MEMÓRIAS DO CANGAÇO: “AS PROEZAS DO BANDOLEIRO JOSÉ PATRIOTA” NO SERTÃO DO PAJEÚ DE (1920-1927)

Sérgio Ricardo Morais de Araújo França Mestrando em História - Universidade Católica de Pernambuco E-mail:[email protected]

Resumo: No presente trabalho, que é parte integrante de pesquisa de projeto final de Mestrado, buscamos analisar os espaços de memória do cangaço, espécie de banditismo ocorrido entre as últimas décadas do século XIX e meados do século XX, principalmente na região Nordeste do Brasil. Tais espaços ganharam, no terço final do Século XX, uma nova perspectiva, diante do fortalecimento da cultura da memória, em nome da tríade – memória, identidade e patrimônio. Dentre os vários debates ainda em aberto sobre o cangaço como construção sociocultural, enseja a perspectiva do lembrar ou do esquecer. Nessa perspectiva, analisa-se vestígios de memória da curta trajetória de José Patriota, um dos representantes do cangaço epidêmico que viveu e atuou na microrregião do Sertão do Alto Pajeú de Pernambuco, região conhecida como território da poesia e da cantoria popular, cuja relevância cultural deste segmento parece contrastar com as memórias dolorosas do cangaço, buscando-se assim um ponto de intersecção entre as memórias da poesia e do cangaço. A pesquisa envereda pelas fontes bibliográficas e a historiografia, entrecruzando-se com os periódicos, além de artigos científicos, teses e dissertações produzidas sobre a temática do cangaço.

Palavras-chave: Cangaço – Memória – Sertão do Pajeú

1. INTRODUÇÃO: LEMBRANÇAS E ESQUECIMENTOS DE UM PASSADO QUE NÃO PASSA.

Apesar do banditismo denominado de Cangaço ocorrido no Nordeste do Brasil entre o fim do século XIX e as primeiras décadas do XX ser considerado extinto no ano de 1940, fim esse marcado simbolicamente pela morte de Cristino Gomes, o Corisco, a memória desse fenômeno social permanece viva por meio de objetos, oralidades, locais, folhetos de cordel, artesanato, periódicos, fotografias, livros, filmes, músicas, e outros meios culturais que, por sua vez, levaram à criação de vários tipos de conservação, transmissão e ressignificação da memória cangaceira. Essa memória, no terreno das identidades regionais e enquanto elemento que dá sentido à temporalidade nordestina, pode ser entendida por mito nordestino. A diversidade de elementos peculiares que

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fizeram do Cangaço uma construção sociocultural possibilitou uma variedade de discussões, sob diversos aspectos. Dentre estes, um dos mais presentes está a memória do cangaço e seu patrimônio como identidade regional. A própria construção do Nordeste como região passa pela associação sempre feita entre o cangaço e o Nordeste, “apesar da região concentrar uma realidade múltipla de vidas, sua imagem no senso comum está relacionada a determinados estereótipos: sociedade rural, agrária e artesanal, popular, violenta, religiosa e mística (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013, apud RAMOS FILHO, 2018, p. 240).

Dentro da chamada geografia cultural do cangaço, encontramos diversas localidades em que houve a construção de um patrimônio voltado para preservação da memória do cangaço, até porque vai ser a partir do patrimônio que podemos “pensar os modos como uma sociedade trata seu passado através da atribuição de valores aos lugares, às práticas e aos objetos que são tomados como significativos para determinada coletividade, comunidade e grupo” (RAMOS FILHO, 2018, p. 241). Como lugares de memória do cangaço, por exemplo, podemos citar o Centro de Cultura Regional Zé de Julião, a Praça Lampião e a Grota do Angico, em Poço Redondo, Sergipe; a Associação Folclórica e Comunitária dos Cangaceiros de Paulo Afonso, no Estado da Bahia; o Museu Municipal Lauro da Escossia, a Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço e o Memorial da Resistência, em Mossoró, Rio Grande do Norte; o Museu do Cangaço e a Associação dos Amigos de Triunfo, cujos membros se intitulam Os Lampiônicos, em Triunfo, e ainda, o Museu do Cangaço, o Sítio Passagem das Pedras e a Fundação Cultural Cabras de Lampião, na cidade de , essas duas últimas localizadas no sertão do Estado de Pernambuco.

Esses espaços dedicados à memória do cangaço podem receber apoio do poder público para sua implementação, no entanto, geralmente são mantidos e influenciados por grupos de artistas, intelectuais, profissionais liberais e estudiosos do cangaço que buscam dar um novo enfoque sobre a imagem do Cangaço imposta pela Historiografia Oficial, como simples bandos de criminosos, promovendo um novo debate no sentido de evitar a dicotomia “herói x bandido” e que “considere a experiência histórica do Cangaço para a compreensão dos atuais problemas do sertão nordestino” (CLEMENTE, 2003, p. 17-18).

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Nessa perspectiva, trabalhar em favor da preservação dessa memória busca reforçar os sentimentos de pertencimento nos indivíduos da região, além de ajudar a manter a coesão e a definir espaços de um grupo social na história da municipalidade, uma vez que a memória,

“Essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs, famílias, nações etc. A referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementariedade, mas também as oposições irredutíveis” (POLLAK, 1989, p. 9).

O fortalecimento da cultura da memória resultou de uma mudança no regime de historicidade, o qual vislumbra nos anos finais do século XX uma busca maior acerca do passado, por meio do resgate da memória coletiva. Para François Hartog (2013), teria ocorrido uma alteração nas relações subjetivas com o tempo, asseverando que

“o futuro não é mais um horizonte luminoso rumo ao qual caminhamos, mas uma linha de sombra que colocamos em movimento em nossa direção, enquanto parecemos patinar no campo do presente e ruminar um passado que não passa” (HARTOG, 2013, apud RAMOS FILHO, 2018, p. 242).

Assim sendo, no compasso das experiências de espaços e de formação de um patrimônio cultural voltado à preservação da memória do Cangaço, a pesquisa focada no Sertão do Alto Pajeú pernambucano, tomando como ponto de partida a trajetória do cangaceiro José Patriota, bem como a de outros representantes do cangaço daquela microrregião sertaneja, pretendeu ampliar essa geografia cultural do cangaço, no sentido de estimular os debates, as pesquisas, assim como a criação de espaços de memória e a preservação dos já existentes, tais como a cruz fixada no local da morte de José Patriota e a casa onde o mesmo nasceu, ambas no Sítio Mocambo, em Itapetim. Ao mesmo tempo, vale indagar até que ponto a preservação dessa memória pode estar presente na poesia e na cantoria popular sertanejas, sem dúvida a principal manifestação cultural da região do Alto Pajeú de Pernambuco.

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2. SÃO JOSÉ DO EGITO: UM SERTÃO DE POESIA E DE CANGAÇO

A cidade de São José do Egito originalmente era a Freguesia de São José de , criada pela Lei Provincial nº 1.028, de 21/03/1872. No ano de 1877, São José de Ingazeira foi elevada à Vila e, em 1879, passou a fazer parte como Termo da recém- criada Comarca de Ingazeira, passando à denominação de São José do Egito a partir de 1881. Pela Lei Estadual nº 991, de 01/07/1909, que elevou à “categoria de cidade as sedes de municípios e de villas as dos districtos municipais que constituírem povoações distinctas da sede do município”, São José do Egito passou à condição de cidade. (BOTELHO, 1994, p. 131-132). Desde a sua formação, São José do Egito e as cidades circunvizinhas registraram a presença de cangaceiros. Encontramos na obra memorialística de Pires (2004) que, em meados do século XVII, padres capuchinhos oriundos da cidade de chegaram àquela região com o intuito de evangelizar as populações nativas que ali habitavam. Com o advento do levante dos nativos Tapuias, ocorreu que duas jovens que “escaparam da carnificina dos indígenas vieram refugiar-se em São Pedro”, um dos povoados vizinhos. Da união dessas duas jovens com gente da família Carcará (Visconde de Saboeira, Ceará), nascera Agostinho Nogueira de Carvalho, o primeiro fazendeiro da Ingazeira. No entanto, nos interessa enfatizar a figura do então coronel Francisco Miguel de Siqueira, genro do filho de Agostinho Nogueira de Carvalho, uma vez que, segundo essas fontes, a atuação do referido coronel influenciou negativamente para o desenvolvimento daquela localidade, com o apoio de cangaceiros. Em tom de lamentação acerca dessa atuação, prossegue o memorialista: “É pena não ter ficado ali a sede da freguesia. Não só era central, como também (...) magnificamente situada em beira do rio, com terrenos excelentes, extensos, próprios para a agricultura, levemente ondulados, e, em redor, numa extensão de cinco léguas, matas vivas, ricas em pastagens, próprias para a criação do gado. A Providência preparara este lugar para a habitação dos homens. (...) Porém, o dono só queria criar, não queria que se edificassem casas. Era esse o cel. Francisco Miguel de Siqueira, genro de Agostinho Nogueira de Carvalho, descendente da família que os índios Cariri mataram, ficando só as duas moças de São Pedro. Ele e os homens dele (sustentava

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cangaceiros) tornaram o lugar inóspito(...) (PIRES, 2004, p. 31-33, apud VASCONCELOS, 2014, p. 143-144).

Também relatos do Padre Cottart, importante pároco de , dão conta de que o cel. Francisco Miguel de Siqueira sempre foi tido como “um homem que tinha seus caprichos por lei”, “um homem injusto e soberbo” e que “desapossou, às vezes com barbárie”, os pobres moradores”, razão pela qual o povo “desaprendera o caminho da Ingazeira, impressão que ainda hoje dura” (SOUZA NETO, 2004, apud VASCONCELOS, p. 145). Segundo esses relatos, o mencionado coronel Siqueira teria inviabilizado o desenvolvimento da localidade conhecida por Ingazeira, afastando as pessoas para localidades vizinhas como São José de Ingazeira (hoje, São José do Egito), Afogados (hoje, Afogados da Ingazeira), Espírito Santo (atual Tabira) e Bom Jesus (atual ). Assim, a atual microrregião denominada Alto Pajeú sofreu forte influência da cidade de Ingazeira, por meio das ações do Cel. Francisco Miguel de Siqueira. Sua relação com os cangaceiros da época se revelam patentes, pois “sustentava” e recebia o auxílio necessário para exercer seu poder de forma violenta. Isso está demonstrado na tentativa do Coronel de reprimir a formação e o crescimento do Povoado de Afogados, atual cidade Afogados da Ingazeira, o qual chegou a tentar assaltar aquela vila “a que tinha prometido exterminar” com o apoio de “cangaceiros liderados por Adolfo Meia-Noite, cujo coito era a Ingazeira” (PIRES, 2004, p. 36, apud VASCONCELOS, p. 146). Passamos então, a partir das memórias acerca do Coronel Siqueira, que era coiteiro do bando de cangaceiros liderado por Adolfo Rosa Meia-Noite, tecer algumas palavras sobre esse cangaceiro, atuante na região do Alto Pajeú, na segunda metade do século XIX. Tais memórias encontramos na obra do pesquisador e folclorista potiguar Câmara Cascudo, Flor de Romances Trágicos (1999), a partir de um relato oral de um dos irmãos do cangaceiro que ele conheceu no ano de 1949, José Leandro, então com 86 anos de idade. De acordo com esse relato, Adolfo Rosa Meia-noite nasceu em 1840 na povoação Volta de Varas, em Afogados da Ingazeira, filho de agricultores, tinha nove irmãos. Em 1866, começou sua vida de bandoleiro, depois de ter sido preso e torturado a mando do Padre Quaresma, proprietário abastado e autoridade política e policial da

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região. Sua prisão havia sido um pretexto usado pelo Padre para afastar Adolfo de uma jovem, filha de uma rica viúva, pela qual havia se apaixonado. Passou a usar o apelido “Meia-Noite”, pelo hábito das viagens noturnas e súbitas aparições para vingar-se dos inimigos que o haviam humilhado, a exemplo do Padre Quaresma, morto com um tiro na cabeça. Passados 14 anos liderando um bando de cangaceiros formado por irmãos e amigos, Adolfo dispersou o grupo, casou-se e constituiu família, passando a residir no Bom-Fim, no pé da Serra do Teixeira, Paraíba. Em dezembro de 1880, uma patrulha visitou sua residência e, por meio de ardil, conseguiu enganar as filhas do ex-cangaceiro que se encontravam sozinhas em casa. Ao aproximar-se da casa com um feixe de capim que trazia nas costas, Adolfo foi recebido com uma descarga de balas, caindo morto no alpendre da casa. Segundo Cascudo (1999), Adolfo Rosa Meia-Noite “era um dos bandoleiros gentilhomens, elogiado pela voz sertaneja na memória de sua bravura sem ferocidade” (CASCUDO, 1999, p. 121-125).

As memórias aqui trazidas revelam que o fenômeno do Cangaço esteve presente desde a formação dos municípios que compõem a microrregião do Sertão do Alto Pajeú de Pernambuco, com foco no eixo Afogados da Ingazeira- São José do Egito, que, além dessas duas, abrange atualmente as cidades de Carnaúba, , , Sertânia, Solidão, Tabira, Tuparetama, , Itapetim e Santa Terezinha1. Nesse sentido, observei que os espaços dedicados à memória do Alto Pajeú encontram-se concentrados na temática da poesia e da cantoria populares. Para se ter uma ideia, a cidade de São José do Egito é considerada o “Berço Imortal da Poesia”, enquanto a vizinha Itapetim é intitulada o “Ventre Imortal da Poesia”, expressões que se encontram expostas nos portais das respectivas cidades, dando boas-vindas aos visitantes e turistas.

O fenômeno da poesia nessa microrregião é explicado a partir das origens do desenvolvimento de sua população, ou seja, a partir de algumas famílias descendentes de cristãos-novos oriundas principalmente da Península Ibérica que migraram para habitar aquelas paragens banhadas pelo rio Pajeú, cujas nascentes estão próximas à Serra do

1 A definição da microrregião está de acordo com o Relatório Analítico e Propositivo sobre o território do Sertão do Pajeú, elaborado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Ministério do Desenvolvimento Agrário e a Universidade Federal Rural de Pernambuco, em 2012. O referido relatório dividiu o Sertão do Pajeú em três microrregiões: de São José do Egito, de Afogados da Ingazeira e de Serra Talhada. Disponível em www.sit.mda.gov.br. Acesso em 27 set 2020. 6

Teixeira, no Estado da Paraíba. Pelo fato dessas cidades sertanejas pernambucanas estarem geográfica e culturalmente cercadas por terras paraibanas, especialmente a cidade de Teixeira, veio a herança da vocação para a poesia (COSTA, 2008, p. 21-24). Segundo a poeta e pesquisadora paraibana Maria de Lourdes Nunes Ramalho, dentre as famílias que migraram para os sertões destaca-se a família “Nunes da Costa” que,

“encontrados nos Sertões nordestino, principalmente da Paraíba e Pernambuco, apontados como ‘pais da poesia popular’, eram descendentes de um certo João Nunes da Costa, sefardins (cristão-novo) vindos da Península Ibérica por volta das primeiras décadas do século XVIII e erradicados na Capitania de Pernambuco, depois, sofrendo perseguições por parte do Tribunal do Santo Ofício, fugiu na companhia de Manoel Lopes Romeu, para Paraíba, fixando-se, primeiramente, em Santa Luzia do Sabugi-PB, onde se casou com Teresa Maria de Jesus. Depois, João Nunes da Costa foi morar na região de Patos-PB, ocasião em que tomou posse de terras que denominou “Fazenda Santana”, isto por volta de 1750” (RAMALHO apud COSTA, 2008, p. 25).

A respeito dessa herança da vocação para a cantoria e a poesia, mas também para o cangaço, que migrou da cidade de Teixeira, na Paraíba, para toda a região do Pajeú pernambucano, mas em especial para as cidades vizinhas como São José do Egito, o folclorista Câmara Cascudo afirma que “todo homem do Teixeira atirava bem e cantava modinhas ainda melhor. Dedo para o gatilho e para o violão. ‘Cabra frouxo no Teixeira nasce morto ou não se cria’” (CASCUDO, 1999, p. 14).

Nessa perspectiva, vamos encontrar a pessoa de José Patriota, descendente dessas famílias que migraram para o Alto Pajeú e que, no início do Século XX, tornou-se cangaceiro. Sua trajetória, embora de curta duração, vai patentear a ideia da representatividade do Cangaço no sertão do Alto Pajeú, mais especificamente nas terras conhecidas como a “Cabeça do Pajeú”, ou seja, localidades próximas às nascentes do rio Pajeú, entre os Estados de Pernambuco e Paraíba.

3. A TRAJETÓRIA DO CANGACEIRO JOSÉ PATRIOTA

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José Patriota nasceu no povoado de São Pedro das Lajes ou Umburanas2, como preferiam os mais antigos, então distrito da cidade de São José do Egito, provavelmente em 01/05/1896, pois não encontramos registro de seu nascimento, mas essa data está inscrita na cruz fixada no seu local de morte. O referido povoado teve sua formação a partir de famílias de origem humilde, em sua maioria, que migraram de regiões vizinhas, principalmente do Estado da Paraíba, através das grandes estradas e também de “outros caminhos menores – veredas” que cruzavam o local e que eram utilizadas principalmente para o escoamento do gado até o litoral. Uma dessas “veredas” procedia da região de Desterro, na Paraíba, passava pelos Sítios Raposa, Mocambo, Lagoa da Pedra e Clarinha, até chegar ao Povoado das Umburanas. Essas correntes migratórias vindas principalmente da Paraíba, passaram a fixar residência “nas terras da ‘Cabeça do Pajeú’”, ou seja, no Povoado de Umburanas, e deram origem as famílias tradicionais do local, tais como os “Nunes da Costa, Batista, Patriota, Rangel, Guedes, Piancó, Amorim, Tavares, Pereira, Leite, Ferreira, Santos, Vieira, Almeida etc.” (COSTA, 2007, p. 36-37) As pesquisas acerca do cangaceiro José Patriota demonstraram que ele atuou predominantemente na região do Alto Pajeú, parte do território pernambucano que fica entranhado no território do Estado da Paraíba. Aliás, uma das estratégias mais utilizadas pelos cangaceiros para desviarem-se das polícias era a ação nas regiões limítrofes, uma vez que os agentes da Força Pública de um não podiam adentrar no território do estado vizinho, sem uma prévia autorização oficial, o que facilitava bastante a fuga dos cangaceiros. Em meados do mês de setembro de 1926, por meio do jornal O Combate: Independência, Verdade e Justiça, do Estado de São Paulo, sob a manchete “OS SERTÕES INFESTADOS DE CANGACEIROS – Os bandos de Sabino Góes e José Patriota na Parahyba e em Pernambuco”, tem-se notícia de que o bando liderado por Patriota já estava se aproximando do povoado de Desterro, na Paraíba, porque sofria

2 A denominação Umburanas vem da origem do lugar, que se deu a partir de um ponto de parada para troca de mercadorias, numa planície de abundante vegetação rasteira e dispersa com algumas grandes árvores chamadas umburanas, que serviam de sombra para vaqueiros e tropeiros, além de um lajedo grande com alguns tanques naturais que armazenavam água da chuva para o consumo humano. Ver COSTA, Marcos Roberto Nunes. Itapetim: Cidade das Pedras Soltas. Recife: Centro de Estudos de História Municipal/CONDEPE/FIDEM, 2007.

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perseguição de um destacamento da polícia de Pernambuco, quando então dois contingentes da polícia paraibana seguiram para aquela localidade, a fim de dar combate aos cangaceiros. Buscando fazer um cerco, outro destacamento policial vindo de Taperoá, também Paraíba, recebia instruções atacar o bando pela povoação de Livramento, de forma a impedir o ingresso dos cangaceiros no Estado da Paraíba (O COMBATE, 24/09/1926).

A relação do banditismo com os espaços de “fronteira”, no sentido de facilitação da fuga e consequentemente da impunidade, foi minuciosamente analisada por Thompson Flores:

“Viver em um espaço de fronteira consiste em ter a permanente noção de que existe o “outro lado” para onde se pode fugir e esconder a si ou o objeto do roubo, onde vigora outra soberania e diferentes interesses que oferecem larga possibilidade de estratégia social. O fato de que a fronteira podia servir como fuga e esconderijo sempre foi sabido pelos fronteiriços e um recurso recorrentemente utilizado [...]. Nesse sentido, não se pode negar que o acesso relativamente fácil à fuga e à impunidade tornavam esse ambiente não só propício, como também convidativo para o crime.” (FONTELES; BRETAS; FLORES, 2019, p.127)

Em 1922, os governos de Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte firmaram um convênio para a cooperação na ação da captura dos cangaceiros. O objetivo do acordo era a extinção dos bandos de cangaceiros e a captura daqueles que perturbavam a ordem pública e constantemente ameaçavam as comunidades sertanejas. Cópia deste convênio encontra-se no Relatório apresentado no ano de 1923 pelo Chefe de Polícia do Estado de Pernambuco, Des. Arthur da Silva Rego, ao então Secretário Geral do mesmo Estado, Dr. Samuel Hardman Cavalcanti de Albuquerque.

Uma das últimas sagas vividas pelo José Patriota ganhou narrativa demasiadamente sensacionalista nos periódicos. Sob o título “As proezas do bandoleiro José Patriota”, a Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro noticiou que, após diversas ações criminosas nos Estados do Rio Grande do Norte e Paraíba, onde cometera “assassínios e latrocínios”, Patriota e seu bando atacaram a propriedade Fazenda São Pedro, em São José do Egito, do fazendeiro Alfredo Dantas Villar, onde após “renhido tiroteio” resultou

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na morte de um dos funcionários da fazenda e “foi gravemente ferido o chefe do grupo, José Patriota” (GAZETA DE NOTÍCIAS, 15/12/1927). Após severa perseguição, José Patriota foi encontrado e morto no Sítio Mocambo, localizado no Distrito de São Pedro das Lajes, município de São José do Egito, provavelmente no dia 12 de maio de 1927, executado pelas forças volantes sob o comando do Tenente José Alencar de Carvalho. Ressalte-se que, trinta e dois anos depois da morte do cangaceiro, o próprio Tenente Alencar, objetivando apresentar a ideia de senso de humanidade em suas ações, declarou que após haver travado “cerrado tiroteio contra o bando de José Patriota, entreguei o cadáver daquele criminoso à sua família, para que o enterrassem” (DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 10/05/1959).

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Trilhando as memórias do cangaceiro José Patriota e da vivência do cangaço ocorrido na microrregião do sertão do Alto Pajeú, em Pernambuco, observamos a ausência de debates sobre a temática e de preservação dessas memórias. Uma situação justificável no sentido de que podemos considerar tais memórias como “tipos de passado que as pessoas não querem ou não conseguem se desvencilhar facilmente, o que geralmente está relacionado às memórias dolorosas, por isso que o dilema – lembrar ou esquecer – ecoa tão forte quando são colocados em pauta” (RAMOS FILHO, 2018, p. 242).

Procuramos enfatizar a importância da criação de lugares que conservem a memória do cangaço, no sentido de que tais espaços contribuem para manter as lembranças vivas na comunidade local, favorecem a construção da personalidade e da identificação do povo, cedendo-lhes identidade e poder. A partir desse exercício atual de rememoração e ressignificação, os lugares de memória se fortalecem expressivamente, de sorte a afirmar que, segundo Pierre Nora, vivenciamos um

“momento de articulação onde a consciência da ruptura com o passado se confunde com o sentimento de uma memória esfacelada, mas onde o esfacelamento desperta ainda memória suficiente para que se possa colocar o problema de sua encarnação. O sentimento de continuidade torna-se residual aos locais. Há locais de memória porque não há mais meios de memória” (NORA, 1984, p. 7)

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Em se tratando das memórias do cangaço no Sertão do Pajeú de Pernambuco, devemos registrar a formação de grupos locais que se imbuíram da missão de preservar a memória e a história daquela região. Primeiro, falamos do grupo de pesquisadores de São José do Egito denominado “Ofício das Espingardas” reunido, a priori, por meio das redes sociais como o Facebook, que trocam entre si e seus seguidores informações, notícias, documentos e imagens acerca do Cangaço em geral. O segundo, trata-se do denominado Centro de Pesquisa e Documentação do Pajeú – CPDOC-Pajeú, que reúne historiadores, sociólogos e filósofos e outros profissionais de áreas afins, com o objetivo de pesquisar e preservar a memória documentada da região. Aliás, em recente publicação na Internet, o CPDOC-Pajeú divulgou seu novo projeto de preservação dos livros antigos da Paróquia de Flores, no Pajeú pernambucano, com a catalogação, higienização e digitalização dos antigos Livros de Batismo, Óbito, Casamento e outros3, o que será uma grande contribuição para a preservação da memória daquela região, facilitando o caminho para novas pesquisas.

Os estudos sobre o fenômeno de banditismo ocorrido entre os séculos XIX e XX, que passou a ser conhecido por Cangaço tendem cada vez mais a não se pautar pelo binômio Herói versus Vilão e, sim, analisar os diversos enfoques possíveis, em vista do fenômeno sociocultural e político que se transformou o cangaço, durante a sua existência e, também com o seu término. Por meio de vestígios da memória, muitas vezes encontrados como indícios mudos, no dizer de Ginzburg (1989), procuramos juntar as peças para construir uma narrativa sobre a existência de pessoas quase sempre ignoradas, tacitamente aceitas ou mencionadas apenas de passagem na principal corrente da história. Faz-se necessário tornar conhecida a história dos cangaceiros e perquirir a historicidade da preservação dos espaços é uma forma de compreender muito dos dilemas que abrangem processos de patrimonialização dessa memória difícil do cangaço.

PERÍODICOS:

3 A notícia pode ser lida em https://www.maispajeu.com.br/2020/09/pesquisadores-criam-um-projeto- para.html. Acesso em 27 set. 2020. 11

- O COMBATE, nº 4253, 24/09/1926

- GAZETA DE NOTÍCIAS, nº 298, 15/12/1927

- DIÁRIO DE PERNAMBUCO, nº 106, 10/05/1959

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