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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

DANIEL MAIA MARTINS

IMIGRAÇÃO ÁRABE E RELIGIOSIDADE EM SÃO JOSÉ DO RIO PRETO Igreja Católica Apostólica Ortodoxa Antioquina “Um estudo de caso”

São Paulo 2010

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

DANIEL MAIA MARTINS

IMIGRAÇÃO ÁRABE E RELIGIOSIDADE EM SÃO JOSÉ DO RIO PRETO Igreja Católica Apostólica Ortodoxa Antioquina – um estudo de caso.

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Ciências da Religião.

Orientador : Professor Dr. João Baptista Borges Pereira

São Paulo 2010 3

Almustafa, o escolhido e bem amado, que era aurora do seu próprio dia, (...) subiu à colina sem muralhas e pôs-se a olhar para o mar; e viu o seu navio aparecer com a bruma. Então as portas do seu coração abriram-se e a sua alegria voou longe sobre o mar. E ele fechou os olhos e orou no silêncio da sua alma. Mas enquanto descia a colina, apoderou-se dele uma grande tristeza e pensou com o coração: Como poderei partir em paz e sem mágoa? Não, não vou sair da cidade com uma ferida no espírito. Muitos foram os dias de dor que passei dentro das suas muralhas, e muitas foram as noites de solidão; e quem pode separar-se da dor e da solidão sem mágoa? Espalhei demasiados fragmentos do espírito por estas ruas, e muitos são os filhos da nostalgia que caminham nus por estas colinas, e não posso afastar-me deles sem peso nem dor. Não é a roupa que hoje dispo, mas uma pele que arranco com as minhas próprias mãos. Nem é um pensamento que deixo atrás de mim, mas um coração tornado doce pela fome e pela sede. No entanto, não posso demorar-me mais. O mar que chama todas as coisas, chama-me também e tenho de embarcar. Pois ficar, embora as horas escaldem na noite, é gelar e cristalizar e perder- me numa forma. De bom grado levaria tudo o que aqui se encontra. Mas como o poderei fazer? Quantas vezes velejastes nos meus sonhos. Agora apareceis no meu despertar, que é o meu sonho mais profundo. Pronto estou eu para ir, e a minha ânsia pelas velas desfraldadas aguarda o vento. Só respirarei mais uma vez neste ar imóvel, só mais um olhar de amor para trás, E então encontrar-me-ei entre vós, um marinheiro entre marinheiros.

(GIBRAN, Khalil. O Profeta, 1923, pp. 1, 2)

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Daniel Maia Martins

IMIGRAÇÃO ÁRABE E RELIGIOSIDADE EM SÃO JOSÉ DO RIO PRETO Igreja Católica Apostólica Ortodoxa Antioquina – um estudo de caso.

Dissertação apresentada no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Ciências da Religião

Aprovado em______de______2010.

BANCA EXAMINADORA

______Professor Doutor João Baptista Borges Pereira Universidade Presbiteriana Mackenzie

Professor Doutor Antonio Máspoli de Araújo Gomes Universidade Presbiteriana Mackenzie

Professor Doutor Oswaldo Mario Serra Truzzi Universidade Federal de São Carlos

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À minha esposa Elaine, aos meus pais, Neto e Cristina e aos meus irmãos João Ricardo, Joyce e Glauci.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço, a Deus, que me tem sustentado nos vales e nos picos; a Elaine, minha esposa, por ter suportado esses tempos difíceis; a meus pais por tornarem a vida possível e por depositarem em mim muito mais confiança do que se pode imaginar; a tia Nadir, por me socorrer em momentos que não imaginei viver; a minha avó Nair e a tia Nilce por me ajudarem em parte da realização deste trabalho; ao professor Doutor João Baptista Borges Pereira, pela amizade, compreensão e estímulo; a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), por financiar meus estudos no ano 2009; ao Fundo Mackenzie de Pesquisa, por financiar parte deste trabalho.

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RESUMO

O presente trabalho é um estudo de caso que tem por objeto de estudo a Igreja Católica Apostólica Ortodoxa Antioquina em São José do Rio Preto e a imigração dos sírio-libaneses para esta cidade. Quase sempre confundidos com muçulmanos e/ou turcos, os primeiros sírio-libaneses a chegar ao Brasil eram cristãos. Em São José do Rio Preto, muitos deles eram cristãos ortodoxos. O contexto de sua terra natal no final do século XIX e começo do XX e histórias sobre a trajetória até chegar à América são apresentados no trabalho bem como o surgimento da Igreja Católica Apostólica Ortodoxa Antioquina na cidade. Para isso, utilizamos documentos históricos, depoimentos e literatura. Também discorremos sobre alguns fatores teológicos e litúrgicos desta Igreja, fruto das entrevistas realizadas – com padres, fiéis da igreja, descendentes de sírio-libaneses, imigrantes e estudiosos – e de observação participante. Nossa expectativa é contribuir com os estudos do contexto religioso brasileiro e das Ciências da Religião.

PALAVRAS CHAVES

1. Imigração, 2. Árabe, 3. Sírio-Libanês, 4. Igreja Católica Apostólica Antioquina, 5. São José do Rio Preto

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ABSTRACT

The present research is a case study that has as a goal the study of the Antiochin Orthodox Apostolic in São José do Rio Preto and the immigration of the Syrian-Lebanese to this particular town. Mistaken by Muslims and/or Turkish, the first Syrian-Lebanese to arrive in were Christians. In São José do Rio Preto, many of them were Orthodox Christian. The context of their mother land in the end of the 19th century, beginning of the 20th and history about their journey to America are presented in this research as well as the beginning of the Antiochin Orthodox Apostolic Catholic Church in São José do Rio Preto. In order to do so, historical documents were used as well as testimonials and literature. The research also dealt with theological and liturgical factors of this church, which came from several interviews - with priests, church goers, Syrian- lebanese descendents, immigrants and researchers - and from participant observation. It is expected from this research to contribute with the studies of the Brazilian religious context and Religion science.

KEY WORDS

1. Immigration, 2. Arab, 3. Syrian-Lebanese, 4. Antiochin Orthodox Apostolic Catholic Church, 5. Sao Jose do Rio Preto

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 10

Impressões Iniciais e Descobertas da Pesquisa...... 12

I PARTE

1. O IMPÉRIO OTOMANO ...... 14

2. A IMIGRAÇÃO ...... 22

3. AS REDES DE MIGRAÇÃO ...... 28

4. TERRAS BRASILEIRAS ...... 34

II PARTE

1. ÁRABES EM SÃO JOSÉ DO RIO PRETO ...... 39

2. O MASCATE ...... 41

3. TERRAS RIOPRETENSES ...... 47

III PARTE

1. IGREJA CATÓLICA APOSTÓLICA ORTODOXA ANTIOQUINA EM SÃO JOSÉ DO RIO PRETO ...... 66

2. IGREJA CATÓLICA APOSTÓLICA ORTODOXA ANTIOQUINA ...... 87

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 99

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...... 103

ANEXOS ...... 105

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INTRODUÇÃO

Inicialmente esta pesquisa seria realizada na cidade de São Paulo, tendo por objeto de estudo a Catedral Metropolitana Ortodoxa e a Rua 25 de Março – um dos maiores centros de comércio popular da América Latina. Algumas entrevistas chegaram a ser feitas bem como a observação participante na referida igreja. À época este autor era pastor da 1ª Igreja Presbiteriana Independente de São Caetano do Sul. Contudo, ao final de 2008, em razão de seu retorno à sua cidade natal, São José do Rio Preto, o projeto inicial teve de ser bastante modificado e adaptado à nova realidade. Dessa forma, o novo objeto de estudo adotado foi a Igreja Católica Apostólica Ortodoxa Antioquina em São José do Rio Preto e os imigrantes sírio-libaneses para esta cidade. Este é um estudo de caso e nosso objeto de estudo está situado à Rua Marechal Deodoro, 2827, no centro de São José do Rio Preto, São Paulo, sendo que não serve como regra para outras igrejas do Patriarcado Antioquino1 – dentro ou fora do Brasil – ou qualquer outro Patriarcado.

É verdade que a presença dos imigrantes sírio-libaneses modificou o cenário social brasileiro, especialmente o Estado de São Paulo – que desde o início, abrigou a maior parte da colônia. As cidades de São Paulo e São José do Rio Preto foram dois dos principais destinos destes imigrantes.

Iniciamos, então, novas entrevistas e retornamos à observação participante na Igreja Ortodoxa São Jorge de São José do Rio Preto. As entrevistas visaram a descobrir os processos pelos quais as famílias de imigrantes chegaram à cidade e sua relação com a igreja pesquisada. Fizemos também uma revisão de literatura para reconstruirmos o contexto das famílias sírio-libanesas, em especial as cristãs. Os trabalhos, especialmente de campo, demonstraram-se os mais prazerosos e complicados. Por se tratar de um grupo étnico, nem sempre nos foi possível ter acesso a tudo o que gostaríamos. Em um caso, fomos ostensivamente rejeitados na tentativa de realizar uma

1 O Patriarcado de Antioquia integrava a Santa Pentarquia – falaremos a seu respeito mais adiante. Era um dos grandes centros administrativos da Igreja Cristã desde os tempos do Novo Testamento (Atos 11.26). A jurisdição e influência deste Patriarcado estendeu-se – e ainda está presente – ao Oriente. 11

entrevista. Às atas da igreja também não conseguimos chegar. Ainda assim, os árabes em Rio Preto, mesmo sendo etnicamente minoria, tiveram, e ainda têm, um papel muito importante na história e vida da cidade, o que justifica a pesquisa. Encontramos artigos em jornais sobre a presença dos sírio-libaneses em Rio Preto, menções em alguns livros históricos da cidade e material da imigração para o Brasil em geral.

Menos material, encontramos sobre a Igreja Ortodoxa. Intentamos, então, contribuir com o estudo do campo religioso brasileiro tomando lado às pesquisas de imigração e religião, como as seguintes: A Construção de uma comunidade utópica no Oeste Paulista2, Alvorada: Negros e brancos numa congregação Presbiteriana em Londrina – Um estudo de caso3, Missão Caiuá: um estudo da ação missionária protestante entre os índios Guarani, Kaiowá e Terena4, Um véu sobre a imigração italiana no Brasil5, Terra Nostra em mudança: Identidade étnica, identidade religiosa e pluralismo numa comunidade italiana no interior paulista6, Coreanos Protestantes na periferia de São Paulo. Um estudo de caso7, Igreja Católica Apostólica Ortodoxa Russa no exílio em São Paulo: etnicidade e identidade religiosa. Um estudo de caso8, Delírios religiosos e estruturação psíquica – “O caso Jacobina Mentz Maurer e o episódio Mucker” – Uma releitura fundamentada na Psicologia Analítica9, Os mórmons em Santa Catarina: origens, conflitos e desenvolvimento10, Igreja Húngara Reformada11, A imigração holandesa e a Igreja Reformada no Paraná, por Wilson de Lima Lucena; Uma Igreja Protestante coreana na cidade de São Paulo, por Silvania Maria P. Silva; Missionários protestantes sul-coreanos na cidade de Jandira-SP, por Daniel H. Cho Lin; Luteranismo e imigração alemã pomerana no Espírito Santo, por Gladson Cunha e Igreja Evangélica Árabe de São Paulo – Inserção, estruturação e expansão na adversidade-diversidade sócio-cultural da cidade de São Paulo. Estudo de caso, por Paulo Audebert

2 Heldo Mulatinho. Tese de doutorado . USP, 1976. 3 José Martins Trigueiro Neto. Dissertação de mestrado. Mackenzie, 2004. 4 Jonas Furtado Nascimento. Dissertação de mestrado. Mackenzie, 2004. 5 Gloecir Bianco. Dissertação de mestrado. Mackenzie, 2005. 6 Marivaldo Gouveia. Dissertação de mestrado. Mackenzie, 2005 7 Elson Isaac Santos Araújo. Dissertação de mestrado. Mackenzie , 2005. 8 Maurício Loiacono. Dissertação de mestrado. Mackenzie, 2006 9 Heloisa Mara Luchesi Módolo. Dissertação de mestrado. Mackenzie, 2006. 10 Rubens Lima da Silva. Dissertação de mestrado. Mackenzie, 2008. 11 Simone Lucena. Dissertação de mestrado. Mackenzie, 2008. 12

Delage. À exceção da pesquisa de Jonas Furtado do nascimento, orientado pelo Dr. Antônio Gouveia de Mendonça, as pesquisas acima são orientadas pelo Dr. João Baptista Borges Pereira.

Impressões Iniciais e Descobertas da Pesquisa

Ao iniciarmos nossa pesquisa concordávamos com Lodi, com relação ao surgimento da Igreja Ortodoxa na cidade: “A construção de uma igreja ortodoxa por imigrantes de origem árabe provavelmente decorreu da vontade de preservar as tradições culturais e religiosas do grupo. Ela veio reforçar outras instituições associativas por eles criadas tais como clubes (...). A todas era delegada a responsabilidade de manter a identidade desse povo. A presença da Igreja estimularia o maior contato entre os imigrantes. A religião atuaria como elemento de interação entre aqueles que deixaram sua terra natal e optaram por uma vida nova, num país distante, porém sem perder de vista as suas origens. Com a igreja, o contexto cultural originário daria sustentação às estruturas espirituais e morais de seus membros.” (LODI, N. A Igreja Ortodoxa. Diário da Região, São José do Rio Preto, p. 8B, 29 nov. 2009).

Contudo, o longo caminho de pesquisa por nós percorrido veio a mostrar a imprecisão histórica da afirmação de Lodi. O surgimento da Igreja é praticamente um levante diante de uma situação de hostilidade apresentada no corpo do trabalho. “Sua função é reforçar ou preservar a identidade étnica do grupo imigrado, sendo a religião o traço diacrítico dessa identidade” (BORGES, 2005, p. 106). A ênfase da igreja está em defender, sustentar e reafirmar a cultura e identidade dos imigrantes sírio-libaneses, ou seja, “todo o patrimônio material e simbólico” deste grupo social (GIL, 2008, p. 106). “Se confundem identidade étnica e identidade religiosa” (BORGES, 2005, p. 106) uma vez que praticamente 100% deles são católicos (a princípio, sem a necessidade de auto-afirmação ortodoxa, romana ou maronita) e não têm pretensões proselitistas. Como se sabe, a Igreja Maronita é uma igreja cristã, de rito oriental, em plena comunhão com a Sé Apostólica, ou seja, reconhece a autoridade do Papa, o líder Igreja Católica Apostólica Romana. Tradicional no Líbano, a Igreja Maronita possui ritual próprio, diferente do rito latino adotado 13

pelos católicos ocidentais. O rito maronita prevê a celebração da missa em língua aramaica. Discorremos sobre o Império Otomano, a perseguição e as condições econômicas e políticas vividas pelos cristãos da Grande Síria12, buscamos amparo para o conceito de imigração, aplicamos o que Truzzi chama de Redes de processo migratórios, fazemos um histórico do surgimento de São José do Rio Preto e da presença sírio-libanesa na cidade. Peter Berger afirma que “Estar localizado na sociedade significa estar no ponto de interseção de forças sociais específicas. Geralmente quem ignora essas forças age com risco. A pessoa age em sociedade dentro de sistemas cuidadosamente definidos de poder e prestígio. E depois que aprende sua localização, passa também a saber que não pode fazer muita coisa para mudar a situação” (BERGER, 1963, p. 79).

As forças sociais sobre a Grande Síria eram a invasão turca, o islamismo, a violência da dominação, a intolerância religiosa etc. Não tinham poder ou prestígio. A solução encontrada por incontáveis emigrantes foi buscar uma nova localização sócio-espacial. Em sua terra natal, “são „eles‟ quem mandam” (BERGER, 1963, p. 80). Também apresentamos um histórico sobre a gênese da Igreja Ortodoxa – tanto no Grande Cisma como no município. Utilizamos tabelas com dados das primeiras décadas do século passado para demonstrar os papéis exercidos e os lugares ocupados por tais imigrantes no comércio de São José do Rio Preto.

12 Atuais Síria e Líbano. 14

I PARTE

1. O IMPÉRIO OTOMANO

Os mamelucos13 do Egito dominavam a Síria no século XVI. É nesta época que os otomanos intentam a construção de um novo e poderoso Estado na região, sobre os alicerces do Império Bizantino. Os desacordos entre os mamelucos somados à supremacia militar dos turcos levaram a uma situação esperada: a vitória dos mais poderosos. “Selim14 entra em Damasco. O nôvo sultão mameluco Tumanbay, se mostra disposto a aceitar a paz que lhe oferece Selim sob a condição de vassalagem, mas seus emires se opõem e os embaixadores de Selim são mortos. Êstes obtém uma primeira vitória sôbre os egípcios, em Gaza, e logo vence Tumanbay perto do Cairo, em 1517. Tôda a Síria, com o Líbano e a Palestina, está em mãos dos turcos”. (REICHERT, 1969, p. 131). Após terem sido conquistadas pelos otomanos, muitas cidades tiveram aumento populacional. Era o caso de Alepo, que atingiu a marca de 100 mil habitantes e Damasco, um pouco menor. Mas nessa época, a peste e a fome regulavam o tamanho da população em território otomano. Ainda que sistemas de coleta de impostos mais eficientes mostrassem, em algumas localidades, vertiginoso aumento de contribuintes não implicava necessariamente em aumento da população. Em seu auge o Império proporcionou desenvolvimento e segurança às cidades, “com forças policiais distintas para o dia e a noite, e guardas nos vários quarteirões, cuidadosa supervisão dos serviços públicos (abastecimento d‟água, limpeza e iluminação das ruas, combate a incêndios), e controle das ruas e mercados, supervisionados pelos cádis. Seguindo o exemplo do sultão de Istambul, governadores otomanos e comandantes militares iniciaram grandes obras públicas nos centros das cidades, com prédios comerciais cuja renda era usada para mantê-las; por exemplo, a fundação de Duqakin-zade Mehmet Paxá em Alepo, onde três qaysariyyas, quatro khans e quatro suqs proviam a manutenção de uma grande mesquita; a

13 Escravos capturados em áreas que incluem a atual Turquia, leste europeu e o Cáucaso (região da Europa Oriental e da Ásia Ocidental, entre o mar Negro e o mar Cáspio), que frequentemente eram treinados e utilizados como soldados pelos califas muçulmanos do Império Otomano. Com o tempo, tornaram-se uma poderosa casta militar. No Egito, tomaram o poder em duas oportunidades – 1250 e 1517. 14 Selim I, sultão turco. 15

Takiyya em Damasco, um conjunto de mesquita, escola e hospedaria para peregrinos construída por Suleiman, o Magnífico”. (HOURANI, 2006, p. 312).

O Império Otomano dominou parte da África, Europa e Ásia, e empregou grande parte de sua energia para combater os inimigos existentes nestes três continentes, como também para manter sob controle estreito, regiões que lhe rendiam grandes receitas. Era o caso da Grande Síria, responsável por parte considerável da receita do Império e também local de concentração para as peregrinações a cidades santas. Ainda no século XVI o último califa „abbásida, al-Mutawakkil é capturado “no Cairo, em 1517, e, tendo em seu poder as cidades de Meca e Medina, os sultãos otomanos justificam a sua usurpação do supremo ofício espiritual no mundo muçulmano, o califado”. (REICHERT, 1969, p. 132). Hourani registra que “a posse das cidades santas dava aos otomanos uma espécie de legitimidade e um direito à atenção do mundo islâmico que nenhum outro Estado muçulmano tinha” (HOURANI, 2006, p. 300). Já os países europeus não dominados pelos otomanos viviam, no século XVI, um período de expansão econômica com suas fortes monarquias, crescimento na agricultura e riquezas vindas da América. Mais tarde a Europa também irá incomodar o Império islâmico no leste, negociando com as nações do Oceano Índico, já muito importante, sempre privilegiando os turcos. Contudo, os que produziam em terras otomanas começam a sentir a perda de espaço no mercado mundial. As terras mais ricas e produtivas tinham atenção especial do Império. Para as mais distantes e com menor produtividade, a estratégia era reconhecer indivíduos ou famílias como líderes, que seriam responsáveis tanto pela coleta dos impostos como também por direcioná-los à Istambul. Não era possível – nem conveniente – acompanhar com tanta proximidade todos os territórios. Esta estratégia permitia, na prática, que o poder transitasse entre a capital e o local, o que proporcionou, por exemplo, “no início do século XVII, [que] um governador rebelde em Alepo e um superpoderoso senhor nas montanhas Shuf no Líbano, Fakhr al-Din al-Ma‛ni (m. 1635), com certo encorajamento de soberanos italianos, [pudesse] desafiar durante algum tempo o poder otomano” (HOURANI, 2006, p. 301). Fakhr al-Din foge, em 1613, para 16

a Itália, mas retorna e luta por 20 anos, na tentativa de construir um Estado independente. Por fim “acabou sendo capturado e executado, e depois disso os otomanos estabeleceram uma quarta província com capital em Sayda, para vigiar os senhores do Líbano” (HOURANI, 2006, p. 301). As outras três eram Alepo, Damasco e Trípoli. Ter pleno controle da região era importante para as peregrinações anuais. Meca e Medina pouco rendiam financeiramente. O lucro vinha em forma de prestígio religioso para com as nações árabes. Os peregrinos levavam subsídios às populações dessas cidades, que tinham por líderes famílias descendentes de Maomé, nomeados pelo Império. As terras sagradas dominadas pelos otomanos não eram apenas sacras aos muçulmanos. Jerusalém e Hebron (local do sepultamento de Abraão) também estavam sob domínio turco. Os territórios da Grande Síria também assistiram a um inusitado conflito familiar. Quando conquistados pelo comandante mameluco Ali Bei – que também havia conquistado outros territórios – em 1769, seu genro Abu Dhahab o trai, levando para o lado dos otomanos praticamente todo seu exército. Juntamente com os que lhe permaneceram fiéis, Ali Bei aliou-se a Zahir al-Omar, um líder beduíno palestino, mas ambos foram mortos nos anos seguintes – Ali Bei em 1773 e Zahir em 1775. Um dos partidários de Ali Bei, Ahmad al-Jazzar, “pôde manter Acre até 1799, quando Napoleão, saindo do Egito, surge em cena, ocupando a costa da Palestina, inclusive Jafa, e sitiando Acre”. (REICHERT, 1969, p. 136). Os franceses são expulsos da Palestina em 1801 pelos ingleses e anos depois perdem o Cairo para forças otomanas lideradas por Muhammad ‛Ali, que criou a sua volta uma liderança capaz, inteligente e progressista, composta por turcos e mamelucos. Enquanto em campanha pela Grécia (1824/8), Mahmud II, sultão otomano, promete conceder a Muhammad ‛Ali o governo da Síria, o que não se concretizou. Assim, Ibrahim, seu filho, “invade o país, toma Acre de assalto (1831), entra em Damasco, Alepo e Adana e invade a Anatólia” (REICHERT, 1969, p. 138). O paxá egípcio imprime sua política de impostos, impõe-se ao Império como governador e expande seus domínios ao Sudão e Arábia sendo detido por exércitos europeus em Kutahya (atual província turca). Sua presença na Síria trouxe um período de igualdade e liberdade religiosa e 17

as missões protestantes – dirigidas por franceses e norte-americanos – passaram a ser incentivadas. Ao tentar recuperar as terras perdidas para Muhammad ‛Ali, Mahmud II é derrotado na batalha de Nizip, em 1839, e vê sua frota de navios desertar, aliando-se aos egípcios. Contudo, a Europa não queria que o Egito se tornasse uma força independente e, menos de um ano depois, em um esforço conjunto, “as frotas da Quádruple Aliança – Inglaterra, Rússia, Áustria e Prússia – apresentam-se diante da costa da Síria, tomando Beirute e Acre, em 1840, e ameaçam Alexandria. Ante tal fato, Ibrahim vê-se forçado a retirar-se da Síria. O país volta ao domínio otomano” (REICHERT, 1969, p. 138). Assim, os ataques contra os cristãos voltaram a se tornar frequentes, como quando os drusos deixam o interior e invadem Beirute, em 1860, e os massacram. “Nos vales montanheses do Líbano, havia uma antiga simbiose entre as principais comunidades religiosas, os cristãos maronitas e os drusos. (...) Da década de 1830 em diante, porém, a simbiose se rompeu, por causa de mudanças na população e no poder local, do descontentamento dos camponeses com seus senhores, de tentativas otomanas de introduzir controles diretos e das interferências britânica e francesa. Em 1860 houve uma guerra civil no Líbano, e isso provocou um massacre de cristãos em Damasco, uma manifestação de oposição às reformas otomanas e aos interesses europeus a elas ligados, num momento de depressão comercial” (HOURANI, 2006, p. 366).

“Na segunda metade do século 19, as condições de vida não eram de abastança, havendo pouca terra para ser cultivada e lutas por causa da irrigação; a população estava em crescimento e se iniciava o êxodo das montanhas para o litoral. Essa situação vem justificar os movimentos drusos – seita da religião muçulmana – contra a população cristã, senhora de melhores terras”. (NABHAN, 1989, p. 105).

Uma vez mais há a intervenção estrangeira – francesa, no caso – que obriga o sultão Abdul Majid a conceder autonomia ao Líbano e um governador cristão. “A França tinha uma relação especial, que remontava ao século XVII, (...) com os maronitas (...) no fim do século XVIII, a Rússia apresentava uma reivindicação semelhante para proteger as Igrejas ortodoxas orientais” (HOURANI, 2006, p. 354). Contudo, depender de força estrangeira e boa 18

vontade islâmica para a ordem e proteção causou bastante desconforto e insegurança. A esperança de plena autonomia dos países árabes “se desvanece no decorrer da Primeira Guerra Mundial, durante a qual a Síria é fustigada pelo crescente terror imposto pelo governador turco (Jemal Paxá) e pela fome” (REICHERT, 1969, p. 141). Após a Guerra as promessas de independência feitas pelas nações européias não se concretizaram e, em 1920, na Conferência de San Remo, Síria e Líbano ficam sob domínio francês. A independência da Síria só aconteceu em 1945. Em 1941 a França concede a independência ao Líbano dando plena liberdade apenas três anos mais tarde. Mas, de fato, o exército francês só deixa o país em 1947. Ainda que sendo turco, o Império não impôs seu idioma aos povos que dominou – muitos de fala árabe. O papel da língua árabe foi reforçado. Assim, seria natural que as ciências da religião e da lei – duas das mais importantes disciplinas – fossem ensinadas em árabe nas escolas de Damasco, Cairo e outras importantes cidades árabes do Império. Entretanto, o mesmo acontecia em Istambul, que não era árabe. Os autores otomanos tinham a tendência de sempre escrever todo tipo de texto em árabe, inclusive poesia. Hourani faz a seguinte afirmação: “Nas grandes cidades árabes, continuou a tradição literária: não tanto poesia e belles-lettres quanto história, biografia e compilações de fiqh e hadith locais. As grandes escolas continuaram sendo centros de estudos das ciências da religião, mas com uma diferença. Com algumas exceções, os mais altos cargos no serviço legal eram exercidos não por diplomados da Azhar15 ou das escolas de Damasco e Alepo, mas das fundações imperiais em Istambul; mesmo os principais cádis hanafitas das capitais provinciais eram em sua maioria turcos enviados de Istambul, e os cargos oficiais mais elevados a que os diplomados locais podiam aspirar eram os de subjuiz” (HOURANI, 2006, pp. 317-8). A partir desta afirmação podemos destacar dois pontos: 1) o Império, muçulmano que era, investia na produção de conhecimento a partir de sua religião islâmica e 2) apesar disto, para ocupar os lugares mais importantes e estratégicos não bastava ter se formado em um desses centros de estudos das

15 Importante escola da cidade do Cairo. 19

ciências da religião, não bastava ser muçulmano; era preciso ser também turco. Isto expressa, em parte, a depreciação vivida pelos cristãos sírio- libaneses, no século XIX, que estavam sob o domínio turco-otomano. A cultura islâmica, especialmente sunita, era patrocinada pelas autoridades. Por outro lado, a situação dos cristãos era complicada. Não eram nem turcos e nem muçulmanos e sofriam perseguições e massacres constantes. Ao falar sobre sua família, Marly Cury Hassan diz: “No Líbano e na Síria não tinha condição de viver. Não tinha condição porque os turcos tinham invadido e estavam acabando com tudo. Os turcos iam às casas e tiravam todo o mantimento que o povo tinha, deixavam as famílias sem um grão de arroz pra fazer, e colocavam em praça pública. Depois eles vinham com um alto-falante e gritavam: „venham pegar comida, nós somos gente honesta, gente boa, não queremos o mal de vocês. Venham pegar comida. Olha quanta comida! Era aquela batelada de alimento. O povo morrendo de fome ia. Mas eles colocavam bombas na comida. O povo punha a mão e estourava. Muita gente morreu assim”. O meio infantil de controle social – a violência – era muito utilizado pelos otomanos (BERGER, 1963, p. 81).

Figura 1 – Mapa do Império Otomano 20

Sob domínio turco não houve grande desenvolvimento tecnológico e perdeu-se parte do conhecimento cientifico que se tinha. Hourani relata que “havia pouco conhecimento das línguas da Europa Ocidental e dos avanços científicos e técnicos que ali se faziam. As teorias astronômicas associadas ao nome de Copérnico só foram citadas pela primeira vez em turco, e mesmo assim de passagem, no fim do século XVII, e os avanços na medicina européia só lentamente começavam a ser conhecidos no século XVIII” (HOURANI, 2006, p. 342). A Europa experimentava uma realidade totalmente nova. A peste negra – com o sistema de quarentena – e a fome deixaram de ser calamidades para as nações européias. O seguimento naval foi desenvolvido e, com as colônias, dentro e fora da Europa, mais terras passaram a ser cultivadas. O comércio se expandiu mundialmente – os europeus navegavam todos os mares do mundo – e as colônias tinham minérios a ser explorados. Todos esses fatores proporcionaram o acúmulo de capital que trouxe crescimento à produção de manufaturados, riqueza e aumento da população. Assim, era possível ter exército e marinha mais numerosos. A economia da Grande Síria sentia o impacto vindo do noroeste. Os produtos europeus – produzidos na Europa ou nas colônias – passaram a fazer forte concorrência aos produzidos no Oriente Médio. Não era preciso ser rico para poder comprar uma roupa francesa de boa qualidade. Assim como o Líbano – que fornecia seda – os outros países otomanos tornaram-se fornecedores de matéria-prima e consumidores dos produtos manufaturados vindos da Europa. “O principal efeito talvez tenha sido a redução das trocas, entre diferentes partes do Império Otomano, daqueles bens em cujo comércio a Europa tornava-se um concorrente” (HOURANI, 2006, p.344). Se em dado momento os otomanos faziam frente a qualquer nação do mundo seu declínio definitivo havia começado, mas nem todos os líderes do império puderam ver esta realidade; e os que a viram, não tiveram meios ou forças para revertê-la. O desenvolvimento tecnológico promoveu o aparecimento das ferrovias, que diminuíram as distâncias. A matéria-prima e os produtos chegavam em maiores quantidades, com mais segurança e em menos tempo a seus destinos. “As exportações britânicas para os países do Mediterrâneo Oriental aumentaram 800% em valor entre 1815 e 1850; a essa altura, 21

beduínos no deserto da Síria usavam camisas feitas de algodão de Lancashire” (HOURANI, 2006, p. 353). Muitas das terras otomanas passaram a servir à grande produção de matéria-prima – como algodão e seda – e grãos, para alimentar a população européia, cada vez maior. Assim a estrutura de subsistência foi desestruturada. A entrada de produtos e bens estrangeiros, facilitada com a abertura do Canal de Suez, prejudicou os artesãos. “A produção de sêda, uma indústria caseira e principal fonte de renda de centenas de aldeias, foi sèriamente prejudicada pela abertura do Canal de Suez, que permitiu a introdução da sêda japonêsa, mais barata. A invenção do „rayon‟ por volta de 1920 finalmente destruiu-a. A abertura do canal finalmente acabou o comércio que outrora florescia ao longo das rotas das caravanas. A maioria dos mercadores, quase todos cristãos, ficaram sem emprêgo. Outra ocupação cristã, a cultura da uva e fabricação do vinho. Os vinhateiros cujas plantações foram afetadas acharam difícil encontrar um produto que substituísse a uva”. (KNOWLTON, 1961, p. 26).

A conjuntura internacional encolheu a economia da Grande Síria tornando impossível a absorção de toda mão-de-obra disponível – surge um excedente populacional. “A transformação do excedente populacional em migrante, virtual ou real, é, por sua vez, levada a cabo por um complexo mecanismo, onde se alinham peças de natureza estrutural, política, ideológica e psicológica. Cabe a este mecanismo transformar o excedente populacional em emigrante e, nesta condição, expulsá-lo das fronteiras do país natal” (BORGES, 1982, p. 114). Borges ainda afirma que a juventude representa de forma expressiva este excedente populacional. Vemos que “os sírios e libaneses [presentes no Brasil em 1940] (...) têm uma concentração muito maior de população nas idades de 30 a 49 anos, e nìtidamente menores proporções nos grupos abaixo de 30 e acima de 60” (KNOWLTON, 1961, p. 84). Uma vez que nesta época o auge da imigração árabe ao Brasil já tinha algumas décadas, as palavras de Borges também são aplicadas neste caso. 22

2. A IMIGRAÇÃO

Apesar do ano 1871 ser o marco inicial da imigração sírio-libanesa ao Brasil, eles já se faziam presentes em terras brasileiras há muito tempo. “Fala- se da presença fenícia no Brasil remontando-se aos tempos do Antigo Testamento. As inscrições, ditas fenícias, na Pedra da Gávea são oferecidas como prova desta presença em solo brasileiro, na tentativa de enfatizar a ação, sobretudo, libanesa em nossa pátria” (DELAGE, 2009, p. 32). Eles também já estariam aqui no período colonial. Nabhan registra que, “Challita, em seu artigo, Libaneses – 100 anos no Brasil, escreve: .. a emigração libanesa contemporânea, igualmente significativa para o Brasil e para o Líbano, começou com a chegada de Yussef Mussa Miziara ao em 1880.. No mesmo texto, temos uma informação bastante singular, cuja transcrição julgamos proveitosa: .. houve outra chegada de libaneses sob a denominação de cristãos do Oriente na primeira época colonial brasileira. Vinham por intermédio de Portugal ou da África e eram considerados „estrangeiros amigos que ajudavam os portugueses a colonizar terras além-mar‟. Relata o historiador Adolpho Bezerra de Menezes que, em 1808, Antum Elias Lujos, ao saber que D. João não havia encontrado à sua chegada um solar à altura de sua realeza, ofereceu-lhe sua própria quinta. Esta casa do libanês seria hoje o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista..” (Challita: 1981). (NABHAN, 1989, p. 106).

O Boletim do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio de 1945 de fato registra que os primeiros imigrantes sírio-libaneses chegaram ao Brasil no ano 1871. Todavia, Knowlton constata em suas entrevistas afirmações de que a chegada inicial se deu muitos anos antes. Em 1876, Dom Pedro II, que falava árabe, visita Beirute e Damasco. Esta visita abre, oficialmente, as portas do Brasil para receber os imigrantes da Síria e do Líbano. “O Brasil, com outros grandes países americanos tais como a Argentina, o Canadá e os Estados Unidos, incrementou e às vêzes subsidiou a imigração. (...) A princípio procuraram-se imigrante para constituir uma classe de pequenos proprietários rurais a fim de contrabalançar o regime de latifúndios vigente. Essa política começou em 1820 e durou até o fim do século XIX” (KNOWLTON, 1961, p. 33). O professor da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” do campus Ibilce, em São José do Rio Preto, doutor Arif Cais, em um discurso interno aos funcionários afirma que “o primeiro registro de emigração 23

árabe para o Brasil é atribuído aos irmãos Zacarias, em 1835” que teriam se fixado na cidade do Rio de Janeiro. Ter indivíduos no Brasil não significa processo de imigração. Neuza Nabhan, em seu trabalho de doutorado, divide os imigrantes sírio-libaneses em dois grupos de migrantes: a 1ª população (de 1900 a 1960) e a 2ª população (de 1970 a 1980). A primeira é composta majoritariamente de cristãos – nosso objeto de estudo – enquanto a segunda por muçulmanos. Segundo Nabhan “diversos motivos levam o indivíduo, ou um grupo de indivíduos, a emigrar da terra natal, e o mais forte é o seu descontentamento, resultante de opressões políticas ou de carência econômica” (NABHAN, 1989, pp. 99-100). A autora revela entender ser a migração um “processo de mobilidade espacial que se opera em áreas afastadas entre si e separadas por fronteiras, envolvendo um número considerável de pessoas, as quais, individualmente, ou em grupo, transferem seu domicílio para outro país onde passam a viver e exercer regularmente suas atividades ocupacionais.. (Tsukamoto, 1973: 13)” (NABHAN, 1989, pp.101-2). O argumento de Oswaldo Truzzi de “que a noção de redes [de migração] é crucial a todos os que almejam entender migrações – históricas ou contemporâneas – como um processo social” (TRUZZI, 2008, p. 199) vem aprofundar nossa análise ao desvendar parte das interações exercidas pelos imigrantes. O mesmo autor cita Charles Titty que se utiliza das variáveis “distância entre origem e destino, e o grau de ruptura (com a origem) de quem emigrou” como elementos fundamentais para se evitar equívocos na definição de quem é imigrante. Em seu texto Emigração e Vida Rural em Portugal, João Baptista Borges Pereira apresenta três tipos de movimentos migratórios16 (BORGES, 1982, p. 112). O primeiro dos três tipos refere-se exatamente às áreas afastadas entre si e separadas por fronteiras, apresentadas por Nabhan. A definição apresentada pela autora nos parece aplicável, uma vez que os imigrantes sírio-libaneses cruzaram o mundo para chegar ao Brasil, não configurando um simples deslocamento ou mobilidade. No artigo Redes em processos migratórios, Truzzi apresenta quatro classificações de migrações formuladas por Tilly as quais transcrevemos aqui

16 1) movimento migratório para o exterior; 2) movimento migratório dentro das fronteiras do país; 3) movimento de indivíduos que exercem, simultaneamente, funções urbanas e rurais. 24

por serem, algumas delas, identificadas no processo migratório que temos por foco: “Locais: quando o indivíduo se desloca a um mercado (seja este de trabalho, de terra, seja mesmo matrimonial) geograficamente contíguo, que normalmente lhe é familiar. Circulares: quando o indivíduo se desloca a um mercado por um determinado intervalo de tempo definido, ao cabo do qual retorna a sua origem. De carreira: em que o indivíduo se desloca respondendo a oportunidades de ocupação de postos oferecidos por uma organização a que pertence ou associados a uma profissão que já exerce17. Em cadeia: que envolve o deslocamento de indivíduos motivados por uma série de arranjos e informações fornecidas por parentes e conterrâneos já instalados no local de destino”. (TRUZZI, 2008, pp. 199-200).

Ao contrário do que acontecia com algumas nações européias, os sírio- libaneses não tinham tradição em migrar. Grande parte das famílias vivia em propriedades que há gerações lhes pertencia. Muitas aldeias tinham – e ainda têm – predominância de uma única família, onde os casamentos se dão frequentemente entre primos. Suhail Ahmad Farhat nos relatou ter mais de três mil parentes na aldeia onde sua família vive no Líbano. Também contou sobre como se davam os casamento entre eles: “depois de oito anos de volta ao Líbano, meu avô resolve voltar pro Brasil. Mas uma irmã da minha mãe – com 13 ou 14 anos – casou-se com um primo. Já no Brasil, meus pais – que eram primos – ficaram noivos e meu pai decidiu vir para trabalhar e eles se casaram aqui. Meu pai tinha 24 anos e minha mãe, uns 20 anos”. Contando outra ocasião ele diz: “Meu pai traria a irmã mais nova dele, que tinha uns 22 ou 24 anos, e eu iria pro Líbano. Minha tia veio e gostou do meu tio – os dois também são primos. Meu pai falou: „Você gostou da minha irmã? Tudo bem. Quer casar com ela? Tudo bem. Então você vai pro Líbano. Ela vai ficar aqui. Daqui um ano ou dois ela volta e vocês se casam lá‟”. Novamente, um outro caso do mesmo assunto: “Meu avô paterno nasceu em 1898. O pai dele casou com uma prima lá e depois de 2 meses veio pro Brasil com a mesma ideia: „eu vou lá arrumar as coisas pra depois chamar vocês‟”.

17 É o caso do padre Nicolas Khouri Georges Ferzolli. Neto e filho de padre ortodoxo, ele veio ao Brasil a convite de seu tio, o também padre Dom Ignatios ``. 25

Ainda que não fosse incomum os filhos ingressarem em um curso superior, a vida em família na terra da família sempre fora incentivada e preservada. Nabhan inclui em seu trabalho a afirmação de T. Duon: “apesar de toda a resistência de que os libaneses foram capazes, não lhes era possível ficar imunes às intrigas dos turcos, que souberam minar o caráter de muitos vultos políticos e altos funcionários influentes, conseguindo por este meio enfraquecer o sentido do patriotismo, encorajar o suborno e tolher a liberdade da palavra, mediante uma censura inquisitorial”. (Douon, 1944, apud, NABHAN, 1989, pp. 103-4). Entretanto, como já vimos, o fator político-religioso não foi o único responsável pela emigração. A conjuntura econômica da Grande Síria mostrava-se bastante desfavorável aos produtores nativos. Além disso calamidades sanitárias também contribuíram, como o cólera, febre e varíola. Pequenos deslocamentos passam então a ser observados. A população libanesa, por exemplo, deixa as pequenas vilas e dirige-se às grandes cidades, depois para outras terras otomanas para então chegar à América. Assim, entre 1871 e 1942 106.184 imigrantes chegaram ao Brasil, provenientes da Síria, Líbano, Palestina, Armênia, Marrocos, Egito e Argélia. Mas estes números devem ser interpretados a partir da afirmação de Clark Knowlton: “Os imigrantes do Egito, Marrocos e Argélia eram em geral pessoas de ascendência síria e libanesa. Êsses imigrantes foram primeiro para o Egito e Marrocos onde se naturalizaram” (KNOWLTON, 1961, p. 37). Todas as aldeias e cidades do Líbano são afetadas pelo o que se tornou uma verdadeira diáspora. Comparativamente, a Síria teve um impacto bem menor com relação ao Líbano. “Um escritor norte-americano calcula que entre 1900 e 1914 quase um quarto da população do Líbano emigrou” (KNOWLTON, 1961, p. 17). Knowlton aponta cinco fatores fundamentais para o fenômeno de emigração: 1) liberdade para emigrar, 2) conhecimento de um outro país 3) que apresente vantagens sobre sua terra natal, para onde se possa emigrar, 4) insatisfação com sua situação em seu país e 5) condições facilitadas de translado. A presença protestante abriu novos horizontes para os cristãos oprimidos. Devido ao trabalho de assistência realizado por ingleses e norte- americanos, especialmente depois dos massacres de 1860 quando os 26

senhores feudais drusos – com o consentimento das autoridades turcas – arrasaram as terras dos cristãos – notadamente os maronitas – criou-se no imaginário dos assistidos a ideia de que a América era um continente de riqueza inesgotável. “Em 1866, missionários norte-americanos fundam, em Beirute, o Syrian Protestant College, em 1875, os franceses a Université de Saint-Joseph” (REICHERT, 1969, p. 140). Estes estrangeiros ocidentais tiveram acesso a praticamente todas as aldeias e cidades da Grande Síria, tendo missionários residentes e construindo escolas. Sua interferência política promoveu uma frágil segurança, que dependia, na verdade, da boa vontade drusa e otomana. Eles foram incentivo fundamental para o fenômeno de emigração por, entre outros fatores, terem feito com que os sírio-libaneses se tornassem conscientes de outros países para onde a migração fosse viável. Knowlton ainda afirma que “mais importante do que tudo isso, um descontentamento profundo com o „status quo‟ manifestou-se, e principiou uma ocidentalização parcial da população”. É o que ilustra a seguinte citação: “A situação política instável de todo o Oriente e as escassas colheitas de trigo tornaram o povo, inquieto e incerto quanto à sua própria condição no mundo. Êles entraram em contacto íntimo com a civilização européia, viram a sua superioridade, mas sentiram a impossibilidade de atingir a êsse nível sob as restrições do seu govêrno; e êsse descontentamento crescente com tal condição se tornou desfavorável à elevação religiosa e espiritual”. (KNOWLTON, 1961, p. 23)18.

A questão militar também foi preponderante. Ainda na década de 1820, o sultão Mahmud II (1803-29), juntamente com um pequeno grupo de importantes líderes, acreditava que o modelo militar otomano estava ultrapassado, e deveria ser transformado. Parte dessa transformação é que o exército deveria ser preparado por especialistas vindos da Europa. Pouco depois de sua morte um decreto real – o Hart-i serif de Gülhane – foi promulgado: “Todo o mundo sabe que, desde os primeiros dias do Estado otomano, os altos princípios do Corão e as leis da charia sempre foram perfeitamente preservados. Nosso poderoso Sultanato alcançou o mais alto grau de força e poder, e todos os seus súditos de comodidade e prosperidade. Mas nos últimos 150 anos, devido a uma sucessão de causas difíceis e diversas, a sagrada charia não foi obedecida nem as benéficas regras seguidas; conseqüentemente, sua antiga força e prosperidade transformaram-se em fraqueza e

18 Forty-third Annual Report of the Board of Foreign Missions of the Presbyterian Church in the United States of America (New York: Published for the Board, 1880), p. 33. 27

pobreza. É evidente que os países não governados pela charia não podem sobreviver [...] Cheios de confiança na ajuda do Altíssimo, e certos do apoio de nosso Profeta, julgamos necessário e importante introduzir de agora em diante uma nova legislação para conseguir administração efetiva do governo e províncias muçulmanas” (HUREWITZ, 1975, apud, HOURANI, 2006, p. 359).

A idéia era recuperar o poder do governo e estruturá-lo de uma nova forma. “Desde cedo criou-se um (...) exército, uma força ativa de infantaria e cavalaria altamente disciplinada, formada através do desvirne, ou seja, da convocação periódica de rapazes das ladeias cristãs dos Bálcãs convertidas ao Islã” (HOURANI, 2006, 288). Estes soldados convertidos ao islamismo viviam em um regime diferenciado e eram chamados de janízaros. Enquanto estivesse ativo no serviço militar, o janízaro não poderia se casar. Após reformado, não poderia casar-se com mulheres otomanas – para não crescer em prestígio – e seus filhos não poderiam fazer parte do exército. Até 1909 as autoridades otomanas tomavam “o cuidado de não arregimentar cristãos para o exército, evitando assim que se armassem. Mas com o advento da Primeira Guerra Mundial eles [também] foram submetidos [a um arriscado] serviço militar obrigatório” (MARTINS, 2008, p. 2). Foi o que aconteceu a Kassen Kais, pai de Arif Cais. Em entrevista realizada para este trabalho, Cais relata: “Meu pai é nascido em 18 de novembro de 1885. Saiu do Líbano, como todos daquela época, aos 18 anos de idade para fugir do serviço militar que era prestado ao Império Otomano, ao exército turco. Isto porque grande parte dos que serviam acabavam morrendo. Então ele saiu do Líbano em 1903. Os jovens da idade de meu pai, via de regra iam servir em frontes de conflito, no deserto. Morria muita gente. Então quem tinha algum recurso e podia sair do Líbano saía. E saía com passaporte turco porque estavam sob o domínio turco.” Por volta de 1900 a Turquia passa a dificultar a emigração. Isso por causa dos conflitos nos quais estava envolvida com os Bálcãs ou mesmo dentro de suas colônias.

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3. AS REDES DE MIGRAÇÃO

Ao deixar a Síria e o Líbano, os emigrantes em geral pretendiam fazer fortuna na América e retornar à terra natal. O principal destino idealizado era os Estados Unidos e muitos ao chegarem ao Brasil ou Argentina, por exemplo, acreditavam estar lá, enganados pela companhia de navegação ou por outros de interesses escusos. Outros “chegaram ao Brasil, porque pressentiram que seria mais fácil tirar o visto de entrada para aquele país por aqui, e acabaram ficando. Depois de algum tempo, espalharam-se entre eles notícias das dificuldades para entrar nos EE. UU., e eles se dirigiram, a partir de então, definitivamente para o Brasil”. (NABHAN, 1989, pp. 110-11). Não é por acaso que Truzzi afirma que as emigrações “em cadeia tendem mais a envolver famílias”. (TRUZZI, 2008, pp. 201-2). A história de Kassen Kais – contada por seu filho Arif Cais – é um demonstrativo: “Meu pai saiu do Líbano em 1903, com 18 anos e foi para a Argentina. Morou em La Plata até 1909 e foi trabalhar como mascate, como todos. Depois de cinco anos a Argentina exigia que os imigrantes se naturalizassem argentinos. Ele então deixou a Argentina e veio para o Brasil, com referências de quem já estava por aqui sempre com a expectativa de voltar um dia ao Líbano. Veio morar numa cidadezinha mineira chamada Conquista, perto de Sacramento. Ali abriu uma casa chamada Casa de Arte, em 1909, e acabou conhecendo minha mãe. Casou-se em 1919 e em 1921 veio para Nova Granada, que era distrito de Rio Preto na ocasião. Ele veio para cá por ser um sertão promissor, lotes de casas eram doados. Ele se estabeleceu e no final dos anos 20 trabalhava com secos, molhados, serragem, posto de gasolina, era tudo misturado. Mais tarde veio um irmão e um primo dele do Líbano, fundaram uma sorveteria. O primo retornou ao Líbano mais tarde, por volta de 1948 e ele e o irmão eram sócios na Casa de Artes Cais e Irmão. Trabalharam neste ramo até envelhecer”. O candidato a emigrante procurava municiar-se com informações sobre oportunidades e dificuldades, condições de alojamento, de emprego, etc. na terra de destino. De acordo com nossos entrevistados, tais informações chegaram a eles próprios ou a seus pais, em sua grande maioria mediante parentes ou patrícios que já conheciam na Grande Síria. Esses fatos são 29

importantes por mostrar a qualidade da informação. As informações recebidas pelos emigrantes em potencial sejam elas confiáveis ou não, reajustam as distâncias e relativizam o longe e o perto. Truzzi diz que “os mapas mentais dos que pensam em emigrar são diferentes dos mapas geográficos. Locais em outro continente, mas com parentes e empregos, podem ser emocional e materialmente próximos, enquanto espaços sociais vizinhos, mas sobre os quais não se tem muitas referências, podem parecer muito distantes. Os emigrantes potenciais preferem informação e, sempre que possível, de confiança (cf. Hoerder, 1999)”. (TRUZZI, 2008, p. 207).

Acima, na Foto 1, a família Cury, ao lado, a Foto 2, Salma Cury quando jovem em uma foto colorida à mão.

A política de imigração do governo brasileiro, iniciada em 1820, abriu espaço para a atuação das “Companhias de Colonização, caracterizadas como empresas, que entraram em grande concorrência entre si, no exterior ou no Brasil, sobretudo no tráfico de imigrantes e em sua importação. Instalou-se a partir daí, uma engrenagem de pessoas para atuarem: funcionários nos portos, nas repartições públicas, inspetores de núcleos coloniais; enfim, muitos passam a viver dos serviços de imigração e colonização, havendo uma grande 30

mobilização de interesses e custos. Esse movimento populacional não só contribui para o desenvolvimento econômico do Brasil, através da imigração e colonização, mas também institui um novo mercado de trabalho, através da requisição de material humano para auxiliar essas companhias de imigração”. (NABHAN, 1989, pp. 114-5). Somados a tal política estavam os interesses daqueles que fomentavam a emigração. Muitos eram ex-emigrantes que, ao retornar à Grande Síria, faziam comícios, divulgando as facilidades de se fazer fortuna na América. A exploração era enorme, tanto por parte dos agiotas que ganhavam altíssimos juros sobre as passagens dos que não tinham condições de comprá- las, como por parte dos líderes de aldeias que incentivavam os camponeses a emigrar, ganhando comissão por cada um que partia. Aqueles a quem Knowlton chama de imigrantes de torna-viagem movimentavam “um negócio muito rendoso, pois recebiam comissões das companhias de navegação, dos hotéis, dos armazéns etc.” (KNOWLTON, 1961, p. 27). Knowlton transcreve em seu trabalho um relato extraído do Seventy-second Annual Report of the Board od Foreign Missions of the Presbyterian Church in the United States (New York: Published for the Board, 1907) muito esclarecedor sobre este tema: “O negócio da emigração tornou-se muito rendoso; o método usado na Alemanha em 1870 é o que aqui se usa. Um nativo, geralmente um que já esteve na América, visita a aldeia, faz comícios, descreve o modo maravilhoso de fazer dinheiro, ensina para onde ir, o que fazer – de fato tudo o que um emigrante precisa saber. É raro que êle não consiga um certo número de depósitos para passagens de navio. Êsse homem pertence a uma longa corrente cujos elos se encontram por todo o trajeto da Síria até os portos norte e sul-americanos. De vez em quando, essa cadeia de trabalhadores manda e recebe avisos para evitar ou dar preferência a êste ou aquêle lugar. Se estiver o indivíduo doente, evitar Nova York e ir primeiro para o México, depois para o norte, etc. Sem dúvida é um plano engenhoso para obter representações favoráveis das companhias de navegação. Neste momento a corrente é para a Argentina. Poderíamos falar na messe de ouro colhida por funcionários, agentes de vapores, barqueiros, etc. nos portos. É um sistema que resulta em muito sofrimento humano, perturbações, ciúmes e às vêzes crimes” (KNOWLTON, 1961, pp. 27- 8).

Mesmo com a exploração intensa que sofriam na viagem, o fluxo de imigrantes foi muito grande. Nem sempre as informações eram tão confiáveis como os aventureiros desejavam. Por outro lado, parte deles não se importava realmente com isso. Nem sempre a emigração era motivada por perseguições ou dificuldades econômicas. Embora muitos dos primeiros imigrantes 31

afirmassem terem vindo ao Brasil porque “queriam enriquecer. [Para os] jovens, cheios de saúde e de planos para o futuro, uma desavença familiar, ou mesmo a imposição dos pais no casamento, foi a causa da emigração, havendo sempre a indicação de algum parente, amigos ou antigos vizinhos, com quem poderiam encontrar-se no Brasil”. (NABHAN, 1989, pp. 105-7). Os informantes de Knowlton afirmavam que conspiradores e intelectuais, quando eram desmascarados pelos otomanos, também fugiam. Estes formariam a liderança do povo nas terras de destino. Em muitos casos, as famílias enviaram um de seus membros, que, na prática, tiveram a função de desbravadores. Eles abriram espaço para a vinda de muitos outros. Nabhan afirma que, segundo seus entrevistados, a vinda ao Brasil mostrou-se viável pela “a) possibilidade de trabalho, com vistas ao sucesso econômico; e b) presença de amigos ou parentes em nosso país e os chamados por parte daqueles aqui residentes” (NABHAN, 1989, pp. 119-20). As palavras de Elmaz Bussab, em entrevista para esse trabalho, exemplificam bem as redes de migração, as trocas de informações e a existência das companhias de imigração: “Enquanto a tia Odete estava no Brasil a guerra apertava na Síria. Eles queimavam casas, fazendas, e meu avô pegou minha mãe, a tia Sálua e falou pra minha avó: „manda embora pro Brasil, pra casa da Odete. Vão ficar com irmã até acalmar a guerra‟. Vieram as duas, minha mãe com 19 anos e tia Sálua com uns 22. Vieram pra ficar três anos e nunca mais voltaram. Desculpe, eu fico emocionada. Nunca mais minha mãe viu a mãe dela e nem o pai. Nunca mais viram ninguém. Só sabiam que tinham mais dois irmãos na Argentina”. É o intuito de migração circular que se revela em cadeia de migração. A continuação da entrevista revela episódios que misturam dificuldades, amor, coragem, alegria e tristeza e até elementos míticos: “Meu pai, minha mãe, avós maternos e paternos, todos são da Síria. A minha família é toda da Síria. Meus avós maternos – que só conheci por fotografia – tiveram seis filhos, quatro mulheres e dois homens. Os homens eram David, Rachid. Eles foram embora pra Argentina junto com meu avô e minha avó com as quatro filhas ficaram na Síria, numa cidadezinha próxima a Damasco. 32

Meus dois tios foram jovens pra Argentina, e meu avô foi levá-los pra fazer vida na Argentina porque surgiu ameaça de guerra no Oriente. As mulheres ficaram na Síria. Elas eram, minhas tias Elmaz – de quem herdei o nome, que significa brilhante – Odete, Sálua e minha mãe. A tia Elmaz era a mais velha e já era casada e já tinha uns filhinhos. Minha tia Odete tinha um problema de visão e por isso não foi pra escola e não foi alfabetizada. Na minha família tem o ramo Medotista e ramo Ortodoxo, então tinha o titio pastor e o titio padre. Enquanto meu avô estava na Argentina, ainda no século XIX acompanhando os filhos de 12 e 14 anos, o tio padre – eu achei isso uma sacanagem – casou a tia Odete. Ele falou pra ela: „você vai entrar na Igreja vestida de noiva e lá vai conhecer um homem que se chama José, e tudo o que eu perguntar a você, responda „sim‟‟. Ela foi. Tinha aquele moço no altar esperando, e tudo o que o tio perguntava ela dizia „sim‟. Acabou casando. Quando meu avô chegou da Argentina – ele ficou muito tempo pra lá – ele ficou muito bravo. Como que casa a menina que devia ter 14 ou 15 anos? Ela era muito novinha. Meu tio disse: „ela tinha que casar porque não sabe ler, não sabe escrever, não enxerga direito e não pode ficar solteira‟, essas bobagens dos antigos, né? Graças a Deus que isso mudou. Foi quando estourou a guerra no Oriente. Mamãe e tia Sálua já estavam grandinhas. Pela falta dos filhos homens, quem ajudava meu avô nas fazendas com o campo de trigo com os cavalos era a tia Sálua. Ela puxava o arado, fazia serviço de homem na fazenda. O marido da tia Odete, tio José Abraão – pai do famoso Valter Abraão – tinha uma irmã que morava aqui no Brasil. Ele então disse: „vamos pro Brasil porque minha irmã já está morando lá, então pra nós é mais fácil ir pro Brasil, porque já tenho minha irmã lá. Suas irmãs ficam com seu pai e sua mãe aqui e nós vamos embora pro Brasil‟. Nesse espaço de tempo ela ficou grávida. Eles pegaram o navio rumo ao Brasil e o navio demorou demais. Eu sei que enquanto estavam em alto mar ela teve uma menina. Minha tia não tinha noção de quando seria o parto e saiu pra acompanhar o marido. Foi o primeiro caso de nascimento em alto mar da Companhia de Navegação Vitória Régia, que era o nome do navio. Antes de minha tia ver a menina eles a ofereceram ao mar e falaram pra ela: „o pai dela é o mar, a mãe dela é o mar, ela pertence ao mar‟. O comandante do navio pegou um papiro e uma pena de fogo e deu a ela o nome de Vitória Régia – 33

sem sobrenome – e disse: „essa é a certidão de nascimento dela‟. Estava escrito „despatriada‟. Foi aquela festa no navio e ela ganhou uma apólice dando direito a que viajasse na Vitória Régia sempre que quisesse. O navio teve que parar em Genova, na Itália, sem previsão de partir. Havia a possibilidade de não partir, por causa da guerra, então foram obrigados a descer do navio. Arrumaram um lugarzinho pra dormir e minha tia conseguiu uma caixa de sabão, feita de madeira, pra colocar a bebê pra dormir e disse ao marido: „essa menina não pode ficar despatriada e nem com esse nome. Ela tem que ter nome e sobrenome. Tem que ter nome de mãe e nome de pai. Temos que registrá-la!‟ Registraram-na como italiana com o nome de Victória Abraão, nome do pai José Abraão e nome da mãe Odete Bechara Abraão e assim foi. Quando acabaram de se instalar na Itália – não sei quanto tempo ficaram por lá – veio a ordem para o navio seguir viagem. Eles chegaram no porto de Santos e foram pra Piraju, onde a irmã do marido da minha tia já morava. Lá ela teve outro filho, Alexandre. Quando chegou a época de Victória ir pra escola, não aceitavam estrangeiro, e ela era estrangeira, tinha sido registrada como italiana. Então minha tia deu uma de boba e a registrou outra vez. Fingiu que não tinha registrado, que tinha vindo da Síria e a menina nasceu no navio, não tinha dado pra registrar e registrou outra vez. O nome dela mudou pra Tatua Abraão. Tanto é que quando ela faleceu alguns parentes ficaram confusos dizendo: „filha da Odete não é, porque ela só teve uma filha que se chamava Victória‟. Ela se formou professora e morreu com 23 anos de idade de hepatite”.

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4. TERRAS BRASILEIRAS

Ao estudar a emigração portuguesa, Borges afirma que “A maneira ou a forma como o imigrante é encarado pelo país que o acolhe reflete todo um esquema ideológico e político, ou seja, um ideário e um esquema de ação e de atitudes no trato com o ádvena que, além de definir as características do país enquanto país de imigração, dá as linhas mestras que balizam a vida do imigrante” (BORGES, 1982, pp. 108-9). Isto vem de encontro ao posicionamento do governo brasileiro à época da imigração sírio-libanesa em abrir as fronteiras do país para receber imigrantes. Contudo, “na prática, o imigrante ocupa espaços maiores, mesmo quando visto e tratado apenas como mão-de-obra, pois a partir da conjungação de seus objetivos e do que lhe é oferecido, ele cria ou recria o seu modo de vida, que começa com as condições materiais de existência” (BORGES, 1982, p. 109). Clark Knowlton sistematiza as forças motivadoras à imigração ao Brasil em três categorias. A primeira é a busca por “imigrantes para constituir uma classe de pequenos proprietários rurais (...) A segunda fôrça motivadora foi a necessidade crescente de trabalhadores rurais. (...) A terceira fôrça motivadora foi a necessidade de operários para a indústria” (KNOWLTON, 1961, p. 33). Essas necessidades manifestas pelo governo brasileiro visavam constituir uma classe de pequenos proprietários rurais, suprir a lacuna de mão-de-obra aberta com o fim da escravatura e ocupar os postos de trabalho que surgiram com a industrialização do país, para os quais não havia material humano suficiente. Entretanto, assim “como os judeus e, até certo ponto, como os espanhóis, os sírio-libaneses excluíram de seu projeto migratório a zona rural e se instalaram nas cidades” (BORGES, 2000, p. 19) não ocupando-se de nenhuma das tarefas acima listadas. “Os Syrios immigrantes que na sua maioria em sua terra natal, eram pequenos industriaes, operarios ou habeis lavradores, aqui e nas terras que escolheram para o seu exilio voluntario, e, onde os levou o seu destino, preferiram alcançar a fortuna ávidamente desejada atravez da pratica do commercio que julgavam ser o meio mais facil e rápido" (CAVALHEIRO, 1929.). “Apesar de a maioria ser constituída de agricultores (...) O fato se explica porque os que se ocuparam da lavoura vieram sob forma de colônias – 35

exigência do governo, como no caso de japoneses, italianos e alemães”. (NABHAN, 1989, pp. 116). Segundo Lodi “A miséria da população rural e o sistema de compra, vinculado ao proprietário da terra, [repeliram] esses imigrantes do trabalho no campo” (LODI, N. Sírios e libaneses em Rio Preto. Diário da Região, São José do Rio Preto, 29 out. 2006). Nabhan divide em dois movimentos o processo migratório no Brasil. Um, chamado imigração e outro, colonização. O último é composto por aqueles que vão trabalhar no campo, com a agricultura. Os sírio-libaneses encaixam- se, segundo a autora, no movimento de imigração, que é realizado “em grupo ou individual, com trabalho liberal” (NABHAN, 1989, pp. 119-20). Para os que deixaram sua terra e família com o intuito de conquistar um novo e elevado patamar econômico, continuar no mesmo ramo não caracterizava uma real mudança. As informações recebidas eram de pessoas que, sem saber o idioma falado no Brasil, desempenharam uma atividade específica e prosperaram. A vinda do pai de Suhail Ahmad Farhat retrata essa realidade. Seguindo o sogro, ele decide retornar ao Líbano caso tenha que se dedicar à agricultura, como fazia em seu país. Se fosse para continuar na mesma área profissional, melhor fazê-lo em sua própria terra. Vejamos como ele descreve a situação: “Meu avô tinha um bar, um restaurante, mas falou pro meu pai que estavam pagando bem para trabalhar com o café ou algodão. Meu pai falou: „se eu vim para o Brasil pra colher algodão e ganhar não sei quanto por dia, eu fico lá cuidando da minha terra, plantando tomate e melancia que é muito melhor‟”. A maioria dos imigrantes não queria se identificar com a classe agrícola. “Cerca de 18% dos imigrantes turco-árabes foram enumerados como lavradores, 2% como operários e 79,9% como „outros‟. As estatísticas desnorteiam, porque a maioria dos imigrantes procedia de zonas rurais da Síria e do Líbano. Talvez a maior parte dêles ganhasse a vida no cultivo da terra, e um dos seus fins ao emigrar fôsse obter dinheiro para aumentar sua propriedade territorial, comprar ferramentas ou gado. Entretanto, não emigraram para o Brasil a fim de lavrar a terra. Vieram para dedicar-se ao comércio, mais lucrativo que o trabalho rural”. (KNOWLTON, 1961, p. 62).

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Composição Ocupacional das Principais Nacionalidades Entradas no Brasil Pelo Pôrto de Santos (1908 até julho de 1941)

Grupo Nacional Imigração Lavradores Operários19 Outros Total Número % Número % Número %

Todos os imigrantes 1.327.911 791.135 59,6 63.883 4,8 472.943 35,6 Turco-Árabes20 43.954 7.930 18,0 891 2,0 35.133 80,0 Turcos 26.348 2.941 11,2 551 2,1 22.856 86,7 Sírios 17.606 4.989 28,3 340 1,9 12.277 69,7 Portugueses 293.584 140.176 47,7 14.417 4,9 138.991 47,8 Espanhóis 209.892 164.924 78,6 4.773 2,3 40.195 19,2 Italianos 206.056 101.066 49,0 22.654 11,0 82.336 40,0 Japoneses 188, 490 186.228 98,0 232 0,1 2.030 1,1 Alemães 46.893 14.385 30,7 5.869 12,3 26.639 56,8 Rumenos 24.041 20.369 84,7 333 1,4 3.339 13,9 Iugoslavos 21.365 19.895 93,1 216 1,0 1.254 5,9 Lituanos 21.069 18.249 86,6 403 1,9 2.417 11.5 Poloneses 16.912 6.746 39,9 1.473 8,7 8.683 51,4 Austríacos 15.251 9.156 60,0 1.525 10,0 4.570 30,0

Tabela 1 Fonte: KNOWLTON, 1961, p. 63.

De 1871 a 1891 estavam registrados 156 sírio-libaneses no Brasil. Foram os primeiros responsáveis pela escolha do Brasil como país-destino a seus patrícios. Como os que os seguiram “enviaram, sempre, determinadas quantias aos parentes no Líbano, a fim de que esses vivessem melhor e, segundo depoimento de muitos, também para comprovar seu sucesso no Brasil” (NABHAN, 1989, p. 107). Em 1898, 1.131 imigrantes chegaram da Grande Síria. No ano seguinte foram 2.110. Esses dados mostram-se positivos quanto ao funcionamento das redes de migração. A Primeira Guerra freou esses deslocamentos, retomados tão logo ela se findou. O estado de São Paulo foi o principal destino para esta onda árabe. Os primeiros chegaram por volta do ano 188021. Em 1913 11.101 imigrantes

19 Esta coluna inclui operários não qualificados para 1940 e 1941. 20 Não há dados sobre os libaneses. 21 Até 1892 todo imigrante do Oriente Médio era, no Brasil, denominado turco – por causa do passaporte expedido pelo Império Turco. Mas neste ano os que vinham da Síria passaram a 37

chegaram ao país, dos quais 6.493 se instalaram em São Paulo, ou seja, 58%. Com a economia do Estado em expansão, impulsionada pela lavoura do café, os sírio-libaneses se aproveitaram para circular por todos os lados “começando como mascates, passaram para o comércio a varejo e depois por atacado e finalmente para a indústria” (KNOWLTON, 1961, pp. 66-7).

entrar no país como sírios. Mas apenas em 1926 os libaneses passaram a ser registrados como tais. 38

Distribuição da População Sírio-Libanesa por Estados

População Estado 1920 1940 Número % Número % BRASIL 50.24622 100,0 46.614 100,0 Acre 627 1,2 230 1,5 Alagoas 6 0,09 20 0,09 Amazonas 811 1,6 461 1,0 Bahia 1.206 2,4 947 2,0 Ceará 268 0,5 190 0,4 Distrito Federal 6.121 12,2 6.510 13,4 Espírito Santo 810 1,6 636 1,3 Goiás 528 1,1 659 1,4 Maranhão 625 1,2 305 0,6 Mato Grosso 1.232 2,5 1.066 2,2 Minas Gerais 8.684 17,3 5.902 12,1 Pará 1.460 2,9 848 1,7 Paraíba 60 0,1 41 0,1 Paraná 1.625 3,2 1.576 3,2 Pernambuco 355 0,7 270 0,5 Piauí 188 0,4 85 0,2 Rio de Janeiro 3.200 6,4 2.541 5,2 Rio Grande do 55 0,1 69 0,1 Norte 2.565 5,1 1.903 4,0 Santa Catarina 488 1,0 377 0,8 São Paulo 19.285 38,4 23.948 49,2 Sergipe 47 0,1 26 0,1

Tabela 2 Fonte: KNOWLTON, 1961, p. 68.

22 Os algarismos do censo relatives ao número de sírios no Brasil revela uma discrepância de 5 entre a soma total dos estados (50.246) e o censo total (50.251). 39

II PARTE

1. ÁRABES EM SÃO JOSÉ DO RIO PRETO

O artigo Nasce um município, publicado por Lodi no jornal Diário da Região em 30 de julho de 2006 nos traz um breve histórico acerca do surgimento da cidade de São José do Rio Preto. Temos abaixo um resumo de tal artigo: “O início do processo de formação do município de São José do Rio Preto está enraizado no século 19 (1840-50). No bairro de Rio Preto, pertencente ao município de Araraquara, nas terras doadas pelos irmãos Luiz Antônio da Silveira e Antônio de Carvalho e Silva, fazendeiros e sitiantes, juntamente com o sub-delegado de Polícia e o juiz de paz, nomeados para os respectivos distritos em 1855, reúnem- se com o vigário de Araraquara e decidem dar início a um povoado sob a proteção de São José, às margens do rio Preto. O ato simbólico da posse das terras doadas à Igreja se concretiza na elevação de um cruzeiro de madeira na praça destinada à Capela, dedicada ao padroeiro no dia 19 de março de 1852. (LODI, N. Nasce um município. Diário da Região, São José do Rio Preto, 30 jul. 2006).

Com 9.930.478 habitantes, sendo 5.123.869 homens e 4.806.609 mulheres, “o recenseamento imperial de 1872 registra São José do Rio Preto como „paróquia povoada‟” (LODI, N. Ocupando o sertão. Diário da Região, São

José do Rio Preto, 05 mar. 2006). A região passou a ser ocupada especialmente por criadores de gado vindos de Minas Gerais e Mato Grosso à procura de pastagens. Contudo “Rio Preto resentia-se nessa época da falta de communicações com os mercados distantes, constituindo tal circumstancias um factor importante para o desanimo de todos os que aqui se installavam, mais instigados pela ambição de possuir um mundo de terra ignorada, que propriamente pelo prazer de habitar uma casa rustica sem conforto nem segurança, porque a falta de recursos materiaes aggravava-se com a falta de ordem e de justiça. As terras de Rio Preto, eram portanto, nesses tempos remotos, um bello Oasis perdido na trama convulsa da matta emaranhada, e cuja população era mais de selvagens e féras, que propriamente de homens civilizados, que eram, aliaz, em numero resumido” (CAVALHEIRO, 1929) Após cinco anos, no dia 1º de junho de 1857, ela recebe Provisão. Em 1867, é criado o município de Jaboticabal, desmembrando de Araraquara. Ainda na década de 1880 tem início a cultura cafeeira, e com ela começa o movimento migratório responsável pelo expressivo 40

crescimento populacional observado nas décadas finais do século 19 e iniciais do século 20. Uma das causas desse desenvolvimento tardio e lento, se não a principal, foi a escassez de mão-de-obra escrava em toda região. Com a abolição, a necessidade de trabalhadores se intensificou e o município passou a receber imigrantes, principalmente italianos. Contudo, há relatos orais de fazendas, dentro do município, formadas exclusivamente com mão- de-obra livre, antes mesmo da abolição (Fazenda da Alegria, de Bernardino Canuto Ribeiro, e Borá, de Martinho Isidoro Gonçalves). Dessa forma, São José do Rio Preto experimentou mudanças, tanto sociais como econômicas, após muitas décadas de sua fundação: a passagem da economia de subsistência para o sistema da grande lavoura, a adoção do regime de trabalho livre e a integração de contingentes de imigrantes italianos, espanhóis, portugueses e sírio- libaneses. Por 27 anos, 1867 a 1894, o povoado de São José do Rio Preto pertence ao município de Jaboticabal. A partir de 19 de julho de 1894, com a criação do município, Rio Preto torna-se a „celula mater‟ da vida administrativa e municipal no sertão do Avanhandava. É elevada finalmente à categoria de vila, decorrência natural de sua elevação a município em 1894 (lei nº 294), e em 1904, após a criação da comarca, passa então à categoria de cidade (lei nº 20). Ao ser criado o município, considerado um dos mais extensos do Estado de São Paulo, tem como divisas os rios Tietê, Paraná, Grande e Turvo com a extensão de 26.126 km2. Era então considerado uma grande península encravada no „sertão do Avanhandava‟, pois as suas divisas eram todas formadas por linhas fluviais. Era citado como o segundo município paulista em extensão. A partir de 1901, dificuldades internas começam a surgir. A administração municipal é alvo de críticas nascidas e fomentadas nos distritos. Os descontentamentos aumentam, os contribuintes reclamam contra os lançamentos de impostos e cobranças de taxas. De 1894 a 1910, o município mantém sua unidade territorial. Daí para a frente porém inicia-se uma longa série de desmembramentos que se prolonga até fins da década de 50. Em 1900, São José do Rio Preto contava com 3.221 habitantes. Em 1920, eram 126.796. Em 20 anos a sua população multiplicou-se por quarenta. Em 1996, com a extensão territorial de apenas 433 quilômetros quadrados, sua população está estimada em 323.368 habitantes. O toponímio 'São José do Rio Preto' é resultado da união do nome do padroeiro e do rio que atravessa os patrimônios. A partir de 1906 passa a ser designada apenas por Rio Preto, retornando ao nome original em 1944 (lei nº 14.334).” (LODI, N. Diário da Região, São José do Rio Preto, 30 jul. 2006).

A cidade veio a ser local não apenas de passagem, mas também de fixação de parte dos imigrantes. Isso em função do caráter promissor da região e dos bons resultados iniciais nos negócios.

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2. O MASCATE

Um dos meios que um grupo étnico busca para se enquadrar na sociedade do país para o qual migrou é o profissional e, normalmente, a primeira geração se estabelece em profissões para as quais não é preciso qualificação; são empregos braçais, mal remunerados e pouco procurados pelos nativos. Entretanto, a história foi diferente com os sírio-libaneses no Brasil – eles evitaram os trabalhos braçais e agrícolas como se pode ver na tabela abaixo:

Nacionalidade Rural Urbana Total Número Porcentagem Número Porcentagem Número Porcentagem Estrangeiros 468.732 50,0 462.968 50,0 931.691 100,00 Sírios 4.748 18,0 20.872 82,0 25.620 100,00 Italianos 156.708 51,0 148.269 49,0 304.977 100,00 Portugueses 52.178 30,0 124.413 70,0 176,591 100,00 Espanhóis 93.343 58,0 67.181 42,0 160.524 100,00 Alemães 9.734 36,0 17.264 64,0 26.998 100,00 Japonêses 120.811 92,0 10.898 8,0 131.709 100,00 Tabela 3 – População rural e urbana entre os estrangeiros do Estado de São Paulo classificados quanto à origem nacional e residência, 1934 Fonte: KNOWLTON, 1961, p. 79.

É notável o fato de que a maioria destes imigrantes era composta de solteiros (por volta de 60%), vindos de um contexto rural tendo chegado ao Brasil com pouco, ou nenhum dinheiro. Nilce Apparecida Lodi, professora aposentada e reconhecida historiadora da cidade, aponta que a idade da maioria variava de 16 a 23 anos. Com acesso a mercadorias a crédito e a possibilidade de um retorno financeiro relativamente rápido, tornaram-se, majoritariamente mascates. Outro episódio narrado por Suhail Ahmad Farhat, exemplifica o crédito que os patrícios estabelecidos concediam aos recém chegados: “Então [meu pai] foi pra São Paulo, na rua 25 de março, e em meio aos nosso patrícios falou pra um deles: „é o seguinte, faz vinte dias que eu vim do Líbano. Faça duas malas pra mim. Coloque meias, roupas essas coisas. Só 42

que eu não tenho dinheiro, tenho essas jóias que são da minha esposa. Vou deixá-las aqui como garantia‟. Nessa época os patrícios davam uns 120 dias para o mascate voltar e pagar. Então o patrício disse: „pega essa jóia, que é da sua esposa, não quero nada disso‟. Ele pegou as malas, veio de trem e começou a mascatear pelos sítios de ônibus. Eles chamavam os ônibus daquela época de jardineira”. Clark Knowlton indica que a mascateação era exercida pelos sírio- libaneses já durante a imigração: “De Marselha e Gênova, os mascates sírios e libaneses penetraram em tôdas as partes da Europa com alguns pacotes de mercadoria” (KNOWLTON, 1961, p. 28). Truzzi, entretanto, diz que “existem evidências ponderáveis de que a maior parte dos imigrantes que vieram para a América provenientes da Síria eram agricultores. (...) na terra de origem o ofício de mascate era mais freqüentemente exercido por gregos, armênios e judeus” (TRUZZI, 1991, p. 51). De qualquer forma foi como mascates que a bem sucedida empreitada econômica da colônia começou no Brasil. As cartas que enviavam aos amigos e famílias continham relatos do sucesso obtido com as vendas. Isso foi determinante na vinda de mais imigrantes, que deixavam seu país determinados a dedicarem-se ao comércio popular. Eles traziam água do rio Jordão, terra da Terra Santa, figuras de santos, rosários entre outras mercadorias adquiridas na Palestina que eram facilmente vendidas aos brasileiros de baixa renda. A atividade da mascateação já havia proporcionado um bom começo a outras etnias que migraram para o Brasil. Os primeiros a se dedicarem a esta ocupação foram os portugueses, seguidos pelos italianos. Os pioneiros na mascateação já estavam familiarizados com este ofício, desempenhado em seu país de origem pelo almocreve. O isolamento geográfico torna o almocreve aquele que quebra “as fronteiras do isolamento da aldeia, com mensagens urbanas, colocando-as em conexão com o mundo civilizado de fora. Examinando desta perspectiva, o almocreve cumpre o papel de herói civilizador, descendando aos olhos dos aldeões a existência de outras dimensões da vida com muita coisa a lhes ensinar, a lhes servir de modelo” 43

(BORGES, 1982, p. 128). Ideia semelhante é apresentada por Elias Choeiri23 no capítulo Galeria das Raças do Album Ilustrado da Comarca de Rio Preto: “Pouco tardou para que o Syrio viesse attenuar aos primeiros moradores os multiplos soffrimentos e com elles trabalhar denodadamente pelo progresso desta rica terra. Representava o mascate Syrio, a princípio e depois de um curto prazo de tempo o commerciante, o papel de missionario da civilização, trazendo com muitas dezenas de leguas de trajectos (...) atravez de estradas, assemelhando mais a picadões e completamente desertas, aos moradores o que elles podessem precisar, desde a roupa de vestir até os indispensáveis remédios" (grifo nosso) (CAVALHEIRO, 1929).

Com o tempo, os sírio-libaneses conseguiram dominar este ofício, uma vez que vendiam suas mercadorias com baixa margem de lucro e davam a possibilidade do cliente pagar sua compra na próxima passagem do vendedor por sua cidade. “Predominava então uma athmosphera de collaboração e de authenticas relações de fidalguia, num esforço todo fraternal que viria mais tarde constituir a base de progresso destas paragens. Esperava-se pelo mascate contando os dias e horas de seu trajecto e quando por um motivo qualquer era levado a ausentar-se mais dias do que costumava, acontecia que os moradores preoccupados com a sua demora mandavam a seu encontro pessoas para saber noticias suas. Isso acontecia não raras vezes. Quão bello era o ambiente em que viviam e quanto era importante aquella confiança e aquella amizade reciprocamente trocadas. Tambem era absolutamente desnecessario constituir um advogado para judicialmente cobrar uma conta, porque advogados não os haviam e a conta do mascate era sagrada, si o dinheiro não estava no geito era gado, era tudo o que é negociavel offerecido para o respectivo pagamento” (CAVALHEIRO, 1929).

Os sírio-libaneses “derrubam a concorrência com sua sutil visão de lucro e com a venda a prazo, baseada no respeito à palavra do consumidor, que compromete-se a pagar, sem promissórias. A palavra do consumidor, basta. A confiança depositada na clientela, que compra a prazo é um dos fatores de seu sucesso, pois os moradores das cidades e os colonos, rapidamente abandonam o compromisso de comprar nos armazéns dos proprietários das fazendas” (LODI, N. Sírios e libaneses em Rio Preto. Diário da Região, São José do Rio Preto, 29 out. 2006). Eles se equipavam “com uma grande caixa de mercadorias tais como agulhas, alfinetes, linhas, lãs, pentes, botões, grampos, joias e perfumes baratos, bordados, etc. fàcilmente

23 Comerciante, jornalista e advogado. Quando criança estudou na Síria e em uma escola russa. 44

transportáveis, com boa procura pela população rural” (KNOWLTON, 1961, p. 138). O mascate atingia a população que vivia distante da cidade e, por isso, era o “responsável” por levar as notícias para esse povo afastado. A moda e as novidades chegavam nas costas dos “turcos” assim como acontecia com o almocreve em Portugal. Com suas economias, logo era possível comprar uma mula para carregar suas mercadorias. Tendo condições, adquiria várias mulas. Mais tarde, o transporte passou a ser feito de caminhão – isto aonde existiam estradas; havia lugares onde só chegavam de barcos, pelos rios. Sanaa Yacoub Abaid nos contou a experiência de seu tio como mascate: “Meu tio fugiu da guerra e eu ouvia as histórias sobre ele na Síria. Ele tinha 16 ou 17 anos quando pegou o navio pra vir pro Brasil. Muita gente da minha aldeia está aqui no Brasil e vieram na mesma época que o meu tio. Minha aldeia tem três mil pessoas e mais de cem delas estão aqui. Depois meu tio voltou pra Síria e contava histórias daqui do Brasil. O país naquela época era diferente. Ele dizia que ficou um tempo sem documento, trabalhava muito, às vezes ficava sem comer. Ele se encontrou com uns primos em São Paulo depois veio pra São José do Rio Preto atrás de uns amigos. Ele pegava roupa e saia vendendo como mascate. Ele mostrava pra gente as marcas fundas nas costas e nos braços por causa das caixas que carregava. Com o trabalho ele conseguiu formar um patrimônio aqui e, foi aqui também que ele se casou, com uma prima dele. Tiveram dois filhos e uma filha. Ele contava que o Brasil era um país muito bom, com um povo muito humilde, muito simples e sem preconceitos. Dizia que o país era tranqüilo, que viajava horas e horas a pé sem preocupações, ninguém mexia com ele. Ele falava que o povo era honesto, porque ele vendia fiado e recebia quando voltava lá. Quando velho, voltou pra Síria pra ver os irmãos. Foi por causa dele que eu vim pra cá”. Com o acúmulo de certo capital, adquiriam imóveis onde na frente abriam uma lojinha e atrás – ou encima, no caso de sobradinhos – moravam. Discorrendo sobre o centro de São Paulo Safady conta que “As famílias ocupavam todos os sobrados dessas ruas, dos mais luxuosos, até os mais modestos, e mais numerosos quantos pobres nas vilas que estavam superlotados de ocupantes, a maioria dêles mascates. Aí viviam os ricos, os 45

novos-ricos – que imigraram na quarta classe – e à custa de seu trabalho honesto e fecundo enriqueceram.” (SAFADY, 1966, p. 139). Truzzi afirma que “a Rua 25 de Março e adjacências, no centro de São Paulo, constitui o reduto mais significativo da colônia sírio-libanesa no Brasil. Sua localização próxima ao Mercado Municipal atraiu desde fins do século 19 o estabelecimento de uma variedade de lojas, nos ramos de armarinhos e de tecidos, tanto no varejo quanto no atacado, logo angariando a reputação de rua dos „turcos‟” (TRUZZI, 2005, p. 81). Em Rio Preto o fenômeno se repete. “A história da rua General Glicério, no centro de Rio Preto, é um pouco a história dos árabes e seus descendentes. No início da vila, a rua era denominada rua da Fartura, mas a população lhe dá um apelido, „rua Jerusalém‟. Nela se instalam lojas de tecidos à varejo e armarinhos, empresas maiores, para a venda dos mais variados produtos, do chapéu à casimira, do querosene aos pneus, das panelas aos perfumes” (LODI, N. Sírios e libaneses em Rio Preto. Diário da Região, São José do Rio Preto, 29 out. 2006).

Tipo de Mercadorias Número de Mascates Fazendas 81 Frutas e verduras 42 Meias e camisas 37 Armarinhos 12 Colchas, fronhas e toalhas 11 Tecidos 11 Balas e doces 6 Jóias, fantasias e relógios 8 Confecções 6 Fitas e bordados 3 Cestas 3 Artefatos de couro, bolsas, etc. 2 Laticínios 1 Cereais 1 Calçados 1 Ovos e frangos 1 46

Velas 1 Guarda-chuvas 1 Gravatas 1 Tabela 4 – Mascates sírios segundo o tipo de mercadoria vendida. Cidade de São Paulo, 1951 Fonte: KNOWLTON, 1961, p. 140.

Em entrevista para este trabalho, Nilce Lodi faz referência a uma pesquisa realizada por ela em meados de 1970, com fiéis da Igreja Católica Ortodoxa Antioquina de São José do Rio Preto e diz que “entre as ocupações exercidas nos países de origem encontramos as de: lavradores, comerciantes, fazendeiros, industriais e carpinteiros. Destes, apenas um carpinteiro permaneceu em sua profissão, pois nesta época a mesma era bastante requisitada pela construção civil local. A maioria optou pelas atividades comerciais numa gama extensa que ia do mascate ao pequeno comerciante e ao grande atacadista; do pequeno ao grande industrial; das atividades autônomas às técnicas; do fazendeiro ao banqueiro. Dentre os relatos curiosos encontramos um sobre o transporte nos primeiros anos do século XX. Os mascates faziam suas viagens a cavalo, e com a inexistência de locais para alojamento, adquiriam pequenas chácaras para tal finalidade. Destacaram ainda que eram poucas as residências disponíveis na cidade, especialmente nos anos vinte, após o incremento populacional estimulado pela produção de café e as facilidades do transporte ferroviário, inaugurado em 1913. A construção de novas moradias se fez necessária”.

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3. TERRAS RIOPRETENSES

Desde antes da emancipação de São José do Rio Preto os sírio- libaneses já estavam presentes na cidade. As notícias sobre as terras férteis na região se espalhavam e traziam desbravadores. Ainda que conhecida como terra de onças, feras e bugres, com o tempo a floresta começou a dar lugar, primeiramente a pastos e, em alguns anos a pés de café. Fazendas enormes podiam ser adquiridas a preços irrisórios, mas, por uma questão de estratégia, não foi esse o caminho escolhido pelos imigrantes árabe. Ao mascatear tinham giro de capital, havia condições de ganhar dinheiro rapidamente e com isso o investimento ia para a abertura de um estabelecimento comercial, mesmo local onde passavam a residir. “Primeiramente vieram os syrios com a tenda ás costas e a classica matráca que servia a uma só tempo para annunciar aos freguezes a sua chegada e afujentar ao mesmo tempo, as féras que ainda infestavam os caminhos. Não se pode negar a essa gente o extraordinario valor da sua cooperação, nem deixar de louvar o espirito de sacrificio que os animava á lucta pela vida, enfrentando galhardamente todos os perigos para pôr em evidencia mais seus sentimentos humanos, que a ambição de pequenos lucros em negocios incertos, pois serviam de intermediarios para negocios diversos entre os raros habitantes de Rio Preto ou visinhanças, e as praças de Araraquara, ou Jaboticabal, separadas de nós por extensa mataria atravez da qual, serpenteava num estreito e perigoso picadão. Finalmente, como premio a todos os sacrificios, os syrios prosperavam rapidamente e em breve, deixavam a tenda do mascate, para se instalarem em Rio Preto com importantes Casas Commerciaes, furnidas de tudo o que era indispensavel aos consumidores desse tempo, e assim, graças a um trabalho proficuo, honesto e persistente, conseguiram os syrios manter até hoje a primasia commercial, tornando-se detentores dos maiores e melhores estabelecimentos não só de Rio Preto, mas de toda a Comarca” (CAVALHEIRO, 1929).

Dizer que enfrentavam os perigos para pôr em evidencia mais seus sentimentos humanos, que a ambição de pequenos lucros em negócios incertos não nos parece coerente. Especialmente quando o mesmo texto diz que os syrios prosperavam rapidamente e em breve, deixavam a tenda do mascate, para se instalarem em Rio Preto com importantes Casas Commerciaes. Ainda que com um tom saudosista, a passagem citada descreve 48

brevemente o contexto em que estes syrios viveram nos primórdios da cidade. Vale ressaltar que a designação destes imigrantes variava24. As aventuras vividas enquanto viajavam viraram histórias fantásticas para se contar aos filhos e netos. Marly Cury Hassan nos relatou sua passagem favorita, contada por seu avô: “uma vez ele foi entregar mercadorias numa fazenda, e minha avó lhe dizia: „não volte a noite porque é perigoso‟. Tinha muita onça nessa região, onça demais. „Você dorme lá e de manhã cedo você volta‟ dizia ela. Depois de entregar as mercadorias, ele foi jantar com o homem, sua mulher e seus filhos. Foi quando meu avô viu o homem rezando e pensou: „mas que raio de reza é essa?‟ „Que reza vocês estão fazendo aí?‟ ele perguntou. O homem respondeu: „espera um pouco, Zé, que você vai ver‟. De repente a casa encheu de cobra. Ele fazia a reza e as cobras vinham comer à mesa. Meu avô largou a comida, pegou seu cavalo e veio embora. „Fiquei morrendo de medo! Entre as onças e as cobras eu prefiro as onças‟ dizia ele. Ele contava de um jeito que a gente morria de rir”. É bem verdade que, com o tempo, alguns imigrantes sírio-libaneses tornaram-se fazendeiros, mas não há qualquer dúvida que a principal atividade econômica desenvolvida por eles foi a mascateação e o comércio. Já vimos que eles desalojaram outras colônias desse ramo e o êxito que alcançavam originou realidades das quais queremos destacar duas. A primeira, a rede de imigração. Não fora o sucesso alcançado por uns, outros não se arriscariam neste país. Esta situação fez com que a concentração de imigrantes da Grande Síria na região fosse a segunda maior do Estado – atrás apenas da capital. Em 1920 moravam em Rio Preto 730 novos “turcos”. Mas eles não eram os únicos interessados no comércio riopretense. A segunda, é o descontentamento dos comerciantes brasileiros. Os primeiros mascates eram bem recebidos pela população. Mas o domínio – praticamente absoluto – desta importante área econômica por um grupo estrangeiro trouxe desconforto para os comerciantes nativos. Tivemos acesso à transcrição das Atas da Câmara Municipal de São José do Rio Preto do ano de 1896 feita por Agostinho Brandi. O livro se

24 Primeiramente conhecidos como turcos – tanto sírios como libaneses, e até armênios, gregos e outros – mais tarde também passam a ser chamados de sírios para, apenas posteriormente, “tornarem-se” sírio-libaneses – conquanto várias denominações, nenhuma aboliu a de turco. 49

encontra no Arquivo Municipal da cidade e tem uma infeliz particularidade – a transcrição foi feita a lápis e são notórias intervenções de terceiros. Contudo, encontramos neste material o registro de episódios relatados a nós nas entrevistas – taxas abusivas impostas aos mascates. Arantes também menciona tais episódios no histórico que fez sobre o Clube Monte Líbano. Vejamos a primeira decisão sobre o tópico: “Acta ordinaria do dia 15 de Abril de 1896

Aos quinze dias do mez de Abril do anno de mil e oito centos e noventa e seis, nesta Villa de São José do Rio Preto comarca de Jaboticabal Estado de São Paulo, no Passo da camara municipal as deis horas do dia reunidos os Cidadãos Veriadores Francisco Antonio Braga, Luis Pinto de Morais, José Ignacio de Alvarenga, e Luis Antonio de Lacerda, sob a presidencia do Cidadão Valencio José Barboza Vice Prezidente, havendo numero legal foi pelo o prezidente aberta a secção lida e assignada a acta anterior passando-se aos trabalhos se guinte. Expediente Pelo o presidente foi indicado que se criasse neste municipio novo imposto sobre estrangeiros que quizessem abrir caza de negocio nesta Villa, sendo o Imposto sobre a abertura do negocio quinhentos mil reis, e sobre mascateação hum con to de reis posto a discussão e a voto foi unanimen te aprovado. O que declarou criada a lei pela a forma seguinte. no 9. Artigo primeiro, todo o estrangei ro que abrir caza de negocio pagarão pela aber tura quinhentos mil reis. Art Segundo todo masca te estrangeiro pagarão pela licença de uma só caixa hum conto de reis. Art Terceiro revogarão se as disposições em contrario. Não havendo mais nada a se tratar o prezidente enserrou os trabalhos 50

para o dia primeiro de maio e convocando todos os Cidadãos veriadores a comparecerem naquel le dia, hora do costume. Do que para constrar lavrei a presente acta que vai por todos assignados. Eu Theodolino José de Paulo, Secretario que es crevi Valencio José Barboza Vicce Presidente Francisco Antonio Braga Luiz Pinto de Moraes Luiz Antonio de Lacerda”

Os altos impostos municipais foram um duro golpe na colônia. O padre Nicolas Khouri25 Georges Ferzolli afirma que “era muito difícil conseguir pagar. O trabalho era feito com muita dificuldade. Como a maioria não tinha como pagar a licença, trabalhava em nome dos que tinham. Pra trabalhar eu já vou ter que pagar mesmo, então você trabalha em meu nome e não precisa me pagar nada. Sempre foi assim”. É verdade que o texto se refere ao estrangeiro e não especificamente ao sírio-libanês, mas a informação de que oito, dos doze estabelecimentos comerciais da cidade eram de árabes é reveladora. Meses depois o que era difícil se tornou ainda pior. Vejamos trechos da Ata da Câmara Municipal da data de 15 de setembro de 1896:

“Acta ordinaria do dia 15 de setembro de 1896

Aos quinze dias do mez de Setembro do anno de mil e oi to centos e noventa e seis nesta Villa de São José do Rio Preto comarca de Jaboticabal Estado de São Paulo, as deis horas do dia, no Passo da Camara Municipal desta Villa, reunidos os cidadãos veriadores Francisco An tonio Braga, Valencio José Barboza, Luis Pinto

25 O nome Khouri significa padre e é inserido no nome dos sacerdotes. Os filhos de padres também recebem esse sobrenome, justamente por serem filhos de padre. A transliteração para o português somada a adoção da forma brasileira de dar nomes e sobrenomes aos filhos, surgiram as famílias Curi, , Khoury, entre outras. 51

de Morais, Jose Ignacio de Alvarenga, sob a prezi dencia do Cidadão Pedro do Amaral Campos havendo o numero legal pelo o Prezidente foi aberta a secção lida e assignada a acta anterior passou se aos trabalhos seguintes (...) Segue o Expediente (..) Pelo o prezidente foi apresentado uma representação assignada por Porfirio Pimentel e outros negocian te nesta Villa, pedindo para ser elevado a trez centos (ou contos?) de reis por anno a licença concedida a sua .A comissão de Justiça para aprezentarem o projecto sobre que deve ser com as modificações que julgarem conveniente e como também para quanto aos direitos de licença que pagão os negociante desta Villa, estabellecento um pre ço fixo para cada cathegoria de negocio. (...) A comissão de Justi ça para aprezentarem na primeira secção o projeto da lei para criação dos mesmos. E por não haver mais nada a se tratar o pre zidente mandou lavrar esta acta susendendo a secção para o dia primeiro de Outubro vindouro convidando os Senhores veriadores a comparecerem naquelle dia hora e lugar. Eu Theodolino José de Paulo, secretario que escrevi. Pedro Amaral Campo Presidente Francisco Antonio Braga Luiz Pinto de Moraes 52

Jose Ignacio de Alvarenga”

Na data marcada – 01/10/1896 – não houve reunião por não haver quorum. Na oportunidade seguinte – 22/10/1896 – estavam presentes: Tenente Pedro do Amaral Campos (presidente), Esequiel de Guimarães Correa (secretário interino) e Antonio Silverio Baptista “a quem o mesmo senhor presidente lhe deferiu o compromisso de bem e fielmente desimpenhar o cargo de juiz de Paz supplente” (Primeira Ata da Câmara de São José do Rio Preto – 27/11/1894 a 15/06/1897) – mais uma vez o tema não foi discutido. A questão só voltou a ser apresentada no plenário pela Comissão de Justiça em 16 de novembro daquele ano: “Aos desiceis dias do mes de novembro do anno de mil oito centos e noventa e seis nesta Villa de São José do Rio Preto, comarca de Jaboticabal Estado de São Paulo, sendo ahi as deis horas do dia em Paço do Governo Municipal, reuni dos os veriadores Francisco Antonio Braga Luis Pinto de Moraes e Jose Ignacio de Alvarenga sob a presidencia Tenente Pe dro do Amaral Campos, que por haver nu mero legal, declarou aberta a sessão. Expediente (..) Lei no 10 A Camara Municipal do municipio de São José do Rio Preto decreta. Art 1o. O imposto municipal estatuído no art. 165 e seus paragrafo do Cod de Post municipaes quan to ao §1o e 2 serao considerados, como primeira e segunda classe. §1o De primeira classe, cada loja de fazendas roupas feitas, ferragens, chapéos, louças, arreios, calçados e armarinhos 400$000r. §2o De Segun da classe, cada loja de secos e molhados, não com prehendendo aguardente. 200$000r. §3o De cada ca 53

za onde se vender aguardente 50$000 §4o De ca da casa onde se vender exclusivamente generos da terra 50$000r §5o De cada casa onde se vender joias, brilhantes, ouro, prata e outras pedras pre ciosas 200$000 § 6o De cada comprador de café por conta propria ou de outrem, domiciliado no municipio 50$000r e residindo fora Villa 100$000 §7o De cada pharmacia ou droga ria 200$000. §8o De mascates com fazen das, armarinhos, brinquedos e quinquilharias pagara o mascate de cada taboleiro ou caixa 500$000 §9o Para mascatear com os objetos men Cionados no §1o, pagara sendo um cargueiro 1:000 $000r e mais 500$000r por cada um mais que acresser, em carros será por cada um 3:000$000 quer seja o mascate brasileiro ou não. §10o As li cenças comprehendidas nos §8o e 9o não poderão ser transferidos. §11o De cada officina de ferreiro 40$000r §12 De cada officina de seleiro ou colcho eiro 40$000r §13o De cada officina de fogueteiro ou dentista 40$000 Art 2. Os infractores Art 1 e se us paragraphos, incorrerão em multa do duplo a alçada ? da camara. Art 3o Revogadas as dis pozições em contrario. Paço do Governo Mu micipal 3 de 9bro de 1896. A commissão de Justiça Valencio José Barboza e Luis Pinto de Morais. Posto a discussão e a votos Foi unanimente aprovado”.

Mesmo antes de Rio Preto ser um município, quando ainda era freguesia do município de Jaboticabal, altos impostos eram cobrados de mascates estrangeiros. A consternação de Peregrino Benelli foi emblemática no final do século XIX. Ele era um italiano que mascateava na região, além de muito requisitado como médico. Seu protesto foi publicado pelo jornal A 54

Privíncia de São Paulo, atual O Estado de São Paulo, na edição no 2.795, de 16 de julho de 1884. O artigo foi assim transcrito por Brandi: A PROVINCIA DE SÃO PAULO 16 de Julho de 1884 Sessão Livre – 1ª página “Jaboticabal Para o Exm Presidente de Província Ver e Providenciar O abaixo assignado, Peregrino Benelli, a pedido dos habitantes de S. José do Rio Preto, vem à imprensa, não com o fim de offender à pessoa alguma, mas sim para levar ao conhecimento de V. exc. A grande difficuldade que hoje apparece pelo novo codigo de posturas municipaes desta Villa, ultimamente creado. Aquella freguesia esta collocada em um sertão que só é habitada por pessoas muito pobres, que o recurso que tem é quando alli aparece algum mascate ou boiadeiro que encontram casas compostas de 15 ou 20 pessoas que a dous ou tres dias reclamam a presença de algum viajante para dar-lhes uma gota dagua para beber, dizendo ao viajante que todos alli se acham sem poder se moverem. A camara municipal desta villa so trata de exigir impostos, sem se lembrar de desta villa ao ultimo morador daquelle sertão, dista para mais de 60 leguas sem nunca se occupar com palmo de caminho, que não tem menos de 10 ribeiros que no tempo chuvoso ficam intransitaveis, sem aquelles habitantes poderem vir a esta villa fazerem suas compras de rémedios e outros utensilios paa a enfermidade de sezões que alli penetra annualmente. 55

Carregando os arreios por uma pinguella feita pela necessidade publica e fazendo o animal nadar, que entre estes alguns já têm perdido seu animal aforado nagua, o novo codigo de posturas ultimamente criado, em um de seus artigos, autorisa a camara a cobrar por uma licença para mascate a quantia de 500$000. Ficará de ora em diante aquelle sertão considerado como um logar indigena que não será mais frequentado por seus habitantes que faltando- lhes o recurso dos mascates e boiadeiros alli hão de morrer sem nunca ninguém dar por fé, por que não é possível que um mascate queira pagar 500$000 de direito para ir sofrer em um sertão sem recursos, e outro tanto diriam os boiadeiros, porque tambem têm de pagar 1$000 por cabeça de gado que do termo desta villa tirarem. Jaboticabal, 9 de Julho de 1884 Peregrino Benelli” (BRANDI, 2002, p. 293)

Ainda outra história é relatada por praticamente todos os entrevistados: uma outra lei proibia que os imigrantes falassem turco em público. Arantes afirma que tal ideia partiu do capitão Porfírio Luiz de Alcântara Pimentel, em 1906, mas que o projeto não chegou a ser aprovado. Em entrevista a Marques, o professor Agostinho Brandi acrescenta que, os guarda-livros – contadores da época – dos mascates deveriam ser brasileiros e que, se algum brasileiro se negasse a denunciar os árabes que falassem em sua língua na frente dos outros cidadãos, incorreriam em crime. Por outro lado, Lodi diz crer que tal passagem – proibição da língua – não é mais do que uma lenda produzida pelo contexto desfavorável da época. Arantes apresenta mais dados relativos a impostos muito desanimadores para a colônia: “A lei tinha o objetivo claro e determinado de tornar a mascateação impraticável no município de Rio Preto. O argumento dos legisladores municipais era o de que os mascates levavam o dinheiro apurado no 56

município para fazer compras em outros centros urbanos, como Araraquara, Jaboticabal ou São Paulo. O exagero dos legisladores era tão grande que (...) em 1908, o imposto por mascate que carregava suas caixas a pé era de duzentos e cinqüenta mil réis e, com carro, quinhentos mil réis. O novo chefe político da cidade, o coronel Adolpho Guimarães Corrêa, que era advogado e adversário dos comerciantes liderados por Pedro Amaral, entendia que os mascates e, em especial os imigrantes, fossem eles árabes, italianos, portugueses ou espanhóis, traziam progresso, riquezas e novas práticas culturais. Na subjacência das decisões políticas do grupo de Pedro Amaral, escondiam-se os interesses dos comerciantes nativos instalados em Rio Preto, que não aceitavam a concorrência dos comerciantes árabes, fossem eles mascates ou estabelecidos. Um documento oficial, assinado por Pedro Amaral e encaminhado ao governo estadual em 1898, revela a extensão da crise comercial. Ele solicitava interferência do governo estadual contra o aumento considerável de novos comerciantes de origem árabe” (ARANTES, p. 7, 1997).

Essa situação de disputa se dava em razão do conflito de interesses – cada um buscava sua afirmação, espaço e progresso com as armas, estratégias e influências que dispunha. A honestidade nos negócios, ascensão econômica, religiosidade fervorosa e rigidez moral a colocaram em alta estima na cidade. Certamente, tratando-se da ascensão econômica, esse é um círculo vicioso – compra-se de que tem boa reputação e só vende quem tem boa reputação. Essa realidade pode ser identificada quando Lodi nos relata que “nas primeiras décadas do século XX, as casas de comércio de Rio Preto levavam ou nome da família ou de santos padroeiros”. A boa reputação da colônia não lhe promoveu apenas destaque no comércio como também na educação, política, beneficência e outros.

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Figura 2 – Certificado de Cônsul Honorário do Líbano conferido a Murchid Homsi

Destacamos aqui alguns ícones da colônia sírio-libanesa na vida de Rio Preto. Murchid Homsi se destaca por participar da fundação de inúmeras empresas e associações como: “Homsi Irmãos – Insdústria e Comércio, Agrícola S/A, Cia. Rio Prêto de Armazens Gerais, Sociedade Algodoeira Rio Prêto Ltda, Beneficiadora Paraná Ltda., Sociedade Rio Prêto de Café Ltda, Cia. de Melhoramentos do Muquilão, Cotonifício Rio Preto S/A, Curtume Rio Prêto Ltda., Lacticínios Rio Prêto Ltda., Pastifício Rio Prêto S/A, Sociedade Textil Rio Prêto S/A, Associação Comercial, Industrial e Agrícola, Clube Monte Líbano e Jockey Clube” (GOMES, 1975, pp. 401). Não por acaso, “Em janeiro de 1958, por decreto do Presidente do Líbano, Camille Chamoun, recebeu na Chancelaria da Embaixada do seu país, no Rio de Janeiro, o título de Consul Honorário do Líbano” (GOMES, 1975, p. 401).

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Foto 3 – Bady Bassitt em campanha política

Da famíila Bassitt descatamos aqui Bady Bassitt e Lotf João Bassitt. Ambos foram prefeitos da cidade, o primeiro substituindo o titular, Cenobelino de Barro Serra em algumas oportunidades e o segundo tendo sido eleito para o cargo. José Chalela, em entrevista para esse trabalho, conta que “nas campanhas eleitorais, principalmente nas municipais, a aversão era acintosa. Para os adversários políticos eles eram os turcos. Isso era evidente. Era difícil um patrício ganhar a eleição. A campanha era terrível. Houve ocasião em que candidatos citavam inúmeros nomes e sobrenomes árabes do palanque, com a intenção de criticar, afastar e criar aquele ambiente entre os eleitores diferenciando os brasileiros e as outras nacionalidades do turco, porque o outro é turco. Ninguém pode votar no turco! Eram ofensas abertas”. A morte de Bady Bassitt causou comoção em Rio Preto. O então deputado estadual morreu dentro de um avião, aos 43 anos, vítima de problemas do coração. A pequena cidade de Borboleta, vizinha de Rio Preto recebeu o nome do deputado falecido. Romano Calil foi o outro integrante da colônia a ser prefeito da cidade. 59

Waldemiro Naffat chegou a ser nomeado secretário de negócios do governo, na gestão de Ademar de Barros, nomeado pelo próprio governador, em 1949.

Acima, Foto 3 – Lotf João Bassitt. À direita, Foto 4 – Romano Calil

Moysés Miguel Haddad comprou em um leilão uma casa de comércio, foi o primeiro presidente do Conselho Administrativo da Igreja Católica Ortodoxa Antioquina em Rio Preto e também comprou e “desenvolveu, a Empreza Telefônica [da cidade], ao mesmo tempo que empregava suas atividades também na agricultura e no comércio de café, chegando a possuir várias fazendas, mais de um milhão e meio de cafeeiros” (GOMES, 1975, p. 399). Nagib Gabriel foi Venerável maçônico da Loja Cosmos. Em sua gestão o terreno onde está a Santa Casa de Misericórdia de Rio Preto foi doado. Ele participou da fundação Rio Preto E. C. e do Rio Preto Automóvel Clube. Foi ainda, por diversas ocasiões, delegado suplente.

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Armarinhos e Fazendas Amelio Diogenes Bueno de João Sabino Aguiar Amelio Demetrio Elias Madi Louis F. Lathan & Cia. Aref. L. Kaiatana Elias Abrão Moysés Miguel Haddad & Cia. Arthur Lundgren & Jorge Ferreira Gadi Miguel Cia. Ltd. Abdo Messias J. G. Sawaya Mattos & Cia. Sapag Assaad & Cia Jorge Sabino Mansur Chacara & Irmão Antonio Sabino Jorge João Haidar Melhem Saad Antonio Salomão Jorge e Filho Manoel Lourenço Antonio Cossi Jorge Pedro Cecilio Manoel Dias Bichara José José Raduam S. A. Pedro Cecílio B. Costa João Chacon Vergilio E. Coelho Coelho & Cia. João Nicolau Watanabe Thasio David Nassar João Gabriel & Irmão Zalin Haller

Tabela 5 Fonte: CAVALHEIRO, 1929. Os quadros cinza marcam os sírio-libaneses que trabalhavam com Armarinhos e Fazendas em São José do Rio Preto em 1929 – 21 em 30 estabelecimentos registrados (66,67%).

Armazes de Seccos e Molhados Alexandre Camillo João José Jupi Miguel Sanches Sabella Alexandre Sigolo Demetrio Fiali José Pereira Manoel Souza Pinheiro Góes Angelo Francucc Elias Madi João Bento Vidal Manoel M. Caldeira & Filho Amin Kanás Emiliano Carreiro João Simone Petrucci & Segantani Abrão Nadi Elias Mussi João Pedro de Paulo Menezello Menezes & Irmão 61

Alberico Eugenio Rosan João Elias Pedro Mansor & Giacovacci Estefan Irmão Alcindo Mulato Fulgencio B. João Dias Ramalho & Cia. Peres Abilio Moreira Felizardo Pereira João Vieira de R. Martinez & Cia. Arruda Antonio Marconi Felicio Antonio João Rodrigues Rachid Abrahão Taveras Antonio Barreiro Francisco Ferreira Joaquim Nunes Ricardo Latorraca Carvalho Antonio Xavier Francisco Silva Joaquim Marques Sebastião Suedão Rosa Pimentel Antonio Camarero Hugo Culturato Luciano Lisso Sebastião Motta Lopes Antonio Marques Hermenegildo Leopoldo Serafim Henrique Nogueira Scarpassa Quadrado Eiras Antonio José & Hygino Teixeira & Luiz Cambiaghi Sylvino Irmãos Irmão Fernandes Antonio Culturato Hyd Nain & Luiz Nicoletti S. E. Abufares & Sobrinho Irmão Botelho & Costa Issad Dib Miguel Filiasi Saaddo Barbor Calil Acen Irmãos Sanches Marcos de Barros Viuva Amorelli Chucri Callil Jorge Sophia Mustaphá Vergilio Monteiro Jammal Cypriano Lopes J. B. Costa Lisbôa Mamed & Alcino Wenceslau de Silva Britto Carlos Salles José Hernades Miguel Guraib Zeferino Branco Callil Abrão José Ortunho Manoel Mutado Cypriano Costa José Ferrari Mario Gonçalves Martins

Tabela 6 Fonte: CAVALHEIRO, 1929. Os quadros cinza marcam os sírio-libaneses que trabalhavam com Armazéns de Secos e Molhados em São José do Rio Preto em 1929 – 18 em 94 estabelecimentos registrados (19,15%).

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Compradores de Cereais A. S. Michelet & Cia. João Filardi Alberto Sufredini Laurentino Arroyo Alberto de Pizzol Luiz Amonielle & Cia. Adib Dornaika Miguel Nader Antonio Lerario Miguel Buchdid & Irmão Antonio Domingos da Costa Miguel Guerrero Callil Buchala Freire, Barros & Cia. Ignatio Esebano & Cia. Mauro Almeida Rodrigues J. Michel & Cia. Nemer Abungamra João Scaff Oscar de Faria Valentim Silva

Tabela 7 Fonte: CAVALHEIRO, 1929. Os quadros cinza marcam os sírio-libaneses que trabalhavam como Compradores de Cereais em São José do Rio Preto em 1929 – 8 em 20 estabelecimentos registrados (40%).

É importante que se diga que os quadros (Armarinhos e Fazendas, Armazéns de Secos e Molhados e Compradores de Cereais) não são um paralelo entre sírio-libaneses e brasileiros, mas uma lista dos empresários publicada em 1929, o que implica dizer que italianos, espanhóis e outros também são mencionados. Eles mostram a dimensão da importância dos imigrantes árabes para a cidade de Rio Preto, afinal, dentre as 39 lojas de Armarinhos e Fazendas, 20 são de árabes, dos 86 Armazéns de Secos e Molhados, 15 pertencem a árabes e 6 dos 20 Compradores de Cereias da época são árabes. Nota-se a alta representatividade comercial da colônia. Estes não eram os únicos imigrantes árabes na cidade, como fica evidente diante dos dados por nós já apresentados. As famílias se empenhavam nos negócios e, uma minoria, tomava outros caminhos profissionais. A Lista Telefônica, publicada em 1918 no Album de Rio Preto, s/d, mostra que, em um tempo em que poucos tinham acesso a linhas telefônicas, grande parte delas pertencia aos árabes. Uma das razões para isso é a importância da comunicação para o bom desempenho dos negócios. A empresa de telefonia ainda não havia sido comprada por Moysés Miguel Haddad, era propriedade de Elias Mussi. 63

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No âmbito da educação Lodi nos conta que “A colônia, primeiramente fundou escolas dentro da própria colônia, como a Escola Progresso, que funcionou por 5 anos, tendo como professor, Jorge Madi. Esta escola era para filhos de sírios e ensinava, principalmente, a língua árabe. A Escola Jovem Sírio foi instalada por volta de 1922 e em seu funcionamento contou com os professores: Amin, José Racy e Tawan. Nela, ensinava-se também a língua árabe e estava aberta a todos os interessados. Após o fechamento das mesmas, foi criada a Escola de Comercio D. Pedro II, no mesmo local em que a Escola Jovem Sírio funcionara”.

Escolas Primarias 1º Grupo Escolar Escola Republicana 2º Grupo Escolar Escola do Commercio Collegio Santo André Gymnasio Rio Preto Collegio Barão do Rio Branco Collegio Syrio Brasileiro Collegio 7 de Setembro Externato Ruy Barbosa Collegio Jovens Syrios

Tabela 9 Fonte: CAVALHEIRO, 1929.

Instituições de beneficência e cultura também foram estabelecidas. A primeira delas foi a Sociedade Beneficente Síria, que funcionou de 1917 a 1926. Neste ano seu patrimônio foi transferido para a Sociedade Jovens Sírios – que já existia desde 1922 – e suas atividades foram encerradas. A Sociedade Jovens Sírios passou a ser chamada de Clube Sírio Brasileiro em 1958. Em 30 de novembro de 1930 é fundada a Coligação Libaneza que, em 1955, passou a se chamar Clube Monte Líbano. Este, ao longo dos anos, se revelou como o braço mais influente da colônia em Rio Preto, vindo a ser um dos mais tradicionais da cidade.

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III PARTE

1. IGREJA CATÓLICA APOSTÓLICA ORTODOXA ANTIOQUINA EM SÃO JOSÉ DO RIO PRETO

Segundo Truzzi, a maioria dos imigrantes sírio-libaneses era de católicos maronitas e cristãos ortodoxos. Na mesma linha, Borges diz que, “do ponto de vista religioso, a esmagadora maioria dos que aportaram no Brasil declarou-se filiada às igrejas greco-ortodoxa e maronita” (BORGES, 2000, p. 21). Em contrapartida, Knowlton afirma que 66,9% dos imigrantes sírios e 64,5% dos libaneses eram católicos (romanos, maronitas, católicos latinos, e católicos uniatas26). Os não-católicos (greco-ortodoxos, nestorianos, jacobitas, siríacos, melquitas, gregorianos armênios, judeus, drusos e diversas seitas maometanas) somavam 33,1% dos sírios e 35,5% dos libaneses. Em Rio Preto a maior concretração era de ortodoxos e maronitas. Estes imigrantes encontraram um contexto católico romano na região, o que lhes pareceu muito familiar, tanto para ortodoxos como para maronitas. Para preservar a cultura, os costumes e, por vezes a língua27, a colônia optou pela criação de colégios e clubes, como já vimos. Com relação à religião, a história mostra que não sentiram a necessidade de construir sua própria igreja, uma vez a cidade ter aquilo que eles dizem ser a mesma igreja – a Igreja Católica Apostólica Romana. Alguns ortodoxos se destacavam pelas contribuições feitas para a igreja latina e suas causas. Bastaram alguns anos para essa harmonia ser quebrada. As palavras do padre ortodoxo Samuel Matta nos introduzem o assunto: “Rio Preto, então, cidade em evolução, cuja aurora de um futuro promitente despontava, pois, sua posição geográfica e sua situação

26 Também conhecidos como católicos gregos, vêem de uma linha de patriarcas e bispos da Igreja Ortodoxa Antioquina que aceita a autoridade papal. 27 A questão da língua é interessante porque, nem todas as famílias desejavam preservá-la. Nilvia Buchala narrou a nós que seu avô “teve muita dificuldade com o idioma, ele fez questão de aprender o português e queria que todos os filhos falassem português”, não transmitindo aos descendentes sua língua mãe. Situação similar nos foi narrada por Marly Cury Hassan: “eles não nos ensinavam o árabe porque assim poderiam conversar sem que soubéssemos o que falavam. Resolviam coisas, tratavam de negócios, tinham conversa de adulto em árabe. Não aprendi a falar, mas acabamos aprendendo a entender o que eles falavam”.

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privilegiada propiciavam-lhe esta regalia, congregou um considerável número de imigrantes Sírio-Libaneses. estes, radicando-se na cidade, procuravam integrar-se na sua vida social, participar de seu progresso crescente e contribuir em pról de seu desenvolvimento. Entre si, consideravam o dever de se manterem unidos, conservando seus costumes e suas tradições, principalmente, as religiosas. Todavia, nem tudo, neste mundo, é mar de rosas; ventos fortes agitaram a calmaria do mar, tempestades violentas abalaram a bonança, e correntezas contrárias dificultaram a chegada do navio da vida ao ancoradouro seguro...” (GOMES, 1975, pp. 213-4).

Segundo o atual padre, Nicolas Khouri Georges Ferzolli, esses ventos fortes, tempestades violentas e correntezas contrárias começaram por volta do ano 1926/7. Neste ano, o então padre romano havia se recusado a encomendar o corpo de um sírio-libanês ortodoxo falecido na cidade. Padre Nicolas no disse que “Pediram a ele, por favor, mas ele não quis. Teve que vir um padre de Campinas para fazer o serviço. Depois disso, houve discussão no jornal da cidade entre o padre e um patrício, Elias Choeiri. Aí a comunidade sírio-libanesa se reuniu, decidiu comprar esse terreno e começaram a construir a nossa Igreja”. Apesar de tal história também ser contada por outros entrevistados, não conseguimos encontrar os documentos com tal discussão. Todavia, no dia 2 de fevereiro de 1934, na coluna Vida Catholica do jornal A Notícia encontramos o seguinte texto:

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Figura 3 – Recorte de A Notícia

Chrisma

“No domingo, ás 2 horas da tarde pontualmente, Sua Excia. Revma, administrará o Santo Chrisma na Cathedral a quantos se apresentarem para isso. Os chrismandos de mais de sete annos devem preparar-se antecipadamente com a confissão. As madrinhas devem apresentar-se decentemente vestidas, como convem á dignidade dos sacramentos. As pessoas de vida publicamente escandalosas, os orthodoxos syrios que pertencem a seitas condemnadas pela Igreja, e os casados apenas no civil não podem ser padrinhos”. (A NOTÍCIA).

As divergências entre ortodoxos e romanos não são recentes. Para compreendê-las vejamos alguns fatos históricos. 69

Durante os três primeiros séculos da era cristã, o cristianismo viveu à margem do Império Romano sendo, por inúmeras vezes perseguido, até que, no século IV, o imperador Constantino o torna a religião oficial do Império. Com a oficialização vem também uma nova estrutura e as divergências teológicas eram definidas em Concílios Ecumênicos, democraticamente. O século V é marcado pelas invasões bárbaras e, em 476 o último imperador romano é deposto. Sua deposição marca a queda do Império Romano. No entanto, no leste persiste o Império Bizantino – parte oriental do antigo Império Romano – e no oeste a Igreja Romana. A igreja do oriente pertencia ao Império Bizantino, o qual nunca possuiu a igreja latina. O correr dos anos trouxe diferentes interesses, línguas e sistemas de governo para cada uma das partes. No ocidente, falava-se latim e o sistema era episcopal, com a primazia do papa – bispo de Roma – sobre todas as igrejas e bispos. No oriente, permaneceu o sistema democrático, sendo que falavam grego. Os sacerdotes orientais deveriam manter a barba e poderiam ser casados, enquanto os ocidentais poderiam fazer a barba, mas não se casar. Na igreja daqueles, as esculturas foram eliminadas e substituídas por imagens pintadas nas paredes, mas permaneceram nas igrejas destes. Os ocidentais adotaram o calendário gregoriano enquanto os orientais, o juliano. O Concílio de Toledo, convocado no século VI pelo papa, não incluiu as igrejas do Oriente. Nessa ocasião surge a controvérsia quanto à expressão Filioque. Loiacono diz que “o problema pode ser assim resumido: „O Espírito Santo procede do Pai e do Filho‟. Tal acréscimo foi incorporado no antigo texto do Concílio de Nicéia (325), no sínodo de Toleto (séc. VI). O texto de Nicéia afirmava que a origem do Espírito Santo está apenas no Pai. A resolução de Toledo foi considerada uma grave ofensa a Igreja Oriental” (LOIACONO, 2006, p. 39). Os orientais se sentiram ofendidos porque haviam “mudado” a natureza de Deus num Concílio Ecumênico que não representava a universalidade da Igreja, uma vez que não haviam sido convocados. Já no século XI “o patriarca do Oriente, Miguel Cerulário, condenou a Igreja do Ocidente por usar pão não levedado na Eucaristia. Isto, realmente, já era prática na Igreja ocidental. O papa Leao IX enviou, então, Humberto e mais dois legados para tentar solucionar a questão. Quando a discussão em torno do problema terminou, as 70

diferenças de opinião eram tão grande que tomaram-se decisões radicais” (PV). Por não adotarem o novo credo, o papa envia ao patriarca uma bula, excomungando a parte oriental da Igreja que, por sua vez, também envia uma bula de excomunhão à Roma. Dessa forma, em 1054, acontece o Grande Cisma da Igreja Católica. Loiacono registra que “a Igreja que teve sua constituição sobre a doutrina de Cristo, a partir do ano 33, era toda ela denominada ortodoxa” (LOIACONO, 2006, p. 22). E que o lado oriental manteve o termo em seu nome por se tratar da Igreja da Doutrina Reta (tradução do termo grego ortodoxa), aquela que se apega a “todo o ensinamento deixado pelo Cristo, sem qualquer espécie de adição ou subtração no conteúdo da Sagrada Escritura, na Tradição, bem como nos primeiros Sete Concílios aceitos pela Igreja” (LOIACONO, 2006, p. 23), que são: Nicéia I (ano 325), Constantinopla I (ano 381), Éfeso (ano 432), Calcedônia (ano 451), Constantinopla II (ano 553), Constantinopla III (ano 680) e Nicéia II (ano 787). Mesmo com a divisão, o imperador bizantino Aleixo pede ajuda ao papa Inocêncio III para combater os muçulmanos, que ameaçavam o Império. Não bastassem todas as complicações, os cruzados que viriam a socorrer, invadem Constantinopla no ano 1204 e permanecem por 57 anos. Apesar de todas as divergências, esforços para que as duas Igrejas voltassem a se unir foram feitos. No livreto Calendário Ortodoxo de 1966, publicado pelo Arcebispado Ortodoxo, sob o tópico Em Prol da União vemos “as maiores diligências e tentativas empreendidas, após o grande cisma que aconteceu entre as duas Igrejas: a Católica Apostólica Ortodoxa e a Católica Apostólica Romana no ano de 1054, em prol da união foram estas: 1. A correspondência entre o Papa Urbano II e o Cesar Alexi (1088). 2. O diálogo entre o frade Anselmo, ocidental e Niquita o Bispo de Nicomédia, na Igreja Santa Sofia. 3. A correspondência entre o Papa Adriano IV e Basílio o Bispo de Salônica (1155). 4. Os tratados entre Cesar Emanuel e o Papa Alexandre III (1166-1169). 71

5. As discussões entre o Padre Nectário e os Padres do III Concílio Lateranense (1179). 6. As diligências do Papa Inocêncio III e Cesar Alexi III e o Patriarca Ecumênico João Camatir (1199). 7. Os tratados do Papa Gregório IX e do Patriarca Ecumênico Germano II (1232). 8. O diálogo entre os Núncios do Papa e os dois sábios Dimitri Cariqui e Nikifóro Palmidi (1233). 9. As diligências de Maria do Pilla IV, rei da Hungria filha de Teodoro Laskari, Cesar Grego e o diálogo que seguiu-se em Nicéia (1247), entre os núncios do Papa e Palmidi. 10. As diligências de Cesar João e o Papa Inocêncio IV (1254). 11. As diligências de Cesar Miguel Paleólogo e o Papa Urbano IV (1263). 12. Os tratados entre Cesar Miguel e o Papa Clemente IV (1267). 13. As diligências de Cesar Andrônico (1332-9). 14. As diligências de Cundacuzinó com o Papa Clemente VI (1350). 15. As diligências de Cesar João IV com o Papa Urbano V (1369). 16. Os tratados entre o Papa Urbano VI com o Patriarca Ecumênico Nilo (1384). 17. As diligências do Papa Martinho V com Cesar Emanuel (1415-1422). 18. O Concilio de Leão (1274). 19. O Concílio Ferrara – Florença (1439). 20. Encíclica do Papa Pio IX e a Encíclica refutatória do Patriarca Ecumênico Antimo VI (6 de maio de 1848). 72

21. Encíclica do Papa Leão XIII (1880) e a réplica dos Teólogos de Pedroburgo e “A Verdade Eclesiástica” ao mesmo. 22. A mensagem de PAZ do Papa Leão XIII ao Patriarca Ecumênico Joaquim IV. 23. Encíclica do Papa Leão XIII (1894) e a Encíclica contestativa do Patriarca Ecumênico Antimo VII.

O artigo que exortava aos católicos romanos de que “as pessoas de vida publicamente escandalosas, os orthodoxos syrios que pertencem a seitas condemnadas pela Igreja, e os casados apenas no civil não podem ser padrinhos” não foi assinada por ninguém e recebeu duas respostas – ambas no mesmo jornal A Notícia. Os autores das respostas foram Um Orthodoxo Syrio e Outro Syrio Orthodoxo. Uma vez que: a) o primeiro embate da década de 20 apontava Elias Choeiri como o autor das respostas, b) tais fatos não puderam ser encontrados no jornal onde teria sido publicados e c) o Album Ilustrado da Comarca de Rio Preto, publicado em 1929, apresentar Choeiri como grande expoente e comunicador da colônia sírio-libanesa de Rio Preto; considerando ainda que a segunda resposta tem por base o primeiro texto e ambas parecem terem sido escritas pela mesma pessoa, apontamos para a possibilidade de Choeiri tê-las escrito. Entretanto, não encontramos outros elementos que nos permitissem um posicionamento definitivo, além dos aqui expostos. Vejamos o primeiro texto:

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Figura 4 – Recorte de A Notícia

Uma explicação

“A <> do dia 2 do corrente, na secção <>, publicou um aviso aos fieis do qual destacamos os seguintes dizeres: <>. Esse aviso, visou simplesmente os <> não podendo os mesmos servir de padrinhos. 74

Interessante. Aqui a maioria dos syrios são orthodoxos, com uma pequena minoria de Maronitas. Será que o Libanez, o Russo, o Armenio, Izraelistas e Yogoslavios aqui residentes, que são Orthodoxos não estão condemnados? Resta saber, se com isso, visou somento o Syrio Orthodoxo. Os Syrios Orthodoxos aqui residentes, na sua maioria, sò fizeram bem a Igreja local, em todas as occasiões que isso lhes foi solicitado. Para exemplo vamos citar: Na criação do Bispado, na construcção da Cathedral, na offerta do relógio da torre da Igreja, o madeiramento todo da cobertura da Igreja de N. Senhora Apparecida, e muitas outras davivas. Ainda mais a cooperação do fervoroso adepto christão orthodoxo, sr. Elias Mussi, moço que está sempre ao lado das bôas causas, prestando o seu valioso serviço ao clero local, e a população desta região que para satisfacção nossa é e continúa sendo sempre um bom orthodoxo syrio. Esta explicação visa prevenir aos bons orthodoxos syrios, que continuem a prestar o seu modesto auxilio ás obras que proporcionam o bem, relevando as distincções pouco honrosas que lhes façam”. Rio Preto, 5 de Fevereiro de 1934. Um Orthodoxo Syrio

O segundo artigo, mais amplo, defende tanto a colônia como ao bispo da diocese local, D. Lafayete Libanio.

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Figura 5 – Recorte de A Notícia

Outra explicação

“Li, como todos lemos, na secção religiosa, publicada na <>, de 2 do corrente, as referencias com que, recomendando aos fieis escrúpulos padrinhescos, a Secretaria do Bispado brindou aos syrios Orthodoxos. Essas instrucções previnem que, <>. Ora, em primeiro logar não podemos de forma alguma acreditar que tal topico desse aviso religioso dirigido aos fieis, tenha merecido o VISTO de S. Exa. Revma. D. Lafaye te Libanio – Bispo desta Diocese, porque nelle todos nós já sufficientemente conhecemos um espírito altruístico, bondoso e verdadeiramente christão, e assim, um aviso dessa natureza, publicado pela imprensa, onde se visa ferir os melindres de um povo inteiro e os adeptos 76

de uma Igreja que, alèm de ser fundada pelos apóstolos do próprio Christo, não o é sómente dos Syrios, mas sim, de Syrios, Egipcios, Abyssinios, Gregos, Rumenos, Polacos, Bulgaros, Yugoslavos, Tchecosslovacos e da maior republica actual e outra, ora o maior Imperio Moscovita, além de minorias espalhadas por todo o Globo Terrestre, collocando-os no nível de dignidade de pessoas de vida publicamente escandalosa. Isto posto e certos que S. Excia. Reverendissima D. Lafayete – Bispo desta grande Diocese – não teve conhecimento antecipado dessa publicação e para a qual chamamos a sua attenção obsequiosa, vamos em caracter amistoso e confidencial, enviar á Secretaria deste Bispado as informações e explicações seguintes: Se é que com os dizeres <> visa aos syrios que pertencem á Igreja Catholica Grego Orthodoxa, que aqui constituem quase a totalidade da ordeira Colonia Syria, aqui residente, e a quem pertencem os povos acima enumerados, fel-o impensadamente, por muitas razões, algumas das quaes ahi vão, parte levando cunho religioso. PRIMEIRO: Se a Igreja Romana condemna o Rito Orthodoxo, devíeis dirigir tal aviso aos do Rito Romano, em fórma não publica, porque bem sabeis que o Rito assim como todo o cerimonial de ambas as Igrejas são os mesmos, residindo a divergencia, apenas, no não reconhecimento pela Igreja Orthodoxa da auctoridade do Papa, as innovações introduzidas, com o tempo, na Igreja Occidental, lembrando-se de que <>. SEGUNDO: A Igreja Orthodoxa, Syria especialmente, não guerreia ninguém em sua crença e não faz propaganda contra esta ou aquella seita. É uma Igreja conservadora e 77

democratica e de quem não deveis temer acção qualquer que importe na diminuição da influencia da Igreja Romana, porque Ella <> não atacando nenhuma pois, consideramos a todos como filhos de Deus creador de todas as cousas visíveis ou invisíveis, mormente, porque Nosso Senhor Jesus Christo disse, <> TERCEIRO: Quanto aos negócios de padrinhescos, quando os padrinhos são Syrios Orthodoxos, posso vos garantir que não o são por conta sua, mais sim pela insisteneia das pessoas suas amigas, nisso interessadas, que nelles vêm todos os predicados e qualidades de pessoas de bem e distinctas, e a isso são impellidos, mesmo deante da advertencia antecipada de que são Orthodoxos e, que pode não convir. Agora, quanto á acção dos Syrios Orthodoxos, aqui e em qualquer parte, sempre á acçãao dos Syrios Orthodoxos, aqui e em qualquer parte, sempre se importa na maximo <> Aqui, por exemplo, se o Illustre elaborador do topico inserido na cronica religiosa e dirigido aos fieis ara não attentarem contra as Leis convidando para padrinhos os Syrios Orthodoxos, por valerem para elle tanto quanto <> desconhece a acção dos Syrios e seu modo de vivier, indagae desde nobre povo de Rio Preto e dos antigos moradores daqui, sobre o concurso que sempre prestaram para as obras de caridade e as obras religiosas. 78

Perguntae se não concorreram com boa percentagem para as obras da Matriz, ou recorrerei aos registros que deve possuir a Casa Parochial referente a essas obras e indagae sobre os nomes que lá estão para vos certificardes dos que são Orthodoxos. Ainda quero vos lembrar e disso podeis não ter tido conhecimento que alli, na Sociedade Syria, tem havido conferencias de propaganda religiosa por um Sacerdote, illustre orador, em prol da Igreja latina, extraindo-se tombol a s, ainda alli mesmo, em bebeficio da mesma Igreja, e tantas outras cousas que seria enfandanho enumerar, por occuparem muito espaço. Ora! Senhor, esses que não sendo adeptos da Igreja Latina mas da Grego Orthodoxa, mas que bem sabeis são tão christãos quanto vos o sois, por uma questão de delicadeza, sendo esse o seu procedimento, não deviam ser tratados por vossa parte publicamente, dessa maneira, insipida e grosseiramente. Escrevemos isto, porem, pensando sermos nós os visados pelo AVISO. E agora, de maneira publica e clara, nos dirigimos aos nossos patricios que professam a mesmas Fé, que se acham justamente indignados e feridos nos seus legitimos sentimentos, que não se abstenham de concorrer, sempre que forem procurados, para qualquer obra Religiosa aqui da terra, mas que sempre que forem convidados para servirem de padrinhos frisem bem e com todo o orgulho serem adeptos do Rito Orthodoxo. Outro Syrio Orthodoxo”

Se a identidade é construída socialmente, as respostas publicadas no jornal e a convocação de uma reunião são “o resultado do que esse grupo pensa sobre si mesmo” em reação ao que “outros pensam dele” (BORGES, 2005, p. 104). Os líderes sírio-libaneses da cidade reuniram-se no dia 8 de 79

fevereiro de 1934 “para vencer a tormenta, superar a agitação, e alcançar a segurança, (...) ponderar, deliberar e decidir” (GOMES, 1975, p. 214). Patrícios fixados na cidade e região participaram e muitos foram os discursos. Aquela, considerada por eles a mãe das igrejas cristãs estava prestes a ser fundada na cidade. O desejo de que uma igreja dedicada ao rito ortodoxo fosse estabelecida em Rio Preto permeava as palavras dos oradores. Decidiu-se que: “dado o elevado número de elementos ortodoxos radicados na cidade e na região, devia-se edificar, nesta generosa terra, em crescente progresso e grande prosperidade, mais uma igreja ortodoxa, que preservaria a Santa Tradição ortodoxa, intacta, que manteria o apego e o zelo pela Religião herdada dos pais, e que irá ser transmitida aos nossos filhos que aqui nascerão, constantes, e que conservará a chama da fé, justa e verdadeira, acessa e viva nos corações dos fiéis” (GOMES, 1975, p. 214). Uma Comissão Preliminar Pro Construção da Igreja foi constituída e saiu em busca de um terreno e donativos para que a obra fosse realizada. Um estatuto também foi preparado para que a Igreja estivesse de acordo com as leis do país. O padre Samuel Matta afirma que “os donativos choveram, e com abundância. O terreno foi encontrado e adquirido no dia 6 de setembro de 1934, e cujo proprietário se chamava André Petroni, pela quantia de trinta e cinco contos de réis” (GOMES, 1975, p. 215). Todavia, um documento expedido pelo Primeiro Oficial de Registro de Imóveis, sito em São José do Rio Preto, certifica não constar nos livros tal compra, apesar de informar, inclusive, o valor do negócio.