Mito Chelsea Sem regras e sem vergonha Recentemente chamaram-lhe “tornado artístico de morte, destruição, amor e sonhos perdidos”. Foi lá, em Nova Iorque, que terá esfaqueado a namorada até à morte, mas também foi lá que escreveu “Pela Estrada Fora”. De sombra e de luz se faz a história do ícone da boémia nova- -iorquina, explica Andreia Marques Pereira (texto)

Hotel Chelsea “Este hotel não pertence à América. Mas o Hotel Chelsea foi também 222 West Não há aspiradores, regras ou berço de obras imperecíveis. Jack NY 10011 vergonha… É o lugar supremo do Kerouac escreveu ali “Pela Estrada Tel: (+1) (212) 243 3700 surreal (…) Testemunhei como um Fora” e Arthur C. Clarke “2001: Fax: (+1) (212) 675-5531 novo tempo, os anos 60, entrou de Odisseia no Espaço”, por exemplo. E www.hotelchelsea.com rompante no Chelsea, com olhos a música popular do século XX deve- Preços: Quartos jovens e raiados de sangue”. Arthur lhe algumas peças memoráveis. duplos a partir Miller viveu durante seis anos no relembra os seus de 70 euros Hotel Chelsea, mas se calhar não é dias no hotel, entre camas desfeitas, abusivo dizer-se que nunca saiu com , em “Chelsea Hotel definitivamente de lá - ainda em da “casa” de “literatos e artistas“. n.º2”; fala de noites 2002 (três anos antes da sua morte) Provavelmente esta definição pode brancas no hotel em “Sara” e Joni escreveu para a revista “Granta” um ser entendida como um eufemismo Mitchell com a sua “Chelsea ensaio sobre os seus dias no hotel, para sexo, drogas e arte, no seu Mornings” inspirou o nome da ex- em que descrevia o quão sentido mais lato: da literatura às primeira filha norte-americana, emocionante era saber, naqueles artes plásticas e tudo no meio, sem Chelsea Clinton. tempos, que “a rapariga de maçãs esquecer, inevitavelmente, o rock‘ n Toda esta combustão de vícios, do rosto encovadas no elevador era roll (ou “hell“, na versão que talvez virtudes e criatividade aconteceu e que o homem de olhos melhor se aplique aqui). No hotel durante a direcção da família Bard, encovados que estava com ela era viveram (e vivem) e pernoitaram que geriu o hotel durante 60 anos, Warhol e que o cheiro no ar era de pessoas “normais”, mas dessas não até 2007 (e a sua saída tem marijuana”. reza a história. A lenda do Hotel provocado ondas de contestação por O dramaturgo norte-americano foi Chelsea é uma espiral de artistas receio de uniformização do para o Chelsea na ressaca do seu malditos - que ali se canibalizaram Chelsea). Durante este período, o divórcio de Marilyn Monroe - mutuamente, ali alimentaram todos pagamento foi muitas vezes em décadas mais tarde, seria a vez do os vícios, ali morreram (ou “géneros”, o que transformou o actor procurar o hotel mataram) e ali criaram obras- Chelsea numa galeria de arte para se curar do divórcio da também primas. informal - e isso é mais visível na actriz . Entre ambos No último Festival de Cannes, Abel entrada (paredes berrantes cobertas (e antes e depois), uma galeria de Ferrara estreou o documentário de trabalhos de artistas mais ou famosos habitaram o edifício gótico “” e um dos menos conhecidos), que é também o vitoriano de tijolo vermelho, que foi actores, Jamie Burke, descreveu o local onde melhor se evoca a o primeiro em Nova Iorque a ser Hotel Chelsea como um “tornado grandeza passada (repare-se na considerado património cultural da artístico de morte, destruição, amor gigantesca lareira, com moldura de cidade. E nenhum chegou realmente e sonhos perdidos”. Burke sabe do madeira intrincadamente a partir: os seus fantasmas que fala: interpreta a personagem de trabalhada) do edifício de 12 continuam a assombrar o dia-a-dia Sid Vicious, o baixista dos Pistols andares, velho de 125 anos, que já de um dos mais duradouros (e que terá esfaqueado a namorada foi o mais alto de Nova Iorque e uma icónicos) mitos boémios nova- até à morte - no cooperativa de apartamentos (a iorquinos. número 100 do Hotel Chelsea. Anos primeira da cidade). No seu “site”, o hotel recebe o antes, o poeta Quem espera encontrar luxo no visitante assumindo-se como “um também ali morreu por Hotel Chelsea, desengane-se - local de paragem para indivíduos envenenamento de álcool, que é embora as recentes obras tenham raros” e continua com a descrição como quem diz, bebeu, literalmente, dotado o hotel de todo o conforto até cair (18 uísques seguidos) no moderno. As gerações de turistas e quarto 205. E, ali, as “” aspirantes a artistas que lá têm - de Warhol ou de Lou Reed, não desembarcado (a maioria dos importa porque são as mesmas - quartos são de residentes descobriram (tarde de mais) que os permanentes - quartos que podem seus amores perfeitos não duram e que os seus futuros morreram no passado de alguém, como canta (uma das “raparigas do Chelsea“ originais) em tom de marcha fúnebre.

18 • Sábado 14 Junho 2008 • Fugas ser estúdios, “kitchenett” incluída e até área de trabalho) vão em busca da atmosfera boémia e do mito de caldeirão criativo que fazem parte do imaginário da cultura ocidental. E que o hotel absorveu (será caricatura?) e é preservado religiosamente por alguns, como Ed Hamilton, autor de um livro (“Living with Legends”) e de um blogue sobre o hotel (www.legends. typepad.com, que inclui uma secção apropriadamente chamada “All Tomorrow‘s Parties, onde são anunciados os eventos culturais que continuam a acontecer ali), uma janela com vista para a sua história e quotidiano. Como no Hotel Chelsea essa fronteira não é nítida, os espíritos do passado ainda se passeiam entre os mirones do presente. Olhar português O Hotel Chelsea é, provavelmente, um dos mais referenciados na cultura popular ocidental. Literatura, música e cinema espreitaram o hotel e “vampirizaram” a sua lenda - recentemente, escreveu “Hotel Chelsea Nights” e Ethan Hawke realizou “Chelsea Walls”. O hotel nova-iorquino tem, desde há anos, uma residente portuguesa, artista, como não podia deixar de ser: Rita Barros vive no quarto onde Arthur C. Clark escreveu “2001: Odisseia no Espaço” e foi contaminada pela atmosfera do espaço - fotografou o hotel e reuniu o trabalho num livro “Fifteen Years: Chelsea Hotel” (edição Câmara Municipal de Lisboa).

Hóspedes ilustres

O escritor inaugurou a lista de hóspedes famosos do Hotel Chelsea, que depois foi ponto obrigatório para a geração Beat e incubadora da Factory de Warhol. Mapplethorpe, Frida Khalo, Ginsberg, , Kubrik, , Thomas Wolfe, , (na foto)… A lista de hóspedes ilustres (e seus vícios e virtudes) é longa e sempre em actualização. E aspirantes a artistas continuam a encontrar no Chelsea um porto seguro para realizarem (ou não) os seus sonhos.

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