por fim, na última casa, ouvi por cerca de 40 minutos a história de vida, amor, separação e reencontros de D. Nanita (na época com 85 anos), que contou espontaneamente para todos que ali estavam, pelo gosto mesmo de narrar. Me senti suficientemente em casa para apenas sentar ao chão, na sala cheia, ouvir e registrar na memória (e no diário mais a noite, é claro). Uma tarde qualquer em que o passeio de domingo é o próprio trabalho de campo e lhe traz experiências como questionários guiados seriam incapazes fazer. Passei a ser chamado para os eventos em família, como as festas de aniversário que são sempre íntimas, simples e surpresas. As datas de aniversário costumam passar quase que despercebidas no Bravo, afinal, todo dia é dia de trabalho. Bem como, em tempos de seca não se tem nem muito tempo nem mesmo dinheiro para essas comemorações. O que se faz, portanto, é vez ou outra uma festa surpresa para uma pessoa que não esteja esperando por ela. Fazem tortinhas e salgadinhos, compram refrigerante, Suelda faz o bolo e cantam parabéns. Assim, estive nas festas surpresas que fizeram para Ilda, para Rejane e para Val, este que completando 58 anos, nunca tinha tido para ele uma festa como essa. Participar deste momento, ver sua reação com os olhos

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marejados, foi uma das experiências mais marcantes em todo trabalho de campo. Situações essas de partilha da vida que nos colocam frente ao paradigma da participação e afetação no e pelo campo, como nos mostram tanto Fravret-Saada (2005) quanto Márcio Goldman (2003 e 2005) e também Carlos Rodrigues Brandão (1995 e 1999). Em meio a um período tão longo de seca como ocorreu até 2018, somado à praga da cochonilha que dizimou suas plantações de palma forrageira e uma crise econômica e política no país que cortou benefícios e gerou perda no poder de compra do salário mínimo, é difícil ter momentos de lazer puro. Todo dia se trabalha, mesmo domingos ou feriados; o máximo que se consegue é adiantar o alimento que será dado no domingo aos animais para que não seja preciso trabalhar o dia todo neste dia, o restante do trabalho permanece o mesmo, seja páscoa, natal ou ano novo. Ou seja, a criação precisa comer e, durante a seca, depende totalmente da ração dada pelos humanos. Com as chuvas esse trabalho diminui, dado a quantidade de pastos naturais, e momentos de descanso e lazer podem ser cogitados com maior facilidade. Mesmo que ainda sob condições da seca, uma chuva passageira em meados de 2017 possibilitou uma pequena mudança nessa rotina. Assim, sem ter a intenção direta, articulei eu mesmo um passeio em grupo. Fiquei sabendo que haveria um jogo beneficente na Ribeira entre o time local e o time de São João do Cariri, para ajudar na cirurgia de recomposição de ligamentos do joelho de um zagueiro do time da Ribeira. De conversa em conversa comentando de minha intenção de ir ao jogo, logo estávamos articulando motos e carros para irmos todos. Por fim, Rejane conseguiu organizar a logística do transporte e no domingo, saímos 25 pessoas distribuídas em dois carros e cinco motos. Fui dirigindo o carro do amigo Genésio levando algumas mulheres e crianças, enquanto esse foi na moto com sua esposa Suelânia. Viajamos para Ribeira, assistimos ao primeiro tempo de frente ao bar e logo seguimos para Cabaceiras para comermos tapioca na praça. Uma fuga da rotina que, como me disseram, nunca havia ocorrido entre eles e não ocorreria não fosse a pequena e extemporânea chuva de 2017. Cada passagem minha pelo Bravo foi curta, mas vivida com a mais absoluta intensidade. Acordava com os primeiros e dormia depois dos últimos, estava no trabalho, na pausa para o lanche, na cozinha enquanto se prepara o almoço, durante a própria refeição e após, em cada momento de descontração, ouvindo cada história, buscando partilhar cada experiência. Ao final de cada período de trabalho de campo no Bravo me despedia com horas de gravações, centenas de fotos e diários

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recheados de anotações, mas era de chamar a atenção a própria despedida, quando praticamente todos choravam ao se despedir. Ao invés de buscar apenas a observação do cotidiano, estava partilhando a vida com eles o mais dentro quanto possível. Por curta que fosse cada passagem pelo Bravo e dado ao pouco tempo disponível, estava presente e aproveitava cada espaço e cada momento conforme ocorria no cotidiano da vida caririzeira, não porque estava próximo e preparado para registrar, mas, porque estava lá junto a eles partilhando aquele momento, e isso é completamente diferente. Deixei sempre claro que era um pesquisador, minhas questões quanto a água, a seca, a vida no semiárido. Mas isso não inviabilizava que, aos poucos e sem planejar, eu pudesse estar presente entre eles por uma relação de afinidade e não como um estranho observador. Estive presente, por convite, em casamento, primeira comunhão, no Natal, no jantar da virada e no almoço do primeiro dia de ano, em novenas, churrascos, passeios, como também presenciei fortes discussões e momentos de angústia e doenças que os acometeram. O distanciamento agora era estritamente epistemológico, pois, no dia-a-dia do trabalho de campo, já me sentia muito próximo da vida caririzeira. Obviamente não me tornei um caririzeiro, mas sem dúvida vivi com intensidade cada dia em campo junto a eles, cada refeição me proporcionava ao menos trinta minutos na companhia de oitenta e cinco anos de vidas e sessenta e cinco de casamento no Cariri entre Laura e Bati. A proximidade com a família me possibilitou partilhar a vida com eles e a cada noite me encontrava frente a grande quantidade de informações entre fotos, documentos, histórias e infindáveis questões, reflexões e anotações para o diário e campo, além de todas as formas como tais experiências vinham a me afetar. Todas as refeições eram prolongadas por mim com conversas variadas sobre a vida no Bravo. Ouvi muitas histórias como a de Cícero, avô de Laura, que fugindo da seca migrou para a região das seringueiras e voltou de lá doente de lepra – hanseníase – doença contagiosa e que na época era de difícil tratamento. Sem qualquer alternativa no interior da Paraíba e com a doença avançando, Major Lafayete, proprietário de uma grande fazenda há dez quilômetros do Bravo, hoje o assentamento rural do Pocinho, entregou a Cícero uma carta que o encaminhava para tratamento em Recife. Com a carta no bolso, não se sabe por quanto tempo caminhou, por onde passou e como conseguiu chegar, mas foi andando que chegou à capital pernambucana sem dinheiro e com a roupa do corpo. Voltou como foi, sem o tratamento e com uma nova carta no bolso, de político daquela

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capital, dizendo-se indignado pelo fato de a Paraíba enviar seus leprosos para Pernambuco. Sem tratamento, faleceu pela doença poucos anos depois. Dois de seus filhos homens e a esposa acabaram contaminados, mas conseguiram tratamento mais tarde no estado mesmo da Paraíba e terminaram se curando. A história me foi narrada por Laura na mesa de jantar logo após a refeição, com calma e demonstrando sentimento. Destaco não só a narrativa da experiência de Cícero, mas também a experiência de Laura como filha e a minha em campo ouvindo a história naquela noite no terraço sem pressa para levantar da mesa e ir embora. Além do que, a narrativa tem alguns elementos que apresentam facetas de como a vida se organizava em outros tempos durante a escassez de chuvas e do que é preciso ser feito para manter a família no semiárido. A vida no Cariri em tempos de chuva é rica em beleza e alimentos da natureza, mas, sem as chuvas e premissas básicas para sobrevivência, viam-se dependentes de ajudas esporádicas de políticos e fazendeiros da região.

Ouvi naquela mesa também histórias sobre espíritos de velhos índios que vez ou outra aparecem durante a noite pelos lajedos. Como aquele, por exemplo, que foi visto pelo irmão de Laura num final de tarde quando procurava pela criação. O velho índio não lhe disse nada, não fez qualquer gesto, mas o medo tomou conta dele o suficiente para que nunca mais voltasse ao lugar a partir do escurecer, algo que por vezes é necessário para buscar criação perdida na serra. Ou mesmo a história de Gilmar e Hermínio, que não gostam de lembrar, mas teriam avistado também o espírito de índio velho sentado sob uma árvore, enquanto os cachorros que os acompanhavam latiam desesperadamente. Dentre tantas outras histórias, destaco ainda aquela que conta da incorporação de uma mulher que visitava a Furna dos Tapuias e teria encarnado o espírito de um índio que lhes disse para não passarem de certo ponto a partir dali. Todas essas histórias e tantas outras, me foram narradas também na mesa de refeições, a cada dia ou noite, no terraço ao fundo da casa de Laura e Bati. Não são apenas histórias de fantasmas ou assombrações, como pejorativamente se diria, as experiências são tão reais para quem as viveu quanto o que cita Ingold sobre o Pássaro-Trovão para os Ojibwa ou os Dragões no mosteiro beneditino medieval (INGOLD, 2012). Na narrativa reproduzida por Ingold em seu ensaio, um dragão causou grande medo em um monge que havia sido expulso por São Benedito, ao sair se defrontou com a fera à porta do mosteiro e foi acudido e trazido de volta pelos companheiros. De outra forma, o Pássaro-Trovão teria algo a dizer aos Ojibwa que não foi compreendido no momento

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em que se ouviu o forte som do trovão. Assim também, os espíritos de índios vistos nos lajedos estão presentes ao delimitarem a passagem a partir da Furna dos Tapuias ou ao mudarem o comportamento de habitantes como Gilmar, Hermínio e o irmão de Laura. Menciono tais histórias, pois, narrativas como essas e tantas outras não surgem com hora marcada. Não adianta agendar horário e tema da entrevista, ligar seu pequeno, mas, para alguns, intimidador gravador (repare quantas vezes ao longo da entrevista a pessoa olha para ele) e pedir para que lhe contem histórias. Com toda generosidade vão lhe contar algo. Mas a força da narrativa vem quando surge espontânea no fluxo da memória e todos na mesa se atentam a ouvir. Assim, os momentos que antecedem as refeições noturnas se passam primeiro nos tamboretes colocados no terreiro, na entrada do terraço, de frente alguns metros para a estrada, a escola e o campo. Daquele ponto se avista com facilidade quem chega ou apenas cruza o Bravo na estrada de terra no sentido de Boa Vista, Cabaceiras ou Boqueirão. Em frente aos tamboretes há um velho juazeiro, que mesmo resistente chegou a estar quase completamente desfolhado devido ao prolongamento da seca, por detrás do qual o sol se põe visto daquele ângulo. À esquerda dos tamboretes da casa de Laura e Bati está a porteira do sítio e o cercado do jumento e à direita avista-se desde a plantação de palmas até cerca de um quilômetro acompanhando a estrada. À frente, a escola, que em sistema multisseriado recebe crianças do Ensino Infantil e primeiro ciclo Fundamental, o campo de futebol de areia, a igreja e as demais casas. Enfim, os tamboretes da casa de Laura e Bati nos fins de tarde estão em uma posição de vista privilegiada de onde é possível ver o movimento de fim de tarde no Bravo, seu vai e vem de carros, motos, caminhões e transeuntes, da mesma forma como estando ali sentando com eles participo das conversas e ouço os comentários que o movimento pelo vilarejo trás. Os tamboretes em diversos momentos, lugares e situações participam do partilhar da vida, seja durante o descanso do fim de dia ou durante o trabalho, os tamboretes estão presentes e envolta deles surgem conversas e histórias. Costuma-se ter à frente, naquele momento de fim de dia visto dos tamboretes, as crianças brincando de pique-esconde ou futebol com os cães correndo juntos, Gilmar, também filho de Laura e Bati, ouvindo no radinho de pilhas as notícias sobre política ou sobre o Treze de Campina Grande, seu time de futebol, Bati chega depois do dia de trabalho (é sempre o último a parar), sentamos todos nos tamboretes, enquanto o cuscuz cozinha e o queijo frita, Rejane checa as mensagens e postagens dos amigos nas redes sociais, que também se tornam assuntos e expandem o horizonte

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dos tamboretes, Denival passa por ali de moto, Gleissinho chega também e todos ficam a observar o fim de tarde, vendo e comentando o movimento, ouvindo e contando histórias enquanto observamos as pessoas que passam na estrada, e logo Val avista alguém e exclama: _ Pia, mãe! Pia só quem tá chegando na moto! O movimento é o assunto, é ele que guia a conversa. Como, por exemplo, em um dia de janeiro de 2018, quando faltou energia elétrica por quase 24 horas no Bravo. Um estouro foi ouvido por todo vilarejo perto das 16 horas. Logo os técnicos da Energisa, companhia pública de energia elétrica, chegaram e começaram a trabalhar. A luz do sol se foi, e seguimos a observar o movimento do caminhão enquanto tentávamos entender de longe o que estavam fazendo. Conseguíamos vê- los, pois, o caminhão era a única coisa iluminada artificialmente por todo Bravo e, como já afirmei, dos tamboretes se vê quase tudo. A energia elétrica não voltou naquela noite, os técnicos seguiram madrugada a fora tentando encontrar o defeito e eu fui para casa por volta de nove da noite, tarde para os padrões locais, mas, não tinha como ir embora antes, pois, a falta de energia movimentou aquele fim de tarde nos tamboretes e enquanto todos lá estivessem, eu estaria também. Bem como, é a partir dos tamboretes que se observa com encanto e atenção os relâmpagos em nuvens negras no horizonte, vezes pelo Norte, vezes pelo Sul, mas sempre distantes. É tido como um verdadeiro espetáculo da natureza, tão relevante que todos param com sorrisos no rosto para apreciá-lo. Afinal, chuvas, raios e trovões já há mais de meia década não ocorriam. É um espetáculo bonito de se ver e acompanhar junto a eles, mas, não se cria expectativas sob a plêiade de tais eventos, nuvens e relâmpagos no horizonte não geram qualquer forma de esperança. Passados dois ou três minutos, a rotina continua sem que qualquer perspectiva de futuro tenha sido criada a partir daquela cena. Como certo dia questionei a Fernando, ele havia acabado de chegar no terreiro da casa de Geraldo e Maria e nos atentou para os muitos raios que se avistava no horizonte na direção do fundo da casa. Nos levantamos e fomos até o cercado para ver, após acompanharmos os raios, perguntei para Fernando enquanto caminhávamos de volta:

_ Com uns sinais assim, tem como saber quando vai chover?

Ao que recebi uma resposta simples, curta, direta, ao mesmo tempo que densa de experiências no Cariri:

_ Aqui não se faz planos.

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Neste contexto, é importante entender que tal afirmação não significa que não façam qualquer plano para o futuro nesta região, mas sim, que não se planeja com base naquilo que não se pode controlar: o fluxo do tempo climático. Ainda mais após sete anos de estiagem e muitas sementes perdidas no roçado esperando a chuva que não veio (retomarei a discussão sobre tais mudanças na experiência do clima na página 165). Sentado na mesa de almoço ou jantar ou nos tamboretes tentei algumas vezes puxar assunto sobre uma possível chuva. Buscava algum sinal, alguma história algum sentimento que pudesse me falar sobre uma possível expectativa pela chuva. A fala se repetia sempre calma, lenta e sem dar espaço para preocupações, não se pré-ocupam com algo que não se sabe de forma alguma quando irá acontecer. Muitas vezes a chuva passa em nuvens carregadas pelo céu do Bravo, mas não se precipita sobre o solo. Em situação semelhante, Renzo Taddei (2017: 42) comenta sobre o contexto do Ceará, onde mesmo com a divulgação das previsões para o período das chuvas, os produtores não tecem planos a partir delas, optando pelas práticas tradicionais de escolha do momento para o plantio. O mesmo era feito na região do Bravo, no entanto, o prolongamento da última seca e os sinais de chuva que não se cumpriram fizeram o caririzeiro perder a confiança em tais interpretações. Da mesma forma como Erika Mesquita (2012) mostra que as mudanças climáticas mudaram a relação de populações tradicionais da Amazônia com os sinais de passagem do tempo climático vistos na natureza. No caso do Bravo, por muitas noites me sentei para acompanhar o telejornal da noite e no momento da previsão do tempo algumas pessoas até paravam para ouvir o que se dizia na TV, mas instantes depois e nos dias que se seguiam, a vida continuava como se nada tivesse sido dito. Por isso, insistirei ao longo desta tese que ao longo da última seca esses sitiantes aprenderam a não fazer planos para a chuva que não sabem quando virá. Tais observações só foram possíveis porque eu estava com eles em cada um desses momentos: assistindo a previsão do tempo na TV, as notícias do jornal, no trabalho ou conversando na mesa do jantar, do almoço, do café, assim como os muitos momentos de conversa nos tamboretes propiciaram a obtenção de informações e narrativas importantes. Partilhar a vida em tais momentos me renderam muito mais aprendizado que as dezenas de entrevistas que havia realizado logo nos meus primeiros dias em campo guiadas por um longo questionário que havia elaborado. Estar presente de forma sincera e não apenas instigado pelas obrigações acadêmicas nos momentos simples e importantes da vida das pessoas com quem trabalho, me interessar e me

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importar pelas suas vidas mais que pelas suas informações que enquanto pesquisador possa pretender “coletar”, apresenta momentos e narrativas sem planejamento, sinceras como o próprio momento vivido. Isso pois, acredito que na antropologia, não coletamos dados, e sim, partilhamos experiências. A proximidade com o campo se estendeu ainda pelo uso das tecnologias de comunicação em rede: o Facebook e o Whatsapp, mas principalmente o segundo. O contato com o Bravo se manteve frequente, portanto, com o apoio constante da internet. Após o retorno do campo em janeiro de 2018 as novidades quanto as chuvas daquele ano me chegavam em fotos e vídeos e enquanto escrevia as primeiras versões da tese conservamos o convívio, mesmo que virtual, a distância, mas frequente. Enviava e recebia mensagens em áudio e ligações com notícias e atualizações do que ocorria por lá e procurava saber sempre se todos estavam bem. Recebi ainda muitas fotos e vídeos de momentos no Cariri, especialmente os relacionados às chuvas e à consequente mutação da vida no Bravo. Também me enviaram vídeos do momento da perfuração do tão sonhado poço de Bati com a alegria estampada no rosto dele e das crianças; recebi ainda fotos das chuvas extemporâneas de agosto de 2017 e da chegada do inverno de 2018, do domingo nadando no tanque e do novo Bravo que surgia então. As informações eram atualizadas, assim como as imagens que recebia já não correspondiam às que registrei em fotografia em outros períodos. Como o tamborete do terreiro de Laura e Bati, que na foto que recebi de Rejane em nove de maio daquele ano tinha à frente uma outra visão, por demais diferente daquela que pude presenciar em campos anteriores. Tem-se à vista uma árvore de copa verde, as palmas completamente encobertas pela relva que cresce entre elas, um pequeno barreiro cheio de água e com um raio de cerca de 2 metros; e, à direita do tamborete, outra foto mostra o momento de um arco-íris no fundo de uma paisagem que de tão verde já não se assemelha ao Cariri que antes visitei. Recebi fotos, vídeos e mensagens de diversas pessoas durante o período das chuvas, entre adultos e crianças que me contavam e mostravam as novidades, para as crianças que ainda não tinham presenciado chuvas como aquelas, era como se um mundo novo tivesse sido criado sobre o antigo. Imagem marcante desse momento da pesquisa, que demonstra que o campo permanecia vivo, me foi enviada ainda em fevereiro, quando Bati conseguiu realizar o sonho que carregava há anos de furar um poço em sua terra e encontrar água. Vale sempre dizer que o último período de

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inverno no Bravo havia sido no já distante ano de 2010, o que significa que crianças com 10 anos para menos ou ainda não eram vivas ou pela idade não têm condições de lembrar daquele tempo. Assim, é possível ver no vídeo que me foi enviado o momento em que as máquinas acabavam de bombear grande quantidade de água e um jato salta como um gêiser, vemos na gravação os risos dos adultos enquanto as crianças brincam nas poças d’água e na lama que se formaram no solo. A neta mais nova de Geraldo, então com 9 anos, aparece em um vídeo deitada na água que escorria no chão fazendo um anjo com os braços em movimento, como na imagem comum nos filmes, quando uma criança vê a neve pela primeira vez. Neste caso, ela não tinha como ter lembrança de tanta água caindo sobre o Bravo, aquela cena era algo completamente novo. Não estava presente para acompanhar tais fatos, mas recebia cada detalhe possível do que ocorria. Recentemente, enquanto trabalhava na tese, conversando com o amigo e também cientista social João Paulo Ayub, ouvi dele que meu campo parecia estar muito vivo ainda, mesmo que já se completassem até aquele momento cerca de três meses que havia voltado para casa. Não havia me atentado para tal, mas enquanto escrevia me mantive conectado constantemente com o campo, senão física, mas mentalmente e pelos instrumentos que a tecnologia da comunicação nos disponibiliza. Assim, posso dizer que as dificuldades para a realização do trabalho de campo, me obrigaram a buscar alternativas e que tais alternativas compõem a originalidade e minhas contribuições para o debate sobre o fazer etnográfico. Seja pelas câmeras fotográficas utilizadas, de qualidade “amadora” ou no máximo “semiprofissionais”, como alguns as chamam, seja pelas dificuldades enfrentadas para viajar a campo, a dificuldade de chegar à Paraíba. As viagens para trabalho de campo só eram possíveis durante as férias, mas por esse motivo me colocaram em uma perspectiva interessante para a observação das mutações da vida na Caatinga, notando os contrastes em promovidos pela seca e pelas chuvas. Se não estava lá o ano todo, encontrei uma forma de observação, participação e registro da vida no Cariri que se mostrou ótima para um exercício de comparação. Assim posso destacar fluxos da vida no Bravo muito diferentes uns dos outros, alterados conforme a presença, a quantidade ou ausência de água das chuvas. Isso dividido em três momentos de destaque: janeiro de 2017 (auge da seca), dezembro de 2017 e janeiro de 2018 (arrefecidos pela breve chuva em agosto de 17), e julho de 2018 (a vida na sequência do inverno).

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A cada nova viagem ao Bravo consegui perceber a vida em movimento, as linhas desse emaranhado constantemente se entrelaçando e reconfigurando conforme a disponibilidade de água e de chuvas. Esse emaranhado em constante entrelaçar, formava tecidos muito diferentes a cada visita minha ao vilarejo. No inverno a transformação é exuberante, formam-se imagens completamente novas daquelas que anteriormente havíamos visto, são novas cores e novas formas de vida invisíveis ou ausentes até então. As águas das chuvas promovem o crescimento de plantas, a cheia e transbordamento de tanques e açudes, enchem as cisternas e nos leitos dos riachos intermitentes há anos secos volta a correr água, é possível plantar a comida para casa e a ração para a criação, assim como, há pastos para estes, apenas para citar algumas transformações presenciadas no campo após o inverno de 2018. Desta forma, afirmo sobre o caminho percorrido ao longo deste trabalho de pesquisa que os percalços ao longo da realização deste e as alternativas encontradas são partes inseparáveis do conjunto da tese e aspectos importantes das contribuições que esta pode trazer. O próprio termo percalço contém em si um paradoxo, pois, carrega dois significados aparentemente contraditórios: ao mesmo tempo é a vantagem e é o obstáculo. No Dicionário Aurélio (2004) encontramos essa dualidade de sentidos entre “lucro; proveito” e “transtorno; dificuldade”, já no Dicionário Aulete Online entre um “problema inerente a dada atividade ou estado de coisas” e “ganho, lucro, receita eventual”. A partir desta definição, digo que tais percalços narrados ao longo deste capítulo correspondem bem ao sentido paradoxal do termo, as dificuldades que se apresentaram para a realização da pesquisa são parte do caminho percorrido, ou seja, do método em seu sentido original. Todavia, é apenas desta forma, nos percalços, que encontramos novos caminhos.

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Capítulo 2. Um emaranhado de vidas: sobre a abordagem e a escrita

Mais que somente um elemento físico de uso cotidiano indispensável, a água nesta pesquisa aparece com vulto em um emaranhado de relações que envolve humanos e não humanos. Dentre todos atores, destaco a água como um ator diferenciado, capaz de modificar todas as relações conforme sua variação de disponibilidade e acesso, principalmente a água da chuva, que faz surgir vida por todos os lados no semiárido. Isso pois, conecta e participa em toda trama de relações do Bravo, abrindo ou limitando possibilidades entre o inverno e a seca. Os sitiantes do semiárido ao longo de uma história de convívio com a escassez de água e baixa pluviosidade, aprenderam a organizar a vida conforme os momentos incertos do tempo climático. Eles definem a vida na relação que constroem com a água com improvisos criativos conforme os períodos de chuva e maior disponibilidade ou quando de sua escassez. Dito de outro modo, das circunstâncias geradas pelas variações sazonais eles constroem a vida não em consequência simples dos tempos de seca ou de chuvas, mas na relação que constroem com a água e com todo coletivo a sua volta nesses momentos diversos. Foi possível observar, desta maneira, o dinamismo inerente à presença da água em situações absolutamente díspares: do auge da seca de sete anos ao inverno de 2018. Isso porque, no semiárido a água aparece como uma linha que perpassa todo o emaranhado de vidas e o transforma rapidamente por sua ação, a água muda todo modo de viver e se relacionar, ultrapassa limites e participa em todas as relações alterando-as conforme sua presença ou quando de sua escassez. É possível então distinguir a água neste emaranhado enquanto uma linha diferente de todas outras, pois, se entrelaça a todo tecido da vida abrindo ou exigindo novas possibilidades de atuação em contextos diferentes.

A base da abordagem utilizada para organizar o trabalho de campo e a redação da tese está presente no debate entre Bruno Latour e Tim Ingold, os quais dão grande atenção para os atores não-humanos em suas propostas metodológicas de pesquisa. Também estão presentes no debate as experiências de Renzo Taddei (2014), Ana Claudia Marques (2002) e Jorge Vilella (2012) no semiárido, e, mais ao final do capítulo, trago ainda as contribuições de outros autores, como os ensaios de Walter Benjamin em torno dos conceitos de experiência e narrativa (1994). São também

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importantes as abordagens de Carlos Rodrigues Brandão em “A partilha da vida” (1995) e “O afeto da terra” (1999); a proposta metodológica de Jeanne Favret-Saada (2005), que confere grande importância à participação e à afetação pelo campo, em outras palavras, a própria experiência do pesquisador que se deixa afetar em campo; em reflexão semelhante sobre afetação e participação, as experiências de Márcio Goldman (2003) com o candomblé no Sul da Bahia; e, o trabalho de Loïc Wacquant (2004) entre boxeadores, todo construído a partir de suas experiências no próprio “gym”, treinando, aprendendo e lutando com eles, batendo e apanhando. Em suma, na parte final do capítulo busco mostrar que, articulando tais abordagens à ideia de emaranhado de vidas, somos, enquanto etnógrafos em campo, mais uma linha no fluxo desse complexo emaranhado e nossas experiências não podem ser negligenciadas em favor de uma pretensa neutralidade e objetividade. Ao contrário, defendo que no contexto deste emaranhado de vidas e experiências da qual participamos em campo, mesmo que não se queira, a objetividade do trabalho se encontra na variedade de perspectivas que buscamos descrever, inclusive aquelas provocadas pelos afetos, pela forma como o fluxo da vida em campo também afeta o pesquisador, que, longe de fugir a esta perspectiva, deve se deixar afetar e colocar no texto a perspectiva desta sua experiência entrelaçada a todas as outras.

Como já pode ter sido notado pela escolha dos termos ao longo dos capítulos precedentes, de início já me agrada mais a dinamicidade da vida presente no que Ingold chama de “emaranhados criativos”, à conectividade em “redes”. No entanto, não abraço apenas suas ideias e não descarto as contribuições de Latour, diferente disso, acredito que ambos têm grandes contribuições para meu contexto de trabalho. Penso ainda, e explicarei ao longo do capítulo, que a reflexão de Latour sobre redes foi muitas vezes mal compreendida e não deve de forma alguma ser desconsiderada. Assim, convido ambos a uma caminhada pelo Bravo enquanto apresento e debato suas ideias cotejando-as ao movimento da vida no vilarejo. A partir das incursões a campo, contingências vão moldando e dando novas direções para a prática da pesquisa, com as bases teórico-metodológicas na bagagem, a pesquisa e o pesquisador se reinventam no trabalho de campo. Parto, sendo assim, dos conceitos apresentados pelos dois antropólogos com consciência de suas divergências entre si e procurando aproveitar as propostas de cada um que encontram ressonância e ajudam a pensar a vida no Bravo. Debato com ambos os autores, mas sempre os trazendo com seus conceitos e reflexões ao chão vivo, quente e árido do Cariri.

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De início devo dizer que me aproprio do conceito de “emaranhado” (“Entanglements”, no original em inglês) posto por Ingold já no título de seu artigo Bringing things back to life: Creative Entanglements in a world of material (2010), como a melhor forma de representar aquilo que o autor descreve como linhas de vidas em uma “malha” (“meshwork”). Mas penso acerca da experiência no Cariri, que esse entrelaçar não deva suceder em uma malha de perfeita integração, como seria uma malha de lã, mas num emaranhado desuniforme e dinâmico, sem centro ou bordas, sem começo nem fim, sem linhas retas e caminhos diretos, mas marcado pelo imprevisto, pelas contingências e pela descontinuidade, como o “Rizoma” de Deuleuze e Guatarri (1995). Por isso me agrada o termo emaranhado, palavra que se refere ao enredamento, ao entrelaçar, ao mesmo tempo que à confusão.

A vida no Cariri reflete esse aspecto rizomático de um labirinto sem “Fio de Ariadne” para te guiar e é marcada pela inconstância e incerteza devido às variações não lineares das chuvas ao longo dos anos e a falta de dados históricos do clima que permitam maior grau de assertividade. Como afirma Renzo Taddei (2017: 65), mesmo com toda tecnologia hoje disponível, ainda não é possível realizar previsões meteorológicas com a antecedência e exatidão que necessitam os agricultores. E explica ele:

Todo esse aparato tecnológico não resolve o maior problema enfrentado pelos meteorologistas cearenses: alguns sistemas meteorológicos tem um nível de imprevisibilidade muito alto. Para muitos fenômenos meteorológicos de curta duração (ainda que com potencial catastrófico acentuado), como as frentes frias, não há modelos matemáticos confiáveis disponíveis. Mesmo para sistemas meteorológicos mais bem conhecidos e mais previsíveis – como o El Niño ou a Zona de Convergência Intertropical, faixa de nuvens localizada sobre o Atlântico equatorial responsável por trazer a maior parte das chuvas para a região setentrional do Nordeste brasileiro -, o número de variáveis é muito alto, e os fenômenos envolvidos, muito complexos. Isso significa que nenhum modelo computacional é capaz de elaborar uma previsão que não seja mais do que uma distribuição de probabilidades para a estação chuvosa (Ibid: 67)

A experiência destas variações do tempo climático pelos habitantes do semiárido é muito bem traduzida por Renzo Taddei nesta passagem: “no dizer da população sertaneja, no primeiro semestre eles vivem com a incerteza da chuva; no segundo, com a certeza da seca” (Ibid: 65). Isso porque, as ciências do clima têm, segundo o mesmo autor, “na indeterminação parte fundamental da sua atividade de pesquisa” (Ibid: 55), e completa ele dizendo que “os cientistas ligados ao clima

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estão entre os poucos que efetivamente entendem a incerteza como elemento inevitável da forma como a mente humana se relaciona com sistemas naturais tão complexos como o clima” (Ibid: 57). Portanto, se as chuvas são inconstantes e ocorrem de anos em anos sem regularidade que seja positivamente previsível com os dados e equipamentos disponíveis no momento, a vida não é diferente, o período das chuvas e a duração das secas são incertos e assim a vida também o é. Todo movimento e organização da vida varia de acordo as possibilidades do inverno ou da seca, e destas possibilidades os habitantes criam suas vidas numa troca constante com o conjunto do ambiente daquele momento. Tudo mudará por completo com a primeira chuva forte e mais ainda com uma sequência de chuvas que possa encher rios, tanques, açudes e lagoas, chuvas que desmanchem os antigos caminhos, assim como, criem e possibilitem a abertura de outros completamente novos. Porém, não se sabe quando as chuvas virão e a seca é certa para todos os anos, podendo ainda se prolongar por tempo incerto.

Neste debate, considero as relevantes contribuições de Bruno Latour para que aquilo que se chama de “social” ganhe definições de movimento e deixe de ser um adjetivo estático para um certo domínio do mundo e ainda abrigue novos atores. Afinal, não poderia ser diferente em um contexto de semiárido, onde novos atores e novas condições de vida são postas conforme a variação sazonal: quando chove e quando não chove. A compreensão de Latour (2012) sobre “social” enquanto movimentos de associações entre atores heterogêneos nos ajuda a pensar uma cartografia do fluxo da vida, assim, planificada entre seus atores. Propõe Latour então que é para esse movimento que devemos nos atentar, devemos acompanhar o movimento dos atores nos momentos de mudanças, quando surgem novos atores e novas associações. Se são, portanto, as variações sazonais inconstantes a marca indelével da vida no Cariri e considerando as mais profundas mutações que podem ocorrer na vida entre a seca e o inverno, a proposta de Latour se faz mais que pertinente.

Latour sugere que sigamos os atores em nossas pesquisas ao invés de realizarmos observações distantes comodamente alicerçadas em conceitos estáveis da sociologia. Afirma ele que se “o social permanece estável e consegue justificar um estado de coisas, não é ANT” (actor- network theory, traduzido como “teoria do ator-rede”) (LATOUR, 2012: 30); isto é, não seria possível assim compreender a dinâmica dos atores em rede, suas trocas e o processo mesmo de associação; e prossegue ele pouco adiante no mesmo texto:

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Para empregar um slogan da ANT, cumpre ‘seguir os próprios atores’, ou seja, tentar entender suas inovações frequentemente bizarras, a fim de descobrir o que a existência coletiva se tornou em suas mãos, que métodos elaboraram para sua adequação, quais definições esclareceriam melhor as novas associações que eles se viram forçados a estabelecer (ibid: 31)

Passa longe de minhas intenções “empregar um slogan ANT” ou qualquer outro que seja, alimento uma descrença na adesão ortodoxa a qualquer base teórica. Penso, diferente disso, em diálogos, sem excluir os conflitos possivelmente existentes, mas, mantendo a abertura para a interlocução entre diferentes perspectivas de abordagem. Em diálogo com Latour e Ingold, ao invés de pensar as conexões em rede penso nos fluxos de um emaranhado, mas, ainda assim considero a água um “ator”, mas um “ator” que perpassa ao longo de sua trajetória absolutamente todos os demais atores com a capacidade única de alterar todo fluxo da vida, muito diferente de pensar um ponto em uma rede. Sendo assim, ao seguir a trajetória da água em suas variações sazonais é possível acompanhar as possibilidades abertas ou restritas de acordo com as chuvas e as formas de acesso à água pelos sitiantes. Assim como, desta perspectiva, é possível ver os caminhos alternativos encontrados ou criados para manter a vida em cada circunstância específica do clima semiárido.

Para esta tarefa, Latour utiliza com frequência metáforas análogas à caminhada que deve ser feita pelo pesquisador seguindo os passos dos atores. Para ele, trilhando este caminho sem preguiça de seguir as “formigas” (analogia com “ANT’s” em inglês) é que encontramos novas questões, observamos o movimento de associações e, ao fim, nas suas palavras, “como sempre, caberá ao leitor decidir se a aventura foi bem-sucedida ou não” (LATOUR, 2012: 33). Penso no caso do Cariri, onde a cada movimento de variação do acesso à água todo conjunto da vida pode mudar por completo, como em caso de secas que, quando tardam a passar, deixam os animais sem pasto, as fontes de água exauridas e a terra ressecada. Mas que, no entanto, possui solo com tamanha riqueza mineral que bastam algumas dezenas de milímetros de chuva para que já se veja o mato brotar e as palmas crescerem. Se as chuvas prosseguirem e atingirem duas ou três centenas de milímetros, já podemos dizer que é chegado o inverno e a água mudará todo ritmo e trajetória da vida. Para cada momento de variação, novos problemas, novas questões e novas soluções podem ser observadas e cada passo dos atores ao longo das variações e transfigurações deve ser acompanhado e descrito ouvindo atentamente aquilo que nos têm a dizer.

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O movimento é de grande importância e diria argumento central tanto para Latour quanto para Ingold, apesar de que no caso do primeiro, as interpretações da ideia de rede podem individualizar pontos, de toda forma o movimento é visto nas associações, enquanto as “linhas” de Ingold estão elas próprias em movimento ininterrupto se entrelaçando em todas as coisas do mundo. Apesar dessa aparente disparidade, não ignoro o aporte dado por Latour para meu trabalho no Cariri no que se refere a um olhar para o instável e uma possibilidade de, através dos movimentos de associação, poder encontrar uma descrição da vida em coletivos que incluam humanos e não- humanos. Creio que há no trabalho de Bruno Latour relevantes contribuições para repensarmos o fazer antropológico, mais importantes que as divergências postas por Ingold. Como afirmou Otávio Velho (2012: 228) acerca das antipatias que, segundo ele, teria Ingold pelo pensamento francês e de Bruno Latour em especial:

Antipatias que (...) impedem Ingold de reconhecer afinidades entre as quais sobressai a própria maneira, muitas vezes paradoxal, como desenvolvem ambos o pensamento e a escrita, o que o faz petrificar Latour a partir de sua utilização por seguidores ingleses da “actor-network-theory”.

Creio que seja possível e de grande relevância para realizarmos uma antropologia com olhar para o movimento e as transformações em perspectiva simétrica entre os diversos atores envolvidos um diálogo entre Ingold e Latour e há aberturas para tal. Penso ainda que a questão não se resolva em um debate apenas bibliográfico entre eles, mas que ambos se fazem importantes a contar do momento em que contribuem a seus modos para o estudo da vida no Bravo. É possível e procuro aqui “canibalizar” suas ideias, como sugere Otávio Velho (2012: 229), fazendo analogia ao ideal do movimento modernista brasileiro, e digo que essa atividade pode e deve ser realizada ao longo do processo etnográfico. Pois, a partir das experiências em campo e no curso da escrita se torna possível saber quais ideias e orientações ajudam ou não a pensar uma dada realidade.

O que Latour (2012) intenta com sua teoria das associações é recuperar ao que chamamos de social a heterogeneidade e o dinamismo do movimento através do qual tais “elementos” díspares se agregam, “redefinindo a sociologia não como a ‘ciência do social’, mas como a busca de associações. Sob esse ângulo, o adjetivo ‘social’ não designa uma coisa entre outras, (...) e sim um tipo de conexões entre coisas que não são, em si mesmas, sociais” (ibid: 23). Diz ele que não são em si mesmas sociais, pois, o que chama de social está no movimento mesmo de associação e não na

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coisa em si. É para esse movimento, que Latour denomina “assemblage”, e não para o resultado estático, que devo me atentar se pretendo descrever a dinâmica da vida no semiárido.

A própria palavra “assemblage” (presente já no título de seu livro “Reassembling the Social”), que Latour utiliza para designar tal movimento, tem tanto em inglês quanto em francês o sentido de montagem a partir de objetos heterogêneos, colocar junto, agregar, e ganha em sua teoria a dinamicidade que não tem originalmente. Visto que, aquilo que deve ser observado e descrito é o movimento de agregação, o próprio fluxo dos objetos em seu processo de assemblage, não a imagem resultante. Enquanto uma técnica artística, assemblage, consiste em utilizar figuras e objetos díspares para formarem em conjunto agregado novas formas e expressões, como em obras do pioneiro artista francês Jean Dubuffet (1901-1985) com diferentes borboletas postas juntas em seus quadros, ou com maior heterogeneidade de objetos agregados no caso do quadro Marilyn (2009) do artista norte-americano Kirkland Smith, que utilizou objetos das mais diversas cores e formatos, como carros de brinquedo, bonecas, pincéis, miniaturas de dinossauros, colheres e toda sorte de objetos que compõem juntos a face da ícone da cultura pop Marilyn Monroe. O que insisto, no entanto, é que assemblage na teoria de Latour não tem foco no resultado da agregação (como nas citadas obras artísticas), mas sim em seu processo de colocar junto aquilo que é diverso, no movimento, repito, através do qual aquilo que chamamos de “social” se forma e continua a se formar contínua e ininterruptamente. Pensa ele que sociedade não é “um contexto ‘no qual’ tudo se enquadra” ou “uma cola que pode fixar tudo”, também não pode ser vista enquanto “elemento capaz de lançar luz sobre os aspectos residuais” de outros domínios (Latour, 2012: 22). Portanto, pensar assemblage como Latour não seria formar quadros com “elementos” diversos ou desenhar uma rede com suas conexões, mas sim considerar os movimentos de associação entre esses “elementos” heterogêneos. E sociedade, afirma ele, “deveria antes ser vista como um dos muitos elementos de ligação que circulam por estreitos canais” (idem), e prossegue mais adiante, “redefinindo a sociologia não como a ‘ciência do social’, mas como a busca de associações. Sob este ângulo, o adjetivo ‘social’ não designa uma coisa entre as outras (...) e sim um tipo de conexão entre coisas que não são, em si mesmas, sociais” (Ibid: 23). Assim, podemos pensar uma pesquisa que coloque a água como partícipe dos processos em curso, definidora de possibilidades para a vida, sem qualquer sinal de determinismos, mas considerando a interação entre atores diversos.

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Assim, tanto Ingold quanto Latour redefinem o que comumente se pensou como a esfera do social para uma espécie de complexo de influências mútuas entre seres de origens diversas. Algo que me remete ao caso específico da importância dos tanques no fluxo da vida no Bravo. Não apenas as rochas dos lajedos são utilizadas há milênios pelos humanos como um meio para armazenagem de água das chuvas, como as próprias águas das chuvas em concomitância com o tectonismo e os ventos vêm há ainda mais tempo trabalhando naquelas superfícies. A ação dos humanos foi capaz de potencializar a capacidade de acúmulo destes tanques para garantir a sobrevivência de muitos povos que passaram por ali. Também as pinturas e gravuras rupestres registradas umas sobre as outras nas rochas dos lajedos indicam a passagem de diferentes povos pelo local. Duas tradições são nítidas sobre os mesmos matacões: a Tradição Agreste e Tradição Itaquatiara, presentes em muitas outras partes do Nordeste (AGUIAR, 1986; MARTIN, 1997; ETCHEVARNE, 2000). Pela presença dos tanques, os primeiros da família dos Fialhos escolheram também esse local para se estabelecer um século e meio atrás e pelo mesmo motivo, os Santinos, da família de Bati, também deixaram a terra onde nasceram, distante apenas alguns quilômetros e adquiriram ali um sítio cerca de oito décadas atrás. Fica claro ao pensarmos os diversos personagens envolvidos, entrelaçados ao redor da capacidade de armazenamento de água nos lajedos, que todos existem em movimento contínuo provocado justamente pela ação do outro, humano ou não, mas principalmente das variações da água e sua possível presença conservada nos lajedos.

Quando falo em provocar movimento é importante deixar claro que o ato de provocar não determina a sequência da ação, cavar e vedar os tanques é uma resposta criativa dos humanos, por exemplo, dentro dos desafios de convívio com a seca. Enfim, os tanques, como qualquer material, não têm valor e significado em si, mas são descobertos ao longo da trajetória de convívio neste ambiente, como na afirmação de Ingold (2015: 132-133) de que uma mesma pedra pode ser um “abrigo para caranguejo”, “uma bigorna” ou um “projétil” de acordo com a ação de se esconder sob ela, martelar sobre ela ou atirá-la em alguém, “fora dessa atividade, ela não era nenhuma dessas coisas”. Os tanques se tornam tanques ao participarem do conjunto da vida enquanto armazenam água em um contexto onde encontrá-la em bom volume pode ser raro.

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No livro “Prince of Network: Bruno Latour and Metaphysics” (2009: 21), Graham Harman dá uma definição alegórica precisa sobre o lugar que a ação dos materiais ocupa na base teórica de Latour na seguinte passagem:

Yet there are only actants, forever lost in friendships and duel. Any attempt to see actants as the reducible puppets of deeper structures is doomed to fail. The balance of force make some actants stronger than others, but miniature trickster objects turn the tide without warning: a pebble can destroy an empire if the Emperor chokes at the dinner.

Assim, Latour busca superar a ideia de sociedades humanas cercadas por instrumentos manipuláveis. Um mundo de objetos inanimados aguardando pela intervenção humana ou como peças figurativas, apenas cenário para a atuação dos “homens”. Um mundo de materiais que, quando muito, ganhavam algum destaque como entraves a serem subordinados e superados pela razão e ação destes mesmos “homens”. Lógica essa que não apenas é inadequada para a compreensão da realidade encontrada neste trabalho, e creio que para muitas outras, como levou a humanidade ao caminho de destruição do planeta, ao menos no que se refere às nossas possibilidades de vivermos nele.

No caso do fazer antropológico, essa nova lógica nos obriga a rever as antigas explicações do social (enquanto elemento estabilizado) vinculadas às velhas categorias e encontrar no movimento e respostas dos próprios atores a formação e as controvérsias do que Latour (2012: 34) prefere chamar agora não mais de sociedade, mas de “coletivos”. Assim também as antigas questões da ciência do social ganham novos caminhos para encontrar a resposta, como as questões- chave postas na citação abaixo:

Vivemos em grupos que parecem firmemente estabelecidos; mas, então, como se transformam com tamanha rapidez?” “Somos levados a fazer coisas por intermédio de outras agências sobre as quais não exercemos nenhum controle e que parecem absolutamente óbvias, costumeiras.” “Pesa sobre nós, invisível, algo mais sólido que o aço, e no entanto incrivelmente instável”. (LATOUR, 2012: 41)

Nesta passagem, Latour apresenta algumas questões que, segundo ele, movem o cientista social, e para cada uma dessas questões e tantas outras teríamos pronta a explicação do social, com suas “funções, estruturas, psique, tempo e espaço” (ibid: 46), enquanto a tarefa deveria ser a de seguir os atores, rastrear as conexões estabelecidas a cada momento e sua dinâmica a cada novo

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passo, acompanhando as transformações e as respostas dos atores para cada uma delas, certamente constituindo novos laços entre eles e com mais e novos atores. Diz ele:

Os sociólogos do social parecem pairar como anjos, transportando poder e conexões quase imaterialmente, enquanto os estudiosos da ANT têm de arrastar-se como uma formiga [“ant”, em inglês], carregando seu pesado equipamento para estabelecer até o mais insignificante dos vínculos. (ibid: 47 - nota minha)

É preciso, portanto, seguir os atores para encontrar as respostas às nossas perguntas, devemos procurá-las junto aos nossos atores em seu processo de associação que envolve humanos e não-humanos. Assim, Latour se distancia de vez de perspectivas que partem de categorias estabilizadas e propõe que caminhemos por essa imensa e dispersa “rede” na companhia dos atores buscando rastrear seus movimentos de associação, suas respostas a cada encontro, a cada impulso, como a chuva que possibilita ao caririzeiro voltar a cultivar um roçado após meses ou anos de estiagem.

Um trabalho que é tão artesanal e remete a uma caminhada quanto aquele que é proposto por Ingold (2015: 70-94). Na perspectiva de Latour, o ator-rede é ao mesmo tempo ele próprio e a rede, não está apenas conectado a ela, não é um ponto enviando sinal e estabelecendo conexões. Dado aí o porquê de devermos caminhar com os atores e seguirmos suas ações para compreendermos todo coletivo em movimento, de humanos a materiais, em suas capacidades de agir e responder às ações. Contudo, neste ponto reside uma das discordâncias entre as teorias de Ingold e Latour, que de qualquer forma não os colocam tão distantes como parece pretender o primeiro em sua crítica ao conceito de agência. Ingold afirma que as coisas não possuem agência – essa afirmação ficará mais clara algumas páginas adiante - mas estão em movimento pelo fluxo da trajetória de outras coisas, o que insisto e mostrarei não é tão diferente do que propõe Latour.

De toda forma, devemos explorar essa linha de debate aberta por Ingold através de sua tese de que não existe agência, mas sim um mundo de materiais em fluxo. Percebemos então que para ambos autores há uma complexa e incessante interação em um mundo de materiais e neste fluxo estão os coletivos de humanos e não-humanos que afetam e são afetados. Para Latour esse movimento se dá em rede, conceito que nos confere abertura, descentralidade, ausência de bordas, infinitude, além de ser a-teleológico. Para Ingold, as coisas estão em movimento e suas trajetórias formam linhas que, por sua vez, ao invés de se conectarem em rede entrelaçam-se formando uma

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“malha” (“meshwork”, no original). Assim, Ingold traz uma excelente contribuição com seu olhar para a vida, para a totalidade da vida (de quem é oriundo das ciências biológicas), na qual ambiente é pensado como “um imenso emaranhado de linhas” (INGOLD, 2012b: 39). No entanto, onde quero chegar é que há menos controvérsias entre os pensadores do que se faz crer pelas críticas e o próprio Ingold busca assinalar para essa proximidade quando diz de um possível problema na tradução do termo francês “acteur-réseau” para “actor-network”, que podemos imaginar teria certamente enorme influência na compreensão tão criticada por Ingold da ANT pelo público de língua inglesa. Diz ele ainda que o próprio Bruno Latour teria observado “em retrospecto, (que) essa tradução lhe emprestou um significado que não era pretendido” (ibid: 40). Isso porque na língua francesa réseau poderia “se referir tanto a rede (network) como a tecer (netting)” (Idem - grifos são meus). Vejo como perfeitamente plausível pensar então que a rede é seu tecer e não deixa de ser, portanto, um emaranhado de fios.

Vemos, deste modo, que o grande marco diferencial entre essas teorias, visto a partir da crítica de Ingold, reside na divergência entre uma ideia de conectividade e uma de integração da vida. Ingold tenta resumir as diferenças de pensamento entre ele e a ANT em um texto jocoso em que acompanhamos o debate entre uma formiga (“ant”) e uma aranha. Enquanto a primeira considera os coletivos como agregados, sendo ela “construtora de montículos”, agrupadora, a segunda os vê como um todo entrelaçado, sendo ela, portanto, uma “tecelã de teias” e essa teia é ainda parte da própria aranha. A formiga, por sua vez, argumenta: “o que chamamos de ‘colônia’ não corresponde a qualquer entidade concreta, real. Nós simplesmente usamos o termo como um atalho para o que, na realidade, é um vasto agregado de indivíduos”, e segue mais adiante a formiga para afirmar ainda que “qualquer coisa pode pertencer à rede, seja formiga ou não formiga”. Ao que a aranha responde dizendo que se o mundo da formiga parecia ser um amontoado de “pedaços” conectados entre si por uma rede, o dela era muito diferente, dizia ela: “As linhas da minha teia, ao contrário, são elas próprias fiadas a partir de materiais secretados do meu próprio corpo, e são deixadas enquanto me movimento. Você pode até mesmo dizer que elas sejam uma extensão do meu próprio ser”. (INGOLD, 2015: 145-147)

Deste debate entre insetos podemos compreender a ideia de Ingold de que a vida flui por entre as coisas como linhas que se entrelaçam, como os fios que saem da aranha para formar a teia.

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Nesta perspectiva essas linhas não conectam as coisas, mas são representativas da integração da vida, de como as coisas interagem e são, por esse modo, postas em movimento dando origem aos complexos emaranhados. Em outras palavras, ele sugere pensar vida enquanto linhas em um emaranhado formado e transfigurado pelo movimento e interação destas mesmas linhas. Ingold então faz dos pontos, linhas e afirma que “como a planta cresce a partir de sua semente, a linha cresce a partir de um ponto que foi posto em movimento.” (INGOLD, 2012: 26) Assim, materiais de toda sorte seriam “avivados” não por algo que lhes seja imanente (como a agência, segundo Ingold), mas pelo entrelaçar de coisas postas em movimento umas por estímulo das outras em um emaranhado cambiante e heterogêneo.

Neste sentido, é que Ingold argumenta que não haveria agência, mas fluxos, processos vitais que resultam não da agência, mas da relação entre as coisas através destes fluxos. Como ele busca explicar ao dizer que, por exemplo, uma árvore seria não um objeto, mas um fluxo de linhas que incluem os galhos, as folhas, o musgo, a casca e as criaturas que vivem sob ela (INGOLD, 2012: 28- 29). Diz ele, inspirado no pensamento de Martin Heidegger: “(...) a árvore não é um objeto, mas um certo agregado de fios vitais. É isso que entendo por coisa. (...) O objeto coloca-se diante de nós como um fato consumado, oferecendo para nossa inspeção suas superfícies externas congeladas. (...) A coisa por sua vez é um ‘acontecer’.” (Ibid: 29)

Neste sentido, Ingold propôs em uma aula com seus alunos um excelente exercício para compreender tal afirmação sobre agência. Fizeram eles próprios cada um sua pipa e as levaram para fora para vê-las no ar. Para quem já empinou uma pipa, sabemos que colocá-la em voo já é um desafio que exige certa destreza, pois, é preciso a integração perfeita entre uma pipa bem construída, o movimento dos braços e das mãos dando ligeiras puxadas com a linha deslizando entre a palma da mão e os dedos indicador e polegar para que o vento a faça, aos poucos, subir. É preciso caminhar e algumas vezes até mesmo correr para que a pipa se mantenha no ar e cada vez mais para o alto. No entanto, por maior habilidade que se tenha e por mais que se faça, há dias em que a pipa não voa com a desenvoltura que gostaríamos, ou simplesmente não voa. No Brasil Sudeste, digo por experiência que época boa para se empinar pipas é entre julho e agosto, isso porque a pipa não voa por sua própria agência ou a do empinador, mas precisa tanto quanto do vento, de um carretel de linha enrolada a uma lata e manobrada pelas mãos que respondem orquestradas em

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improviso ao restante do corpo e aos movimentos do ar, da pipa, da linha. É através destes movimentos integrados que a pipa ganha vida no ar. Algo como afirma Ingold sobre sua experiência (2012: 33):

As pipas estavam agora imersas em correntes de vento. A pipa que repousava sem vida sobre a mesa dentro da sala tinha se transformado em uma pipa no ar (...) a partir do momento em que foi levada para fora, a pipa deixou de figurar em nossa percepção como um objeto que pode ser colocado em movimento para tornar-se um movimento que se resolve na forma de coisa. (...) Pensar a pipa como objeto é omitir o vento - esquecer que ela é, antes de tudo, uma pipa-no-ar.

Apesar do dissenso aparente (apontado por Ingold) entre os autores acerca da ideia de agência, situações muito interessantes são postas por ambos para demonstrar que a ação não parte apenas do sujeito (humano ou não). Latour (2012: 78 - grifos são meus) fala do peregrino que chega ao mosteiro “atendendo ao apelo da Virgem Maria” e da cantora soprano que afirma que sua voz lhe “diz quando parar e quando começar”. Já Ingold (2012a: 18-21) conta do monge beneditino expulso do monastério por São Benedito que encontra ao sair um enorme dragão que apenas ele pôde ver parado em frente à porta. No mesmo texto, mostra como o som do trovão é compreendido pelos Ojibwa enquanto algo que o Pássaro-trovão teria para lhes dizer. De toda forma, mostram os dois autores situações em que seres humanos e não-humanos nos levam a agir seja pela intervenção de São Benedito ou da Virgem Maria, pela mensagem do Pássaro-trovão ou, posso ainda acrescentar, a chegada das arribaçãs ao semiárido, aves que migram para a região apenas quando há inverno, ou ainda, como as primeiras chuvas podem fazer o caririzeiro acreditar que haverá inverno e iniciar o cultivo de um roçado. Uma enorme variedade de coisas nos leva a agir e, no caso do semiárido, não seria possível compreender a vida na região sem considerar as variações no acesso à água, seja por uma seca de sete anos ou pela chegada das chuvas, como também, pela destruição completa das lavouras de palmas por uma praga, da qual falarei mais à frente, que se alastrou por todos os sítios na última década modificando todo fluxo da vida e obrigando o Cariri a buscar novos caminhos.

Assim não há qualquer possibilidade de intenção pura que não esteja relacionada a outros movimentos ao redor e muito menos qualquer tipo de determinação, pois, a influência se dá por todos os caminhos das linhas neste complexo e heterogêneo emaranhado. No Bravo, entre o inverno e a estiagem há uma grande quantidade de possibilidades de convívio com as condições do

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momento conforme a quantidade de chuvas ou o agravamento da seca. Porém, isso não é como um arsenal guardado para momentos específicos, mas um movimento de criatividade impulsionado pelas contingências. Tal como se recolhe o mato seco que pode ter crescido nas áreas adubadas em uma chuva isolada, ou se queima cactos e macambiras quando não há mais nenhum mato para o bicho comer, ou quando em tempo de inverno se planta um belo roçado de milho e capim para os animais e ainda alimentos para o consumo humano. A vida do caririzeiro é marcada pela interação no âmbito de um ambiente instável, com maiores períodos marcados pelas secas que pelas chuvas. Assim como, a pipa que não voa sem as condições do vento, como também da linha no carretel, da rabiola e do empinador, o caririzeiro é atravessado pelas linhas vitais que compõem, ou perpassam, o Cariri. Sua ação não depende de intenção apenas, mas das configurações proporcionadas neste emaranhado com ou sem chuvas e as respostas que vai elaborar e pôr em prática dado tais contingências. Assim, reafirmo por outros caminhos o que já vem sendo dito há algumas décadas (NEVES, 2000; SILVA, 2003; DUQUÉ, 2008), o problema do semiárido não são as secas, mas as respostas ineficientes e concentradoras de poder tomadas há mais de um século.

Há a participação constante de não humanos na vida do semiárido, como venho mencionando a água, mas eles não agem sós e não determinam a vida. Vejamos novamente a questão dos tanques no Bravo como um caso que pode ser pensado a partir de tal perspectiva. Estes, diferentemente de cisternas, açudes ou cacimbas construídas pelos habitantes, vêm sendo abertos ininterruptamente há milhões de anos pelas ações, principalmente, do vento e do tectonismo. Tanques foram utilizados por populações diversas de humanos ou não, enquanto dos primeiros, cada qual buscou otimizá-los à sua maneira, ao passo que vento e tectonismo, como também a água, continuaram movendo os tanques e deixando suas marcas pelos lajedos. Ingold mostra, então, que as coisas estão sempre em processo de formação e transformação imersas em um mundo de materiais do qual fazem parte e se afetam mutuamente colocando uns aos outros em movimento. Assim, a criatividade que falávamos no parágrafo anterior não tem como ser vista ignorando todo o conjunto de ações, em outras palavras, quando um habitante age e abre um tanque retirando dele o material sedimentar que o havia assoreado, quem mais age com ele ou antes dele? Diz Ingold que uma pedra na qual tropeço só seria um mero objeto se “nós a extrairmos do processo de erosão e deposição que a levou até aquele lugar e lhe conferiu aquele tamanho e forma” (INGOLD, 2012: 29). Assim, devo pensar os tanques, os quais, devido a água armazenada em

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suas superfícies impermeáveis, são procurados por uma grande variedade de formas de vida, entre eles animais desde o período em que representantes da megafauna ocuparam o local e deixaram suas marcas, inclusive suas ossadas, e povos indígenas que deixaram marcas gravadas nos matacões e instrumentos de seu trabalho cotidiano espalhados ou soterrados. Algo que traz novos fios para esse já complexo emaranhado com a valorização histórica e cultural destes mesmos tanques que por tanto tempo alimentaram com água a vida ao seu redor, hoje podem ser pontos turísticos e campos de pesquisa. Com tudo isso, se os lajedos onde encontramos os tanques já foram tidos como fontes de riqueza mineral a ser extraída, já foram e ainda são para muitos, lugar sagrado que lhes garante a vida, é possível pensar ainda na inovação criativa para um novo sentido em que os tanques e lajedos possam ser vistos por seu valor histórico e cultural e possível fonte de geração de renda para a população do Bravo. A criatividade sendo pensada não como agência imanente, mas dentro de um emaranhado de vidas.

O que fica claro neste caso dos tanques como em qualquer situação da vida nos sítios do Bravo é que absolutamente tudo depende do momento do tempo climático, ou para ser mais claro, toda dinâmica da vida se modifica conforme o acesso à água. As únicas duas estações climáticas deste pedaço do Brasil são seca e inverno, e estas possuem suas próprias trajetórias que, por sua vez, se entrelaçam às trajetórias das famílias sitiantes, das populações indígenas que uma dia já habitaram a região, dos lajedos presentes há milhões de anos, das plantas e dos animais da caatinga. Enquanto as águas dos tanques já garantiram a sobrevivência de muitas gerações de diferentes populações humanas ou não, e a perfuração de poços, construção de cisternas e instalação de rede pública de abastecimento evitam doenças e quilômetros em deslocamentos para muitas famílias, as águas das chuvas modificam a vida por completo, dando origem à estação de inverno na caatinga. Quando se precipitam as chuvas de inverno, surgem pastos para os animais, é possível cultivar um roçado, tanques, lagoas, riachos, tudo se enche de água e mesmo os peixes ressurgem. É possível então pescar e nadar no semiárido, a caatinga volta a ter folhas verdes, flores e frutas e muitos animais que haviam migrado ou se escondido voltam a aparecer atrás dessa fartura de alimentos que não se sabe quanto tempo irá durar e quando voltará a ocorrer. A rotina do caririzeiro muda, sua alimentação muda, sua relação com o tempo, seu trabalho e sua relação com o ambiente do sítio e com toda caatinga mudam de forma drástica.

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Por sua vez, o mesmo devo dizer com referência à seca, que quando tem início, sabe-se que começou, mas não sabem os caririzeiros quanto tempo ela irá durar. Quanto mais se avança no tempo e se afasta do último inverno, do verde que havia crescido naquela estação, vemos um cinza prateado e nada que se possa considerar alimento para humanos ou animais. Passa a haver cada vez menos lugares onde ainda se possa encontrar água, cada tanque, lagoa ou açude ficam secos até seu fundo. O que se pode ver são apenas as marcas deixadas pela água nas beiradas dos tanques ou pela superfície rachada do solo no fundo de riachos, o que mostra que um dia já houve água ali, mas pela falta de chuvas, a ação do sol rápido a secou.

Com relação à seca, Renzo Taddei (2014) observou que esta, ao contrário de outros tipos de desastres, é um processo marcado pela ausência e por uma temporalidade “distendida, incerta e cíclica” (Ibid: 37). Diz ele que as secas “são fenômenos insuportavelmente lentos. E em escala temporal ainda mais reduzida, da vivência cotidiana do tempo (meteorológico) é marcada por um alto grau de incerteza - é praticamente impossível estabelecer quando se inicia e quando se encerra uma seca”. (Idem) As secas seriam, portanto, processos ao longo dos quais “linhas de devir” se emaranham dando origem a um certo “modo de enredamento” dos períodos de seca. Ao longo do artigo o autor mostra como essas linhas se entrelaçam entre os primeiros sinais da seca, as ações iniciadas para tornar visível algo que por si mesmo não é, os processos, os interesses e as respostas das instâncias do poder público, como da opinião do Sul e Sudeste do país e as ações mitigadoras dos efeitos da estiagem.

Penso que uma realidade como essa deve ser abordada, portanto, dentro de seus fluxos seguindo as variações de acesso à água e as respostas encontradas para cada mudança. Seguindo a proposta de Renzo Taddei e trazendo para o diálogo com Ingold e Latour, penso que não seria correto tentar estabilizar, dividindo e classificando a vida no semiárido para posterior análise, penso que o melhor caminho para uma pesquisa no semiárido é seguir tais fluxos acompanhando as experiências e as soluções que os caririzeiros encontram para cada circunstância. Neste sentido, Ingold (2012: 27) defende justamente um foco em “processos vitais”, foco este através do qual sigamos os “fluxos de materiais” e possamos “ler a criatividade ‘para frente’, enquanto uma reunião improvisada com processos formativos … [não] a partir de um objeto acabado até a intenção na

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mente do agente”. Isso é ainda mais assertivo no caso do semiárido pela imprevisibilidade quanto a duração do período da seca.

Mais à frente no mesmo artigo, Ingold ainda afirma que essa improvisação seria como “seguir os modos do mundo à medida que eles se desenrolam” (Ibid: 38 – grifo é meu). Isso é tão real para o caririzeiro que já o pratica em seu cotidiano e tem isso quase que como uma regra para seu modo de viver, quanto deve ser para a rotina do pesquisador em campo e na construção da narrativa da tese. Essa abordagem permite, e mesmo exige, que caminhemos pelo semiárido ouvindo e acompanhando experiências na dinâmica da vida, suas transformações e as respostas a cada mudança de fluxo. Portanto, o próprio trabalho de pesquisa do antropólogo está (e deve estar) sujeito a tais mudanças acompanhando os fluxos dos processos vitais. Ainda mais quando me coloco no caminho de tentar compreender a vida em um contexto em que as variações sazonais são drásticas e as previsões climáticas não tem o grau de assertividade necessários ao agricultor, como já vimos com Renzo Taddei (2017).

Neste sentido, ao buscar explicar como ocorrem tais fluxos em um mundo de materiais, Ingold (2012: 35) mostra como na cozinha ou no laboratório se tenta demonstrar “uma aparência de controle sobre o que passa”, a aparência de controle humano sobre o fluxo dos materiais. Próximo do que Latour (1994: 28-29) já falava sobre o que chamou de o “testemunho dos não- humanos” no laboratório científico, dizia ele que “a velha hermenêutica irá continuar, mas ela acrescentará a seus pergaminhos a assinatura trêmula dos instrumentos científicos”. Como afirma o mesmo autor, em sua proposta de abordagem os instrumentos passam a ser atores do processo de conhecimento, “os servos tornaram-se cidadãos livres”, diz ele (ibid: 80).

Para completar tais afirmativas, podemos lembrar da cozinha/laboratório de nossa própria casa, quando preparamos um bolo com grande carinho e dedicação sem, ao menos aparentemente, errar qualquer ingrediente ou o ordenamento do seu modo de fazer, e ao final o bolo parece estar lindo e perfeito, mas quando retirado do forno ele subitamente murcha, definha na sua frente, mostrando que o controle absoluto dos materiais era apenas aparente. Também o pão pode ser preparado com a melhor farinha e pelas melhores e mais habilidosas mãos, mas se não houver temperatura adequada naquele dia, se estiver por demais frio, a massa não cresce. Em momentos como esses é preciso procurar exercer tal controle sobre os fluxos dos materiais utilizando para isso

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o fluxo de outros materiais, um material agindo sobre para tentar controlar seus fluxos. Tal como me recordo claramente de minha avó colocando sobre os pães uma manta de lã que ela mesma havia tecido para que a massa não deixasse de crescer em um dia de frio, um material tecido para controlar o outro. Assim, também é possível ler o projeto de construção de cisternas de placas de cimento pela Articulação do Semiárido – ASA, que armazenam água das chuvas e evitam sua perda por infiltração e evaporação. Em outras palavras, se não é possível controlar o fluxo das secas e invernos, as cisternas controlam o que seria o fluxo natural das águas e sua perda e o mesmo ocorre com outras tecnologias implementadas pela ASA.

Ingold (2012: 36) ainda cita um fato interessante quanto ao fluxo de materiais ao se referir ao trabalho de pintores que exerciam, de certa forma, o trabalho de alquimistas intentando através da manipulação de materiais criar a matéria-prima de sua arte. Quanto aos pigmentos, este menciona a fórmula para se obter uma tonalidade de vermelho profundo muito valorizada na arte: o vermelho carmim, obtido através de “pequenos insetos avermelhados que eram fervidos e secos ao sol para produzir o vermelho profundo conhecido como carmim”. O vermelho deste inseto, a cochonilha do carmim, é utilizado em obras de arte, pelo menos, desde o renascimento e afirma-se que desde o século XVII certamente teria passado a ser a fonte de vermelho profundo mais utilizada em Portugal e ainda “em finais do século XVIII é dito que ‘o carmim vende-se ordinariamente em pequenos papéis e é composto de féculas vermelhas de sangue da cochonilha’ (...) proveniente do México.” (CRUZ, 2007: 43)

O corante citado por Ingold tem papel decisivo também na história recente do semiárido brasileiro, e assim do Bravo, dando início a uma grande crise na produção da palma forrageira em pleno período da seca. Assim, se Harman (2009: 21 - a tradução é minha) afirmou que “um seixo pode mudar a história de um império caso o imperador se engasgue durante o jantar”, um inseto minúsculo, a cochonilha-do-carmim, que vive em colônias que se alimentam da seiva das palmas, em pouco tempo mudou de fato o rumo da história no semiárido brasileiro e transformou a vida de milhões de pessoas. Os cactos, como essas palmas, desenvolveram a capacidade de armazenar boa quantidade de água que lhes garanta a sobrevivência durante a seca, além de reduzirem a perda de água por evapotranspiração, por conta da troca evolutiva de folhas por espinhos. Por esse motivo o cultivo da palma forrageira se tornou importante por todo semiárido brasileiro, por resistirem aos

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longos períodos de estiagem. Por isso mesmo, representam uma importante e indispensável estratégia para a manutenção da ração de bovinos, caprinos e ovinos, principalmente quando não chove e, com isso, não há mais pastos disponíveis. México e Peru são grandes produtores e exportadores da matéria prima utilizada na fabricação do corante natural vermelho carmim, utilizado pela indústria de alimentos, tecidos e outros, ou seja, são capazes de produzir cochonilha de forma controlada em suas plantações de palmas. Porém, uma experiência malconduzida em laboratório no estado de Pernambuco na tentativa de estudar a possível produção de cochonilhas como alternativa econômica para o Nordeste brasileiro deixou, de forma ainda não explicada, escapar da área protegida palmas contaminadas pela cochonilha. Essa rapidamente se espalhou pela região contaminando todas as lavouras e matando todas as palmas do tipo gigante, cultivadas até então. No Cariri Paraibano a contaminação teria ocorrido via a cidade de Monteiro, o que levou algumas pessoas a creditarem a contaminação das lavouras a possíveis fazendeiros que teriam tentado a criação do inseto sem as devidas autorizações do poder público. O inseto migra no corpo de pássaros e outros animais formando colônias em cada raquete da planta e contaminando toda plantação em questão de dias (CONSEA, 2005; VASCONCELOS, 2009).

Em 2012, com o início da última seca toda principal fonte de ração animal tinha sido perdida sem que houvesse tempo para que o produtor sequer tentasse compreender o que ocorria. As lavouras de palma gigante foram substituídas, e para seu lugar os sitiantes receberam da prefeitura uma espécie alternativa, a orelha de elefante mexicana, resistente ao inseto. Porém, esta não atinge o tamanho da anterior e ainda divide opiniões entre os sitiantes, pois, devido à seca que se alongou ainda por longos anos depois da contaminação e substituição, nos sítios ainda se sabe pouco sobre esta nova espécie. Se o caso do experimento alquímico dos pintores com a tintura proveniente da cochonilha, como citado por Ingold, mostra a tentativa frustrada de se tentar manter não humanos sob total controle, vemos uma situação ainda mais eloquente quando essa mesma cochonilha escapa ao laboratório ou ao estúdio do pintor (onde existia na forma de pigmento) e agora é vista como uma praga que destruiu plantações e causou grave crise em meio a uma longa estiagem.

Assim, os materiais teriam trajetórias próprias que não estão sob completo controle ou mesmo subjugação do humano. Com essa complexidade de atores ou fios heterogêneos que se entrelaçam ininterruptamente e criam o fluxo das coisas, as fazem vivas, podemos imaginar um

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confuso emaranhado recheado de conflitos. O mesmo emaranhado marcado pelas variações no acesso à água, congrega a família sitiante, seu roçado, instrumentos, animais de criação, os animais e as plantas da caatinga, as rochas dos lajedos e mesmo os serviços públicos, os representantes do Estado e as empresas que atuam na região. Portanto, não é possível dizer que todos esses atores caminham na mesma direção. Ao ver nos lajedos os possíveis lucros da venda de suas rochas, o antigo fazendeiro partia de pressupostos ontológicos que divergiam conflituosamente com aqueles dos animais que fazem sua vida no local, dos antigos habitantes indígenas que o tinham como sagrado e nestes realizavam seus rituais, como também daqueles pressupostos ontológicos de ambientalistas, geólogos, arqueólogos e turismólogos que vieram com o geólogo Eduardo Bagnoli para desenvolver o turismo na região no fim da década de 1990 e início dos 2000. Cada pressuposto destes parte de ontologias diferentes e levam obviamente a conflitos4 (cf. ALMEIDA, 2013).

Neste sentido, acredito que a proposta de Latour tem mais a contribuir para pensarmos uma realidade como essa do que divergências críticas a serem assinaladas. Até porque a malha da vida de Ingold, como assinala Otávio Velho (2012: 229), não deixa espaço para o conflito na defesa de sua proposta de “unidade da vida”. Sendo que, por outro lado, é possível pensar um emaranhado confuso e conflituoso, onde os atores divergem e lançam uns aos outros para novos caminhos. Neste caso, me volto para Latour buscando no diálogo com Ingold a solução para o problema apontado por Otávio Velho.

No caso de Latour, o que não devemos deixar de pensar é que sua rede compreende uma abstração acerca de como os coletivos são integrados e transformados pelos próprios atores em rede (lembrando que a ideia do hífen em ator-rede é que os atores são a rede, não estão conectados por uma). Sendo assim, cada ator afetaria a ação de inúmeros outros, e estes por sua vez, a outros, levando à uma confusão sem centro ou periferia na qual toda coletividade em seu processo de formação e transformação é considerada de forma planificada. Neste sentido, os atores de Latour não podem ser vistos como objetos estáticos enviando mensagens entre si através de uma rede que interliga pontos remotos. Mas, diferente disso, inter-agindo e assim se

4 Penso aqui, tal como demonstrou Mauro Almeida (2013), acerca do contexto amazônico, na existência de pressupostos ontológicos conflituosos. A exemplo das toneladas bentonita, mineral de bom valor no mercado, ou das rochas de granito que podem ser confirmados pragmaticamente enquanto meio de produção, lugar sagrado, atração turística, etc.

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movimentando com capacidade para interferirem (como inter-ferir) e transformarem uns aos outros. Não se deve pensar actor-network como se pensa (mesmo que erroneamente) um organograma empresarial pretensamente estabilizado, que parece este sim um amontoado de indivíduos separados por setores de especialização que trocam mensagens, objetos e relatórios entre si. Ainda mais distante a ANT está da representação simplista que se faz das redes de computadores e outros aparelhos interligados, como celulares e tablets, nas quais cada aparelho forma um ponto na rede, estes sim, distanciados e talvez isolados entre as paredes de residências ou empresas. É dessa concepção que me parece equivocada que é preciso esquivar, como afirma Latour (2012: 189): “a rede não designa um objeto exterior com forma aproximada de pontos interconectados, como um telefone, uma rodovia ou uma ‘rede’ de esgoto”. E alerta mais a frente acerca do “risco em acreditar que o mundo é feito de pontos e linhas” (ibid: 194). Por fim, da forma mais didática possível, Latour (ibid: 207) ainda narra uma hipotética conversa sobre a ANT entre um aluno e um professor (certamente, ele próprio). O aluno diz que as pessoas com quem trabalha em sua pesquisa formam uma rede, “estão ligados a muitas outras coisas por toda parte (...) andei traçando suas conexões: chips de computadores, padrões, educação, dinheiro (...) Não descrevo assim uma rede?” A resposta do professor é simples e contundente:

Você sem dúvida aceitará que rabiscar com um lápis não é o mesmo que rabiscar a forma de um lápis (...) Você está simplesmente confundindo o objeto com o método. A ANT é um método (...) (e) na verdade, devíamos dizer “worknet” em vez de “network”. O que temos de enfatizar é o trabalho, o movimento, o fluxo e as mudanças. Mas “network” pegou e as pessoas pensam que estamos falando de Word Wilde Web ou coisa semelhante. (idem)

Actor-network se assemelha mais a uma abstração rizomática, portanto, não faz sentido ser vista como uma rede inteiriça. Rizomas não são labirintos com entrada, percurso e saída tendo dentro deles atores ou informações a percorrê-lo. Se a rede é rizomática não apresenta forma clara, seria como um labirinto que não apresenta caminhos definidos, deve ser repleto de passagens e limiares que levem a todos os lugares. O pesquisador, então, deveria seguir os passos dos atores ao longo de suas trajetórias neste labirinto sem saber onde vai levá-lo, em cada uma das associações estabelecidas e desfeitas neste caminho, inclusive, ou ainda mais, as conflituosas. Ou seja, nos laboratórios estudados por Latour, cientista, laboratório, instrumentos, materiais de toda ordem, agências de financiamento, universidades, Estado, não estão perfeitamente integrados. Ao contrário, a ANT é apresentada por Latour como uma desconstrução de uma antiga forma de

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trabalharmos a partir de algo pronto e estabilizado, ao invés de sociedade pensaríamos em coletivos heterogêneos em constante movimento e sendo colocados a agir por fluxos contingentes e, por isso mesmo, muitas vezes conflituosos.

Isso não me distancia de Ingold, mas reafirma a proposta de um diálogo entre os autores naquilo em que podem contribuir para pensar a vida no Bravo. Tal como, no que tange a água, a vejo enquanto parte de um emaranhado mundo de materiais, e por isso mesmo não possui agência enquanto algo que lhe é inerente, mas está em movimento pelo entrelaçar do fluxo da vida, e também ela própria coloca em movimento e modifica toda vida no semiárido quando se tem acesso à ela. Argumento esse no qual utilizo da teoria de Ingold, mas, ao mesmo tempo, me aproprio e não vejo motivos para não utilizar o conceito de ator, sem para isso desconsiderar a crítica à ideia de agência, mas vendo nela limites. Até porque, considero que o ser humano pode buscar controlar as perdas de água por evaporação ou infiltração, pode tentar controlar sua distribuição através dos dutos e encanamentos, mas não controla sua precipitação em forma de chuva, sem a qual não haverá água para ser armazenada, tampouco para fazer nascer as plantas da caatinga e do roçado. A presença da água no Cariri não é coadjuvante, muito menos figurativa, se a água está viva, no sentido dado por Ingold, digo que é “ator” enquanto partícipe de ações que modificam por completo a vida no semiárido, não age sozinha, é claro, mas age por entre cada nó, em cada entrelaçamento.

A ação da água das chuvas não está isolada do movimento das massas de ar na atmosfera, do calor do sol, da evaporação das águas dos oceanos, da evapotranspiração das plantas, dos pequenos cristais de gelo que constituem as nuvens ou do relevo que impede a passagem das correntes atmosféricas para essa região, como também do chamado efeito El Niño, que tem efeitos climáticos que afetam as precipitações no Nordeste interior (DE MELO, 1999). Ao contrário, é deste movimento de interação, destes encontros, que se formam as chuvas e as estiagens, mas afirmo que isso não deixa de ser uma ação, uma ação em um emaranhado impulsionada por outras ações, mas uma ação. A ação não precisa ter origem na vontade simples para sê-la, é uma ação mesmo que promovida no fluxo de um emaranhado. A água das chuvas não deixa de ser “ator” durante o ato do inverno, mesmo que sua ação seja parte e resultado desse complexo emaranhado de atores em movimento.

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Com isso, a água também não é um “ator” qualquer, pois, entre o céu e a terra atinge e transforma de maneira direta a vida de humanos, plantas, rochas e animais, e mesmo quando passa há dez mil metros em grandes nuvens que não se precipitam em chuva, escurece o céu ou parte dele e faz com que todos parem para ver aquela chuva que passa ao alto ou se precipita no horizonte distante. A água é, sem dúvida, como um “ator” trickster, no sentido como afirma Graham Harman (2009: 21) sobre os não humanos na obra de Latour: “miniature trickster objects (can) turn the tide without warning”. Isso, pelo fato de ser a água o ator que melhor possibilita acompanhar um movimento que cria novas associações, novos laços, e transforma os anteriores por todo emaranhado da vida.

Veja que, para Latour (2012: 62), o que chamamos de social é na verdade um movimento de associações que só pode ser “captado, e ainda assim de maneira indireta, quando ocorre uma ligeira mudança numa associação mais antiga, da qual nasce outra nova e um pouco diferente”. Neste sentido, não há outro dentre os atores da vida no semiárido, que não seja a água, que exerça tamanha e tão nítida influência. De toda forma, a água move a vida, transforma a vida, abre ou reduz possibilidades tornando nítido tal fluxo para o acompanhamento passo a passo e a descrição pelo antropólogo. Ao seguir e observar tal inquietação provocada pelas variações de acesso à água, é possível e mesmo necessário acompanhar no mesmo caminho também as respostas dadas pelos atores a essas situações, percebemos então um movimento a partir das novas configurações impostas a cada instante diverso.

São exatamente essas respostas que nos interessam, por serem tentativas de lidar com (diferente de controlar e combater) o fluxo dos materiais, assim o trabalho muda, instrumentos utilizados mudam, a relação com plantas, animais, solo, rochas, mudam também, pois, um novo momento de disponibilidade da água exige novas soluções, são novas experiências a serem vividas, ouvidas, acompanhadas e descritas, um novo emaranhado de relações se estabelece.

Assim, tal proposição de descrição e análise obriga o pesquisador que busque compreender os fenômenos da vida no semiárido a se esvaziar de conceitos e classificações pré-estabelecidos que parecem tudo abraçar e o distanciam das experiências dos atores para acompanhar, ouvir e aprender a partir das experiências e das soluções dadas pelos próprios atores da vida no semiárido. Algo como Jorge Mattar Villela buscou em seu trabalho, também em contexto de semiárido, em

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estudo sobre relações políticas na região, área de interesse que historicamente utilizou conceitos consagrados em suas análises, como coronelismo ou compra de votos e clientelismo, assim como afirma o próprio Jorge Villela (2012: 211):

Tenho tentado (...) construir um certo nominalismo antropológico cujo esforço seria o de evitar descrever os jogos eleitorais em Pernambuco por meio de conceitos exógenos ao pensamento e as teorias políticas e das experiências vividas pelos agentes envolvidos e rejeitar conceitos excessivamente abrangentes, como compra e venda de votos e clientelismo.

Em uma proposta de compreender como habitantes do semiárido pernambucano experienciam a democracia, Villela acredita que o pesquisador não deva partir de conceitos exógenos. O que não significa que deva ignorá-los, mas que é preciso escapar de sistemas e conceitos pré-estabelecidos e, em sentido inverso, ouvir e acompanhar os atores em suas experiências de democracia. Neste caso, o pesquisador descreve uma lógica de relações políticas baseadas em certas regras de “etiqueta” que devem ser respeitadas no momento da negociação política na forma de visita entre candidatos e as famílias de eleitores. Ou seja, há um certo “modo de agir” que se espera de cada um, como afirma: “é preciso, portanto, saber pedir, saber dar e saber aceitar” (Ibid: 218). Desta forma, Villela escapa de generalizações de conceitos consagrados para pensar uma forma de “etnografar grandes temas a partir da apresentação das políticas cotidianas e do ‘saber das pessoas’.”(Ibid: 212 - grifo meu)

Assim acredito que a abordagem de Villela para o estudo da política no semiárido pernambucano aponta para o mesmo sentido que o caminhar entre os atores, ouvir e acompanhar suas experiências e respostas às contingências da vida, como venho comentando a partir dos trabalhos de Ingold e Latour. O que distancia a proposta destes autores com relação a Villela é o olhar que estes apresentam para participação também decisiva também do não humano. De toda forma, entre o que os assemelham, na seguinte passagem em Latour o leitor pode perceber o mesmo desejo de se aproximar da ação e se afastar de conceitos exógenos e generalizantes, componentes de certos quadros já previamente organizados e estabilizados na história da sociologia:

Os atores cultivam muitas filosofias, mas os sociólogos acham que eles deveriam ater-se somente a umas poucas. Os atores enchem o mundo de ações, enquanto os sociólogos do social lhes ensinam de que tijolos seu mundo é ‘realmente’ edificado. (LATOUR, 2012: 83)

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Assim, o antropólogo que for ao semiárido procurando por “clientelismo” e “compra e venda de votos”, como comenta Villela, pode encontrar uma vida política organizada a partir de outras práticas que não correspondem, ou não completamente, aos conceitos e estudos clássicos sobre a política no semiárido. No caso de Villela, como também no trabalho de Ana Claudia Marques (2002), que estudou brigas de família também no semiárido pernambucano, descrições de cenas do cotidiano político mostram que há lógicas de negociação e disputa específicas que respondem às contingências dos grupos estudados e ao momento em que vivem. No caso do trabalho de Ana Claudia Marques, conceitos chave para sua interpretação, como “brigas”, “vinganças”, “intrigas” e “questões” são retirados dessas mesmas narrativas e não de sistemas lógicos previamente estabilizados dentro de conceitos. Isso leva o pesquisador, como propõe Latour (2012: 46), a obrigatoriamente ter que “abandonar o quadro de referência fixo” com o qual costuma iniciar sua pesquisa se sentindo preparado para classificar uma realidade dentro dos quadros da ciência sociológica, para em vez disso, seguir e descrever a lógica dos próprios atores em suas ações e narrativas.

Se eu tivesse [que] fazer uma lista das características que deve ter uma boa descrição ANT (...) perguntaria: os conceitos dos atores figuram como mais fortes que os do analista? Ou o próprio analista monopoliza o discurso? O texto que comenta diversas citações e documentos é mais, menos ou tão interessante quanto as expressões e atitudes dos atores? (LATOUR, 2012: 53)

A monopolização do discurso pelo analista ao longo de sua tese revela uma postura assimétrica, de pretensa superioridade das bases de conhecimento do pesquisador sobre o saber dos habitantes com os quais deveria trabalhar sua tese. As narrativas e ações registradas em campo são, seguindo essa postura, como dados da vida mal compreendidos pelos atores e que devem, portanto, ser classificados e analisados para a redação de um texto sociológico, para explicar-lhes com que materiais e de que forma seu mundo é feito e como realmente funciona (Ibid: 83). Na visão de Latour esse tratamento que “sociólogos do social” dão aos atores, por menosprezá-los em suas ações e em seu discurso, cai em contradições, tal como, “em algumas situações extremas, os atores parecem ter a capacidade impressionante de discordar de tudo o que os sociólogos supostamente tomam como dado a fim de começar o trabalho” (Ibid: 46).

No que se refere a pesquisas no semiárido, a relação com as variações do tempo climático só pode ser compreendida acompanhando os atores através dos movimentos do cotidiano entre as

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estações, e tanto quanto nas narrativas dos habitantes sobre esses mesmos fluxos. Como, por exemplo, uma chuva pode não ser uma chuva, neste caso apenas um nevoeiro, incapaz de umedecer a terra, pois, em instantes o sol deve voltar a aparecer e a ressecará novamente e nada nela deve brotar. Segundo narrativas de seus habitantes, no semiárido continua sem chover, pois, prosseguem os efeitos da seca sem que qualquer fato do cotidiano possa ser modificado por aquela água que mal toca o solo e já evapora. Outra situação como essa se refere às algarobas, árvores de origem exógena implantadas na região há várias décadas por sua capacidade de alcançar água subterrânea e se manter verde e produzindo vagens e sementes boas para alimentação animal com ou sem chuvas. No entanto, suas qualidades são também seus defeitos, pois, para manter-se verde, suas raízes ressecam fontes de água e até mesmo racham cisternas das casas para encontrá-la, causando sérios problemas aos habitantes e matando outras espécies que não encontram mais água para sobreviver. As ações desses habitantes e as narrativas concernentes à algaroba refletem essa contradição sanada por eles apenas com o controle da espécie sem sua destruição, pois, mesmo sendo uma planta trazida de fora, como muitas vezes ouvi, e que trouxe prejuízos, gera sombra o ano todo e alimento uma vez ao ano aos animais.

O caminho para compreender tais situações da vida no semiárido encontra-se na própria trilha deixada pelos atores em suas ações e nos caminhos apontados em suas narrativas. A vida do caririzeiro ocorre em meio às especificidades das variações climáticas, os invernos irregulares e os longos períodos de estiagem e deve ser observada sem nunca negligenciar tais aspectos. Ao contrário, apenas dando atenção às vicissitudes do clima semiárido vemos o mundo de seus habitantes sendo constantemente edificado e transformado. Há movimentos de associação entre humanos e não-humanos que modificam uns aos outros neste fluxo. Como, por exemplo, a ferramenta que se usa na seca para queimar xiquexique se torna outra a partir de novos usos no inverno; ou os animais alimentados perto de casa em um momento e soltos no cercado em outro; também a área ressecada de outrora, pode ser o roçado do inverno. Ao seguir essas variações é possível perceber o semiárido se realizando e se reinventado em cada novo momento.

Desta forma, se Latour (2012: 62) afirma que “o mundo social (...) não passa de um movimento que só pode ser captado (...) quando ocorre uma ligeira mudança numa associação mais antiga da qual nasce uma nova um pouco diferente”, a água no semiárido extrapola essa ideia de

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“ligeira mudança”, pois, aquelas provenientes das chuvas de inverno transformam a vida por completo e podem criar incontáveis associações inteiramente novas. Como também, mesmo que não atinja de forma direta todo conjunto da vida no semiárido, cisternas evitam que famílias se desloquem quilômetros em busca de água, garantindo um mínimo de autonomia, assim como higiene e saúde para a população. Neste mesmo sentido, mas indiretamente, se há água nas cisternas de cada casa, os tanques dos lajedos agora são pouco utilizados pelos sitiantes e sobram para os animais soltos e silvestres. Já as águas provenientes da perfuração de poços ou das cisternas de 52 mil litros construídas pela ASA podem ser utilizadas para a irrigação de um roçado e produção de alimentos para família e ração para os animais. Por esses e tantos outros fatores, ao acompanhar as variações dos fluxos de acesso à água é possível ver o semiárido em constante processo de construção.

Ao acompanhar o fluxo da vida no semiárido e suas transformações conforme o acesso à água, percebe-se os muitos atores percorrendo esse emaranhado. Tal como, um candidato a vereador pode pagar a perfuração de um poço, mas só o faz porque não chovia, pois, o sucesso desse projeto de ascensão política funciona melhor em tempos de seca. Da mesma forma que o grande comerciante de rações de Boqueirão, com suas inúmeras carretas novas, compradas todas durante a seca, não teria o sucesso que alcançou na última década caso fosse tempo de chuva ou as cochonilhas não tivessem matado toda plantação de palmas que alimentavam os animais. Quando agimos, não agimos sozinhos e o que há de novo na abordagem tanto de Latour como de Ingold é que eles incluem entre os que agem conosco mais que as instituições já consagradas nos estudos das ciências sociais, como família, Estado, mercado, etc., incluem nesse processo todos os vínculos entre humanos e não humanos.

Neste sentido, mais uma vez digo que há diálogo entre as proposições de Latour e Ingold. A pipa para Ingold, como comentei páginas acima, não age por ter agência enquanto algo que lhe é intrínseco, mas por ser inseparável em seu voo do movimento do ar na atmosfera, da rabiola que lhe dá estabilidade, da linha presa a ela passando pelas mãos e enrolada em uma lata ou carretel. Enfim, não basta a vontade do empinador para que a pipa voe. Algo que a meu ver reverbera na assertiva de Latour de que quando agimos não agimos sozinhos, mas impulsionados por atores diversos. Como fica claro na seguinte passagem que se assemelha às proposições de Ingold, visto

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que ambos bebem da mesma fonte dos Mil Platôs, em Deleuze e Guatarri: “A ação não ocorre sob pleno controle da consciência; a ação deve ser encarada, antes, como um nó (node), uma ligadura (knot), um conglomerado de muitos e surpreendentes conjuntos de funções que só podem ser desemaranhados aos poucos”. (LATOUR, 2012: 72)

Pense na atividade de marcenaria, como exemplificado por Ingold (2015: 95-110), o ato de serrar uma prancha de madeira não é isolado no humano que opera a ferramenta, mas as coisas que são parte da ação do serrador devem funcionar juntas, formando o “nó” da ação, quando várias linhas se encontram. Como ele descreve, o início da atividade é difícil, “a madeira resiste e parece querer expulsar a serra, fazendo com que ela salte” (Ibid: 99). Após a abertura de uma pequena fenda, o serrote se acomoda naquele espaço dando estabilidade para o movimento do serrador e facilitando o curso do trabalho. Neste mesmo sentido, em um bom serrote seus dentes deslizam facilmente quando a puxamos e corta com facilidade durante o movimento descendente do braço, reduzindo esforço de seu operador. Em suma, afirma Ingold (Ibid: 104), “só se serra quando todas as coisas, e muitas outras, estão reunidas e trabalham em uníssono”. Encontra-se aí o no da ação.

Desta afirmativa, faria apenas um apontamento quanto a esse movimento que não me parece ser uníssono, como afirmou Ingold. Algo com o qual ele mesmo parece concordar páginas à frente no mesmo livro, quando afirma “seguir a sugestão de Von Uexküll, que compara o mundo da natureza com a música polifônica, na qual a vida de cada criatura é equivalente a uma melodia em contraponto” (Ibid: 136). Perspectiva que podemos perceber também na descrição e análise que Ingold faz do trabalho de carpintaria: “serrar uma prancha (...) compreende não um movimento, mas um conjunto de movimentos concorrentes” (ibid: 107). Por isso, não me parece que as coisas trabalhem em uníssono, o que eliminaria conflitos e dissonâncias, algo que ocorre no canto gregoriano, por exemplo. Por outro lado, linhas de melodia em contraponto são como trajetórias que por vezes divergem outras convergem, mas, caminhando juntas se entrelaçam para compor uma música, como se percebe nos contrapontos de uma obra de Bach. Da mesma forma que nessa alegoria com a música, na análise da ação tão pouco se pode considerar a junção de linhas em uníssono, mas enquanto linhas de devir se entrelaçando e contrapondo umas às outras. Desconsiderar tais movimentos de construção e transformações, muitas vezes dissonantes, seria o

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mesmo que tentar fotografar uma sinfonia e fixá-la em um quadro na parede, sendo que ela é seu próprio devir de linha em contraponto, só existe em movimento.

Neste entrelaçar de trajetórias, de linhas de devir, entre humanos, animais, plantas e materiais é que é feita a vida no Cariri. A mesma chibanca que foi utilizada para arrancar macambiras durante a seca, abre espaço na terra para as sementes do roçado quando chove. A velha chibanca já não é a mesma entre a seca e o inverno, por ser ela a realização de seu ato em concomitância e conflito com outras linhas. Por isso mesmo, Ingold (2015: 102-103) defende que “as coisas são suas estórias” e não qualquer tipo de definição estabelecida a priori. Para Ingold (2015: 110), “a essência da habilidade, portanto, vem a residir na capacidade de improvisação”, como dar novos usos e sentidos aos instrumentos de trabalho, como a chibanca mencionada. Em ambientes semiáridos, o nó da ação inclui sempre as vicissitudes da variação sazonal e por isso o ator ou a ação não podem ser considerados fora do emaranhado que os constitui.

Neste sentido, Latour e Ingold apresentam acepções quanto a ideia de ação nas quais ambos concordam que o ato não ocorre por si e de forma isolada e mostram que há espaço para pensar o conflito. No caso de Latour (2012: 75), este afirma já em um de seus subtítulos que “ator é aquilo que muitos outros levam a agir” e inicia o texto dizendo que ator “não é a fonte de um ato e sim o alvo móvel de um amplo conjunto de entidades que enxameiam em sua direção” (idem). Enquanto Ingold (2015: 116), por sua vez, apresenta da seguinte forma: “[animacidade] trata-se do potencial dinâmico, transformador de todo o campo de relações dentro do qual seres de todos os tipos (...) contínua e reciprocamente trazem uns aos outros à existência”. Em ambos a capacidade de agir não reside na intenção meramente de quem age. Não há nesta perspectiva de Latour qualquer menção à agência enquanto imanência, mas a inseparabilidade de tudo aquilo que compõe o que chama de ator-rede.

Sendo assim, não é a distância ou proximidade que define a participação de um ator no emaranhado da vida. Como, por exemplo, olhar o céu com admiração é algo comum para quem vive no semiárido, principalmente quando avistam nuvens densas e ainda mais se, de longe, puderem ver os raios cortando o céu, situação que vivenciei com eles no Bravo por muitas vezes. O céu pode estar distante, portanto, mas não está separado da vida sobre o solo do semiárido. Ingold (2012b: 30) diz que observar as nuvens é ver o “céu-em-formação, nunca o mesmo entre um momento e

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outro”. Em um ambiente onde tão raramente nuvens carregadas se precipitam em chuva, ver relâmpagos no horizonte é um breve espetáculo do dia e, assim, durante a seca tantas vezes nos reunimos no terraço para contemplá-los por alguns minutos. Nestes momentos o céu estava também ligado à terra e movia a vida dos habitantes sobre o solo.

Por conseguinte, céu e terra não podem ser considerados enquanto dois mundos separados, pois, vivemos o fluxo do clima por entre nossos corpos e criamos condições para vencer os excessos de suas variações, seja com agasalhos, ventiladores, climatizadores ou lareiras. Assim também é no semiárido quando, por exemplo, uma pessoa sai para trabalhar completamente coberta de um tecido fino da cabeça aos pés para evitar o excesso de exposição ao sol; também quando cavam uma cacimba no caminho do riacho para encontrar água; ou quando o Governo Federal resolve investir no projeto de cisternas da ASA para todas as casas do semiárido com o intuito de armazenar água potável das chuvas para os tempos de seca; e assim por diante.

Da mesma forma, os roçados são uma marca do inverno em todos sítios do semiárido, dadas as condições do tempo climático que permitem seu cultivo. Sem as chuvas de inverno, apenas quem tem acesso à irrigação pode cultivar seu roçado. O trabalho de inverno no roçado, por sua vez, envolve outras atividades, outras ferramentas ou outros usos para as mesmas ferramentas, outra relação com o tempo e os espaços do sítio, formam um emaranhado completamente diferente daquele da seca e da queima de cactos e macambiras. São essas, entre tantas outras situações, transformações e possibilidades que mostram nitidamente sol, vento, nuvem, chuva se entrelaçando às trajetórias de vidas por todo semiárido. Com afirma Ingold, o “fluxo aéreo do tempo” não pode ser separado das vidas em sua base sólida.

Para eles [seres vivos], o mundo habitado é constituído em primeiro lugar, pelo fluxo aéreo do tempo em vez de pela fixidez fundamentada da paisagem. O clima é dinâmico, sempre se desdobrando, sempre mudando em suas correntes, qualidades de luz e sombra, e cores, alternadamente úmido ou seco, quente ou frio, e assim por diante. Neste mundo a Terra, longe de fornecer uma base sólida para a existência parece flutuar como uma jangada frágil e efêmera, tecida a partir dos fios da vida terrestre, e suspensa na grande esfera do céu. Esta esfera é onde toda ação sublime acontece: onde o sol brilha, o vento sopra, a neve cai e as tempestades esbravejam (INGOLD, 2015: 124)

Habitar o semiárido, portanto, é se entrelaçar aos fluxos das transformações do tempo climático criando condições para a vida em cada novo momento. Algo que Ingold chama de habitar

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o mundo aberto, ter a vida justamente como essa imersão “nos fluxos do meio” (ibid: 179). Assim como, respirar é fundamental para a vida, a água é fundamental para o nascimento e crescimento das plantas do roçado ou da caatinga, para hidratação e alimentação de humanos e animais e sua ausência por muito tempo é perceptível até mesmo ao respirarmos o ar seco e empoeirado dos períodos de estiagem. As nuvens que passam no céu, negras e carregadas ou brancas em formato de algodão, não são apenas imagens dependuradas no firmamento, elas participam da vida em terra mesmo que não se precipitem em chuva, até mesmo formando valorosas sombras em um dia de sol escaldante, como é comum nesta região. Enfim, como afirma Ingold (ibid: 179-180), “habitar o aberto é habitar um mundo-tempo no qual cada ser está destinado a combinar vento, chuva, sol e terra na continuação da sua própria existência”.

Viver no sentido proposto por Ingold é se misturar no mundo, do chão, ou abaixo dele (como a água de subsolo), até o céu. Ora, as variações sazonais entre a seca e o inverno formam a marca mais relevante da vida no semiárido, não é possível negar que todo conjunto da vida é afetado conforme a estação, também não seria correto ignorar a ação do sol quente em uma região próxima à linha do equador, ou do relativo frio do inverno para pessoas acostumadas ao tempo quente. A luz do sol ainda proporciona situações únicas nesta região do Cariri com variações de cores que já impressionaram fotógrafos e cineastas. Enquanto, com chuva o Cariri todo ganha uma coloração azul enegrecida, marinho bem escuro, sem chuva as cores variam ao longo de todo dia, ao ponto de no final da tarde ser possível ver grande variedade delas se misturando no céu. Por certas vezes, acompanhando a queima de cactos durante a seca, a luz intensa do sol se fazia tão forte que o céu parecia desaparecer sob a luz. Quando acompanhava Bati e Givaldo neste trabalho, estes cuidavam do fogo que queimava o xiquexique enquanto insistiam para que eu ficasse longe, na sombra e tomasse muita água. Era possível ver os efeitos do sol tanto quanto senti-los na pele. Sobre isso, Ingold (2015: 196) afirma que a luz “não se trata apenas de um fenômeno do mundo físico (...) tampouco se trata de um fenômeno da mente interior. (...) em vez disso, a luz é uma experiência”, e reafirma pouco a frente, a “percepção visual do céu é uma experiência de luz” (Ibid: 197).

Desta forma, Ingold consegue entrelaçar o céu e a terra, perspectiva essa que contribui muito para o estudo da vida em condições de semiaridez. Pois, seria no mínimo incompleto um estudo nestes contextos que não considerasse a ação das variações do tempo climático sobre a vida.

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Assim podemos dizer que céu e terra são devires de um mesmo emaranhado e não teria como separá-los. Como afirma Ingold (2015: 125):

Os pintores sabem disso. Eles sabem que pintar o que se convencionou chamar de “paisagem” é pintar tanto a terra quanto o céu, e que a terra e o céu se misturam na percepção de um mundo que passa por um nascimento contínuo. Eles sabem, também, que a percepção visual desta terra-céu, ao contrário daquela de objetos na paisagem, é, em primeiro lugar, uma experiência de luz.

Neste caso, Claude Monet é absolutamente emblemático e vejo como interessante recorrer a ele para pensar a afirmação de Ingold. Isso pois, Monet dedicou sua vida e obra a experiências com a luz em pinturas ao ar livre. Na série “Haystacks”, produzida entre 1888 e 1891, cerca de trinta quadros mostram duas casas de palha a partir de experiências de luz muito diferentes, o solo, o horizonte, o céu, as sombras e as cores são outras em cada experiência apresentada pelo autor (MORFFETT e WOOD, 1978: 12). Tão representativa quanto essa, é a série produzida pouco antes, em 1877 na “Gare Saint-Salazar”, importante estação de trens parisiense, onde a luz refletida na fumaça que sai das chaminés e se espalha pelo entorno dá ao observador a nítida impressão da experiência de Monet com seu cavalete pintando em meio aos trens, aos trabalhadores e passageiros no instante mesmo em que tudo acontecia. Temos em cada quadro da série a impressão de Monet para cada momento em que os pintava. A fumaça, a luz, os trens, as pessoas que passam e o próprio pintor se misturam compondo a experiência retratada na imagem.

At the time Monet was painting, the Gare Saint-Salazar was the biggest, newest and busiest train station in Paris. It was a dream subject for an artist inspired by modern engineering and the way it changed in different conditions. You can imagine the thrill Monet got from watching the light as it glinted through the glass roof, reflected on shiny engines and dissolved in clouds of steam. (...) With his thick paint and bold brushstrokes, Monet created a sense of sunlight swirling with dirty, smoky air. (BROOKS, 2016)

Tudo se mistura na experiência de um instante e, se Ingold diz que os pintores já haviam percebido isso, digo que Monet e os demais impressionistas certamente o fizeram e demonstraram com maestria. A queima da macambira no semiárido fornece uma imagem que reforça o argumento quanto a esse emaranhar que inclui tanto o céu quanto a terra. Na falta de alimento para a criação, Givaldo adentra a mata de caatinga e ergue vários montes de macambiras entremeados com gravetos e ao atear fogo caminha envolto pela fumaça, desviando das labaredas, dos espinhos e das urtigas, totalmente coberto da cabeça aos pés para evitar o excesso de calor do sol e das tulhas que

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queimam. Não apenas Givaldo se mistura na imagem do momento ao todo em sua volta, como esta atividade torna-se uma alternativa apenas porque a falta de chuvas inviabilizou as demais e não havia qualquer tipo de política pública que amenizasse os efeitos da seca sobre a criação animal. Temos neste caso um complexo emaranhado que envolve o céu e a terra, os sitiantes, seus animais, a caatinga, a macambira, o fogo, a fumaça e o Estado.

Por conseguinte, Ingold se volta para o nível da experiência no mundo. Nessa concepção, o conhecimento adquirido “é integrado não nos níveis de uma classificação, mas pelos caminhos do movimento” (INGOLD, 2015: 213). Neste sentido, para conhecer a vida no semiárido rural é preciso acompanhar tal movimento, os caminhos das experiências dos sitiantes, vividas e narradas por eles. Ao partir do pressuposto de que experiência e narrativa são inseparáveis e que a experiência ainda ganha nova vida quando é narrada, digo que a contribuição das narrativas orais compartilhadas e registradas em campo tem grande importância. No Bravo ainda há espaço para se aprender e ensinar ouvindo e narrando experiências. Tal como, é possível agregar conhecimento aceitando um conselho, que em sua origem foi “tecido na substância viva da existência”, como afirma Walter Benjamin (1994: 200). Entre os Koyukon mencionados por Ingold (2015: 214), por exemplo, “conhecer é semelhante a contar histórias”. Enquanto no Bravo, os filhos e netos de Bati aprendem como trabalhar em cada estação acompanhando os passos do pai, mas também ouvindo as narrativas de suas experiências.

Situação que pôde ser percebida, por exemplo, quando foram perfurar um poço com o sonho de encontrar água subterrânea em suas terras. Todos me contavam onde Bati tinha escolhido para ser perfurado, mas não apontavam para o local. Isso pois, a escolha envolvia a história de vida de Bati e dos filhos naquele sítio e não um ponto geolocalizado. Contavam do riacho que muitos anos atrás já correu naquele trajeto e das grandes árvores frutíferas que cresciam em sua volta, como também das seguidas secas e plantas exógenas que juntas mataram uma a uma as árvores até restar apenas um velho cajueiro que já não tinha folhas e não floria mais. As histórias narradas apontavam para onde Bati queria que fizessem a operação e seu conselho era como Benjamin (1994: 200) o definiu: “Aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuidade de uma história que está sendo narrada”. Dentro desta perspectiva benjaminiana, ao dar o conselho, uma série de experiências passadas de Bati (e porque não de

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outras gerações, já que o velho cajueiro é centenário) foram colocadas em ação e tecidas nas experiências dos demais que partilhavam daquele momento de decisão.

Em outra passagem, Ingold deixa clara a importância da narrativa para o aprendizado:

(...) as pessoas crescem em conhecimento não somente através de encontros diretos com outras pessoas, mas também por ouvirem suas histórias contadas. Contar uma história é relacionar, em uma narrativa, as ocorrências do passado, trazendo-as à vida no presente vívido dos ouvintes como se estivessem acontecendo aqui e agora (...) Trilhando o caminho de um lugar a outro na companhia de outros mais experientes do que eles, e ouvindo suas histórias, os novatos aprendem a conectar os eventos e experiências das suas próprias vidas às dos antecessores, tomando recursivamente os fios dessa vidas passadas no processo de fiar a sua. (INGOLD, 2015: 237)

Nesta perspectiva abandono por completo qualquer possibilidade de estudo e descrição da vida no semiárido por modelos classificatórios para privilegiar o nível da experiência nesta realidade. Algo como Ingold (2015: 226-227) conta de cientistas que estavam mapeando “mudanças na ecologia e hidrologia da tundra ártica em uma determinada região do Norte da Rússia”. Sobrevoando a região em um helicóptero, coletaram dados em vinte pontos diferentes distantes em cinquenta quilômetros uns dos outros. Estes, após serem classificados e inseridos em um banco de dados, poderão ser correlacionados gerando “modelos preditivos de mudança ecossistêmica e climática” (Idem). Mas, a questão a que Ingold chega se refere ao lugar da experiência, neste caso, onde fica a experiência do piloto do helicóptero que já tantas vezes percorreu essa região do ártico ou também a de seus habitantes? Afirma ele que, para os habitantes ou o piloto, os lugares não são pontos interligados de coletas de dados, mas histórias de viagens. Argumento que também levantou em outro ensaio no qual realiza uma crítica à ideia de mapas cognitivos e defende que mapear seria narrar histórias de antigas experiências, ao falar de uma região o habitante não acessa um mapa em sua mente, mas histórias que já viveu ali (INGOLD, 2005). Assim, “as coisas que o habitante conhece não são fatos. Um fato simplesmente existe. Mas, para o habitante as coisas não tanto existem quanto ocorrem” (INGOLD, 2015: 227). Desta forma, quem bem conhece algo sabe contar sua história e neste processo tece na narrativa os fios de experiências passadas, algo que nos leva de volta a Walter Benjamin, tal como no comentário abaixo de Jeanne Marie Gagnebin.

A experiência transmitida pelo relato deve ser comum ao narrador e ao ouvinte. Pressupõe, portanto, uma comunidade de vida e de discurso que o rápido desenvolvimento do capitalismo, da técnica, sobretudo, destruiu. (...) Esse caráter de comunidade entre vida e palavra apoia-se ele próprio na organização pré-capitalista do trabalho, em especial na

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atividade artesanal. (...) O ritmo do trabalho artesanal se inscreve em um tempo mais global, tempo onde ainda se tinha justamente, tempo para contar. Finalmente, de acordo com Benjamin, os movimentos precisos do artesão, que respeita a matéria de dar forma à imensa matéria narrável, participando assim da ligação secular entre a mão e a voz, entre o gesto e a palavra. (GAGNEBIN, 1994: 11)

Há no cotidiano do Bravo o espaço da narrativa, o tempo da narrativa, e destaco a presença de um ator em momentos diversos da vida no sítio e muitas vezes citado ao longo desta tese: o tamborete de madeira. Os fins de tarde assistindo o sol se pôr enquanto aguardam o cuscuz cozinhar para a janta são sobre os tamboretes, assim como, as conversas neste mesmo horário frente à casa de Geraldo, também é nos tamboretes que sentam juntos para cortar palma, para consertar ou amolar uma ferramenta ou para debulhar milho e feijão. São ocasiões em que se fala da vida, do trabalho, da chuva ou da seca, contam histórias, riem, reclamam. Partilhar com eles de momentos nos tamboretes é mergulhar no fluxo de suas experiências, com muito mais densidade que qualquer entrevista mediada por questionários. Ao chegar no terreiro e ver Givaldo e Gilmar debulhando milho ou feijão, pego logo um tamborete, sento-me com eles e começo a ajudar. Além de ser um momento de agradável conversa, posso ali realizar ao longo de alguns dias de trabalho ótimas entrevistas guiadas apenas pelo fluxo das narrativas. Assim foram registradas todas as falas dos atores presentes ao longo desta tese, em conversas livres e fluidas nos tamboretes de madeira com Maria, Geraldo e Antônio nos finais de tarde, em conversas com Douglas e Givaldo enquanto cortavam palmas, ou na longa conversa com Dedé Ricardo e Danda sob a sombra do pé de algaroba, e tantos outros momentos de partilha de experiências através da narrativa.

Assim, fica também nítido que a experiência no tamborete não é apenas aquela que está sendo narrada, mas também a experiência do pesquisador presente no momento daquela narrativa. Motivo pelo qual a riqueza do aprendizado que podemos obter nestas ocasiões é incomparável aos resultados dos questionários programados, nos tamboretes tecemos as histórias do lugar à nossa própria. Penso que em um bom texto etnográfico haja tanto as experiências dos atores quanto a suas próprias experiências na construção da pesquisa. Assim, no presente texto busco deixar nítida minha presença em cada momento que descrevo, sejam momentos vividos com eles ou narrados por eles, eu estava lá no momento da narrativa e as circunstâncias em que ocorreram devem estar presentes no relato. Creio ser importante não apenas a informação de que um caririzeiro reclamou a Deus pela falta de chuva, mas também que fazia seis anos de estiagem em um dia de sol

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escaldante, quando ele chegava preto de fuligem de macambiras e cactos queimados e eu, enquanto guardava a bicicleta no fundo de casa, presenciava o momento sem que ele percebesse que eu estava ali. A experiência narrada é tão importante quanto e não deve estar separada do dado de que não chovia há seis anos e o homem reclamava a Deus, pois, eu estava lá! Portanto, se Latour (2012: 182) afirma que os livros da ANT são feitos de “terra e poeira”, este presente texto é feito seguindo os passos e as narrativas dos habitantes do Bravo na terra seca, por entre poeira, fogo, fumaça, espinhos, tanto quanto na mesa de refeições ou nos tamboretes em momentos diversos de seca ou inverno, alegria, satisfação, angústia ou tristeza.

Foi neste sentido que segui minha experiência em campo e a redação desta tese. Digo que cheguei no Bravo em janeiro de 2017 durante o ápice de um longuíssimo período de estiagem. Ao longo de um período de trabalho penoso e de dificuldades para a manutenção do sustento familiar, fui recebido em suas casas e com eles acordei cedo, fui ao trabalho e participei de tudo que tinham confiança em me permitir fazer, confiança essa que não se conquista de outra forma senão participando. Senti o calor do xiquexique queimando que se mistura ao calor do sol de duas horas da tarde no Cariri, me coloquei perdido por entre a fumaça na caatinga seguindo os passos de Givaldo enquanto queimava macambira, tomei com eles cachaça no final de semana e conversamos muito sobre as dificuldades e as transformações na vida no semiárido, as boas e as ruins, como estive com eles nos momentos bons e estive também nos momentos de dificuldade. Estava nas festinhas surpresas de aniversário que vez ou outra ocorrem, estava junto no natal e na virada de ano, no casamento ou na primeira comunhão, assistimos juntos a Copa do Mundo e acompanhamos juntos os últimos acontecimentos políticos do Brasil. Também estive junto, partilhando a vida quando Bati sonhou furar um poço e me contou a história mostrando como e onde faria, mas também quando me ligaram dizendo que não haviam encontrado água, e da mesma forma no dia seguinte, quando disseram que tentaram de novo e dessa vez com nova sorte. Estava na mesa do café, do almoço ou do jantar, no fim de tarde no terreiro, na sala assistindo ao jornal, como também debulhando milho, feijão, testando, escolhendo, raspando e cortando os maxixes, não bastava para mim estar com eles, queria participar de suas vidas. Estava com Bati nos momentos de trabalho duro ou para aproveitar com ele os frutos, mas também estive com Bati durante todos os trinta dias em campo, quando cheguei no Bravo e o encontrei doente. Não me eximi em momento algum em que estive em campo, procurei viver junto as contingências das secas e das chuvas e aprender como

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leem e vivem esse mundo. Participei das festas, dos trabalhos, dos momentos de descanso, mas também de tristeza ou de preocupação, me fiz presente e partilhei a vida com eles e é desta forma que é composto o texto que apresento: como o relato de um conjunto de experiências, minhas tanto quanto deles, que se entrelaçaram e neste caminho de urdiduras deram origem ao presente trabalho etnográfico, visando demonstrar a presença da água se costurando por todo esse caminho.

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Capítulo 3. O Bravo: contexto físico da pesquisa

Bravo é o nome de um pequeno vilarejo que ocupa a intersecção entre duas cidades do interior da Paraíba: Boa Vista e Cabaceiras. Divididos entre as duas cidades e separados por um quilômetro de estrada cortando lajedo e caatinga estão dois grupos de habitantes ligados por laços de parentesco consanguíneo e afetivo: o Bravo de Cabaceiras e o Bravo de Boa Vista, porém, dado a maior proximidade, a relação com Boa Vista se sobressai. Localizado na microrregião do Cariri Oriental, o vilarejo tem fácil acesso. Do aeroporto de João Pessoa são 173 km de estrada asfaltada de boa qualidade e apenas 11 km em estrada de terra, mas em boas condições. Do aeroporto de Campina Grande são apenas 53 km por estrada asfaltada e 11 em estrada de terra. O Bravo tem a marca das difíceis condições climáticas e econômicas do semiárido brasileiro, convivendo com longos períodos de solo seco e a baixa dinamicidade da economia da região, além das políticas públicas esporádicas e, em maioria, pouco eficientes. Mas não só isso, essa população aprendeu, no convívio com as vicissitudes da caatinga, a organizar a vida e viver a espera, não sem dificuldades, mas com uma resiliência que poderia se dizer estoica. Como afirma Frederico Castro Neves (2007: 88), citando reportagem do Jornal “A Cidade” de agosto de 1900: “A seca surge do nada, embora seja ‘esperada com estoicismo e temida com orgulho’”.

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Mapa 1 - Localização do Bravo no estado da Paraíba e precipitações máximas dos municípios em 2018

(Agência Executiva de Gestão de Águas - Governo da Paraíba, 2018)

Como é facilmente observável no mapa acima, o Bravo está localizado na região da Paraíba que registra os mais baixos índices pluviométricos de todo estado. Mesmo em um ano chuvoso como o ano de 2018 vemos que os volumes totais ficam abaixo de 500mm médios em quase a totalidade dos municípios desta grande faixa transversal chamada Cariri/Curimataú, por apresentarem os mesmos padrões históricos de precipitação. Os municípios limítrofes de Boa Vista são à Leste a região metropolitana de Campina Grande, a Nordeste Pocinhos e a Norte Soledade, a Oeste Gurjão e Sudoeste São João do Cariri, a Sul Cabaceiras e Sudeste Boqueirão. Apesar de ter toda rotina da vida totalmente direcionada para o centro urbano de Boa Vista, o Bravo fica exatamente na fronteira com o território cabaceirense. As precipitações no semiárido brasileiro são baixas e soma-se a isso o fato de que a média de evaporação é superior ao dobro da precipitação total e o solo cristalino não retém a umidade (MAGALHÃES, 2016: 5). As razões geofísicas para as baixas precipitações são múltiplas e creio que Marianne Cohen e Ghislaine Duqué (2001: 47-49) resumiram muito bem a situação do Cariri Paraibano:

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La situation géographique du Cariri explique la semi-aridité de son climat. Aux températures toujuors chaudes des basses latitudes (23-24°C de moyenne annualle) sont associées de faible pluies, concentrées sur quelques mois, ensemble de facteurs entraînant in important déficit hydrique (...) (Le Cariri) me reçois qu’affaiblis les deux flux humides à origine de pluis régionales, le premiere en provenance du nord-ouest e le second du sud-est. De mars à mai, la migration de la convergence intertropicale, de direction NO-SE, est porteuse des plus grosses pluies carirenses; de juin a juillet, la penetration des alizés de SE provoque d’abondantes pluies sur le littoral et sur le contrefort orietal du plateau de la Borborema, le Brejo, oú le flux humide se décharge em grand partie, n’atteignant que peu le Cariri. En effet, les reliefs délimitant la depression du Cariri sont perpendiculaires à la diretion des flux humides : à l’effet, de localisation en « bout de course » des flux, s’ajoute donc celui d’une position sous le vent, expliquant la diminuition des précipitations qui n’atteingnent que 304mm à Cabaceiras.

Tais informações são importantes para entendermos a especificidade do contexto físico do Cariri Paraibano, comprovadamente um dos pontos menos chuvosos de todo território brasileiro. Porém, por mais que eu pudesse ter lido uma quantidade considerável de estudos sobre a vida no interior do Nordeste brasileiro, e tivesse em mente dados como os acima citados, parecia que eu nada ou, talvez, muito pouco soubesse sobre a vida no Bravo quando lá cheguei pela primeira vez, por isso proponho aqui um outro olhar: o Bravo visto mais de perto. Isso porque, a Paraíba possui a maior parte de seu território em condições de semiaridez com profundas variações em seu interior, entre a faixa litorânea, o Agreste, o Cariri e o Sertão, as diferenças não são poucas em fatores como continentalidade, relevo, altitude, distância dos importantes rios, como Paraíba e Taperoá, para citar apenas alguns fatores de variação de ordem climática. Mas também nos costumes e soluções para a vida o semiárido é variado. Enfim, o semiárido não é um, mas são muitos e a parte onde se localiza o Bravo tem também suas especificidades.

Conforme nos distanciamos do litoral e adentramos o interior, a paisagem muda paulatinamente e, em tempos de seca, a mudança é ainda mais nítida. A começar pelas cores e todas as formas de vida que aparecem: do verde da Mata Atlântica ao acinzentado, levemente prateado, da Mata de Caatinga. No entanto, um olhar pouco mais atento pode ver nessa paisagem seca uma enorme diversidade de vidas esperando pela chuva. As cores mesmo no período de estiagem são de grande beleza: o cinza das árvores caducifólias (que dissipam as folhas na seca para

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reduzir a perda d’água) contrasta com o verde dos xique-xiques (de nome científico Pilosocereus gounellei), palmatórias (Tacinga palmadora), cardeiros (Cereus jamacaru) e os enormes facheiros (Pilosocereus pachycladus), a resistência dos juazeiros (Ziziphus joazeiro), que armazenam água em suas raízes, as diferentes bromélias que se esparramam pelo solo, as flores de rosas a vermelhas do caruá (Neoglasiovia variegata), o amarelo da canafístula (Peltophorum dubium), ou a variação entre o azul e o roxo da rasteira Jitirana (Ipomoea cairica). Neste meio ainda aparecem animais como a iguana-verde, chamada por eles também de camaleão (Iguana iguana), o pequeno macaco sagui (Callithrix jacchus), o tatupeba ou apenas peba (Euphractus sexcinctus), o sapo cururu (Rhinella marina), ou pássaros como a seriema (Cariamidae), o galo de campina (Paroaria dominicana) que é branco com asas pintadas em preto e cabeça vermelha, o concriz (Icterus jamacaii), amarelo com a asas negras pintadas com uma mancha branca, a rolinha (Columbina), o periquito-da-caatinga (Eupsittula), a coruja (ou Caburé - Glaucidium brasilianum), e ainda o voo planado, imponente e ameaçador do carcará (Carcara plancus) de olho nos filhotes da criação. Mesmo na seca, a caatinga é repleta vida e de cores em movimento, se há animais que migram entre o inverno e a seca, há também boa parte das formas de vida do lugar que desenvolveram meios de ali permanecer mesmo ao longo de longas estiagens. Já no inverno, as descrições que ouvi tantas vezes pelo Bravo diziam de um lugar onde tudo é verdinho, tudo verde, bonito que só, lindo de se vê. Pude presenciar o fim do inverno em meados de 2018. O verde das folhas então se une ao branco de pontinhas amarelas delicadas da flor do Angico (Anadenanthera macrocarpa), o rosa claro nas flores da Barriguda (Ceiba glaziovii) e da Cebola-brava (Habranthus itaobinos), indo para o rosa escuro da Cebola-de-calango (Habranthus sylvaticus), o amarelo na Catingueira (Caesalpinia pyramidalis), o branco no Cumaru (Dipteryx odorata), até a exuberância das flores do cactos, em especial a do Mandacarú (Cereus jamacaru), eternizada na música de Luiz Gonzaga e Zé Dantas (1953), que cantava o saber local nos versos: “Mandacaru quando fluora na seca/ é sinal que a chuva chega no Sertão”5. Enfim, as cores do semiárido que se transformam conforme a estação são mais marcantes para quem visita a região que os estigmas da mata seca e terra rachada.

5 Em trabalho recente, Michael B. Silvers (2018) mostra como há uma estreita relação entre seca e a música da região semiárida nordestina. Segundo ele, ao mesmo tempo em que compositores encontram nas secas inspiração, suas músicas, por outro lado, participam da construção, divulgam e consolidam categorias da vida coletiva e ainda denunciam as mazelas da vida no lugar. Para o autor, o sertão está no forró, tanto quanto o forró está no sertão.

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Mas a estação do inverno dura muito pouco, apenas o tempo de as águas escoarem pelo solo e o sol torná-lo novamente seco, o que ocorre com extrema rapidez. As características do solo, pouco espesso e de drenagem rápida, aliadas à ação do sol de uma região próxima à Linha do Equador, provocam neste uma rápida perda de umidade. Porém, mesmo um curto período de precipitações já pode fazer ressurgir folhas e forragens e em caso de chuvas ao longo dos meses de inverno, a vida se transforma de maneira exuberante. As características deste solo raso e arenoso, mas extremamente rico em minerais foram bem descritas por Cohen e Duqué (2001: 53):

Le type de sols recontrés varient selon la roche mère. Peu évolués et sableux sur granite, ils sont superficiels sur le plateaux (Lithosols < 50cm) (...) Les caractères physiques et chimiques de ces sols présentent avantages et inconvénients. Ainsi, sur les roches métamorphiques, le sols sont riches en éléments minéreaux.

Plantadas neste solo do Cariri temos ainda a presença marcante de duas espécies exógenas de grande relevância e impacto na vida local: algarobas (Prosopis juliflora) e a palmas forrageiras (principalmente a chamada palma gigante - Opuntia fícus, e recentemente a orelha-de-elefante – Opuntia ssp). As algarobas, alongam suas raízes e buscam água onde for preciso, podendo rachar cisternas, secar poços e matar plantas nativas por falta d’água. Ao mesmo tempo, se mantém verde o ano todo apesar da estiagem, geram uma vagem que é alimento importante para os animais e se reproduzem com muita facilidade se alastrando por todos os cantos e servindo como fonte de madeira legal para construções. As palmas forrageiras são uma monocultura possível sem irrigação e poucas chuvas: um cacto de folhas largas e nutritivas que são servidas aos animais da criação e conseguem se manter vivas no solo seco graças a umidade do sereno da madrugada. Em todos os sítios do Cariri rural se verá uma ou mais plantações de palmas geralmente próximas à casa. Porém, a substituição das antigas palmas gigantes pelas atuais, resistentes à cochonilha, mudou também a paisagem no Bravo, antes repleto de enormes palmas, hoje substituídas pela espécie orelha-de- elefante, bem menor e de crescimento rasteiro. (ROCHA, 2012) Outro distintivo da vida e da paisagem no Bravo é a presença marcante de enormes lajedos e matacões. Neste contexto, de recorrentes períodos de seca, os lajedos, que ocupam boa parte da região do Bravo, têm um papel importantíssimo para a sobrevivência da população local e na história de uso e ocupação deste ambiente. Pois, a superfície sólida dos lajedos armazena em suas fissuras ou falhas geológicas água que pode durar alguns anos. Trata-se de um grande maciço rochoso que passa por várias cidades e salta à superfície em formações rochosas nas quais

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encontramos esses tanques naturais de armazenagem de água utilizados desde as mais antigas populações a habitarem a região, e várias delas deixaram suas marcas em gravuras e pinturas nos matacões do Bravo. Ao subir os lajedos encontramos dezenas de tanques, assim como grutas e enormes destes matacões, dos quais alguns estão cobertos por arte rupestre. Djair Fialho, que há anos estuda esse passado pré-histórico do Bravo, diz que muitas dessas figuras são relacionadas à presença de água e podem ser encontradas em muitos outros locais, sempre próximos a alguma fonte de água. No caso do ambiente dos lajedos, este sempre atraiu a vida para perto, sejam os atuais habitantes, as populações indígenas que por esse território passaram, por ele guerrearam e deixaram suas marcas, e ainda os enormes animais da megafauna, que se abrigaram na região durante o período final do Pleistoceno, de toda forma, todos buscavam refúgio nas reservas de água dos lajedos. Como menciona Gabriela Martin (1997: 105) em seu livro “Pré-História do Nordeste do Brasil”:

Os restos ósseos de mega-mamíferos são encontrados, no Brasil, principalmente nas grutas e cavernas calcárias e nas cacimbas e reservatórios naturais d’água, conhecidos no Nordeste com o nome de “tanques”. Ao secarem nas épocas de estiagem, os tanques deixam, às vezes, aparecerem restos ósseos dos animais que, acidentalmente, haviam ficado presos no fundo.

Ao atraírem animais em busca da água, os lajedos atraíam também predadores e caçadores em busca da água, mas também de alimento. Tais fatos tornam os lajedos campos riquíssimos de pesquisa para geólogos, biólogos, arqueólogos e paleontólogos, como também para a antropologia, em meu caso, ao mostrarem o papel ativo da água na organização da vida em tais circunstâncias. De qualquer ponto do Bravo já é possível perceber os lajedos aflorando do solo. O Lajedo do Bravo começa no vilarejo, como se as casas tivessem sido construídas à sua beirada. Afinal, a área possibilita a proximidade com os tanques, o que garantiu por décadas o abastecimento de água para famílias do Bravo e redondezas. Em cada lajedo podem se formar inúmeros tanques, como no caso do Bravo, que conta com 9, cada qual com um nome: Tanque de Vó Ritinha, Tanque do Bravo 1 e Tanque do Bravo 2, Lagoa, Lagoa de Cima, Tanque de Emergência, Tanque da Escada 1 e 2 e Tanque do Olho D’Água. O maior deles, sem dúvida é o Tanque da Lagoa, Lagoa da Laje ou chamado apenas de Lagoa, quase completamente seco em janeiro de 2017, era possível ver uma poça d’água esverdeada ao fundo de uma cratera com cerca de três metros de profundidade no centro. Já o Tanque de Emergência foi construído cavando e fechando a vazão de uma fissura comprida onde se acumula

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água, mas, naquele mesmo momento da seca em 2017 restava dele apenas um filete de água verde ao fundo. Em tempos de chuvas, a fissura desaparece sob a água que avança cinco a seis metros sobre o lajedo formando um grande reservatório que por gerações esteve cercado dos animais para assegurar a qualidade dessa água. Já a Lagoa não leva o nome por um acaso, visto que com a recarga do inverno, forma-se uma grande lagoa, reservatório de água limpa o suficiente para se ver as rochas no fundo. Com a construção do poço e a instalação de um dessalinizador, a chegada de cisternas e de água encanada, os tanques deixaram de ser a principal fonte de água para o consumo humano e são mais utilizados pelos animais. Se hoje já não é preciso subir os lajedos com latas para abastecer a casa, já foi diário esse trabalho com a ajuda de um jumento puxando um barril de 200 litros para trazer para casa a água destes reservatórios. Em certos tanques, algumas mulheres ainda lavam roupas, assim se economiza a água do serviço público. Os bodes e as cabras ainda andam pelos lajedos para encontrar água, assim como os animais silvestres. No entanto, no que se refere ao abastecimento das casas, com o crescimento do número de habitantes do Bravo e região e a longa estiagem de sete anos, não fosse o poço, cisternas e, recentemente, água encanada, aquela proveniente dos tanques não teria sido suficiente nem para o começo da seca. Em 2017 já não havia neles água limpa, mesmo que quase sem serem utilizados pelos humanos.

_ Aqui cresceu muito. - me dizia Geraldo - Aqui antigamente, vou te dizer quantas casas tinha: tinha a casa de papai, tinha aquela casa lá em cima de Nenê, tinha a casa de meu avô lá em cima, aquela que Givaldo mora, que é das mais antiga daqui, essa de taipa que tem ali que Dedé Ricardo mora ... olha num tinha mais que dez casas. Agora aumentou demais, se fosse esperar só pela aguinha de tanque não dava pra dois mês não. Digo pra você com certeza, não dava pra dois mês.

Distribuição pública, poço e cisternas foram introduzidas ao longo das últimas duas décadas. Antes disso, diariamente Genival buscava água subindo o lajedo com uma carroça, deixava carroça e jumento no sopé e seguia com as latas penduradas num pau-de-galão sobre os ombros até os tanques, onde as enchia e retornava de duas em duas latas até completar os 200 litros. Repetia várias vezes ao dia enquanto fosse necessário para abastecer a casa. A cena era a mesma em todas as famílias, algumas vindas de quilômetros de distância, muitos com o pau-de-galão nas costas e mais duas latas, uma em cada mão, ou com a lata na cabeça equilibrada por um pano. Muitas

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mulheres também saíam cedo de casa e caminhavam com bacias recheadas de roupas para lavar nos tanques do Bravo e sitiantes de lugares mais afastados traziam seus animais para tomar água ali.

_ Antigamente não tinha poço, os cabra saia e andava doze quilômetro pra dar água pros bichos. Aí deixava as probrezinha das vaca bebendo lá e quando era de noite já aqui elas ia passando devagarzinho, cansada. Ia chegar lá de novo com sede as pobrezinha. - me contou Geraldo.

Os tanques são, em parte, formações naturais, mas com a intervenção humana para potencializar sua capacidade de armazenamento. Ao perceberem que falhas nas rochas dos lajedos ocasionam o acúmulo de água das chuvas, pois, na superfície sólida do lajedo essa não se perde pela infiltração, humanos passaram a construir pequenas barragens e tapar as possíveis aberturas por onde pudesse haver o escoamento d’água. Cavaram também o material sedimentar acumulado abrindo ao mais fundo possível e construindo, assim, grandes caixas d’água. O trabalho é coletivo e, no que concerne à contribuição humana, se os tanques forem deixados sem manutenção, o trabalho do vento, da água e do tectonismo voltam a rachar as rochas, a abrir espaço nas bordas e a assorear os fundos. Em julho de 2018 eu e Bati conversávamos sobre os tanques na sala de sua casa:

_ A Lagoa da Laje é grande, ein S. Bati! Pra sangrar6 precisa chover muito, não é? _ Muito, precisa chover muito. _ Esse ano mesmo com a chuva ela não sangrou? _ Não, sangrou não. Ela é funda que só! _ Quem cavou a Lagoa da Laje? _ Nós cavemo pra emergência. Já tinha os menino (seus filhos), tinha Givaldo, Geraldo, tinha Gilmar, tinha mais trabalhador que vinha ajudar. _ Mas como era antes de cavar? _ Já tinha, mas era raso. Agora é uma piscinona, cabe muita água. _ Vem gente de outros lugares buscar água nos tanques? _ Vinha, vinha muito. Vem mais não, mas vinha muito pra lavar roupa. Dessa região toda. _ E eles pediam?

6 Momento em que o volume de água supera a capacidade de armazenamento e transborda.

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_ Pedia, pedia. Aqui, graças a Deus, nunca negou água a ninguém não. Aí desde que chegou a água de Boqueirão (açude de onde se capta a água do serviço público), aí não faltou mais água. Pra lavar roupa, fazer comida, tem. Já passamo muita falta d’água aqui, meu nego, mas acho que … que não vai faltar mais não, tem os tanque, tem o poço, tem a cisterna. Não vai faltar não. Se Deus quiser.

Bati faz uma pausa e reflete rapidamente antes de afirmar que não mais faltará água para eles e finaliza entregando à vontade divina, isso pois, a incerteza do tempo climático torna a vida imprevisível. Isso somado aos últimos sete anos de seca não permitem uma afirmação enfática por parte de Bati ou de qualquer outra pessoa no Bravo. Mas a construção de novas possibilidades de acesso à água, como os tanques, cisternas, poço e água encanada, dão aos habitantes do lugar um mínimo de segurança. Cada possível fonte d’água, quando disponível, tem o destino correto, tal como já detectado em outros contextos de pesquisa no semiárido, como Emília Pietrafesa (1999: 67) demonstrou que no semiárido piauiense há uma classificação dos corpos d’água para sua correta utilização, e Flávia Galizoni (2003) identificou no Jequitinhonha uma hierarquia das fontes d’água e as lógicas de acesso às mesmas. No caso do Bravo, a água das cisternas é considerada a de melhor qualidade para beber e cozinhar, a água salgada do poço público vai para os animais da criação, a do dessalinizador para consumo humano, em alguns tanques animais soltos bebem água, em outros, mulheres lavam roupas, com água encanada se abastece as torneiras e chuveiros da casa, a água para descarga é sempre de reaproveitamento. Essas são apenas algumas, frente a outras tantas formas de abastecimento, como poços, tanques, olhos d’água, barreiros, açudes, cacimbas, que são utilizados de forma simultânea conforme a disponibilidade e necessidade de a eles recorrer. O problema, no entanto, reside no fato de que em períodos de seca a maior parte destas fontes de água se esgota. Nestes momentos, o dessalinizador público e as cisternas tornam-se garantia mínima para uma relativa autonomia e qualidade de vida da população (lembrando que o abastecimento público depende da disponibilidade no açude Epitácio Pessoa, em Boqueirão, que abastece uma vasta região, incluindo Campina Grande, e já estava com 3% de sua capacidade em 2017). Tais alternativas garantem, assim, água para o consumo humano e evitam deslocamentos diários por longas distâncias, como também doenças decorrentes da má qualidade das águas que encontram, causa direta da maior parte das doenças mencionadas por Nancy Scheper-Hughes

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(1993) e que levavam milhares de crianças a óbito em décadas anteriores. Além de poupar as famílias de longas esperas por um caminhão pipa do Estado, fazendeiro ou político que abasteça sua cisterna, barris ou caixa d’água. No entanto, é importante lembrar que serviços de água encanada, cisternas, poços, como também energia elétrica, são todos conquistas já deste novo século, portanto, bastante recentes. As cisternas foram todas, sem exceção, construídas dentro do Programa Um Milhão de Cisternas, projeto da Articulação do Semiárido – ASA que se tornou política pública do Governo Federal em 2003 (cf. DUQUÉ, 2008). Já o acesso à distribuição de energia elétrica e ao abastecimento público de água têm menos de uma década apenas que foram instalados no Bravo. Hoje o vilarejo é iluminado pelas lâmpadas de tungstênio dos postes e os holofotes do campo, todas as casas têm energia elétrica e equipamentos eletrônicos essenciais à vida contemporânea tanto nas cidades como na área rural, como geladeira, televisão, telefone, liquidificador, para citar apenas alguns utensílios básicos de nosso cotidiano. Para conhecer um pouco mais da vida no Bravo e de como o vilarejo se organiza hoje, proponho ao leitor que façamos agora o percurso completo caminhando pela estrada enquanto comento o que é possível ver de cada ponto. São cerca de 30 casas habitadas em cada um dos dois Bravos, entre as cidades de Boa Vista e Cabaceiras, mas também é possível vê-las organizadas em três pequenos agrupamentos: (1) as casas próximas ao chafariz (poço público); (2) as casas no entorno da Igreja até a casa de Ermínio, pouco mais separada; e (3) o Bravo de Cabaceiras. Para apresentar melhor essas passagens, farei da altura do chão, é possível caminhar por todo o Bravo utilizando as estradas, trilhas e vicinais que o cortam e veremos o Bravo desta perspectiva. Chegamos ao Bravo por essa estrada, a rodovia PB 160. Ela parte de Boa Vista, no entroncamento com a PB 138 (que liga a capital, João Pessoa, ao Cariri), passa por Cabaceiras e bem mais ao Sul atravessa o Rio Paraíba e vai até a divisa com Pernambuco. No primeiro quilômetro da estrada de terra avistamos as enormes instalações de uma mineradora de bentonita e, 7km em frente, uma granja, ambas têm grande importância para a economia da cidade e empregam habitantes do Bravo. As primeiras casas do Bravo aparecem na beirada Oeste da pista, enfileiradas com pequenas distâncias umas das outras até o chafariz. Em frente às casas, um pequeno campo de futebol com traves pequenas improvisadas em madeira. Por todos os lados, é possível avistar ovelhas, carneiros, bodes, cabras, vacas, algum boi e jumentos. Todos caminham o dia todo

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calmamente pelo vilarejo e durante a seca pastam o que ainda resta de mato seco que brotou da última chuva. Os postes que acompanham a estrada levam energia trifásica, o que garante o funcionamento da máquina forrageira, da bomba do poço, do forno micro-ondas ou do freezer (para aquelas famílias que possuem tais aparelhos). Equipadas com antenas parabólicas, todas as casas têm acesso à TV aberta. Além disso, através de um aparelho específico ligado a uma antena é possível ter em casa uma linha telefônica rural, também o sinal de internet chega ao Bravo através de uma antena instalada em uma fazenda vizinha a um preço médio de cinquenta reais por mês. Com isso, os aparelhos celulares conectados à internet e às redes sociais já fazem parte da rotina, senão de todos, da maior parte dos jovens e alguns dos demais moradores. Mesmo com a chegada recente de novas tecnologias, os terraços das casas são ainda os mais importantes espaços de encontro, onde os moradores se sentam nos tamboretes de madeira nos finais de dia para conversar e acompanhar o entardecer, enquanto o milho cozinha na cuscuzeira para a janta. Laura me dizia sempre aos finais de tarde: “_ Quando você estiver lá na sua casa numa hora dessa pode dizer: a essa hora Laura tá lá no terraço vendo o dia acabar”. Talvez as palavras usadas não tenham sido exatamente essas, mas todo fim de tarde ela estava lá. A vida no Bravo segue o relógio dos fluxos da natureza no semiárido. Próximos à Linha do Equador, o sol “nasce primeiro” para eles. Perto de 4 horas da manhã, até no máximo 5, todos já estão acordados e só se descansa quando o último dos animais da criação já tiver o que comer. Param para um descanso após o almoço e a rotina se repete no período da tarde. Isso para o trabalho fora de casa, pois o trabalho doméstico continua com a louça suja quando todos terminam de jantar. Apenas quando o sol já está se pondo e o ônibus da escola voltou, veremos as crianças brincando pelos terreiros ou no campo, com bola, de pique-esconde, ou com qualquer objeto ou situação que possa ser transformado em brinquedo ou brincadeira. Também ao fim de tarde, jovens e adultos aparecem em suas motos e encontram os amigos nos terraços. Os cachorros por sua vez, acompanham crianças e adultos em suas visitas participando ativamente da dinâmica do vilarejo. A igreja tem missas mensais, uma das ocasiões em que o padre visita o vilarejo, algo que não ocorre com muita frequência. De toda forma, a religiosidade católica movimenta a vida de todas famílias em momentos diversos. A fé reúne grande parte das pessoas em novenas e outras

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atividades litúrgicas organizadas pela própria população sem necessariamente contar com a presença do padre. As novenas são frequentes, cada semana em uma casa, quase sempre seguidas de um lanche ou sopa oferecidos pelos donos da casa aos convidados. Ao lado da igreja, iluminado com dois conjuntos de holofotes, o campo de futebol de areia reúne homens de toda proximidade para a pelada de final de semana, sempre aos sábados no início da noite. Quando não estão os homens jogando, são as crianças que brincam, e quando nenhum destes está ali, os animais é que passam procurando algum mato seco pelas beiradas do campo. Encostado ao campo fica um telefone público, que com frequência não está funcionando, e ao lado deste, a escola. Com duas salas de aula, escritório e cantina, duas professoras, uma diretora, duas funcionárias de serviços gerais que cuidam da comida e limpeza e um funcionário de manutenção, a escola atende crianças do Bravo e das proximidades. O sistema de ensino é multisseriado, ou seja, com alunos de séries diferentes na mesma sala de aula. O prédio da escola recebe ainda a visita mensal da médica de saúde da família que atende a população de Boa Vista. Ao passarem pela estrada a caminho de Cabaceiras, os visitantes costumam se encantar com a paisagem desta pequena vila e sempre param para fotografar ou apenas observar a igreja, as casas, o campo, os cactos ou algumas ovelhas e carneiros que no período da tarde se protegem do sol sob a sombra de uma verde e marcante algaroba encostada à pista. Algumas vezes pude observar da cadeira do terraço de casa carros de turistas em direção ao Hotel Fazenda Pai Mateus pararem apenas para uma rápida foto desses animais. Pouco mais à frente pela estrada, logo atrás da escola, temos o pequeno roçado irrigado de Geraldo. Com pouca água e utilizando método de gotejamento, planta-se macaxeira, jerimum, quiabo, mamão, coentro, capim-santo, feijão e tantas outras coisas para alimentação humana. Além disso, Geraldo ainda cultiva duas variedades de capim, que são moídos na forrageira e utilizados para complementar a alimentação dos animais que não são criados soltos, mas próximos de casa. Durante os longos períodos de seca, aqueles animais que já não encontram mais onde pastar, são criados cercados nas proximidades e sobrevivem daquilo que seus proprietários conseguem produzir, extrair da natureza ou da ração que compram para eles. Os bodes e cabras são extremamente resistentes e adaptados às vicissitudes do clima semiárido, no entanto, ovelhas e carneiros, mesmo que adaptados às condições do local, comem e dão muito mais gastos que os caprinos. A vantagem, por outro lado, é que estes últimos procriam duas ou três vezes mais que os

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primeiros. No entanto, o baixo provimento na natureza, faz com que, para superar a seca, grande parte dos animais devam ser alimentados próximos de casa, pelo intermédio do trabalho humano. Durante a seca, Bati e os filhos conseguiram manter uma média de trezentos a quatrocentos animais sem perder nenhum para a fome. Sendo que, neste período, toda rotina da casa gira em torno da garantia de alimento para os animais da criação, como para mim justificou Bati: para que não morram de fome. Assim, ao redor de cada moradia de sítio, com pequenas variações, veremos plantações de palmas, o terreiro, o cercado do jumento (responsável pelo serviço pesado com as carroças), um pequeno cômodo para a máquina forrageira (se houver) e a ração, ovelhas que estão para parir e os borregos (filhotes recém-nascidos), uma cisterna de placas para armazenar água da chuva, um poço com bomba de cata-vento dentro do cercado, muitas vezes de uso coletivo, como também, podem haver galinhas e vacas, assim como, caso haja irrigação ou chuva, um pequeno roçado com, ao menos, milho, feijão e macaxeira, como é o caso da casa de Geraldo, onde paramos em nossa caminhada. Ao lado da casa de Geraldo fica a principal entrada para o Lajedo do Bravo. Como foi dito, com a chegada de infraestruturas básicas para a população do semiárido, os tanques deixaram de ser a única ou última alternativa. Por outro lado, não perderam sua relevância, e sim viram suas possibilidades de atuação na vida do lugar serem ampliadas com a descoberta de riquezas inimagináveis até então para o povo do Bravo: riquezas geológicas, arqueológicas e paleontológicas e um potencial turístico a ser desenvolvido. Essa nova história para os lajedos começa em 1998, quando Eduardo Bagnoli, geólogo da Petrobras e empresário do ramo hoteleiro em Natal - RN, viajava com a esposa por essa região do Cariri. Ao avistar os lajedos do Bravo, pediu para que Djair, ainda menino, subisse com eles até lá, queria ver de perto aquelas rochas. Durante o passeio, as formações rochosas, a arte rupestre e a beleza da paisagem encantaram o empresário que dali em diante mudaria a vida no Bravo e, principalmente, na comunidade próxima chamada Tapera, vizinha ao Lajedo de Pai Mateus, onde viria a ser instalado o Hotel Fazenda Pai Mateus em um projeto de turismo idealizado por Eduardo Bagnoli em parceria com o proprietário da fazenda, o médico de Campina Grande Dr. Crisóstomo Lucena, falecido em 2008.

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O olhar especializado do geólogo viu naqueles lajedos uma riqueza que os habitantes do lugar ainda desconheciam e seu olhar visionário pôde antever turistas de todo o mundo visitando o semiárido, algo que realmente veio a acontecer. A fazenda tinha como sua principal atividade econômica a retirada e comercialização de granito e para isso os lajedos eram pouco a pouco dinamitados de forma precisa para gerar os enormes blocos. Segundo contam aqueles que conviveram com Eduardo Bagnoli, ou Seo Eduardo (como, em sinal de respeito, o chamavam e lembram dele por lá), ele teria feito oferta ao então proprietário da fazenda dizendo que compraria dele todas as rochas da fazenda, mas para deixá-las onde estão. Após negociação, deram início a uma parceria que duraria alguns anos e mudaria a vida de dezenas de famílias que passaram a trabalhar em torno do turismo, assim como, mudaram ainda o destino dos lajedos. Isso, visto que, se no Lajedo de Pai Mateus há belíssimos matacões e um incrível pôr do sol, no Lajedo do Bravo já foram encontrados fósseis da megafauna e vestígios arqueológicos de populações indígenas que, até então, eram levados por visitantes que pilhavam o local. Laura e Dedé Ricardo, dois dos mais antigos moradores do Bravo, contam que desde crianças lembram que pessoas vindas de fora pediam para subir os lajedos e levavam as rochas e os ossos que encontravam. Pelos sítios ninguém sabia o que era ou possível valor histórico que tais peças teriam e o primeiro trabalho de Eduardo Bagnoli foi, portanto, ensinar as crianças e construir uma nova visão sobre os lajedos e tudo que nele reside. Além da parceria para a construção do Hotel Fazenda, Eduardo Bagnoli investiu na construção de cercas que hoje guardam a área do Lajedo do Bravo. A proposta era um complexo turístico onde visitantes do Hotel Fazenda pudessem também conhecer as pinturas e gravuras rupestres, materiais arqueológicos e a beleza natural dos lajedos e da mata de caatinga encontrados no Bravo. Utilizou de seus contatos de empresário do ramo hoteleiro e fechou parcerias com agências de turismo, em especial uma empresa escandinava que, com frequência, passou a levar ônibus lotados de turistas do litoral para o semiárido. Ao se aproximar das crianças para preparar os futuros guias destes lajedos, Eduardo Bagnoli acabou por adotar afetivamente dois desses meninos e passou a cuidar de seus estudos e bem-estar. Ribamar, um desses meninos, hoje é guia de turismo bilíngue no Hotel Fazenda e é professor de inglês na escola de Boa Vista, e contou ainda com a ajuda de um hóspede ilustre que veio a frequentar esse hotel, o músico Nando Reis, que ajudou a custear seus estudos. Djair estudou inglês e francês com o apoio de Eduardo Bagnoli, foi

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muitas vezes para Natal para aprender em seu hotel como receber os turistas do Brasil e de fora, se graduou pela Universidade Federal de Campina Grande e hoje é quem segue com o projeto de turismo para o Bravo. Eduardo Bagnoli veio a falecer em outubro de 2010 deixando o projeto para o Lajedo do Bravo ainda por concluir. Hoje, o Hotel Fazenda, que pertence ainda à família Lucena, recebe hospedes e também dezenas de visitantes que diariamente sobem o lajedo apenas para ver o pôr do sol que realmente impressiona pelas cores. Os lajedos passaram a receber pessoas em busca de descanso ou aventura, além de muitas gravações de filmes, novelas e seriados. Já o turismo no Bravo depende exclusivamente do trabalho, do investimento e dos contatos de Djair, que dedica todo o seu tempo a esse projeto, independente de retorno financeiro, que praticamente não há. Djair Fialho agora ensina as crianças enquanto trabalha para conseguir investimentos para que a associação que criou no vilarejo possa construir também no Bravo um hotel que receba os turistas, empregue e gere renda para a população local. Por fim, para encerrar a caminhada pelos lajedos, vale mencionar ainda o trabalho de Eduardo Bagnoli para a criação da atual Área de Proteção Ambiental - APA do Cariri através do Decreto Estadual 25.083/2004. A APA do Cariri compreende, segundo a legislação citada, 18.560 hectares e inclui partes dos municípios de Boa Vista, Cabaceiras e São João do Cariri. O decreto cita como justificativa para a criação da APA a “necessidade de preservação dos sítios arqueológicos e paleontológicos e dos monumentos naturais” localizados entres esses municípios. Assim, se a água desses lajedos já não é mais a única fonte de abastecimento para os moradores do Bravo e região, o lugar ganhou a partir da intervenção de Eduardo Bagnoli novos valores e formas de atuação na dinâmica da vida no semiárido. Todo esse caminho entre os dois Bravos mistura a paisagem típica do semiárido com a especificidade da paisagem dos lajedos: as rochas afloram por todos os lados, o chão é repleto de pedregulhos que deslizam dos lajedos e também alguns matacões enormes que são vistos por todo caminho da estrada e parecem cuidadosa e arquitetonicamente colocados uns sobre os outros. Neste contexto, a paisagem típica da caatinga com árvores baixas de galhos retorcidos e desfolhadas, que no inverno ganham o verde com grande rapidez, os enormes facheiros, os bodes e jumentos que caminham soltos, todos estão presentes por todo caminho de cercas e estacas pelas estradas e se misturam à vultuosidade das rochas dos lajedos.

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Essa paisagem combinada com a incidência da luz do sol torna esse pedaço do Cariri local escolhido por muitos cineastas, redes de TV e fotógrafos para a composição de seus trabalhos. O primeiro a chamar a atenção do público do Brasil e do exterior foi o filme e série de TV “O Alto da Compadecida” (1997), do cineasta pernambucano Guel Arraes. A obra foi quase toda filmada na cidade de Cabaceiras e algumas cenas no lajedo de Pai Mateus e estradas próximas. Uma década mais tarde, o mesmo diretor gravou ali cenas do longa-metragem “Romance” (2008) e Marcelo Gomes gravou “Cinema, aspirinas e urubus” (2005). Esses são alguns de uma lista de dezenas de curtas, longas, novelas e séries que aproveitaram essa luz, que segundo eles próprios, é sem-par e a paisagem de lajedos e caatinga. Entre 2017 e 2018 foi gravada a série televisiva “Onde nascem os fortes”, de George Moura e Sérgio Goldenberg, que utilizou casas, escolas, empresas, estradas e lajedos como locações para filmagem e a população como figuração. Neste mais recente trabalho audiovisual produzido na região, ao invés de concentrarem as gravações em Cabaceiras, as locações se espalharam por um vasto território, em lugares distantes entre si em toda área rural desta parte do semiárido. Como afirma Jorge Luis Villamarin7, diretor de criação da série, “nesse projeto de Onde nascem os fortes, o que amarra é a estrada de terra”, e complementa o autor, George Moura, dizendo: “O Sertão é um personagem”. “Sertão”, neste caso, é o nome dado a essa cidade fictícia onde se passa a história e essa construção do ambiente como personagem e da estrada enquanto cordões que amarram a narrativa da série considero muito interessantes. Sem dúvida as estradas aparecem muito mais que como meros cenários, elas são parte da trama construída na dramaturgia como também o são naquela que tece a vida no Cariri. Por outro lado, não posso deixar de citar que a série traz uma imagem completamente estereotipada da vida no semiárido, com grande destaque para cenas de pobreza, prostituição, desmando e violência. Há na série uma imagem do Nordeste que mistura elementos de várias partes distintas da região e com ênfase no que há de pior. Algo que, sem dúvida, causa incômodo nas pessoas do lugar. Como ouvi muitas vezes: “esse pessoal vem aqui e fica procurando gente sem dente pra filmar”, noutra ocasião um amigo me mostrou uma casa abandonada no caminho da estrada e me disse: “é esse o Nordeste que a TV gosta de mostrar”. Em 1965, em discurso proferido em evento na Itália, Glauber Rocha, maior nome do movimento do Cinema Novo brasileiro, fez fortes críticas às imagens da pobreza como chegavam

7 Entrevista para o canal Globo no Youtube, publicada em 13 de abril de 2018.

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ao cinema até então. Dizia ele: “Eis – fundamentalmente a situação das Artes no Brasil diante do mundo: até hoje, somente mentiras elaboradas da verdade (exotismos formais que vulgarizam problemas sociais) ” (ROCHA, 1965). Em crítica a uma certa vertente que ganhou força a partir dos anos de 1990 no cinema brasileiro, Ivana Bentes (2007), professora da Escola de Comunicação da UFRJ, também aborda essa questão e afirma que “o sertão e a favela sempre foram o ‘outro’ do Brasil moderno positivista” (Ibid: 242). Segundo ela, enquanto a abordagem do Cinema Novo veria a capacidade de ação transformadora dos habitantes desses lugares, o discurso do cinema dos anos de 1990 estaria voltado para o exotismo e o tom melodramático, duas características que são marcantes também na série televisiva mencionada acima. Deixo, portanto, o exotismo da série, mas com a concordância quanto a percepção que tiveram de que as estradas são um personagem da vida no semiárido rural. As inúmeras passagens com chão de terra, nos levam a sítios, vilarejos, distritos e cidades, algumas levam para dentro da mata de caatinga, umas feitas pelos moradores para o trabalho com macambiras e cactos ou para buscarem animais da criação perdidos na mata, outras por caçadores que invadem as terras pela madrugada em busca de animais silvestres. Os acessos menores nas beiras das estradas seguem pelo interior da mata de caatinga, onde vivem os animais soltos da criação, onde se encontram fontes de macambiras e xiquexiques, trilhas por onde se passa para alimentar ovelhas em tempos de seca e também onde se encontram frutos e ervas-medicinais. Por esses caminhos, a mata seca da caatinga faz com que, aos olhos do visitante, cada curva, passagem, encruzilhada, pareçam exatamente iguais. São caminhos apenas para quem conhece e tem muita experiência no lugar, uma vida e histórias em cada pedaço da mata. Pelo traçado da PB 160, após a casa de Geraldo e a entrada dos lajedos, vemos a única casa de taipa ainda residida no Bravo, por escolha de seu morador, Dedé Ricardo. Seguindo mais à frente, à esquerda da estrada está um acesso que nos leva até o sítio de Ermínio e família. Alguns metros depois, ainda pela rodovia estadual, uma grande baraúna, árvore que é uma das figuras mais marcantes do ambiente no Cariri, mostra que estamos saindo do município de Boa Vista e adentrando em território cabaceirense. Ao lado, um conjunto de enormes rochas agrupadas umas sobre as outras dá origem à chamada Pedra Oca, por onde se pode caminhar pelas grutas formadas nessa sobreposição. Do topo, onde é possível chegar sem muita dificuldade, vemos a Leste um belíssimo nascer do sol, que se esconde a Oeste, adentrando a serra. O nascer do sol é de beleza

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singular, sem nuvens, ele surge por detrás da serra na direção de Campina Grande sempre cinco e meia da manhã. Deste mesmo ponto, no período da tarde, com o auxílio de um binóculo é possível avistar os primeiros prédios de Campina Grande, brancos e pequenos no horizonte, a uma distância de exatos 36 km em linha reta. Sentado no tamborete ao final da tarde na casa de Geraldo, conversávamos na companhia de Antônio Xerém acerca desta mesma serra no horizonte distante, bem a nossa frente. Visto a distância, o adensamento da mata aparentava um cinza prateado de tonalidade escura, tive a impressão naquele momento de ter visto algum verde por lá e perguntei a eles se estava certo, ao que Geraldo e Antônio me responderam:

_ Lá? Chove nada! É Igual aqui. Chove nada. É verde não. Cabra vê assim de longe acha que é verde, mas é igual aqui mesmo - disse Geraldo. _ Já atravessei essa serra aí todinha, tinha os caminho, vai lá pra Campina Grande. _ Tem mais não. Agora tem mais não, Antônio. Já fechou tudo. _ É, agora tem mais não, mas antigamente tinha caminho ali - Ele concordou.

Dito de outra forma, os caminhos se transformam juntamente com as mutações da mata da caatinga. Os caminhos da caatinga modificam-se com as chuvas, logo as plantas retomarão seu lugar na mata adensando-se sobre as antigas trilhas. Como também, cada um desses caminhos possui suas histórias, dos tempos em que Bati ainda criança viajou pela região ajudando um vendedor em uma carroça com jumento, daqueles que tinham que caminhar onze quilômetros para chegar à parte urbana de Boa Vista, ou mesmo o avô de Laura que caminhou até Recife. Há ainda a história de Mercedes, que morreu enquanto caminhava do Bravo em direção a Passassunga, no local foi aberta uma clareira na mata com uma capela em sua homenagem e há quem acredite que durante a noite seu espírito suba na garupa da moto de quem passa. Logo em seguida da fronteira marcada pela baraúna, há uma trilha à esquerda, onde só se passa de moto ou caminhando e leva ao Bravo de Cabaceiras. Se seguirmos pela estrada haverá mais à frente um acesso maior para carros. Na margem direita da estrada está uma borracharia e algumas casas. Uma delas é a casa de Fernando, uma casa antiga, construída frente à um enorme rochedo que chama a atenção de quem passa e forma uma bela imagem, também utilizada como cenário da mencionada série televisiva.

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Ao pegarmos o acesso para o Bravo de Cabaceiras, temos uma sequência de casas, da baixada, passando por uma pequena ladeira até o topo, na casa de Bae, irmão de Fernando. Encontramos ali a família de Luizinho, produtores de leite e queijo e impressiona neste sítio o tamanho, a saúde e a produtividade de suas vacas, como também de seu touro, em plena seca, ao preço do sacrifício conjunto da família. Isso porque, a seca aumenta a necessidade de ração, reduz a dinamicidade da economia local, o que implica na redução das vendas de queijo e leite, e isso, por fim, atinge diretamente a renda familiar, muitas vezes sacrificada por praticamente todas famílias do Cariri para a manutenção dos animais enquanto não chegarem as chuvas. Em frente, pela PB 160, divisamos muitos acessos a outras passagens, como para o Lajedo da Samambaia, Lajedo do Corredor ou o de Pai Mateus. Também há ali caminho para o distrito da Ribeira, já em Cabaceiras, centenário produtor curtumeiro. Lá, o trabalho artesanal com os couros de bovinos e principalmente de caprinos é passado de pai para filho há gerações. Quando da realização de trabalhos de campo por Marianne Cohen e Ghislaine Duqué (2001), entre os anos de 1980 e 1990, este povoado nas margens do intermitente Rio Taperoá vivia com dificuldades da produção irrigada de alho. Hoje, curtumeiros e artesãos se organizaram em cooperativa, a Arteza – Artefatos em Couro e Curtume, ganharam incentivos financeiros dos governos federal e estadual, da prefeitura e outras instituições, inclusive da Alemanha, e hoje vendem para o Brasil e para o exterior. Além da cooperativa, são dezenas as casas de famílias que confeccionam produtos variados em couro (cf. MEIRA, 2014). Pelo trajeto que passa por Tapera e Pai Mateus, a distância do Bravo até a Ribeira é de cerca de 20 km. Porém, em tempos de inverno o caminho fica intrafegável na altura do Rio Taperoá. No decorrer das chuvas a população separada pelas águas do rio só o supera em canoas. Os carros, por sua vez, fazem um trajeto de 20 km pela PB 160 até Cabaceiras, sentido Sul, para em seguida retornarem mais 15 km Noroeste até a Ribeira, assim utilizando a ponte de Cabaceiras que passa sobre o rio. Quando há chuva em abundância no Cariri, não só os rios transformam as passagens, mas toda sorte de vazões e caminhos d’água fazem dos antigos percursos outros completamente diferentes. Os açudes e lagos enchem até extrapolarem os limites de suas bordas e sangram o volume excedente que, por sua vez, escorre dando forma novamente aos cursos d’água, como córregos, riachos, ribeiros, antes invisíveis aos olhos do forasteiro, que no lugar da água via a flora

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da caatinga que brotou no antigo leito. O fluxo d’água desconsidera os limites das construções humanas, atravessa pistas, pode chegar a casas e aos cercados da criação animal. No entanto, por maiores que sejam as transfigurações e alguns transtornos, esse é sem dúvida o momento mais esperado da vida dos habitantes do Cariri: os dias de chuva, o tempo de inverno. Assim como, na conversa que propus neste capítulo, caminhando e seguindo estradas e trilhas do Cariri enquanto falo de suas histórias, ao seguir a água pelos fluxos da vida no Cariri, caminharemos, eu e o leitor, por terrenos diferentes entre si, em momentos de chuva ou de seca, buscaremos água nos lajedos, poços, lagos, barreiros, cortaremos palmas, queimaremos cactos e macambiras, seguiremos seus cursos do Bravo até que chegue o tempo das águas de inverno, essas escoem e encontrem o Rio Paraíba e o açude de Boqueirão, dali seu caminho pelas tubulações da adutora do Cariri, que passa também por distantes escritórios políticos que gerenciam o fornecimento e chega a casas de parte do Cariri Paraibano e Campina Grande. Podemos ver a água ainda passar ao alto em nuvens avolumadas, enormes acúmulos de partículas de água que sobrevoam o céu em azul escuro, mas, raramente se precipitam no solo do Bravo. Porém, quando é chegada a estação do inverno, quando as chuvas se precipitam em bom volume e frequência, as águas são capazes de promover em questão de dias a mais profunda mutação em todo conjunto da vida que, de uma só vez, um lugar poderia vivenciar. Desta forma, assim como procurei guiar o leitor na caminhada deste capítulo pelas estradas do Bravo, descrevendo seu contexto físico e contando suas histórias, a água é nosso cicerone nesta tese, capaz de conduzir a caminhada pelos fluxos da vida no Bravo ao longo de suas transformações, em uma narrativa construída pela memória e pelas experiências dos habitantes do lugar, entre a seca e o inverno.

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Capítulo 4. O entrelaçamento de vidas a partir da relação com o roçado, a caatinga e a criação

Com o intuito de apresentar a água enquanto um ator de capacidade transformadora e definidora única, um ator que a tudo se liga, condiciona e modifica, seguirei o movimento desta ao longo do presente capítulo e nos subsequentes, por onde ela nos levar. Por esta abordagem, através da qual percorremos como formigas, tal como sugere Latour, os rastros do movimento, somos guiados por ambientes diversos da vida no Bravo. E desta forma, busco percorrer junto ao leitor e à leitora as principais formas de obtenção dos recursos necessários à manutenção da vida das famílias no Bravo, os conflitos e as soluções, considerando sempre as variações sazonais, conforme o nível de precipitação das chuvas e a disponibilidade de água. Discorro aqui acerca das formas de organização da vida e do trabalho por homens e mulheres no Bravo, no ambiente doméstico, no sítio, na mata ou empresas da região. Procuro realizar a descrição sem recorrer a generalizações e conceitos exógenos, mas, como propõe Ingold, com os pés no chão. Construo a narrativa como um caminhar na companhia do leitor, descrevendo lugares e partilhando experiências, como também, sentados nos tamboretes do terraço enquanto ouvimos juntos os moradores do Bravo nos contarem de suas vidas. A proposta de escrita é, como defende Latour (2012: 180), “simplesmente trazer para o primeiro plano o próprio ato de compor relatos”.

Por esse sentido, procurei tecer neste capítulo, como também nos próximos, a descrição da dinâmica da vida no Bravo sem uma ordem dada por classificação, mas sim pelo fluxo da memória e de como as experiências se amarram neste emaranhado rizomático de vidas em movimento. A água nos guiará por uma ordem que também é cronológica, dividida em três momentos distintos das condições do tempo climático. Porém, por mais que haja nestes caminhos um sentido que (1) sai da seca, (2) passa pela chuva leve de agosto de 2017 e (3) chega no inverno de 2018, há o que Walter Benjamin (1994: 46) chama de um “entrelaçamento dos caminhos” que se reflete na própria tessitura da narrativa. Tal como, quando ao falar da seca se lembra de um inverno distante, ou ainda quando falam das palmas resistentes à cochonilha de hoje e se voltam à memória das antigas palmas gigantes. Neste sentido, no entrelaçar das memórias partilho experiências quanto ao aprovisionamento do sítio e especificamente da casa, os instrumentos e as estratégias utilizadas, a

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divisão e o cotidiano do trabalho, as crises geradas pela seca ou pela praga da cochonilha, a relação que estabelecem com os animais do sítio e da mata, e com a própria mata de caatinga, com os lajedos, as fontes de água e como tudo isso se transforma conforme as variações entre seca e inverno.

Uma forma bastante nítida de perceber os movimentos provocados pelas variações na presença da água em meu contexto de pesquisa é saber como as pessoas do lugar percebem e narram suas experiências no trabalho diário para a garantia do sustento da família e dos animais da criação e como tudo isso se entrelaça e muda com as chuvas e as longas estiagens. Quanto às formas de manutenção da vida familiar e do sítio, estas variam de acordo com a disponibilidade de água e, principalmente, conforme a ocorrência ou não das chuvas. Pois, de todos os meios existentes para o acesso à água, apenas aquela proveniente das chuvas de inverno é capaz de transformar todo conjunto da vida, a caatinga ganha folhagens, flores e frutos, os riachos, lagoas, açudes voltam a ter água, o sitiante pode plantar sua comida e mesmo capim e milho para os animais. Para o caririzeiro, não há lugar melhor no mundo para se viver, na sua concepção, “só falta a chuva”.

_ Só falta chuva, aqui só falta chuva, a terra aqui é boa, forte, dá tudo sem estrume, sem botar adubo sem botar nada. Só falta chuva - disse Geraldo, e completou em outra ocasião, durante um dia de trabalho: _ eu te digo, se esse Cariri nosso chovesse todo ano ... todo ano não, bastasse chover ano sim ano não que ninguém que saia desse Cariri da gente aqui não. Não trocava por Sul de ninguém. Ah, se chovesse um ano sim outro não, se fosse um bom outro ruim.

Por outro lado, os ciclos entre seca e inverno são características inerentes ao clima semiárido, não é possível alterar tais fluxos. Portanto, as secam não seriam um problema em si, mas uma realidade, e o desafio enfrentado pelos seus habitantes é o de conviver com essa realidade, com esses ciclos muito mais antigos que a colonização destas terras. Para se ter uma referência, José Marengo elenca aquelas que seriam as grandes secas de que se tem registros no Nordeste brasileiro desde o século XVI: “1583, 1603, 1624, 1692, 1711, 1720, 1723-1724, 1744-1746, 1754, 1760, 1772, 1766-1767, 1777-1780, 1784, 1790-1794, 1804, 1809, 1810, 1816- 1817, 1824-1825, 1827, 1830-1833, 1845, 1877-1879, 1888-1889, 1891, 1898, 1900, 1902-1903, 1907, 1915, 1919, 1932-1933, 1936, 1941-1944,

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1951- 53, 1958, 1966, 1970, 1976, 1979-1981, 1982-1983, 1992-1993, 1997-1998, 2001-2002, 2005, 2007, 2010 e 2012-2015” (MARENGO, 2016)

Considerando tais fluxos cíclicos, a definição de um ano bom ou um ano ruim no semiárido depende não apenas do volume das águas, mas também da capacidade que estas têm de fazer folhas e forragens da mata e também a atividade de plantio. Portanto, não apenas o volume das chuvas é considerado nesta definição, mas também se a regularidade destas chuvas ao longo dos meses de inverno garantiu um bom ano de cultivo. É preciso que haja volume e regularidade ao longo, ao menos, dos meses de março a junho para que o roçado não seja perdido por falta d’água durante seu desenvolvimento. Tal como afirmou Chandra Morrison (s/d: 18), a qualidade do inverno está relacionada à regularidade das chuvas que permitem manter o solo úmido, mais que à quantidade.

Marianne Cohen e Ghislaine Duqué (2000, s/p) elaboraram uma ótima tabela sobre essas variações sazonais e suas consequências agroecológicas com dados de quatro municípios do Cariri Paraibano: Monteiro, Sumé, São João do Cariri e Cabaceiras. A classificação é muito interessante para a compreensão de momentos distintos do tempo climático, e consequentemente da participação da água na vida no Cariri. Segundo elas, um “ano muito seco”, teria precipitações abaixo de 60mm com chuvas descontínuas e a consequência seria a ausência de safra e pastos, como a situação encontrada no Bravo em minha primeira visita. Anos secos teriam precipitações abaixo de 100mm ao longo de três meses com alguma forragem e a “seca verde” teria chuvas pouco acima de 100mm também com pouca “forragem, herbáceo e arbóreo”, em ambos os casos sem a possibilidade de safra. As chuvas extemporâneas que ocorreram na metade de 2017 colocariam o ano nesta faixa de classificação, com precipitações totais abaixo de 100mm e uma pequena recuperação das forragens. Anos chuvosos teriam três meses ou mais consecutivos de precipitações próximas ou superiores a 100mm ao mês, o que no caso da região de Cabaceiras ou Boa Vista não totalizam mais que 400mm, como registraram os pluviômetros do Bravo no inverno de 2018, porém, neste caso, com certa irregularidade que dificultou o pleno desenvolvimento da safra.

Além das baixas precipitações e da rápida evaporação pelo efeito do sol, o período de seca quando começa, não se sabe por quanto tempo pode durar, algo que é parte da incerteza da vida no semiárido, como muito bem mostrou Renzo Taddei (2017: 55-81 e 126). A manutenção dos

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animais de criação em tempos de estiagem torna-se extremamente penosa para as famílias, dado a consequente escassez de pastagens durante esse período. Da mesma forma, a incerteza e inconstância das chuvas torna a atividade agrícola um momento raro para a maioria dos sítios. Como constataram Cohen e Duqué (2001: 172) sobre um povoado de nome Ligeiro, também no Cariri, distante cerca de 70km a Oeste do Bravo: “la gestion des opérations agricoles est particulièrement complex car les producteurs se heurtent à un certain nombre de facteurs imprévisibles”. O que coloca o caririzeiro em constante busca de novas formas de organizar a vida, de conseguir pasto, ração, palmas, xiquexiques, macambiras e água para os animais, como também água e alimento para sua casa. As condições para a vida podem mudar a qualquer chuva, sabem bem eles que um dia o inverno deverá chegar, mas que também outros períodos de seca ainda voltarão a ocorrer, com prazo indeterminado. A vida no Cariri apresenta assim características de provisoriedade, algo como Antônio Cândido escreveu em outro contexto sobre a vida do caipira do interior de São Paulo em seu clássico Os Parceiros do Rio Bonito (1971: 37): “na habitação, na dieta, no caráter do caipira, gravou-se para sempre o provisório da aventura”. Por motivos muito diferentes daqueles que moveram os caipiras, herdeiros de indígenas e bandeirantes, o provisório é também e sem dúvida marca da vida do caririzeiro, visto a sua necessidade de buscar sempre novas alternativas conforme a variação das chuvas ou o agravamento das secas. Em um emaranhado no qual a água interage com absolutamente tudo, a vida se reorganiza acompanhando suas variações. Em meio ao fluxo da vida no Bravo, a água aparece como uma linha que atravessa todas as coisas, sejam humanas ou não, assim como, seu uso e o acesso a ela também variam no decorrer do mesmo processo, e essa variação confere o caráter provisório para a vida no lugar.

No que se refere à relação entre o caririzeiro do Bravo e seus animais, estes direcionam todas suas energias e boa parte de suas rendas para a manutenção destes durante a estiagem. Uma relação que não é possível ser compreendida a partir de noções de economia de mercado, há uma relação ética entre eles. Isso visto que, principalmente durante os períodos de estiagem, o trabalho para o sustento dos animais da criação e os gastos com complementos em ração não são nem de longe recuperados através de sua venda. O trabalho com os animais não sustenta as famílias e a produção de queijo apenas ajuda na renda de algumas poucas casas que se arriscam a manter produção leiteira comercial em tempos de seca e falta de pastos, mesmo caprinos e ovinos quando vendidos são sempre para suprir uma necessidade imediata, para sustentar os outros animais que

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restaram ou como alguém que vai ao banco sacar suas economias. Também ao observamos o caso da relação entre jumentos e humanos percebemos que estes dividem o trabalho pela sobrevivência, mesmo que isto não tenha sido previamente acordado com o jumento, é claro: o humano garante a água, o abrigo e a alimentação, enquanto o jumento, por seu lado, entra com sua força capaz de puxar uma carroça com duzentos litros de água que servirá para a casa, os outros animais e para ele próprio. Assim, ambos, o humano e o jumento, deverão superar os períodos de escassez de chuvas.

No caso do sertão do Piauí, Emília Pietrafesa (1999: 50) demonstrou a existência de “uma ética a orientar a conduta dos indivíduos de comunidades relativamente pequenas e integradas”. Neste sentido, a relação observada entre os caririzeiros e seus animais, sobretudo durante os períodos de estiagem, se aproxima dessa definição de uma “economia moral”8. Algo como Klass Woortmann (1990: 11) chamou de uma “ética camponesa” que seria, segundo ele, “constitutiva de uma ordem moral, isto é, de uma forma de estabelecer relações do homem entre si e com as coisas, notadamente, a terra”. Percebe-se que as relações tecidas pelos “camponeses” no interior do Sergipe, como descrito por Woortmann, incluem mais que os humanos, nela está presente também a terra. É possível então, pensando a partir das experiências no Cariri, estender e incluir entre os atores não-humanos a água e os animais, ambos com presença marcante na vida do lugar. Nesta perspectiva integrada, os animais da criação não se assemelham em nada com aquilo que se concebe pela ótica do mercado (um nítido encontro entre perspectivas ontológicas conflitantes).

Por quase todo Nordeste interior bodes, cabras, carneiros e ovelhas circulam pelas propriedades e áreas comuns de sítios e pequenas cidades, principalmente os caprinos, que são transeuntes na vida cotidiana. Pela relação diferenciada que caprinos têm com os humanos, Geovani de Freitas (2003: 123-125) nos conta que em Pilar, no estado de Alagoas, um bode conhecido como Frederico, em sinal de protesto dos moradores, foi lançado informalmente como candidato à prefeitura da cidade, chegou a aparecer na liderança em pesquisas de opinião pública,

8 O conceito de economia moral foi desenvolvido pelo historiador Edward P. Thompson na análise dos “motins da forme” na Inglaterra do século XVIII. O conceito foi apresentado por ele pela primeira vez em “Economia Moral da Multidão na Inglaterra do século XVIII” (THOMPSON, 2008 [1971]) e retomado com comentários às críticas recebidas em capítulo da coletânea “Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional” (THOMPSON, 1998 [1991]). Afirma o autor que as queixas que geravam os motins “operavam dentro de um consenso popular acerca do que eram práticas legítimas e ilegítimas das atividades do mercado” (Idem: 152), haviam lógicas peculiares que constituíam o que Thompson chamou de economia moral, baseada em valores que diferiam dos praticados pelo mercado capitalista então ascendente.

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mas foi morto envenenado antes do pleito. O evento gerou protestos, causou comoção entre os moradores de Pilar e mostra que não é possível analisar tais animais neste contexto como simples meios de produção pecuária. Nos sítios os animais de criação vivem na ambiguidade entre a seca e o inverno, vivem soltos nos cercados de caatinga e nas serras em tempos de chuvas e fartura de pastos e alguns podem ser trazidos para próximo de casa e alimentados pelo trabalho humano (o que inclui a queima de cactos e macambiras) se estiverem doentes ou por quanto tempo se prolongar a estiagem. Assim, o trabalho com os animais envolve o mercado (pois, compra-se ração e, por vezes, vende-se animais), mas é uma relação que extrapola em muito as definições do mercado capitalista.

A dedicação ao penoso trabalho do período das secas não se explica apenas pelo possível prejuízo econômico que a seca possa acarretar. Os animais da criação não são vistos por eles como simples mercadorias, valor de troca, nem mesmo pelo valor de uso que possam ter enquanto alimento. É inabitual o sacrifício de um animal da criação e são raras até mesmo as situações em que decidem matar um bode para alguma comemoração. Algo que ocorreu, por exemplo na ocasião do aniversário de sessenta anos de casamento de Laura e Bati, em 2012, quando dois bodes foram servidos em uma festa para dezenas de visitas, entre amigos e família. Este é um exemplo de uma situação em que se cogita matar um dos animais. Em um dos meus últimos dias da visita mais recente que fiz ao Bravo, Geraldo me dizia que esperava que eu voltasse logo e quando eu voltasse ao sítio, mataria um bode para comemorarmos (apesar de que ele próprio não tem coragem de matar qualquer animal que seja, pediria certamente para que alguém o fizesse). Mais comum que o produtor sacrificar seus animais, é aqueles que não possuem criação comprá-los ainda vivos. O bode é sacrificado apenas em ocasião de uma festa que faça jus a isso, do contrário, quem cria os animais não costuma matá-los para comer.

Isso se entende também visto que os animais da criação não possuem um ciclo econômico que possibilite a manutenção da casa, diferente disso, são uma forma de salvaguarda da família para ocasiões de crise, ou seja, em momentos de dificuldade financeira é possível apelar para a venda de um bode, uma cabra, uma ovelha. No Bravo é comum nesses casos que os animais sejam vendidos à Ermínio, que, com frequência, vai à feira de Campina Grande para revendê-los. Em todo caso, paga-se em média 150 reais por cada animal. Os mais procurados são os bodes, parte da culinária

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que é marca do semiárido brasileiro, mas também há procura por ovelhas e carneiros. Mesmo nesses casos, a comercialização não funciona como em um supermercado, a venda é parte de um planejamento da família para investir o dinheiro em melhorias, na manutenção do sítio ou em uma necessidade de última hora. De qualquer forma, a decisão da venda parte do sitiante, não de quem compra.

De toda maneira, algumas dezenas de animais são vendidos a cada ano para possibilitar o investimento na manutenção dos outros. Um ciclo de reprodução que não gera lucratividade. Porém, essa rotina econômica ajuda a evitar que famílias tenham que investir dinheiro de outras rendas para manter a criação, algo que ocorre com frequência inevitável durante as secas. Assim, em sítios do Bravo e proximidades, esse número pode variar, mas anualmente animais devem ser vendidos e o dinheiro gasto no sustento do próprio sítio. Ou seja, vende-se alguns para com esse dinheiro alimentar os outros. Esse comércio depende ainda da disponibilidade de animais com peso suficiente, das condições do tempo climático, assim como, das necessidades da família para aquele momento. Em anos com inverno, os gastos reduzem e é possível nestes períodos tirar algum lucro financeiro da venda da criação. Klass Woortmann (1990: 17) explicou através de uma situação vivenciada por ele em campo parte da lógica desta economia:

Esse sitiante discutia comigo o melhor meio de aplicar os recursos obtidos através de financiamento do Banco do Brasil. O sitiante, como muitos outros da região, calculava as vantagens relativas entre investir os recursos na compra de gado, forma predominante de realizar a acumulação nessa área, e/ou aplicar o dinheiro em caderneta de poupança. Num caso como noutro, o rendimento, seja pela valorização do gado, seja pelos juros e correção monetária da poupança, seria maior que o custo do empréstimo. Este, como bem sabia o sitiante, se fazia a juros subsidiados e com correção abaixo da taxa de inflação. Embora analfabeto, revelava-se perfeitamente racional, nos termos de uma lógica empresarial.

Neste sentido apontado por Woortmann, os animais são uma forma de pecúlio, apesar do prejuízo que geram durante secas prolongadas. Se preciso for comprar ou consertar uma máquina do sítio, ou uma moto, pagar uma dívida ou investir em melhorias para a família, recorre-se à venda de uma criação. Douglas comprou sua primeira moto com dinheiro que economizou e a venda de dois bichos seus que criava junto com Givaldo, seu pai. Em outro caso, ao descobrir no banco em Campina Grande uma dívida com taxas e juros acumulados em uma conta que não usava, um sitiante do Bravo pagou com o dinheiro da venda de alguns de seus animais. Em caso recente, no final de 2017, Bati combinou com os filhos que venderiam todos juntos parte de seus animais para

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pagar a perfuração de um poço no terreno da família com o sonho de que encontrassem água, algo que tentaram logo no início do ano seguinte (história que contarei com maiores detalhes mais adiante). Contudo, eventos como esses não ocorrem com regularidade, assim, pequenos produtores como os do Bravo não fazem de bodes e ovelhas fonte de renda para a manutenção cotidiana da família, nem há mercado suficiente para tal, mas, usam a criação desses animais, os que melhor se adaptaram às condições do semiárido, como parte da vida no Cariri e reserva para o que chamam de um “momento de precisão”, momento em que haja uma necessidade.

Já o trabalho com a agricultura no Bravo só ocorre em situações específicas: com a chegada do período das chuvas, com cisternas de enxurrada ou quando se tem capital para investir na perfuração de um poço e a sorte de encontrar água subterrânea em suas terras. Se o agricultor não tem absolutamente nenhum controle sobre as chuvas, não tem também em geral condições financeiras para perfurar um poço e ainda corre grande risco de pagar pelo serviço, ver perfurar e descobrir que não há água naquele local. De toda forma, mesmo com o poço perfurado, há ainda outros problemas para a manutenção de uma pequena agricultura. Como essa água subterrânea é salobra, a irrigação compromete a qualidade do solo aumentando o acúmulo de sódio no mesmo, algo que sem o devido controle e revezamento da, já pequena, área de plantio dos sítios provoca a perda da qualidade e erosão do solo. Entre as décadas de 1980 e 90, Marienne Cohen e Ghislaine Duqué (2001: 77) encontraram a irrigação por pequenos produtores sendo implementada no distrito da Ribeira, distante apenas 20km do Bravo, e definiram a iniciativa da seguinte forma: “C'est un défi technologique, mais aussi un immense espoir pour les petits propriétaires, dont la survie dans l'agriculture pluviale est très précaire”. Assim, os espaços de plantio em cada sítio são comumente pequenos, mas havendo disponibilidade de água para irrigação, é o suficiente para o cultivo de alimento para a família, principalmente macaxeira, milho e feijão, ração para os animais do sítio e, caso a colheita seja abundante, com o excedente é possível até mesmo gerar uma pequena renda.

Distantes quase duas décadas do período em que Marianne Cohen e Ghislaine Duqué fizeram pesquisa de campo no Cariri Paraibano, as alternativas para a irrigação de lá para cá se ampliaram. Localizados nas margens do Rio Taperoá, que apesar de intermitente é o maior afluente do Rio Paraíba, os habitantes da Ribeira utilizavam as águas deste rio (cavando cacimbas durante a

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seca) para irrigar suas plantações de alho. Hoje, não apenas a Ribeira não vive mais do alho (ainda o produz em pequena quantidade), mas de uma relevante fabricação artesanal de produtos em couro, como sitiantes distantes do rio também podem praticar o cultivo irrigado se tiverem disponível um poço subterrâneo e/ou cisternas de enxurrada. Ao permitirem o acesso à água para o cultivo de gêneros alimentícios pela irrigação, com uso de poços ou cisternas, essas tecnologias possibilitam não apenas a manutenção imediata das famílias e gera qualidade de vida, como incrementam o movimento da economia local com a venda dos excedentes nas áreas urbanas. Além disso, quanto a preservação ambiental, ao cultivarem parte da ração de seus animais no roçado, diminuem a pressão sobre os recursos naturais da Caatinga.

No entanto, a perfuração de poços ocorre apenas pelo esforço próprio de agricultores, ou como “presente” de políticos locais, que se recordam do feito a cada nova eleição. Já as cisternas, ao atravessarmos a fronteira para o Bravo de Cabaceiras e seguindo pela estrada em muitos outros sítios, foram construídas com o apoio da ASA várias delas com capacidade de armazenagem de até 52 mil litros de água da chuva que são dedicadas exclusivamente para a irrigação ou criação de frangos e galinhas em pequena quantidade (GNADLINGER, 2005). A captação é feita por meio de uma rampa construída em forma de funil por onde a água desliza em maior quantidade que as cisternas de calhas utilizadas para captação de água para o consumo humano. No entanto, depois de construídas, durante a última seca, as cisternas tiveram que esperar até três anos para que as chuvas finalmente viessem a carregá-las e encontram-se no momento da escrita deste trabalho em sua primeira experiência de uso no Bravo de Cabaceiras.

No caso do cultivo do solo, até o momento a única solução para o Bravo de Boa Vista que lhes confere autonomia em relação às chuvas na gestão de seus roçados é a perfuração de um poço e o bombeamento de água dos lençóis subterrâneos, visto que ainda não contam com as cisternas para irrigação. O poço de Geraldo foi perfurado alguns metros próximo a sua casa em uma área pequena (cerca de 0,7 hectare), beirando a estrada e dividido em duas partes: uma cultivada e outra deixada para descanso. Dado as limitações da irrigação com água salobra, o cultivo é pequeno, mas suficiente para contribuir com a manutenção da família. Alimentos muito valorizados nas refeições cotidianas no Bravo são cultivados ali com o método de irrigação por gotejamento e mesmo com

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um simples regador de mão: feijão, milho, macaxeira, fava, batata-doce, inhame, jerimum, quiabo, mamão, melancia, capim-santo e muitos outros conforme o momento do ano.

O poço também tem relevância na alimentação das vacas leiteiras, dos caprinos e ovinos, pois, com a utilização dessa água, Geraldo cultiva ainda variedades diferentes de capim para a complementação da dieta animal, como também cultiva batatas, das quais as folhagens são muito apreciadas pela criação. Ainda pela manhã, enquanto Geraldo trabalha no roçado, as cabras e ovelhas berram pedindo pelas ramas da batata e, mesmo que já tenham comido, não param até que Geraldo termine o trabalho e tire um pouco para elas comerem. Esse poço possibilitou que durante última seca Geraldo não precisasse em momento algum se dedicar ao nocivo trabalho da queima de cactos e macambiras para dar de comer aos seus animais e ainda ajudou com o capim e a água do poço seus pais e irmãos. Da mesma forma que, com tais alternativas disponíveis, não foi obrigado a abrir mão de sua aposentadoria para comprar ração, como tantos outros tiveram de fazer. Assim, enquanto me mostrava o funcionamento de seu poço, Geraldo lembrava das dificuldades que eram comuns para se conseguir água até décadas recentes:

_ Naquele tempo o povo não tinha poço, furava é cacimbão, num riacho, assim, a picareta, até dá água. Vai cavando, cavando até achar água. Meus tios e meu pai mesmo que cavava. Fazia assim quarenta palmo quadrado e quando faltasse água, era lá que pegava.

Tanto essa água de cacimba quanto a dos tanques foram muito utilizadas nas casas e para alimentação dos animais, porém, não modifica as configurações do ambiente sem chuvas. Há a água para a casa, há a água para o plantio e há ainda a água que muda toda realidade da caatinga. Assim, sem água para o plantio, a vida do caririzeiro ainda está incompleta. Digo isso, pois, o trabalho agrícola é o momento mais esperado e valorizado por esses sitiantes e as sementes a serem plantadas já são cuidadosamente separadas no ano anterior quando da preparação dos alimentos e escolhendo os melhores grãos das melhores plantas de colheitas anteriores. Porém, os seguidos anos sem inverno fizeram perder todas sementes antes selecionadas. Para plantio do milho durante o último inverno, as sementes utilizadas foram distribuídas pelo Governo do Estado9.

9 Sobre a tradição de seleção de sementes chamadas “crioulas” no semiárido e a distribuição de sementes pelo Estado na Paraíba, ver Flávia Londres (2014).

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Assim, afirmo que o caririzeiro no Bravo é também um vaqueiro, assim como é caprino e ovinocultor com uma relação muito próxima com seus animais, mas o grande momento, o momento mais esperado da vida no Bravo é quando se tem acesso à água e é possível trabalhar no roçado. São homens e mulheres acostumados a lidar com os animais e a mata da Caatinga, possuem relação íntima e de fidelidade aos animais da criação, há até mesmo uma relação de obrigação contraída pelos humanos para a garantia da sobrevivência de todos, o que inclui toda criação: bodes, cabras, ovelhas, carneiros e jumentos. No entanto, o trabalho realmente esperado por todos é o da agricultura. Seja no fundo de casa ou em área separada para esse fim, as águas das chuvas abrem a possibilidade da agricultura para todos que tenham um pedaço de terra e mudam a relação com o solo, o espaço, o tempo e toda vida na Caatinga. O cultivo do roçado é momento único muito valorizado em uma realidade onde prolongados períodos de seca impossibilitam tal atividade.

Se Bati já era o primeiro a sair de casa e o último a retornar, com as chuvas que se precipitaram no Bravo em 2018, passou a ser preciso brigar com ele pra voltar pra casa, disse Rejane, sua filha. Isso pois, as águas do inverno transformam todo fluxo da vida. O grande vislumbre do sitiante no semiárido é ver “tudo verde” e, por isso, repetem com certa tristeza para que você, visitante, saiba que “não é sempre assim”, “tudo seco”, “você precisa ver isso tudo no inverno”, “fica tudo verdinho”, dizem sempre. O cultivo da terra, o cuidado e a colheita são trabalhos que causam grande prazer e satisfação. Assim como, as ocasiões em que se torna possível observar e acompanhar o nascimento das plantas, o enverdecer, o florescer, o crescimento dos frutos, estão entre os momentos dos mais valorizados e fruídos nas breves oportunidades em que ocorrem. Posso dizer com segurança que a vida os leva a serem vaqueiros, caprino e ovinocultores na maior parte do tempo, mas por escolha, seriam sempre, tanto quanto pudessem, agricultores.

Não digo com isso que a agricultura suprima o trabalho com os animais, mas que, em momentos de chuva, há valores atribuídos a ela, tanto estéticos pela beleza de ver o verde e os frutos crescerem quanto econômico, para o aprovisionamento familiar. Semeia-se aquilo que a família aprecia e necessita em suas refeições e, a depender da quantidade, vendem uma fração do que foi produzido, o que lhes rende algum dinheiro que pode ser investido em outras necessidades do grupo. Porém, isto se encontra mais nas lembranças que no cotidiano desta última década. O

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que se colheu após as chuvas de 2018 supriu apenas a necessidade dos animais da criação e a saudade que todos diziam ter de comer milho e feijão do roçado.

Além de as chuvas umedecerem o solo viabilizando o plantio, suas águas fazem brotar por toda caatinga pastos e todos os tipos de folhagens apreciadas pelos animais. Essa nova configuração do ambiente garante a alimentação da criação e tempo livre para o cultivo da terra. Em tempos de seca, com agravamentos a depender de sua intensidade e duração, a vida é toda direcionada, do raiar ao pôr do Sol, para a garantia da alimentação dos animais, não havendo condições climáticas nem mesmo tempo - em sentido cronológico - para a agricultura.

_ Noutro tempo a vida era diferente. Soltava o gado meio dia no cercado e ia buscar só no fim da tarde, tava com o bucho cheio. Tinha que buscar, senão não vinha não, ficava lá - comentou Maria durante a seca.

Já no contexto de seca, o fluxo da vida é outro e as famílias sacrificam seu próprio bem-estar em favor da sobrevivência de seus animais e seus dias giram em torno do sustento destes. Durante o primeiro período em campo no Bravo, presenciei o penoso trabalho de Bati, que aos 84 anos executava trabalhos absolutamente insalubres por entre fogo e fumaça para assim garantir a comida dos animais. Não bastasse isso, ainda gastava por média duzentos a trezentos reais de sua aposentadoria e de sua esposa a cada semana para manter o sítio, principalmente comprando milho, farelo de algodão e farelo de soja para a ração dos bichos sem que o trabalho lhe desse qualquer retorno financeiro naqueles tempos de seca. Não lhes faltava nada em casa, pois Rejane e Val contam também com suas rendas e a soma de todos garante a manutenção da família. Vendo tamanho sacrifício e na intenção de compreender tal fato, perguntei a Bati certo dia antes do almoço porque fazia tudo aquilo, e tive a resposta com a calma e a serenidade que lhes são características: _ Meu nego, ou eu faço isso, ou os bicho morrem de fome. Vou deixar o bicho morrer de fome? - Se deixassem todos os animais soltos, muitos certamente não suportariam o agravamento da seca e a falta de pastos, por isso trazem centenas de animais para perto de casa e cuidam eles próprios de encontrar e providenciar a ração, por mais penoso que possa ser. Assim, dizem com grande satisfação que no Bravo nunca um bicho da criação morreu por falta de água ou do que comer.

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A relação com os animais lhes permite identificá-los com facilidade e em casos de tentativa de furto, não temem em se arriscar com as motos pelas estradas para evitar o êxito do ladrão. Qualquer movimento estranho pelos cercados da propriedade da família é acompanhado atentamente, caso seja preciso, vão atrás sorrateiramente com a moto para verificar o movimento. Em um desses dias, fui junto conferir. Seguíamos em uma noite de sábado para a rua, como se diz no Cariri quando se vai rumo ao centro urbano, seis pessoas, duas em cada moto, para acompanharmos a final de um campeonato regional de futebol de salão. No caminho, uma estranha boiadeira de carroceria azul chamou a atenção de Gilmar quando cruzou lenta no sentido contrário. Ao chegarmos em Boa Vista éramos os únicos parados em frente ao ginásio, o jogo havia sido adiado. Após rirmos e fazermos piadas da situação, voltamos logo para o Bravo. A lenta boiadeira já não estava no caminho e Gilmar logo ficou tenso com as pistas que essa havia deixado. Não daria tempo de ela ter passado toda estrada e em determinada parte do trajeto não havia rastros do caminhão. Paramos no Bravo e voltamos em duas motos, havia sinais de que a baiadeira tinha passado por dentro do cercado, uma vicinal de difícil acesso para o caminhão. Gilmar estava certo de que podiam ser ladrões e percorremos todo cercado para sondar. Algum tempo depois a boiadeira passaria pela estrada, vazia. Não foi desta vez que roubaram os animais do sitio, mas não é algo raro de acontecer. Digo isso, pois são experiências como essa que demonstram como se dá a relação dos sitiantes com seus animais de criação.

Mas não só bodes são roubados, também o são as ovelhas e carneiros, que são mais mansos, e mesmo o gado, pesado e arredio. Todavia, mesmo soltos na Caatinga ou no cercado, os animais de propriedade são facilmente distinguidos por eles, sem a necessidade de marcas artificiais. Quando um bode entre tantos lhes é roubado mesmo que distante na serra, eles logo lhe dão por falta. Caminhadas pela serra e pela caatinga em busca de algum animal desgarrado do grupo, muitas vezes por bicheira10, são atividade corriqueira no Bravo. Conhecem cada animal e sabem por qual estão procurando, seguem as pistas deixadas pelo caminho, além de conhecerem com grande

10 Bicheiras são feridas nas quais a mosca-da-bicheira (Cochliomyia hominivorax) deposita seus ovos. As larvas quando nascem se alimentam do tecido vivo, fazendo aumentar a ferida e podendo causar a morte do animal (CORONEL, 2011). Bodes com bicheira, procuram lugares afastados, como as grutas mais isoladas dos lajedos, onde morrem sozinhos e onde encontramos muitas de suas ossadas. Na rotina de trabalho do sitiante é, portanto, constante encontrá-los para curar suas feridas.

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proximidade o comportamento de sua criação para encontrarem seu percurso na mata e nos lajedos.

Os animais soltos não conhecem limites de propriedade, por isso, é possível ver vacas e bodes de outros sítios pastando nas terras do vizinho. Porém, cada família extensa possui suas próprias terras. A vista disso, cada propriedade possui suas próprias reservas de água subterrânea em potencial, que é extraída com poços de cata-vento, indispensáveis para os animais, ou poços equipados com bomba elétrica. Porém, o poço e a água que dele sai pode ser coletivizada como no caso de poços de cata-vento dentro da mata que mesmo estando no cercado de determinada família, é utilizado por qualquer animal que por ali passe e tenha sede. Em hipótese alguma se nega o acesso à água seja para os animais ou para os humanos, há menos de uma década, quando o dessalinizador esteve quebrado, aqueles que tinham água na cisterna, dividiam com quem precisasse, da mesma forma, quando os tanques eram única alternativa, humanos e seus animais vinham de longe em busca dessas águas, muitas vezes as únicas que restavam.

Cada família possui também reservas próprias de macambira e xique-xique em suas terras que são estas sim de uso exclusivo dos proprietários. Isso porque, estes formam a base da alimentação animal durante os recorrentes períodos de seca intensa e podem faltar se esta se estender por muito tempo. Como em finais de 2017, quando já não se encontrava mais macambiras com facilidade e, em algumas áreas, os habitantes diziam estar “extinta”, seria preciso muita chuva e tempo de descanso para vê-las novamente em grande quantidade pela caatinga. Por isso mesmo, não se derruba e queima macambira em propriedade alheia e as de suas próprias terras devem ser manejadas com cuidado para não faltarem. As instruções de Bati para se retirar a macambira incluem sempre deixar um olho, uma parte da planta a partir da qual a mesma poderá crescer novamente.

Outros recursos da mata não são de forma alguma negados, caririzeiros são solidários e gostam de partilhar, o que não significa que não tenham consciência dos limites de propriedade e daquilo que se compra ou se deve pedir, daquilo que é pouco e se deve controlar para não acabar ou mesmo extinguir. Plantas medicinais, frutas, as vagens da algaroba, macambiras, xiquexiques, são encontrados em grande quantidade pela mata, mas podem se tornar raros durante as secas, o que faz importante o uso comedido. A caatinga está repleta de plantas com propriedades medicinais

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e eles conhecem cada uma delas, a todos é permitido o acesso, mas peça antes ao proprietário. Cada família sitiante tem seu próprio cercado de caatinga preservada e conhecem cada passo por dentro da mata. Sendo assim, cada sítio tem sua própria reserva de recursos silvícolas e aqueles que cresceram caminhando e abrindo caminhos pela caatinga distinguem detalhadamente cada passo, cada animal, cada planta e seus possíveis usos.

Um ano após ter acompanhado o trabalho na queima da macambira, estava conversando sentado na rede na sala da casa de Givaldo e me recordei de certo dia durante a queima em que ele teria apontado com o braço esticado e citado o nome de cada árvore da caatinga que estava ao nosso redor, ao que ele me disse:

_ Quer que eu te fale? Quer que te fale o nome delas?

_ Eu lembro que tu falou de umas 10 árvores, lembra o nome delas?

_ Lembro, de um bocado lembro. Pode falar?

Liguei logo o gravador do celular, pois, eram tantos que seria impossível anotar ou lembrar cada um, e Givaldo começou a falar um a um os nomes de cada árvore sem pensar muito e sem repetir nenhuma.

_ Tem marmeleiro, tem o pereiro, tem o pinhão, tem o pau d’arco, a baraúna, tem a catingueira, tem o velame, tem a aroeira, a maniçoba, a imburana, a favela, o mulungu, tem o cumaru, tem … vou dizer mais ... tem a ameixa, mas não é essa ameixa não, é ameixa brava, a gente usa pra tudo aqui, é boa pra curar muita coisa, tem a barriguda ...

_ Cumaru é que dá um cheiro gostoso?

_É, é sim, esse memo. Que mistura no fumo11. Tem também a embiratanha, que é boa demais pra coluna, tem a quixaba, tem o juazeiro, tem o pá-de-serra, tem o estralador, tem o limãozinho- do-mato, tem o loro, tem o muçambê, tem a oliveira, tem a jurema, tem a jurema preta, tem a jurema-de-embira, e tem a branca, é três tipo, como tem a quixabeira rocha e tem a branca. O que mais que não falei? - segue uma breve pausa.

11 Receita de rapé, tradição indígena que mistura fumo moído com aromáticos, neste caso as sementes do Cumaru.

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_ Alguma delas pode alimentar os bichos em tempo de dificuldade? - pergunto a ele.

_ A maioria que eu te falei os bicho come. Da aroeira tudo que é bicho adora a flor, a jurema, da folha, as semente, o loro, o juazeiro, a quixabeira, o pereiro, o marmeleiro, quando cai as folha os bicho come, a maniçoba... aí tem o joão-mole, esse a gente faz o chá da casca pro bicho que tá doente. Tem feijão-bravo, tem a uvaia, tem a jabuticaba, é comum, mas tem aqui na nossa terra também. Tem o umbuzeiro...também dá fruto, quando chega janeiro, fevereiro em tempo de chuva começa tudo a brotar nas primeiras chuvas, quando vem a chuva elas já começam logo a florar pra poder dar as fruta. Caju tá difícil, mas tem também pra serra, tem também.

Nesse momento uma equipe da TV de João Pessoa chegou no Bravo para uma reportagem sobre o lajedo e Djair me chamou para acompanhá-lo. Mas, a conversa sobre as árvores ainda não tinha terminado, na manhã seguinte, minha última manhã daquela passagem pelo Bravo, enquanto tomávamos café no terraço de Laura, Givaldo lembrou-se ainda de alguns nomes que não havia dito no dia anterior:

_ Jucuri, tambor, angico, mororó, turco e jatobá.

Para cada árvore dessas e cada uma das muitas outras plantas não citadas, o caririzeiro reserva grande sabedoria adquirida pelas trilhas da caatinga. Estive presente quando cólicas, inflamações e cortes foram rapidamente curados com o uso das plantas. De experiência pessoal, ralei pernas e joelhos por motivos variados, caí da bicicleta duas vezes e queimei o pé no motor da moto; a exceção da grande ferida aberta pela queimadura que precisou de antibióticos e anti- inflamatórios, no mais, contei sempre, com eficiência, com a sabedoria do próprio Cariri. Tais recursos estão presentes no interior dos cercados e nas serras da caatinga e o conhecimento profundo da vida na mata garantiu e ainda garante a sobrevivência em tempos difíceis, seja para medicação natural, onde mesmo em caso de picada de cobra, para citar apenas um caso, sabe-se que a seiva de determinada árvore pode ajudar, seja também para alimentação dos animais da criação ou de sua própria alimentação e da família, o conhecimento da mata lhes garante a vida.

Dentre as plantas, a imagem que comumente simboliza a vida e a resistência em ambientes de semiaridez é, sem dúvida, a dos cactos, plantas que desenvolveram formas de sobreviver em condições de seca por longos períodos. Esses também geram seus frutos, alguns dos quais dizem

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ser muito saborosos in natura ou na forma de doces. Em visita que fiz à casa de Dona Irací, em Cabaceiras, no ano de 2015, vi um lindo mosaico elaborado utilizando cacos de azulejos e que preenchia toda parede de um dos lados da sala. No desenho havia uma mulher sentada sob a sombra de um xiquexique com grandes frutos que brotavam dele; os frutos representavam seus filhos e um pássaro ao alto era o marido já falecido. Dona Iraci aprendeu a trabalhar com mosaico em uma oficina realizada na cidade e certo dia viu uma apresentadora de TV citar um antigo ditado no qual se dizia que “xiquexique não dá sombra nem encosto”. Pensou consigo e comentou com os filhos que não havia como estar certa aquela frase, pois, viúva, os havia criado tendo muitas vezes apenas o xiquexique, do qual cozinhava o miolo, para lhes dar de comer. Isso porque não só os frutos (que só nascem com as chuvas) mas também a polpa do caule era aproveitada nas refeições e este os teria alimentado muitas famílias em momentos de seca, quando não adiantaria plantar e dinheiro não havia para comprar a comida. Assim, os cactos que têm seus frutos hoje apreciados pelo bom sabor, já foram fonte de alimentação não só para a criação, mas também para as famílias do Cariri e, segundo D. Irací descreveu em seu mosaico, xiquexique, sim, dá sombra e encosto, pois, dele vieram as condições para alimentar sua família. Assim, nota-se que a capacidade dos cactos de armazenar água e obtê-la até mesmo do orvalho noturno, os faz relevantes também para a sobrevivência dos humanos no local.

Nem todos os cactos dão frutas saborosas, mas, de todos eles as pessoas já se alimentaram em tempos de seca e/ou poucas alternativas: facheiro, xiquexique, palmatória, cardero (que se conhece também por mandacaru). Destes, os mais apreciados são, sem dúvida, os frutos do facheiro. Cactos grandes e imponentes, nascem por toda caatinga, em chão de terra ou por entre as rochas. Alguns de forma surpreendente, nascem nos mais ínfimos e estreitos vãos de rochas, nos altos dos lajedos e das rochas onde não parece haver qualquer vestígio de matéria sedimentar, apenas o chão duro das rochas. Ledo engano, os facheiros encontram alimento e precisam de pouca chuva para crescerem. Logo após as primeiras chuvas os facheiros maiores já ganham flores e logo, se confirmado o inverno, as frutas. Como descrito em uma das conversas no tamborete:

_ Eu fico de olho nos facheiro, porque dizem que as frutas são doces e boas pra comer - disse eu.

_ Tá loco! A fruta do facheiro é boa demais, é doce - completou Antônio.

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_ A fruta do facheiro quando ela dá memo, quando ela fica sequinha que cê vê que os passarinho dá uma comidinha, não tem coisa melhor não! Eu queria que ocê visse. Cê tá doido, cê come de passar mal. Agora, do xiquexique não, do xiquexique é abusado12. - descreveu Geraldo.

_ A do cardero também, a do cardero é abusado. - disse Antônio.

_ O facheiro é assim: logo depois duma chuva você já pode vê que vai ter umas flor. Mas tem ano que carrega muito. Esse pezinho aí! Esse pezinho aí dava cada uma desse tamanho (mostrando com as mãos uma circunferência com em torno de 30 cm). Mas só quando dá uma chuva. - disse Maria.

_ Eu cansei de ir no cercado d’agente buscar a fruta do facheiro. Dava muito e é muito gostosa! Eu ia com uma vara comprida e uma lata pra botar dentro. Umas fruta de facheiro assim grande, sequinha, enfiava a vara, punha na lata e vinha-se embora com ela cheia. - completou Geraldo.

Imponentes em seus até 15 metros de altura, os facheiros crescem em um tronco único e se ramificam em grandes e múltiplas hastes verdes de tonalidade escura que ultrapassam as mais altas árvores da mata, chamando a atenção de quem quer que passe. Em tempo de frutificação encontra- se fácil a fruta pela mata e nas beiradas de estrada.

Se os facheiros estão por todos os cantos e em tempos de frutificação produzem em grande quantidade, durante a seca apenas figuram na paisagem, resistindo, aguardando pela chuva. Assim, digo que se os recursos naturais são finitos, durante a seca muitos podem realmente desaparecer e por isso são cuidadosamente gerenciados pelos habitantes. Recurso mais valioso dentre todos, o acesso à água, como já afirmei, não é vetado a ninguém, o que não significa que não haja controle. Quando faltou água do dessalinizador, cada família buscou uma lata na cisterna que ainda tinha para compartilhar, com o cuidado de não faltar nem para a família proprietária da cisterna nem para as outras casas. Enfim, dos recursos disponíveis no território do Bravo, os que correm risco de, em suas palavras, “acabar” são controlados, mas não negados.

12 Dizem que é abusado ou abusada aquilo que pode gerar enjoo ou mal-estar.

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Assim se entende também a relação tensa que se constrói com os caçadores. Estes geralmente andam em grupos, com motos, uma caminhonete de apoio, cães e armas. A presença deles é percebida durante algumas madrugadas, mas, é impossível para os moradores locais controlarem o acesso à mata de suas propriedades e o município conta com poucos policiais, praticamente fixos na área urbana, sem a possibilidade de percorrerem as incontáveis estradas vicinais que cortam a caatinga. Se a caça já foi no passado uma forma de sobrevivência no abandono da seca, hoje é condenada pela população dos sítios. Os caçadores são mal vistos por provocarem o desaparecimento de espécies animais e pela invasão, ignorando propriedades particulares e as áreas de proteção dos lajedos. Muitos afirmam que o ressecamento de todas as fontes de água e a falta de alimento já haviam afastado muitos animais durante a seca e os caçadores matavam os que ainda restavam.

Durante o dia é possível avistar os rastros deixados por eles pelas pequenas trilhas abertas na caatinga: rastros de pneus de moto e de carro, pegadas de cães e marcas de sapatos. O olhar atento daqueles que vivem ali e desde crianças desbravam essas matas, percebe facilmente durante o dia os sinais deixados pela presença de caçadores em noites anteriores. Mas quando se vê os resquícios de sua passagem no dia seguinte, já é tarde, e quando se percebe seu movimento pela noite, não há o que fazer: são muitos, andam armados e acompanhados de cães.

Em noite do mês de janeiro de 2017, próximo da meia-noite, quando voltávamos de Boa Vista em cerca de cinco ou seis motos, duas se desgarraram do grupo, que ficou cerca um quilômetro para trás. No grupo da frente, desaceleramos a moto para que os outros nos alcançassem. Eu na garupa, sem precisar ter atenção na estrada de terra noturna, olhava para a beira de mata quando cruzamos lentos, entre 20 e 30km/h, por um grupo que na entrada da mata se preparava para caçar. Estavam em cerca de dez pessoas, com três cães que pude contar e suas motos, não avistei nenhum carro, Douglas seguiu sem perceber o que era, um deles, seguiu a moto com os olhos enquanto segurava uma arma de cano longo apontada para baixo. A arma não era para nós, mas para a caça. De toda forma, voltar e impedi-los não era uma opção.

Volto à afirmação de que nada lhe é negado, exceto o uso predatório. Nas proximidades do Bravo, entre Cabaceiras e Boa Vista, por cada sítio, fazenda e vilarejo que se passe, praticamente todos se conhecem. Assim, há a certeza de que esses caçadores chegam de outras cidades,

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possivelmente Campina Grande dentre elas. Isso implica em violações: pessoas que vêm de fora, entram nas matas de propriedade alheia e “caçam os animais daqui”, e dizem “animais daqui”, pois, não há sentido de propriedade sobre eles, mas convivência com os animais que também são do lugar (convivência que muitas vezes é conflituosa, como no caso de cobras, por exemplo).

Isso não significa que já não tenha sido comum a prática da caça no Bravo e outros povoados do Cariri. A caça já foi utilizada por mais de século pelos mais velhos e seus ascendentes como uma forma de se obter algo para comer durante as secas. A prática, de toda forma, não era corriqueira e se restringia aos momentos de grave seca e devido ao abandono da população, que só tinha acesso a algum tipo de auxílio do Estado por intermédio de qualquer rico fazendeiro que os indicasse para tal, como mostra uma vasta literatura sobre política no semiárido nordestino (FURTADO, 1998; PALMEIRA, 2006; LEAL, 2012; BARBOSA, 2012). Neste contexto político e em tempos em que se cozinhava xiquexique, ovos de rolinha e cuscuz de macambira para não deixar a família com fome, um preá ou um peba assados representavam banquetes13.

Enfim, o entrelaçamento de vidas na relação com a caatinga, sua flora e fauna, assim como as relações estabelecidas com os animais e o roçado do sítio são marcas distintivas da vida no semiárido, pois apresentam características singulares em suas variações. Assim podemos afirmar sobre as formas de viver tais relações que essas variam de acordo com a sazonalidade (seca, seca- verde, inverno) ou a disponibilidade de água armazenada. Se um dia caçaram e comeram daquilo que ainda sobrevivia na caatinga durante a seca, com chuvas plantam seu próprio roçado e comem os frutos da mata. Se durante as secas é preciso dedicar aos animais todo seu tempo para evitar que fiquem sem ter do que comer, os sitiantes do Cariri se tornam prioritariamente agricultores em tempos de inverno, ainda podendo revezar as duas atividades, independente da estação, caso haja água armazenada para irrigação. Enfim, as relações neste emaranhamento entre humanos e não- humanos, plantas, roçados, lajedos e animais da criação e da mata, como venho afirmando, é toda alterada conforme a disponibilidade de água da chuva ou armazenada em cada sítio que possibilite o plantio e o abastecimento de todos.

13 Como o leitor perceberá mais à frente, com acesso a trabalho, aposentadorias e benefícios sociais, a base alimentar no semiárido brasileiro mudou muito neste novo século com o acesso a produtos de mercado.

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Capítulo 5. A rotina de trabalho e as percepções sobre o fluxo da vida durante a seca

Como venho argumentando, toda organização da vida se altera conforme a disponibilidade de água e principalmente com as variações entre a seca e o inverno. Neste sentido, no presente capítulo trato da rotina de trabalho nos sítios e para fora deles, assim como, de suas percepções sobre o trabalho e a manutenção da vida durante tais períodos. Foco a descrição nas formas cotidianas de manutenção da economia da casa e do sítio, na rotina de trabalho das mulheres e dos homens entre a seca e as chuvas extemporâneas de agosto de 2017, a “seca-verde”.

Inicio com uma conversa ocorrida em janeiro de 2017, a primeira de minhas entrevistas no Bravo. Nela estão contidas percepções sobre as dificuldades para manutenção da vida naquela época e em suas memórias. Sentados sob a sombra de um pé de algaroba no centro do vilarejo, Dedé Ricardo, um dos mais antigos habitantes do Bravo, e o amigo Danda narravam histórias e buscavam explicar a vida durante as secas.

_ Seca grande igual essa aqui não teve não, já vai pra seis anos. Mas já teve seca grande que não tinha pra comê. Noutras secas que teve pra trás o povo comia xiquexique assado, tirava aquele miolo do meio do xiquexique, assava e comia, fazia o cuscuz de macambira com aquela massinha de dentro, tirava ela e moía, meus pais chegaram a comer até couro de bode assado. - dizia Dedé.

_ Aqui tem seca sempre. A gente já passou outros tempo aqui ruim de inverno. Período de estiagem longo. Mas é uma seca que existia água, cê ia nas cacimba, nos tanque, tinha água em açude, naquele açude grande do Pocinho (assentamento rural há cerca de 15km) tinha água. Agora até cisterna já secou. Agora tem água só no açude de Boqueirão e ele mesmo tá com capacidade só de 3 ou 4%. O Rio Paraíba tá seco, o Taperoá tá seco, tudo seco. Até nas cacimba que cava fundo no rio não tá encontrando água, tá tudo secando. - disse Danda.

_ As cisternas estão todas secas? - Perguntei

_ Todas não, tem gente que ainda tem e ajuda se precisar - prosseguiu Danda - Mas aqui, graças a Deus, tem esse dessalinizador. Na casa de mamãe, atrás aqui da serra, quem bota água na cisterna é o exército. De tempo em tempo bota água e vai economizando pra dar. Agora, com

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dessalinizador a água não é ruim não e tem três dia na semana que você pode ir aí e pegar água. A água boa vai pra casa e o que sobra, aquela água grossa (o resíduo salgado do equipamento) é pros bicho.

_ E a água é boa pra beber?

_ É boa, melhor que a que tá vindo de Boqueirão. Mas também não dá pra pensar se é boa não, meu velho, porque se a gente for pensar e levar pra analisar pra poder beber é tempo que a gente morre de sede (risos). Tem que beber aquela que tem. - respondeu Danda.

_ Mas, no que se usa água de Boqueirão e da Cisterna?

_ A cisterna é só pra beber. A de Boqueirão é pra uso da casa, lavar roupa, lavar as caçarola. Pra cozinhar, a maior parte do povo não tá cozinhando com essa água não. Tá vindo uma água do fundo do açude que não é boa pra cozinhar não. Usa a cisterna e nois aqui, graças a Deus, temo o dessalinizador. A água de Boqueirão tá muito pesada. Você vai perceber, você vai passar aqui um tempo, de três dias que você tomar banho e já dá uma coceira no corpo todinho. - concluiu Danda.

A conversa de cerca de uma hora com Dedé Ricardo e Danda foi minha primeira entrevista no Bravo, no início de janeiro de 2017. O mesmo foi repetido em cada uma das casas do Bravo e ao longo dessas conversas duas percepções eram de consenso: estavam vivendo a mais longa seca de suas vidas e diziam até mesmo desconhecer outra que tivesse durado por mais tempo. Assim como, afirmavam que há hoje, por mais difícil que seja, novas possibilidades de convívio com a seca que não haviam em outros tempos. As últimas décadas são vistas como de mudanças que possibilitaram uma vida melhor para o habitante do Cariri, dentre as quais se destacam algumas novidades deste período: o direito à aposentadoria com salário mínimo ao trabalhador rural garantido por lei apenas em 1991 (Lei 8.213/91) e a valorização deste salário nos últimos anos que gera renda mínima para muitas famílias, a construção do poço público com dessalinizador e de cisternas para todas as casas, a instalação da rede de energia elétrica e da rede de abastecimento público de água, por fim, com a renda controlada pelas mães proveniente do Programa Bolsa Família, leite, material escolar, medicamentos básicos e mesmo a conta de água podem ser pagos com essa parcela do orçamento familiar, por conseguinte, em contrapartida obrigatória do Programa, nenhuma criança do Bravo

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está fora da escola. Quanto ao salário mínimo, segundo dados do IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, este mais que dobrou seu valor real entre janeiro de 2000 e janeiro de 201714.

Tais mudanças criaram alternativas para a vida durante as secas e fizeram com que para os últimos sete anos de estiagem não houvesse registros em suas narrativas de fome ou migração por fuga das secas, algo que por anos se tornou marca da vida no semiárido brasileiro, narrada em obras clássicas de nossa literatura. Os grandes ciclos migratórios cessaram ao longo destas décadas, já não encontramos o Nordeste de famílias retirantes. As últimas gerações têm deixado o Bravo não em decorrência das secas, mas para estudar e trabalhar em Boa Vista, Campina Grande ou João Pessoa. Da mesma forma como, aqueles que saem, mantêm-se próximos e é impensável as migrações de longa distância para o Sul do Brasil. Muitos que saíram em busca de estudos, adquiriram boa formação e empregos no serviço público ou em empresas da Paraíba. Filhos do Bravo já se tornaram médicos e professores universitários. Como o exemplo de Djair, que, com formação universitária e muita experiência na região, é convidado por pesquisadores de várias áreas que realizam trabalhos acadêmicos nos contextos dos lajedos. Dito de outra forma, para gerações anteriores a esse século atual, enquanto a busca por água e alimento, ou seja, pela sobrevivência humana e do animal da criação, foi preocupação diária e primordial para as famílias, os estudos não tiveram espaço para se desenvolver. Hoje, muitos outros jovens têm a oportunidade de se ocupar dos estudos sem se envolverem cotidianamente com o trabalho no sítio.

Devo lembrar ainda que a manutenção dos animais é tão importante para eles como a própria alimentação, há uma relação ética mais que econômica envolvida entre humanos e seus animais. Assim como, apresentam profunda tristeza ao falarem de outros sítios por onde se vê animais sofrendo fracos por falta do que comer. Por isso, durante as secas toda rotina das famílias se volta para as atividades de sustento da criação e nesse período a ajuda dos jovens é muito valiosa, mesmo que seja apenas para cortar palmas, tarefa para a qual não levam mais que uma hora em média para concluir. Vale salientar, como mostraram Ellen e Klass Woortmann (1997) sobre o contexto do semiárido sergipano e encontramos semelhança neste caso com o Bravo, que acompanhar o trabalho dos pais no sítio faz parte do processo de formação dos jovens nesses contextos, atividades através das quais são passados os saberes e as habilidades necessários para

14 Dados disponíveis em: http://www.ipeadata.gov.br/ExibeSerie.aspx?serid=37667&module=M Acesso em 02 de fevereiro de 2019.

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lidar com aquele ambiente, seja no ambiente construído da lavoura, na mata ou no cuidado com os animais da criação. De toda forma, conforme são encontradas e implementadas alternativas para o convívio com as secas recorrentes do semiárido, novas perspectivas surgem também para seus habitantes, como talvez deixar o trabalho no sítio e se dedicar aos estudos, buscar novos caminhos.

Da mesma forma, se em outros tempos já se alimentaram com macambiras, cactos, rolinhas, etc. Ou viam como sendo um banquete um simples cuscuz com leite (sinal de que houve colheita do milho e a vaca estava dando leite), hoje as perspectivas para alimentação cotidiana das famílias mudaram bastante. Alguns estudos relacionados à área da nutrição afirmam que a mudança na base alimentar proporcionada pelo acesso ao mercado de consumo teria inserido açucares e carboidratos em excesso (PIRIS 2013; COSTA, 2013). Argumento, olhando por outra perspectiva, que em um espaço relativamente curto de tempo tais pessoas se viram fora da luta contra a miséria e a fome e os excessos de produtos industrializados são característicos da sociedade urbana industrial e não um processo que esteja ocorrendo apenas com essas famílias, elas apenas passaram a ter acesso a alguns produtos antes restritos a outras classes sociais. Como as crianças, por exemplo, que hoje tem acesso aos mesmos doces, confeitos, biscoitos, achocolatados, dentre outros produtos, que crianças de outras regiões já consomem há muito tempo.

A água para cozinhar agora fica ao lado de casa, na cisterna, e aqueles que contam com um salário ou benefício previdenciário têm garantidos o arroz, feijão, macarrão, cuscuz e queijo de cada dia. A carne está presente na mesa, mas não é o elemento mais importante de suas refeições. A carne de bode podemos dizer que nem mesmo é muito apreciada por todos no Bravo e dificilmente será vista sobre a mesa em qualquer uma das casas. Se o bode, um dos distintivos da culinária regional, não está presente na mesa do dia-a-dia, o que se verifica são duas configurações diferentes que variam de acordo com as secas e as chuvas, mas, mantém, em geral, a mesma dieta: havendo disponibilidade de água para o plantio, procura-se cultivar além da ração para os animais, feijão, milho, jerimum, fava, macaxeira, ou seja, aquilo que de principal se encontra na dieta da família. O que se amealha com a redução dos gastos da casa, principalmente quanto aos gastos com ração, pode ser investido na melhoria da qualidade de vida da família.

No entanto, durante os longos períodos de seca os gastos com a manutenção da casa e da ração animal retiram qualquer possibilidade de investimento. O dinheiro daqueles que contam com

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um salário de benefícios previdenciários ou de um emprego assalariado deve ter controle rígido para que não lhes falte nada em casa. A manutenção do sítio no que tange aos animais fica a cargo dos homens, são eles que gerenciam os gastos com máquinas, equipamentos e ração, mas, a tarefa de organizar a economia doméstica é centrada nas mulheres, são elas que realizam impressionantes malabarismos com o dinheiro da família para que a comida seja assegurada e esteja na mesa15.

Para tudo que não podem produzir no sítio, devem de alguma forma dirigir-se ao mercado. Isso pode ser feito com algumas variações de logística, dependendo da família. Uma vez ao mês, algumas mulheres do Bravo seguem juntas para um mercado de atacado em Campina Grande com o objetivo de fazer uma compra para o mês, chamada de feira, assim garantem melhores preços que em Boa Vista. Também são utilizados os supermercados, padarias e açougues de Boa Vista, mas, para quem pôde fazer a feira, recorrem a estes apenas para aquilo que não foi estocado no início do mês. A padaria mesmo é muito pouco utilizada, o cuscuz, leite, queijo e, por vezes frutas, biscoitos, bolo ou tapioca, são muito mais comuns nos intervalos das refeições do que o pão. Vale dizer que em tempos de seca e da queima os intervalos são poucos e curtos. Givaldo durante a seca, para citar uma rotina que acompanhei diariamente, começa a alimentar os animais com o pai e os irmãos, em trabalhos divididos, próximo de quatro a quatro e meia da manhã e segue para a queima da macambira na Caatinga. Isso significa que próximo de sete horas ou pouco mais fará uma pausa de 10 a 15 minutos para se hidratar e fazer um lanche. Nesse ínterim, Ilda deu de comer para as galinhas e cães, começou a arrumar a casa e utilizou as sobras de água da limpeza para aguar algumas árvores de que cuida, entre elas um bonito pé de acerola. Quando Givaldo retorna da mata após a queima, coberto por fuligem, não há muito tempo para se limpar, faz um lanche que Ilda preparou e segue para as tarefas seguintes. Momento em que Douglas também faz seu café da manhã e segue com o pai para cortar palmas e Ilda segue sua rotina que ainda passa pelo almoço, a janta e outros intervalos para lanche ou apenas um chá ou café ao longo do dia.

15 Pesquisas apontam para uma mudança na autonomia da mulher no gerenciamento da economia doméstica a partir do Programa Bolsa Família (LAVINAS e VEIGA, 2012). Mariano e Carloto (2009: 33) afirmam que programas de transferência de renda como este têm as mulheres “como beneficiárias nominais da transferência, na perspectiva de que (...) as mulheres promoveriam um uso mais eficiente e efetivo de um recurso relativamente pequeno alocado à família”. Assim, segundo as autoras, as mulheres estariam “agora ‘empoderadas’ na função de legitimas provedoras da eficiência no uso dos recursos escassos” (Idem).

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A alimentação no Bravo, como em toda parte do Cariri que pude visitar, está alicerçada sobre algumas bases: cuscuz, leite, queijo, macaxeira e inhame nordestino, como também os grãos, como arroz, feijão e milho. Deste princípio, outras possibilidades são acrescentadas de acordo com a preferência da família, disponibilidade no sítio ou condições de adquirir no mercado. No almoço, via de regra, é servido arroz, feijão, macarrão, salada, e uma carne que costuma ser carne de sol ou galinha de capoeira e, se não há carne, servem queijo ou ovos fritos. Essa base varia de acordo com a possibilidade de acesso a outros alimentos, algo que é definido, como todo o mais neste contexto climático, pela disponibilidade ou não de água para o plantio, algo que venho argumentando ao longo deste trabalho. Do feijão em tempo de chuva destaca-se o feijão-macaça, ou feijão-macáçar, conhecido ainda como feijão-de-corda. Em meio aos roçados de palmas e mesmo entre a caatinga se encontra grande quantidade de maxixe, com o qual preparam a maxixada, receita tradicional do semiárido nordestino. Assim como, leguminosas e tubérculos passam também a estar disponíveis em maior quantidade e variedade na mesa do caririzeiro.

_ Quando chovia tinha muito feijão, tinha muito milho, tinha melancia, tinha jerimum, tinha o leite, tinha o queijo, tinha de tudo. A vida era difícil, mas tinha de tudo no roçado da gente - disse Maria ainda durante a seca, quando já eram completos seis anos sem inverno, algo jamais vivenciado por eles em gerações. O que pode explicar o sentimento externado de que antes chovia, agora já não chove mais.

Mas, enquanto o inverno não chega, com o dinheiro disponível, as mulheres buscam adquirir o necessário para uma alimentação equilibrada nos supermercados e com vendedores ambulantes que passam com frequência em carros e motos. Algumas plantam seu próprio coentro, tempero que é muito utilizado na culinária nordestina e não é diferente no Bravo, está presente em praticamente tudo que se prepara para as refeições. Mesmo que cultivado num canteiro pequeno no fundo de casa, este exige muito cuidado com a irrigação e o excesso de sol, há quem o mantenha coberto com uma tela para proteção do sol e dos pássaros. Se não é possível cultivar em casa, a solução é comprar e vendedores passam semanalmente, ou podem ainda apelar à uma vizinha que ainda tenha, de toda forma, o coentro é indispensável na comida do Bravo e de todo Nordeste brasileiro. O cuidado com as galinhas de capoeira também fica a cargo da mulher, que muitas vezes vende seus ovos, o animal vivo ou já morto, depenado e limpo.

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O cuscuz está presente ao longo do dia e é presença obrigatória na hora do jantar. É, sem sombra de dúvidas, o eixo principal da alimentação no Bravo e por todo Cariri que caminhei. Há momentos em que o mesmo é servido até quatro vezes durante um dia: no desjejum, nos lanches de intervalos do dia, no almoço e ao jantar. Para fazer o cuscuz, os flocos de milho (que hoje em dia são adquiridos no mercado) são sovados com as mãos e goles de água para umedecer e algum tempo depois é cozido no vapor da cuscuzeira. Assim, é comum ao longo do dia ver a mulher da casa preparando o farelo para cozer ou alguém se servindo de cuscuz com leite, enquanto à noite, este está presente invariavelmente nas mesas. Na casa de Laura a vemos ao menos duas vezes ao dia sentada em uma cadeira no terraço com uma bacia no colo equilibrada com o auxílio da mão esquerda enquanto a direita mistura o farelo com um pouco de água, que vai acrescentando aos poucos.

Algumas ocasiões especiais pedem uma comida especial, assim o é quando se recebe uma visita que há muito não aparece, ou em ocasião de datas festivas como Natal ou Ano Novo. Assim que cheguei à Campina Grande em 2017, Djair e Jacilene me receberam com uma grande refeição com direito a toda sorte de comidas típicas preparadas por ela. Também, ao longo de minha estada com sua família, comia com eles a mesma refeição costumeira de cada dia, mas por muitas vezes Rejane fazia questão de preparar algo que eu nunca havia provado: fava nordestina, cabeça de galo (um tipo de escaldado com muitos ovos), Ilda matava, limpava, cortava e cozinhava galinha de capoeira, fizeram ainda para que eu provasse o mungunzá, o bolo de macaxeira, pirão de ovos, maxixada e tantas outras coisas.

A mesa da ceia de virada de ano é uma referência desses momentos em que se deixa a rotina alimentar por algo especial. Em 31 de dezembro, todos acordaram com o sol, como todos os dias se repete, deram de comer aos animais (ainda vigorava a seca), cuidaram da casa, cortaram palmas e procuraram adiantar o máximo possível de todo trabalho para que no dia seguinte tivessem a chance de um almoço mais tranquilo com a família. Conseguiram terminar toda essa parte das tarefas diárias ainda antes do almoço, faltando apenas dar de comer para os bichos no período da tarde. Assim, antes de almoçarmos já estavam livres para começarmos a comemoração do Ano Novo com cerveja e Cachaça Matuta misturada com Coca. As mulheres da família se juntaram na cozinha de uma das casas e preparam a comida com abundância de variedade, do que me recordo

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haviam: duas lasanhas diferentes, escondidinho de macaxeira e de batata, arroz, galinha assada, caldo de galinha, e muito mais. O cotidiano do caririzeiro não é de muitas regalias, mas, trabalham seja na seca ou no inverno preocupados com o que certamente mais lhes importa: a alimentação, tanto da família quanto de sua criação.

A partir desta descrição sobre a alimentação é de se pensar como eles adquirem o necessário para essas refeições do cotidiano, como também para aquelas refeições especiais dos dias festivos. Se com chuva plantam o máximo possível, mesmo que não venha a suprir toda necessidade, sem ela tudo custa dinheiro. Assim como, mesmo que se plante, entre os custos para manutenção da vida ainda devem ser considerados dispêndios para além da alimentação: contas fixas mensais como água e energia elétrica, créditos para o telefone rural (funciona apenas para ligações), roupas, calçados, remédios, material para limpeza doméstica e higiene pessoal, dentre tantos outros. É preciso considerar ainda as casas com crianças ou adolescentes, as quais têm ainda despesas extras. Bem como, o sítio também gera suas despesas para além da ração animal, há ferramentas, máquinas, carroças, motos que precisam de combustível e manutenção. Como manter tudo isso?

No caso daquelas famílias que completam a renda familiar com a produção de queijos, os homens cuidam das vacas, e junto das mulheres cuidam da fabricação dos queijos que serão vendidos em Boa Vista ou Campina Grande. Este é o caso de famílias como as de Luizinho e Lúcia, Ermínio e Nenê ou Bae e Lia, já Fernando trabalha e produz seus queijos sozinho. São queijos tipo coalho quadrados ou retangulares com cerca de 20X20 centímetros, sempre a base de leite de vaca, pois, não se utiliza leite de cabras ou ovelhas no Bravo. A venda pode ser muitas vezes realizada também por algum filho que se desloca para a rua para fazer as entregas. A custa de grande dispêndio com a ração e do trabalho na queima de cactos e macambiras para completar a alimentação do gado, garante-se a continuidade da produção de leite e queijo durante a seca. Quanto aos valores, o leite possui pouco valor agregado e é vendido a uma média de R$2,50 o litro no varejo para os sítios vizinhos (valor praticado entre 2017 e 2018). Já os queijos tipo coalho tem bom mercado também na área urbana e custam uma média de vinte reais o quilo, a variar pelo tamanho costumam custar entre 15 e 25 reais cada e são um importante complemento para a renda e o sustento dessas famílias.

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As principais fontes de renda fixa da população do Bravo se dividem em três: produção de leite e queijos, trabalho assalariado (sobretudo no serviço público, na granja e na mineração de bentonita) e os benefícios previdenciários, já a Bolsa Família é um importante complemento para famílias com filhos na escola. Os gastos com a manutenção do gado no semiárido, devido aos longos e recorrentes períodos de seca e o pequeno mercado regional para a venda destes queijos faz de sua produção pouco rentável, com chances de prejuízos se as secas se prolongarem muito. Não é possível viver apenas do queijo, é preciso diversificar as fontes de renda e contar sempre com a criação dos resistentes caprinos. Assim, conforme são abertas novas vagas de trabalho em Boa Vista, como no caso do comércio e serviço público, principais empregadores da cidade, mas, também nas granjas e na mineração, aqueles que conseguem a oportunidade complementam a renda doméstica com a média de um salário mínimo pago por essas empresas para os cargos operacionais, com salários pouco maiores, conforme o cargo. A média salarial na cidade é de apenas 1,8 mil reais e o setor de “Extração de Minerais Não Metálicos” tem média de apenas 718 reais. Segundo o Cadastro Central de Empresas (IBGE, 2016) o setor emprega 45 pessoas de um total de 1.048 postos de trabalho no município. Por outro lado, o setor é extremamente importante para a arrecadação de impostos do município, sendo a Paraíba o maior extrator brasileiro deste minério e Boa Vista sua maior referência (FARIAS, 2003). Quanto à empregabilidade, o setor público é o maior empregador de Boa Vista, representando 65,8% do total e no Bravo emprega sete pessoas, sendo cinco funcionários da escola e duas agentes de saúde da família. (IBGE, 2016)

Já os benefícios previdenciários, em especial as aposentadorias, garantem a sobrevivência e são a única fonte de renda de muitas casas não só no Bravo, mas por todo semiárido. Em 2017 eram 599 benefícios pagos mensalmente pelo Instituto Nacional de Seguridade Social - INSS na cidade de Boa Vista, totalizando R$6.896.520 pagos no município naquele ano, incluindo aposentadorias, pensões e auxílios, o que dá uma média mensal de R$965,31 por beneficiário (INSS, 2017). Ter uma aposentadoria ou qualquer outro benefício da Previdência Social em casa, representa uma renda fixa e a garantia mínima de recursos para escapar da fome durante a seca, problema que por anos assolou o Nordeste brasileiro. Em dias de pagamento dos benefícios, o comércio urbano ganha incremento significativo e a multiplicação do movimento é nítida. Sendo assim, tais benefícios garantem renda familiar e promovem o consumo, favorecendo o comércio e a empregabilidade. Como narram Geraldo e Maria, em referência clara às mudanças na vida no semiárido após as regras

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estipuladas pela Lei Federal 8.213/91 para a aposentadoria rural, que universalizou o benefício e igualou o piso ao valor do salário mínimo.

_ Com a aposentadoria dos velho, acabou-se fome. Te digo que é de uns trinta anos pra cá, acabou-se fome. Ainda tem por aí, mas aqui na nossa região, graças a Deus, não tem mais não.

_ Quantas vez eu ví, meu Deus, antigamente as mulher perdia o marido, morria cedo, a mulher ficava sozinha pra criar aqueles filho, só Jesus sabe como, né. Como a avó de Geraldo, quando o avô de Geraldo morreu, ela ficou com sete filho grávida do pai de Geraldo. Ela deu de comer pros filho sem ter como dar. No fim migrou tudinho - continuou Maria.

Sendo assim, ter algum beneficiário da previdência em casa se torna salvaguarda do sustento familiar principalmente em tempos de seca, evita a fome e a fuga para outras regiões. Bem como, aquele que possui esta fonte de renda socorre o filho ou irmão que não a tenha, evitando uma crise maior. Ainda mais durante o período em que não há mais pastos pelos cercados, momento em que essa fonte de receita oriunda da previdência social não só assegura a manutenção da casa como também a aquisição de ração para os animais durante a estiagem. Neste período e sempre que for necessário o aposentado divide seu benefício não apenas para ajudar a casa de um filho que esteja precisando, mas, tanto quanto, para alimentar e evitar a morte dos animais de sua criação. Como certo dia durante a seca me disse Djair sobre a relação de Bati com seus os animais: “_não é vovô que vive dos bichos, são os bichos que vivem de vovô”. Na sequência dos dias estive ainda na sala da casa Bati enquanto Diego buscava convencê-lo de que o melhor para aquele ano seria vender parte das ovelhas do sítio, pois estas geram muitos gastos e ele não queria mais ver o avô “se matando de trabalhar”. Durante a conversa, Diego virava para mim e dizia “você viu, não viu Mateus, o sofrimento de vovô no ano passado? ” Neste período de sofrimento a que Diego se referia, a queima ainda era trabalho diário e os poucos intervalos de descanso eram apenas para comer e dormir e não restava mais.

Bati ouvia o neto com a atenção e a calma que lhe são características, mas já tinha certo para si o que teria de fazer, seus planos para os animais e o trabalho no sítio já estavam traçados em sua mente e não passaria daquele ano para serem colocados em prática: venderiam o que pudessem dos animais e tentariam encontrar água no subsolo do sítio da família. Falarei mais à frente e com mais detalhes sobre a execução desse projeto que Bati carregava já há muitos anos, mas é

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fundamental mencioná-lo agora para se entender melhor a personalidade e a relação com o trabalho, o ambiente e os animais deste velho caririzeiro. Bati, nascido em 1932, é um homem de ar absolutamente sereno, a personificação das qualidades da calma e da resiliência. Branco, alvo, de olhos claros, mãos enormes e calejadas por enxada, foice, facão, garfo e chibanca. Em meio a um padrão de comunicação exaltada comum no semiárido, Bati fala baixo e fala apenas o necessário, muitas vezes ele apenas ouve, não grita, não briga, não arenga, como se diz no vocabulário do Cariri. Em alguns momentos, enquanto os gritos tomam conta de uma discussão em família, Bati somente observa com atenção, o que sempre me faz indagar internamente: o que estará ele pensando sobre tudo aquilo? Minutos depois, sem se abalar com nada, ele faz uma pausa para descansar o corpo e volta ao trabalho, o mesmo de todos os dias: derrubar palmas, queimar cactos, moer na forrageira, alimentar e amamentar cabras, ovelhas, borreguinhos, adubar, limpar, cultivar o roçado, tudo conforme as condições do clima permitirem naquele momento. Nunca o ouvi reclamar seja da vida, da rotina ou das condições do Cariri, porém, em um desses dias de queima, já com seis anos sem inverno, ao chegar em casa coberto de fuligem, sentou-se nitidamente cansado em um dos tamboretes, colocou o chapéu sobre o joelho e, sem que ele visse que eu estava por perto guardando a bicicleta atrás da casa, o ouvi dizer em tom baixo, como que para dentro: _ ô pai, será que não vai chover nunca mais aqui? A gente também é filho de Deus.

Essa foi a única vez que ouvi dele um lamento, visto que chuva ou seca independe completamente de qualquer intencionalidade. Neste sentido, o caririzeiro trabalha construindo alternativas, abrindo caminhos sobre as possibilidades que por sua vez já estão abertas pelas chuvas ou limitadas pela seca. Perfurar o poço, como no caso de Geraldo, Bati ou Ermínio, instalar bomba elétrica e um sistema de irrigação é uma tentativa vista como possível após a chegada de energia elétrica, uma forma de controlar o fluxo da água, o tempo de seu roçado e a alimentação da família e dos animais da criação, ou seja, controlar o fluxo da vida, poder fazer planos sem depender completamente apenas do tempo incerto das chuvas de inverno. Mas, essa é apenas uma alternativa, que aliás custa caro para a realidade do Cariri e pode encontrar final triste caso não haja água no fundo da terra do local escolhido para ser perfurado e o investimento seja perdido. Por isso, sem controle sobre os fluxos da água, o que marca a vida do sitiante caririzeiro é sua resiliência e constante busca criativa por alternativas a cada circunstância com que se depara. Assim, digo que se há verdade na afirmação de Clarisse Lispector no seu clássico literário “A Hora da Estrela” (1978:

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79) de que “o sertanejo é, antes de tudo, um paciente”, é ele um paciente decerto inquieto, não se satisfaz com as condições, sabe da existência de imponderáveis e trabalha dia após dia aguardando a chuva, mas, não sem criar todos os dias as condições de sua sobrevivência e de seu sítio. Age sobre aquilo que está no seu controle e apresenta paciência e resiliência quanto àquilo que percebe não estar16.

_ Tá com sete anos (sem chuva) e tamo resistindo aqui, né? Tu vê que no Sul quando passa três mês de seca tá tudo se acabando. Aqui não, sete anos e os caririzeiro véio segurando ainda - disse Geraldo sentado em seu tamborete enquanto cortava palmas.

Para isso, independente das chuvas e estiagens, o trabalho tem início no Bravo antes mesmo de o sol aparecer. Com o dia ainda um pouco escuro, o céu ainda clareando, isso perto de quatro horas da manhã, muitos dos homens e mulheres já estão iniciando sua rotina. O horário de dedicação ao trabalho segue o horário do sol seja na seca ou durante o inverno, o que se alterna entre essas estações é o tipo de trabalho necessário para a convivência com o semiárido, o que muda são as soluções encontradas para a vida em contextos específicos deste ambiente, muda o trabalho e sua organização, mudam os materiais envolvidos, os instrumentos utilizados ou a forma de utilizá-los, também a dificuldade e mesmo insalubridade das atividades executadas, mas não o fato de que se deve acordar cedo para trabalhar.

Da varanda da casa da associação observo em meus momentos de descanso aqueles que passam, daquele ponto privilegiado vejo praticamente todo vilarejo, desde ao redor da igreja, subindo em direção ao chafariz e, à frente, do outro lado do vilarejo, a casa de Laura e Bati. É possível dali acompanhar a movimentação do dia de trabalho no Bravo, o vai e vem de seus habitantes humanos e não humanos. Por mais de uma noite perdi o sono pela madrugada e escolhi me sentar no terraço e ver o dia começar. A primeira luz a se acender é na casa de Bati, logo vejo Val e seu pai saírem no terreiro e se arrumarem para o trabalho, enquanto Laura prepara o café e o chá. Sem delongas, fazem o desjejum e Bati segue para alimentar o bichos. Não vejo de casa, mas a essa hora Geraldo e sua esposa Maria já estão de pé e também dando de comer pros bichos, tive oportunidade

16 Vale ainda salientar que, como demonstrou Frederico Castro Neves (2013: 73), os “códigos paternalistas de passividade e paciência” foram transgredidos por diversas vezes ao longo da história, desde a seca de 1877-78, por protestos contra a situação de miséria e fome vivenciada pela população rural do semiárido.

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de ouvir mais de uma vez Maria dizer: _ Se chegar em casa cinco da manhã e eu já não tiver tratado dos meus bicho e limpado meu terrero, pode saber que tô doente. Ao lado de casa, vejo Givaldo saindo, de moto se tiver que queimar macambira, a pé ou na bicicleta em tempos de maior sorte em que esse trabalho já não seja necessário. Genésio tira leite das vacas bem cedo, antes de se arrumar e ir para o trabalho na granja, este leite é logo dividido entre as famílias e parte é destinado aos borregos. Trabalho esse que é logo em seguida feito por Givaldo, que coloca água nos cercados e serve o leite na mamadeira para alguns dos filhotes que não estão conseguindo se alimentar, sei que ele ainda vai repetir essa rotina algumas vezes ao longo do dia. Com isso já são próximo de cinco horas da manhã, o dia já está claro e o sol começa a aparecer. Ainda observando a partir de meu tamborete na varanda, até seis da manhã posso ver os trabalhadores saindo em suas motos em direção ao local de trabalho, na granja, na mineração, na rua, em fazendas. Enquanto isso, ovelhas, bodes, vacas, jumentos há muito já estão acordados e transitam pelo vilarejo procurando algo para pastar.

Caso estejamos em período de estiagem, próximo das seis horas a primeira parte do trabalho do dia já deve ter sido cumprida, a essa hora da manhã Givaldo já estará retornando com a moto após a queima da macambira, enquanto Gilmar vem ainda longe na carroça e o jumento trazendo o resultado do trabalho. Nas primeiras horas do dia, antes do Sol nascer, Gilmar segue para a mata montado na carroça enquanto Givaldo vai de moto e chega antes para iniciar o trabalho enquanto dura o deslocamento da carroça que irá buscar as macambiras já queimadas. Para isso, no dia anterior já devem ter derrubado e amontoado a macambira em tulhas de até dois metros de altura em clareiras espalhadas pela Caatinga dentro dos limites da propriedade da família. A cada dia, de segunda a sábado, nove tulhas são erguidas e queimadas, cálculo que garante o domingo de descanso, ao menos quanto a esse serviço mais pesado.

As macambiras são bromélias com hastes compridas e espinhosas que guardam sob o solo uma raiz que se espalha de maneira rizomática e forma forragens nas clareiras, próximo às árvores e nas fendas e junções das rochas dos lajedos, sendo esta última uma macambira de menor qualidade e utilizada apenas em último caso. Esse tubérculo guarda umidade e nutrientes para subsistir aos grandes períodos de seca, fato que faz dele um importantíssimo complemento no trato do animal da criação, como também já serviu de comida para humanos em épocas de seca

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prolongada e abandono do Estado, tempos em que este era um dos últimos recursos. Com a queima da macambira os espinhos se convertem em cinzas e esta já pode ser resfriadas em água, cortada com facão ou moída na forrageira. No caso da utilização para alimentação humana, fazia-se cuscuz a partir da macambira, cortavam a raiz queimada e retiravam seu miolo que era em seguida cozido no vapor d’água, tal como se faz com o farelo de milho no cuscuz tradicional. Hoje a macambira é exclusiva para alimentar a criação e tão somente em casos de necessidade absoluta dado a seca prolongada e consequente falta de pastos. Algo como identificaram Marianne Cohen e Ghislaine Duqué (2001: 146), que nos anos de 1990 viram que a prática da queima de macambiras havia se tornado como que uma escravidão para os jovens: “Cette pratique dévastatrice a contitué une véritable servitude pour les jeunes de la communaut”.

Dentro da mata, a fumaça não se dissipa e ganha um aspecto de neblina cinzenta. Sempre que segui Givaldo para o trabalho procurei acompanhar seus passos por onde caminhava enquanto ateava fogo nas nove tulhas uma a uma sem descuidar de nenhuma, para retornar a todas e cuidar com um rastelo para que a queima seja homogênea. Enquanto corre de um lado para o outro dentro da mata com suas ferramentas de trabalho sem poder parar, eu o acompanho já sem saber exatamente onde estamos, perdido pela semelhança da mata desfolhada da caatinga e o efeito da fumaça na paisagem. Os gravetos ressecados postos por entre a tulha logo queimam até restarem apenas fumaça e a macambira ainda fumegante no chão entre as cinzas.

Dito isso, afirmo o profundo conhecimento e habilidades que se destacam no ambiente de caatinga. Tanto no caminho de ida para a queima quanto durante a volta, quando Givaldo para em um ponto ou dois da mata que por todos os lados que se olhe ou escute parecem estar vazios, com a moto desligada passa a repetir bem alto um chamado: “Tchei! Tchei! Tchei! Tchei! Tchei”, repetidas vezes até que, em questão de segundos, começo a ouvir o berro de uma ovelha, logo são duas, e em seguida muitas outras aparecem de dentro da mata e vão até ele que joga um pouco de milho antes de seguimos de moto pelas trilhas.

É preciso conhecimento fino para caminhar e se localizar procurando macambira, derrubando e queimando, assim como procurando animais de criação que se desgarraram. Andei bastante com Givaldo pela mata e ele não só abriu cada uma dessas trilhas junto ao irmão e ao pai como conhece a área e identifica detalhes, que à primeira vista parecem imperceptíveis. Assim,

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percebe sinais de pessoas ou animais que tenham passado por ali e as plantas que se pode comer e são usadas para cura. Olhando ao redor das áreas por onde o seguia, todas as árvores pareciam iguais por estarem todas completamente desfolhadas, mas ele fácil, sem sair de onde estávamos, apontou e deu o nome de cada uma: _ Pereiro, Catingueira, Pinhão, Jurema, Marmeleiro…

Este trabalho é apenas o início do dia durante a seca no Bravo, há ainda muito o que fazer e por isso o trabalho é dividido entre Bati e os filhos. Enquanto Givaldo trabalha na queima, Gilmar segue uma hora sobre uma carroça puxada pelo jumento, e dependendo do local onde se está trabalhando naquele dia, ou seja, de onde foi possível encontrar macambira, esse deslocamento pode levar ainda mais tempo. Gilmar pega a estrada de terra e adentra a mata em uma trilha aberta por eles dias antes. Se o caminho estiver atravancado por algum galho é preciso sair e limpar a trilha para poderem prosseguir, algo que pode acontecer algumas vezes ao longo da viagem. O jumento que o acompanha é um trabalhador dedicado, vai lentamente por meio a Caatinga, sem pressa, mas mantém o passo sem parar. Com a carroça vazia, o caminho de ida pode ser um pouco mais rápido, enquanto na volta não adianta ter pressa, o jumento tem seu próprio tempo e faz um percurso tranquilo pela trilha e o restante da estrada até chegar em casa. Dalí é levado para um local no fundo do terreiro onde recebe água, comida e pode descansar, já que não voltará a trabalhar antes da parte da tarde, quando irá junto com Bati e Givaldo para a queima do xiquexique.

O xiquexique é um cacto bonito, rasteiro e uma das presenças marcantes da paisagem de caatinga, verde o tempo todo, com flores brancas e um fruto com polpa doce e rosada que aparecem em tempo de inverno. Forma-se como arbustos que se alastram horizontalmente em várias hastes. São cobertos por enormes espinhos que podem machucar seriamente e têm tamanhos que, por vezes, variavam entre sete e dez centímetros e é possível retirar alguns com as próprias mãos. Muitos destes, de tamanhos menores, até três centímetros, caem ao solo com uma base que deixa a parte pontiaguda voltada para os pés de quem passa.

Bati e Givaldo escolhem uma área com ao menos quatro amplos arbustos, onde são acrescidos galhos ressecados e outros xiquexiques encontrados ao redor até formar uma tulha de pouco mais de dois metros. Uma a uma ateiam fogo nas tulhas e enquanto queimam trabalham com um garfo comprido de duas pontas com o qual procuram manter todos galhos dentro do fogo. Bati segura a ferramenta com as duas mãos firmes, perfura o talo de cerca de quinze a vinte quilos,

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levanta acima de sua altura e coloca sobre a tulha em chamas. De longe, sempre há cinco metros em média de distância, pois, Bati de forma alguma deixava que eu me aproximasse, podia sentir a mistura entre a ardência do fogo e o calor insuportável do sol do período da tarde no cariri. Enquanto isso, o jumento espera na sombra com a carroça, pois, logo que restam apenas cinzas e os galhos com a superfície e os espinhos queimados, o resultado do trabalho é colocado na carroça e levado para casa. Por dia são queimadas cinco tulhas de xiquexique como essa, o suficiente para um dia no consumo de ração, talvez mais uma pequena sobra para o domingo, dia em que se trabalha com tudo, como um dia qualquer, exceto com a queima. Abastecidos agora com xiquexique e macambira, estes são moídos na forrageira ou cortados com facão, caso não tenham a máquina forrageira (aquisição que puderam fazer apenas em 2015) ou esta não esteja funcionando. Soma-se aos cactos e macambiras as palmas e a ração que compram semanalmente e temos a base da alimentação animal durante as secas, o que têm disponível é misturado na carroça de mão e servido aos animais.

Certamente, a queima é prejudicial à reprodução dessa espécie de cacto, que precisa alcançar o inverno para florir e atrair os polinizadores e assim se multiplicar. Muitos animais, principalmente invertebrados buscam abrigo do Sol e proteção contra predadores entre seus longos espinhos, e os tatus, por sua vez, sabendo disso, buscam ali sua refeição. Fato este que torna a queima, por ainda mais um motivo, trabalho indesejado e mantido como último recurso pelo povo do Cariri (MACHADO, 2018). Para se preservar o xiquexique e todo ecossistema dele dependente é preciso que nesses momentos de seca haja alternativas econômicas menos nocivas ao trabalhador e prejudiciais a todos. O preço do saco de farelo de algodão durante a seca chegou a custar oitenta e cinco reais e, a depender somente dessa ração, não teriam condições de manter seus animais vivos durante a seca. Enquanto não há alternativas, a cena da queima de cactos e macambiras se repete como único meio que restou para garantir a sobrevivência dos animais do sítio com o agravamento da seca. Isso pois, diferente do que foi registrado por Cohen e Duqué (2001: 145) no Ligeiro algumas décadas atrás, onde a queima continuava em tempos chuvosos para se economizar com a ração, no Bravo assim que chegou o inverno de 2018 todos deixaram o trabalho com a queima, afirmando que esta era a última e pior alternativa. Já que com a água das chuvas é possível plantar parte da ração e ainda soltar os animais para pastagens naturais com menor risco de sobrepastoreio.

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Até 2017 a seca se agravou continuamente e as cenas de queima eram comuns em todos os sítios. Era ainda comum em minhas rodagens pela caatinga encontrar carcaças de jabotis que não resistiram aos anos seguidos de estiagem. Porém, um pequeno contraste pôde ser notado após um curto período de chuvas que se deu no Bravo em meados de 2017, com precipitações ao longo do mês que somaram entre setenta e noventa milímetros nos registros de dois pluviômetros instalados em lugares distintos. Tais chuvas não tornaram possível o cultivo da terra, não encheram as cisternas, nem os tanques, quanto menos os riachos, não retomaram o verde da caatinga, não fizeram florir ou frutificar as árvores ou cactos, mas foram o suficiente para fazer crescer alguma vegetação rasteira por entre às palmas e também por dentro da caatinga, principalmente onde foram realizadas coivaras de xiquexiques e macambiras, na área queimada brotou uma vegetação rasteira boa para alimentar os animais. Assim, a maior parte dos animais mantidos pelo trabalho dos sitiantes foram soltos novamente nos cercados de mata, onde já havia pasto, e outra parte podia ser alimentada com o mato seco retirado diariamente das fileiras de palmas e moído na forrageira. Como me ensinou Givaldo, ali nasce todo tipo de mato bom para alimentar a criação:

_ Onde nós limpamo, quando chove sai a comida. Todo tipo de capim, que me lembro: relógio, lava-prato, quebra-tigela, bredo, feijãozinho, tem também um pouco de capim elefante, capim bravo, capim navalha, da natureza, tudo isso que vem da natureza.

Esse mato que cresce com a água de chuvas extemporâneas e irregulares logo morre e resseca. Esta paisagem com leves tons de verde não durou um mês, por falta de chuvas e a incapacidade do solo de reter umidade, o que rápido nasceu tão logo ressecou. No entanto, mesmo esse mato seco é nutritivo e de grande valia para a complementação da comida dos bichos, vide a explicação de Givaldo que mostra que se encontra ali uma ampla variedade de espécies vegetais. Isso significa que as breves precipitações de agosto de 2017, mesmo que insuficientes para uma completa mutação da vida na Caatinga, algo que só ocorre com a chegada do inverno, possibilitaram no Bravo novos ritmos de vida e trabalho e outras relações entre os diversos atores.

Em agosto daquele ano recebi diversas fotos e mensagens pelo celular que mostravam um novo Cariri. Mas, quando cheguei em dezembro tudo era muito parecido com a imagem de seca que tinha da minha última passagem por lá. A exceção era por algum mato seco que ainda resistia e que em nada lembrava o verde das fotos que havia recebido poucos meses antes. Tão rápida foi

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a mutação e tão logo a descrição do Bravo voltava a ser de um acinzentado com manchas verdes de cactos, algarobas e alguns dos resistentes juazeiros.

O que destaco deste evento é que o baixo nível de precipitação das chuvas naquele mês não trouxe um inverno, porém, foi o suficiente para uma sobrevida para habitantes humanos e não humanos no Bravo, da casa e da mata. Se não encheu os lajedos, abasteceu com um mínimo para que as quase secas fendas nas rochas ainda servissem aos animais soltos e silvestres. As precipitações de agosto não subiram muito o nível da água nos lajedos, mas evitaram que esses secassem em sua totalidade. Assim como, não encheram as cisternas, mas recarregaram o suficiente para a manutenção das famílias com água potável por alguns meses. Muitas das cisternas de placas de cimento de 16 mil litros já se encontravam completamente secas, outras pelo fim e, com essa chuva, ganharam uma pequena recarga, algo que não as tirou de um nível ainda baixo, mas, garantiu a água da cozinha. A cisterna de Laura e Bati, por exemplo, que serve também à casa de Ilda e Givaldo, tinha cerca de ⅕ de sua capacidade de armazenamento.

Se o verde da Caatinga não reapareceu com as águas de agosto, essas certamente proporcionaram que a vida em geral pudesse resistir por mais algum tempo, até que o inverno enfim chegasse. Os cactos da mata e as palmas do fundo de casa pareciam mais fortes, mesmo que ainda com aparência flácida. Um mato rasteiro brotou pelas passagens do vilarejo, envolta do campo e da igreja, por onde passam carros, motos, pessoas e animais da criação. Animais esses que por onde passam deixam suas fezes e adubam o solo durante a seca, assim, por todo esse caminho deverá brotar vida com a chegada da chuva. Esse mato nascido em agosto daquele ano secou rápido, mas, foi ainda alimento por algum tempo para os mesmos animais que contribuíram para que nascessem. A aparência entre dezembro de 2017 e início de 2018 era novamente de um grande campo de areia e pequenas pedras que se soltam dos lajedos em tons claros acinzentados. O contraste fica por conta do cardo-santo (Cnicus benedictus), planta com flor amarela de incrível resistência, meses após aquelas chuvas algumas delas resistiam solitárias pelo vilarejo, chegando a permanecer vivas sob sol forte nas beiradas do campo de futebol de areia.

Por menor que tenha sido o volume total dessas chuvas, o breve retorno das águas fez brotar algum alimento para vida silvestre da Caatinga e também para os bichos da criação. As águas hidrataram as palmas e fizeram crescer mato entre elas, sendo que os dois juntos formam uma

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ótima base para a alimentação animal e possibilitam que a queima de macambiras e xiquexiques seja, por hora, abandonada. Os bichos que podem viver soltos, procuram sua própria comida, os que vivem em confinamento são alimentados com essa base citada acima mais um acréscimo pequeno de ração e capim fresco da plantação irrigada de Geraldo.

Quanto às vacas, é indispensável o suplemento com farelo de algodão e farelo de soja, importantes para a lactação. Desta forma, quem, como Luizinho, Bae, Fernando e Ermínio, trabalha na produção de queijos precisa consumir grande quantidade de ração para o gado mesmo que haja chuva, com muito maior quantidade durante as secas. Os animais de Luizinho, por exemplo, são especialmente fortes e bonitos, o touro é enorme e vistoso, as vacas sempre gordas, tudo isso ao custo de uma rotina de trabalho que começa antes do sol e termina sempre depois dele, algo entre quatro da manhã e para além das sete da noite. Assim como, semanalmente Eurique traz de Boqueirão e descarrega dezenas de sacos de ração para o “compadre Luizinho”, como ele diz. Assim, mesmo durante o longo período de seca desses últimos anos, o queijo produzido pela família de Luizinho, como também pelos outros sitiantes, tem boa produção e um ótimo sabor. Quadrado ou retangular, o queijo coalho produzido por eles, cortado em fatias e frito em uma frigideira forma uma crosta crocante e solta uma gordura que acompanha bem o cuscuz de todas as jantas. No entanto, para manter a produção, a depender das chuvas será preciso ou não queimar cactos e macambiras, será definida as quantidade e variedade de ração adquirida, e definirá a distância que se percorre para buscar água para os animais, e também se houver água doce das chuvas, não será preciso dar a eles a água salgada dos poços ou dos resíduos do dessalinizador. Ou seja, de diversas formas a pouca chuva de agosto já modificou a rotina da vida nos sítios.

De toda forma, tais fluxos do tempo climático ocorrem à revelia dos sitiantes, não se controla o tempo das chuvas. Mas, os habitantes do semiárido sabem que é possível controlar o fluxo da água que já se precipitou pelas chuvas e evitar sua perda pelo solo e a ação do sol. Como mostra Ghislaine Duké (2008: 136), já era uma tradição desses habitantes do semiárido armazenar água das chuvas com os meios disponíveis, tal como já mencionei o uso dos tanques. Mas nenhuma delas tinha a capacidade de coleta e armazenamento que as cisternas de enxurrada desenvolvidas pela ASA e, em maior volume, as águas que podem ser encontradas no subsolo. Assim, o sonho que de tantas pessoas pude ouvir ao longo da seca era que não faltasse água, independente das chuvas,

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nem para eles, nem para os animais, o que proporciona uma mudança na rotina de vida ao reduzir o sofrimento diante das secas. Para Bati o sonho tinha o mesmo sentido: era perfurar um poço e encontrar água em sua propriedade, a água armazenada no subsolo. Mesmo que salgada, com o correto manejo, essa água garantiria que o roçado durasse para sempre, não se perdesse pela falta das chuvas. Estariam garantidos alimentos para casa e para os animais por tempo indeterminado, enquanto fossem ao roçado para cuidar da terra. Ou seja, com o poço o caririzeiro viu a possibilidade de um calendário minimamente estável de cultivo e vivência em uma realidade marcada pela inconstância das chuvas, ou a falta delas em longos períodos de espera. Na década passada, Bati conseguiu amealhar o dinheiro necessário e contratou uma empresa para perfurar o sonhado poço. Seus filhos me disseram que a vida inteira Bati sonhou com um poço onde um dia viveram as goiabeiras e os cajueiros, dos quais apenas um cajueiro ainda vive. Porém, no momento de perfurar o poço, o especialista da empresa insistiu que a água seria encontrada em outro lugar, na mesma linha, mas, cerca 50 metros distante. Como resultado, não encontraram água e o dinheiro da perfuração foi perdido. Em dezembro de 2017, Bati me disse que ao entrarmos no ano seguinte ele tentaria mais uma vez encontrar água em sua propriedade. Venderam dezenas de animais do sítio, juntaram com uma economia que já estava guardada e contrataram outra empresa e um especialista em encontrar água subterrânea no Cariri, o qual tinha como propaganda mais de cem poços perfurados com sucesso. Mais uma vez, a despeito do sonho de Bati, perfuraram em lugar diferente do por ele desenhado. Foram gastos cinco mil reais em mais uma tentativa frustrada, no início de mais um ano que até então era mais um ano de seca o desfecho se repetiu. Naquela noite Bati não dormiu e com ele ninguém dormiu, sem chuvas, sem o poço, sem o dinheiro e sem os animais que haviam sido vendidos. No dia que seguiu, por não suportar mais a tristeza que tomou conta do pai, Rejane lhe disse, conforme todos que estavam presentes me narraram:

_ Pai, vamo furar de novo, as máquinas ainda tão aqui e vamo mandar furar onde o senhor sempre quis que fosse. _ Mas, não tem mais dinheiro, gastamo tudo e não deu. _ Pois eu tenho uma economia, vou ligar na empresa e vamos tentar de novo.

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Mesmo com as máquinas todas ainda no local, que se deslocariam poucos metros à frente para a nova perfuração, a empresa pedia mais três mil reais para retomar o trabalho. Após muita conversa e negociações, todas feitas por Rejane, aceitaram dois mil e quinhentos reais. Dias depois retornaram ao Bravo e desta vez furaram exatamente ao lado do velho cajueiro, único sobrevivente de anos de seca e que sempre apontou para onde achariam a água, onde Bati sempre disse que deveria ser. Todo trabalho da empresa foi acompanhado de perto com muita aflição enquanto as máquinas atingiam apenas pedras e de dentro não saia nada que não fossem cascalhos secos. Depois de um dia de trabalho, ao fim da tarde os primeiros sinais de umidade foram aparecendo e no final do dia seguinte um enorme esguicho de água se abriu para o alto, a primeira medição registrou oito mil litros por minuto. Contam que todos choraram, mesmo o velho forte Bati que poucos tinham visto algum dia chorar. Crianças que nunca tinham visto água em tamanha abundância brincavam na lama, em vídeo que recebi pelo whatsapp faziam anjos no chão enlameado com braços e pernas pendulando, entusiasmadas com a novidade. Outros investimentos ainda seriam necessários, como todos equipamentos de instalação, encanamentos, mangueiras, etc., que seriam feitos aos poucos. Mas, de início o roçado já ganhou aspersores e uma plantação de capim para a criação e, meses depois, um quilômetro de mangueiras para o gotejamento. A perfuração do poço e o inverno que veio em seguida trouxeram novos ânimos para o Bravo e mudaram a rotina da vida. Se não faziam mais planos após sete anos estiagem, as sementes de caju que agora são guardadas quando se faz o suco revelam a esperança renovada pelas chuvas e pelo poço. O cajueiro velho, já tido como morto, hoje marca presença no roçado, próximo ao poço, ao milho, o feijão e o capim. A árvore que não se sabe quando nasceu, mas consta na memória de todos, mesmo dos mais velhos do vilarejo, como estando lá muito antes que eles, seus pais e avós, resistiu às mais duras secas em, certamente, mais de um século. Sobreviveu também a sete anos sem inverno, resistiu às algarobas e, de tão próxima ao poço e ao capim, passou a se hidratar das águas dos aspersores do roçado. Pouco a pouco as folhas verdes voltaram a aparecer nos galhos dando nova aparência ao cajueiro, saudável e pronto para produzir, como há muito não se via. Com o controle das algarobas, a volta de um inverno e a expectativa de que outros não tardem a vir, assim como, e principalmente, o sucesso na perfuração do poço com abundância de água disponível, hoje sementes são separadas para que árvores voltem a crescer no sítio. Como se o caririzeiro pudesse voltar a fazer planos.

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Tal cena representa uma marca paradigmática das transformações possibilitadas pela presença da água. Neste caso, mesmo sem as chuvas, provaram ser possível com tecnologias hoje existentes utilizar as águas que estejam disponíveis próximas às casas e, assim, alterar completamente suas rotinas de vida. Como foi visto ao longo deste capítulo, a penosidade da vida durante as secas para as famílias sitiantes ocorre apenas pela falta de alternativas disponíveis para a superação do momento, para o convívio com as vicissitudes das variações naturais do clima. Algo que, tal qual relatei nas últimas páginas, é possível e possui impacto positivo de grandes proporções para a vida nos sítios do semiárido.

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Capítulo 6. A inserção de alternativas exógenas no emaranhado de vidas do Cariri: sobre a algaroba e a cochonilha-do-carmim

Tem sido recorrente na história do semiárido a falência de certos modos de organizar a vida nos sítios em consequência de pragas que destruíram lavouras e experiências que prometiam a solução para os problemas econômicos da região. Assim, foi implantado o cultivo da algaroba, árvore de origem exógena que é capaz de buscar água em longas distâncias e superar obstáculos para alcança-la. A mesma acabou por se espalhar sem controle por sítios e cidades e ocasionou a morte de culturas locais. No caso do algodão, seu cultivo teve que ser abandonado após as plantações serem praticamente devastadas por uma praga chamada de bicudo-do-algodoeiro (Anthonomus grandis) 17. Mais recentemente, as plantações de palma forrageira foram infectadas pela cochonilha-do-carmim (Dactylopius coccus) causando a perda de quase a totalidade dessas plantas já no início dos sete anos de estiagem. As alternativas para convivência com a seca são sempre aquelas que melhor se adaptam às variações das estações climáticas no semiárido, como a incerteza das chuvas ou o prolongamento das secas. Motivo pelo qual é difícil imaginar qualquer tipo de produção agrícola que dependa da certeza do ciclo das chuvas. Assim, se os cactos encontrados na natureza são o último recurso do caririzeiro por sua resistência às secas, o cultivo de cactos trazidos do México se tornou uma possibilidade de monocultura para o semiárido e ração animal. Dentre as plantas cultiváveis, nenhuma, que não sejam cactáceos, perdura e cresce sem chuva ou irrigação e, desta forma, as plantações de palmas para ração animal são a única monocultura possível hoje nesses sítios. Pesquisas comprovam suas qualidades, tais como: a) o armazenamento de água, “mucilagem e resíduo mineral; b) apresentam alto coeficiente de digestibilidade da matéria seca e c) têm alta produtividade”. (LOPES et al., 2009: 197) Além disso, outro fator que facilita sua manutenção em condições adversas do semiárido é que “essas plantas geralmente abrem seus estômagos durante

17 É importante salientar que por muito tempo ao longo do século XX o algodão cultivado no Nordeste semiárido, adaptado ao clima da região, foi importante fonte de renda para os sitiantes. Porém, atacado pela praga do “bicudo”, sítio algum hoje consegue cultivá-lo de forma saldável. Como verificaram Cohen e Duqué (2001: 97): « Aujourd'hui cette culture est pratiquement abandonnée, suite à l'apparition du bicudo, un parasite qui a ravagé les plantations depuis 1984-1985 et les anciens champs de coton retournent à la friche ».

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a noite e os fecham durante o dia, (e) desta forma minimizam a perda de água”, assim, elas absorvem a umidade noturna e evitam a perda durante o dia (DOS SANTOS et al., 2017: s/p). Qualidades essas que fizeram do cultivo da palma nas últimas décadas prática essencial para a manutenção da pecuária bovina, caprina e ovina no semiárido.

Duas espécies foram introduzidas no semiárido brasileiro pela EMATER - Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural, chamadas localmente de palma gigante (Opuntia cochenillifera) e palma resistente ou orelha de elefante mexicana (Opuntia stricta). A primeira citada, a gigante, foi atingida pela cochonilha do carmim, como já comentado em capítulo precedente, e raramente se encontra dela pela região. Mas, enquanto foi a principal produção agrícola do semiárido não eram chamadas de gigantes por um acaso, pois, estas palmas formavam raquetes corpulentas de verde bem escuro que ultrapassam fácil a altura de um ser-humano adulto, em imagens antigas vemos algumas palmas que atingiam perto de três metros de comprimento vertical. Já a do tipo resistente, atualmente produzida, possui coloração verde mais clara, raquetes maiores em largura, mas, aparentam armazenar menor volume de água durante a seca, o que as deixa com aparência ligeiramente flácida e um pouco enrugadas. Porém, não é preciso muita água para que ela ganhe corpo e mude completamente a aparência, como algumas palmas de Geraldo que ficam próximas ao gotejamento e a pouca água que irriga a fileira ao lado já foi suficiente para seu crescimento e a diferença é nítida em relação às demais.

Em um dos dias de trabalho pelo Bravo, sentamos nos tamboretes ao fundo de casa, enquanto Maria lavava louças em um cômodo construído em armação de madeira e Geraldo dois metros à frente cortava palmas que acabara de derrubar, um complementando a fala do outro me explicaram algumas das diferenças entre as palmas:

_ Ela seca muito - disse Geraldo sobre a palma resistente

_ Ela não se dá com a seca - completou Maria

_ Essa palma é melhor sabe pra que?

_ Ela não se dá bem com a seca. Gosta de chuva.

_ Pra irrigação por gotejamento. Com irrigação essa aqui dá mais.

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_ Eu vi que tem algumas aqui no canteiro que estão grandes, diferentes das outras - comentei com eles.

_ Tu viu? Pois, pronto. Parece que é própria de irrigar. Agora é o seguinte, ela seca rápido a água. Mas já dessa gigante ali, depois que ela enche, ela para mais de ano com a folha grossinha. Essa aqui não, essa aqui você tá vendo que tá só o papel, né? Ela aguenta a seca, mas não fica água nela. Nenhuma, fica seca, seca. Mas se chover, ela dá mais folha que a outra. Mas tem que chover - dizia Geraldo enquanto cortava as palmas, eram cerca de dois a quatro cortes a cada segundo manuseando um grande facão velho com o gume já côncavo de tanto ser amolado numa pedra com areia que fica ao seu lado.

_ Ela produz mais que a outra. Ela dá assim: com cinco dias de chuva ela já pega água e fica uma beleza. Mas ela tanto pega água rápido como seca rápido, não aguenta não - completou Maria nossa conversa sobre as duas espécies de palmas.

Demonstram sempre sentirem falta da espécie anterior que, insistem, ficava muito maior que a atual. Sobre a nova palma resistente não se sabe muito nos sítios, por terem iniciado seu cultivo há poucos anos e começam a aprender sobre ela conforme os ciclos de chuva e seca vão se passando. Hoje em dia é raro ver palmas da variedade gigante que tenham resistido à praga que se alastrou pela região e chegou ao Bravo por volta do ano de 2012. A cochonilha destruiu rapidamente todo cultivo dessa palma e causou desespero em muitos produtores que ficaram sem essa importante alternativa para alimentar os animais em pleno período de seca. E mesmo ao plantarem de outra espécie, como foi feito, sem chuvas para irrigá-las, essas não teriam como crescer. A água é personagem principal de suas vidas (em sua presença ou escassez) e estavam em 2012 apenas no início de um longo período de seca que não sabiam ainda o quanto iria durar.

Naquele ano, das primeiras plantas identificadas com a cochonilha até a completa destruição das lavouras passaram poucos meses. Pesquisa realizada ainda em 2009, mostrava que com grande velocidade de infestação, a cochonilha já havia atingido “mais de 100 mil hectares de lavoura de palma” em quatro estados diferentes, causando a perda de perto de 100% da produção em todas as propriedades e “inviabilizando a pecuária bovina, caprina e ovina”. (LOPES et al., 2009: 197) O minúsculo inseto é levado a distâncias maiores principalmente no pelo de animais ou nas penas de aves formando uma colônia de aparência espumosa, branca e que logo toma conta de toda planta.

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Esses pequenos parasitas se multiplicam rapidamente e se alimentam da seiva do cacto deixando-o ressequido e amarelado até a morte completa da planta.

_ Quando você passava os dedo nela, a palma ficava vermelha da cor de sangue, ela soltava uma tinta que nem sangue - disse Antônio

_ Pois, pronto, não é isso? Aquela miséria, aquela desgraça - respondeu Geraldo

_ Se tu visse a palma que tinha aqui, nesse meu quintal aqui e no dele alí a palma era da altura daquela árvore.

_ Era! Oxi, era maior que essa cerca.

_ Eu ia, saia cortando daqui. Quando chegava lá em baixo a daqui já tava grande e quase boa de cortar de novo. Não é Geraldo? Geraldo fazia a mesma coisa, saia cortando daqui, quando chegava lá do outro lado já tava boa a daqui.

_ Mas acabou-se. Matou tudo, matou que matou mesmo. Pois, eu não mostrei pra Mateus o pé que sobrou ali perto do capim, tá branquinha a folha dela. Isso tem jeito não rapaz. - completou Geraldo.

A forma de desenvolvimento de cada uma dessas espécies nas condições do semiárido nordestino é diferente, acostumados a trabalhar com a palma gigante, a perda dessa espécie no decorrer de uma prolongada seca provocou mudanças inesperadas na vida dos habitantes do Cariri. Em janeiro de 2017, ainda durante o ápice da seca, sentados na porta da igreja enquanto assistíamos o futebol no campinho, gravei uma entrevista com Givaldo na qual ele fala sobre a rotina com as palmas e a substituição da variedade gigante pela orelha de elefante:

_ Essa palma é mais difícil de trabalhar. Tem muito pelo e espinho. Dá mais trabalho pra cortar pra dar pros bicho. Quando chove que elas toma bastante água fica mais fácil. Agora mesmo que elas tá muito murcha é ruim de cortar. Na forrageira não dá pra botar porque é murcha demais, não corta direito, só faz machucar as folhas. A palma nois prefere cortar de faca. Na forrageira mói é só o capim, o xiquexique e a macambira.

_ Essa palma demora muito pra crescer? - Perguntei a ele.

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_ Se der o tempo d’ela crescer e o ano tiver chuva, com dois a três anos a gigante tá da altura de um homem. Essa outra também fica grande, mas cresce é pros lado, fica alta não. Você botando o adubo, que é o estrume das vaca e do bode ela chega ligeiro. Essa qualidade aí é a que chama de resistente, porque antes não era essa palma, há uns quatro ano atrás nois não tinha essa palma não. Essa palma chegou uns quatro ano atrás. Nois tinha um outro tipo de palma, chamava gigante, mas deu uma praga nela que matou tudo. Todo mundo aqui no Nordeste tinha dela e se plantar aqui hoje morre de novo. Ela pegou uma doença que um cabra trouxe de fora pra fazer corante. É o que dizem aí, né. Sei que morreu tudinho. O Cariri nosso era todo movimentado pros bicho com essa palma gigante que eu to falando. Apareceu tipo duma praga que chupa a palma até matar. Cê esfrega essa cochonilha e sai uma tinta vermelha. Ela chupa a palma todinha que mata.

_ Como conseguiram essa palma que tão plantando hoje? - Perguntei.

_ Quando chegou aqui tinha quem vendesse o milheiro por quinhentos conto. Agora que já espalhou tem quem vende até por cinquenta conto. A gente aqui ganhou da prefeitura. A prefeitura fez muita entrega pra muita gente. Tudo de pouco né, cada um pegava cem ou duzentas folha pra plantar.

_ E plantam a partir da própria folha?

_ É, cê cava e bota a folha ali com um pedaço pra dentro da terra. Ela dá semente também, porque dá fruta. Mas ninguém usa semente não. Nois planta a folha. Eu mesmo nunca vi a fruta dessa aí não. De lá pra cá não teve mais inverno pra dá fruta, né. Elas não chega a fricar grande. Ainda não vimo ela grande não. Não deu o tempo d’ela crescer e nois precisa de tirar pra dar pros bicho. A gente vai tirando as folhas de cima e fica só aquela de base, a que plantou, pra nascer mais. Pra você ter uma ideia, no roçado do meu irmão Geraldo você pode olhar, tem uma carreira primeira lá perto do capim dele que já tá na terceira folha (contando na sequência da base que foi plantada), as outras ainda tão na cova, só porque ele tem um gotejamento numa carreira.

O fato novo gerado pela proliferação da cochonilha-do-carmim no semiárido obrigou os personagens envolvidos a darem novas respostas às contingências do ambiente. Se o poder público não procurasse através da EMATER, das prefeituras e secretarias de estado uma alternativa para o antigo cultivo, a pecuária, a ovino e a caprinocultura estariam condenadas à falência e os animais à

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morte por falta de alimento, consequentemente a vida dos sitiantes também estaria em risco. De toda forma, a nova planta apresenta características diferentes às quais os produtores ainda estão no processo de conhecimento.

Uma das características mais lembradas por esses sitiantes quanto às antigas palmas gigantes era sua capacidade de armazenar grande quantidade de água mesmo durante as secas. Enquanto, por outro lado, as plantas da variedade orelha de elefante perdem umidade e murcham com maior rapidez durante a seca. Assim como, lembram e afirmam sempre a grandeza e exuberância dessas plantas: Era maior que a gente; tinha mais de dois metros; tinha é três metros; tu precisa de ver o tamanho das palma que tinha aqui - dizem sempre. Ou como afirmou Geraldo:

_ A gente tá com falta de forragem é por causa disso. Se fosse no tempo da outra, da gigante, ninguém tava nesse sufoco não, queimar macambira, xiquexique, palmatória pra dá pros bicho, não. Mas com essa desgraça que deu, pronto. A gente vendia palma, rapaz, tinha ração pra vender. Agora a gente compra.

Testes para uma possível produção comercial das cochonilhas teriam sido responsáveis pelo início de toda essa crise e uma mudança completa da vida no semiárido. Para evitar os predadores, as cochonilhas produzem um ácido de cor vermelha, o ácido carmínico, muito utilizado como corante na indústria devido às restrições de países e blocos econômicos, como também da OMS – Organização Mundial da Saúde, quanto ao uso de substâncias artificiais (MCAVOY, 2014). A produção comercial do corante carmim atende a uma vasta gama de produtos industrializados, de alimentos a medicamentos, e sua presença pode ser verificada nas embalagens dos produtos através de códigos como E120, INS120, e ainda Natural Red 4, sendo que, no Brasil, a denominação oficial é “vermelho carmina E120” (ANVISA, 2017). No Brasil, o carmim é importado in natura e o processo químico para obtenção do corante é feito em laboratórios no país, sendo que os principais fornecedores são o Perú e o México. Numa tentativa desastrosa de produção comercial no Nordeste brasileiro, o que foi chamado pelo CONSEA - Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional, de uma experiência malconduzida, deu início a uma crise que afetou famílias por grande da região semiárida. Soma-se a isso ainda o fato de que, se em outros lugares alguma chuva pôde ser registrada entre 2011 e 2012, no Cariri Paraibano já se passavam dois anos desde o último inverno, deixando-os sem pastos e sem palmas para alimentar os animais.

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A resolução 004/2005 do CONSEA diz enfaticamente que representantes do Governo já haviam sido comunicados em 2003 acerca do “risco de propagação de um foco de cochonilha de carmim (Dactyphius coccus), praga da cultura da palma forrageira em dois municípios nordestinos (Sertânia – PE e Monteiro – PB)”, e vale dizer que Monteiro está a apenas 124 km de Boa Vista. O documento cita ainda que em 2004 a Conferência de Segurança Alimentar e Nutricional havia aprovado uma moção pela erradicação da praga, mas que até aquele momento não haviam sido “tomadas providências concretas”. Por fim, o Conselho resolve recomendar “que seja iniciada ação urgente e eficaz do Governo Federal de combate à cochonilha do carmim, sob a coordenação do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, em conjunto com as Secretarias de Agricultura dos Estados da Paraíba e de Pernambuco, antes que a praga se torne incontrolável”18. Anos mais tarde, a praga se tornou de fato incontrolável e de graves consequências para a vida no semiárido. O documento não identifica a instituição pública que teria realizado os experimentos, que no caso seria o IPA - Instituto Agronômico de Pernambuco, na sua estação experimental de Sertânia - PE (VASCONCELOS, 2009). Deste foco inicial ela se espalhou lentamente e com a chegada da estiagem por volta de 2011 e 2012, passou a se disseminar sem qualquer possibilidade imediata de controle. A solução para o momento foi a substituição da variedade gigante pela orelha de elefante e esperar por chuva para que elas cresçam. Porém, até que a troca para o novo cultivo fosse realizada e, em pleno período de seca, os cactos se desenvolvessem, a perda de todas plantações de palmas veio a agravar ainda mais as consequências da crise hídrica que já vinha de alguns anos e perduraria ainda até 2018. O único caminho no Bravo foi, como descrito no capítulo anterior, recorrer ao trabalho com macambira e xiquexique, enquanto houvesse plantas na mata e resistência do corpo para a tarefa.

No curso de uma seca tão longa, as cochonilhas encontraram ambiente perfeito para se multiplicarem pelas plantações adensadas de grandes palmas. Assim como, não havendo chuvas suficientes, as plantas não tinham capacidade para crescer e tentar resistir ao ataque da praga. Exemplo me foi dado por Geraldo, que mostrou que algumas de suas palmas do tipo gigante ainda sobreviviam ao lado de uma pequena plantação de capins de algumas variedades diferentes aguada

18 CONSEA - Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional, RESOLUÇÃO No. 004/2005

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diariamente por ele. Todas têm a presença da cochonilha, mesmo que em uma pequena mancha branca, mas a praga não as matou por completo como fez com as demais, entregues à seca.

Sem chuvas, as palmas e outros cactos sobrevivem no Cariri quase que somente do orvalho noturno, suficiente apenas para a sobrevivência, não para seu crescimento. Em alguns momentos durante a estiagem é possível registrar pequenas precipitações que vão de dois a cinco milímetros e se perdem tão logo chegam à superfície, devido às características do solo e as altas temperaturas durante o dia. Bati, ao chegar para o almoço comentou após um nevoeiro que passou pelo Bravo naquela manhã: não era suficiente para molhar o chão, mas, reparou na ovelha que parou de comer, sentiu água no corpo, “só chacoalhou a cabeça pra secar e voltou a comer”. Uma cena que retrata um desses nevoeiros que vez ou outra passam pelo Bravo e garantem sobrevida ao menos a alguns cactos. Não são o suficiente para que qualquer outra planta cresça e nem mesmo têm volume suficiente para fazer diferença nas cisternas das casas, pois, evaporam ainda sobre os telhados e calhas. Um pouco se acumula nos lajedos em pequenas poças d’água que, a depender do tamanho, podem durar alguns dias ou evaporar em uma tarde de sol.

Nesse contexto, a alternativa das algarobas foi implantada devido a sua capacidade de buscar água com suas raízes a quilômetros de distância, crescer e frutificar durante as secas. Em uma das muitas tardes no tamborete com Geraldo e Antônio iniciei uma entrevista sobre as árvores que ainda se mantinham vivas durante a seca, no diálogo que seguiu entre Geraldo e Antônio Xerém tiveram destaque as exógenas algarobas:

_ A Jurema tem, mas morreu quase tudo com essa seca, tem mas é difícil - disse Geraldo.

_ Agora Algaroba tem pra todo lado - completou Antônio.

_ É boa, tanto pra cerca quanto pra carvão, é boa, e a vagem dela, tudo da algaroba é boa.

_ Mas não tinha algaroba antes não. É de uns cinquenta anos pra cá. Cabra fazia empréstimo no banco e plantava de carreira. Plantava aqui, plantava ali.

_ Aí, pronto, os bicho foi comendo, foi sujando, no cocô dos bicho sai a semente e ia nascendo. Aí, pronto, todo canto, todo canto tem…

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_ Ovelha, jumento, cavalo, bode, boi, vaca, tudo come. A vaca adora, onde vê vai em cima pra comê, viu.

_ Todo bicho gosta e é forte viu, é forte e os bicho gosta.

_ A madeira agora do Cariri é algaroba. completou Antônio.

As secas e as algarobas estão intimamente relacionadas a mudanças na dieta animal e mesmo à morte de plantas nativas. Mas, essas árvores geram visões distintas entre os habitantes por fornecerem também madeira para construção, evitando o corte de árvores nativas, e dando a vagem para alimentação dos bichos. Além disso, ela apresenta crescimento rápido, resiste verde, produz mesmo nas mais longas estiagens e se espalha com muita facilidade por todos os cantos dos sítios e das áreas urbanas. É uma árvore de copa verde e ampla, o que gera ótima sombra, baixo às quais frequentemente se vê bodes, ovelhas, jumentos, vacas fugindo do forte sol desta região. Para sobreviverem em situações de seca suas raízes desenvolveram força suficiente para perfurar os solos mais rígidos dessa região e até mesmo as cisternas de placas de cimento das casas. Suas vagens ao caírem anualmente no chão ajudam a alimentar todo tipo de bicho e geram renda para algumas famílias que as catam próximo às árvores e vendem aos criadores. Os animais que vivem soltos se alimentam dessas vagens e soltam as sementes em suas fezes, espelhando mudas por todos os cantos por onde caminham, ao ponto de a algaroba ter seu corte permitido pelo IBAMA para fins de controle da espécie. Desta forma, ela gera madeira legal e impede a retirada de árvores nativas, tal como afirmou Annahid Burnett (2017):

Os administradores públicos do IBAMA e SUDEMA liberaram o corte da algaroba, por ela ser exótica e invasora, alegando, dessa forma, a proteção da flora nativa do corte para fins energéticos. Por outro lado, o corte da madeira das espécies nativas passou a ser taxado pecuniariamente por metro cúbico. Dessa forma, as mesmas instituições técnicas e políticas que outrora divulgaram o discurso da algaroba como “salvadora” para o semiárido, hoje propagam um discurso de planta “invasora”.

Durante os seguidos períodos de estiagem, todas as árvores que cercavam as algaroba foram pouco a pouco secando e morrendo. Nas terras de Laura e Bati descrevem todos que havia árvores frutíferas, como os muitos cajueiros, tantos que se distribuía frutas e castanhas para a família e vizinhos. O que mantinha os cajueiros vivos era a condição do terreno, próximo a um riacho que alaga em tempos de chuva e mantinha alguma umidade no subsolo em tempos de seca, umidade

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essa totalmente absorvida pelas raízes da algaroba. Após alguns anos, apenas um cajueiro conseguiu sobreviver, os demais morreram por falta de água.

Ainda nos tamboretes com Geraldo e Antônio Xerém, diziam eles:

_ A Algaroba matou tudo os cajueiro aqui, matou, com certeza - dizia Geraldo - Onde tinha os cajueiro e os pé de algaroba perto morreu tudo. Dizem que ela vai cinquenta metros pra pegar água. Ela suga a água todinha. Pronto, tá vendo ali em baixo onde vai botar água pra ovelhas? Tinha seis pé de goiaba um atrás do outro, tinha um pé de algaroba. Foi esmorecendo, matou os seis pé de goiaba. Foi a algaroba que matou, sugou a água todinha.

_ Alí em casa a algaroba enrolou no cano todinho pra pegar a água. Se deixar, ela fura o cano. – Completou Antônio.

_ Tem uma cisterna ali, da casa de Gilmar pra baixo. O canto é de pedra, tem meio metro de parede. Ela não atravessou e furou a cisterna? Arrebentou. Se você fala, cabra não acredita. Isso é um troço desgraçado. É como aquele negócio que eu te falei, da tintura da palma, acho que é do mesmo jeito viu.

_ De quê? Perguntou Antônio.

_ O cabra que fez o negócio da cochonilha. Aquele negócio é pra fazer corante, aquele negócio vermelho. Aí empesteou tudo, acabou a palma e, pronto, acabou tudo. Aquela miséria, aquela desgraça. É a mesma coisa, cabra trouxe pra ganhar dinheiro.

Certamente, a algaroba gera um grande número de contradições, é vista como boa, por um lado, e ruim, por outro. Isso, pois, ao mesmo tempo em que produz alimento de boa qualidade e em bom volume para os animais, além de madeira para lenha e construção, gerou transformações danosas para a vida no lugar. Se ao longo da estiagem, produz alimento mesmo com solo seco, algo que as plantas nativas não conseguem fazer, ao sugar toda umidade em sua volta por dezenas de metros de distância, no mínimo, a espécie exógena acelerou a morte por falta de água de muitas outras árvores durante essas mesmas secas. Além de terem impacto sobre o volume dos lençóis freáticos, pois, é de lá que retiram a maior parte da água que as mantém durante as estiagens.

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Ainda na mesma conversa no terraço de Maria, ela me contava sobre as antigas árvores de frutas que cercavam o riacho, das quais havia sobrado apenas o citado cajueiro velho e seco que há muito não dava sinais de vida, a ponto de não citarem sua presença nas conversas, o “tempo das árvores de frutas” era tido como extinto. A narrativa de um tempo em que havia frutas nos sítios se intercala com a afirmativa de que são tempos passados.

_ Você precisava de vê, como dava fruta. Pé de goiaba, pé de manga e cajueiro. Mas morreu tudinho... Laura mandava pra aqui e tinha tempo que a gente tomava tanto suco de cajú que abusava. Tinha bem dez ou doze pés de cajueiro. Cajú vermelho e cajú amarelo. Mas acabou. Algaroba matou tudo. - disse Maria.

Se isso ocorreu com a algaroba e a cochonilha do carmim, décadas antes havia sido a vez dos algodoeiros praticamente desaparecerem em decorrência da infestação do bicudo, praga que rapidamente se alastrou pelo semiárido nordestino. Chamado entre o fim do século XIX e início do XX de ouro branco, o algodão nordestino tinha mercado certo nas indústrias inglesas. Em Canindé, no estado do Ceará, Chandra Morrison (s/d: 15 – tradução é minha) diz que as pessoas em 2006 durante seu trabalho de campo “falavam sobre o tempo do algodão com nostalgia, como uma era dourada”. Por volta das décadas de 1960 e 70, lembram também as pessoas no Bravo, a produção era grande, a planta estava plenamente adaptada às condições climáticas e a renda proveniente de seu cultivo era boa. Porém, uma praga atacou todas as plantas e, sem o apoio técnico adequado para os pequenos produtores, se encerrou o ciclo do algodão para sitiantes do semiárido. Sobre essa transição, afirmam Cohen e Duqué (2001: 181):

Le coton arboré est relativement sobre quant à ses besoins en eau, particulièrement au début du cycle (...) Néanmoins, il souffre ici des amplitudes thermiques assez marquées, dues à l'altitude, qui nuisent au développement homogène de sa fibre (...) Depuis l'apparition du bicudo, cette culture est pratiquement abandonnée. (...) Sur les conseils des techniciens de l'Emater, les producteurs ont fait des essais de coton herbacé, espèce que l'on tente d'introduire dans la région, car elle est plus productive et donc plus rentable à protéger des parasites que le coton arboré. Mais les paysans n'ont pas trouvé cette innovation « avantageuse » ; il est vrai que cette variété est moins rustique et sa complémentarité avec l'élevage moindre.

De tempos em tempos algo cerceia uma antiga organização da vida no semiárido dilapidando espécies de plantas e formas de vida e de viver do lugar. Alternativas são postas como a “salvação” do Nordeste semiárido, como afirmou Burnett (2017), e acabam por causar danos maiores que as

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soluções. A última delas, a qual pude ainda presenciar, acreditou no carmim como a solução para o que consideram ser o “problema” da seca e, mais uma vez, ignoraram as possibilidades de se conviver com ela administrando as características do clima local, com a correta gestão das águas das chuvas, quando essas ocorrem, e os recursos já existentes nesse ambiente.

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Capítulo 7: A água no semiárido em suas profundas capacidades transformadoras

As chuvas de agosto de 2017 não foram suficientes para abastecer lagos e rios, mas, mesmo sendo baixas as precipitações, essas modificaram ligeiramente a vida no Bravo. Este breve sinal de impulso proporcionado por essas águas modificou o trabalho, a relação com o tempo e com o espaço e deu novas feições para a vida. Mas, não parecia gerar expectativas quanto a chegada do inverno, quando as chuvas voltariam a cair em abundância. Na aparência, na rotina e nas conversas não deixam escapar qualquer tipo de comentário esperançoso, nenhuma expectativa, apenas o trabalho rotineiro, resiliente, felizes pela nova configuração de suas realidades. O que expressam na verdade é fé na chegada do inverno. Tal como, os pressupostos ontológicos que permitem crer na existência de um peixe antes de pescá-lo, como analisa Mauro Almeida (2013) no contexto amazônico. Esse pressuposto da chuva de inverno que um dia voltará a se precipitar indica um “ato de fé”. Mesmo olhando para o riacho seco onde outras formas de vida já brotaram e ocupam seu leito, sabe-se que ali existe um curso d’água e que as águas das chuvas ainda virão para percorrê-lo novamente. Tem que ter fé, essa é frase comum quando se fala de expectativa por chuvas no Cariri, pois na prática dessa fé não se marca o tempo futuro, apenas sabe-se que virá. Assim, vivem dia após dia, um a cada vez, continuam trabalhando, assistem à previsão do tempo no telejornal, ouvem, vez ou outra comentam e seguem trabalhando. Este último período de seca provocou mudanças não apenas no ambiente, como também na confiança que esses sitiantes podiam ter no fluxo do tempo climático e nos sinais da natureza que indicam a passagem do tempo. Os diálogos abaixo demonstram a relação dessas pessoas com o tempo futuro durante a seca no que se refere à expectativa pelas chuvas:

_ Amanheceu hoje um dia fechado, cheio de nuvens. Quando chove o céu fica assim? Dá pra saber quando a nuvem é de chuva? - procurei saber em uma manhã tomando café no terraço com Val e Laura. _ Dá não Mateus, dá não. - respondeu Laura e o silêncio tomou conta do ambiente mais uma vez.

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Consegui perceber isso depois de algum tempo em campo: as nuvens passam sempre, algumas parecem, ao olhar sudestino, carregadas e prestes a precipitar. Mas apenas passam por sobre as cabeças sem deixar uma gota de água no solo.

_ Já tamo em fim de janeiro e quando chove, já começa nessa época, não é? - Perguntei em outra ocasião e Laura me respondeu abaixando o tom da voz conforme chegava ao fim da frase até sobrar apenas um sussurro ao falar de Deus. _ É, Mateus, é sim. Chegando na época mesmo. Nós já tamo chegando em final de janeiro, tá na época memo. É Mateus, no final de janeiro, já tamo no final de janeiro. Se Deus quiser e Nossa Senhora, que Deus tome conta. - respondeu Laura.

No mesmo tom respondeu Bati noutra manhã a uma pergunta semelhante, numa frase curta, com longas pausas reflexivas e tom terminativo, pois não havia mais nada a ser dito:

_ É … é …. é … se Deus quiser ...

Naquele ano a chuva veio. O inverno chegou em 2018 com fortes chuvas entre março e maio. Era água em quantidade que há muito tempo não se via e algumas crianças realmente nunca tinham visto. Assim, se por um lado Antônio Rocha Magalhães (2016: 9 – tradução é minha) afirma que “qualquer um com 10 anos de idade ou mais já experienciou uma ou mais secas”, por outro, crianças com menos de 10 anos não tinham lembrança do último inverno. Mesmo para os mais velhos o inverno já aparentava ser uma lembrança distante. Ainda durante a seca, sentado no tamborete no final de tarde na casa de Geraldo, sem saber se ainda presenciaria tal estação antes do fim da pesquisa, perguntei a eles como era o inverno. Antônio Xerém, que fumava um cigarro sentado pouco à frente, riu baixo e Geraldo com sorriso me disse:

_ O inverno aqui eu vou te dizer, eu nem lembro mais como é o inverno daqui, que faz sete ano que não tem.

Em seguida, eles e Dona Maria, que acabava de chegar, me contaram muito sobre o inverno, sobre as lagoas, os tanques e os barreiros sangrando com tanta chuva e correndo para os rios para se juntarem a outros rios e daí para o Rio Paraíba e o açude de Boqueirão, tal como eles narravam os fluxos da água. Me contaram ainda repetidas vezes do verde do qual tanto sentiam falta e, ao

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olhar para frente, diziam: “agora tá tudo seco”, “tá esse deserto”, “tu precisa de vê quando chove aqui”, “fica tudo verdinho”. A conversa indicava saudades da vida no Bravo que havia desaparecido com uma seca tão longa como jamais haviam visto.

Em anos chuvosos, o inverno no Bravo tem início em março, algumas chuvas esparsas marcam presença desde o mês de janeiro, mas, o maior volume de precipitações costuma ocorrer apenas a partir de março, prolongando-se até maio. O inverno é, portanto, o tempo de chuvas fortes e constantes por um período médio de três meses. Como bem definiu Maria durante conversa em frente à sua casa.

_ É o tempo mais chovedô aqui. Dependendo, continua, mas inverno grosso mesmo é março, abril e maio. Junho já é fim de inverno aqui, se chover é pouco, ninguém mais espera inverno em junho e julho não”.

Chuvas com precipitações médias de 2 a 5 mm podem ocorrer ao longo do ano, fora do que é considerado inverno. Porém, o volume e constância não são suficientes para grandes modificações no fluxo da vida, a água que molha a terra logo evapora e a que cai sobre os lajedos não altera o volume dos tanques. Mas, as plantas se alimentam dessa água e a parte que escorre nas calhas das casas é armazenada nas cisternas e faz com que estas não sequem por completo. Tais precipitações não são consideradas como parte de um inverno, algumas, as menores em volume, não são nem mesmo classificadas como chuvas e sim como nevoeiros, com volume baixo para mudar a vida, mas, o suficiente para a sobrevivência das palmas, por exemplo. Porém, para formar um inverno é preciso que haja chuvas em volume e regularidade suficientes para modificar a vida no semiárido.

Assim, enquanto estive em campo sem saber das chuvas de inverno que viriam em 2018, ouvi as narrativas de memórias de invernos passados. As chuvas estão entrelaçadas nas lembranças da vida no Bravo e de uma das últimas lembranças do inverno de 2010, pude obter uma imagem do vilarejo em tais condições. Me contou Laura que sob chuva forte e com muita lama, o suficiente para atolarem botas e carros, Eduardo Bagnoli chegou na porteira para se despedir e mostrava a ela o carro todo enlameado dizendo com enorme sorriso que devolveria ao Cariri cada pedaço de lama que grudou no carro, pois “o que é do Cariri deve ficar no Cariri”, e seguiu viagem todo molhado e com o carro manchado de lama. Ao contarem daquele momento de despedida, recordaram também e descreveram as fortes chuvas daqueles dias e que, a contar do ano seguinte, não se lembravam

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mais de nenhuma chuva como aquelas. A cena narrada, por ter sido também a última vez em que encontraram com S. Eduardo, que viria a falecer poucos meses depois, trouxe à tona a última lembrança que tinham de um inverno no Bravo e a definição de quando teria ocorrido. Assim, enquanto a chuva não vinha e sem previsões para o inverno de 2018, as memórias formavam a única, e rica, descrição desta estação no Bravo.

Destaco também uma entrevista que, como a maioria das outras, no seu decorrer tornou-se uma longa conversa com memórias de invernos passados. Em meados de janeiro de 2018 fui à casa de Geraldo no final de uma tarde, me sentei no tamborete e perguntei se podia fazer uma entrevista, queria saber como era o inverno, afinal, logo voltaria para casa e mais uma vez deixando o Bravo em situação de seca. Engano meu foi pensar que seguiria um roteiro, a entrevista com Geraldo logo se tornou uma boa conversa, com a presença, como sempre, da esposa Maria e do amigo Antônio.

_ Me contaram de uma chuva muito forte que deu aqui em 2008. – comentei durante a conversa/entrevista.

_Foi! - disse logo Antônio - Pronto! 2008 estourou aquela barragem ali. (há uma pequena barragem construída em uma área de acúmulo de água próximo à estrada)

_ Os carro ficou um bocado de dias passando por outro canto porque não dava pra passar alí. Aqueles tubo estourou tudo e foram parar do outro lado, lá pro roçado. Aquela barragem ficou 22 dias sangrando, direto, dia e noite, 22 dias passou sangrando. Só chovia de tarde, mas choveu toda tarde, toda tarde. - contava Geraldo.

_ Também de lá pra cá teve mais chuva assim não. Choveu 2010, mas chuva igual teve em 2008 teve mais não. - disse Antônio.

_ Agora quando chove, chove memo, viu! - continuou Geraldo. Em 74 eu me lembro, foi trinta dia do mês de abril, foi trinta dia de chuva. Todo dia choveu, amanhecia o dia, terminava o dia e choveno. Esse riacho aí era zoano (apontando para a baixada seca onde em tempo de inverno corre um riacho). Os trovão! Os raio parecia que tava cortano o céu. – me dizia Geraldo.

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Intrigado com a invisibilidade (aos meus olhos estrangeiros) do riacho mencionado por Geraldo, quis saber de onde exatamente ele estava falando. Isso pois, naquele momento o que era apontado para mim para mostrar o riacho era uma continuidade do terreno seco sem marcas aparentes de que algum dia teria passado água por ali. Isso porque a seca já havia apagado as marcas da água, mas, o riacho não deixa de existir por esse motivo, estava apenas aguardando um novo inverno.

_ Mas de onde vêm as águas pra encher todo esse riacho? - perguntei.

_ Vem da serra, meu filho. Vem de lá de cima. - me respondeu Maria.

As chuvas concentradas nos três meses de inverno vêm em grande volume e as águas que caem sobre os lajedos escorrem pelas suas superfícies maciças e impermeáveis. Também os tanques excedem sua capacidade de armazenamento e vazam pelas bordas, sangram, no vocabulário do semiárido. Como que deslizando em um funil, a água escorre até os riachos, sendo um deles, aquele do qual falávamos e na direção do qual olhávamos naquele momento.

_ Aqui você já tá vendo a seca como tá, né. Mas no inverno aqui é o paraíso, ninguém vê nem essas pedra menor, vê só aquelas grande, o mato cobre tudinho. Aqui mesmo onde a gente tá, já vi mato com mais de metro de altura. É verde, verde, verde. É um paraíso mesmo. Agora… agora é isso que você tá vendo aí, parece que passou fogo. - afirmou Geraldo.

O paraíso do caririzeiro é descrito pelo retorno da água e pelo verde da flora que ressurge. Essas mudanças não são apenas paisagísticas, são valoradas a partir das perspectivas criadas para a vida pelo retorno das chuvas. Quando se reitera com certa frequência a transformação em verde de um cenário que aparentava ter sido incendiado, essa memória está entrelaçada a todo conjunto da vida e às novas alternativas sempre abertas pelas chuvas para organização da mesma. Planta-se um pouco do que vai ser consumido em família e da ração para os bichos, os pastos crescem também naturalmente e assim todo movimento da vida no Cariri se altera por completo. Ao falarem da chegada do inverno e do verde estão dizendo ao mesmo tempo que os animais do sítio têm do que se alimentar e a rotina para evitar que a criação morra por falta de alimento pode ser substituída pelo cultivo da terra.

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_ Já chegou a dar tanto feijão aqui que aquela casa onde você tá lá (onde moro durante a estada no campo) era cheia de feijão. Cheia, cheia que se perdeu. Deu tanto feijão que meu sogro botou as criação no roçado pra comer as vagem que não deu pra colher. Pra não perder, sabe. - disse Geraldo.

A imagem da terra seca com a caatinga acinzentada se contrapõe ao verde em um solo que pode gerar vida e uma nova vida para os próprios caririzeiros. A água do inverno libera os sitiantes do trabalho insalubre com cactos e macambiras e abre a chance de o solo ser cultivado por todos. É possível plantar e ver o verde do roçado crescer, tanto quanto o da caatinga. Assim, plantar, cuidar, colher, comer e oferecer formam juntos o grande momento no calendário desconforme e impreciso da vida no Bravo.

Ao final de tarde do primeiro dia em campo depois das chuvas de 2018, sentados como sempre sobre os mesmos tamboretes do terraço de Laura, já não observávamos mais a feição da seca no vilarejo. Em anos anteriores, dos tamboretes se via ao longe, nada havia no caminho para bloquear a visão. Uma algaroba próxima à cerca foi derrubada a machadadas por Val em alguns longos dias de trabalho no sol quente, ainda durante a seca. Laura reclamava que não servia para nada e ainda atrapalhava a visão. Queria ela algo muito simples que fazia sua : ver o mundo dali, o seu mundo, o vai vem das pessoas do Bravo, dos carros e motos, dos bichos e dos pássaros que ainda visitavam a casa mesmo com a seca, como os belíssimos galos-de-campina que ela alimentava. Porém, antes das chuvas via-se à frente apenas os sinais da seca: o juazeiro com galhos quase que completamente desfolhados, a terra seca e uma paisagem tomada pelo cinza e pelo marrom. Mas, desta vez era diferente, desta vez estávamos sentados frente a uma nova realidade e vivendo uma nova realidade. Dos mesmos tamboretes de sempre, agora víamos um lindo juazeiro de copa verde, as palmas encobertas pelo mato e capim que sem que fosse plantado nasceu ali, enormes capins verdes, em volta do campo um gramado nasceu e brilhava umedecido pela água do nevoeiro que passara a pouco, tudo iluminado pelas lâmpadas amareladas dos postes e os holofotes do campo de futebol. Comíamos milho assado por Geraldo e Maria, tudo do roçado plantado e cuidado por Bati. Logo segui para a casa de Geraldo para sentar-me no tamborete e conversar com ele, Denival e Antônio e veio Maria com mais espigas verdes assadas para mim. O milho do roçado

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é um marco das mudanças propiciadas pelas chuvas, agora estávamos comendo a comida do próprio plantio e, destes tamboretes observávamos um novo mundo. Todos, sem exceção me perguntavam com sorriso: Viu Mateus? Viu como mudou? Viu quanta coisa mudou?; Tá tudo diferente, não é? Cheguei na Paraíba no início de julho para viver com eles um pouco de tudo que foi proporcionado pela chegada do inverno. Nos meses anteriores, as chuvas haviam transformado suas vidas e estavam todos entusiasmados para mostrar as novidades do Cariri. Não era preciso marcar entrevistas ou lhes perguntar o que fosse, narravam aqueles momentos em que os lagos, açudes, tanques e barreiros ganharam água até sangrar, que de tamanha bátega não suportaram os volumes, deixando fluir pelo topo e por seus vãos a água que reanimou os riachos: dos riachos para o Taperoá e do Taperoá para o Paraíba. O verde e a água armazenada ainda se faziam marcantes em julho, preservados por chuvas fracas e esporádicas que ainda ocorriam. Quando cheguei, o período forte das chuvas já havia passado, mas, as marcas de sua passagem estavam ali, indeléveis, por mais que o solo da caatinga sempre volte a ressecar em questão de dias, as possibilidades abertas para a vida nos apresentam uma espantosa nova realidade. Os traçados de linhas da vida no semiárido ganham novas cores a partir das águas de inverno, novos formatos, nova dinamicidade e novos integrantes para esse emaranhado: o vento carregado de poeira dá lugar a um frio que faz com que tenhamos que nos agasalhar durante as noites; árvores e cactos florescem e frutificam, aves como as garças e as arribaçãs voam de longe atrás das sementes e dos frutos, também os insetos, como os grilos em grande número, voltam a aparecer; e os sapos atrás deles. Na interação dentro dessa nova realidade os habitantes humanos do Bravo também recriam suas próprias vidas no cultivo do solo e na relação com os outros habitantes deste ambiente. Essas transformações foram descritas com maestria por Euclides da Cunha durante sua viagem à Canudos, no semiárido baiano, no ano de 1897, quando presenciou a violência da guerra, mas, também teve a oportunidade de ver a incrível capacidade da vida na caatinga de se transformar com as chuvas. Enviado como correspondente do jornal o Estado de São Paulo para cobrir a Guerra de Canudos, Euclides da Cunha descreveu anos mais tarde em um pequeno e preciso relato as chuvas e as profundas transformações que presenciou:

Nuvens volumosas abarreiram ao longe os horizontes, recortando-os em relevos imponentes de montanhas negras. Sobem vagarosamente; incham, bolhando em leitos e

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desmesurados rebojos, na altura; enquanto os ventos tumultuam nos plainos, sacudindo e retorcendo as galhadas. Embruscado em minutos, o firmamento golpeia-se de relâmpagos precipites, sucessivos, sarjando fundamente a imprimadura negra da tormenta. Reboam ruidosamente as trovoadas fortes. As bátegas de chuva tombam, grossas, espaçadamente, sobre o chão, adunando-se logo em aguaceiro diluviano (…) E ao tornar da travessia o viajante, pasmo, não vê mais o deserto. Sobre o solo, que as amarílis atapetam, ressurge triunfalmente a flora tropical. É uma mutação de apoteose. (Euclides da Cunha, 2002: 58-59)

Quando cheguei na Paraíba naquele mês de julho, tal mutação já podia ser percebida no caminho que fiz do aeroporto de João Pessoa, no litoral, passando pelo Agreste até chegarmos ao Cariri. Chovia leve, mas ininterruptamente do litoral até a Campina Grande. As impressões deixadas pelo período das águas eram expressivas também por todo caminho já no contexto semiárido. A começar pela presença constante do verde das folhagens da caatinga, como também os muitos lagos e barreiros repletos de água, plantas e pássaros. As palmas, que no fim de janeiro, quando deixei o Cariri, já definhavam magras por falta de água, cresceram, encorparam e multiplicaram suas folhas com enorme rapidez. Da mesma forma, que muitos animais que já não eram vistos durante os anos de seca, agora estão pela mata e alguns chegam a aparecer pelos sítios. Como a bela tacaca (Conepatus semistriatus) que Denival encontrou no terreiro de sua casa. Em uma noite no terreiro da casa de Geraldo, Denival chegou demonstrando grande felicidade para mostrar as fotos que havia tirado com o celular de uma tacaca que visitou sua casa. A base do pelo do animal de cerca de meio metro é preta e sobre as costas duas tiras brancas vão da cabeça ao rabo, que é todo branco com o formato de um grande espanador de pó. Denival a fotografou por diversos ângulos enquanto a espantava com um rodo e tentava desviar dos esguichos de um líquido fétido que ela usa para se defender. Assim como a tacaca, outros animais ressurgem com as chuvas: garças são vistas pelos céus e tanques, arribaçãs em grande quantidade, os jabutis saem dos esconderijos na terra em busca dos frutos que caem no chão, principalmente o umbu, reaparecem o peba, o tamanduá e a raposa, como tantos outros. Para notarmos o contraste, em certo fim de tarde sentado no terreiro com Geraldo e Antônio, ainda em dezembro de 2017, falávamos sobre alguns desses animais que há muito já não se via:

_ Com essa seca tem bicho que não aparece mais não. - disse Antônio.

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_ O preá principalmente. O mocó também não vejo faz tempo. Já visse mocó? É parecido com preá só que grandão. Só que o mocó só vive nas pedra, nas brecha de pedra. complementou Geraldo. _ A tacaca também. Vê mais não. - continuou Antônio. _ É, vê mesmo não. Agora preá e mocó se procurar ainda vê aí pra serra. Mas é difícil. Aqui tinha muito de primeiro, muito, muito mesmo. - disse Geraldo. _ Faz tempo que não vê também o nambu. E a codorniz. Agora é brava! … é difícil, tinha muito antigamente. - disse Antônio. _ Tinha também o tatú, o peba, o bola. Cê conhece o peba? É como o tatú, a diferença é que o tatú é roxinho e ele é mais amarelado. E tinha o bola, é como o peba, mas o cabra buliu com ele, ele fechava assim, que nem uma bola. Não tinha quem abrisse. Mas aqui praticamente acabou-se. - disse Geraldo. _ Mas esse aí não aparece mais não. Faz mais de vinte ano que não vejo um bola. Os outro aparece, precisa é de chuva. - Concluiu Antônio.

O tatu-bola (Tolypeutes tricinctus), ou apenas bola, é um animal classificado como estando em risco de extinção e, neste caso, o problema não é a seca prolongada, mas a caça e o desmatamento que ameaçam a espécie (REIS, 2015). Os demais têm quantidade reduzida sempre que comparados com as memórias do passado no Bravo, mas ressurgem com o inverno e não é difícil avistá-los pela mata, ou mesmo em visitas aos sítios, como no caso de cobras, raposas, seriemas e também a tacaca fotografada por Denival ou dos jabotis que vão em busca das frutas dos umbuzeiros. Os tanques também passaram por grandes transformações durante essas chuvas e são responsáveis por atrair muitos animais para perto. Ao iniciarmos 2018 já estavam em sua maioria secos e apenas alguns, os mais profundos, ainda guardavam um restante de água suja no fundo. Não apenas no Bravo, mas por todos lajedos vizinhos o que se percebe hoje é uma realidade completamente diferente daquela presenciada durante a estiagem: tanques cheios, com água limpa que se vê as pedras no fundo, árvores submersas pela água que há anos não chegava a tal ponto, plantas nascem ao redor e sobre as águas e também as garças voltaram a aparecer nas beiradas de água e sobrevoando o céu do Bravo. Os tanques já não são a única alternativa, mas, cheios, garantem importante reserva tanto para humanos quanto para não humanos, àqueles que nunca

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deixaram o local e tiveram que resistir à seca e também aos migrantes, como garças e arribaçãs, que sempre voltam de longas distâncias junto com o inverno. Durante o período das chuvas, tanques como a lagoa da laje e o tanque de emergência ganham grande volume de água limpa onde todos podem até mesmo se banhar. Alguns são convertidos em reservas de água, outros podem ser utilizados como piscinas naturais, dado a profundidade e capacidade de acúmulo. Se durante a seca só o que se via nos lajedos eram as marcas da água no fundo seco e em suas paredes em uma paisagem de rochas onde apenas cactos e urtigas sobreviviam, o inverno possibilitou o desenvolvimento e o retorno de diversas formas de vida ao redor dos tanques e estes ganham sentido novo na vida do vilarejo. Para comemorar as chuvas, logo que os tanques encheram, adultos e crianças foram nadar no lajedo, pois, obviamente é algo que só é possível no inverno e não se sabe quando outro virá a ocorrer. Os tanques cheios proporcionam, portanto, uma outra organização da vida ao seu redor: humanos se banham e lavam roupas, pássaros, insetos, animais da criação ou da mata também reaparecem com o retorno da água e da flora. Se os tanques que tive a oportunidade de conhecer antes do inverno tinham apenas as marcas de onde um dia passou a água, raros verdes resistentes, urubus e caprinos (estes apenas de passagem). Com água em abundância, suas bordas viram o regresso de toda forma de vida. Foi comum durante o mês de julho daquele ano acordar com o chão úmido, algumas vezes com o céu nublado e o vento frio de todas as noites (frio para os padrões do Cariri). Algumas vezes percebia uma garoa, daquelas que não se vê as gotas d’água, mas sim uma grande névoa que em uma caminhada de metros já deixa sua roupa levemente molhada. Porém, na percepção das pessoas do Bravo, não foi dos melhores anos de chuva e por conta de falta de sequência das chuvas fortes do mês de maio em diante, muitos perderam parte das plantações com os grãos ainda crescendo nos pés, como me disse Givaldo:

_Não foi um ano chovedô, como em outros anos. Acabou aqueles anos chovedô… Acabou não, né, que um dia volta.

Cheguei no Bravo naquele ano de inverno com o dia frio e neblinado, nos dois dias seguintes o sol apareceu timidamente, voltou a neblinar na sexta-feira e tive a grata surpresa de um dia de chuva naquele sábado, 7 de julho, leve e ininterrupta. O pluviômetro de Rejane marcou 6 mm, o

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que de forma isolada pode ser considerado pouco, mas, na soma contabilizamos 400 mm naquele ano. Durante os anos de seca, o pluviômetro de Socorro, instalado em sua casa, logo no início do Bravo, não chegou a registrar 100 mm ao ano. As chuvas fortes de poucos dias alimentaram riachos, rios, açudes, tanques, barreiros, molharam a terra, alimentaram cactos e outras plantas e deram condições para uma nova configuração da vida. Já as chuvas leves, que de tempos em tempos umedeceram o solo, possibilitaram a manutenção da vida, visto que, como já foi dito, o solo do semiárido não retém a água das chuvas. São necessárias ao menos algumas garoas ao longo dos dias para que o solo não fique seco por completo e não se perca o roçado por falta de água no momento de crescimento das plantas. É preciso saber o momento de plantar e contar com as chuvas em sequência, algo que, como já vimos com Renzo Taddei (2017), é de difícil previsão. O ano de 2018 já começou dando sinais de ventura. Ainda em campo durante o mês de janeiro, presenciei 5,5 mm que desapareceram da superfície tão logo veio o sol da tarde. Não parecia ser algo que já não tivessem presenciado, não era ainda o suficiente para que pudessem fazer algum plano do que viria à frente. Afinal, após sete anos desde o último inverno, chuvas como essa do dia 15 de janeiro eram apenas um alento para as cisternas, as plantas da caatinga, as palmas e a criação. O que não significa que esses momentos não fossem vivenciados com muita alegria. Duas semanas mais tarde, já não estava no Bravo, acabara de pegar o caminho de volta quando recebi a notícia alegre de Rejane pelo Whatsapp de que chovera quase o dobro naquele dia, seu pluviômetro havia registrado 10,5 mm. A sequência de duas chuvas com poucos dias de diferença e a elevação do volume anotado (e, mesmo que não anotado, percebido) geraram um fio de esperança. Porém, não gastariam no roçado tempo e dinheiro a partir dos primeiros sinais de chuva, aqueles 16 mm de janeiro eram muito bem-vindos, mas não eram entendidos ainda como prenúncio de um inverno. Como se dentre as mudanças provocadas pela última seca, tivessem perdido a confiança nos sinais de fluxo do tempo climático como estavam acostumados até então. Assim também, as chuvas do inverno de 2018 não vieram em volume e regularidade necessários para o pleno desenvolvimento das plantas dos roçados. Pelas estradas avistava com frequência roçados se perderam por falta de água. Pés de feijão ressecaram, grãos se perderam com a vagem ainda pequena, milharais secos com as bonecas (espigas) ainda pequenas e crescimento interrompido. Isso porque, no momento de desenvolvimento dos frutos, raízes e grãos, cessaram as chuvas e faltou água para a macaxeira, o feijão, o milho, o jerimum. O momento do plantio deve

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ser preciso e contar, sem saber como, com a continuidade das chuvas. Nesse exercício de fé e resignação, chega um dia em que é preciso apostar nas chuvas e plantar o roçado ao risco de perder tudo ou colher em abundância. Como afirma Renzo Taddei (2017: 107): “perder sementes é ruim, mas perder chuva é muito pior”. Naquele julho de 2018, por muitas vezes cheguei no terraço de Bati e Laura e estavam Gilmar e Givaldo debulhando feijão-macaça ou milho para a criação. Pegava sempre um tamborete, um punhado de vagens ou espigas e começava a ajudar e, enquanto isso, conversávamos sobre os resultados do trabalho no inverno e as diferenças para anos anteriores. Ao longo do trabalho pude partilhar não apenas momentos importantes de suas vidas, como pude registrar, enquanto debulhávamos o milho, uma entrevista rica em experiências à qual retornarei algumas vezes na sequência do texto. Givaldo comentou que algumas bonecas não cresceram e me mostrou uma para que eu entendesse e a conversa seguiu sobre as chuvas e o tempo do roçado:

_ Precisava é ter dado uma outra chuva boa mesmo, grossa. - disse Gilmar. _ Quando foi pra chover mesmo, faltou água. Por isso que esse milho ficou meio miúdo, faltou a chuva pra crescer o caroço. Esse milho ele já deu no final do inverno, nós platamo no final do inverno, já no final da chuva. Mas ninguém advinha não. E tem muita gente que perdeu, com certeza. É a sorte, sabe, porque quando você tá perto de lucrar aqui no Cariri, passou a chuva e por falta de uma chuva perde tudo. A gente batalha, batalha, batalha, faltou a chuva, pronto, acaba tudo. - Completou Givando

As chuvas deste inverno se concentraram em maior volume entre os meses de março e abril, com uma forte chuva em cada mês e registros menores ao longo das semanas. Os 16 mm de janeiro não tiveram continuidade no mês seguinte, quando choveu no Bravo apenas 10 mm, somados os dias 2 e 17. Tal variação e a baixa expectativa de quem vinha de sete anos de estiagem, tornaram difícil a aposta em um inverno naquele ano, poderia ocorrer, mas ninguém faria a aposta. Não se sentiam seguros o suficiente para fazer planos a partir destes primeiros sinais. Assim, quando chegou o mês de março, duas fortes chuvas somaram 60 mm entre os dias 1 e 3 daquele mês. Porém, muitos sitiantes do Cariri não haviam plantado, ou haviam plantado pouco para não perder todas as sementes, como em outros anos. De março em diante cada sítio no Cariri passou a reabrir seus roçados apostando, agora sim, na continuidade das chuvas. Não se decepcionaram, pois, o mês

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de março seguiu com chuvas leves e nevoeiros que mantinham o solo úmido e garantiram o crescimento e uma colheita de milho (verde e maduro), feijão, maxixe e jerimum, assim como, os umbuzeiros e juazeiros voltaram a florir e frutificar. A primeira chuva de abril marcou o maior volume registrado no ano, 104 mm em apenas um dia e igualmente foi seguida de chuvas leves e nevoeiros que mantiveram a umidade do solo. O roçado de março cresceu rápido e ainda estava sendo colhido mesmo em julho. O roçado de abril perdeu desenvolvimento com a queda das chuvas no mês seguinte, em maior choveu apenas 27 mm divididos em quatro dias, 9, 15, 17 e 28. De toda forma, esse plantio não foi perdido e pode ser representado, por exemplo, pelo milho que debulhávamos na conversa citada acima, de grãos miúdos, mas em tamanho suficiente para completar a alimentação dos animais da criação. Por conseguinte, os 32 mm de junho não foram suficientes para manter o solo úmido e o crescimento das plantas, e no mês de julho apenas uma chuva de 6 mm foi registrada. O inverno chegava ao fim. A incerteza e a falta de confiança construída em anos de espera fizeram com que o caririzeiro no Bravo e redondezas esperasse até que as chuvas confirmassem o inverno. Algo que, como mencionei acima, começou em março, logo na primeira precipitação, porém, não havia garantias de que a chuva seguiria nos dias e meses seguintes. Esse jogo de sorte para o plantio do possível inverno e repetidos anos de seca, retiraram todas as certezas mesmo dos caririzeiros mais velhos, acostumados às secas e aos sinais de chuva. O que me faz retornar mais uma vez à resposta curta e direta de Fernando quando perguntado sobre os sinais da natureza para possíveis chuvas: _ Aqui não se faz planos. Fernando falava de um aprendizado recente, pois, percebia que não já não era possível entender os sinais que indicam a passagem do tempo na natureza. Descobri conversando com os mais jovens que, de anos para cá, os caririzeiros velhos não falavam mais nos sinais que antes já ajudaram a prever o futuro do tempo climático. Sabiam sim pelo canto de um pássaro, o florescer de uma planta, o movimento dos insetos, que o tempo iria mudar, mas perderam a confiança no que estavam observando.

_ Há anos sento ali no terraço e com eles, Geraldo, Antônio, Fernando, e muitas vezes os ouvia falar: “tá ouvindo? Tá ouvindo o canto do pássaro? Tá vindo chuva”. E chovia! Chovia! – me disse Bolô, genro de Geraldo.

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Em pesquisa realizada no contexto amazônico acerca das percepções de mudanças climáticas, Erika Mesquita (2012) descreve uma situação semelhante. Ela mostra como para as populações tradicionais da fronteira Brasil/Perú os sinais da passagem do tempo já não permitem as mesmas interpretações que os guiavam até então. Na percepção das populações estudas por Erika Mesquita, os “animais professores” da floresta não transmitem mais os sinais precisos que guiavam os humanos no ritmo de passagem do tempo da natureza. Através da observação destes animais, dentre outras coisas, sabiam prever o tempo das chuvas, o movimento dos rios, da caça, dos peixes, etc. Como afirma um de seus interlocutores no Acre: “Os animais da mata têm mais sabedoria que um ser humano, eles conhece o tempo, sabe chuva e sabe quando vai fazer verão também e se você conhece o que ele tá dizendo, vai saber também. Eles são professor” (MESQUITA, 2012: 73). No entanto, assim como no Bravo, os habitantes perderam confiança nas interpretações do movimento da natureza, os sinais parecem não regular mais com a realidade da passagem do tempo. Como afirma a autora, “os modos de conhecer e agir sobre a natureza, tanto dos humanos quanto dos animais, perderam sua eficácia segundo os moradores da floresta. Os animais estão tão desorientados quanto os humanos em um mundo desordenado” (Ibid: 49). Os sinais no Cariri continuaram, não desapareceram, mas, sem serem capazes de precisar o que estava por vir, ano a ano a seca continuava e se agravava de uma forma como eles ainda não haviam ouvido contar e muito menos experienciado. Com isso, se alterou a confiança dessas pessoas nas possíveis consequências desses sinais, não se fazia mais planos com base neles. Os marimbondos que procuram o interior coberto das grutas para proteger sua casa das águas que viriam, já pareciam incertos. Da mesma forma que alguns mandacarus floriram na seca e não foram acompanhados pela chuva. Como também em certo dia de janeiro durante a seca, sentado conversando com Eurique no terraço de sua casa, observei que ao fundo haviam nuvens negras, o dia amanhecera nublado e com um vento frio, então perguntei a ele:

_ Quando o dia amanhece assim, não se tem a impressão de chuva? Sei que é muito diferente, mas, de onde venho em dias assim sempre chove. _ Aqui também era assim. Antigamente eu pensava que podia chover, hoje não penso mais não. - respondeu Eurique.

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Aquela nuvem passou, o dia clareou e logo a tarde o sol quente e o vento seco de poeira voltaram a compor o Bravo. Ouvi depoimento semelhante de Danda quando em janeiro de 2017 conversávamos sob a árvore em um dia quente e seco. Era minha primeira entrevista no Bravo e lhe perguntei se dava para saber “quando tá pra vir chuva”. Ele e Dedé Ricardo riram de sorriso aberto e Danda respondeu:

_ Aqui é difícil, meu velho. Aqui é difícil d’a gente saber. Tem hora que você vê que essa serra quase que encobre. É cada uma nuvem tão linda do mundo, eu digo: pronto, agora vai! Quando passa um pouco, acabou-se, vai embora, né. _ O Cariri da gente é muito difícil. Não é pra desfazer de Deus não, mas é muito difícil. Não dá pra saber. - comentou Dedé. _ Lá pra onde você mora, lá pra lá não, vocês quando vê uma nuvem escura já sabe, né, que vai vim um pé d’água, não é isso? No caso, eu morei em João Pessoa, as vezes a gente tava como a gente tá conversando aqui agora, ajeitava uma nuvenzinha e quando via era água no meio da rua, por todo canto, chuva demais, né. Mas aqui é diferente, aqui é difícil, e é assim memo, a gente se acostuma. Você vai se acostumar, você vai ficar ainda uns dia - disse Danda sorrindo.

Em outro momento da mesma conversa, perguntei sobre a missa e a novena que ocorreriam naquela semana, queria saber se as pessoas rezavam pela volta das chuvas, ao que Danda me respondeu mais uma vez sorrindo:

_ Vem chuva não, vem chuva não. Se rezar trouxesse chuva, Igreja era uma lagoa.

Sem saber quando as chuvas virão em abundância, o futuro se faz incerto e o aprendizado passa a ser não fazer planos para uma chuva que não sabem quando vem. Assim, a fé é desenvolvida no cotidiano da vida, enquanto se espera pelo inverno, procurando construir a vida conforme as condições do momento. Neste sentido que afirmo que acreditar na chegada do inverno é como um “ato de fé” no pressuposto de que algum dia o período das chuvas deve voltar (cf. ALMEIDA, 2013). Soma-se a isso tudo a incerteza quanto ao início do inverno (quando houver) e sua constância, incertos mesmo para a ciência, como afirma Renzo Taddei:

A meteorologia pode prever, com taxas altas de sucesso, o total de chuvas a ser esperado na estação úmida, mas não é capaz de prever as primeiras chuvas da estação com antecedência maior do que duas semanas. Também não é capaz de

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prever se e quando haverá períodos secos, altamente destrutivos para a lavoura, no meio da estação (TADDEI, 2017: 126)

Sendo assim, caririzeiro algum apostaria em sinais da natureza e tão pouco na previsão do tempo dos especialistas para plantar seu roçado após sete anos de estiagem. Isso obviamente inviabiliza o trabalho agrícola de todos aqueles que não tenham irrigação. Como Bati e seus filhos, muitos outros sitiantes preferiram não apostar na lucratividade daquele inverno, não fizeram planos a partir da primeira chuva, plantando apenas para a ração dos bichos e um pouco para as casas. As chuvas podiam ter chegado, o que multiplica o pasto dos animais, mas, haveria sempre uma desconfiança quanto a continuidade para se apostar no cultivo do roçado. Como pude ouvir na mesma conversa que citei a pouco, enquanto debulhávamos o milho dos animais:

_ Se plantar bastante dá pra vender. Já teve ano de nós aqui lucrar quarenta, cinquenta sacos de milho. E tem gente que não tem bicho pra dar, ai vende. Às vezes vende só dez, vinte, trinta sacos de milho. É como feijão mesmo, esse feijão macaça (e apontou para o feijão que havíamos debulhado na noite anterior), colhemo já vinte, vinte e cinco sacos de feijão, três sacos de fava, bastante pra vender. Até plantemo fava esse ano, né Mateus, mas deu pouco. Como eu disse, foi plantado depois, já no período do inverno… - dizia Givaldo, enquanto debulhávamos o milho. _ Atrasado - disse Gilmar. _ Atrasado, com certeza. Plantemo atrasado. É que nós desanimamo com os anos tudo ruim, sabe Mateus, só perdeno, só perdeno. Aí ninguém pensa, na hora, que ia chover tanto. No começo pensava de chover e parar, mas aí continuou, né. Depois de tanto ano ruim, o cabra já vem trabalhando o ano todinho, quando chega na época do inverno… _ É que a chuva do ano todinho vem tudo de uma vez. - disse Denival, que chegara a pouco no terraço. _ Pronto, foi isso, choveu muito, mas choveu tudo duma vez, depois ficou fazendo falta. - completou Givaldo.

Por conviverem a gerações com longos períodos de seca e a incerteza quanto as chuvas, sua ocorrência, volume e regularidade, tempo algum pode ser perdido e trabalham incansavelmente para não deixar passar a oportunidade quando essa se confirma. Algo como Cohen e Duqué (2001: 152) descreveram sobre o Ligeiro: “En effet, dès les première pluies il faut commencer

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immediatemment les semis de maïs et de haricot, car on ne sait jamais combien de temps la période pluvieuse durera”. Por não saberem quanto tempo deverá durar este período de chuvas e se no ano seguinte terão inverno novamente, o plantio, cuidado e colheita do roçado são momentos tão valorizados na vida do caririzeiro. Mas, diferente do observado por Cohen e Duqué, na região próxima ao Bravo, depois da longa seca com repetidas perdas, escolheram não plantar logo na primeira chuva, esperaram que o inverno se confirmasse nas seguintes. Sendo assim, para não perder as demais chuvas, Bati não saiu mais do roçado enquanto alguém não lhe buscasse ou enquanto o corpo, mesmo que forte, de 85 anos suportasse. Com trabalho coletivo envolvendo os filhos Geraldo, Givaldo e Gilmar, com ajuda do neto Douglas, e também de Denival, que trabalha para todos os sítios do Bravo e proximidades, reavivaram o roçado nas terras de Bati. Cavavam e plantavam embaixo de chuva, neblina ou sol, não importava o dia ou as condições para o trabalho, perder um dia poderia significar perder a chuva que germinaria a semente e faria a planta crescer. Bati, principalmente, afirmam Laura e os filhos, trabalhou da primeira à última luz do dia molhando e secando as roupas sem deixar o roçado. Isso tudo para plantar a tempo de aproveitar as chuvas que não se sabe por quanto tempo duram e quando tornarão a ocorrer. A produção de milho foi o suficiente para não gastarem com ração, que não fosse a torta de algodão, importante para a lactação das vacas. Assim como, o milho colhido e assado na brasa ao final de tarde se tornou um importante momento de encontro e conversas que iam muito além do próprio milho. Tantas vezes os ouvi dizer que não há coisa mais gostosa que milho assado, mas, que também não lembravam mais quando tinham comido pela última vez. As crianças ainda mais, a maioria delas nunca havia experimentado algo que é muito apreciado por todos os adultos. O roçado propiciou, portanto, transformações diretas na economia da criação, como também na alimentação humana e nas relações que se estabelecem ao redor do seu preparo e consumo. Comer e oferecer comida do roçado é motivo de orgulho; Laura caminha pelo terreiro observando suas melancias e jerimuns crescerem. O momento de assar e comer milho, de preparar pamonha, debulhar e cozer o feijão ou a fava, trazem a percepção de uma mudança generosa e formam momentos de partilha da vida. Sempre após debulharmos um saco de feijão, Rejane separava para todas as casas das cunhadas e sobrinhas e mesmo eu voltei para Minas com perto de três quilos de feijão-macaça na bagagem. O maxixe, apesar de não ser fruto direto do trabalho

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humano, se esparrama por todo roçado e por entre as palmas, como dizia um dia Gilmar: _ Pai nunca plantou um maxixe na vida, olha quanto dá. É uma chuva boa e ele alastra. Tal qual, ao debulhar o milho ou preparar o maxixe também se formam momentos de trabalho coletivo e conversa nos tamboretes. Para a maxixada, cada um com uma faca deve raspar os espinhos, cortar ao meio e experimentá-los para evitar os frutos amargos que estragariam a comida. Cada pé de milho plantado no roçado tinha junto a si um pé de fava, que em maioria não vingaram, e por entre as fileiras um caminho de palmas e feijão-macaça. As palmas são investimento futuro, pois, em caso de nova seca, elas estariam localizadas entre o roçado, em área de relativa maior concentração de umidade e com solo protegido do sol pela folhagem do milho e do feijão macaça, que espalha rasteiro. Em caso de tudo, inclusive o roçado, secar novamente as palmas estariam grandes e preservadas para a ração animal no período da estiagem. Ou seja, se o caririzeiro não sabe quando as chuvas virão, sabe com certeza que deve se precaver para a seca, pois, quanto a essa, é certo que todo ano virá. Insisto em dizer que com as chuvas de inverno possibilidades são abertas, não há, portanto, qualquer tipo de determinação ou causalidade nas novas configurações da vida a partir de então. É importante observar como a vida se transforma com as águas e não em consequência delas. As consequências na vida humana dependem, na verdade, das relações que humanos estabelecem com todos os outros personagens deste mesmo emaranhado de vidas. O solo umedecido precisa de investimento, trabalho e cuidados para se converter num roçado. Outrossim, é preciso também que chova, o imponderável por excelência da vida no semiárido, para que seja possível armazenar água nas cisternas, umedecer o solo também da mata de caatinga e garantir o ressurgimento da flora, o retorno da fauna. Isto é, os possíveis benefícios do inverno dependem da ação e da interação de humanos em um emaranhado de relações que inclui todas as coisas presentes nesse ambiente, das rochas, plantas e animais, às casas, motos, instrumentos de trabalho e toda sorte de construções humanas, como também os habitantes do vilarejo e aqueles que por ali passam, assim como, governantes e funcionários públicos. O problema do semiárido, portanto, não é a falta de chuvas, mas, o que se pode fazer para sobreviver quando elas não ocorrem. A falta de planejamento do poder público é que condena essa população durante os mais longos e intensos períodos de estiagem. Da mesma forma que as possíveis vantagens, ganhos e melhorias do inverno dependem das interações dentro

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deste mesmo emaranhado. Portanto, não são, de forma alguma, causalidades provocadas pela seca ou pelas chuvas. No caso específico do inverno de 2018, ficou claro que, após sete anos de estiagem, poucos estavam preparados para as chuvas. Isso somado ao descuido do poder público formou condições propícias para a proliferação do mosquito da dengue. Doença tipicamente urbana que encontrou facilidade para proliferar no desequilíbrio ecológico de sete anos sem um período de chuvas e em locais propícios para o acúmulo de água parada e proliferação do mosquito transmissor da doença, o Aedes Aegypti, tais como as fossas de esgoto. O resultado foi o adoecimento de quase a totalidade dos moradores do Bravo, transformando um momento único de alegria pela chegada do inverno em meses de remédios e hospitais. Portanto, as qualidades do inverno não estão inscritas nele de antemão. O adoecimento dos idosos, principalmente, devido à baixa resistência de seus corpos e o longo tempo de recuperação provocaram desespero em algumas famílias. Assim, é importante salientar que as chuvas de inverno propiciam mudanças, dão as condições para que elas ocorram, não as causam. O movimento da vida depende do entrelaçamento de trajetórias de vida em um emaranhado complexo e heterogêneo, não há determinação, mas, ações possíveis e respostas criativas aos contingenciamentos das sazonalidades. Assim, fica claro que neste emaranhamento incessante a água é capaz de se entrelaçar a todo conjunto da vida. O que será feito a partir das possibilidades abertas, limitadas, modificadas entre o inverno e a seca, depende não só daqueles que ali vivem, mas também por ali passam e também das instâncias governamentais, seus gestores e funcionários, assim como, das relações que estabelecem num entrelaçar de vidas humanas e não-humanas no Cariri. Os possíveis impactos de um período chuvoso sobre os habitantes do semiárido não estão marcados na natureza da mesma forma que os impactos das secas também não estão. Não é o caso de refletirmos sobre o que a seca ou o inverno faz da vida, mas de como na relação com todas as coisas uma vida digna no Cariri pode ser possível. Assim como, medidas que favoreçam a convivência com as secas são ainda mais urgentes considerando as mudanças climáticas e o acirramento das secas. Seja aproveitando as chuvas de inverno ou esperando o fim da seca, é preciso que haja condições infraestruturais e econômicas para responder a tais eventos, sozinhas nem a chuva nem a seca são causadoras de nada.

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Capítulo 8. Um outro olhar: o entrelaçar de vidas em fotografias

As representações pela imagem abrem outra possibilidade de leitura, uma outra perspectiva para o olhar. Da mesma forma que busquei descrever o movimento da vida no Bravo em suas transformações ao longo das variações sazonais, registrei para a memória estes mesmos movimentos. Da forma como estão organizadas, as fotografias possibilitam observar os diversos atores que participam da vida no lugar em contextos diferentes de disponibilidade de água. Inspirado nas etnografias de Margareth Mead e Gregory Bateson (1942) e André Alves (2004), compus este capítulo com imagens, ou sequências delas, que contribuem para a compreensão da dinâmica da vida nos sítios do Bravo e suas transformações sazonais. Algo que não pretendo que seja observado enquanto ilustrações ou anexos ao relato já realizado textualmente, mas sim, uma outra possibilidade de leitura complementar à anterior. Como afirmam Mead e Bateson (1942: 49): “we tried to shoot what happened normally and spontaneously (…). We treat the cameras in the field as recording instruments, not as devices for illustrating our theses”. Por outro lado, diferente das obras acima citadas, escolhi, por influência do argumento de Eduardo Bagnoli, registrar e apresentar fotos em cores, com o máximo de destaque para as suas variações no Cariri. Em 2009, um ano antes de seu falecimento, Eduardo Bagnoli foi convidado a participar de um programa de televisão de uma pequena emissora de Natal, no Rio Grande do Norte, onde residia e estava inaugurando uma exposição com fotografias do Nordeste semiárido. As fotografias da exposição estavam em preto em branco, mas disse ele naquele dia que seu projeto era publicar um livro e que seria colorido. Perguntado do porquê pelo entrevistador, ele respondeu:

_ [Colorido ou preto e branco] são formas diferentes de registrar e exibir. Eu acho, eu tenho uma missão com relação ao Nordeste e a minha missão é divulgar as belezas do interior principalmente. Eu entendo que existe um preconceito do brasileiro com relação à caatinga, ao sertão. E eu quando estive aqui pela primeira vez eu não senti, eu como geólogo, não tive essa sensação de tá num ambiente hostil, num ambiente árido. Pelo contrário, eu enxerguei muitas belezas. Eu vi que eu tinha uma visão diferente disso tudo e depois, no turismo, eu sempre defendi isso. Por essa razão que meu livro vai ser colorido. Eu quero que o sertão se mostre no seu melhor. (BAGNOLI, 2009)

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O livro não chegou a ser publicado, mas vejo na visão de Eduardo Bagnoli de um Nordeste semiárido colorido uma perspectiva muito inspiradora. Até mesmo porque as luzes e as cores vistas a partir do Bravo e região foram as primeiras a me impressionar, assim como as incríveis variações de cor que o céu pode tomar ao longo de apenas um pôr do sol. A experiência de fotografar o Cariri impressiona, pois, faz parecer fácil compor belas fotografias, como se a luz, as cores e a disposição das coisas e pessoas no ambiente tivessem sido feitas e postas em cada lugar exatamente para fossem fotografadas. Havia me dedicado, dentro das limitações técnicas que possuía, a captar imagens que fossem capazes de registrar e transmitir a impressão que eu mesmo tinha do momento, o fluxo e a dinâmica vistos daquele ponto. Isso pois, pretendia utilizar as imagens apenas como ativadores da memória para a escrita posterior da tese. Via então como importante no momento da captura que na composição da imagem fosse possível encontrar diversos atores da vida no Cariri em movimento num mesmo enquadramento. Assim como, tinha o desejo de que ao olhar para cada uma delas, fosse possível perceber o movimento na imagem, algo deveria estar ocorrendo nas imagens aparentemente estáticas. Passei então a pensar cada clique na máquina como a tentativa do registro de um instante em movimento. O registro deveria conter a dinâmica da vida no vilarejo do Bravo, as pernas deveriam caminhar nas fotos, a macambira e o xiquexique deveriam continuar queimando na imagem registrada, o movimento da vassoura pelo terreiro deveria ser perceptível. Enfim, a vida não é estática e, na perspectiva com a qual trabalhei, isso foi considerado na escolha daquelas que comporiam o trabalho. Para esse trabalho utilizei sempre equipamentos simples, aqueles que tinha ao alcance no momento. Na primeira viagem à Cabaceiras levei uma máquina emprestada da amiga antropóloga Patrícia Carvalho, uma Fugifilm S2800, com ótimo zoom de 18x e 14MP, mas nenhuma foto desse primeiro campo foi inserida na tese, mas, utilizadas durante a escrita. Antes de partir em viagem uma semana antes, pedi a um amigo que já havia estudado e tinha conhecimentos sobre técnicas de fotografia, que me ensinasse algo. Ele me mostrou as três configurações básicas que um fotógrafo deve saber para controlar manualmente sua máquina: a abertura do obturador, a velocidade de abertura e o ISO. Ou seja, basicamente o controle da luz que entra e é registrada na câmera. Com essas três configurações em mente e algum ensaio pelo bairro, fui a campo em janeiro

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de 2015 para perder mais da metade das fotos por falta ou excesso de luz, mas aprendi o mínimo que precisava para outras experiências. Na segunda viagem, comprei uma câmera usada simples e antiga, mas, com a qual registrei alguns dos mais significativos momentos do auge da seca em princípio de 2017. Comprei por 120 reais uma Canon Powershot S2 IS, como 5.0 MP, e com ela fiz a maior parte das fotos deste período. Por apenas um dia durante essa incursão a campo, levei para o trabalho uma câmera de maior qualidade que consegui emprestada com Rejane: uma Nikon D3400 com lentes removíveis de 18- 55 mm, que são as mais simples disponíveis, mas, já representava grande diferença se comparada ao equipamento que estava usando. Com ela registrei meu primeiro dia de trabalho acompanhando a queima do xiquexique junto com Bati e Givaldo. Porém, no dia seguinte fui com ela pendurada no pescoço para acompanhar, também pela primeira vez, a queima da Macambira. Levei a câmera, mas os cartões de memória que deviam estar nela tinham ficado em casa, no slot do computador. Percebi isso já caminhando pela Caatinga, depois de alguns quilômetros de moto pela mata. Coloquei a mão no bolso, peguei meu velho celular Nokia Lumia 520 com câmera de 5.0 MP, e registrei o trabalho com a macambira, no ápice da seca. Foram, sem dúvida, as melhores fotos que produzi durante os dias em que acompanhei a queima. Guardei a câmera de Rejane em casa para não correr o risco de em algum incidente quebrá-la e voltei para meu equipamento simples, minha Powershot velha e usada, com a certeza de que naquele momento e para os propósitos desta tese não seria o equipamento que faria a diferença. Utilizei ainda em outras viagens posteriores uma boa câmera emprestada de meu primo, uma Fujifilm S8600, com 16MP e zoom ótico de 30x. Mais que as questões técnicas, que em sua enorme maioria ainda não domino, tinha clareza comigo do que eu gostaria de registrar, mesmo que na maior parte das vezes a ideia não se concretizasse na imagem. Assim, com milhares de fotografias à disposição, passei a perceber que elas compunham um olhar a parte dentro do conjunto do trabalho e deviam ser apresentadas em um capítulo também a parte, como uma outra forma de descrição, outra possibilidade de leitura. Este capítulo é uma tentativa, tal como em “Balinese Chatacter”, de expressar em imagens aquilo que o vocabulário não foi capaz. Como afirmam os autores: “In this monograph we are attempting a new method of stating the intangible relationships among different type of culturally standardized behavior by placing side by side mutually relevant photographs. Pieces of behavior, spatially and contextually separated”. (MEAD e BATESON, 1948: xii)

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Inspirado neste trabalho clássico, apresento uma sequência de fotografias que possibilitam ao leitor alcançar outras perspectivas para o olhar. Perspectivas essas que complementam a leitura já realizada acerca do movimento da vida entre seca e inverno no Cariri. O que o leitor encontrará neste capítulo é a representação imagética de parte daquilo que foi apresentado textualmente, com destaque para as transformações em todo conjunto da vida conforme as variações sazonais e a disponibilidade de água, foco deste trabalho de pesquisa. Assim como afirmou Etienne Samain (2004: 69), “Bateson e Mead sabiam que a imagem não era o equivalente do texto, sabiam que a capacidade despertadora da imagem não podia igualar a função enunciada da linguagem. Sabiam, fundamentalmente, que ambas ofereciam algo singular e se complementavam”. Na obra de Mead e Bateson, o movimento é dado na sequência de cinco a oito fotos que compõem cada um dos cem “plates” temáticos. Estes “plates”, ou pranchas de fotografias, estão organizados em dez temas que buscam descrever o que os autores chamam de “Ethos Balinese” e o processo de aprendizagem e passagem entre gerações. Cada “plate” é organizado em sequência e, com texto explicativo, apresenta uma singularidade das características da vida no Bali, do comportamento do povo balinês. Já André Alves, inspirado na obra de Mead e Bateson, buscou uma etnografia visual do processo de trabalho dos caranguejeiros de Vitória, no Espírito Santo. Sua “Análise Fotográfica” está dividida em 28 “pranchas”, que são como os “plates” de Mead e Bateson, que descrevem os tipos de caranguejo, as técnicas e equipamentos de captura, os conflitos e o comércio nas estradas. Com essas duas referências construí este capítulo a partir das fotografias registradas em momentos distintos entre o auge da seca e o inverno de 2018 onde busco uma descrição imagética das profundas transformações na vida conforme a variação de acesso à água. Para escolher dentre as cerca de mil fotos acumuladas ao longo das passagens pelo Bravo e Cabaceiras aquelas que deveriam compor o trabalho, parti de duas premissas: a qualidade da imagem e a possibilidade desta de transmitir a sensação de movimento no processo de trabalho que estava sendo acompanhado. Ao invés de informações técnicas sobre fotografia para orientar tal escolha ou noções para possível edição das imagens (nenhuma imagem foi editada), preferi contar apenas com um parâmetro daquilo que gostaria de apresentar nesta tese. As fotografias deveriam apresentar os movimentos da vida nos sítios do Bravo, o trabalho, o cotidiano caririzeiro na busca pela garantia da sobrevivência e as fortes transformações entre os períodos de chuva e estiagem.

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Assim, as fotografias se tornaram ao longo do trabalho de campo uma forma de anotação daquilo que não podia ser registrado através da escrita, como complemento ao caderno de campo e, por fim, sem que fosse programado de antemão, se tornaram também uma forma de descrição. Procurei apreender e transmitir uma outra face do observado e experienciado, ou seja, aquilo que não se registra em palavras, tentei fotografar, e aquilo que não cabia na imagem, procurei descrever em palavras. Como num início de noite tentei fotografar os primeiros instantes da lua cheia, amarela brilhante num redondo enorme que, do ponto que eu observava, era maior que a casa de Laura e Bati e parecia nascer por detrás dela. Nenhuma foto retratou toda exuberância daquela imagem, mas, com palavras posso tentar descrevê-la. Assim, a recíproca também é verdadeira quando se trata de expressar o momento e os diversos atores envolvidos através de uma ou mais fotografias. Objetivo aqui apenas introduzir a próxima leitura, a leitura dessas fotografias. Não pretendo dar detalhes, para que na observação atenta você mesmo, leitor/leitora, possa identificar as transformações e a composição de cada momento. O que está retratado aqui, foi de outra forma descrito ao longo dos capítulos precedentes, por isso mesmo, as legendas de cada foto ajudam na leitura destas, mas não gostaria que elas guiassem o olhar apenas para certo ponto específico. Sem o excesso de explicações, gostaria que a leitura das fotografias fosse uma experiência para quem lê. Uma experiência que possibilite a percepção do entrelaçar da vida no Bravo em cada momento do dia e, principalmente, em cada dia entre a seca e a chegada do inverno. De milhares de fotografias feitas por mim, separei trezentas que representam os movimentos da vida no Bravo tais como eu os descrevi textualmente ao longo da tese. Destas, setenta e seis estão presentes neste capítulo. A escolha não obedeceu, como já mencionei, critérios técnicos de fotografia, assim, a luz nas fotografias escolhidas pode variar, mas o resultado, que confesso involuntário, acaba representando algum aspecto interessante do ambiente. Tal como, a luz de algumas fotos durante a queima do xiquexique excedeu o limite e o erro que fez desaparecer o céu em um único branco reluzente acaba por representar exatamente a sensação de calor insuportável naquele momento. Dessa forma, um erro técnico na operação da câmera me proporcionou uma imagem capaz de descrever uma experiência. Pensadas, portanto, como registros de experiências, as fotografias, tanto quanto a narrativa dos capítulos textuais desta tese, estão em “primeira pessoa”. A seguinte sequência de fotografias é um convite ao leitor para uma nova leitura deste emaranhado de vidas do Bravo pela visão que

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eu mesmo tinha daquele momento, caminhando junto com eles e partilhando momentos. Por isso, a primeira imagem pretende ser a minha visão do começo do dia no terraço, próximo de cinco horas da manhã, enquanto Laura varre seu terreiro e Val volta depois de ter levado água para o jumento. Eu tomo uma xícara de café e como um biscoito olhando junto com você um dos primeiros passos do dia em um sítio do Bravo e seguimos a leitura das fotos como uma caminhada a partir daí, com olhos atentos para toda vida e seus movimentos.

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Foto 1 - Manhã no terreiro de Laura (Janeiro de 2017)

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Foto 2 - No fundo do terreiro de Laura, a moto, o juazeiro verde durante a seca, e a cisterna são parte da paisagem e são personagens da vida no Cariri. A moto em particular, é hoje “o jumento” do semiárido. (Janeiro, 2017)

Foto 3 - A sombra da baraúna marca na estrada os limites entre Boa Vista e Cabaceiras. A imagem registrada durante a seca, mostra a intensidade do sol próximo das 14 horas, enquanto baraúna e o restante da mata desfolhadas aguardam pelo inverno. (Janeiro, 2017)

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Foto 4 – As muitas cores do céu do Bravo. Foto registrada durante a seca ao entardecer (Janeiro de 2017)

Foto 5 - As muitas cores do céu do Bravo. Foto registrada durante a seca próximo de meio-dia (Janeiro de 2017)

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Foto 6 - Na luta pela sobrevivência no semiárido, este calango escapou ao predador antes de me encontrar. (Janeiro de 2018)

Foto 7 - Jumentos vagam pela caatinga em busca de água e alimento, algo comum de se ver, principalmente na seca, quando as fontes de alimento na natureza se tornam escassas. (Janeiro, 2017

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Foto 8 - A tarefa diária de buscar água. A atividade se repete todos os dias e conforme a necessidade, várias vezes ao dia (Janeiro de 2017)

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Foto 9 - Com Val, a tarefa diária de buscar água. O poço público garante água para todos no Bravo e proximidades. (Janeiro de 2017)

Foto 10 - Com Val, a tarefa diária de buscar água. (Janeiro de 2017)

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Foto 11 – Com Val, a tarefa diária de buscar água (2). (Janeiro de 2017)

Foto 12 - Com Val, a tarefa diária de buscar água. Enquanto um "cardo santo" sobreive à seca próximo ao poço. (Dezembro/Janeiro de 2017)

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Foto 13 – Com Bati e Givaldo na queima do xiquexique (Janeiro de 2017)

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Foto 14 - Com Bati e Givaldo na queima do xiquexique (2) (Janeiro de 2017)

Foto 15 - Com Bati e Givaldo na queima do xiquexique. Um cacto grande é escolhido para servir de base para a tulha, acrescentando galho secos e as hastes dos xiquexiques ao redor. (Janeiro de 2017)

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Foto 16 - Com Bati e Givaldo na queima do xiquexique (3)

Foto 17 - Com Bati e Givaldo na queima do xiquexique (4)

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Foto 18 - Com Bati e Givaldo na queima do xiquexique (5)

Foto 19 - Com Bati e Givaldo na queima do xiquexique (6)

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Foto 20 - Com Bati e Givaldo na queima do xiquexique. O excesso de luz nessa foto mostra um pouco da sensação provocada pelo calor daquele momento, entre as 14 e 15 horas. (Janeiro de 2017)

Foto 21 - Com Bati e Givaldo na queima do xiquexique. O resultado do trabalho é carregado pelo jumento até o sítio (Janeiro de 2017)

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Foto 22 - Com Givaldo na queima da macambira (Janeiro de 2017)

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Foto 23 - Com Givaldo na queima da macambira (2)

Foto 24 - Com Givaldo na queima da macambira. Neste ambiente, diferente de onde se queima o xiquexique, a fumaça não dissipa com facilidade. (Janeiro de 2018)

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Foto 25 - Com Givaldo na queima da macambira (3) (Janeiro de 2017)

Foto 26 - Com Givaldo na queima da macambira. As tulhas são armadas espalhadas alguns metros umas das outras em pequenas clareiras. (Janeiro de 2017)

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Foto 27 - Com Givaldo e Gilmar na queima da macambira

Foto 28 - Com Givaldo e Gilmar na queima da macambira. Após resfriá-las, ensacam, costuram o saco com a fibra de uma outra bromélia, o Caroá, e Gilmar segue no jumento até o sítio. (Janeiro de 2017)

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Foto 29 - Com Bati no roçado de palmas. É possível reparar que as chuvas extemporâneas de meados de 2017 fizeram brotar algum mato, mas não foram o suficiente para as palmas desenvolverem (Dezembro de 2017)

Foto 30 - Com Bati no roçado de palmas. Ao fundo, dois umbuzeiros completamente secos mostram que tais chuvas não causaram impacto suficiente para ressurgir o verde da caatinga. A seca não havia terminado. (Dezembro de 2017)

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Foto 31 – Ainda durante o auge da seca, com Bati, Gilmar, Givaldo e Douglas. Os primeiros moem cactos e macambiras e os outros, sentados sobre os tamboretes, cortam palmas. (Janeiro de 2017)

Foto 32 – Sobre os tamboretes, embaixo do juazeiro, com Givaldo e Douglas enquanto cortam palmas. (Janeiro de 2018)

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Foto 33 - Com Bati e Givaldo alimentando os animais. (Janeiro de 2017)

Foto 34 - Com Bati e Givaldo alimentando os animais (2) (Janeiro de 2017)

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Foto 35 - Com Bati e Givaldo alimentando os animais (3) (Janeiro de 2017)

Foto 36 - Com Bati e Givaldo alimentando os animais (4) (Janeiro de 2017)

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Foto 37 - Borreguinho se alimentando na mãe. (Janeiro de 2017)

Foto 38 - Depois do almoço. (Janeiro de 2017)

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Foto 39 - Givaldo colhe o mato. Resultado da breve chuva de agosto de 2017 (Janeiro de 2018)

Foto 40 - Givaldo colhe o mato. Resultado da breve chuva de agosto de 2017. Essas palmas a frente estão na primeira fileira e pegam um pouco da água do gotejamento do roçado de Geraldo. Nota-se a diferença em seu desenvolvimento. (Janeiro de 2018)

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Foto 41 - Givaldo colhe o mato. Resultado da breve chuva de agosto de 2017 (2) (Janeiro de 2018)

Foto 42 - Givaldo colhe o mato. Resultado da breve chuva de agosto de 2017 (3) (Janeiro de 2018)

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Foto 43 - Dia de chuva no Bravo, das últimas já fracas chuvas (Julho de 2018)

Foto 44 - Dia de chuva no Bravo, nota-se que ao fundo não vemos mais as palmas, cobertas pelo mato. (Julho de 2018)

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Foto 45 – As águas que escorrem no telhado e pelas calhas alimentam as cisternas (Julho de 2018)

Foto 46 - Dia de chuva no Bravo. (Julho de 2018)

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Foto 47 - A mutação. (Julho de 2018)

Foto 48 - A mutação (2) (Julho de 2018)

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Foto 49 - A mutação (3) (Julho de 2018)

Foto 50 - A mutação (4) (Julho de 2018)

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Foto 51 - Poço e roçado de Geraldo, irrigado por gotejamento. Ao fundo vemos uma parte do Lajedo do Bravo. (Janeiro de 2018).

Foto 52 - Poço e roçado de Geraldo em uma área que está em descanso para evitar o excesso de salinização do solo (Janeiro de 2018)

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Foto 53 - Poço e roçado de Geraldo: macaxeiras (Janeiro de 2018)

Foto 54 - Poço e roçado de Geraldo, a água faz crescer o mamoeiro em meio à seca. (Janeiro de 2018)

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Foto 55 - Poço e roçado de Geraldo, capim para os animais mesmo durante a seca. (Janeiro de 2018)

Foto 56 - Poço e roçado de Geraldo, capim para os animais mesmo durante a seca. [com sua neta] (Janeiro de 2018)

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Foto 57 - O poço e roçado de Bati: em primeiro plano a perfuração que falhou, ao fundo o poço com água. (Julho de 2018)

Foto 58 - Visto do outro lado, o poço de Bati funcionando e irrigando seu roçado com o velho cajueiro renascendo. (Julho de 2018)

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Foto 59 - Com Gilmar no novo roçado de Bati. À esquerda o capim crescendo com os aspersores, que agora irrigam área nova. O restante verde é roçado de inverno. Em destaque, o velho cajueiro. (Julho de 2018)

Foto 60 - No roçado de inverno de Bati, milho, feijão macaça, palmas e maxixe. (Julho de 2018)

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Foto 61 - Vacas e alimento em fartura próximo ao poço de cata-vento (Julho de 2018)

Foto 62 - Alimento em fartura. (Julho de 2018)

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Foto 63 - Com Djair Fialho e grupo de turistas em visita ao Lajedo do Bravo. (Janeiro de 2017)

Foto 64 - Com Djair Fialho, Douglas, Fabiano e grupo de turistas suecos em visita ao Lajedo do Bravo, ao fundo a Furna do Tapuias. (Janeiro de 2017)

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Foto 65 - Com Djair e grupo de turistas de Recife em visita aos lajedos. Na Pedra do Capacete, Lajedo Pai Mateus (Janeiro de 2017)

Foto 66 - Com grupo de turistas suecos em visita ao Lajedo do Bravo (Janeiro de 2017)

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Foto 67 – Boa parte da comunidade do Bravo presente em uma boa conversa. (Janeiro de 2017) – Foto de Douglas Pereira Araújo

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Foto 68 – Em uma imagem as coisas se misturam: algaroba verde contrastando com cinza da caatinga e do lajedo, ainda, xiquexique, facheiro, palmatória, cardeiros, pinhão, o solo seco, poço de cata-vento, as cercas de arame (...)(Janeiro de 2017)

Foto 69 – Por entre os galhos. (Janeiro de 2017)

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Foto 70 – De cima da Furna dos Tapuias, 36km em linha reta, vemos ao fundo o início da cidade de Campina Grande (Julho de 2018)

Foto 71 - A receptividade do primeiro almoço na Paraíba, com Djair, Eurique, Jacilene e Junior (Janeiro de 2017)

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Foto 72 - Entrevista com Fernando que se torna longa e prazerosa conversa (Janeiro de 2017) - Foto de Douglas Pereira Araújo

Foto 73 - Fim de tarde no terreiro de Geraldo, com Antônio, Denival, Maria e as crianças (Janeiro de 2017) - Foto de Douglas Araújo

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Foto 74 – No terreiro de Maria, as conversas de fim de tarde. Detalhe para seu filho Gleissinho, com uma sanfona que acabara de ganhar (Janeiro de 2017)

Foto 75 - No caminho para visita de domingo à tarde ainda durante a seca, o que é nítido na paisagem e no contraste com o colorido das sombrinhas (Janeiro de 2017)

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Foto 76 - Com Laura e Bati em janeiro de 2017, no dia em que completaram 65 anos casados. Em 2019, antes da defesa desta tese, alcançaram 67 anos juntos. (Janeiro de 2017)

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Considerações finais

No emaranhado de vidas do Bravo a água está entrelaçada a tudo e a todos, perpassa e transforma toda forma de vida, muda o ritmo, abre e limita possibilidades e qualquer estudo no semiárido deve considerar as variações de acesso a ela. Ao observar as relações do sitiante com o solo, por exemplo, é fácil perceber que esta mesma terra, este mesmo sitiante com seus mesmos instrumentos de trabalho não são os mesmos se há ou não há água para plantar. Isso se estende a absolutamente tudo que faça ou venha fazer parte de todo esse emaranhado, toque e seja tocado por ele. São todos de alguma forma atores da vida no Cariri e, como tudo no semiárido, estão inevitavelmente ligados às vicissitudes do tempo climático, quase sempre a esperar pelo inverno, mas nunca parados. Assim, se secas são inevitáveis, é preciso estar preparado para elas. Os sitiantes do Bravo, como por toda parte do Cariri que pude visitar, têm forte ligação com seus animais de criação, são bodes, cabras, ovelhas, carneiros, vacas e bois. Se a vida do sítio varia sazonalmente, ao longo da seca o que move o sitiante é a busca ininterrupta por novas fontes de alimento que garantam a sobrevivência de seus animais. É com grande orgulho que falam da saúde de seus bichos e com tristeza da situação de outros sítios, onde as possibilidades pareciam já ter se esgotado e muitos bichos já passavam fome. Quando se esgotavam as fontes de xiquexique e macambira e a renda das aposentadorias já não conseguia comprar a ração, uma breve chuva extemporânea, e por isso não se esperava por ela, fez brotar mato por entre os roçados de palmas e nas áreas usadas para queimar a macambira. A queima funcionou também como uma forma de coivara em pequenos pontos esparsos e salvou os sítios do Bravo na beira de uma situação calamitosa, quando já não haveria alimento para seus animais. Em uma configuração completamente diferente, durante o inverno a vida se volta para o cultivo da terra. Seja próximo de casa ou nos roçados, há sempre um espaço para o plantio. Para aproveitar ao máximo as oportunidades abertas pelo período das chuvas, pois, a água destas em grande parte deverá escoar pelo solo altamente permeável e outra secará sob o calor do sol, durante o inverno trabalha-se o dia todo, da primeira luz do sol, às quatro da manhã, até a última, próximo de sete horas da noite. Se molham nas chuvas e ali mesmo se secam com o calor do sol, o que não se permitem é perder o tempo certo do plantio, em três meses o inverno terá fim. É importante lembrar ainda que as águas das chuvas de inverno fazem crescer todo tipo de mato pelas passagens

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da caatinga, fazem verdes novamente as árvores nativas, que também voltam a frutificar, as águas e os frutos atraem insetos e animais que há tempos já não eram vistos. Enfim, as águas do inverno mudam a vida das famílias e transformam tudo à sua volta, trazendo novos atores, novas contingências, temporalidades, formas de relação com o espaço, um novo emaranhado de vidas. Se não é possível controlar as chuvas, ao menos é possível construir formas de evitar a perda desta água. Se, como no ditado popular citado por Renzo Taddei (2017: 65), no primeiro semestre a chuva é incerta e no segundo convivem “com a certeza da seca”, nada mais óbvio que a necessidade de estar preparado para ela. Desde a seca de 1877, como nos mostra Frederico Castro Neves em trabalhos diversos (2000; 2001; 2013), a seca se converte de um fenômeno cíclico da natureza em um problema político e socioeconômico devido à política de terras adotada a partir de meados daquele século. Desde então, períodos de estiagem prolongada se sucederam ainda por dezenas de vezes e levaram milhões de pessoas à morte. As grandes obras desenvolvidas pelo Estado para o “combate da seca” concentram o controle sobre a água e não resolvem o problema dos sítios espalhados pelo interior. Ao analisar a atuação do Império, seus políticos e intelectuais, durante a seca de 1877-78, Frederico Castro Neves (2012) comenta como o discurso da seca como problema e fatalidade, assim como as soluções das grandes construções que historicamente concentraram água apareciam já ali:

Os sentidos conferidos à tragédia pelos intelectuais e políticos do Império tratam de “naturalizar” a seca, isto é, entende-la como resultado de mudanças climáticas imprevisíveis que produzem “efeitos” desastrosos entre a população sertaneja. Como decorrência disso, a atenção dos cientistas e políticos (...) dirigiu-se irreversivelmente para os mecanismos de acumulação de água como medidas de “combate à seca”. (Ibid: 15-16)

Diferente disso, a seca enquanto personagem recorrente e inelutável da vida no semiárido, é parte do mesmo emaranhado que todos demais atores e, portanto, não age sozinha sobre a vida dos habitantes do lugar. Seca e inverno não são imprevisíveis, como se fossem fenômenos extraordinários, são sim de previsão incerta para às necessidades dos agricultores, mas, não há como controlar o fluxo do tempo climático. Mesmo com as possíveis imprecisões das previsões climáticas, sabe-se que a seca é uma realidade a cada ano e secas prolongadas cedo ou tarde virão, a questão é o quão preparado o Nordeste brasileiro está para esses momentos. A seca se envolve a incontáveis outros atores da vida no semiárido, não falta apenas água ou chuvas, falta acima de tudo investimento em ações na direção do convívio com as vicissitudes típicas do clima semiárido.

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Neste sentido, vale destacar as ações desenvolvidas pela Articulação do Semiárido – ASA, que podem ser percebidas em qualquer sítio que for visitado na região. São inúmeras estratégias de convívio com o ambiente semiárido que, sem dúvida, ajudaram na superação desta última grande seca. Os sete anos seguidos sem inverno colocaram à prova a eficiência das cisternas de placa de cimento idealizadas pela ASA e construídas por todos os cantos da região semiárida. Essa e outras alternativas da ASA para a agricultura e criação animal familiar no semiárido vêm sendo implantadas, conforme a disponibilidade de investimentos para tal, e diversos estudos comprovam sua eficácia (DINIZ, 2002; SILVA, 2003; DUQUÉ, 2008; ANDRADE e QUEIROZ, 2009). Estratégias estas que nem todas foram ainda implementadas na área específica desta pesquisa, entre Boa Vista e Cabaceiras, mas, fazem a diferença por muitas outras pequenas propriedades do semiárido. Tais como, as “barragens subterrâneas” que ajudam a reter a umidade do solo (CIRILO, 2003; DA SILVA, 2007) e os “barreiros trincheiras” que armazenam água para pequena irrigação e servem como bebedouro para os animais do sítio (LIMA, 2008; DE CAMPOS, 2014). Desta forma, se não controlamos o fluxo da atmosfera, é possível administrar o fluxo da água após sua precipitação. Comentei muito ao longo da tese sobre a história e grande relevância dos tanques como caixas d’água naturais, tanto para os atuais habitantes como para as populações indígenas que viveram e passaram pelos lajedos desde milhares de anos, ou dezenas de milhares, como indicam as pesquisas de Niède Guidon (1986) no sertão piauiense. Estratégia que foi potencializada e levada para o fundo de cada casa no semiárido brasileiro pela ASA através do Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC). Uma forma de controlar o fluxo da água através do armazenamento da água das chuvas em cisternas de baixo custo em um ambiente que favorece sua perda. Tal estratégia virou política pública do Governo Federal em 2003 e não tenho dúvidas de que salvou muitas vidas ao longo desses sete anos de seca, garantindo água limpa para o consumo humano ao lado da cozinha de casa. Destaco ainda o programa P1+2 (Programa Uma Terra e Duas Águas), que em complementariedade ao P1MC, possibilita o armazenamento de água para o plantio e pequena criação. Ambos projetos colocam a água disponível dentro de cada sítio, ao lado de cada cozinha ou roçado e dão, assim, um pouco de autonomia para os sitiantes. As cisternas do P1+2 são chamadas de cisternas calçadão ou cisternas de enxurrada por captarem a água que cai sobre o chão de cimento e escorre para uma entrada afunilada com uma rede para filtragem. Essa alternativa é capaz

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de encher a cisterna de forma mais rápida e armazena até cinquenta e dois mil litros, o suficiente para manter o cultivo de hortaliças ou criar galinhas, de toda forma em pequena quantidade e com uso controlado da água. As cisternas do programa ainda não chegaram à cidade de Boa Vista, mas já estão presentes em sítios de Cabaceiras. Após a saga de Bati e sua família para a perfuração de um poço em suas terras e a mudança presenciada em suas vidas, não posso ignorar tal alternativa. Esta, por sua vez, busca o acesso à água da chuva que ao infiltrar pela terra e as rochas ficou armazenada em lençóis subterrâneos. Se não há como cada sítio ter o seu próprio poço, por limites financeiros, legais ou por não encontrarem água em seu subsolo, próximo a cada conjunto de casas é indispensável que haja um poço de cata- vento para demanda dos animais. Ainda mais, havendo água de subsolo, digo que é possível e necessário que haja poços públicos com dessalinizador para a demanda humana espalhados pelo semiárido urbano e rural, tal qual pude ver funcionando no Bravo e no sítio Caluête, ambos em Boa Vista, e também na área urbana de Cabaceiras. Pesquisas mostram que são possíveis e bem- sucedidas as iniciativas de instalação de poços e dessalinizadores no semiárido com a utilização de sistemas fotovoltaicos, o que permite acesso à energia elétrica para o equipamento mesmo longe das linhas de transmissão (FEDRIZZI e SAUER, 2003; ROSA et. al., 2013). O que quero dizer com isso é que a relação do habitante do semiárido com a atmosfera foge completamente ao seu controle, mas, é possível controlar as perdas de água e garantir o acesso a ela em todas as casas, as alternativas existem e basta ao poder público investir na implementação. No que tange aos sitiantes, sua vida já está quase toda direcionada à procura por alternativas para as variações do tempo climático, desde a construção e manutenção dos tanques, passando pelos barreiros, cacimbas, barragens, etc. E alternativas para o sustento de sua família e da criação, como a busca pelas últimas fontes de ração para o animal por entre a caatinga. Assim, políticas públicas eficientes para o habitante do semiárido são aquelas que compreendem o caráter cíclico e incerto das secas e invernos, sabendo que cedo ou tarde outras secas de longa duração devem vir e quando isso ocorrer, devem estar todos preparados. Políticas públicas que entendam a seca, como bem coloca Renzo Taddei (2017: 170), enquanto “um dos estados possíveis do real”, ou como afirma em outra passagem de seu livro: “não há nada de novo aqui: as secas são mais desastres políticos do que a ‘natureza que (supostamente) saiu do seu curso’” (Ibid: 140). E neste mesmo sentido, defende Ghislaine Duqué (2008: 134): “o grande problema do semi-árido é, portanto, mais de ordem

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sociopolítica do que climática” e o desafio é implementar mecanismos de convivência com a seca, a qual, mesmo tendo duração incerta, há sobre ela a certeza de que virá. Os programas de construções de cisternas da ASA são um exemplo de intervenção com respeito às necessidades e conhecimentos dos habitantes e provaram ser de enorme eficácia, um projeto que, nas palavras de Ghislaine Duqué (Ibid: 136), resgata “uma prática camponesa tradicional de estocar água, porém utilizando uma tecnologia mais simples e barata”. Tais medidas se tornam ainda mais urgentes visto que diversos estudos acerca das mudanças climáticas globais e seus efeitos alertam para o fato de que as regiões que primeiro e mais sofrerão com os impactos de tais transformações são as regiões semiáridas. Magalhães (2016: 17) alerta que: “it is probable that the frequency and intensity of droughts in the Northeast region will increase, together with the duration of the drought periods, currently being experienced in certain parts of Brazil”. No mesmo sentido, Engle (2016: 92-93) afirma que regiões secas da América do Sul tendem a ficar mais secas assim como as temperaturas tendem a subir. Esses dois fatores juntos, segundo ele, devem aumentar o estresse hídrico com graves danos econômicos e sociais. E completa dizendo que os impactos serão desproporcionalmente maiores no Nordeste do Brasil. Este último grande período de sete anos de seca mostra uma intensificação deste ciclo como não havia antes registro. O impacto sobre a vida de humanos e não humanos do semiárido era nítido aos olhos de quem passasse pelas estradas do semiárido, pois, não havia mais fontes de alimento na natureza e mesmo os maiores reservatórios de água já se encontravam total ou praticamente secos. No entanto, ao compararmos esse período com as experiências de seca em outros tempos, o impacto sobre os habitantes desta vez foi visivelmente menor, visto as cenas de fome e emigração que já foram marcas da região em outras épocas. Algumas famílias em áreas urbanas em todo semiárido puderam comprar água ou pagar suas contas mensais do serviço público com dinheiro do Programa Bolsa Família, do Governo Federal e aqueles que contam com aposentadorias ou outros benefícios previdenciários garantem a vida (mesmo que com dificuldades) de sua família e de seus animais. Assim como, aqueles que possuem cisternas de enxurrada abastecida ou um poço em seu sítio mantém o cultivo durante a seca garantindo algum alimento para casa. Isso mostra que são possíveis (além de imprescindíveis) iniciativas que garantam aos sitiantes meios para que possam sobreviver às variações do clima semiárido e ao anunciado acirramento das estações secas. Como alerta Dorte Verner:

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Although drought policy and management in Brazil need to become more proactive and less fragmented, “northeasterners” resilience has increased in recent decades compared with earlier droughts and migration from the sertão. (…) climate change calls for strong leadership to built resilient households and communities, and the Brazilian government’s interventions are working. The scenario of the past centuries when thousands of people were forced to migrate is only partly seen today, as poverty reduction and other development programs have put systems in place that have curtailed migration from the sertão. (VERNER, 2016: 100)

Desta forma, percebe-se que as alternativas de convivência com as variações climáticas do semiárido existem e são eficientes tanto quanto urgentes, mas, em contraste com interesses diversos, como os grandes fazendeiros que utilizam as águas dos açudes para irrigar suas plantações, o mercado de venda e distribuição de água pelo interior, ou o comércio de ração animal, que ganha relevante incremento durante a seca. Portanto, dizer que a vida se organiza em um emaranhado, da forma como venho defendendo, não significa que eliminemos os conflitos. O emaranhado, como o penso, é disforme e conflituoso, e é posto em movimento constante por todo conjunto que o compõe em entrelaçamentos. Não há uma integração perfeita da vida como um tecido uniforme, mas ininterruptas tentativas de se responder às contingências de cada momento do tempo climático. Há diversas visões sobre o semiárido, ou posso ir além e dizer de perspectivas ontológicas conflituosas (ALMEIDA, 2013). As mineradoras veem a riqueza (meio de produção) do seu subsolo, o poder público com seus próprios conflitos internos tem também seus próprios e diversos interesses e os sitiantes veem ali todo trajeto de suas vidas, para aqui citarmos apenas três. Por outro lado, Eduardo Bagnoli viu turismo no semiárido, beleza onde muitos viam apenas aridez, vislumbrou e começou a construir novas oportunidades de vida para seus habitantes, seja na Tapera, onde idealizou e em parceria fez realidade um projeto de turismo e um hotel fazenda no lugar de uma pedreira, seja no Bravo ou no Lajedo de Soledade, no Rio Grande do Norte, onde também atuou. Como atrativos, viu as belezas naturais, toda sua paisagem, cores e luzes “de cinema” que se misturam ao turismo geológico e também aos vestígios de populações indígenas em pinturas, gravuras e objetos em sítios arqueológicos inexplorados. Por fim, há ainda o que gosto de chamar de turismo de diversidade, pela possibilidade de encontro com outras formas de viver, outros alimentos, outros saberes típicos da população desta região e que encantam a quem conhece, como as refeições agradam ao paladar.

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Dentro de todas essas perspectivas oriundas de premissas ontológicas diferentes e, por vezes, divergentes, há também a minha, a do pesquisador que fez do campo parte da vida e do partilhar da vida parte indispensável de seu trabalho. Deste ângulo de compreensão, emaranhar-se torna-se inevitável, participar torna-se mais que uma obrigação, algo do qual não é possível escapar. Pouco antes de iniciar meus estudos nas ciências sociais, li um pequeno livro da famosa coleção “Primeiros Passos”, da editora Brasiliense, escrito pelo professor Carlos Rodrigues Brandão (1982); ao final, contava de um pesquisador que no leito de morte do último integrante de uma sociedade em extinção, segura seu gravador com a ponta dos dedos e pergunta ao moribundo: “como é que se pronuncia morte na sua língua?” (ibid: 103) Ainda não sabia o que era uma pesquisa antropológica, mas soube desde então que certamente não era esse o pesquisador que eu gostaria de ser. Há autores, como o próprio Carlos Rodrigues Brandão, que trago como referências por terem não apenas vivido intensamente seus trabalhos em campo, mas, descrito com ênfase todos os afetos provocados por essas experiências, concedendo “estatuto epistemológico a essas situações”, como defende Jeanne Favret-Saada (2005: 160), que percebeu que era preciso viver as experiências com a feitiçaria e deixar-se afetar por elas para ser possível acessar esse universo. Já Márcio Goldman (2003), em seu método se entrelaçou à trajetória de ogãs, filho e mães de santo com quem trabalhava na Bahia ao passo de poder ouvir o som dos “tambores dos mortos”. Por fim, Louis Wacquant (2004) em sua experiência entre os lutadores de boxe foi até o limite de questionar a si próprio se não devia seguir e seria mais feliz como boxeador. Wacquant se tornou em campo mais uma linha neste emaranhado que compõe o “gym” da nobre arte e a sua participação na vida cotidiana é descrita sem nenhuma tentativa de esconder ele mesmo deste processo.

Neste sentido, penso que, se Latour (2012: 189) defende que um bom relato é aquele que “tece uma rede” e no qual “todos os atores fazem alguma coisa e não ficam apenas observando”, sou enquanto pesquisador em campo mais um ator neste fluxo de tecer a rede, mais um nesse já complexo emaranhado e não há como fugir dos afetos que ele provoca. O campo coloca o antropólogo não apenas na condição de observador, mas, mesmo que este se abstenha de qualquer participação na vida dessas pessoas, enquanto estiver entre elas, o pesquisador será mais um ator neste emaranhado e não deve, como se fosse possível, retirar a si próprio deste tecido para a

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construção do texto. Tal como é a objetividade para Nietzsche (2013: 108-109), que não exclui os afetos, a dor, as paixões, o prazer e afirma ele:

[A objetividade] não é entendida como “observação desinteressada” (um absurdo sem sentido), mas como a faculdade de ter seu pró e seu contra sob controle e deles poder dispor: de modo a saber utilizar em prol do conhecimento a diversidade de perspectivas e interpretações afetivas. De agora em diante, senhores filósofos, guardemo-nos bem contra a antiga, perigosa fábula conceitual que estabelece um “puro sujeito do conhecimento, isento de vontade, alheio à dor e ao tempo” (...) Existe apenas uma visão perspectiva, apenas um conhecer perspectivo; e quanto mais afetos permitirmos falar sobre uma coisa, quanto mais olhos, diferentes olhos, soubermos utilizar para essa coisa, tanto mais completo será nosso “conceito” dela, nossa “objetividade”. Mas eliminar a vontade inteiramente, suspender os afetos todos sem exceção, supondo que conseguíssemos: como? - não seria isso castrar o intelecto?...

Penso, portanto, que em campo sou parte de todo esse emaranhado de trajetórias de vidas e seria um erro pensar que de alguma forma conseguiria me desvencilhar dele para análise e redação. As diversas formas como somos afetados no decorrer de nosso trabalho é que formam as perspectivas mais ricas do relato. Minha experiência com eles na construção deste trabalho foi partilhada e é indivisível. Afinal, se realmente partilhamos a vida em nosso campo, seria desonesto fingir que isso não ocorreu em favor de uma pretensa objetividade neutra e positiva do processo, sendo que o conjunto de perspectivas é que compõem um bom trabalho, não sua seleção. Em campo, seguia cada passo de Givaldo em dias que ia com ele para o trabalho, partilhava dos momentos no tamborete ouvindo o radinho a pilhas de Gilmar, ouvia atentamente o que me contavam e ensinavam Geraldo, Maria, Fernando e Antônio, assim como, todo aprendizado na boleia do caminhão de Eurique pelas estradas de terra da região, as aulas que recebi de Djair caminhando pela mata e pelos lajedos e a fonte infinita de conhecimento dos momentos ao redor da mesa com Val, Rejane, Suelânia e os mais de oitenta e cinco anos de vida no Cariri de Laura e Bati. Me fiz presente por entre suas vidas me deixando afetar por elas e com elas aprendi o que compartilho nesta tese. Por isso mesmo, ao final de cada período em campo me despedi tendo eu mesmo sido transformado por essas experiências. A mais forte, emblemática e paradigmática delas, narro aqui para encerrar o relato dessa tese. Isso pois, representa o momento mais representativo de minha experiência de partilha da vida no emaranhado do campo:

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Em julho de 2018 acompanhei de longe, com ajuda da internet, as incríveis transformações da vida com a chegada do inverno. Acompanhei também a saga de Bati e sua família pelo sonhado poço em suas terras. A cada novidade recebia novas fotos, vídeos, áudios e mensagens que descreviam o entusiasmo com as novidades. Conheci Bati em seus oitenta e quatro anos, quando levantava antes do sol para em um trabalho penoso garantir que seus animais sobrevivessem à seca. Agora, diziam as mensagens, era preciso brigar diariamente, “danar”, “arengar”, para que deixasse o trabalho por instantes para comer e descansar. Em pouco tempo construiu um belíssimo roçado com milho, fava, feijão, capim e palmas, tudo feito dentro de um perfeccionismo que lhe é característico, diz sempre que não gosta de serviço mal feito. Após o inverno de 2018 viajei para a Paraíba e ao chegar o encontrei doente, havia sido levado para a Unidade de Pronto Atendimento de Campina Grande e dias depois transferido para o Hospital do Trauma. Após o surto de dengue que atingiu o vilarejo, todos ainda se recuperavam e o corpo de oito décadas e meia de Bati, por mais forte que fosse, sofreu fortemente os sintomas da doença. Não me via em condições de apenas olhar tudo acontecer, abandonei por completo o planejamento da pesquisa e por um mês me envolvi no cotidiano da casa de outra maneira e fiquei com ele, de acompanhante, em um final de semana no hospital em Campina Grande. Quando voltou para casa no início de uma noite, vi de longe a ambulância chegando, corri para lá e não faltavam braços que queriam ajudar, todos felizes por verem Bati de volta. Ajudava diariamente no banho, nas caminhadas pela casa e no terreiro e o acompanhei em visitas ao posto de saúde. Foi ainda no hospital que comentei com ele sobre as chuvas e o poço que eram boas novidades nesta minha visita ao Bravo e o ouvi dizer com contentamento: “Não vai faltar água nunca mais. Nunca mais”. No dia em que tive que me despedir deste intenso campo de inverno, Bati sentou-se à mesa outra vez para o almoço, depois de mais de um mês. Eu já havia almoçado, mas fiz questão de me sentar no lugar de sempre, em frente a ele, para conversarmos e repetir o que fizemos em todas minhas passagens pelo Bravo, no almoço e no jantar. Ele comeu cuscuz com leite e conversamos por uma hora. Fui embora para casa, do outro lado do vilarejo, e as duas da tarde fui me despedir de todos. Bati estava deitado descansando, mas, havia avisado que se estivesse dormindo era para acordá-lo. Entrei no quarto e disse: “Chegou a hora de eu ir, mas passa rápido e logo eu tô de volta”. Ele pediu para que me abaixasse, me abraçou e pela primeira vez vi chorar aquele velho forte e

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calejado. Disse ele depois de muitas passagens pela sua casa e o último mês de convivência intensa: “_ Tenho você como um filho.” Deixei Bati muito mais forte do que o encontrei. Já caminhava melhor, almoçava na mesa e de casa gerenciava seu sítio. Como em um dia, ainda na cama, preocupado com o carvoeiro e as madeiras que haviam molhado nas chuvas, mandou que eu e Douglas fôssemos procurar Severino, estrada à frente do outro Bravo, para que fizesse o serviço. Recomendou que negociássemos para que fizesse à meia, o resultado seria metade de cada um. Também nesses últimos dias, já dizia ter reservado o dinheiro para que comprassem no início do mês mil metros de mangueira para iniciar a irrigação por gotejamento no novo roçado. A cada dia, os filhos, netos e também Denival, que muitas vezes trabalha com eles, iam contar a Bati dos resultados do trabalho e também perguntar a ele, saber sua opinião. Afinal, ninguém melhor que ele sabe o que e como deve ser feito, ainda é o mestre da vida no Bravo. Por fim, penso que a vida dessas pessoas está em constante construção, ocorre em meio a esse entrelaçar de um emaranhado complexo, instável e incerto de configurações das mais variadas possíveis e ao longo dos fluxos entre a seca e o inverno, e conforme o tecido da vida se move eles buscam novos traçados por entre as urdiduras.

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