Riso. Uma experiência rica e variada

Mario Fleig O riso e o hiato da condição humana E mais:

Elias Thomé Saliba >> Jorge Abrahão de Castro As raízes do riso e a ética emocional A política social brasileira e o estado brasileira de bem-estar

>> Moisés Sbardelotto 367 Vera Cecília Machline Igreja e internet: uma relação Ano XI A fisiologia do riso e a “moderação” de amor e ódio 27.06.2011 da alegria ISSN 1981-8769 Riso. Uma experiência rica e variada

O que é o riso? Quais são seus significados? Como ele foi encarado ao longo da história? Quais suas relações com o esfacelamento do temor e da fé? Qual é o seu flerte com a transgressão? Esses são alguns dos questionamentos debatidos na IHU On-Line desta semana.

Na opinião do filósofo e psicanalistaMario Fleig, docente na Unisinos, o riso é dotado de força afirmativa, mas também subversiva, e demonstra a “eterna defasagem entre o que somos e o que deveríamos ser”. A partir da obra de Freud, ele analisa o significado do chiste e sua relação com uma verdade insuportável ao sujeito. O historiador Elias Thomé Saliba, da Universidade de São Paulo – USP, analisa as raízes do riso e a ética emocional brasileira. Experiência humana diversificada, o riso popular permitiu o surgimento do humor como arma política contra a repressão, criando produções ambíguas, não inocentes e espécie de “espe- lho da sociedade, embora distorcido”, frisa.

Na opinião da professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual de Montes Claros, Maria Generosa Ferreira Souto, o riso é produto de uma cultura e resulta da complexidade do social. Vera Machline, pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, examina a fisiologia do riso e a “moderação” da alegria. Segundo ela, o tema foi objeto de interesse por pensa- dores ao longo da história, merecedor de inúmeros rótulos, como verdadeiro e falso. O riso como arma e libertação é a temática de Henrique Rodrigues, da Cátedra Unesco de Leitura da PUC-Rio. Rir de si mesmo tem um efeito libertador, além do fato de que o riso faz com que o homem mostre seus dentes, movimento físico que expressaria agressividade, observa.

A historiadora Verena Alberti, da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, examina o risível através dos tempos e aponta Arthur Schopenhauer como precursor de uma concepção do riso para alcançar o “impensado”.

Jesus riu? José Rivair de Macedo, professor da UFRGS, lembra que “a idéia de Cristo ja- mais riu, defendida por certos pensadores cristãos do início da Idade Média, tinha a finalidade mostrar que a renúncia aos prazeres mundanos era uma necessidade, pois segundo tais es- critores o verdadeiro riso só deveria provir do gaudium, da felicidade eterna no Paraíso”. Duas entrevistas com psicanalistas complementam essa edição. Uma delas com Marília Medeiros, do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, e a outra com Abrão Slavutsky, psicanalista e médico psquiatra.

Mais duas entrevistas e um artigo completam a edição. A atual política social brasileira é analisada por Jorge Abrahão de Castro, professor da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, e o jornalista Moisés Sbardelotto, coordenador do Escritório da Fundação Ética Mundial no Brasil, um dos programas do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, descreve a relação de amor e ódio da Igreja com a internet. Os últimos ataques político-midiáticos dos EUA contra Cuba são o tema do artigo do historiador, jornalista e professor da Universidade de Camagüey, Noel Manzanares Blanco.

A trajetória de Frank Jorge, um dos coordenadores do curso de graduação Produtores e Músicos de Rock da Unisinos, também pode ser lida nesta edição.

A todas e todos uma ótima leitura e excelente semana!

IHU On-Line é a revista semanal do Instituto Humanitas Unisinos – IHU – Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos. ISSN 1981-8769. Diretor da Revista IHU On-Line: Inácio Neutzling (inacio@unisinos. br). Editora executiva: Graziela Wolfart MTB 13159 ([email protected]). Redação: Anelise Zanoni MTB 9816 ([email protected]), Márcia Junges MTB 9447 ([email protected]) e Patricia Fachin MTB 13062 ([email protected]). Revisão: Isaque Correa ([email protected]). Colaboração: César Sanson, André Langer e Darli Sampaio, do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, de Curitiba-PR. Projeto gráfico: Bistrô de Design Ltda e Patricia Fachin. Atualização diária do sítio: Inácio Neutzling, Greyce Vargas ([email protected]), Rafaela Kley e Stefanie Telles. IHU On-Line pode ser acessada às segundas-feiras, no sítio www.ihu.unisinos.br. Sua versão impressa circula às terças-feiras, a partir das 8h, na Unisinos. Apoio: Comunidade dos Jesuítas - Residência Conceição. Instituto Humanitas Unisinos - Diretor: Prof. Dr. Inácio Neutzling. Gerente Administrativo: Jacinto Schneider ([email protected]). Endereço: Av. Unisinos, 950 – São Leopoldo, RS. CEP 93022-000 E-mail: [email protected]. Fone: 51 E x p e d i e n t e 3591.1122 – ramal 4128. E-mail do IHU: [email protected] - ramal 4121. Leia nesta edição

PÁGINA 02 | Editorial

A. Tema de capa

» Entrevistas PÁGINA 05 | Mario Fleig: O riso e o hiato da condição humana PÁGINA 11 | Marília Lemos: Com as unhas cravadas no mal-estar PÁGINA 15 | Verena Alberti: O risível através dos tempos PÁGINA 16 | José Rivair Macedo: A Idade Média e o riso sob um prisma moral PÁGINA 18 | Vera Machline: A fisiologia do riso e a “moderação” da alegria PÁGINA 21 | Maria Generosa Ferreira Souto: O riso e suas interdições na sociedade PÁGINA 24 | Elias Thomé Saliba: As raízes do riso e a ética emocional brasileira PÁGINA 27 | Henrique Rodrigues: O riso como arma e libertação PÁGINA 30 | Abrão Slavutsky: Uma vacina contra o desespero

B. Destaques da semana

» Entrevista da Semana PÁGINA 36 |Jorge Abrahão de Castro: A política social brasileira e o estado de bem-estar

» Coluna do Cepos PÁGINA 40 |Noel Manzanares Blanco: Últimos ataques político-midiáticos dos EUA contra Cuba

» Destaques On-Line PÁGINA 42 | Destaques On-Line

C. IHU em Revista

» Eventos PÁGINA 46 | Moisés Sbardelotto: Igreja e internet: uma relação de amor e ódio

» IHU Repórter PÁGINA 53 | Frank Jorge

SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367   SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 O riso e o hiato da condição humana Dotado de força afirmativa, mas também subversiva, o riso demonstra a “eterna defasagem entre o que somos e o que deveríamos ser”, pondera o filósofo e psicanalista Mario Fleig. A partir da obra de Freud, o pesquisador analisa o significado do chiste e sua relação com uma verdade insuportável ao sujeito

Por Márcia Junges

onciso, breve e criativo, o chiste não se confunde com a piada, ainda que ambos sejam produtores de prazer. A linguagem chistosa deixa irromper a verdade de forma indireta, com o máximo de sentido para um mínimo de suporte, ou seja, com o mínimo de pa- lavras obtém um máximo de graça, deixando escapar algo inconciliável e insuportável. A verdade que aflora por meio do chiste é da ordem do real insuportável que acossa o “Csujeito”. A explicação é do filósofo e psicanalista Mario Fleig, em entrevista por e-mail à IHU On-Line, ana- lisando o conceito de chiste, proposto por Sigmund Freud. De acordo com o professor da Unisinos, um chiste que necessita de explicação perde sua graça. A condição necessária para um chiste provocar graça é o riso do Outro. “O riso do outro, como efeito do chiste, vem como o selo de autenticação de que ali houve um chiste. Se ele não ocorrer, se não se produz o laço social no rir juntos, mas vergonha por ter sido pego em flagrante, seria apenas um lapso”. O riso seria um tipo de alívio, “dispêndio psíquico decorrente da liberação da energia alocada na tensão”. Graduado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira, em São Paulo, e em Psicolo- gia pela Unisinos, Mario Fleig é mestre e doutor em Filosofia. Atualmente é professor titular da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em metafísica. Como psicanalista, é membro da Association Lacanienne Internationale e da Escola de Estudos Psicanalíticos. Com Jean-Pierre Lebrun organizou O mal-estar na subjetivação (: CMC Editora, 2010) e O desejo perverso (Porto Alegre: CMC Editora, 2008). Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que é um chiste? E estudo, e o denomina pelo termo ale- partir de um de seus efeitos: o riso. qual é a sua relação com o incons- mão Witz. Trata-se de um enunciado Mesmo que este não esgote o chiste, ciente, como proposto por Freud? surpreendente e desconcertante que visto que os mistérios que o envolvem Mario Fleig – O chiste faz parte de um opera por meio dos recursos da lin- atravessam a história da humanidade, conjunto diverso de fenômenos pró- guagem, cuja técnica foi demonstrada sabemos que o selo de autenticida- prios do ser humano que produzem a por Freud, e provoca uma satisfação de de um chiste irrompe no riso. Um graça e o riso. Freud se dedica a seu particular, tendo assim um importante chiste que precise ser explicado já  Sigmund Freud (1856-1939): neurologista e papel na vida psíquica. E Freud esta- não tem nada mais de chistoso, per- fundador da Psicanálise. Interessou-se, inicial- belece a relação que o chiste tem com deu a graça. Por isso o que estamos mente, pela histeria e, tendo como método a hipnose, estudava pessoas que apresentavam o inconsciente, como veremos logo a elucidando aqui sobre o chiste não esse quadro. Mais tarde, interessado pelo in- seguir. tem graça nenhuma, não nos faz rir e consciente e pelas pulsões, foi influenciado Sugiro que consideremos o chiste a muito menos apresenta um lance cria- por Charcot e Leibniz, abandonando a hipnose em favor da associação livre. Estes elementos tema de capa sob o título Sigmund Freud. Mes- tivo, como é peculiar ao chiste. Que tornaram-se bases da Psicanálise. Freud, além tre da suspeita, disponível para consulta no a graça seja própria do ser humano já de ter sido um grande cientista e escritor, re- link http://migre.me/s8jc. A edição 207, de fora afirmado por Aristóteles em As alizou, assim como Darwin e Copérnico, uma 04-12-2006, tem como tema de capa Freud e a revolução no âmbito humano: a ideia de que religião, disponível para download em http://  Aristóteles de Estagira (384 a C. – 322 a. somos movidos pelo inconsciente. Freud, suas migre.me/s8jF. A edição 16 dos Cadernos IHU C.): filósofo nascido na Calcídica, Estagira, um teorias e o tratamento com seus pacientes em formação tem como título Quer entender dos maiores pensadores de todos os tempos. foram controversos na Viena do século XIX, e a modernidade? Freud explica, disponível para Suas reflexões filosóficas — por um lado ori- continuam muito debatidos hoje. A edição 179 download em http://migre.me/s8jU. (Nota da ginais e por outro reformuladoras da tradição da IHU On-Line, de 08-05-2006, dedicou-lhe o IHU On-Line) grega — acabaram por configurar um modo de SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367  partes dos animais ao escrever que força afirmativa e ao mesmo tem- dem constituir a via que permite essas “O homem é o único animal que ri”, po subversiva, por sua irrupção transformações, ou seja, contornar a atribuindo assim ao riso valor ímpar discreta ou escancarada, flutua censura. Foi assim, por exemplo, para e apresentando a fisiologia do riso, sempre numa certa indetermina- aquela jovem que sofria de uma dor que tem como elemento principal o ção e equivocidade. Ele indica o penetrante na fronte, dor que a reme- diafragma. Outros autores retomarão permanente hiato de que padece tia inconscientemente a uma lembran- esta linha de estudo, descrevendo as o ser humano, na encruzilhada do ça remota de sua avó desconfiada, que afecções corporais do riso, como o ca- físico e do psíquico, do individual e a olhava com um olhar “penetrante”. lor, o rubor, o estremecimento e até do social, do divino e do diabólico: Nesse caso, o inconsciente joga com o algumas minúcias das transformações os animais não riem, assim como duplo sentido que a palavra “penetran- da expressão facial. A busca por es- também os deuses. Parece que a te” adquire. De igual modo, é de forma tudos acerca do risível acaba por nos fonte do riso se encontra na eter- similar que as coisas se dão no chiste remeter ao livro perdido de Aristóte- na defasagem entre o que somos e o ou dito espirituoso. Em razão disso, po- les, em que algo da comédia estaria que deveríamos ser, e não é por acaso demos afirmar, com Lacan, que as três escrito. Posteriormente, Quintiliano, que na tradição grega a tragédia de- grandes obras inaugurais de Freud, a sob a influência da filosofia de Cícero, semboque na comédia. Por que rir é o Interpretação dos sonhos (1900), A psi- afirmara que “na verdade, todo o sal melhor remédio? copatologia da vida cotidiana (1901) e de uma palavra está na apresentação O chiste e suas relações com o incons- das coisas de uma maneira contrária à A verdade de forma indireta ciente (1905), publicadas na aurora do lógica e à verdade: conseguimos isso século XX, são consagradas aos meca- unicamente seja fingindo sobre nossas Então, se um dos efeitos do chiste nismos de linguagem do inconscien- próprias opiniões ou sobre as dos ou- é o riso, em que consiste o chiste? Vi- te, inaugurando uma nova teoria do tros, seja enunciando uma impossibi- mos que Freud se debruçou com aten- inconsciente, e complementada com lidade”. ção sobre o enigma do riso por uma de seus Três ensaios sobre a teoria da se- sua formas: o chiste, Witz, com o qual xualidade (1905). Mistério e diversidade se defrontou desde o início de ��������seu tra- Não vamos aqui tentar percorrer a balho clínico, nos casos de tratamento riqueza e a graça que perpassa a obra Enfim, o riso não deixa de esconder das histéricas. Ele postula que, se uma de Freud sobre os chistes, que na sua seu mistério e sua diversidade: pode representação inconsciente for recalca- maioria somente podem ser apreciados se apresentar agressivo, sarcástico, da, ela poderá retornar de uma forma em sua língua original, mas apenas in- escarnecedor, amigável, etc., sob irreconhecível, para escapar da censu- dicar que ela se divide em três partes. a forma da ironia, do humor, do ra. As formas de retorno do recalcado A primeira, analítica, trata da técnica burlesco, do grotesco, do cômi- são diversas, constituindo o que Lacan e das tendências do chiste; a segunda co, do chistoso, etc. O riso é mul- reuniu com a denominação de “forma- parte, sintética, elucida o mecanismo tiforme, ambivalente, ambíguo. ções do inconsciente”. São os sonhos, psíquico e linguístico gerador do pra- Pode-se rir para não chorar. Pode os lapsos, os sintomas, os chistes, etc. zer espirituoso, seus motivos e seu expressar tanto a alegria pura Estas formações, que encontram um processo social; e finalmente a tercei- quanto o triunfo maldoso, o or- terreno fértil no duplo sentido de uma ra parte, teórica, examina a relação gulho ou a simpatia, assim como palavra, a polissemia da linguagem, po- do chiste com o sonho e o inconsciente pode ser um riso aparentemente  Jacques Lacan (1901-1981): psicanalista e o distingue do cômico e do humor. imotivado, expressando dramas francês. Realizou uma releitura do trabalho Conciso, breve e criativo, o chiste de Freud, mas acabou por eliminar vários ele- subjetivos particulares, como se mentos deste autor (descartando os impulsos não se confunde com a piada, ainda pode encontrar na psicose. O riso sexuais e de agressividade, por exemplo). Para que ambos sejam produtores de pra- pode ser apaziguador, fascinante Lacan, o inconsciente determina a consciên- zer. A linguagem chistosa deixa irrom- cia, mas este é apenas uma estrutura vazia e e até mesmo inquietante e assus- sem conteúdo. Confira a edição 267 da Revis- per a verdade de forma indireta, com tador. Parece que o riso, por sua ta IHU On-Line, de 04-08-2008, intitulada A o máximo de sentido para um mínimo função do pai, hoje. Uma leitura de Lacan, de suporte, ou seja, com o mínimo de pensar que se estenderia por séculos. Prestou disponível em http://migre.me/zAMA. Sobre inigualáveis contribuições para o pensamento Lacan, confira, ainda, as seguintes edições palavras obtém um máximo de graça, humano, destacando-se nos campos da ética, da revista IHU On-Line, produzidas tendo em deixando escapar algo inconciliável política, física, metafísica, lógica, psicologia, vista o Colóquio Internacional A ética da psi- e insuportável. A verdade que aflora poesia, retórica, zoologia, biologia, história canálise: Lacan estaria justificado em dizer natural e outras áreas de conhecimento. É “não cedas de teu desejo”? [ne cède pas sur por meio do chiste é da ordem do real considerado, por muitos, o filósofo que mais ton désir]?, realizado em 14 e 15 de agosto insuportável que acossa o sujeito. A influenciou o pensamento ocidental. (Nota da de 2009: edição 298, de 22-06-2009, intitulada brevidade do chiste é o indicativo do IHU On-Line) Desejo e violência, disponível para download  Marcus Fabius Quintilianus (35 d.C. - 95 em http://migre.me/zAMO, e edição 303, de sucesso criativo de seu principal me- d.C.): orador e professor de retórica romano. 10-08-2009, intitulada A ética da psicanálise. canismo linguístico, a condensação, (Nota da IHU On-Line) Lacan estaria justificado em dizer “não cedas por meio da qual dois campos de signi-  Marco Túlio Cícero (106 a.C. - 43 a.C.): fi- de teu desejo”?, disponível para download lósofo, orador, escritor, advogado e político em http://migre.me/zAMQ. (Nota da IHU On- ficados em conflito se fundem, causan- romano. (Nota da IHU On-Line) Line)  SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 do estupefação e surpresa. O termo “O chiste requer então cessar o gozo mortífero que assombra- utilizado por Freud para o significante va este sujeito. Vemos, assim, que ou- enigmático, que deixa o sujeito side- um terceiro, cuja tras formações do inconsciente, como rado, é Verblüflung, estupefação, des- os lapsos de memória, os atos falhos e concerto, espanto, assombro, perple- verdade é atestada pelo os sintomas, ainda que sejam retornos xidade. Ao mesmo tempo, diferente do recalcado inconsciente, não apre- do que ocorre no ato falho ou no sinto- riso, ao passo que o sentam a dimensão criativa do chiste ma, que são metáforas fracassadas, no com seu poder subversivo. chiste ocorre um ato criativo, visível cômico necessita apenas frequentemente na formação de um IHU On-Line – Há uma necessidade neologismo. de dois polos, o eu e o psicológica em fazermos chistes? Por quê? O riso do Outro como autenticação objeto” Mario Fleig – Por que rimos ou por que precisamos rir? Se o riso é o melhor Vejamos um singelo exemplo, re- e a liberação da energia utilizada para remédio, como afirma a sabedoria po- ferido por uma colega: Um menino, isso. É na liberação desta energia eco- pular, podemos supor que sua neces- em sério conflito com seu irmão, no nomizada que dá o prazer, definido por sidade brota do mal que nos assola. momento da oração, assim conclui o Freud como diminuição da tensão. Freud segue esta linha de raciocínio, “Pai nosso”: “... livrai-nos do mala O chiste requer, então, um terceiro, que também encontramos em Kant. mém.” O cruzamento de duas cadeias cuja verdade é atestada pelo riso, ao Este afirma em seu estudo A arte do de pensamento, uma manifesta e a passo que o cômico necessita apenas gênio: “O riso é um afecção decorren- outra latente, se faz pela condensa- de dois polos, o eu e o objeto. Assim, te da súbita transformação de uma ex- ção de “mal” + “mala” resultante do uma gozação pode se fazer sobre uma pectativa tensa em nada” (KANT, I. Os deslocamento do intervalo para a le- determinada pessoa, que se encontra pensadores: Kant II. São Paulo: Abril tra seguinte. Essa condensação per- numa situação peculiar. Por exemplo, Cultural, 1980, p. 266). O riso parece mite então a irrupção da frase recal- uma senhora vistosamente vestida que consistir em um tipo de alívio, um dis- cada, reveladora dos pensamentos de pisa em uma casca de banana e se es- pêndio psíquico decorrente da libera- agressividade endereçados ao irmão. tatela no passeio público pode ser algo ção da energia alocada na tensão. Lembremos que a condição necessária muito cômico. Se isso acontecesse para que esta frase seja um chiste é com uma trôpega senhora muito idosa IHU On-Line – O que difere um chiste que ela produza o efeito do riso, e por certamente produzir um sentimento de uma piada? isso ela precisa convocar o outro. O de pesar nos transeuntes. Deste modo, Mario Fleig – Certamente que nem riso do outro, como efeito do chiste, Freud insiste que a verdade, inicial- toda piada corresponde a um chiste. vem como o selo de autenticação de mente inadmissível, que irrompe no Para precisar a diferença entre am- que ali houve um chiste. Se ele não dito espirituoso só vale como chiste bos, vale inicialmente a diferença que ocorrer, se não se produz o laço social quando enunciada para um terceiro, Freud estabelece entre o chiste e o no rir juntos, mas vergonha por ter que ao rir irá atestá-la. Destaca-se cômico. Se o chiste é sempre causa do sido pego em flagrante, seria apenas assim a assunção subjetiva da função  Immanuel Kant (1724-1804): filósofo prussia- subversiva da fala, que já havia sido no, considerado como o último grande filósofo um lapso. dos princípios da era moderna, representante No chiste, aquilo que até então es- descoberta pelos gregos, como se pode do Iluminismo, indiscutivelmente um dos seus tava emudecido pode, enfim, tomar a ler na Retórica de Aristóteles, que en- pensadores mais influentes da Filosofia. Kant contra seu aval no terceiro, denomina- teve um grande impacto no Romantismo ale- palavra, visto que ao fazer rir o sujeito mão e nas filosofias idealistas do século XIX, desarma o Outro, que até ali manti- do por Lacan de Outro, que está para tendo esta faceta idealista sido um ponto de nha uma censura intransponível. E isso além do semelhante. O Outro, lugar partida para Hegel. Kant estabeleceu uma dis- da Lei, tanto é aquele que autentica tinção entre os fenômenos e a coisa-em-si (que produz uma satisfação naquele que chamou noumenon), isto é, entre o que nos faz e/ou naquele que ouve um chiste. a verdade da fala espirituosa que bur- aparece e o que existiria em si mesmo. A coisa- Como se explica esse prazer? O jogo la a censura assim como aquele que em-si não poderia, segundo Kant, ser objeto é subvertido, visto que passível de fa- de conhecimento científico, como até então de palavras e sua sonoridade pode- pretendera a metafísica clássica. A ciência se riam nos remeter a um grande prazer lha. Resulta, enfim, em uma subversão restringiria, assim, ao mundo dos fenômenos, sentido da infância e agora revisitado. da posição do sujeito, pois o dito espi- e seria constituída pelas formas a priori da sen- rituoso rompe a sideração resultando sibilidade (espaço e tempo) e pelas categorias Contudo, mais do que isso, Freud des- do entendimento. A IHU On-Line número 93, taca que o êxito do chiste se encon- da condição de gozo de estar à mercê de 22-03-2004, dedicou sua matéria de capa à tra na particularidade da elaboração do Outro, e dá à luz ao desiderium, vida e à obra do pensador com o título Kant: ou seja, à de-sideração, quer dizer, ao razão, liberdade e ética, disponível para do- da frase que é então mais facilmente wnload em http://migre.me/uNrH. Também aceita pela censura, mesmo quando se desejo. Lacan localiza nesta operação sobre Kant foi publicado este ano o Cadernos trata de pensamentos rejeitados pela a instância da letra no inconsciente, IHU em formação número 2, intitulado Emma- elemento material mínimo que, por nuel Kant - Razão, liberdade, lógica e ética, consciência. Assim, produz-se uma que pode ser acessado em http://migre.me/ suspensão do recalcamento em curso propiciar a escrita de uma borda, faz uNrU. ��������(Nota da IHU On-Line) SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367  riso, por meio de uma elaboração fra- “Se o riso é o melhor que retoma a história do riso do sal produzida de propósito, o cômico é século do XIV ao século XVI. da ordem de um efeito resultante de remédio, como afirma a um achado em situação. Uma situa- IHU On-Line – Em O nome da rosa, a ção é cômica, um dito é espirituoso. sabedoria popular, trama se baseia em livros que tive- Assim, podemos ter piadas que podem ram suas páginas envenenadas para ter graça ou não, visto que graça pode podemos supor que sua que seus leitores morressem após estar no desempenho do narrador, que folheá-las. Uma dessas obras era o então consideramos um bom conta- necessidade brota do mal segundo tomo de A poética, de Aris- dor de piada. Dentre os vários gêne- tóteles. O argumento do Venerável ros de piadas, temos, por exemplo, o que nos assola” Jorge, monge beneditino que havia uso de estereótipos, em que são con- embebido as páginas do livro com ve- frontados dois pontos de vista. Basta o inconsciente, ao passo que outras for- neno, era que o riso matava o temor contador de piada introduzir o tema, mas de produzir riso operam com ele- e, por conseguinte, a fé. Como pode- dizendo: “Vocês sabem aquela do pa- mentos pré-consciente e consciente. mos compreender essa afirmação? O pagaio?”, e o clima já está formado. que ela guarda de verdade, embora O mesmo ocorre se a narrativa incide IHU On-Line – No que consistia o es- tenha sido feita dentro de uma obra sobre campos socialmente contro- tudo do riso empreendido por Aristó- de ficção? versos e suficientemente conhecidos teles? Algum outro filósofo analisou Mario Fleig – O nome da rosa, do escri- dos ouvintes, em que o texto parece esse tema? tor italiano Umberto Eco, traduz de querer dizer uma coisa, mas diz ou- Mario Fleig – Pouco sabemos sobre forma literária a importância do aris- tra. Geralmente, a controvérsia gira este suposto livro que faria parte da totelismo para o pensamento cristão em torno da sexualidade, das institui- Poética de Aristóteles, além de supo- medieval. Trata-se de uma trama po- ções (escola, religião, família, gover- sições medievais de que teria existido licial, como reverberações múltiplas no), das desgraças. Há pouco, em um e que, então, teria sido perdido. Ou da literatura ocidental, da filosofia e quadro humorístico de Chico Anysio, o ele nunca chegou a ser escrito, ou foi da ciência, que se desdobra em torno personagem, que parecia estar falan- queimado no incêndio que destruiu a de um livro misterioso, um tratado de do das cartas do baralho, se referia à Biblioteca de Alexandria. Sua existên- Aristóteles sobre como o riso pode au- liberação da “copa”, para que então cia é uma suposição bem plausível, vis- xiliar na busca pela verdade, que aca- outros ficassem com o “ouro”, assim to que a comédia é o que logicamente ba por levar vários monges à morte em como um coringa que se achava um se seguiria à análise da tragédia, no uma abadia medieval. rei, etc. Para que esta piada se produ- estudo sobre a retórica do teatro. O Venerável Jorge de Burgos, mon- za, é preciso ter acompanhado as no- O estudo sobre o riso é imenso e eu ge responsável pela biblioteca do mos- tícias relativas à liberação de verbas não poderia dar conta aqui da história teiro para o qual se encaminha William para obras públicas da Copa do Mundo do interesse sobre o tema na filosofia, de Baskerville, afirma que a obra de- no Brasil, assim como o papel desem- na sociologia, nas artes, etc. Posso su- veria ser destruída justamente por ter penhado pelo ex-presidente Lula na gerir, entre outras, a obra magistral de sido escrita por Aristóteles. A influên- política atual. Mikhail Bakhtin, A obra de Fran- cia do pensador grego era tamanha çois Rabelais e a cultura popular que, ao endossar o riso e o escárnio IHU On-Line – O objetivo de um chis- na Idade Média e na Renascença, como fontes válidas para se chegar te é o riso? ao conhecimento da verdade, Aristó-  Mikhail Mikhailovich Bakhtin (1895-1975): Mario Fleig – Como vimos antes, no linguista russo. ������������������������������Seu trabalho é considerado in- teles poderia desencadear o caos na caso do chiste, o riso é um efeito. O fluente na área de teoria literária, crítica lite- sociedade, uma vez que, ao rirem do riso é o atestado de que ali se produ- rária, análise do discurso e semiótica. Bakhtin mundo, os homens espantariam o te- também é considerado como filósofo da lin- ziu um dito espirituoso. O cômico e a guagem, e sua linguística é uma “trans-linguís- mor ao demônio e perceberiam como piada têm como objetivo fazer rir, ao tica” porque ela ultrapassa a visão de língua Deus era desnecessário, produzindo-se passo que o chiste é uma elaboração como sistema. Isso porque, para Bakhtin, não um colapso geral. Assim, o verdadeiro se pode entender a língua isoladamente, mas produzida de propósito para suspender qualquer análise linguística deve incluir fato- perigo viria deste livro, pois ele é que o recalcamento e, assim, liberar-se do res extra-linguisticos como contexto de fala, poderia contaminar os doutos, e não mal-estar gerado pelo assombramento intenção do falante, a relação do falante com o ouvinte, momento histórico. Bakhtin pro-  Umberto Eco (1932): autor italiano mundial- de estar à mercê do Outro, na forma fessa uma abordagem marxista da língua e da mente reputado por diversos ensaios univer- de um gozo mortífero. Por isso, enten- linguística, pois para ele “a palavra é o signo sitários sobre semiótica, estética medieval, demos que o chiste é uma formação ideológico por excelência” e também “uma comunicação de massa, linguística e filosofia, ponte entre mim e o outro”. Alguns conceitos dentre os quais destacam-se Apocalípticos do inconsciente. Ou seja, ele ocorre fundamentais de Bakhtin são o dialogismo, a e Integrados, A estrutura ausente e Kant e o de propósito no sentido que visa algo polifonia, a heteroglossia e o carnavalesco. ornitorrinco. Tornou-se famoso pelos seus ro- que ultrapassa a intenção consciente Entre suas obras, destacamos Problemas da mances, sobretudo O nome da rosa, adaptado poética de Dostoievski (2ª ed. Rio de Janei- para o cinema. A ilha do dia anterior; Baudoli- do sujeito. Neste sentido, Freud afir- ro: Forense-Universitária, 1997). (Nota da IHU no e A misteriosa chama da Rainha Loana são ma que o chiste é uma formação do On-Line) outras de suas obras. (Nota da IHU On-Line)  SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 do riso das pessoas simples e medío- IHU On-Line – Por que o riso foi consi- paradoxo? O humor não seria o cres. O riso poderia afastar o indivíduo derado, por vezes, demoníaco, uma valor supremo que permite aceitar de Deus, ao passo que o livro de Aris- vez que é prerrogativa exclusiva- sem compreender, agir sem des- tóteles afastaria os doutos do caminho mente humana? confiar, assumir tudo sem levar da razão e da verdadeira sabedoria, e Mario Fleig – Sabemos que um impor- nada a sério? aí se encontrariam o verdadeiro pe- tante suporte das religiões é o temor Sabemos que as tragédias gregas rigo. Vejamos esta argumentação nas dos deuses, sendo que a estratégia de costumavam constituir uma trilogia: a próprias palavras do Venerável Jorge cindir a divindade em duas, uma boa primeira apresentava o conflito, como de Burgos: e protetora e a outra maléfica, per- Édipo Rei, na trilogia de Sófocles10; a “O riso libera o aldeão do medo do mite que a primeira seja fortalecida segunda tratava do desdobramento dos diabo, porque na festa dos tolos tam- pelo incrementado temor na segunda. efeitos do conflito, como Antígona11; bém o diabo aparece pobre e tolo, Uma das hipóteses para o aumento do e a terceira apresentava uma solução portanto controlável. Mas este livro temor ao demônio, que se constata no do conflito, comoÉdipo em Colono12. A poderia ensinar que libertar-se do período medieval e perdura até nossos comédia, ou seja, a dimensão do riso, medo do diabo é sabedoria. Quando dias, seria decorrente do incessante viria como a solução da tragédia. ri, enquanto o vinho borbulha em sua enfraquecimento do temor a Deus. As- A tragédia surge na Grécia a par- garganta, o aldeão sente-se patrão, sim, quanto mais se teme ao inimigo, tir do culto ao deus Dionísio13, dentro porque inverteu as relações de senho- maior deve ser o poder daquele que da trama de narrativas denominadas ria: mas este livro poderia ensinar aos nos protege. Essa hipótese poderia ser de mito que delimitam o que chama- doutos os artifícios argutos, e desde verificada pelo exame do lugar que o mos de trágico. Assim, o trágico não então ilustres, com que legitimar a in- demônio ocupa nas assim denominadas se restringe ao âmbito das tragédias versão. Então, seria transformado em igrejas neopentecostais no Brasil. Ora, do teatro, mas é algo que define a operação do intelecto aquilo que no no período medieval surgem formas especificidade da condição humana, gesto irrefletido do aldeão é ainda e novas de contestação, porta de entra- à medida que é nele que se realiza o afortunadamente operação do ventre. da para o demônio, colocando em pe- que há de mais estranho no estranho, Que o riso é próprio do homem é sinal rigo o poder da divindade: o demônio como se enuncia no primeiro coro da do nosso limite de pecadores. Mas des- do meio-dia, ou seja, a preguiça como Antígona de Sófocles: “Muitas são as te livro quantas mentes corrompidas expressão da melancolia, a nascente  Édipo Rei: peça de teatro grega, mais pre- como a tua tirariam o silogismo extre- ciência moderna e sua racionalidade, cisamente uma tragédia, escrita por Sófocles por volta de 427 a.C. Trata de uma parte do mo, pelo qual o riso é a finalidade do e o antigo riso. Todas elas são consi- mito de Édipo. O mito de Édipo Rei é um dos homem! O riso distrai, por alguns ins- deradas como manifestação do demo- pilares da psicanálise clássica. A definição do tantes, o aldeão do medo. Mas a lei é níaco a ser combatido. São os novos Complexo de Édipo remonta a uma carta en- viada por Freud a seu amigo Fliess, em que imposta pelo próprio medo, cujo nome poderes do demônio, que requerem discute relações de poder e saber num drama verdadeiro é temor a Deus. E deste li- uma divindade forte e firme. Assim, encenado tipicamente por pai, mãe e filho. vro poderia partir a fagulha luciferi- o antigo poder catártico e subversivo (Nota da IHU On-Line) 10 Sófocles: Dramaturgo grego. Viveu em Ate- na que atearia no mundo inteiro um da tragédia e da comédia gregas, que nas, cerca de 400 anos antes da Era Cristã. novo incêndio: e o riso seria designado preconizava o benefício libertário das Considerado um dos mais importantes escri- como arte nova, desconhecida até de lágrimas e do riso, era inaceitável para tores gregos da tragédia. Édipo Rei, Antígona e Electra são as suas peças mais conhecidas Prometeu, para anular o medo. Para o a ortodoxia medieval, que via nela a (Nota da IHU On-Line) aldeão que ri, naquele momento, não obra do demônio. Além disso, apesar 11 Antígona: figura da mitologia grega, filha lhe importa morrer: mas depois, aca- de ser reconhecido como próprio do de Édipo e Jocasta. A versão clássica do mito sobre a Antígona é descrita na obra Antígona, bada sua licença, e a liturgia impõe- homem, o riso em geral era censura- do dramaturgo grego Sófocles, um dos mais lhe de novo, de acordo com o desígnio do à luz do argumento de que Jesus, importantes escritores de tragédia. (Nota da divino, o medo da morte. E deste livro modelo supremo do humano, não teria IHU On-Line) 12 Édipo em Colono: uma das três obras de poderia nascer a nova e destrutiva as- rido em sua vida terrena. Enfim, o riso Sófocles que fazem parte da chamada trilogia piração a destruir a morte por meio da e o humor, por seu poder subversivo, tebana, na tragédia grega. Foi produzida pelo libertação do medo. E o que queremos tenderiam a profanar e a zombar do neto de Sófocles, em 401 a.C. Na linha do tem- po das peças, a história ocorre depois de Édipo nós, criaturas pecadoras, sem o medo, sagrado, e nisso consistir seu poder Rei e antes de Antígona. A peça descreve o fim talvez o mais benéfico e afetuoso dos demoníaco a ser combatido. da trágica vida de Édipo. Sófocles estabelece o dons divinos”. local da morte de Édipo em Colono ou Hippeios Colonus, uma comunidade localizada mais ou Como oposição à pretensão de ter IHU On-Line – Em que aspectos é pos- menos a um quilômetro ao noroeste da cidade a verdade absoluta e à certeza de ser sível estabelecer uma relação entre de Atenas. (Nota da IHU On-Line) a “mão de Deus”, o frade Baskerville o riso e o trágico? 13 Dioniso, Diónisos ou Dionísio: deus grego equivalente ao deus romano Baco, dos ciclos pondera que “talvez a tarefa de quem Mario Fleig – O trágico e o cômico fa- vitais, das festas, do vinho, da insânia, mas, ama os homens seja fazer rir da verda- zem parte das múltiplas respostas sobretudo, da intoxicação que funde o bebe- de, fazer rir a verdade, porque a única do homem confrontado com o pa- dor com a deidade. Filho de Zeus e da prin- cesa Semele, foi o único deus olimpiano filho verdade é aprendermos a nos libertar radoxo de sua existência. Seria o de uma mortal, o que faz dele uma divindade da paixão insana pela verdade.” riso a melhor resposta para esse grega atípica. (Nota da IHU On-Line) SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367  coisas estranhas, nada, porém, há de nos que sua narrativa apresenta a di- prazer apesar das circunstâncias des- mais estranho (to deinataton) do que mensão trágica de sua vida, presente favoráveis. Como meio de defesa con- o homem” (v. 332). no paradoxo entre avançar um tanto e tra a dor, o humor, assim como o chiste O riso da comédia e do cômico não recuar na mesma proporção, de modo e o cômico, “ocupa um lugar dentro da se confunde com o mesmo efeito pro- a jamais sair do lugar. Estava parali- grande série dos métodos que a vida duzido pelo chiste e pelo humor, e fun- sado por uma contradição existencial. anímica do ser humano construiu com ciona como um automatismo psíquico O que poderia acontecer para que pu- o intuito de escapar da compulsão ao pré-consciente. O humor apresenta desse transpor tal impasse, ou seja, sofrimento, série que se inicia com a um riso entre parênteses, recatado, deixar cair o gozo deletério de seu neurose e culmina no delírio, e na qual ao passo que o chiste resulta de um sintoma? Semelhante ao percurso lite- se incluem a embriaguez, o abandono processo inconsciente que, com a au- rário e social que a inventividade dos de si, o êxtase”, afirma Freud. torização do sujeito, confessa a verda- gregos construiu, da transformação do Enfim, a sabedoria popular nos diz de que ser para ficar calada. trágico em uma trilogia e a irrupção que “rimos para não chorar” ou que do riso na comédia, o percurso em um “rir é o melhor remédio”. Que verda- Contradição existencial tratamento psicanalítico leva o sujeito de encontramos nestes provérbios? Se a poder se apropriar de sua tragédia e, seguirmos as formulações de Freud, en- O humor, mesmo que possa se pren- até mesmo, chegar a rir da banalidade tendemos que nos encontramos com as der ao inconsciente, consiste para de seu destino, renunciando então a diferentes elaborações e transforma- Freud em uma contribuição do supereu gozar do ódio. ções da pulsão de morte, que, em vez para o cômico. O ponto de intersec- de seguir a via direta da destruição, faz ção destas diferentes modalidades de IHU On-Line – Podemos dizer que o um contorno do estranho e impossível e riso se encontra se encontra no centro chiste, o humor e o riso são formas cria algo diferente. No riso, ainda que do culto ao deus Dionísio, o falo. Este de lidar com o mal-estar? Por quê? seja de escárnio e repúdio, há um ins- falo simbólico que opera sua função Mario Fleig – Freud escreveu um pe- tante de suspensão do desejo de pura somente se velado faz surgir a verda- queno artigo denominado O humor destruição de si e do outro. Instante de do sujeito na revelação específica (1927), reiterando que a fonte de que pode circunscrever outra coisa. do cômico, visto que ele presentifica prazer deste provém da economia de o desejo inconfessado no instante em um dispêndio afetivo que uma situa- que se dá a queda do falo. Assim, po- ção de mal-estar produz, ou seja, que deríamos ler o exemplo que referi aci- o humor é gerador de um ganho de Leia Mais... ma, da senhora chique que escorrega prazer para si ou para o espectador, Confira outras entrevistas concedidas por em uma casca de banana e se estatela de modo semelhante ao que se passa Mario Fleig e publicadas na IHU On-Line. no passeio público, acompanhada pelo no chiste e no cômico. Contudo, ele olhar de gozação dos transeuntes. Do apresenta uma novidade, ao afirmar • O desaparecimento da família tradicional. Entre- vista publicada na IHU On-Line 326, de 26-04-2010, que é mesmo que eles riem? que “o humor não só tem algo de li- disponível em http://bit.ly/im40MS; Retornamos sempre ao mesmo pon- bertador, sendo análogo nisso ao chis- • O pedófilo: vítima de seu desejo e perversão. En- to, ou seja, como lidamos com esse te e ao cômico, mas também tem algo trevista publicada na IHU On-Line 326, de 26-04- 2010, disponível em http://bit.ly/eadHUI; estranho em nós mesmos? Voltando de sublime e patético, traços que não • O direito ao gozo e à violência. Entrevista publi- ao trágico, este pode se apresentar encontramos nesses dois outros modos cada na IHU On-Line 298, de 22-06-2009, disponível em relatos aparentemente banais da de obter prazer mediante uma ativida- em http://bit.ly/jw3AwS; • Não cedas do teu desejo: é preciso sustentarmos o vida cotidiana, como o jovem se quei- de intelectual. Evidentemente, o su- que falamos com voz própria. Entrevista publicada xava a respeito de suas dificuldades blime reside no triunfo do narcisismo, na IHU On-Line 295, de 01-06-2009, disponível em em progredir na vida, tanto no traba- da vitoriosa confirmação da invulne- http://bit.ly/jAUXph; • “Querer fazer o mal parece algo inerente à con- lho quanto no estudo, e muito mais rabilidade do eu. O eu recusa-se a se dição humana”. Entrevista publicada na IHU On- ainda em sua vida amorosa. Logo se deixar abater e sucumbir ao sofrimen- Line 265, de 21-07-2008, disponível em http://bit. lembra de pensamentos fugidios que to ocasionado pela realidade externa; ly/j9ZqeL; • O delírio de autonomia e a dissolução dos funda- o atormentam, dos quais consegue si- recusa-se a admitir que os traumas mentos da moral. Entrevista publicada na IHU On- tuar um: tem um pensamento terrível do mundo externo o possam afetar, e Line 220, de 21-05-2007, disponível em http://bit. de que seu pai iria morrer se ele não ainda mostra que são para ele apenas ly/mTwkK1; • O declínio da responsabilidade. Entrevista publi- fizesse determinadas coisas. Não se oportunidades de obter prazer.” cada na IHU On-Line 185, de 19-06-2006, disponível sente à vontade para falar destas coi- O exemplo cabal do senso de humor em http://bit.ly/bp5jvr; sas, pois as considerava idiotas. Final- irrompe na frase do condenado à for- • Freud e a descoberta do mal-estar do sujeito na civilização. Entrevista publicada na IHU On-Line mente as revela: para que seu pai não ca que na segunda-feira, ao ser levado 179, de 08-05-2006, disponível em http://bit.ly/ viesse a morrer por sua causa, deveria para o patíbulo, declara para seu car- kpHGA8; contar até quatro e depois descontar rasco: “Começamos bem a semana!” • As modificações da estrutura familiar clássica não significam o fim da família. Entrevista publicada até zero ou dar três passos para fren- Não é uma frase de queixa e resigna- na IHU On-Line 150, de 08-08-2005, disponível em te, três para o lado e depois recuar os ção, mas de oposição, que indica, além http://bit.ly/iYmk6n. três passos e assim por diante. Parece- do triunfo do eu, a afirmação de um 10 SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 Com as unhas cravadas no mal-estar Fazer humor é transgredir, é despir as ideologias de suas roupagens, e as teorias de sua pompa, frisa a psicanalista Marília Brandão Lemos Morais. Os humoristas são aqueles que enterram as unhas no “mal-estar” do qual padece a contemporaneidade, fazendo ressur- gir a transgressão

Por Márcia Junges

humor atua como álibi de alguma verdade do sujeito que, até então, não fora capaz de ser dita”. A afirmação é da psicanalista Marília Morais em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Ela recupera o conceito de humor em Sigmund Freud, dizendo que este não é resignado, mas rebelde. Os humoristas são aqueles que “cravam as unhas no mal- estar”, apontam a “finitude humana, sua dor e sofrimento”. E complementa: “Atra- “Ovés do humor, todo poder constituído é gozado, as teorias perdem a sua pompa, as religiões, as ideologias mostram sua face frágil e nua. O humor é transgressor!”. Marília constata que nossa sociedade “parece ter perdido a potência do riso, evidenciada pelo conformismo que se observa no humor cínico e no pornográfico. Resgatar a rebeldia característica do humor é resgatar as dimensões de vida que não podemos deixar esma- ecer no nosso dia a dia: a graça de viver, a criatividade, o lúdico e o bom humor”. Psiquiatra e psicanalista, Marília Brandão Lemos Morais é filiada ao Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, ao Círculo Brasileiro de Psicanálise e à International Federation of Psychoanalisis. É autora do livro Psicanálise e Contemporaneidade: arte, literatura, poesia, humor, corpo, anorexia, bulimia (Editora Biblioteca 24x7: São Paulo, 2010). Confira a entrevista.

IHU On-Line – Psicanaliticamente, o pessoas: a primeira, quem conta a vimento destes jogos infantis até a sua que explica a necessidade e o prazer piada; a segunda, aquela de quem se transformação em chistes, impulsio- que sentimos de rir e fazer rir? fala e que não está presente e é o alvo nados pelo desejo de burlar a crítica Marília Lemos – O riso é uma descarga das pressões sexuais e agressivas; e a e reencontrar o antigo prazer. O pro- de afeto que gera prazer e contagia. O terceira, que é para quem se conta a pósito, a função dos chistes consiste mecanismo do riso é explicado como piada, a plateia ou a paróquia (termo em suspender as inibições internas e consequência da suspensão da inibição: retirado de Bergson que Freud colocou tornar acessíveis as fontes de prazer. um quantum de energia psíquica torna- como todo chiste requer seu próprio Os chistes são tendenciosos, satisfa- se livre e encontra uma via de descarga público). A função desta terceira pes- zem a uma tendens, uma intenção. A motora na risada.O chiste e o humor soa é fundamental: é aquela que ri da sua forma engenhosa satisfaz a inten- convidam ao prazer e ao gozo em fun- piada e a que a referenda, pois, sem ções agressivas e sexuais, a sua forma ção do riso que provocam, contagiando seu riso, a piada não é piada, portanto, alusiva e indireta permite que pensa- o espaço social. Se o chiste está estru- um efeito a posteriori, que só então mentos sejam expressos, burlando a turado como uma formação do incons- faz o piadista rir. Esta terceira pessoa crítica. O fato de negarem a censura ciente, é por isto mesmo um trânsito é importante para o piadista reexperi- e de liberarem a inibição que pesava para que alguma coisa da ordem do re- mentar, através dela, o efeito surpresa sobre estas fantasias coloca à mostra calcado abra passagem e se mostre sem da piada ouvida pela primeira vez, e o inconsciente e o prazer é derivado passar pelo desconforto da angústia e para autorizar a transgressão da re- da economia de um dispêndio psíqui- do padecimento de sintomas. pressão social efetuada pelo piadista. co, aquele que mantinha a inibição. No capítulo V do livro Os chistes e Os chistes provêm dos jogos de Entre os vários tipos de inibição, o sua relação com o inconsciente (1905), palavras e pensamentos usados pelas texto freudiano se refere ao recalque, de Freud, são analisados os motivos crianças e que produzem prazer. Com reconhecido por impedir que impulsos dos chistes e o impulso que temos de o passar dos anos são abandonados a ele sujeitos e seus derivativos tor- passá-los para frente, através de um em função da faculdade crítica e da nem-se conscientes. E diz que os chis- contágio entusiasmado, colocando-os racionalidade. Entretanto, o sujeito tes são capazes de liberar prazer de como um processo social. Na estrutu- não quer renunciar a um prazer que fontes já submetidas ao recalque. ra dos chistes, são determinadas três lhe é familiar. Daí o ulterior desenvol-

SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 11 IHU On-Line – Qual é a função do riso? sua velhice, quando acometido por um Catarse, mecanismo de defesa? “São os humoristas câncer de mandíbula que lhe causava Marília Lemos – O humor atua como áli- muito sofrimento, ou quando assistia bi de alguma verdade do sujeito que, aqueles que captam a ao advento do nazismo na Europa – to- até então, não fora capaz de ser dita. dos estes momentos demonstram fino Numa brincadeira pode-se até dizer a fragilidade do homem, humor. Em maio de 1933, ao saber que verdade, enuncia Freud em seu livro Os seus livros estavam incluídos nos que chistes e sua relação com o inconscien- seus conflitos, sua seriam queimados em praças públicas te. O recurso ao falei de brincadeira ou das cidades alemãs e nos campi uni- é de mentirinha pode ser a maneira de finitude, sua dor e versitários, fez o seguinte comentário: uma verdade ser anunciada, através do “Que progressos estamos fazendo. Na faz de conta: Foi sem querer querendo, sofrimento, ‘cravam Idade Média, teriam queimado a mim; como diz o Chavez do programa humo- hoje se contentam em queimar os rístico da TV. Esta verdade se diz através as unhas no mal-estar’” meus livros”. Mal sabia ele o quanto de um sentido insólito brotado no non- estava sendo profético! sense, do paradoxo, do absurdo, ao qual acrescentou de próprio punho: “Posso Numa conversa com o jornalista se segue uma revelação de sentido que é recomendar altamente a Gestapo a americano George Sylvester Viereck sempre surpreendente e fugaz, seguido todos”. Esta tirada de humor foi, de em 1926, Freud teria dito: Setenta anos da descarga de riso. início, interpretada por Gay como uma de existência ensinaram-me a aceitar tentativa inconsciente de suicídio, uma a vida com alegre humildade... Não IHU On-Line – Em que medida rir vez que a ousadia de Freud punha em gosto de meu palato artificial, porque pode ser também uma transgressão risco a sua própria vida, caso as autori- a luta para mantê-lo em função conso- e uma rebeldia? dades nazistas reconhecessem ali uma me minha energia. Prefiro, entretan- Marília Lemos – O humor não é resig- fina ironia. Mas, num segundo tempo, o to, um palato postiço a nenhum; ainda nado, mas rebelde, diz Freud em seu mesmo Gay reconhece que esta atitu- prefiro a existência à extinção... Não ensaio O humor (1926). São os humo- de demonstrava uma grande coragem sou pessimista, não permito que ne- ristas, aqueles que captam a fragilida- e vitalidade do criador da psicanálise e nhuma reflexão filosófica me faça -per de do homem, seus conflitos, sua fini- “seu senso de humor irreprimível”. Esta der o gozo das coisas simples da vida. tude, sua dor e sofrimento, “cravam ambiguidade, que aponta tanto para Sábias palavras de alguém que, apesar as unhas no mal-estar”, desviam do in- a vida quanto para a morte, revela a dos sofrimentos pelos quais passou, terdito e dali saem com um dito espi- ambivalência e o paradoxo próprios do ainda amava a vida e pode expressar, rituoso que os fazem rir de si mesmos, registro tragicômico e do humor negro, aos 71 anos, a sua criatividade e es- ou do outro e fazem o outro rir. São nesta estranha proximidade da angús- crever sobre o valioso dom do humor eles que revelam nossas contradições, tia, da ironia e do riso. para aliviar as dores da existência, nossas falhas, nossas imperfeições. pois só através dele, é possível diver- Através do humor, todo poder consti- IHU On-Line – Por que o humor pode tir-se no infortúnio. O humor permite tuído é gozado, as teorias perdem a ser o último véu a encobrir o hor- a inscrição da intensidade pulsional sua pompa, as religiões, as ideologias ror? no universo das representações, ainda mostram sua face frágil e nua. O hu- Marília Lemos – Podemos observar que em situações-limite. Permite que mor é transgressor! como o humor pode ser o último véu o sujeito afirme seu desejo contra a a encobrir o horror, citando o famo- pulsão de morte que o habita. IHU On-Line – Como podemos com- so chiste de humor negro escrito por preender as conexões entre angús- Freud, o do condenado à morte que, IHU On-Line – Por que o humor é éti- tia, ironia e riso? numa segunda-feira de manhã, ao ser co, estético e político? Poderia apro- Marília Lemos – Se o humor consiste levado para a execução, comenta: “É, fundar essa relação? numa forma inteligente de lidar com a a semana está começando otimamen- Marília Lemos – Esta relação é bem dor e o sofrimento e ainda tirar provei- te.” Humor enquanto afirmação do de- aprofundada por Kupermann (Ousar to disso, podemos observar esta cone- sejo diante da adversidade e da mor- rir) e Birman, em Frente e verso: o xão na própria vida de Freud em duas te. Humor lúcido e trágico, ao mesmo  Daniel Kupermann: psicólogo e psicanalis- tempo triunfal, alegre, ou seja, o hu- ta, doutor em teoria psicanalítica pela UFRJ. situações descritas por Peter Gay (e (Nota da IHU On-Line) citadas por Kupermann). Em 1938, na mor freudiano, em sua associação ínti-  Joel Birman: psiquiatra e psicoterapeuta época de deixar a Áustria dominada, ma com a morte é tragicômico. brasileiro. Nascido em Vitória, Espírito Santo, descendente de imigrantes judeus romenos. então, pelo nazismo, após a prisão e Ele se formou em medicina na década de 1970 interrogatório de sua filha Anna, Freud IHU On-Line – Em que medida o hu- e efetuou sua pós-graduação em São Paulo e foi obrigado a assinar um documento mor freudiano é um humor trágico? Paris. Birman escreveu vários livros no Brasil e Marília Lemos – Em alguns episódios na França sobre psicanálise. Atualmente ele é para a Gestapo dizendo que não havia professor de Psicologia na Universidade Fede- sofrido maus-tratos. Após assiná-lo, ele da vida de Freud, especialmente em ral do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto de Medicina Social na Universidade Estadual do 12 SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 trágico e o cômico na desconstrução pois que é uma forma de desconstru- do poder, em Seria trágico... se não “Se encontramos algo ção, pelas beiradas, do poder insti- fosse cômico (Slavustzky e Kuper- tuído, para que o sujeito reafirme o mann). O humor é ético porque é a cômico, poderemos rir seu desejo e restaure o seu direito de afirmação do desejo frente à pulsão de existir numa comunidade social. Sem morte. O humor permite a inscrição da sozinhos, embora muitas perder a graça! intensidade pulsional no universo das representações, ainda que em situa- vezes o passemos para IHU On-Line – Como compreender a ções-limite. A essência do humor seria contribuição de Lacan, quando refe- poupar afetos penosos. O humor pos- frente. Mas um chiste re que o chiste é da ordem do simbó- sui, segundo Freud, qualquer coisa de lico, o cômico, da ordem do imaginá- grandeza e elevação, que faltam ao não nos permite rir rio e o humor, da ordem do real? chiste e ao cômico: o eu se recusa a Marília Lemos – O chiste é da ordem sofrer as provocações impostas pela sozinhos, é imperioso do simbólico, porque se dá apenas no realidade. Significa a vitória do eu contexto da linguagem. Com a neces- sobre o mundo externo e a vitória do passarmos para a alguém sidade da primeira pessoa, a que conta princípio do prazer, do modo de fun- a piada, a segunda pessoa, de quem se cionamento do processo primário ca- que dê uma gostosa fala, e a terceira pessoa, aquela que ri racterístico do inconsciente. O desejo da piada e que a referenda e autoriza se afirma frente à pulsão de morte e a gargalhada” a transgressão da repressão social, o pulsão traça novos caminhos simbóli- chiste é considerado um modelo para cos, encontra outros objetos de satis- possam ser culturalmente comparti- o inconsciente. A referência de Freud fação. A despeito do triunfo do narci- lhados, sem que isto implique em re- à terceira pessoa coloca em cena um sismo enfatizado por Freud, o humor núncia à satisfação pulsional, mas sim, Outro como um lugar do simbólico, do denuncia o fracasso e a impossibilida- um processo que é movido pelo erotis- código da linguagem com toda sua po- de de realização das ilusões narcísicas mo e pelo desejo. lissemia e ambiguidade, além da pes- do eu, leva a uma desidealização e O humor como desconstrução de soa que a encarna. Uma diferença com desmontagem de certezas, permitin- poder está exemplificado por Birman o cômico está justamente aí, porque do que o desejo abra caminhos. Es- com o famoso humor judaico. O juda- o cômico não necessita desta terceira tamos lidando, na questão do humor, ísmo utilizou-se do humor para a sua pessoa, apenas de duas: a que ri e a não apenas com o triunfo do eu, mas sobrevivência, enquanto cultura mino- de quem se ri. O cômico se realiza na com a afirmação teimosa e rebelde do ritária e enquanto ethos, como forma dimensão especular da relação narci- erotismo e do desejo do sujeito frente de reação criativa ao antissemitismo. sista do eu com a imagem do outro, às adversidades impostas pelo destino, Os judeus não se colocaram numa po- seu semelhante. Há, no cômico, uma pelo acaso e pela morte. O caráter re- sição de vítimas, nem de mortificação tendência ao afastamento da palavra belde do humor se opõe à resignação masoquista, passiva, mas opuseram- da sua propriedade significante e a masoquista do sujeito ante o real e os se ativamente a isto, através de uma aproximação ao puro significado: por imperativos sociais. desmontagem social promovida pelo exemplo, o pastelão na cara. O cômi- A obra Os chistes e sua relação com chiste, propiciadora da circulação do co pode prescindir da linguagem, uma o inconsciente é, segundo Jones, a desejo e abertura de novas vias de dis- vez que se desenvolve no registro da principal contribuição freudiana para curso. Birman diz que Transformar a imagem, valendo-se do inesperado e a estética, entendendo-se por esté- agressão mortífera em chiste e ainda do contraste repentino, como o que tica as condições nas quais a fruição gozar com o que se realiza, pelo riso ocorre numa galeria de espelhos. Se de prazer torna-se possível diante das que provoca, implica, para a tradi- encontramos algo cômico, poderemos produções artísticas e culturais. O ção judaica, não se identificar com o rir sozinhos, embora muitas vezes o humor é estético, pois, criativo, con- agressor e esvaziar em ato, em cena passemos para frente. Mas um chiste torna os interditos e causa prazer da social, o aniquilamento presente no não nos permite rir sozinhos; é impe- ordem sublimatória. Na segunda tó- gesto antissemita. Na virada do sé- rioso passarmos para a alguém que dê pica freudiana, com a formulação do culo XIX para o século XX, quando foi uma gostosa gargalhada. conceito de pulsão de morte, o pro- escrito o livro Os chistes e sua rela- O humor seria uma criação sim- cesso sublimatório é concebido como ção com o inconsciente, uma Áustria bólica repentina, quando, através da uma mudança do objeto de satisfação antissemita foi o palco para a criação surpresa e do inesperado, eclode um num circuito pulsional, como uma sa- da psicanálise. Não é por acaso que a sentido novo. Seria, como diz Kupper- ída criativa do aparato psíquico, pela singularidade da criatividade judaica, mam, o marco zero da criatividade. É criação de novos objetos para a satis- a qual permeia este livro recheado de articulado e depende totalmente da fação erótica do sujeito, que também piadas sobre judeus, contribuiu para a linguagem e do deslizamento de sen- sua constituição. O humor é político, tido da palavra. Completa seu curso Rio de Janeiro (UERJ). (Nota da IHU On-Line) SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 13 dentro de uma única pessoa; não é metade do século XIX e vários autores era do vazio, no qual ele demonstra necessário uma outra para a fruição escreveram sobre ele, antes e depois que vivemos numa “sociedade humo- do prazer humorístico. Mas quando o de Freud. No campo da filosofia, o li- rística” em que um código e um estilo humor é comunicado ou compartilha- vro O riso, de Henri Bergson, publica- humorístico dominam desde a publici- do pelo humorista, sentimos o mesmo do originalmente em 1899 na Révue de dade até a política, da moda às pro- prazer que o seu. A essência do humor Paris, obra de grande bojo teórico, era duções acadêmicas, da arte aos meios é poupar afetos. No humor, a pessoa conhecido por Freud e foi incorpora- de comunicação em massa, em que que é vítima da dor, consegue suprimir do e criticado por ele no seu livro de também as relações interpessoais são este afeto penoso in status nascendi e 1905. Outra foi Komic und Humor, do caracterizadas por um clima irreve- obter um prazer humorístico, o humo- filósofo Theodor Lipps. Mas a origina- rente, nada deve ser pesado ou sério rista consegue rir de si mesmo. De um lidade do livro de Freud e sua contri- ou sólido, cuja orientação é que a vida encontro faltoso com o real, o humo- buição maior foi inscrevê-lo como uma deve ser vivida de modo cool [legal] rista escamoteia o mal-estar e cria um formação psíquica do inconsciente, ou light [leve] ou fun [divertido], des- dito espirituoso. destacando as dimensões do sentido contraidamente, sem conflitos, sem li- e do desejo presentes na produção do tígios, em nome de uma do bem estar IHU On-Line – O risível muda de acor- chiste pelo sujeito e inseri-lo no corpo definido por uma cultura, na qual os do com as culturas e com a época? teórico da psicanálise, que estava, na- alvos almejados são a adaptação e o Nesse sentido, qual é a peculiaridade quele momento, sendo constituído. O sucesso pessoal. Paradoxalmente, vi- do humor de nossos dias? que o discurso freudiano vai enfatizar vemos numa cultura marcada pela de- Marília Lemos – Apesar de o riso humo- na técnica do chiste e do seu efeito pressão, um dos efeitos da descrença rístico ser festivo e universal, sem ida- humorístico são os mesmos mecanis- e da falência dos ideais universais mo- de ou pátria, o risível muda de acordo mos de condensação e deslocamento dernos que tinham possibilitado, até com a cultura e a época. Na Antigui- pelos quais o inconsciente se apresen- meados do século XX, o engajamento dade e no Renascimento, havia a tra- ta, como nos sonhos, atos falhos e sin- dos sujeitos em projetos para o bem dição das festas populares, na qual o tomas. comum. Uma sociedade contemporâ- sagrado era ritualmente profanado no Nos nossos dias, o tempo da mo- nea que parece ter perdido a potência paganismo. Uma estética do grotesco dernidade líquida, segundo Zygmund do riso, evidenciada pelo conformismo se disseminou no realismo alemão, que Bauman, ou da hipermodernidade que se observa no humor cínico e no conjugava o horror e o disforme com a descrita por Gilles Lipovetsky em A pornográfico. Resgatar a rebeldia ca- mordacidade. O conceito de Unheimli- racterística do humor é resgatar as  Zygmunt Bauman: sociólogo polonês, profes- ch (o estranho-familiar em Freud, ou sor emérito nas Universidades de Varsóvia, na dimensões de vida que não podemos o Sinistro) remete historicamente para Polônia e de Leeds, na Inglaterra. Publicamos deixar esmaecer no nosso dia a dia: a esta estética do grotesco. Na Moderni- uma resenha do seu livro Amor Líquido (São graça de viver, a criatividade, o lúdico Paulo: Jorge Zahar Editores, 2004), na 113ª dade, o homem já não mais sabia rir edição da IHU On-Line, de 30-08-2004. Publi- e o bom humor. (Nietzsche), a não ser por uma garga- camos uma entrevista exclusiva com Bauman lhada estridente que funcionava mais na revista IHU On-Line edição 181 de 22-05- 2006, disponível para download em http://bit. como um instrumento de crítica que ly/agTfsn. (Nota da IHU On-Line) confira a edição 105 da revista IHU On-Line, de prazer e descontração.  Gilles Lipovetsky (1944): filósofo francês, edição 105, de 14-06-2004, intitulada Moda. Vale dizer que os temas do riso e do professor de filosofia da Universidade de Gre- Luxo. Uma sociedade cosmética, disponível noble, teórico da hipermodernidade, autor dos para download em http://www.ihuonline.uni- cômico estavam na moda, na segunda livros A Era do Vazio, O luxo eterno, O impé- sinos.br/uploads/edicoes/1158262259.25pdf. rio do efêmero, entre outros. Sobre o tema, pdf. (Nota da IHU On-Line)

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14 SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 O risível através dos tempos O riso passou por diferentes concepções ao longo da história: Platão acentuava que ele desviava as pessoas da Verdade, concepção que chegou até a Idade Média, pondera Vere- na Alberti. No século XIX, Arthur Schopenhauer classificou o riso como veia para alcançar- mos o “impensado”

Por Márcia Junges

ara Arthur Schopenhauer, pelo riso “nos damos conta da incongruência entre a razão e a realida- de. Ver a severa e infatigável razão fracassar na apreensão das infinitas nuanças da realidade é prazeroso para nós e, por isso, rimos”. A reflexão é da historiadora Verena Alberti, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Esse tipo de concepção é uma ruptura, quando o riso se transforma em conceito filosófico e nos leva a “uma dimensão mais abrangente do pensamento”, Pjá que nos faz perceber “todas as incongruências e os não ditos que fazem parte do real, permitindo-nos alcançar o impensado”. Contudo, não foi sempre essa a concepção acerca do riso. Platão afirmava que o riso afastava o homem da Verdade, ideia que atingiu vários pensadores medievais. Verena Alberti é graduada em História, mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ é doutora em literatura pela Universidade Gesamthochschule Siegen, na Alemanha, com a tese La pensee et le rire: etude des theores Du rire et Du risible. É pós-doutora pela Universidade de Londres e pela Universidade de East Anglia, ambas na Inglaterra. Atualmente, leciona na Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro. De sua produção bibliográfica, citamos O riso e o risível na história do pensamento (2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor e Fundação Getúlio Vargas, 2002). Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como o riso e o risível plo, para quem rimos porque nos damos que as une e separa? se apresentam na história do pensa- conta da incongruência entre a razão e a Verena Alberti – Mas não foi sempre mento? realidade. Ver a severa e infatigável ra- assim. Platão via o riso justamente Verena Alberti – No meu livro O riso e o zão fracassar na apreensão das infinitas como aquilo que nos afastava da Ver- risível na história do pensamento, pro- nuanças da realidade, diz Schopenhauer, dade – com “v” maiúsculo –, porque curo mostrar como o riso foi pensado no é prazeroso para nós e, por isso, rimos. seria resultado de um falso prazer. Ocidente, desde Platão até hoje. É cla- Podemos dizer que essa forma de con- Nisso, foi acompanhado por boa parte ro que há diferenças importantes, mas ceber o riso é relativamente recorrente dos textos da teologia medieval, que também continuidades. Uma das princi- desde então; é como se o riso nos levas- afirmavam que o riso nos afastava de pais diferenças verifica-se a partir do sé- se a uma dimensão mais abrangente do Deus. Muitos textos medievais com- culo XIX, quando o riso deixa de ser ape- pensamento, porque consegue compre- provavam essa distância pelo fato de nas objeto do pensamento – algo sobre ender – no sentido de incluir – todas as Jesus Cristo jamais ter rido, apesar o que os filósofos em geral pensavam, incongruências e os não ditos que fazem de ter sido dotado dessa faculdade, tentando definir de que e por que rimos parte do real, permitindo-nos alcançar o própria do homem. Que o riso é algo – para se transformar em conceito filosó- impensado. próprio do homem vem sendo repetido fico – algo que nos ajudaria a entender desde Aristóteles, que, aliás, reserva- o próprio pensamento e as formas de IHU On-Line – Comédia, sátira e hu- va um lugar mais digno para a comédia apreender o mundo. Essa ruptura come- mor são categorias particulares que do que o que Platão lhe consignava. ça em meados do século XIX, com pen- nomeiam algo universal, o riso? O Para Aristóteles, a comédia era a pro- sadores como Schopenhauer, por exem- va do caráter filosófico da poesia, pois influenciado por Schopenhauer, que introdu- construía seus personagens de acordo  Arthur Schopenhauer (1788-1860): filósofo ziu o budismo e a filosofia indiana na meta- alemão. Sua obra principal é O mundo como física alemã. Schopenhauer, entretanto, ficou com o verossímil, ao passo que a tra- vontade e representação, embora o seu livro conhecido por seu pessimismo e entendia o gédia teria como alvo os homens que Parerga e Paraliponema (1815) seja o mais co- budismo como uma confirmação dessa visão. realmente existiram. nhecido. Friedrich Nietzsche foi grandemente (Nota da IHU On-Line) SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 15 Outro viés pelo qual o riso foi pen- sado desde a Antiguidade foi o da re- tórica: Aristóteles, mas principalmen- te Cícero e Quintiliano, entre outros, observaram os recursos que levariam A Idade Média e o riso sob um uma plateia a rir e, com isso, acaba- ram constituindo também teorias do riso. Quintiliano tem, a meu ver, uma prisma moral explicação surpreendentemente mo- derna do riso. Analisando duas frases Considerado demoníaco, o riso no medievo possuía traços ame- idênticas que, de acordo com o con- texto, podem fazer rir ou não, ele de- açadores, perigosos e tentadores, além de satânicos, argumen- duz que a causa do riso no contexto ta o historiador José Rivair Macedo. Renunciar aos prazeres que faz rir “está na apresentação das mundanos era a exortação dada através do argumento de que coisas de uma maneira contrária à ló- gica e à verdade”. Jesus Cristo jamais havia rido

IHU On-Line – O que nos faz rir? Por Márcia Junges Verena Alberti – Muitos pensadores se preocuparam com essa questão: o que faz rir? O objeto do riso é chamado de e acordo com o historiador José Rivair Macedo, “fora da esfera da diferentes formas: o cômico, a piada, Igreja, as manifestações do riso sempre estiveram presentes, nas a sátira etc. Para unificá-los uso, no festas, nos textos cômicos, composições musicais e imagens da meu livro, a categoria “risível”, aquilo cultura laica”. A análise faz parte da entrevista a seguir, concedi- que provoca o riso. Esse objeto do riso também foi se modificando ao longo da por e-mail à IHU On-Line, refletindo o riso na Idade Média. “A da história do pensamento ocidental: Dideia de Cristo jamais riu, defendida por certos pensadores cristãos do início de um defeito anódino (de menor im- da Idade Média, como João Crisóstomo, no século V, e Jonas de Orléans, no portância), passando pelo contraste ou século IX, tinha a finalidade mostrar que a renúncia aos prazeres mundanos pelo caráter moralizador do ridículo (o era uma necessidade”. E complementa: “No período medieval, o fenômeno riso como instrumento de correção), da risibilidade era encarado sob prisma eminentemente moral, de onde sua até a incongruência entre o pensado e condenação”. Já a “modernidade consagrou a liberdade do riso, conferindo- a realidade, ou ainda o próprio trági- lhe legitimidade como forma de expressão das emoções e dos sentimentos co, que alguns filósofos identificaram humanos”. como objeto do riso. José Rivair de Macedo é professor no Instituto de Filosofia e Ciências Hu- A produção do riso no corpo e o fato manas da UFRGS. Graduado em História pela Universidade de Mogi das Cruzes de muitas vezes não poder ser contido (UMC), é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) com ocuparam também alguns pensadores. Um dos mais geniais, a meu ver, foi o mé- a tese Tolosanos, cátaros e faidits: conflitos sociais e resistência armada no dico francês do século XVI Laurent Jou- Languedoc durante a Cruzada Albigense. Obteve pós-doutorado pela Universi- bert, que escreveu um Tratado do riso, dade Nova de Lisboa, Portugal. É autor de diversos livros, entre os quais cita- publicado em 1579. A professora Vera mos Riso, cultura e sociedade na Idade Média (Porto Alegre: EDUFRGS/Ed. da Cecília Machline, da PUC-SP, vem estu- UNESP, 2000) e A Mulher Na Idade Média (5. ed. São Paulo: Contexto, 2002). dando em profundidade as produções de Confira a entrevista. Joubert, incluindo esse seu tratado. Espero poder ter dado uma noção geral de como o riso tem sido trata- IHU On-Line - Poderia contextuali- zar como o riso era compreendido Sciences Sociales (EHESS), foi diretor de pes- do no pensamento ocidental e do lugar quisa no grupo de antropologia histórica do de destaque que ele aí ocupa. Duran- na Idade Média? Ocidente medieval dessa mesma instituição. te muito tempo, pensar o riso era se José Rivair Macedo - Estudos realiza- Entre outras altas distinções, Le Goff recebeu perguntar sobre aquilo que distinguia dos por pesquisadores como Mikhail a medalha de ouro do Centre National de la  Recherche Scientifique (CNRS), pela primeira o homem dos animais e de Deus, que Bakhtin, Georges Minois e Jacques vez atribuída a um historiador. Boa parte de não riam. E esse enigma continua ocu- Le Goff demonstram que, ao contrá- sua obra está ao alcance do leitor brasileiro, como por exemplo, Para um novo conceito pando pensadores até hoje, mesmo  Georges Minois (1946): historiador francês. de Idade Média: tempo, trabalho e cultura que nossos parâmetros já não sejam os (Nota da IHU On-Line) no Ocidente (Lisboa: Estampa, 1980); Merca- mesmos.  Jacques Le Goff (1924): medievalista fran- dores e banqueiros da Idade Média (Lisboa: cês, formado em história e membro da Esco- Gradiva, 1982); e A civilização no Ocidente  Confira nesta edição uma entrevista exclusi- la dos Annales. Presidente, de 1972 a 1977, Medieval (Lisboa: Estampa, 1984). Le Goff va com ela. (Nota da IHU On-Line) da VI Seção da École des Hautes Études en concedeu a entrevista Roma, alimento e pa- 16 SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 rio do que se costuma pensar, a cul- curso oficial cristão incidia na alma a possibilidade de que Cristo pudesse tura cristã latina do período medieval e sua necessária salvação, enquanto ter rido (porque tinha sido humano um não foi atravessada pela ideia da cul- a comicidade e o riso enfatizavam a dia), embora ninguém admitisse que pa, pecado e arrependimento, como materialidade do corpo. Pode-se di- tivesse feito. É o que defende o mes- sugerem os textos dos representantes zer que, contrariando os preceitos tre em teologia Pedro Cantor em seu da cultura clerical, que era majorita- da renúncia, da ascese e da culpa, as tratado moral intitulado Verbum ab- riamente eclesiástica. Fora da esfera manifestações de vitalidade e alegria breviatum, escrito em 1178, onde se da Igreja, as manifestações do riso da cultura popular medieval, sempre pode ler que: “O risível ou a risibili- sempre estiveram presentes, nas fes- aberta à fantasia e evasão, ao prazer dade é uma característica do homem, tas, nos textos cômicos , composições e à festividade, indica-nos que já na- dada pela natureza. Como, então, não musicais e imagens da cultura laica. quele momento o riso era um veículo poderia servir-se dele? Terá, talvez, de expressão da liberdade. podido, mas não se lê que dele se te- IHU On-Line - Normalmente esse nha servido”. período é tido como lúgubre e reli- IHU On-Line - Como podemos giosamente sério. Quais são as ma- compreender a interdição ao IHU On-Line - Hoje, quais são as prin- nifestações do riso dessa época? O riso no medievo com base na cipais diferenças em relação à forma que o riso naquele período ocultava trajetória de Jesus? como o riso era encarado naquele e revelava? José Rivair Macedo - A ideia de Cris- período? José Rivair Macedo - Seria estranho to jamais riu, defendida por certos José Rivair Macedo - A modernidade pensar que a sociedade medieval, pensadores cristãos do início da Idade consagrou a liberdade do riso, con- cujas formas de comunicação e de so- Média, como João Crisóstomo, no sé- ferindo-lhe legitimidade como forma ciabilidade foram marcadas essencial- culo V, e Jonas de Orléans, no século de expressão das emoções e dos sen- mente pelo gesto, pela palavra e pela IX, tinha a finalidade mostrar que a timentos humanos. Na arte e na lite- imagem, não tivesse reservado algum renúncia aos prazeres mundanos era ratura as formas risíveis passam a ser espaço às formas de expressão do ri- uma necessidade, pois segundo tais valorizadas em gêneros específicos, sível. Os estudiosos conhecem bem as escritores o verdadeiro riso só deveria como a comédia na literatura teatral, manifestações populares urbanas dos provir do gaudium, da felicidade eter- a paródia na literatura e a caricatura séculos XIII-XV denominadas “festas na no Paraíso. Na arte religiosa oficial, nas artes visuais. Ao riso está ligada a dos loucos”, onde o riso, a comilança, inscrita na estatuária das catedrais, na liberdade de expressão individual, e a bebedeira e o escárnio tinham livre iluminação dos manuscritos ou na pin- se reconhece nele um instrumento de curso. Origem do carnaval moderno, tura mural dos afrescos, as cenas risí- afirmação social, cultural e mesmo po- as “festas dos loucos” antecediam a veis em geral estão associadas com o lítica – como demonstram os estudos quaresma e a Semana Santa, períodos demônio, que, invariavelmente, mos- de Henri Bergson (O riso: ensaio sobre de contrição e de resignação espiritu- tra-se rindo. A gargalhada, expressão a significação do cômico), Sigmund al, e a liberação do riso e dos excessos do excesso, da desmesura, continuou Freud (Os chistes e sua relação com o constituíam um contraponto ao rigor sempre a ser um gesto com conotação inconsciente), Jean Duvignaud (Socio- moral imposto pelas normas cristãs. demoníaca, como bem lembrava São logia do comediante). No período me- De outro lado, a partir do século XII, Bernardo de Claraval em 1125 no Li- dieval, o fenômeno da risibilidade era integrantes da Igreja envolvidos com a ber de gradibus humilitatis et super- encarado sob prisma eminentemente pregação e com a educação percebe- bia. Daí em diante, passa-se a admitir moral, de onde sua condenação. ram o potencial educativo do riso, uti-  São João Crisóstomo (347 - 407 d. C.): te- lizando a comicidade como um recurso ólogo e escritor cristão, Patriarca de Constan- IHU On-Line - Nesse sentido qual é o “pe- tinopla no fim do século IV e início do século na transmissão de mensagens cristãs. V. Por sua retórica inflamada, ficou conheci- rigo” que há por trás do riso? Por que o Data deste momento o aparecimento do como Crisóstomo (que em grego significa riso assusta tanto o poder? de gêneros textuais destinados à edifi- “boca de ouro”). É considerado santo pelas José Rivair Macedo - Num velho es- Igrejas Ortodoxa e Católica. É um dos quatro cação dos fiéis, como osexempla , con- grandes Padres da Igreja Oriental, e doutor da tudo composto em 1855 a respeito do tos humorísticos curtos que deviam ser Igreja Católica. (Nota da IHU On-Line) significado da caricatura, Charles Bau- inseridos nos sermões. A ideia era va-  Bernardo de Claraval (1090-1153): conheci- delaire reconhecia no riso um caráter do também como São Bernardo, era oriundo de ler-se do riso para execrar os compor- uma família nobre de Fontaine-les-Dijon, per-  Jean Duvignaud (1921-2007): escritor, crí- tamentos condenáveis e ridicularizar to de Dijon, na Borgonha, França. Aos 22 anos tico de teatro, sociólogo, dramaturgo, ensa- os pecadores incorrigíveis. foi estudar teologia no mosteiro de Cister. Em ísta, cenógrafo e antropólogo francês. Fundou 1115 fundou a abadia de Claraval, sendo o seu várias revistas, entre elas a Argumentos, com primeiro abade. Fundou 163 mosteiros em vá- o filósofo Edgar Morin, nos anos 50, e Causa IHU On-Line - Em que medida o riso rios países da Europa. Durante sua vida monás- comum, com o escritor Georges Perec e o filó- funcionava como uma forma de re- tica demonstrava grande fé em Deus serviu à sofo Paul Virilio, nos anos 70. Entre outros, é igreja católica apoiando as autoridades ecle- autor de Sociologia do teatro (1965). (Nota da sistência? siásticas acima das pretensões dos monarcas. IHU On-Line) José Rivair Macedo - A ênfase do dis- Em função disto favoreceu a criação de ordens  Charles-Pierre Baudelaire (1821-1867): po- ralisia da Idade Média à edição 198 da Revis- militares e religiosas. Uma das mais famosas eta e teórico da arte francês. É considerado ta IHU On-Line, de 02-10-2006, disponível em foi a ordem dos cavaleiros templários. (Nota um dos precursores do Simbolismo e reconhe- http://bit.ly/j8rsRb. (Nota da IHU On-Line) da IHU On-Line) cido internacionalmente como o fundador da SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 17 demoníaco, no sentido de que sua ma- nifestação franca representava sempre uma ameaça. O riso rebaixa, denuncia, ridiculariza a seriedade do poder, a grandiloquência dos poderosos, redu- A fisiologia do riso e a “moderação” zindo-os através da caricatura. Con- tém algo de ameaçador, de perigoso, de tentador, de satânico. Nas palavras da alegria de Baudelaire: “O sábio treme por ter rido; o sábio teme o riso assim como Objeto de interesse por pensadores ao longo da história, o teme os espetáculos mundanos, a con- riso recebeu inúmeros rótulos, como verdadeiro e falso, res- cupiscência. Ele se detém à beira do salta Vera Cecília Machline. Gargalhadas desenfreadas eram riso assim como à beira da tentação”. desaconselhadas, uma vez que também a alegria precisava ser IHU On-Line - Em que medida rir é “moderada” uma transgressão política? José Rivair Macedo - O riso carrega consigo certa ambiguidade, que trans- Por Márcia Junges parece inclusive no uso político de for- mas ou expressões cômicas. A política é a mais séria, digna e elevada ativida- esde remotas épocas o riso atraiu a curiosidade dos pensadores. de humana, porque diz respeito à nos- No século XVI, por exemplo, havia a distinção entre o riso “verda- sa essência enquanto seres humanos deiro” e “falso”. Para o médico de Montepllier Laurent Joubert, o (gregários, coletivos). Certos temas, riso “genuíno” era aquele causado sobre coisas ridículas. Por ou- sobretudo aqueles relacionados com as tro lado, o riso considerado “bastardo” teria como origem causas opções de fé, com as minorias étnico- D“mórbidas”, “como ruptura do diafragma, um baço enfermo ou algum dese- raciais e sexuais, por exemplo, não de- quilíbrio humoral; se não, resulta do consumo excessivo de vinho ou açafrão, vem ser objetos de riso porque tal uso ou ainda da ingestão de duas plantas lendárias: gelotophyllis e herba sardo- poderia ofender a liberdade, dignidade nia, a primeira literalmente ‘folhas de riso’”. A explicação é da pesquisadora e integridade das pessoas envolvidas. Vera Cecília Machline, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. É preciso saber sempre discernir a tê- Ela explica que precisou rever a hipótese inicial de sua pesquisa de douto- nue fronteira entre a comicidade e a rado, intitulada François Rabelais e a fisiologia do riso do século XVI: a tera- seriedade, sob pena de transformar o riso numa arma a serviço do proseli- pêutica médico-satírica de Gargântua e Pantagruel. Isso porque uma de suas tismo, do autoritarismo e do racismo. conclusões foi a aversão de vários pensadores quinhentistas a gargalhadas Mas em situações de opressão, rir pode desenfreadas. “Primeiramente, o riso exagerado era contrário aos preceitos vir a ser uma forma de expressão da médicos vigentes na época, que recomendavam moderação inclusive na ale- liberdade de manifestação e, por con- gria. Em segundo lugar, rir desbragadamente afigurava-se característico de seguinte, uma forma de transgressão e camponeses rudes e do zé-povinho e, como tal, impróprio para integrantes de subversão da ordem estabelecida. da nobreza e da burguesia então nascente”. Outros temas analisados por Vera Machline são o uso de uma terapêutica do riso em hospitais, e o conceito tradição moderna em poesia, juntamente com de gelotofobia, ou seja, o medo de ser ridicularizado. Walt Whitman, embora tenha se relacionado Vera Machline é graduada em Letras pela Faculdade Ibero-Americana de Le- com diversas escolas artísticas. Sua obra te- órica também influenciou profundamente as tras e Ciências Humanas, mestre e doutora em Comunicação e Semiótica pela artes plásticas do século XIX. Em 1857 lança As Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, onde também cursou pós- flores do mal, contendo 100 poemas. O livro é doutorado. Atualmente, leciona no Programa de Estudos Pós-Graduados em His- acusado de ultrajar a moral pública. (Nota da IHU On-Line) tória da Ciência, nessa mesma instituição. Confira a entrevista.

Leia Mais... IHU On-Line – Por que o riso se des- tória engraçada ou uma situação in- Confira outras entrevistas concedidas por taca na história do pensamento? congruente, mas também por conta José Rivair Macedo e publicadas na IHU On-Line. Vera Machline – O riso é um assunto de ansiedade ou alívio, surpresa ou • A Idade Média através do cinema. Entrevista publi- cada na IHU On-Line 153, de 29-09-2005, disponível fascinante porque, embora já se te- frustração, raiva ou afeição, timidez em http://bit.ly/iBANpr nha cogitado muito sobre sua nature- ou desejo de esconder pensamentos • O riso no medievo como forma de resistência. En- za, ainda sabemos pouco a respeito. pessoais – sem falar de cócegas e da trevista publicada na IHU On-Line 198, de 02-10- 2006, disponível em http://bit.ly/lsze66 Ademais, rimos pelos mais diversos ingestão de determinadas substân- motivos: não só diante de uma his- cias tóxicas.

18 SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 Aliás, conforme apurei durante “Ao ler escritos do V uma definição do risível. Mas, por meus estudos de doutoramento, trata- ser reticente e por dizer respeito à Co- dos sobre a arte da oratória de Cícero século XVI sobre o riso, média Antiga ateniense, sua compre- (106-43 a.E.C.) e Quintiliano (c. 25-c. ensão provou-se difícil. Mesmo assim, 96) revelam que os antigos romanos já surpreendeu-me a instigou vários tradutores da Poética a sabiam serem múltiplas as causas do tentarem reconstruir a teoria aristoté- riso. Adicionalmente, em virtude da distinção de alguns lica do móvel do riso. Como seria de preocupação dos latinos com o deco- se esperar, as propostas dificilmente ro a ser observado no uso do riso na autores entre riso coincidiram, haja vista que, na versão retórica, os romanos tinham mais de de Eudoro de Souza, a Poética aris- uma dúzia de termos para distinguir ‘verdadeiro’ e ‘falso’” totélica define o risível como “ape- diferentes tipos de gracejos, como, nas certo defeito, torpeza anódina e por exemplo, facetiae, sal, urbanitas, inocente; que bem o demonstra, por iocus, hilaritas, ludo e acutum. enfoca a intenção advogada por Rabe- exemplo, a máscara cômica, que, sen- lais de “dar por escrito um pouco de do feia e disforme, não tem [expres- IHU On-Line – Quais são as diferenças alívio” a “aflitos e enfermos”, assim são de] dor.” entre sátira, comédia e humor? como a pessoas passando por abor- Ao ler escritos do século XVI sobre Vera Machline – No meu entender, a recimentos ligeiros, como alguém da o riso, surpreendeu-me a distinção vertente satírica cultivada pelos an- nobreza que perdeu uma caça. Outros- de alguns autores entre riso “ver- tigos romanos ainda é um corretivo sim, sustenta a possibilidade de Rabe- dadeiro” e “falso”. Por exemplo, social; ou seja, um instrumento para lais também pretender revigorar com segundo o médico de Montpellier censurar atitudes e comportamentos suas brincadeiras satíricas a sociedade Laurent Joubert (1529-1582), riso indesejáveis. A rigor um gênero tea- de seu tempo. “genuíno” é aquele que provém da tral, comédia hoje se aplica até nas Cumpre esclarecer ainda que, apreensão de alguma coisa ridícula. surpresas que a vida nos traz. Já hu- como resultado da orientação escolhi- Já o riso “bastardo” advém de sor- mor, que no século XVIII designava o da, em vez de ser um estudo literário, tidas causas, em sua maioria mórbi- gracejo típico dos ingleses, aos poucos essa tese se pautou nas diretrizes me- das, como ruptura do diafragma, um ampliou sua gama denotativa, ao pon- todológicas mais recentes da História baço enfermo ou algum desequilíbrio to de agora significar qualquer estímu- da Ciência. Isto, entre outras conse- humoral; se não, resulta do consu- lo cognitivo capaz de despertar diver- quências, me levou a buscar entender mo excessivo de vinho ou açafrão, timento ou graça. Em outras palavras, como o riso era considerado na época ou ainda da ingestão de duas plan- à semelhança de um prodigioso guar- de Rabelais e a levantar fontes qui- tas lendárias: gelotophyllis e herba da-chuva, humor atualmente abarca nhentistas tratando do riso, uma vez sardonia. Literalmente “folhas de toda sorte de modalidades sério-cô- que as crônicas de Rabelais adiantam riso”, a primeira seria um termo de micas, jocosas e derrisórias atinentes muito pouco sobre o assunto. origem grega para o gênero Canna- aos mais variados gêneros retóricos, Ao fim, cheguei a diversas conclu- bis, enquanto que a segunda parece dramáticos, literários, gráficos e até sões, algumas inesperadas. Dentre ou- dizer respeito à espécie Ranunculus musicais. tras, destaca-se o fato de que o riso sceleratus Linnaeus. atraiu a curiosidade de vários pensa- IHU On-Line – Quais as principais dores renascentistas. Um motivo foi o Riso terapêutico conclusões de sua tese de doutora- postulado “o riso é o próprio do ho- do “François Rabelais e a fisiologia mem”. Citado em Gargântua e Panta- Falando de antigas lendas em voga do riso do século XVI: a terapêutica gruel, esse axioma deriva da Isagoge no Renascimento, foi uma delas que  médico-satírica de Gargântua e Pan- de Porfírio (c. 234-c. 305) às cate- me permitiu confirmar as intenções tagruel”? gorias lógicas de Aristóteles (384-322 satíricas de Rabelais em Gargântua e Vera Machline – Para começar, essa a.E.C.). Outro fator parece ter sido a Pantagruel. Trata-se da fabulosa his- tese – defendida em 1996 junto do então recente “redescoberta” da Poé- tória que associa grande sabedoria ao Programa de Estudos Pós-Graduados tica aristotélica, que traz no Capítulo riso sistemático – mesmo diante infor- em Comunicação e Semiótica, da PUC-  Porfírio (c.232-c.304): filósofo neoplatôni- túnios – do pré-socrático Demócrito de SP – versa sobre as divertidas crônicas, co e um dos mais importantes discípulos de Abdera (c. 460-c. 370 a.E.C.), hoje Plotino, responsável por organizar e publicar hoje reunidas sob o título Gargântua 54 tratados do mestre na obra As Enéadas,  Eudoro de Sousa (1911-1987) foi um filó- e Pantagruel, que imortalizaram o composta por seis livros. Escreveu ainda uma sofo e professor universitário luso-brasileiro, médico humanista François Rabelais biografia de Plotino A( Vida de Plotino) e co- um dos fundadores da Universidade de Brasília mentários às obras de Platão e Aristóteles. Seu (UnB) e um dos primeiros professores da Fa- (c. 1494-1533). Mais precisamente, livro Introductio in Praedicamenta foi tradu- culdade Catarinense de Filosofia hoje parte zido para o latim por Boécio e transformou-se integrante da Universidade Federal de Santa  François Rabelais Chinon (1494-1553): escri- num texto padrão nas escolas e universidades Catarina (UFSC). (Nota da IHU On-Line) tor, padre e médico francês do Renascimento, medievais, possibilitando desenvolvimentos na  Demócrito de Abdera (480 a. C. - 380 a. C.): que usou, também, o pseudônimo Alcofribas filosofia, teologia e lógica durante a Idade Mé- filósofo grego sucessor de Leucipo de Mileto. Nasier. (Nota da IHU On-Line) dia. (Nota da IHU On-Line) Sua fama decorre do fato de ter sido o maior SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 19 melhor lembrado por ter dado conti- “Desde as últimas duas afetar o organismo. Alegria e prazer, nuidade ao atomismo de seu mestre por exemplo, dilatariam o coração e Leucipo (fl. c. 430), doutrina essa décadas do século aqueceriam o corpo. Inversamente, que posteriormente retomada por Epi- tristeza ocasionaria – tal como ainda curo (341-270 a.E.C.). A história em passado, a visita de se diz – “coração apertado” e “frio questão é narrada num conjunto de 12 na barriga”. cartas anônimas, escritas entre os sé- palhaços a internados em À luz dos preceitos da Isagoge Jo- culos I a.E.C. e II E.C., sugerindo que o annitti, portanto, o riso assomava riso de Demócrito era terapêutico por hospitais vem se uma modalidade de “não natural”. apontar falhas e encaminhar as pesso- Mais precisamente, era considerado as em direção à virtude. tornando uma prática um movimento suscitado por duas ou Uma conclusão que me obrigou mais emoções contrárias ou parecidas. a rever minha hipótese inicial foi a cada vez mais Para Laurent Joubert, o riso genuíno aversão de diversos pensadores qui- seria um misto de tristeza e alegria, nhentistas a gargalhadas desenfre- recorrente, não só no resultante da apreensão de algo “feio adas. Com efeito, diferentemente e impróprio, mas desmerecendo com- do sustentado por Mikhail Bakhtin exterior como também paixão.” Já no entender do médico (1895-1975) em A Cultura Popular Girolamo Fracastoro (c. 1478-1553), na Idade Média e no Renascimento: aqui no Brasil” o riso verdadeiro proviria de alegria O Contexto de François Rabelais, o e admiração ou surpresa. E, segundo riso acumulava mais de uma ressalva o médico Girolamo Mercuriale (1530- envelhecer mais cedo.” entre os intelectuais do século XVI. 1606), rir era um “exercício vocorres- Primeiramente, o riso exagerado era piratório”. IHU On-Line – Em comparação a hoje, contrário aos preceitos médicos vi- quais são as principais diferenças em gentes na época, que recomendavam IHU On-Line – Como se explica o va- relação à forma como o riso era con- moderação inclusive na alegria. Em lor terapêutico do riso na medicina siderado no século de Rabelais e Jou- segundo lugar, rir desbragadamente atual? bert? afigurava-se característico de cam- Vera Machline – Desde as últimas duas Vera Machline – Atualmente, define- poneses rudes e do zé-povinho e, décadas do século passado, a visi- se o riso como uma expressão psico- como tal, impróprio para integran- ta de palhaços a internados em hos- motora de alegria, prazer ou outros tes da nobreza e da burguesia então pitais vem se tornando uma prática sentimentos nem sempre afins, que nascente. Como explica Joubert em cada vez mais recorrente, não só no se manifesta mediante a contração de seu Traité du ris, quando o riso “é exterior como também aqui no Brasil. músculos faciais, peitorais e abdomi- dissoluto ou de longa duração, a gar- A explicação para isso, na mídia espe- nais, além de expirações curtas mais ganta se abre ao máximo, enquanto cializada, não raramente se resume ou menos ruidosas e um ligeiro aumen- os lábios são repuxados para trás em ao chavão “Rir é o melhor remédio”. to dos batimentos cardíacos. extremo [...] E, por isso, tornam-se Nada mais simplista – e equivocado! É Para se compreender como o riso feios, impróprios e lascivos.” Ainda verdade que o riso assoma um exer- era considerado no Quinhentos, é segundo Jourbert, posto o riso ex- cício aeróbico moderado, dado ativar necessário mencionar aqui o abecê cessivo provocar o surgimento de ru- a respiração e a circulação sanguínea, de medicina teórica, datando do sé- gas na face e em volta dos olhos, “as além de liberar endomorfinas. Ocorre culo XI ou XII, conhecido como Isa- jovens são advertidas de evitar rir que tais palhaços (sejam eles atores goge Joannitti. Esta “Iniciação” ou totalmente e avisadas de que podem profissionais ou voluntários amadores) “Interpretação de Joannitius” foi expoente da teoria atômica ou do atomismo. estão longe de pretenderem levar às De acordo com essa teoria, tudo o que existe é responsável pela longeva doutrina gargalhadas pessoas hospitalizadas. composto por elementos indivisíveis chamados higiênica, isto é, preventiva – ain- átomos. (Nota IHU On-Line) No máximo, almejam brincar com elas da em vigor na primeira metade do  Leucipo de Mileto: filósofo grego. Tradicio- e distraí-las, ainda que por uns pou- nalmente, Leucipo é considerado o mestre de século XIX – dos seis conjuntos de cos instantes, da dolorida rotina hos- Demócrito de Abdera e, talvez, o verdadeiro agentes “não naturais” que, apesar criador do atomismo (segundo a tese de Aris- pitalar. Ademais, como visto acima, de exógenos, influíam na saúde. São tóteles), que relatava que uma matéria pode nem toda risada é salutar. Com efei- ser dividida ate chegar em uma pequena par- eles: ares e lugares, movimento e to, inaugurados em fins da década de ticula indivisivel chamada átomo. (Nota IHU repouso, comida e bebida, sono e On-Line) 1960 pelo psiquiatra norte-americano vigília, evacuação e repleção, e as  Epicuro de Samos: filósofo grego do perí- William F. Fry, os estudos acerca dos odo helenístico. Seu pensamento foi muito “paixões da alma”. As últimas, tam- benefícios do riso geralmente dizem difundido e numerosos centros epicuristas se bém chamadas “afetos da mente” e desenvolveram na Jônia, no Egito e, a partir respeito à modalidade suscitada por do século I, em Roma, onde Lucrécio foi seu hoje denominadas emoções, eram maior divulgador. (Nota da IHU On-Line). reputadas reações passivas a acon-  Girolamo Fracastoro (1478-1553): médico,  Joseph Joubert (1754-1824): escritor en- tecimentos externos, capazes de matemático, geógrafo e poeta italiano. (Nota saista francês. (Nota IHU On-Line) da IHU On-Line) 20 SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 alegria, júbilo ou contentamento. Diante dos dados históricos aqui mencionados (e outros mais omitidos por limitações espaciais), não deixa de ser interessante que o riso, parti- O riso e suas interdições na sociedade cularmente aquele atrelado à alegria, voltou a ser valorizado com o advento (ou melhor, a reinvenção) da medicina O riso é produto de uma cultura e resulta da complexidade do psicossomática. Por outro lado, até a social, afirma Maria Generosa Ferreira Souto, professora do alegria, da linha de frente de um arse- Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadu- nal terapêutico muito antigo, passou a mero acessório paramédico, a cargo de al de Montes Claros grupos de humanização.

Por Márcia Junges e Patricia Fachin IHU On-Line – O humor e o riso têm um caráter rebelde? Vera Machline – Nem sempre. Comungo riso liberta o ser de tudo que oprime, do medo da limi- com outros especialistas o fato de o hu- tação e do limitador”, mas nem sempre o ato de rir ou mor e o riso também poderem ser usa- dos para reforçar estereótipos, como a sorrir teve esta conotação. Na Idade Média, o riso tinha “loura burra”. Não faltam exemplos de um caráter negativo e foi excluído dos ritos oficiais. lugares-comuns repisando preconcei- Segundo a pesquisadora, “o riso era excludente, era tos nos meios de comunicação... “Ointerditado, pois visava somente à seriedade”. Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, Maria Generosa IHU On-Line – O que vem a ser gelo- comenta como o riso foi compreendido ao longo da história da humanidade e tofobia? enfatiza que o “ato de rir está condicionado a diversos significados determinados Vera Machline – Malgrado suas ra- pelos códigos de comunicação aceitos coletivamente, pelas convenções parti- ízes gregas, gelotofobia é uma pa- lhadas”. Ainda hoje, diz, o riso sofre interdições em locais de trabalho e na sala lavra recente que designa o medo de aula, onde “rir alto, e gargalhado, é proibido, é falta de educação, é falta de de sermos ridicularizados – cumpre princípios, é escandaloso, é vulgar”. acrescentar – independentemente Maria Generosa Ferreira Souto é mestre em Letras, na área de Literatura Bra- de o riso ser amigável ou beirando o vitupério. Meu envolvimento com sileira, e doutora em Comunicação e Semiótica. Confira a entrevista. o assunto deu-se em 2009, quando aceitei participar de uma pesquisa internacional, liderada pelos dou- IHU On-Line – Quais são as princi- falta de educação, é falta de princí- tores René T. Proyer e Willibald pais interdições que o riso sofreu pios, é escandaloso, é vulgar. Há pro- Ruch, visando reunir dados como na sociedade? fessores que indagam a seus alunos sexo, idade, estado civil e grau de Maria Generosa Ferreira Souto – As a famosa frase: “Está rindo de quê? gelotofobia. Com a ajuda de minha principais interdições do riso parti- Parece um bobo, um palhaço”. Com ex-orientanda Yara Kassab, foi fei- ram do princípio de que rir em praça isso, ocorre a discriminação, pois o to um levantamento junto de mais pública ou em ritos oficiais da Igre- aluno é tolhido de sua manifestação, de 200 moradores da cidade de São ja era proibido. O riso foi excluído e de sua linguagem risível. Paulo. Ao terminarmos de tabular os controlado. dados numa panilha Excel, consta- IHU On-Line – Quais são as maiores tei que quem tem menos propensão IHU On-Line – Ainda hoje existem diferenças entre o riso medieval e à gelotofobia são os mais vividos, interdições ao riso? Quais são elas? o do Renascimento? ou seja, pessoas da assim chamada Maria Generosa Ferreira Souto Maria Generosa Ferreira Souto – Na terceira idade. Concluindo, o riso – Sim. Ainda hoje há interdições do Idade Média, o riso era excludente, é como uma “faca de dois gumes”: riso, uma vez que o poder e a auto- era interditado, pois visava-se so- pode ser subversivo ou conservador, ridade, por exemplo, jamais impreg- mente à seriedade. Passa a se referir e benéfico ou prejudicial à saúde. nam a linguagem do riso. O riso li- a caráter negativo. O riso passa a ser Da mesma forma, quando cordial, berta o ser de tudo que oprime, do restrito e específico, sendo expurga- aproxima as pessoas; mas se escar- medo da limitação e do limitador. do. Foi, portanto, necessário excluí- necedor, prontamente divide-as em Algumas das interdições, hoje, de- lo dos ritos oficiais. Ocorreu a neces- vítimas e algozes. marcam locais de trabalho em que sidade de legalizá-lo e mantê-lo sob rir alto, e gargalhado, é proibido, é controle. Quem ri em praça pública

SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 21 é prostituta ou bruxa. Portanto, rir era a renúncia aos prazeres terrenos e proibido. Deixa de ter um caráter jo- “Observei que o homem corporais, valorizava a continência e o coso e alegre. Na Idade Média o riso rigor moral como condições para a pu- não era sensação subjetiva, individu- ri, é verdade, todavia rificação da alma, na preparação para al, e, sim, sensação social, universal. o reencontro com Deus. É o riso da festa popular, que manifes- não pelos mesmos ta a vitória sobre o terror que é ins- IHU On-Line – Como podemos com- pirado pelo inferno e pelo céu, pelas motivos e preender a conexão entre o riso, a coisas sagradas e pela morte. E tam- transgressão e a carnavalização? bém sobre o temor inspirado por todas circunstâncias” Maria Generosa Ferreira Souto – Po- as formas de poder, pelos soberanos e demos estabelecer um imbricamento a aristocracia social terrestre, tudo o to, o esperado, o justo. entre riso, transgressão e carnavali- que oprime e limita. É fato que na so- zação, porém, é necessário mostrar o ciedade da Idade Média havia uma di- IHU On-Line – Em linhas gerais, qual significado de cada signo na humani- visão bastante acentuada entre o sério é a concepção do riso em Mikhail dade. Bakthin dizia que o verdadeiro e o cômico. Pode-se dizer que as au- Bakhtin, Vladimir Propp, José Rivair riso não recusa o sério, ao contrário, toridades, os religiosos e os senhores Macedo e Bergson? purifica-o e completa-o: “O riso impe- feudais defendiam a seriedade como Maria Generosa Ferreira Souto – Mi- de que o sério se fixe e isole da inte- atributo da cultura oficial. O cômico, khail Bakhtin: Por meio do riso e da gridade inacabada da existência coti- por sua vez, opunha-se à cultura ofi- visão carnavalesca do mundo, a se- diana” (BAKTHIN, 1996, p. 105). Logo, cial e este valor subversivo o transfor- riedade é destruída e a consciência, o intuito do cômico, da transgressão, mou em uma característica essencial o pensamento e a imaginação huma- na literatura, por exemplo, é de ins- da cultura popular. na ficam disponíveis para o desenvol- truir e capacitar o leitor para perceber Já no Renascimento, o riso adquire vimento de novas possibilidades: por a falsidade e os defeitos do homem, um profundo valor de concepção de isso, que uma certa carnavalização da funcionando como um instrumento mundo. Através do riso exprimia-se consciência precede e prepara sempre de combate contra o autoritarismo, a uma verdade a respeito do homem, as grandes transformações, mesmo no intolerância e a falsa moral da socie- da história, dos problemas universais domínio científico. dade. O riso significava libertação dos que afligiam a humanidade. Com isso, Deste modo, postula Bakhtin, que padrões sérios e oficiais. A liberdade o riso perdeu seu elo essencial com a se pode dizer que o riso é uma das do riso, para Bakhtin, era evidente- concepção de mundo, reduz-se ao do- principais formas pelas quais se expri- mente relativa, já que seu domínio se mínio do particular e do típico. Perde, me a verdade sobre o mundo, sobre a alargava ou diminuía, mas jamais foi portanto, seu colorido histórico. história, sobre o homem, assumindo interdita novamente. “um profundo valor de concepção do Já a carnavalização���������������, para Bakhtin, IHU On-Line – Quais são as peculiari- mundo”. caracteriza-se como a celebração do dades do risível hoje? Henri Bergson: O papel do riso é so- riso, do cômico. Nesse sentido, a paró- Maria Generosa Ferreira Souto – É cial, ou seja, o riso é produto dos cos- dia é o elemento que mais se aproxima risível aquilo que está fora do indiví- tumes e das ideias de uma sociedade, da carnavalização, visto que subverte duo, aquilo que ele observa nas outras por isso se nós não estivermos dentro a ordem pré-estabelecida, pelo debo- pessoas ou naquilo que o rodeia. Berg- do contexto, aquilo que é risível para che, pela sátira da realidade. Quer di- son trata o risível como algo que está alguém não será para mim. Bergson zer, a carnavalização está relacionada fora do indivíduo que observa o fato tirou do riso moderno a ambivalência ao “aspecto festivo do mundo inteiro, ou a ação. O riso seria uma manifes- encontrada nas figuras carnavalescas em todos os seus níveis, uma espé- tação relacionada a algo que está fora e grotescas, tais como a bruxa velha cie de segunda revelação do mundo da pessoa. O riso se modifica após o prenhe, representando morte e vida através do jogo e do riso” (BAKHTIN, Renascimento, até a contemporanei- ao mesmo tempo. 1999, p. 73). O carnaval na concepção dade, tomando a forma de humor, de Para José Rivair Macedo, o riso de Bakhtin é o locus privilegiado da in- ironia, de sarcasmo. Em nenhum mo- era, para a sociedade medieval, um versão, onde os marginalizados apro- mento há citação ou referência ao “rir bom remédio contra a opressão e um priam-se do centro simbólico e fazem de si mesmo”. É possível pensar em rir veículo de expressão de liberdade. Se- explodir a alteridade, o excêntrico, o de si mesmo, mas se houver um dis- gundo Macedo, o riso, a comicidade e lado marginal, o periférico, o exclu- tanciamento do indivíduo e um trata- a diversão foram mantidos sob suspei- dente mesmo. Representa, portanto, mento de si mesmo como um “outro”. tas nos textos de teólogos e moralis- a liberdade, o extravasamento de um O indivíduo poderá rir de si mesmo se tas, uma vez que se exigia seriedade. mundo às avessas. Opõe-se ao sério, houver uma comparação com o outro, Ao enfatizar as glórias da vida eterna, ao medo, ao dogmático, diluindo, no ou com um comportamento que deve- a ética cristã medieval, incentivando conjunto, os ritos, os mitos, as más- ria ser o correto, o adequado, o acei-  Confira nesta edição uma entrevista inédita caras. É a oposição de valores por um com o pesquisador. (Nota da IHU On-Line) 22 SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 curto período. É a festa popular. Onde zombeteiro, Riso gargalhado, Riso de significativo, Riso sem-vergonha. tudo é possível e aceitável. deleite, Riso de prazer, Riso de bruxa- A partir desta morfologia, depreen- ria, Riso de loucura, Riso de dor, Riso di que o riso é produto de uma dada IHU On-Line – Por que rir e sorrir são amargo, Riso triste, Riso trágico, Riso cultura, resultando da complexidade atos diferentes? irônico, Riso hipócrita, Riso disfarçado, do social. Observei que o homem ri, Maria Generosa Ferreira Souto – Rir é Riso sarcástico, Riso sardônico, Riso é verdade, todavia não pelos mesmos a linguagem de um ato de deboche. É soberbo, Riso despudorado, Riso bas- motivos e circunstâncias. Conforme uma manifestação de alegria ou mes- tardo, Riso genuíno, Riso alegre, Riso Sodré (1974), nem tudo é motivo de mo de zombaria, porém, de forma ex- de saudação, Riso de desprezo, Riso riso para todos os homens e, por isso, travagante e cômica. É abalar o sério de humor, Riso terapêutico, Riso cômi- faz-se necessário reconhecer condicio- e o oficial. É a (des)medida. co, Riso virtual, Riso caricatural, Riso namentos socioculturais em diferentes Sorrir é a linguagem que envolve um cultural, Riso caipira, Riso subversivo, grupos humanos ligados à expressão de estado de espírito. É sinônimo de felici- Riso romântico, Riso malicioso, Riso formas de poder e de crítica social. dade, de plenitude, de agradecimento, insinuante, Riso erótico, Riso sensual, Bergson ressalta, portanto, que o de racionalização. Sorrir é um gesto sua- Riso perverso, Riso de deboche, Riso riso é um ato fisiológico, resultante da ve de contentamento, de respeito. indignado, Riso sereno, Riso burlesco, contração dos músculos faciais de acor- Riso ambíguo, Riso doce, Riso mímico, do com a oscilação de emoções ou de IHU On-Line – Poderia enumerar os Riso amarelo, Riso escandaloso, Riso abruptas modificações no estado de es- tipos de riso que existem? O que essa espetaculoso, Riso tolo, Riso cordial, pírito dos indivíduos, sendo, portanto, amplitude de tipos de riso demonstra Riso indulgente, Riso tímido, Riso amá- um ato social. sobre o risível? vel, Riso amigável, Riso hostil, Riso sin- É válido ressaltar que o ato de rir Maria Generosa Ferreira Souto – Le- cero, Riso terno, Riso triunfante, Riso está condicionado a diversos significa- varei em conta os vários tipos de Riso, justificativo, Riso infantil, Riso emba- dos determinados pelos códigos de co- deixando vazios para que se faça, pos- raçado, Riso festivo, Riso grosseiro, municação aceitos coletivamente, pelas teriormente, estudos pertinentes acer- Riso popular, Riso grotesco, Riso car- convenções partilhadas. Logo, o homem ca de cada tipo mencionado e em que navalesco, Riso gratuito, Riso infernal, não é apenas “um animal que ri”, mas circunstâncias são manifestados: Riso Riso excêntrico, Riso inteligente, Riso também um “animal que se faz rir”.

ObservaSinos - Oficina sobre os dados censitários 2010

da Região do Vale do Sinos

Ministrantes: Prof. Ademir Barbosa Koncher,

do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

Data: 24/8/2011

Horário: das 14h à 17h

Informações em www.ihu.unisinos.br

SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 23 As raízes do riso e a ética emocional brasileira Experiência humana diversificada, o riso popular permitiu o surgimento do humor como arma política contra a repressão, criando produções ambíguas, não inocentes e espécie de “espelho da sociedade, embora distorcido”, frisa o historiador Elias Thomé Saliba

Por Márcia Junges

e acordo com o historiador Elias Thomé Saliba, o riso brasileiro nasceu “para compensar um dé- ficit emocional em relação aos sentidos da história brasileira; ela misturou-se à vida cotidiana, daí a sua constante remissão à ética individual. Entre a dimensão formal e pública e o universo tácito da convivência personalista construiu-se uma fragmentada representação cômica do país, dando ao brasileiro, naqueles efêmeros momentos de riso, a sensação de pertencimento que a Desfera política lhe subtraíra”. Assim, as raízes do riso em nosso país estão ligadas a essa “ética emocional”. A criação da linguagem humorística por aqui deve ser compreendida a partir da “abertura proporcionada pela imprensa moderna, juntamente com uma crise de valores culturais, no plano mundial – e, no caso bra- sileiro, as expectativas geradas pelo advento da República”. Saliba acentua que “a produção humorística é um espelho no qual as sociedades podem mirar-se – mesmo quando as piadas sejam vistas como ‘ruins’ ou de ‘mau gosto’”. E completa: “Tudo indica que pelo humor, o brasileiro apropriava-se, por momentos, do espaço público, que lhe era negado pelo poder republicano nas suas mais variadas e perversas formas de exclusão social”. Es- pécie de arma política contra o poder repressivo, o riso entre os brasileiros adentra até os territórios santos: Thereza de Lisieux aqui é chamada de Santa Terezinha. “Usamos de diminutivos para quebrar hierarquias e tornar tudo próximo, porque temos horror das distâncias sociais, que são enormes. Não conseguimos ver o mundo sem emoção, distinguir o público do privado. Vem das nossas raízes ibéricas. O brasileiro não resiste muito à seriedade”. As declarações foram feitas por e-mail à IHU On-Line. Elias Thomé Saliba é professor titular de Teoria da História na USP, historiador especializado em História Cultural, com foco na história do humor e das formas cômicas. Entre suas publicações mais importantes es- tão os livros Raízes do riso (3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2008) e As Utopias Românticas (2. ed. São Paulo: Estação Liberdade,2004); organizou as coletâneas, História e Música no Brasil (São Paulo: Alame- da, 2010) e História e Cinema; dimensões históricas do audiovisual (São Paulo: Alameda, 2008); escreveu ainda os capítulos “A dimensão cômica da vida privada na República”, que integra o vol. 3 da História da Vida Privada no Brasil (12. ed., Cia. das Letras, 2010) e “Histórias, memórias, tramas e dramas da identidade paulistana”, que integra o vol. 3 da História da Cidade de São Paulo (São Paulo: Paz e Terra, 2006). Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são as raízes do riso o poder. Aliás, esta é a grande questão cos – tudo isto se acentuou na Belle na representação humorística do dile- do livro: por que representar o país, Époque brasileira, após a Abolição e ma brasileiro? O que é esse dilema? os brasileiros, a sociedade e a história a República, que prometeram muito Elias Thomé Saliba – Foi exatamente na forma efêmera e passageira de uma e, na realidade, realizaram pouco ou esta a questão que me formulei du- piada? quase nada. rante todo o tempo da pesquisa, que Uma resposta já se mostrava no Em muitos casos, o riso brasileiro durou mais de cinco anos e originou o quadro geral da história do país: por- nasceu assim, como que para compen- livro Raízes do riso. No livro procuro que que a história brasileira não cria e sar um déficit emocional em relação mostrar que o humor não produz iden- não criou nenhuma identidade autên- aos sentidos da história brasileira; ela tidade, pelo contrário, ele questiona, tica e duradoura, ela apenas ajudou misturou-se à vida cotidiana, daí a sua pela sátira, as falsas identidades, que a segregar, a isolar a maior parte da constante remissão à ética individual. sempre estiveram comprometidas com população – não criou espaços públi- Entre a dimensão formal e pública e o 24 SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 universo tácito da convivência perso- cido como Belle Époque (cobrindo as as sociedades podem mirar-se, mesmo nalista construiu-se uma fragmentada duas décadas finais do século XIX até quando as piadas sejam vistas como representação cômica do país, dando o fim da I Guerra Mundial, em 1918). “ruins” ou de “mau gosto”. ao brasileiro, naqueles efêmeros mo- Daí meu esforço por tentar entender Outra das teses centrais do livro é mentos de riso, a sensação de perten- como nasceu a linguagem humorística que quando o rádio brasileiro, nos seus cimento que a esfera política lhe sub- brasileira. A Belle Époque foi a época primeiros tempos, precisa de uma lin- traíra. O livro todo é sobre isto e seu que viu nascer o jornalismo moderno. guagem rápida, concisa, feita daque- título foi colocado de propósito. Foi neste período que, no Brasil, sur- las palavras “portáteis à memória” na Com uma inspiração oblíqua no giram as revistas semanais ilustradas, expressão de Bastos Tigre (humorista clássico Raízes do Brasil, de Sérgio Bu- que continham seções fixas de humor do começo do século XX, criador de arque de Hollanda, Raízes do riso su- e de caricaturas e, ainda, de publici- lemas famosos, como “Se é Bayer é gere, numa interpretação mais liber- dade. Este último aspecto também foi bom”) – ele vai encontrá-la na produ- tária da obra desse autor, que as raízes importante porque a grande maioria ção humorística. Agora, não se pense históricas devem ser bem conhecidas dos humoristas brasileiros criou anún- que é uma linguagem “culta”. Pelo para serem melhor extirpadas, já que cios publicitários. Em termos mun- contrário, é uma linguagem que sur- a representação humorística do mun- diais, a Belle Époque foi uma espécie ge da mistura das duas culturas: uma do, implícita na cultura brasileira, é de resumo do que seria o século XX, mais culta e a outra mais “popular”. É uma invenção histórica e, tal como a com todas as benesses da Revolução por isto que chamei a linguagem hu- vida, ela pode ser modificada, rein- Tecnológica mas também com todas as morística brasileira quase da mesma ventada, transformada. tristes perversidades, anunciadas pela forma que Mário de Andrade chamou Mas, não é um retorno puro e sim- guerra de 1914. a autêntica música brasileira: o “ruim ples ao “homem cordial” que está em A abertura proporcionada pela gostoso”. Raízes do Brasil. Nunca é demais lem- imprensa moderna, juntamente com Mas, afinal, por que tanta produção brar que Sérgio Buarque de Hollanda uma crise de valores culturais, no humorística? O livro sugere a existên- sempre ressaltou que ele utilizava a plano mundial, e, no caso brasileiro, cia, no Brasil, de uma espécie de cultu- metáfora do cordial no seu verdadeiro as expectativas geradas pelo adven- ra tácita, silenciosa – embora hipócrita sentido, ou seja, relacionado ao cora- to da República é que possibilitaram – de ampla aceitação daquela música ção – a sede dos sentimentos, e não a criação de uma peculiar linguagem ritmada e daquele humorismo imperti- apenas dos bons sentimentos –, ora as humorística brasileira. Esta linguagem nente, talvez porque tais elementos já raízes do riso brasileiro estão relacio- múltipla, variada, concisa e eclética faziam parte da vida cotidiana de cada nadas a esta ética emocional. – porque misturava música, anúncios um. Ninguém admitia publicamente publicitários, dança e marchinhas de gostar do samba ritmado, herdado do IHU On-Line – Quais são as maiores carnaval, cantadas no teatro de revis- “maxixe desavergonhado”, das piadas diferenças entre o humor da Belle ta – transfere-se, com poucas adap- de caipiras ou das anedotas obscenas. Époque brasileira àquela dos primei- tações, para o rádio, nas décadas de Mas dificilmente resistia à sedução de ros tempos do rádio? 1930/1940. O humorista brasileiro tí- tamborilar com os dedos, chacoalhar Elias Thomé Saliba – As coisas não de- pico era alguém que já tinha um pé na os pés ou ouvir e difundir, ao pé do vem ser colocadas apenas sob a forma cultura verbal mais culta e um outro ouvido, “a última piada”. Parece que de diferença. Há vários anos realizando pé numa cultura mais popular – daí sua a sociedade delegava aos humoristas, pesquisas na área de História do Brasil capacidade de produzir um linguagem os “palhaços por um dia” ou “engra- no começo da República, chamou-nos humorística compreensível a todos. çados arrependidos”, a representa- a atenção a quantidade da produção ção, em relances rápidos e efêmeros, cômica brasileira, muito superior a IHU On-Line – Sob quais aspectos o desses desejos sutilmente recalcados de outros países neste período conhe- humor é expressivo da época em que ou encobertos. Tudo indica que, pelo  Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982): é produzido? humor, o brasileiro apropriava-se, por historiador brasileiro, também crítico literário e jornalista. Entre outros, escreveu Raízes do Elias Thomé Saliba – O humorista faz momentos, do espaço público, que lhe Brasil, de 1936. Obteve notoriedade através um retrato instantâneo e efêmero era negado pelo poder republicano nas do conceito de “homem cordial”, examinado da história das sociedades, mas nem suas mais variadas e perversas formas nessa obra. A professora Dr.ª Eliane Fleck, do PPG em História da Unisinos, apresentou, no por isso, menos verdadeiro. A anedo- de exclusão social. evento IHU Ideias, de 22-08-2002, o tema “O ta colocada na abertura do livro – um  Mário Raul de Moraes Andrade (1893-1945): homem cordial: Raízes do Brasil, de Sérgio Bu- inglês, um francês e um alemão des- poeta, romancista, musicólogo, historiador e arque de Holanda” e no dia 8-05-2003, a pro- crítico de arte e fotógrafo brasileiro. Um dos fessora apresentou essa mesma obra no Ciclo crevendo um camelo (a qual eu acres- fundadores do modernismo brasileiro, ele pra- de Estudos sobre o Brasil, concedendo, nessa centei também um brasileiro) – mostra ticamente criou a poesia moderna brasileira oportunidade, uma entrevista a IHU On-Line, que quase toda piada (não apenas as com a publicação de seu livro Paulicéia Des- publicada na edição nº 58, de 5-05-2003, dis- vairada, em 1922. Andrade exerceu uma influ- ponível em http://bit.ly/iYypBD Sobre Sérgio chamadas “piadas étnicas”) exige uma ência enorme na literatura moderna brasileira Buarque de Holanda, confira, ainda, a edição espécie de cultura silenciosa para o e, como ensaísta e estudioso — foi um pioneiro 205 da IHU On-Line, de 20-11-2006, intitulada seu completo entendimento. A produ- do campo da etnomusicologia — sua influência Raízes do Brasil, disponível para download em transcendeu as fronteiras do Brasil. (Nota da http://bit.ly/jwktif (Nota da IHU On-Line) ção humorística é um espelho no qual IHU On-Line) SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 25 IHU On-Line – Uma inovação do hu- engraçada, não há contraste para pro- ferir outros. Não há remédio. Se fui eu mor em nossos dias é o programa duzir o senso de humor... quem escorreguei na casca de banana, jornalístico CQC. Como compreen- eu não vou rir... Se o escorregão for de der que se pode informar através do Experiência humana diversificada alguém que tem poder (político, pessoal humor? ou qualquer outro), ele não só não vai Elias Thomé Saliba – Aquilo não é um O humor, em geral, é um dos mais rir, como vai proibir os outros de rirem. programa jornalístico, é um programa elevados instrumentos de comunica- humorístico. Agora, se o público en- ção. Rir aproxima as pessoas, provoca IHU On-Line – Em que medida rir é tende que é um programa jornalístico suas emoções e mobilizam suas men- uma transgressão política? Nesse sen- – isto diz muito sobre o público que o tes – além, é claro, de aliviar a tensão. tido, como podemos compreender o assiste. Ou seja, continua sendo um pú- Isto é universal. Basta ver alguns dita- papel das charges e, recentemente, blico que só consegue lidar com a infor- dos folclóricos que são comuns a todos daquelas feitas saudando a morte de mação no tom da galhofa – estamos, de os povos, tanto ocidentais como orien- Bin Laden? novo, em pleno país da piada pronta. tais, e que existem, com pequenas al- Elias Thomé Saliba – A esfera política terações, em todas as línguas – como sempre foi motivo de chacota porque as IHU On-Line – Há um humor tipica- “O mais perdido dos dias foi o dia em pessoas que participam da vida pública mente brasileiro, uma linguagem que não se riu”, ou “Quem não sabe são iguais a todas as outras no plano in- dessa natureza que nos diferencia sorrir, não deve abrir uma loja.” dividual. Esta diferença suscita ambigui- dos demais países? Como produção cultural, o humor dades que constituem o motor do riso e Elias Thomé Saliba – Eu acho que é exerceu um papel importante em vá- da piada. Hoje, a esfera política é mais difícil definir uma vocação típica do rias sociedades e em várias épocas. sujeita à chacota e ao riso cínico talvez humor, não só brasileiro, mas de qual- Tanto na Antiguidade quanto no perío- porque os grandes projetos políticos de quer outra cultura, porque o humor é do medieval, o humor era mais difuso transformação social mostraram-se utó- uma modalidade de experiência tão por não existir ainda uma separação picos e falharam. Numa época de cri- diversa, tão multifacetada, que é di- entre as esferas pública e privada. A se de utopias, as sociedades regridem fícil teorizar sobre ele. Mas eu arrisco: comédia originalmente era um even- emocionalmente à sátira, à derrisão e eu acho que o humor brasileiro típico to no qual todos participavam e todos ao humor. As pessoas riem das desgra- é paródico. Mas não paródia no sen- riam em conjunto. Quando a moder- ças alheias, mas também das próprias tido original, de “canto paralelo”. A nidade cria propriamente uma esfera desgraças. A produção humorística é vida do brasileiro é tão cheia de incon- pública – o que ocorre, na história oci- ambígua. É o “doa a quem doer”. Não gruências que, para fazer humor, ele dental, entre os séculos XVII e XVIII – é é inocente, é um espelho da sociedade, faz uma paródia da vida real. Eu me que o humor se fortalece como uma embora distorcido. lembro aqui, por exemplo, da frase do das mais disseminadas e universais No caso brasileiro tudo isso é muito Paulo Emílio Salles Gomes analisando formas de comunicação, já que todos mais forte porque o que caracteriza a o Mazzaropi e a chanchada: ele dizia os comportamentos humanos ganham história brasileira é a eterna confusão que nossa capacidade paródica resulta repercussão coletiva (pública), sus- entre as esferas pública e privada e “daquela nossa incapacidade criativa citando reações emocionais (que in- nossa vocação – que, gradativamente, de copiar...” Eu acho que isso tem a cluem, é bom que se digam, tanto o temos esperança de superar – para tra- ver com a nossa história brasileira, choro quanto o riso). tar tudo emocionalmente, reduzindo porque, se a realidade já é engraça- Mas o riso é uma experiência huma- as distâncias sociais. Chamamos esta da, basta que façamos uma paródia do na tão diversificada que não necessa- vocação de síndrome de Santa Terezi- real. Eu vou citar um exemplo de que riamente ele resulta sempre do “bom nha. A santa francesa Thereza de Li- eu gosto muito e que está narrado em humor”. Portanto, como ele é uma sieux, transforma-se aqui em Terezi- detalhes no meu livro: em 1912, quan- experiência extremamente rica e va- nha – ou seja, até os santos partilham do se abriu a Avenida Central no Rio riada, ele se liga a muitos aspectos da de nossa vida privada, tornando-se de Janeiro, durante a grande reforma vida humana. É impossível enumerar mais próximos de nós. Usamos de di- urbana que a cidade sofreu, o único todos. Por exemplo, o humor seduz? minutivos para quebrar hierarquias e prédio que ruiu por erro de cálculo foi Sim, primeiro porque ele tende a pro- tornar tudo próximo, porque temos o do Clube de Engenharia. Ao viajante duzir intimidade e proximidade. Neste horror das distâncias sociais, que são alemão, que contaram a mesma his- sentido, rir é como almoçar ou jantar enormes. Não conseguimos ver o mun- tória, ele perguntou: “Mas isto é uma juntos – em certos casos, favorece até do sem emoção, distinguir o público do piada?” Resposta: “Não é uma piada. a aproximação sexual. privado. Queremos transformar o pú- É um fato. Aconteceu realmente”. E Lembrar, portanto, que o humor blico numa coisa nossa, pessoal. Vem aí vem o dilema: se a realidade já é – sobretudo o humor que nasceu com o das nossas raízes ibéricas. O brasileiro  Paulo Emílio Sales Gomes (1916-1977): his- século XX – possui uma fortíssima voca-  Teresa de Lisieux (1873-1897): religiosa toriador, crítico de cinema e militante político ção para a ambiguidade: se uma piada carmelita francesa e doutora da Igreja. É co- brasileiro. (Nota da IHU On-Line) nhecida como Santa Teresa do Menino Jesus e  Amácio Mazzaropi (1912-1981): ator e cine- agrada e gratifica alguns, ela acaba por da Santa Face ou, popularmente, Santa Teresi- asta brasileiro. (Nota da IHU On-Line) nha. (Nota da IHU On-Line) 26 SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 não resiste muito à seriedade. Quanto Ayrton Senna morreu, em menos de 24 horas já circulavam anedotas. Por outro lado, o humor, por mais agressivo que seja, incentiva a sociabi- O riso como arma e libertação lidade, sublima a agressão, administra o cinismo e, em alguns casos, estiliza a violência, dissolvendo-a no riso. “Fiquem Rir de si mesmo tem um efeito libertador, além do fato de que tranquilos: nenhum humorista atira para o riso faz com que o homem mostre seus dentes, movimento  matar”, diz Millôr Fernandes . físico que expressaria agressividade, observa Henrique Domin- Um efeito libertador gues Rodrigues. Millôr Fernandes, muito antes dos blogs e Twit- ter, já exercia uma escrita direta, cujo tema central é o humor Mas o riso também é a arma social dos impotentes. No decorrer da histó- ria, o próprio riso popular permitiu que Por Márcia Junges se criasse, cada vez mais, uma cultura da divergência, ativa e oculta, mos- trando como o humor se tornou uma uito antes do advento dos blogs e do Twitter, Millôr Fernandes já arma política importante contra os praticava uma escrita concisa e direta. Falou, inclusive, que o regimes repressivos. Se não se pode humorista “não atira para matar”. Ao assumir isso, Millôr “tem mudar a história real, muda o sentido consciência de que o humor em si não resolve os problemas da dela. O riso, a piada é essencialmente sociedade, mas ajuda muito a descortinar os absurdos que ten- alteração de sentido, reversão de sig- Mtam se esconder sob certa seriedade da vida brasileira”. A constatação é de nificado. Henrique Rodrigues, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. No caso brasileiro, humor e riso Segundo o pesquisador, “rir de si mesmo é um tipo de libertação”. E com- compensam também a falta de iden- pleta: “Rindo, o homem mostra os dentes, e há pesquisas que associam esse tidade. Uma sociedade mal costurada, movimento físico do rosto ao instinto de agressividade. O riso, portanto, é que sempre praticou a exclusão. Bra- uma arma”. Mas é preciso haver limites, pondera Henrique: “O humor é so- sileiros só se sentem brasileiros em cial, sempre. E como toda situação social, existem limites morais e éticos”. momentos emocionais, rápidos e cir- cunstanciais – quando toca o Hino Na- Além disso, com a internet, hoje qualquer pessoa pode se expressar humoris- cional, tem jogo da Seleção. O humor ticamente através de um sítio, podendo ser uma espécie de bobo da corte. funciona como o Carnaval e o futebol “Aliás, é interessante ver como a própria corte muitas vezes teme o bobo.” para o brasileiro ter este momento de Henrique Rodrigues é formado em Letras pela UERJ, com especialização em identidade. Jornalismo Cultural pela mesma instituição. É mestre em Literatura Brasileira Para os indivíduos, a disposição de pela PUC-Rio, com dissertação sobre o humor político na obra de Millôr Fernan- rir das tolices da humanidade sempre des. Atualmente é doutorando, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Ja- foi considerada pela medicina como neiro, em Literatura. É autor da dissertação Millôr Fernandes: a vitória do humor um meio de preservar a saúde (aliviar o diante do estabelecido. Trabalhou como assessor técnico em literatura do Sesc excesso de bílis ou de adrenalina que, Nacional, coordenando projetos de incentivo à leitura, e como superintendente em excesso, produz a melancolia e as pedagógico da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro. Atualmente doenças). Talvez isto funcione para a trabalha com curadoria de programação na Cátedra Unesco de Leitura PUC-Rio. sociedade brasileira também. É o rir para não chorar. Porque as pessoas que É autor de sete livros de literatura, entre infantis, juvenis e contos, e participou riem das piadas guardam resíduos de de várias antologias. Confira a entrevista. emoções que lhes vão permitir rir das maldades, dos preconceitos e das fal- catruas reais. Quando as pessoas não IHU On-Line – Aristóteles afirmou tes dos animais, uma obra de biologia, riem é pior, pois os ressentimentos que “o homem é o único animal que e não sobre estética, poética, retórica são recalcados, o que talvez explique ri”. Millôr Fernandes completou a ou política. Na verdade, essa interpre- porque o humor, sob quaisquer de suas sentença ao dizer que “é rindo que tação da frase segundo a qual “o riso formas – pela graça ou pela inteligên- ele mostra o animal que é”. O que faz parte da essência humana” pode cia –, tenha um efeito libertador. está por trás do mecanismo do riso ser um pouco exagerada. Acredito que  Millôr Fernandes: desenhista, humorista, que nos torna paradoxalmente di- Aristóteles tivesse até uma opinião se- dramaturgo, escritor e tradutor brasileiro. Em ferentes e iguais aos animais? melhante à de Platão, para quem era 1968 começa a trabalhar na revista Veja, e em 1969 torna-se um dos fundadores do jornal O Henrique Rodrigues – Essa famosa afir-  Platão (427-347 a. C.): filósofo ateniense. Pasquim. (Nota da IHU On-Line) mativa de Aristóteles está no livro Par- Criador de sistemas filosóficos influentes até SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 27 impossível pensar que os deuses pudes- “Henri Bergson, no seu literária (“Assim que saiu da posse na sem rir, e provavelmente deixaria os co- Academia, Sir Ney se reuniu, feliz, mediantes do lado de fora da República, clássico ensaio O riso, com um grupo de militares: está con- ao lado dos poetas líricos. Na Poética, vencido de que fardão é o aumentativo por exemplo, Aristóteles afirmou que disse que numa de farda”); Collor e a figura do atleta a tragédia revelava os homens melho- (“Não só tem aquilo roxo como é pau res do que são, enquanto a comédia os sociedade composta só pra toda obra e está sempre com o mostrava piores. A frase do Millôr teria Cooper feito”); a suposta soberba in- mais esse sentido de assumir a essência por inteligências todos telectual de Fernando Henrique (“O humana e crua, animalesca, contida na único intelectual que se acha mais in- atitude de rir. Rindo, o homem mostra estariam rindo” teligente do que ele próprio”) e por os dentes, e há pesquisas que associam aí vai. Cada escândalo político tem esse movimento físico do rosto ao instin- sido devidamente acompanhado e co- to de agressividade. O riso, portanto, é também uma imparcialidade rara. Essa mentado, e o humor, por ser um texto uma arma. Mas o próprio Millôr diz que irreverência (com o sentido mesmo de prazeroso e trazer uma nova perspec- humorista não atira para matar. Voltando não se curvar) permite que ele passe tiva sobre um mesmo fato, consegue a Aristóteles, ele assume que a comédia pelas mais importantes publicações muitas vezes chamar mais a atenção mereceria um estudo à parte. Porém a com a mesma postura, utilizando o do que a notícia convencionalmente existência dessa obra ainda é hipotética. humor como uma ferramenta de ques- publicada. A subversão é, no caso, tão Umberto Eco, em O nome da rosa, supõe tionamento social. Ao assumir que não importante quanto a versão. que o livro era temido pelos clérigos me- atira para matar, ele tem consciência dievais, devido ao poder libertador do de que o humor em si não resolve os IHU On-Line – Particularmente no riso, e por isso o mantinham (o livro e o problemas da sociedade, mas ajuda Brasil, há uma forte contestação e riso) confinado. muito a descortinar os absurdos que crítica à política via humor. Qual seu tentam se esconder sob certa serieda- ponto de vista sobre a forma como o IHU On-Line – Pensando na obra de de da vida brasileira. humor vem lidando com essa ques- Millôr Fernandes, de que forma o tão hoje? humor se constitui numa expressão IHU On-Line – Millôr foi um dos funda- Henrique Rodrigues – Há uns anos, literária? Além disso, como sua obra dores de O Pasquim e colaborador da um deputado apresentou um proje- ajudou e ajuda a questionar verda- Revista Bundas. O que esse tipo de to de lei para punir quem abusasse des estabelecidas? humor mostra sobre a relação entre de estrangeirismos, principalmente Henrique Rodrigues – A obra do Mil- transgressão humorística e política? nos meios de comunicação. Haveria lôr cobriu a maior parte do século XX Henrique Rodrigues – Como Millôr uma multa, de cerca de 30 mil reais, e está aí nesse início de século XXI. É sempre publicou em jornais e revistas, por exemplo, para uma placa com preciso observar que ela sempre foi a rotina política brasileira se tornou um termo em inglês. O Millôr pu- muito avançada em vários aspectos. um assunto predominante. O Pasquim blicou um texto em que dizia “Que Ele utilizou recursos de poesia con- foi um dos pontos altos da história idioletice!” Isso rendeu bastante. creta bem antes dos concretistas, foi do humor brasileiro, e também para O deputado processou o Millôr por um dos primeiros a usar computado- a imprensa como um todo, pois eles “comprometimento da honorabilida- res como ferramentas de criação. deram graça e liberdade às redações, de”. O projeto não colou, claro. Mas Aliás, há décadas pratica uma escrita às entrevistas, e especialmente ao isso demonstra como o humor está concisa e direta bem típica de blogs modo como driblar as dificuldades (no atento às tentativas de cerceamen- e Twitter, cujos formatos são alarde- caso, a censura era a maior delas). O to da liberdade. Mas em relação ao ados como “novos suportes”. Millôr é Millôr, felizmente, sempre pegou no humor hoje, vejo que a internet tem escritor, dramaturgo, artista plástico, pé dos políticos. Lembro-me do caso  Fernando Affonso Collor de Mello (1949):  roteirista, caricaturista e tantas ou- do Figueiredo e sua fixação por ca- político, jornalista, economista, empresário e escritor brasileiro, tendo sido o 32º Presidente tras coisas, exercendo todas não só valos (“Enfim, um presidente Horse-   do Brasil, de 1990 a 1992, prefeito de Maceió com brilhantismo e originalidade, mas Concours”); Sarney e sua pretensão de 1979 a 1982, Deputado federal de 1982 a  João Batista de Oliveira Figueiredo (1918- 1986, Governador de Alagoas de 1987 a 1989, hoje, como a Teoria das Ideias e a Dialética. 1999): ditador militar e político brasileiro, o e Senador por Alagoas de 2007 até a atualida- Discípulo de Sócrates, Platão foi mestre de 30º presidente do Brasil, de 1979 a 1985. (Nota de. (Nota da IHU On-Line) Aristóteles. Entre suas obras, destacam-se A da IHU On-Line)  Fernando Henrique Cardoso (1931): conhe- República e o Fédon. Sobre Platão, confira e  FERNANDES, Millôr. Millôr definitivo: a Bíblia cido popularmente como FHC, é um sociólogo, entrevista “As implicações éticas da cosmolo- do caos, p. 231. (Nota do entrevistado) cientista político e político brasileiro. Pro- gia de Platão”, concedida pelo filósofo Prof.  José Ribamar Sarney de Araújo Costa fessor Emérito da Universidade de São Paulo, Dr. Marcelo Perine à edição 194 da revista IHU (1930): político e escritor brasileiro, membro lecionou também no exterior, notadamente na On-Line, de 04-09-2006,disponível em http:// da Academia Brasileira de Letras, tendo sido Universidade de Paris. Foi funcionário da CE- migre.me/uNq3. Leia, também, a edição 294 o 31º Presidente do Brasil, de 1985 a 1990, PAL, membro do CEBRAP, Senador da República da Revista IHU On-Line, de 25-05-2009, inti- Governador do estado do Maranhão de 1966 a (1983 a 1992), Ministro das Relações Exteriores tulada Platão. A totalidade em movimento, 1971, e Presidente do Senado Federal de 1995 (1992), Ministro da Fazenda (1993 e 1994) e disponível em http://migre.me/uNqj. (Nota a 1997, 2003 a 2005, de 2009 a 2011 e de 2011 presidente do Brasil por duas vezes (1995 a da IHU On-Line) até a atualidade. (Nota da IHU On-Line) 2002). (Nota da IHU On-Line) 28 SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 sido um dos veículos mais importan- “Como existe essa acessados diariamente. Como exis- tes, e as possibilidades aumentam te essa indústria do riso, e inclusive junto com os formatos. No entanto, indústria do riso, e qualquer pessoa pode abrir um sítio os próprios conteúdos, assim como e se expressar humoristicamente, to- os suportes, surgem e desaparecem inclusive qualquer dos nós podemos ser o bobo da cor- muito rapidamente. Em termos ge- te. Aliás, é interessante ver como a rais, o humor deixou de ser políti- pessoa pode abrir um própria corte muitas vezes teme o co como era na época da ditadura, bobo. Recentemente, a assessoria da e se tornou mais comportamental. sítio e se expressar presidenta Dilma divulgou que ela se E como o comportamento se dissipa divertiu ao assistir um vídeo de uma e/ou se move cada vez mais rapida- humoristicamente, todos imitação que circula pela internet. Se mente de um assunto para outro, o tiveram o trabalho de informar que humor acompanha e, muitas vezes, nós podemos ser o bobo ela achou graça e não teve medo da se torna mais banal. Por consequên- paródia, fica parecendo que foi mais cia, torna-se menos sardônico e con- da corte. Aliás, é uma intenção de mostrar que Dilma é testador. exceção, o que confirma a regra. interessante ver como IHU On-Line – Identificar-se com - si IHU On-Line – Existe humor de mau tuações cômicas é um dos fatores a própria corte muitas gosto e humor de bom gosto? O que que aproxima o público com o humo- os diferencia? rismo. Por que as pessoas procuram vezes teme o bobo” Henrique Rodrigues – Claro que sim. essa caricatura de si próprias na alte- O humor é social, sempre. E como ridade, nesse outro que é tão igual e toda situação social, existem limi- diferente de si mesmas? um alerta: “Ok, estou exagerando, tes morais e éticos. Lembro-me de Henrique Rodrigues – Rir de si mes- mas você é assim e age assim”. uma situação: em 2001, eu estava mo é um tipo de libertação. Henri nos EUA e, logo após os atentados Bergson, no seu clássico ensaio O IHU On-Line – Na Antiguidade exis- às Torres Gêmeas, os humoristas do riso, disse que numa sociedade com- tia a figura dos bobos da corte, cuja Saturday Night Live, o programa de posta só por inteligências todos es- função era fazer o rei rir. Qual é a humor mais famoso de lá, tiveram tariam rindo. As pessoas se identifi- grande mudança do humor daqueles um cuidado muito grande ao apre- cam com situações cômicas porque tempos para os nossos dias? sentar o primeiro programa após a se veem nelas, mas ao mesmo tempo Henrique Rodrigues – Essa figura do tragédia. O Bush estava no ar e logo sabendo que não estão passando por bobo da corte, ou jester, era um per- no início os apresentadores pergun- aquela situação. As sitcoms (comé- sonagem bastante paradoxal que cri- taram: “Podemos fazer humor, presi- dias de situação) mais cultuadas, ticava os poderosos diretamente, sem dente?”. Isso demonstra a preocupa- como Seinfeld, mostram o politica- que os mesmos se sentissem atingidos. ção em não sair da medida e abordar mente incorreto em que todos nós Caso aceitassem a jocosidade e res- temas de forma irresponsável. De nos metemos várias vezes nas si- pondessem seriamente, estariam se todo modo, o contexto é que deter- tuações sociais, e também por isso denunciando, aceitando como verda- mina essa medida. Mesmo porque os atraem tanto. Mas há nesse proces- deiras as acusações feitas pelo bobo, atentados de 11 de setembro se tor- so um certo distanciamento, pois o a priori, sem intenção de um ataque naram um assunto largamente utili- exagero, a caricatura impedem uma concreto. Isso porque o bobo da corte zado no humor nos anos seguintes. identificação total. Segundo alguns não era considerado um membro da estudiosos, essa lacuna seria justa- sociedade, mas alguém de fora, com IHU On-Line – Gostaria de acrescen- mente a grandeza do humor. Uma uma crítica anárquica e sem valor tar algum aspecto não questionado? coisa é ser o outro, outra é fingir ser destrutivo. Antes, sua crítica aponta- Henrique Rodrigues – Não. Ou me- o outro. No caso do humor, esse fin- va para o que destoava das conven- lhor: sim. É preciso rir. Diz-se que rir gimento está sempre evidente, como ções sociais – das quais ele não parti- é o melhor remédio, ao mesmo tempo se na relação de alteridade existisse cipava. No fundo, ele acabava por ser em que é uma demonstração de infan- um elemento mantenedor do controle tilidade (muito riso, pouco siso). Es-  Henri Bergson (1859-1941): filósofo e - es social disfarçado de entretenimento. ses paradoxos fazem do assunto algo critor francês. ����������������������������Conhecido principalmente por Hoje, talvez o humor seja um grande Matière et mémoire e L’Évolution créatrice, muito interessante de se pesquisar, sua obra é de grande atualidade e tem sido entretenimento em si, respondendo escrever ou até mesmo em conversas estudada em diferentes disciplinas, como ci- até por categorias industriais, como informais. Creio que o senso de humor nema, literatura, neuropsicologia. Sobre���������� esse nas comédias do cinema, do teatro, autor, confira a edição 237 da IHU On-Line, é uma grande manifestação de humil- de 24-09-2007, A evolução criadora, de Hen- das sitcoms, que finalmente estão dade e virtude. ri Bergson. Sua atualidade cem anos depois, emplacando na TV brasileira, dos sí- disponível para downoload em http://migre. tios de humor, alguns largamente me/Jzy0. (Nota da IHU On-Line) SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 29 Uma vacina contra o desespero Mesmo que não faça revoluções, o riso estremece as bases do poder autoritário, revela nossa incompletude existencial e pode tornar nossa existência mais leve, pondera o psi- quiatra e psicanalista Abrão Slavutsky

Por Márcia Junges

humor aceita a loucura humana e sorri diante dela. Faz refletir sobre a tragédia e ainda distende os nervos do mundo. É uma vacina contra o desespero que, por doses moderadas de ceticismo, nos imuniza contra a tendência de levarmos tão a sério a seriedade dos homens”. A constatação é do psicanalista e psiquiatra Abrão Slavutsky, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Em seu ponto de vistas, “o riso se “Oencontra na encruzilhada do físico e do psíquico, do divino e do diabólico, do individual e do social, flutu- ando no equívoco e na indeterminação”. Além disso, funciona como elemento importante de resiliência e preocupa o poder, “seja ele político, religioso ou mesmo educacional”. E completa: “Num mundo em que tanto se fala em diminuir o peso, em dietas milagrosas, nos perigos da obesidade, seria bom pensarmos em como diminuir o peso dos sofrimentos e das angústias que carregamos”. Abrão Slavutzky é psicanalista e médico psiquiatra com formação em Buenos Aires. Graduou-se em medicina em 1971, na Fundação Católica de Medicina do . Desde 2001, é colaborador do jornal Zero Hora e de diversas revistas. Entre outros, é um dos autores e organizadores de Seria trágico... se não fosse cômico - humor e psicanálise (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005), Quem pensas tu que eu sou? (São Leopoldo: Unisinos, 2009) e Psicanálise e cultura (Rio de Janeiro: Vozes, 1983). Alguns dos livros que organizou são O Dever da Memória - O Levante do Gueto de Varsóvia (Porto Alegre: AGE, 2003) e A paixão de ser – depoi- mentos e ensaios sobre a identidade judaica (Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1998). Confira a entrevista.

IHU On-Line - Em que aspectos rir de ga já havia escrito em seu livro Homo Abrão Slavutzsky - Essa é uma crença si mesmo e dos outros é psicologica- Ludens, de 1938, no qual afirma que que vem dos gregos, que sugeriam ser mente salutar? os animais brincam e brincando riem, o riso benéfico à saúde, por ajudar na Abrão Slavutzsky - Há um velho ditado mesmo que seja um riso primitivo. Já digestão, restabelecer a energia e mi- que reza: “Os médicos dizem que rir os bebês começam a sorrir cedo, já tigar a tristeza. Impressionante como faz bem à saúde”. Não só os médicos no primeiro mês de vida, graças aos nas últimas três décadas cresceram as diziam isso, mas, segundo Kant, três estímulos táteis e aos sons da voz de investigações sobre o valor terapêutico coisas podem fortalecer o homem con- quem os cuida. E, à medida que cres- do riso e da alegria. A concentração do tra as tribulações da vida: a esperan- cem e aumentam as interações com hormônio do estresse no sangue, o cor- ça, o sono e o riso. Interessante que seu meio, começam a brincar e rir, por tisol, diminui quando as pessoas riem. os filósofos, em geral tão sérios, não exemplo, de esconder seu rosto e des- Quando o cortisol se mantém elevado, desprezaram o riso, tanto assim que cobri-lo, “reaparecendo” – o famoso cai a defesa imunológica e aumentam Aristóteles criou a célebre frase: “O jogo do “cucu”. as possibilidades de infecções. Tam- riso é próprio do homem”. Será mes- bém a sensibilidade à dor diminui em mo verdade essa afirmação? Em 2001 IHU On-Line - Nessa lógica, como po- estado de alegria, pois a liberação das foi publicado um instigante trabalho demos compreender os tratamentos endorfinas desencadeia no cérebro sobre o riso dos chipanzés, com fotos médicos que reconhecem o valor te- sentimentos de prazer, bloqueando a e filmes em que se percebem clara- rapêutico do riso? transmissão de estímulos dolorosos. mente seus risos. Esse trabalho revela  Johan Huizinga (1872-1945): filósofo e his- Um parêntese: estou falando mais de como riem esses macacos a partir de toriador holandês, foi reitor da Universidade temas que se afastam da psicanálise, de Leyden. É conhecido por seu trabalho na jogos que fazem entre si. Nesse sen- história da cultura da Idade Média. (Nota da e, de fato, o riso e a alegria têm sido tido, confirma-se o que Johan Huizin- IHU On-Line) mais estudados por outras áreas do 30 SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 conhecimento. Na psicanálise há certo IHU On-Line - As pessoas deveriam rir veredas. Viver é tensão, mas viver, fe- vazio no estudo do riso e, principal- mais de si mesmas? O riso tornaria a lizmente, também é tesão. Portanto, mente, da alegria, às vezes até uma vida mais leve? frente ao peso da existência, talvez tendência a desprezá-los ou tomá-los Abrão Slavutzsky - Não sei se as pes- seja útil buscar a leveza da música, da como uma defesa maníaca, de modo soas deveriam rir mais de si mesmas dança, da conversa amiga, e ler, por que precisamos nos valer, cada vez ou mesmo rir mais. Não acredito mui- exemplo, as Seis propostas para o pró- mais, desses importantes estudos in- to em sugestões do tipo “riam mais e ximo milênio, de Italo Calvino, em es- terdisciplinares. Na psicanálise, um sejam felizes”, “riam de si mesmas e pecial a primeira de suas conferências, bom ponto de partida para o exa- conheçam o paraíso na terra”, e assim que é justamente sobre a leveza. Perdi me do riso poderia ser a vivência de por diante. Respeito a necessidade hu- a conta de quantas vezes já me deli- satisfação, um conceito introduzi- mana de trilhar caminhos sedutores na ciei com esta pequena obra-prima, em do por Freud no início de seus es- busca desesperada da felicidade, mas que o autor afirma ter passado a vida tudos sobre a realidade psíquica. me reservo uma atitude de suspeita. buscando diminuir o peso das pala- Não conheço caminhos fáceis que nos vras, procurando a leveza, mesmo não IHU On-Line - Em que medida o rir de levem a encontrar uma vida mais leve. tendo nada contra as palavras pesadas si mesmo demonstra a incompletude Além do que vivemos em sociedade, e ou contra o peso. Num mundo em que da nossa verdade? vamos convir que a sociedade humana tanto se fala em diminuir o peso, em Abrão Slavutzsky - Antes de respon- não é das mais bondosas – basta ver o dietas milagrosas, nos perigos da obe- der à pergunta, uma observação so- poder da crueldade. sidade, seria bom pensarmos em como bre o riso: há muitos tipos de risos – o diminuir o peso dos sofrimentos e das amigável, o sardônico, o agressivo, o IHU On-Line - A vida, afinal, pode ou angústias que carregamos. sarcástico, o angelical, o ingênuo, o não ser mais leve? do bebê. Percebo que as perguntas Abrão Slavutzsky - Eis o ponto trans- IHU On-Line - Por que o humor é um enveredaram por um caminho que co- cendental de nossa conversa. Talvez dom precioso? loca o riso mais ao lado da saúde, do todas as terapias, psicanalíticas ou Abrão Slavutzsky - Escrevi, a respei- saudável, do bem, quando muitas ve- não, busquem, em verdade, tornar a to, um ensaio, O precioso dom do hu- zes o riso como expressão de alegria vida mais leve, isto é, fazer com que mor, que faz parte do livro Seria trá- pode ser sádico, malvado ou arrogante a leveza alivie o peso de nossos sofri- gico... se não fosse cômico - humor e de triunfo. Com efeito, o riso se en- mentos, que não são poucos. Sofre- psicanálise (Rio de Janeiro: Civilização contra na encruzilhada do físico e do mos porque há desequilíbrios naturais, Brasileira, 2005), que Kupermann e eu psíquico, do divino e do diabólico, do porque somos vulneráveis às doenças, organizamos. Parti de uma frase ex- individual e do social, flutuando no porque as relações humanas são com- pressa por Freud no final de seu breve equívoco e na indeterminação. Expo- plexas – ora intensas, quase sempre ensaio O humor, de 1927, quando ele nho aqui uma conclusão expressa por tensas. Ninguém escapa às agressões tinha 71 anos e sua teoria da psicaná- Gorges Minois em seu livro História do e ninguém é só amor, pelo contrário. lise estava mais ou menos concluída. riso e do escárnio, leitura que indico Viver é muito perigoso, escreveu Gui- Fiquei espantado com sua afirmação fortemente. marães Rosa em seu Grande sertão: de que o humor é um dom precioso O riso, não só revela a incompletu- e raro. Como nunca havia deparado  Sobre o tema, confira a entrevista concedi- de, como tende a ser malvisto diante da por Slavustsky O Holocausto e o dever da com tanto entusiasmo por parte do do sagrado, seja o sagrado religioso, memória, publicada na edição 323 da Revista sóbrio Sig, decidi investigar em sua seja o ideológico e até na educação. IHU On-Line, de 29-03-2010, disponível em correspondência e sua obra que qua- http://bit.ly/fONsh1. (Nota da IHU On-Line) O riso tende a ser tomado, às vezes,  João Guimarães Rosa (1908-1967): escritor, lidade humana havia despertado tanta como irreverente, como um deboche. médico e diplomata brasileiro. Como escritor, emoção nele como o bom humor. Não Todos os autoritarismos buscam disci- criou uma técnica de linguagem narrativa e encontrando, me perguntei: porque descritiva pessoal. Sempre considerou as fon- plinar os risos: do que se pode rir e do tes vivas do falar erudito ou sertanejo, mas, na história da psicanálise o tema do que não se pode. sem reproduzi-las num realismo documental, humor foi quase desprezado? Difícil No riso, como no amor, o corpo se reutilizou suas estruturas e vocábulos, estili- questão, mas creio que ela está ligada zando-os e reinventando-os num discurso mu- fusiona com o espírito. Aliás, Jacques sical e eficaz de grande beleza plástica. Sua à sedução exercida pelos traumatis- Le Goff criticou a Freud que em seu obra parte do regionalismo mineiro para o uni- mos psicológicos ligados a violências, importante livro Os chistes e sua rela- versalismo, oscilando entre o realismo épico e o mágico, integrando o natural, o místico, 05-2006 o IHU promoveu o Seminário Guima- ção com o inconsciente (1905) não se o fantástico e o infantil. Entre suas obras, ci- rães Rosa: 50 anos de Grande Sertão: Veredas. referiu a esta importante questão do tamos: Sagarana, Corpo de baile, Grande ser- Confira, ainda, a edição 275 da Revista IHU On- riso se manifestando no corpo e não tão: veredas, considerada uma das principais Line, de 29-09-2008, intitulada Machado de obras da literatura brasileira, Primeiras estó- Assis e Guimarães Rosa: intérpretes do Brasil, só no psiquismo. No riso de uma piada rias (1962), Tutaméia (1967). A edição 178 da disponível em http://bit.ly/mBZOCe. (Nota da o corpo expressa o poder do jogo de IHU On-Line, de 02-05-2006, dedicou ao autor IHU On-Line) palavras que liberam desejos eróticos a matéria de capa, sob o título Sertão é do  Ítalo Calvino (1939-1985): escritor cubano, tamanho do mundo. 50 anos da obra de João radicado na Itália, autor de livros como As ou agressivos de quem ri. Guimarães Rosa, disponível para download em cidades invisíveis (São Paulo: Companhia das http://migre.me/qQX8. De 25 de abril a 25- Letras, 1994). (Nota da IHU On-Line) SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 31 a separações, a rupturas, a perdas que “O humor não faz na situação de agir, sendo a ação mais são pesadas e vinculadas a ações e ao importante que o personagem. Já a trágico. Feito esse pequeno passeio, nenhuma revolução, mas comédia imita homens, homens infe- retorno à questão do humor como dom riores que são hipocondríacos, como precioso. O equivalente psicológico ele não perdoa as falhas na peça de Molière O doente imagi- da resistência física é a resiliência, nário, ou medrosos, avarentos, enfim, uma espécie de energia mental cuja dos poderosos nem ridículos, para que possamos rir deles força psicológica é capaz de suportar e neles (que na verdade somos nós) crises e frustrações e ainda encontrar qualquer forma de descarregar nossos medos e angústias. algo positivo mesmo em experiências Aliás, só Molière conseguiu escrever dolorosas. O humor é importante fator autoritarismo” comédias que superassem as tragé- de resiliência, fortalece o psiquismo, dias. No cinema, tivemos um Chaplin, a alma (psique em grego é alma) e aju- como agradeço (risos). Desde 2005, hoje um Woody Allen, mas a condição da as pessoas. O contrário do humor é antes mesmo do lançamento de Seria humana tende a valorizar, como já dis- a mortificação. Daniel Sibony em seu trágico... se não fosse cômico, deci- se, o traumático e o dramático. recente livro – Le sens Du rire et de di escrever o meu livro sobre humor. L’humour – define o humor como a arte Pensei que seria algo para dois anos, IHU On-Line - Por que o riso ocupa de inventar um consolo que nos faz rir no máximo, e já estou nisso há quase um papel tão importante na história de nós mesmos. Talvez, todos nós, em seis... Aliás, a Unisinos contribuiu para da humanidade e é objeto de tanta alguma medida, nós levamos muito a o atraso do meu trabalho – sempre preocupação? sério, uma seriedade pesada que mor- precisamos de algum bode expiatório Abrão Slavutzsky - Será mesmo que o tifica e nos deixa mau humorados. –, pois interrompi por um ano e meio riso é tão importante assim? Pode ser, as atividades em função do Quem pen- mas na Bíblia ele aparece pouco e às IHU On-Line - Se o humor é um dom sas tu que eu sou?,. De qualquer for- vezes é até criticado, como o foi o riso precioso, ele não deveria ser mais ma, decidi não me apressar para con- erótico de Sara, a primeira matriarca estudado? cluí-lo, pois para estar à altura do que do povo judeu. Também no Cristianis- Abrão Slavutzsky - Uma boa pergunta pretendo expor preciso melhorar meu mo o riso nem sempre foi bem visto, a se fazer às faculdades de Psicologia, sentido do humor, passando isso para o em especial na Idade Média, como aos cursos de psiquiatria e aos insti- texto, o que não é fácil! tão bem nos relata Umberto Eco em O tutos de Psicanálise. Comecei a estu- nome da rosa. O riso na História e, em dar o humor de forma sistemática faz IHU On-Line - Qual é o laço que une especial, o humor tiveram no poder dez anos e cheguei à conclusão de que tragédia e comédia? um inimigo, pois este não deseja ser ainda há muito, por aprender. Feliz- Abrão Slavutzsky - Nos festivais gre- criticado, desvalorizado. Bergson, em mente, hoje já existem vários grupos gos de teatro, em que teve início a his- seu clássico estudo sobre o riso, escre- nos Estados Unidos e na Europa que tória da tragédia e da comédia, ambas ve que o poeta trágico evita chamar estão publicando profusamente sobre as manifestações integravam os espe- nossa atenção sobre a materialidade o humor, com destaque para o livro re- táculos, que duravam o dia inteiro. de nossos heróis, que por isso não sen- cente de Roy Martin, uma compilação Tanto uma como a outra eram igual- tam, não fazem suas necessidades fi- incrível sobre as mais diferentes face- mente importantes. Aliás, Tchekhov siológicas, etc. O riso sempre preocu- tas do humor, que ainda não foi tradu- afirmou que a realidade humana pode pou o poder, seja ele político, religioso zido para o português. Em psicanálise ser vista através de duas janelas, a da ou mesmo educacional. começam a se escrever livros, revistas tragédia e a da comédia. Woody Allen, sobre o tema, mas não soube de um só em seu filmeMelinda & Melinda, trata IHU On-Line - O riso tem um caráter congresso sobre o tema até hoje! exatamente dessa questão. E o mesmo rebelde? Em que aspectos o riso se se poderia dizer de tantos filmes de configura numa desconstrução do IHU On-Line - Desculpe a indiscrição, Chaplin que versam sobre a pobreza, o poder? mas estás escrevendo sobre o hu- sofrimento, a tragédia da guerra e do Abrão Slavutzsky - O riso? Não necessa- mor? nazismo – O Grande Ditador à frente riamente; afinal, os nazistas, stalinistas Abrão Slavutzsky - Não só desculpo, – desde um ângulo cômico. A tragédia e outros “istas” dessa natureza riam e  Resiliência: �������������������������������capacidade de resistir a situa- riem. O problema do poder sempre foi ções adversas, como choques, estresse e ou- é, como se sabe, imitação de ações de tros. A psicologia tomou emprestada essa ima- caráter elevado; ela coloca o homem o humor: este sim, por sua rebeldia, por gem para explicar a capacidade de lidar com  Anton Paolovitch Tchekhov (1860-1904): sua irreverência, é essencialmente uma problemas, superá-los e até se deixar transfor- escritor e dramaturgo russo. �����������������Entre as suas pe- mar por adversidades. Sobre o tema, confira ças, destacam-se: O tio vânia, As três irmãs,  Jean-Baptiste Poquelin (1622-1673): mais as seguintes edições da Revista IHU On-Line: O canto do cisne, Um trágico à força, Ivanov conhecido como Molière, foi um dramaturgo Edição 241, Resiliência. Elo e sentido, de 29- (Nota da IHU On-Line) francês, além de ator e encenador, considera- 10-2007, disponível em http://bit.ly/j66Zzs;  Woody Allen (1935): nome artístico de Allan do um dos mestres da comédia satírica. Teve Edição 279, Morte. Resiliência e fé, de 27-10- Stewart Königsberg, cineasta, roteirista, es- um papel de destaque na dramaturgia france- 2008, disponíve em http://bit.ly/kSPsIx. (Nota����� critor, ator e músico americano. (Nota da IHU sa, até então muito dependente da temática da IHU On-Line) On-Line) da mitologia grega. (Nota da IHU On-Line) 32 SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 força desconstrutiva. O humor não faz “O riso tende a ser de espírito, é uma visão de mundo. Se nenhuma revolução, mas ele não perdoa essa frase fosse pensada por quem ela- as falhas dos poderosos nem qualquer tomado, às vezes, como bora os programas das faculdades de forma de autoritarismo. Tivemos no Bra- Psicologia e aquilo que devem estudar sil o exemplo do Pasquim, um jornalzi- irreverente, como um os “psi” – psicólogos, psiquiatras e psica- nho que todas as semanas procurávamos nalistas –, o humor deveria ser incluído com entusiasmo nas bancas de jornais deboche. Todos os como disciplina. Há uma universidade na para rir do perigoso poder militar, que Espanha que há anos vem levando o hu- terminou por fechá-lo. Na Alemanha na- autoritarismos buscam mor mais a sério e tem feito um trabalho zista os humoristas eram perseguidos, o elogiável nessa área. Engraçado como na mesmo acontecendo em outras ditadu- disciplinar os risos: do América do Norte e em alguns países da ras. O humor é rebelde pois sempre bus- Europa estão bem mais adiantados que ca o outro lado de tudo, logo questiona que se pode rir e do nós nessa matéria. Quem sabe um dia o poder sempre. nós, intelectuais, possamos estudar mais que não se pode” o humor e assim introduzi-lo nas univer- IHU On-Line - Há um humor tipica- sidades e instituições “psi”, sempre tão mente brasileiro, uma linguagem formais e sisudas? Hoje o humor é im- de a ser mais difícil. Aliás, fazer uma dessa natureza que nos diferencie portante não só na saúde física e na dita mulher rir ou sorrir é meio caminho dos demais países? mental, mas também nas empresas, na andado para uma conquista amoro- Abrão Slavutzsky - O humor brasileiro economia, na propaganda. Aliás, Alfredo sa. As mulheres são mais finas que os é alegre e sacana como o personagem Fedrizzi organizou um livro sobre humor homens, em geral. Gostam de rir de O amigo da onça, de Péricles, ou como e propaganda - O humor abre corações. E nós, homens e de nossas arrogâncias o saudoso “Fradim”, do Henfil, e ain- bolsos. e fragilidades, no que fazem bem. Nós da o grosso alegre Analista de Bagé, de homens, por nossa vez, às vezes somos L. F. Verissimo10. O povo brasileiro tem IHU On-Line - O humor é sério? das piadas mais grosseiras, e nossos na alegria – nossa festa maior é o car- Abrão Slavutzsky - “O humor é sério, risos podem ser mais ingênuos que os naval – uma de suas marcas. Nosso país é mais do que sério, é a quintessência das mulheres. Na verdade, nunca ha- é desorganizado em seu planejamento da seriedade”, como diz Millôr Fer- via pensado nessa relação do humor – como os preparativos para a Copa do nandes. Na realidade, o humor é sé- com o gênero; estou aqui tentando Mundo uma vez mais atestam –, e é rio e não é; é um paradoxo em que dizer alguma coisa para satisfazer a ainda injusto socialmente, mas segue convivem dois sentidos contrários ao curiosidade da entrevistadora. o que em parte preconiza a sabedoria mesmo tempo. Ele transcorre em um chinesa: comer a metade, caminhar o espaço transicional, um espaço de IHU On-Line - Há, se bem me lembro, dobro e rir o triplo. Somos conhecidos brincadeira, revelando lucidez e ale- uma frase importante de Wittgens- como um povo que sabe rir, e nosso gria mesmo na desilusão. A lógica do tein11 sobre o humor não? humor tem na alegria uma referência. humor é paradoxal, semelhante à do Abrão Slavutzsky - Sem exagerar, a fra- De fato, ele é bem menos melancólico inconsciente, em que os contrários ge- se é importantíssima (risos). Ele escre- que o bom humor judeu, ou o quase ram graça. Do inconsciente irrompem veu que o humor, mais do que um estado sério humor inglês. as verdades recalcadas; já o humor re- 11 Ludwig Wittgenstein (1889-1951): �������filóso- vela as outras faces da realidade, que IHU On-Line - Por que homens e mu- fo austríaco, considerado um dos maiores do estão além das aparências. O humor século XX, tendo contribuido com diversas lheres acham graça de coisas dife- inovações nos campos da lógica, filosofia da aceita a loucura humana e sorri dian- rentes? linguagem, epistemologia, dentre outros cam- te dela. Faz refletir sobre a tragédia Abrão Slavutzsky - Engraçado, mas pos. A maior parte de seus escritos foi publi- e ainda distende os nervos do mundo. cada postumamente, mas seu primeiro livro creio que já foram mais marcantes es- foi publicado em vida: Tractatus Logico-Philo- É uma vacina contra o desespero que, sas diferenças. Um exemplo: hoje as sophicus, em 1921. Os primeiros trabalhos de por doses moderadas de ceticismo, mulheres riem mais, sentem-se mais Wittgenstein foram marcados pelas idéias de nos imuniza contra a tendência de Arthur Schopenhauer, assim como pelos novos livres para rir em público, ao contrário sistemas de lógica idealizados por Bertrand levarmos tão a sério a seriedade dos de antes, quando tinham de ser mais Russel e Gottllob Frege. Quando o Tractatus homens. O humor é marginal – e, se reservadas. A mulher contemporânea foi publicado, influenciou profundamente o isso não é bom para as instituições, é Círculo de Viena e seu positivismo lógico (ou é mais sofisticada, e fazê-la rir- ten empirismo lógico). Confira na edição 308 da ótimo para o humor, que se mantém IHU On-Line, de 14-09-2009, a entrevista O livre, com seu olhar rebelde: Hay go-  Henrique de Sousa Filho (1944-1988): mais silêncio e a experiência do inefável em Wit- bierno? Soy contra. Seu olhar sobre o conhecido como Henfil, foi um cartunista, qua- tgenstein, com Luigi Perissinotto, disponível drinista, jornalista e escritor brasileiro. (Nota para download emhttp://migre.me/qQYt. reino do humano sempre busca o outro da IHU On-Line) Leia, também, a entrevista A religiosidade lado de tudo, o lado ridículo do sério, 10 Luis Fernando Verissimo (1936): escritor mística em Wittgenstein, concedida por Pau- o sério do ridículo. gaúcho, filho de Erico Verissimo. É também lo Margutti, concedida à revista IHU On-Line jornalista, publicitário, humorista, cronista, 362, de 23-05-2011, disponível em http://bit. Com isso mantém uma da realidade cartunista e tradutor. (Nota da IHU On-Line) ly/lUCopl. ��������(Nota da IHU On-Line) SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 33 “Ninguém escapa às agressões e ninguém é Seminário 50 anos da Campanha da só amor, pelo contrário. Legalidade: memória da democracia Viver é muito perigoso, brasileira escreveu Guimarães Rosa em seu Grande sertão: veredas” uma distância saudável, erigindo-se como valor existencial, isto é, como visão de mundo. Uma visão que goza da nossa vaidade e arrogância, dando prazer a alguns e dor a outros, pois mobiliza o amor e o ódio, o erotismo e a agressividade. Abençoado, portanto, quem tem o sentido do humor, pois só os bem-humorados aprenderam a arte de viver. Por isso Thomas More12, autor da Utopia, criou esta prece: “Senhor, dai-me senso de humor, dai-me a gra- ça de saber discernir uma brincadeira e partilhá-la com os demais”. O humor não salva, mas alivia, e integra uma velha família, fundada pela polêmica verdade, que gerou o espírito; este se casou com uma dama chamada alegria, cujo filho é o humor. Este filho inquieto escapa às defini- ções, é instável, solene, espirituoso, Início: 18 de agosto de 2011 tristonho, crítico, alegre. O humor é a mais simpática das criações – até o só- Término: 01 de setembro de 2011 brio Freud, volto a frisar, escreveu que o dom do humor é precioso e raro. Um dom que permite sorrir, sem compul- são, da pulsão de morte: “Embora eu não tenha medo da morte, prefiro es- tar longe quando ela chegar” (risos). 20h – Conferência de Abertura: Contexto No humor não há conclusões finais, lições de vida, orientações existen- e Significados da Legalidade ciais. Em todo caso, encerraria esta conversa, em que me fizeste falar Palestrante: Prof. Dr. Jorge Ferreira – UFF muito, dizendo que a vida, como se diz, careceria de sentido sem a arte. Local: Auditório Maurício Berni - C4 Já uma vida sem humor teria muito significado.

12 Sir Thomas More, ou Thomas Morus (1478—1535): advogado, escritor, político e humanista inglês. Foi executado por ordem do rei Henrique VIII e posteriormente canonizado Informações em www.ihu.unisinos.br pela Igreja Católica com o nome de São Tho- mas Morus. Sua obra mais famosa é Utopia, de 1516. (Nota da IHU On-Line) 34 SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 35 Entrevista da Semana

A política social brasileira e o estado de bem-estar Para Jorge Abrahão de Castro, a política social brasileira tem dois vetores importantes: é central para o bem-estar e distribuição de renda e, em segundo lugar, é fundamental para o crescimento econômico, também contribuindo para ampliar a autonomia da economia na- cional

Por Graziela Wolfart, Márcia Junges e Patricia Fachin

a entrevista que concedeu por telefone para a IHU On-Line, o pesquisador do IPEA Jorge Abrahão de Castro considera que a política social brasileira “é um pilar de um paradigma de desenvolvimento eco- nômico sustentável, baseado nos critérios de mais crescimento, melhor distribuição da renda e maior inovação e produtividade”. Para ele, “o grande evento dessa década de avanços na área é a política de assistência social, que esteve marcada pelo atendimento via transferência de renda para deficientes Nfísicos e aos idosos muito pobres, além da criação e desenvolvimento do Bolsa Família”. Portanto, continua, “os pilares da atual política social brasileira são a previdência, assistência, saúde e educação”. Na visão de Castro, “o Estado deve garantir o emprego e renda das pessoas naquilo que o mercado não dá conta, permitindo que as pessoas possam construir suas rendas e vidas através do trabalho e sendo remuneradas para tal”. Jorge Abrahão de Castro possui graduação em Estatística pela Universidade de Brasília e doutorado em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente, é pesquisador associado da Universidade de Brasília e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como as políticas so- e aumentar a produtividade, a inova- IHU On-Line – Quais são as políticas ciais se colocam no cenário do de- ção e a distribuição da renda. Pensan- sociais que mais impactam a realida- senvolvimento brasileiro? do no futuro, a política social é central de hoje? Jorge Abrahão de Castro – A política para aumentar a cidadania e a produ- Jorge Abrahão de Castro – Certamen- social brasileira, por sua dimensão es- tividade, além de ser, no presente, te a previdência social é uma das mais tratégica e abrangência na cobertura um elemento essencial da demanda e, importantes, pois impacta fortemente de riscos, contingências e necessidades por isso, ter a capacidade, em função a situação da população inativa bra- da população, é central para o bem- do seu tamanho em termos de gastos sileira. Hoje, grande parte dos idosos estar social em dois sentidos. Primei- públicos, de alavancar o crescimento brasileiros tem cobertura proveniente ro, porque alavanca a promoção social econômico. Neste sentido, penso que da previdência social de nosso país. via educação, permite oportunidades a política social brasileira tem dois Por isso, ela é a maior área de gasto de geração de renda e trabalho, tan- vetores importantes: é central para o na política social que temos. A outra to no campo quanto na cidade, como bem-estar e distribuição renda e, em grande área é a saúde, porque atende também é um dos elementos centrais segundo lugar, é fundamental para o o conjunto de toda a população bra- para a produção e acesso à cultura. Por crescimento econômico, também con- sileira, tendo no SUS sua estratégia outro lado, sustenta a proteção social, tribuindo para ampliar a autonomia central e de sucesso, mesmo com os fortalecendo a seguridade através da da economia brasileira. É um pilar de percalços existentes, que se devem, saúde, previdência e assistência, com- um paradigma de desenvolvimento em grande parte, à sua dimensão e pondo um todo muito importante para econômico sustentável, baseado nos às heterogeneidades sociais do país. gerar, na população brasileira, uma critérios de mais crescimento, melhor A educação pública é outra área im- sensação de solidariedade e bem-es- distribuição da renda e maior inovação portante na política social, abarcando tar, além da possibilidade de, a partir e produtividade. toda população e estrutura em todo o disso, criar uma geração mais educada território nacional. No entanto, o gran-

36 SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 de evento dessa década de avanços na “Estamos fazendo necessário ir para além da expectativa área é a política de assistência social, que o mercado possa ser o grande re- que esteve marcada pelo atendimento história a duras penas gulador do processo. Quando fazemos via transferência de renda para defi- o Programa de Aquisição de Alimentos, cientes físicos e a idosos muito pobres, desde a Constituição de estamos interferindo nas “livres forças além da criação e desenvolvimento do mercado”. Pode-se imaginar que do Bolsa Família. Portanto, os pila- 1988, montando o mesmo o pequeno agricultor irá pro- res da atual política social brasileira duzir e vender no mercado, e isto é são a previdência, assistência, saúde sistema de políticas certo para uma parcela. Mas vai ha- e educação. Por outro lado, também ver uma parte expressiva que não será há a política de salário mínimo, que sociais que, hoje, existe” comandada pelo mercado, e sim por assumiu uma função de grande impor- essas políticas de Estado, ocorrendo a tância para o conjunto da população desmercadorização de uma parcela da que está no mercado de trabalho. Essa não têm condições objetivas de entrar produção, assegurando resultados a to- política de regulação salarial serve no mercado de trabalho, e ao mesmo dos. Por outro lado, as políticas sociais como um balizador das remunerações. tempo estruturar a oferta de empre- hoje, quando geram capacidades e ha- Por outro lado, é também o indexador go e possibilidades de trabalho para bilidades nos indivíduos, contribuem dos principais benefícios sociais da o conjunto da população. Para tanto, fortemente para ampliar operaciona- previdência e assistência social e uma serão necessárias também a adesão e lidades de grupos e coletivos sociais, importante conquista estabelecida na a estruturação de uma boa governan- como, por exemplo, a maior partici- Constituição Federal de 1988. ça (o que vai ser complexo, porque é pação nas organizações sociais e nos um conjunto muito grande de ações, grandes eventos públicos, tais como IHU On-Line – Quais as possibilidades entes federados, instituições públicas) as conferências nacionais, estaduais e de uma mudança mais radical na re- e, ao fazer tudo isso funcionar a favor municipais das diversas áreas e setores alidade a partir da nova proposta de de uma determinada parte da socieda- sociais. Esse processo tende a afetar e combate à pobreza extrema pelo go- de para gestar maiores oportunidades mudar a estrutura da democracia exis- verno federal? e bem-estar, estaremos fazendo algo tente, no sentido de procurar garantir Jorge Abrahão de Castro – O radical, radical e vencendo uma etapa cruel o exercício de direitos e interesses das nesse sentido, seria erradicar a pobre- na nossa história, que foi a que gerou diversas camadas sociais. za extrema. E isso não é nada trivial. essa quantidade de gente excluída. Os pobres, que estão na “rabeira” IHU On-Line – O senhor concorda que da sociedade brasileira, encaixam-se IHU On-Line – Até o momento as po- as políticas de distribuição de ren- de forma muito vulnerável dentro do líticas sociais brasileiras avançam da mínima não combatem a miséria, padrão de consumo e do sistema de naquilo que Amartya Sen chama de apenas amenizam a pobreza? proteção e promoção social. Ao veri- potencialização das capacidades hu- Jorge Abrahão de Castro – Eu não con- ficar que há um conjunto razoável de manas. Quais as possibilidades da cordo com tal assertiva. Eu diria que brasileiros nessa condição, e se você outra dimensão que Sen também em países com um mercado de traba- consegue melhorar suas vidas em reconhece de que as capacidades lho com informalidade e precariedade termos de renda, acesso a serviços e humanas potencializem as políticas tão imensas, conjugado com a enorme possibilidades produtivas, está sendo públicas? desigualdade social brasileira, a trans- feita uma mudança profunda na so- Jorge Abrahão de Castro – Um dos ferência de renda cumpre papel estra- ciedade. É uma mudança histórica. vetores é aumentar as capacidades do tégico central. É um dos pilares da so- Na verdade, estamos fazendo história indivíduo. Mas penso que é preciso ir lidariedade social entre os brasileiros a duras penas desde a Constituição mais além, buscando-se também fazer e geradora de segurança alimentar, de 1988, montando o sistema de po- com que as capacidades geradas se- nutricional e de ampliação de acesso a líticas sociais que, hoje, existe. Criar jam de fato realizadas pelos indivídu- bens e serviços diretamente relaciona- um Sistema Único de Saúde – SUS que os e grupos, com isso possibilitando a dos às necessidades fundamentais da abarca a todos é fazer história. Os geração de trabalho e renda mediante vida dos indivíduos e de suas famílias. mais pobres nunca tiveram esse tipo a ação direta do Estado. É o que ocor- Lamento, isto sim, que o valor das de benefício nos 500 anos de história re quando se organizam compras pú- transferências em alguns programas é brasileira. Existe a oferta de educação blicas e preços mínimos, por exemplo. ainda baixo para dar conta de retirar básica pública para quase todos, ou Porque é um grande equívoco imaginar esse conjunto da população da situa- seja, aquela coisa do passado de que que, aumentando as capacidades, será ção de extrema pobreza, como é caso as pessoas não tinham acesso a nada já suficiente para que depois o merca- de algumas famílias, hoje, incorpora- já não existe mais, mesmo questio- do sancione e valide tal esforço. Nas das ao Bolsa Família. Ter essa compre- nando-se a qualidade dos serviços. O atuais estruturas produtivas em que ensão não significa que não admitimos desafio será conseguir transferir- ren estão envolvidos os mais pobres, as de- que a pobreza tenha também de ser da para aqueles que, neste momento, sigualdades são muito grandes, sendo combatida em todas as diversas mani-

SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 37 festações e dimensionalidades. maior ampliação de possibilidades ge- mas esquecidas na prática. Por isso, Portanto, a política social deve ser radoras de renda e trabalho. No limi- penso que a iniciativa do governo Dil- movida por um alguns fatores: aqueles te, o Estado deve garantir o emprego e ma é tão importante. A estratégia pro- que estão em situação de necessidade renda das pessoas naquilo que o mer- posta de trabalhar com transferência, de renda e não a consegue diretamen- cado não dá conta, permitindo que as inclusão produtiva de bens e serviços te, o Estado garante uma renda que pessoas possam construir suas rendas é, no meu entender, correta. Penso lhe permite um determinado bem- e vidas através do trabalho e sendo re- que é algo fundamental iniciar esse estar. Ao mesmo tempo, oferece um muneradas para tal. tripé de forma objetiva, mediante a conjunto de bens e serviços para pais busca, identificação e institucionaliza- e filhos terem todas as habilidades e IHU On-Line – Como avalia o plano re- ção dos que estão fora do sistema. A capacidades para que, no futuro, não cém lançado da presidenta Dilma de ampliação do Bolsa Família para aque- precisem ter esse tipo de beneficio. erradicar a miséria brasileira? les que estavam fora e a inclusão de Ninguém quer escravizar as pessoas Jorge Abrahão de Castro – Primeira- um número maior de crianças é outra mais pobres a uma estrutura de per- mente, penso que o governo da pre- forma adequada. As crianças também manente subsídio do Estado. Não se sidenta Dilma foi bastante corajoso, serão, de início, beneficiadas. A in- trata disso. porque erradicar a pobreza extrema, clusão produtiva voltada para o meio considerando a linha de 70 reais (é rural foi também lembrada. A pobreza IHU On-Line – Que política pública bastante próximo do critério estabele- extrema brasileira está muito focada seria necessária para acabar com a cido pela ONU para as metas do milê- no meio rural, mas este, em termos miséria e a pobreza brasileiras? nio), é um grande desafio e de grande de políticas públicas de ação produ- Jorge Abrahão de Castro – No caso dificuldade. Considerando os países tiva, é mais homogênea. Já de início brasileiro, penso que seja fundamen- que assinaram as metas nos Objetivos para as famílias rurais, foi estrutura- tal fazer chegar aos indivíduos e suas de Desenvolvimento do Milênio – ODM, do o acesso a determinados recursos famílias pobres os elementos de am- seríamos o primeiro país a erradicar a a fundo perdido para incrementar sua pliação das habilidades e capacidades, pobreza extrema nesse curto período estrutura produtiva. Por outro lado, há além daqueles meios que permitam a de tempo. Por outro lado, é uma ação também uma preocupação ambiental plena realização desses atributos. No complexa, porque os extremamente com a oferta de uma espécie de bol- entanto, enquanto tudo isso não gera pobres, apesar de sua homogeneidade sa ambiental para a população pobre o efeito de prover a renda necessária nas carências, estão heterogeneamen- cuidar do meio ambiente. Ainda falta ao padrão de bem-estar desejável, te distribuídos nas localidades e nas muita coisa a ser desenhada, como, uma das políticas centrais deve con- regiões do país, o que vai exigir mui- por exemplo, a forma como fazer che- tinuar a ser a transferência de renda. ta competência e governança. Não se gar saneamento a essa parte da popu- Há um conjunto da população pobre trata, portanto, de uma operaciona- lação que não a possui, para que não que tem educação formal muita baixa, lização trivial. Não vai ser fácil levar tenhamos pessoas vivendo no meio do ou nenhuma educação, entre outras o plano em todas suas nuances adian- esgoto, em favelas precárias. É um carências, além de ter uma frágil liga- te. Entretanto, isso vai significar uma exercício válido, importante e que irá ção com o mercado de trabalho. Não ação muito importante para o Brasil e exigir muito do governo e da socieda- adianta pensar que vai haver instan- o mundo. Para o mundo pelo efeito de de, uma vez que o governo colocou taneamente uma estrutura de geração demonstração, de que é possível er- isso como uma ação sua, mas a fisca- de renda no mercado para essas pes- radicar a miséria, desde que se tome lização será feita fundamentalmente soas, pois suas conexões com o merca- isso como uma prioridade de governo. pela sociedade, que irá contribuir nes- do são muito ruins. É preciso, nestes Para o país, pelo efeito concreto da se movimento. casos, em primeiro lugar, dar-lhe con- eliminação de uma situação inaceitá- dições mínimas de bem-estar, assim vel para uma nação que se pretende IHU On-Line – Como o senhor avalia como à sua família. Ou seja, transferir ser desenvolvida. Além disso, teria um o financiamento público social? Que renda monetária. Conjugado a isso, há efeito muito importante para a econo- percentual do PIB é destinado à área as tarefas permanentes do Estado, ou mia brasileira, porque esse conjunto social? pelo menos deveria ser, de produzir e da população estaria entrando nas es- Jorge Abrahão de Castro – Calculamos prover bens e serviços sociais funda- truturas de consumo, tornando-se um que algo em torno de 23% é o que é mentais às pessoas (educação, saúde, importante vetor permanente de de- abarcado pela política social. Ou seja, saneamento básico, serviços socioas- manda de bens e serviços no mercado quase ¼ da economia brasileira gira em sistenciais, etc.) em quantidade e qua- interno. Também será um elemento torno dessa estrutura. Metade disso vai lidade necessária. Além disso, é tarefa importante para implementar a parti- para as estruturas de previdência so- fundamental da política pública esta- cipação social, para ampliar a experi- cial. Esse é um vetor importante, prin- belecer um conjunto de programas e ência do próprio governo em lidar com cipalmente o da previdência do sistema ações geradoras de possibilidades para um conjunto da população que fica geral, que atinge a população brasilei- que os indivíduos possam exercer suas normalmente esquecido. Essas pesso- ra. Já a previdência do setor público habilidades e capacidades, mediante as, às vezes, são lembradas nos livros, é um gasto que não é redistributivo,

38 SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 porque há maiores salários e garantia de previdências completas. Outra par- te importante do gasto social é a edu- cação e a saúde. O gasto em educação EAD - Jesus e o reino no Evangelho gira atualmente em torno de 5% do PIB. Há uma discussão atual de ampliar esse de Marcos - 2011 valor um pouco mais, o que será impor- tante para ampliar a oferta e melhorar a qualidade, e que pode ser fundamen- tal para quebrar o ciclo da pobreza. O investimento em saúde, por sua vez, atinge 3,5% do PIB. A assistência social, que inclui o Bolsa Família, gasta cerca de 1% do PIB. A área de trabalho e ren- da também atinge cerca de 1% do PIB, e os gastos principais são com o seguro desemprego e abonos. Esse é o núcleo duro do gasto com a política social. No Brasil, o gasto com o social é um dos mais elevados da América do Sul, mas é bem mais baixo daqueles que são efetu- ados pelos países desenvolvidos. O lado ruim do atual sistema de financiamento social está na estrutura tributária, que é muito regressiva. Por exemplo, as pessoas que estão na extrema pobreza acabam pagando muito imposto de for- ma indireta.

IHU On-Line – Que investimentos em O INÍCIO DO EVANGELHO DE educação são mais urgentes? Jorge Abrahão de Castro – Essa é uma MARCOS (Mc 1,1-15) discussão que está ocorrendo agora em torno do Plano Nacional de Educação – PNE. Temos necessidades de aces- so e de qualidade. O acesso deve ser Contexto histórico e literário do expandido consideravelmente para as crianças mais pobres como, por exem- Evangelho de Marcos plo, a necessidade da oferta de mais creches. No ensino médio, há proble- ma de frequência na escolarização. Mas ainda precisamos melhorar quan- titativamente. A educação profissional é uma urgência. No ensino superior, o De 29 de agosto a 04 setembro – Jesus, o acesso é muito baixo em termos pú- blicos, com preponderância do ensino Messias, e as expectativas messiânicas privado. Olhando por esse lado, digo que temos um problema de acesso. (Mc 1, 1-15) Lateralmente a isso, há a questão da qualidade. É preciso oferecer esco- las de qualidade, nas quais a criança possa ter acesso desde sua mais tenra Horário: Ensino a distância (EAD) - Livre idade. Isso vai fazer outro país. Tudo isso tem que ser permeado pela saúde e pela alimentação. Nossa escola pú- blica precisa melhorar muito e, para Informações em www.ihu.unisinos.br tanto, vai precisar de mais recursos que os atualmente disponíveis.

SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 39 Últimos ataques político-midiáticos dos EUA contra Cuba

Por Noel Manzanares Blanco�*

Um cabo da agência espanhola forma de sancionar ao regime de Ha- EFE, vindo de Washington em 27 de vana é com sanções”, disse Ninoska maio, informou que a deputada repu- Pérez Castellón, jornalista da Rádio blicana da Flórida, Ileana Ros-Lehti- Mambí e membro do Conselho pela nen, está promovendo um projeto de Liberdade de Cuba. lei que impõe sanções a empresas e O bombardeio de conteúdo midi- indivíduos que ajudem Cuba a desen- ático não parou. Carlos Saladrigas, volver sua indústria petrolífera, de presidente do Cuba Study Group, um acordo com notas oficias advindas do think tank da direita cubana com escritório dessa senhora. sede em Washington D.C., reforçan- Ros-Lehtinen é uma congressista do a mescla de realidade e ficção, que representa os interesses da co- afirmou: “Tal medida forçaria Cuba munidade de empresários originários a negociar com empresas petrolífe- de Cuba, cujos expoentes em Miami ras de países que não lhe interessam e arredores, são muito ligados a ati- essa proibição e que não vão ter os vidades de inteligência. Com esse recursos nem os preparativos para projeto, a republicana pretende im- conter qualquer tipo de vazamento por sanções a “pessoas físicas e jurí- que possa ocorrer em Cuba. E isso vai dicas que ajudem a ilha de José Martí afetar diretamente à Flórida”. a desenvolver sua indústria do petró- Essencialmente, o projeto se inse- leo, inclusive em águas perigosamen- re no programa Carril I das agressões te próximas aos Cayos da Flórida”, e contra Cuba. Trata-se do mais longo busca negar vistos para entrar nos Es- bloqueio imposto pelas autoridades tados Unidos “a qualquer pessoa que políticas dos Estados Unidos, proibin- invista mais de um milhão de dólares do aos norte-americanos, a suas em- no setor petroleiro de Cuba”. presas e a suas subsidiarias – mesmo O fato político (ainda declarati- quando criadas em outros países e vo) foi seguido de fatos midiáticos. sob distinta legislação – a ter qual- O jornal Novo Herald (publicado nos quer tipo de vínculo econômico, co- EUA em castelhano) declarou apoio mercial e financeiro com a ilha. ao projeto, dando a seguinte ênfa- Enquanto os republicanos de ori- se: “Parece magnífico porque a única gem cubana e seus apoiadores fa-

* Noel Manzanares Blanco é historiador, jornalista e professor na Universidade de Camagüey, Cuba. É o colaborador titular de Kaos en la Red/Cuba e participa regularmente das atividades do Grupo Cepos. E-mail: .

40 SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 turam em cima do pensamento rea- “Aumentando o fluxo para Cuba fez uma forte declaração cionário, outro cabo de agência de exigindo que a oposição cubana e os notícias, este da Associated Press (AP) de viajantes, tratam de envolvidos em atividades de inteli- anuncia que “novas normas amplia- gência deixem de fazer um uso errado riam turismo estadunidense à ilha”. reativar o Carril II, do dinheiro do contribuinte dos EUA. A AP informa que serão promulgadas O senador disse: “porque iniciativas pelo governo de Barack Obama para fortalecendo a chamada deste tipo (como da USAID, abrindo ampliar o acesso a Cuba, pois, se- concurso para projetos contra Cuba) gundo o texto da norma, justifica-se subversão ideológica, só têm servido para provocar ao go- “porque já é um dos destinos favori- verno cubano”. tos de turistas de outros países”. jorrando dinheiro para a Uma boa leitura dos estudos rea- Aclara a agência que as viagens lizados a respeito do tema pelo jor- autorizadas não serão apenas para ‘dissidência’ cubana” nalista Jean Guy Allard revela que, turismo de lazer, pois os visitantes no fundo, os EUA têm a intenção de estadunidenses deverão suar a cami- querer “fomentar a participação das sa em passeios a estabelecimentos sidentes reais e o que a maior parte populações marginalizadas e vulnerá- agrários ou conferências sobre histó- deles realmente faz. Tal preocupação veis, como são os negros e mulatos, ria para justificar as viagens, já que a justifica-se através de outro cabo que assim como os jovens rurais que vão intenção, de acordo com Washington, li, sendo este oriundo de DDC | Madri, morar no centro das cidades, os jo- é que os dois povos “se conheçam onde se informa que a Agência Esta- vens portadores de necessidades es- melhor”. dunidense para o Desenvolvimento peciais, os órfãos e adolescentes em O conteúdo de mensagem não dá Internacional – USAID tem três editais situação de risco (como os de famílias margem para dúvidas: “Não serão abertos para projetos relacionados interrompidas ou de tipo mono-pa- apenas dias de praia e noites bailando com a liberdade de informação e ex- rental, chefiadas por mulheres)”. salsa. Se é para comer e beber, não pressão e o apoio à sociedade civil em O discurso da direita cubana pa- se afrouxa as regras do bloqueio. Isso Cuba. Nestes projetos serão destina- rece fora de propósito. Um dos alvos não cumpre com os critérios de uma dos 21 milhões de dólares, incluídos da operação de propaganda seriam viagem com propósitos sérios”, disse seis milhões para fomentar a liberda- crianças e adolescentes em situação uma fonte do Departamento de Esta- de de expressão e associação nos jo- de risco. Kerry está correto ao afir- do que declarou para a AP pedindo vens dentre 12 e 24 anos por fora do mar que estes recursos serão gastos resguardo do sigilo da fonte. controle oficial. à toa para o contribuinte dos EUA. No É necessário refletir que esta me- O despropósito é tamanho que um último dia 8 de junho, o Comitê de dida é um complemento do plano senador como John Kerry, um Falcão Direitos da Criança do Fundo das Na- Carril I. Aumentando o fluxo de via- belicista e que preside a Comissão ções Unidas para a Infância aprovou jantes, tratam de reativar o Carril II, de Relações Exteriores do Senado, é o Relatório de Cuba, recomendando fortalecendo a chamada subversão contra a iniciativa dos projetos. Ker- o reforço na cooperação internacio- ideológica, jorrando dinheiro para a ry, um democrata conservador, mas nal e reconhecendo as conquistas em “dissidência” cubana. Reafirmo que é que apoia a nova norma da adminsi- saúde e educação. necessário verificar quem são os dis- tração Obama facilitando o turismo

SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 41 Destaques On-Line

Essa editoria veicula entrevistas que foram destaques nas Notícias do Dia do sítio do IHU. Apresentamos um resumo delas, que podem ser conferidas, na íntegra, na data correspondente.

Entrevistas especiais feitas pela IHU On-Line e disponíveis desenvolvimento agroexportador fundamentado na monoc- nas Notícias do Dia do sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br) ultura e o avanço da transgenia também contribuem para o de 21-6-2011 a 24-6-2011. uso de ativos na agricultura.

Plano de Sustentabilidade Financeira no RS em debate Por um Rio Grande do Sul sem miséria Entrevista com João Ricardo dos Santos Costa, presidente Entrevista com Clitia Helena Backx Martins e Isabela Noêmia da Ajuris Rückert, pesquisadoras das Fundação de Economia e Estatís- Confira nas Notícias do Dia de 21-06-2011 tica do Rio Grande do Sul - FEE Acesse no link http://migre.me/56gnK Confira nas Notícias do Dia de 23-06-2011 Nesta entrevista, o presidente da Associação dos Juízes do Acesse no link http://migre.me/56WH8 Rio Grande do Sul – Ajuris, João Ricardo dos Santos Costa Segundo as pesquisadoras da FEE, a pesquisa censitária de critica o Plano de Sustentabilidade Financeira, proposto 2010 demonstra que das 300 mil pessoas que vivem abaixo pelo governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro (PT). da linha da pobreza no Rio Grande do Sul, jovens e crianças Para ele, a proposta é tímida e equivocada porque “parte são os mais prejudicados, pois estão em situação de risco, da premissa de que a única fonte de custeio para superar envolvidos com drogas e prostituição, além de estarem a dificuldade financeira do estado é o salário do servidor submetidos à violência. público”. A mancha negra do açúcar “Os agroquímicos são um ‘mal necessário’?” Entrevista com Fernando Carvalho, historiador Entrevista com Josino Costa Moreira, pesquisador na Escola Confira nas Notícias do Dia de 24-06-2011 Nacional de Saúde Pública e Centro de Estudos da Saúde do Acesse no link http://migre.me/56WRs Trabalhador e Ecologia Humana da Fundação Oswaldo Cruz Nesta entrevista, Fernando Carvalho, autor do livro Açúcar. Confira nas Notícias do Dia de 22-06-2011 O perigo doce, comenta como o açúcar ganhou destaque Acesse no link http://migre.me/56gNh na alimentação brasileira e quais as consequências de con- Para o pesquisador Josino Moreira, uso excessivo de agrotóx- sumir essa substância. Para ele, o açúcar é responsável icos no Brasil é resultado da dependência de resultados pelas doenças crônicas porque ele agride o organismo, o científicos produzidos no exterior. A aposta no modelo de metabolismo e a manutenção do corpo humano.

Giorgio Agamben: Homo Sacer I, II, III. A exceção jurídica e o governo da vida humana

Início: 15 de agosto de 2011 Término: 24 de outubro de 2011

Informações em www.ihu.unisinos.br

42 SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 43 Confira as publicações do Instituto Humanitas Unisinos - IHU

Elas estão disponíveis na página eletrônica www.ihu.unisinos.br

44 SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 45 Eventos

Igreja e internet: uma relação de amor e ódio Segundo o jornalista Moisés Sbardelotto, a religião acompanha a evolução da comunicação e “é por ela impelida a algo diferente do que tradicionalmente era”

Por Patricia Fachin

mbora a Igreja tenha mantido uma relação de amor e ódio com os meios de comunicação e, em especial, com as mídias digitais, é inegável a vivência da fé em ambientes digitais nas últimas décadas. Em uma sociedade em midiatização, explica o jornalista, “o religioso já não pode ser explicado nem entendido sem se levar em conta o papel das mídias” porque elas “não são meros meios de transmissão de informação, nem apenas extensões dos seres humanos, mas sim o ambiente no qual a vida social se move”. ENa entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, Sbardelotto enfatiza que a fé praticada nos ambien- tes digitais “aponta para uma mudança na experiência religiosa do fiel e da manifestação do religioso” e, portanto, que a religião tradicional está mudando. “Junto com o desenvolvimento de um novo meio, como a Internet, vai nascendo também um novo ser humano e, por conseguinte, um novo sagrado e uma nova religião”, constata. Moisés Sbardelotto abordará o tema desta entrevista no IHU ideias da próxima quinta-feira, 30-06-2011, quando apresentará a dissertação de mestrado intitulada E o Verbo se fez bit: Uma análise de sites católicos brasileiros como ambiente para a experiência religiosa. O evento iniciará às 17h30min, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU. Sbardelotto é mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, na linha de pesquisa Midiatização e Processos Sociais. Atualmente, é coordenador do Escritório da Fundação Ética Mundial no Brasil (Stiftung Weltethos), um programa do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, em São Leopoldo-RS. É bacharel em Comunicação Social – Jornalismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como a Igreja se posi- não ter se informado anteriormente Em termos oficiais, no nível da alta cionou diante das novas tecnologias sobre um bispo ultratradicionalista esfera, o Vaticano tem publicado docu- e do uso da internet? recém reintegrado à Igreja que ha- mentos que abordam a relação entre a Moisés Sbardelotto – Pelo que temos via negado a existência das câmaras Igreja e as mídias digitais, como, por visto especialmente nos últimos anos, de gás durante o Holocausto, Bento exemplo, as mensagens por ocasião do a Igreja Católica tem mantido uma re- XVI afirmou: “Disseram-me que o Dia Mundial das Comunicações Sociais. lação de “amor e ódio” com os meios acompanhar com atenção as notícias A última, do dia 5 de junho de 2011, de comunicação e particularmente ao nosso alcance na internet teria trata do tema “Verdade, anúncio e au- com as mídias digitais, tendo estado permitido chegar tempestivamente tenticidade de vida, na era digital”. Ou no centro de inúmeras crises. Nesse ao conhecimento do problema. Fica- seja, essa nova ambiência é uma temá- processo de reviravolta sociocomuni- me a lição de que, para o futuro, na tica que interroga a Igreja, que se en- cacional, a Igreja ainda está tatean- Santa Sé, deveremos prestar mais contra tão enraizada na cultura escrita do em busca de um reposicionamen- atenção a esta fonte de notícias”. impressa e nos meios de comunicação to institucional. Ou seja, o papa assumiu que basta- de massa, recolhendo ainda os despo- Em 2009, em um gesto histórico, ria ter dado uma simples “googlada” jos do papado multimidiático de João o papa enviou uma carta a todos os para saber quem era esse bispo. Paulo II. Nessa mensagem, há um avan- bispos do mundo, na qual reconhe-  Aqui o entrevistado se refere ao bispo bri- ço quando se reconhece que “as no- tânico Richard Williamson. Sobre o caso, leia ceu que cometera um erro “comu- a seguinte matéria no sítio do IHU http://bit. vas tecnologias estão mudando não só nicacional”. Referindo-se ao fato de ly/aanj6l (Nota da IHU On-Line) o modo de comunicar, mas também a 46 SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 própria comunicação em si mesma, po- aconteceu, que templo-Igreja é esse e dendo-se afirmar que estamos perante “Hoje, o transcendente que relação fiel/Deus se manifesta em uma ampla transformação cultural”. meio a seus bits e pixels. Por outro lado, na mensagem, Ben- se digitalizou. E, como o Exemplo disso é que a experiência to XVI afirma que “como qualquer da fé – dentre outras diversas manifes- outro fruto do engenho humano”, as Moisés bíblico, as pessoas tações religiosas – pode ser vivenciada novas tecnologias da comunicação, se na internet por meio de diversos servi- “usadas sabiamente, podem contribuir sobem a montanha digital ços: versões online da Bíblia e de tex- para satisfazer o desejo de sentido, tos sagrados; orientações online com verdade e unidade que permanece a porque veem uma sarça líderes religiosos; pedidos de oração; aspiração mais profunda do ser huma- as chamadas “velas virtuais”; progra- no”. Embora reconhecendo o alcance ardente em seu topo e mas religiosos em áudio e vídeo; den- sociocultural das mídias digitais, a tre muitas outras opções. O fiel, onde Igreja ainda se centra na questão do buscam a presença de quer que esteja, quando quer que seu uso – que poderia ser, nesse enten- seja, por meio da internet, desenvolve dimento, bom ou ruim (no final, o papa Deus na internet” um novo vínculo com a Igreja e com o diz: “Convido sobretudo os jovens a transcendental, em um novo ambien- fazerem bom uso da sua presença no nifica atribuir a função de “guia” a um te de culto. Isso possibilita uma nova areópago digital”). aparelho digital personalizado? São es- modalidade de revelação e de mani- A preocupação, no entanto, de- sas lógicas, anteriores ainda a um bom festação de Deus e do sagrado: agora, veria ir muito além disso. A internet, ou mau uso, que merecem reflexão. porém, midiatizada – uma espécie de embora sendo “fruto do engenho hu- midioteofania. mano”, está ligada também a formas IHU On-Line – De que maneira a ma- A partir desse desvio do olhar do fiel e práticas de vida intrínsecas a ela. nifestação religiosa da Igreja e dos dos templos tradicionais para os novos Como analisa Gordon Graham, novida- fiéis se transformou a partir da utili- templos digitais, ocorrem alterações des tecnológicas como a internet não zação da internet? também na formação da identidade são positivas apenas por serem novas, Moisés Sbardelotto – Em uma socieda- individual e religiosa. Cada tecnologia nem negativas apenas por serem tec- de em midiatização, o religioso já não traz consigo uma nova maneira de ser nológicas. Mas também não são neu- pode ser explicado nem entendido sem e de fazer. Com o desenvolvimento das tras: nas mídias digitais online, por se levar em conta o papel das mídias. tecnologias digitais, características exemplo, põe-se de manifesto um de- Na transformação cultural de hoje, as como a digitalidade (o sagrado molda- terminado tipo de ser humano. Mesmo mídias organizam e impregnam o social, do em bits e pixels), a ubiquidade (o um “bom uso” traz consigo lógicas que e passamos a viver em uma realidade sagrado acessível em qualquer ponto são intrínsecas à técnica. Para exem- sociocultural de permanente comuni- da rede a qualquer momento), a co- plificar, na semana passada, a Basíli- cação midiatizada. Por isso, as mídias nectividade (conexões/interações em ca de São João de Latrão começou a não são meros meios de transmissão de rede entre o sagrado e o fiel e entre emprestar iPods a seus peregrinos com informação, nem apenas extensões dos fiéis) e a hiperdiscursividade (novas um aplicativo projetado especialmen- seres humanos, mas sim o ambiente formas de discurso e narrativas sobre te para guiar o visitante junto às obras no qual a vida social se move. Marshall o sagrado), dentre outras, manifestam de arte, à arquitetura e à história do McLuhan já afirmava que “toda tecno- lógicas e processualidades comunica- local. A proposta, segundo o padre res- logia gradualmente cria um ambiente cionais que modificam o ser, o fazer e ponsável, seria reduzir o ruído provo- humano totalmente novo”, ambientes o experienciar da religião. cado pela visitação de grandes grupos que “não são envoltórios passivos, mas e seus guias, assim como atrair mais os processos ativos”. IHU On-Line – Como se dá a interação jovens. Cada visitante pode até ouvir Hoje, o transcendente se digitali- entre fiel, Igreja e Deus no ambiente as narrações na “voz” de personagens zou. E, como o Moisés bíblico, as pes- digital brasileiro? históricos como o próprio imperador soas sobem a montanha digital porque Moisés Sbardelotto – São as “ações Constantino. Mas, no fundo, o que sig- veem uma sarça ardente em seu topo entre” sistema e fiel que possibilitam  A Basílica de São João de Latrão localizada na e buscam a presença de Deus na In- a comunicação e a construção de sen- praça de mesmo nome em Roma, é a Catedral ternet. Portanto, se as mídias digitais do Bispo de Roma: o Papa. Seu nome oficial é tido religioso na internet. De outra Archibasilica Sanctissimi Salvatoris (Arquibasí- como a internet hoje “viraram um forma, isso não ocorreria. Na pesqui- lica do Santíssimo Salvador) e é considerada a templo”, com tantas ofertas de sagra- sa, analiso essas interações por meio “mãe” de todas as igrejas do mundo. É uma do disponíveis, cabe analisar como isso das quatro basílicas patriarcais. (Nota da IHU de três eixos conceituais – interface On-Line)  Herbert Marshall McLuhan (1911-1980): so- (as materialidades gráficas dos sítios  Constantino I, também conhecido como Cons- ciólogo canadense. Fez,����������������������� em suas obras, uma católicos), discurso (coisa falada e es- tantino Magno ou Constantino, o Grande (272- crítica global de nossa cultura, apontando o 337): imperador romano, proclamado augusto fim da era do livro, com o domínio da comu- crita nos sítios católicos) e ritual (ope- pelas suas tropas em 25 de julho de 306 e go- nicação audiovisual. Seus principais livros são rações, atos e práticas do fiel). vernou uma porção crescente do Império Romano A galáxia de Gutenberg (1962) e O meio é a Com relação à interface, o sagrado até a sua morte. (Nota da IHU On-Line) mensagem (1967). (Nota da IHU On-Line) SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 47 que é acessado pelo fiel passa por di- sítios brasileiros, esse discurso é cons- com que o indivíduo prefira praticar versos níveis de codificação por parte truído a partir de três atores: o fiel (o a sua fé na internet, em vez de fazer do sistema. Analisamos quatro deles: internauta); um “outro” (com quem isso na igreja de seu bairro. 1) a tela; 2) periféricos como teclado e o fiel dialoga e intercede junto ao sa- Portanto, se a comunicação (suas mouse; 3) a estrutura organizacional das grado); e um “Outro”, o destinatário lógicas, seus dispositivos, suas opera- informações (menus); e 4) a composição último (Deus, Nossa Senhora ou os san- ções) está em constante evolução, a gráfica das páginas em que se encontram tos, por exemplo). É por meio do dis- religião, ao fazer uso dela, também disponíveis os serviços e rituais católi- curso, portanto, que se gera o sentido acompanha essa evolução e é por ela cos. Ou seja, a interação é possibilitada religioso nos sítios católicos. Nele, é impelida a algo diferente do que tradi- porque o fiel decodifica o sagrado a par- possível perceber virtualmente enti- cionalmente era. É essa complexidade tir da configuração computacional ofer- dades como o “enunciador” e o “enun- da interface entre o fenômeno da co- tada pelo sistema. Por meio de instru- ciatário” – que estão inscritas e vivem municação (a partir de suas ocorrên- mentos e aparatos físicos e simbólicos, no interior do texto –, assim como as cias concretas, como o caso da inter- o fiel “manipula” o sagrado ofertado e regras para as interações entre eles, net) e o fenômeno religioso (a partir organizado pelo sistema e navega pelos já que o discurso não é simplesmente da utilização dos dispositivos comuni- seus meandros da forma como preferir. “aquilo que traduz as lutas ou os sis- cacionais para a sua ocorrência) que Por meio da interface, o sistema informa temas de dominação, mas aquilo por exige maior atenção por parte da Igre- ao usuário seus limites e possibilidades, que, pelo que se luta, o poder do qual ja e dos pesquisadores. e este comunica ao sistema suas inten- nos queremos apoderar”, como tam- ções. O sistema indica ao fiel não apenas bém aponta Foucault. IHU On-Line – Que religião nasce da uma forma de ler o sagrado, mas tam- Por último, o fiel interage com o mídia? bém uma forma de lidar com o sagrado, sagrado por meio de rituais. Até então Moisés Sbardelotto – Essa é a pergun- que raramente é neutra ou automática: celebrados no templo físico, eles ago- ta-chave. As respostas são múltiplas, ela carrega consigo sentidos e afeta a ra se deslocam para o ambiente online por isso posso dar apenas algumas in- mensagem transmitida. (como, por exemplo, as “velas virtu- dicações. O que podemos perceber é Por outro lado, o contato entre fiel ais”, o “terço virtual”, a “adoração que a fé vivenciada, praticada e expe- e sagrado passa pelo discurso, pela ao Santíssimo”, missas etc.). Por isso, rienciada nos ambientes digitais apon- narração da fé, pela “realidade mate- os chamados rituais online são atos ta para uma mudança na experiência rial de coisa pronunciada ou escrita”, e práticas de fé desenvolvidos pelo religiosa do fiel e da manifestação do nas palavras de Michel Foucault. Nos fiel por meio de ações e operações de religioso, por meio de novas tempora-  Michel Foucault (1926-1984): filósofo fran- construção de sentido em interação lidades, novas espacialidades, novas cês. Suas obras, desde a História da Loucura até a História da sexualidade (a qual não pôde com o sistema católico online para a materialidades, novas discursividades completar devido a sua morte) situam-se den- busca de uma experiência religiosa. e novas ritualidades. Assim, a religião tro de uma filosofia do conhecimento. Seus O ritual online, portanto, esclarece como tradicionalmente a conhecemos primeiros trabalhos (História da Loucura, O Nascimento da Clínica, As Palavras e as Coisas, mecanismos e processualidades fun- também está mudando, e a “nova re- A Arqueologia do Saber) seguem uma linha es- damentais do fenômeno religioso con- ligião” que se descortina diante de truturalista, o que não impede que seja consi- temporâneo. Tudo isso, analisado mais nós nesse “odre novo” traz também derado geralmente como um pós-estruturalista devido a obras posteriores como Vigiar e Punir detalhadamente, estará disponível no um “vinho novo”, que caracteriza a e A História da Sexualidade. Foucault trata Cadernos IHU, n. 35, que sintetiza a midiatização digital (suas formas ca- principalmente do tema do poder, rompendo pesquisa. racterísticas de ser, existir, pensar, com as concepções clássicas deste termo. Em três edições a IHU On-Line dedicou matéria de saber, agir etc. na era digital). Junto capa a Foucault: edição 119, de 18-10-2004, IHU On-Line – Como o religioso pode com o desenvolvimento de um novo disponível para download em http://migre. ser explicado e entendido em uma meio, como a internet, vai nascendo me/vMiS, edição 203, de 06-11-2006, disponí- vel em http://migre.me/vMj7, e edição 364, sociedade em midiatização? também um novo ser humano e, por de 06-06-2011, disponível em http://bit.ly/ Moisés Sbardelotto – O que se cons- conseguinte, um novo sagrado e uma k3Fcp3. Além disso, o IHU organizou, durante tata hoje é um desvio do olhar do fiel nova religião, por meio de algumas mi- o ano de 2004, o evento Ciclo de Estudos so- bre Michel Foucault, que também foi tema da dos templos tradicionais para os novos croalterações. edição número 13 dos Cadernos IHU em For- templos digitais, que estimulam, sob Por um lado, temporalmente, os mação, disponível para download em http:// novos formatos e protocolos, a expe- tempos e períodos tradicionais, dividi- migre.me/vMjd sob o título Michel Foucault. Sua contribuição para a educação, a política rimentação de uma prática religiosa dos e organizados pela Igreja liturgi- e a ética. Confira, também, a entrevista com que encontra suas raízes na realidade camente e na vida cotidiana, mudam o filósofo José Ternes, concedida à IHU On- offline (como o “acender de velas”), radicalmente na internet. Agora, um Line 325, sob o título Foucault, a sociedade panóptica e o sujeito histórico, disponível em mas que agora é ressignificada para o ritual religioso (missa, adoração ao http://migre.me/zASO. De 13 a 16 de setem- ambiente digital. Existe algo que faz Santíssimo, acompanhamento espiri- bro de 2010 aconteceu o XI Simpósio Interna- político da vida humana, publicada em 13-09- tual etc.) pode ser feito a qualquer cional IHU: O (des)governo biopolítico da vida 2010, disponível em http://bit.ly/bi5U9l, e a humana. Para maiores informações, acesse edição 344, intitulada Biopolitica, estado de hora do dia, independentemente dos http://migre.me/JyaH. Confira a edição 343 excecao e vida nua. Um debate, disponível em horários dos demais membros da co- da IHU On-Line, intitulada O (des)governo bio- http://bit.ly/9SQCgl. (Nota da IHU On-Line) 48 SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 munidade religiosa, e em qualquer lu- que novas informações também podem gar, em casa, no horário de trabalho, “São as ‘ações entre’ ser adicionadas, deletadas, corrigidas ou mesmo em trânsito, independente ou relacionadas segundo os protocolos da agenda do padre, do religioso ou sistema e fiel que da internet. Isso acaba abrindo o tex- dos demais fiéis. O sistema se encar- to original a inúmeras interpretações rega de mediar essa interação, apesar possibilitam a em uma hermenêutica infindável de do tempo offline da vida cotidiana. Os novos sentidos. As relações e vínculos processos lentos, vagarosos e penosos comunicação e a nesse ambiente também são fragmen- da ascese espiritual (os “séculos dos tários, já que o fiel seleciona e escolhe séculos”, “até que a morte os sepa- construção de sentido a sua alteridade discursiva (terrena ou re”) vão sendo agora substituídos pela divina). O fiel-internauta vive uma lógica da velocidade absoluta. Passa- religioso na internet” experiência de fé com uma ausência mos, assim, a viver uma fé na expec- objetiva (antipresença) do “outro”, tativa de imediaticidade (tudo deve sigo uma materialidade totalmen- seja ele outra pessoa ou Deus, o que, estar disponível agora, já). te própria: numérica, de dígitos que nem por isso, caracteriza uma fé vi- Por outro lado, há um deslocamen- podem ser alterados, deletados, re- vida isolada e individualisticamente, to espacial da experiência religiosa: a combinados de acordo com a vontade pois ele continua recorrendo a uma celebração feita do outro lado do país do sistema e/ou do fiel, embora com comunidade de fé, embora ressignifi- ou do mundo pode ser agora assistida resquícios de uma religiosidade pré- cada. O deslocamento, em suma, dá- pelo fiel em seu quarto – e é ele quem midiática (como o uso de velas, por se em direção à lógica do acesso, em decide quando a missa vai começar. exemplo). Assim, a complexidade da que o pertencimento-participação em Um fiel do interior da Amazônia não técnica não pressupõe o abandono de uma comunidade não se estrutura por precisará se deslocar até o Santuário tradições discursivas. Porém, elas são uma localização geográfica, mas sim Basílica de Nossa Senhora Aparecida, ressignificadas: na “capela virtual”, por uma ambiência fluida em que só em São Paulo, para fazer suas orações, o sol sempre brilha, as flores sempre faz parte dela quem a ela tem aces- prostrar-se diante da imagem e até estão abertas, vivas e coloridas, as so. E são comunidades instauradas co- mesmo acender sua vela, pois, pela velas até se acendem sozinhas, e a municacionalmente: ou, vice-versa, é Internet, a “capela virtual” acolhe cerimônia inicia assim que o fiel entra a interação comunicacional que cria seus pedidos e lhe oferece um vídeo (adeus, preocupação com o atraso!). novas comunidades ao tornar comum do interior da basílica para venerar a Claro, algumas velas digitais também entre os fiéis aquilo que social, políti- santa pela internet. Assim, instaura- se “consomem” e diminuem de tama- ca, existencial e religiosamente é in- se uma nova forma de presença: uma nho com o passar dos dias, mas não há comum ou não pode nem deve, a seu “telepresença”, como indica Lev Ma- mais os “incômodos” da cera derreti- ver, ficar isolado. Assim, no fundo, há novich, possibilitada pela produção da, dos vapores e fumaças, dos riscos uma lógica do compartilhamento e da de presença encarnada nas represen- de incêndio. Mas, hoje, acrescentam- publicização: antes, o pedido do fiel tações e simulações de sagrado dispo- se novas camadas intermediatórias en- era privado, restrito à sua intimidade níveis no sistema católico online. Mas tre fiel e Deus, agora tecnocomunica- com Deus. Hoje, é público, é compar- a essência dessa nova modalidade de cionais: computador, teclado, mouse, tilhado com todos, e seu conteúdo é presença é a não presença, a “antipre- interfaces, fluxos de interação comu- de livre acesso. sença”. Não é necessário que o fiel es- nicacional etc. Porém, tudo isso, em Por fim, ritualisticamente, os atos teja lá fisicamente para estar lá digi- geral, passa despercebido pelo fiel, e práticas de fé desenvolvidos pelo talmente: o fiel pode agora ver e agir reforçando a transparência da técnica: fiel por meio de ações e operações de à distância. Essa “bilocação” não se a sensação de sagrado construída pelo construção de sentido em interação deve à “santidade” do fiel, mas sim à sistema promove (ou reforça) a crença com o sistema constroem-se agora na técnica comunicacional, que permite de que o fiel está diante de (e apenas internet. E novos fluxos começam a ao fiel esse seu “poder ultraterreno” de) Deus. Além disso, a fé digital é vi- surgir, como rituais offline reconstru- nessa ambiência digital. vida com uma sensação de carência: ídos midiaticamente e rituais online exigem-se sempre novas tecnologias, que são estendidos midiaticamente A fé digital crescendo a necessidade de ser me- para o ambiente offline. Manifesta- diado pela tecnologia comunicacional, se, assim, não apenas uma liturgia as- Além disso, a fé digital traz con- até na espiritualidade. sistida pela mídia, mas também uma liturgia centrada, vivida, praticada e  Lev Manovich Moscou (1960): crítico literá- Sentido religioso rio e professor universitário russo, estabeleci- experienciada pela mídia, em que esta do nos Estados Unidos. É pesquisador na área também oferece modelos para as prá- de novas mídias, mídias digitais, design e estu- Discursivamente, o fiel constrói ticas, o espaço e o imaginário litúrgi- dos do software (software studies). Lev Mano- sentido religioso por meio de narrati- vich mudou-se nos anos 1980 para os Estados cos. Instaura-se, em suma, uma nova Unidos, onde realizou seus estudos em cinema vas fluidas e hipertextuais, marcadas sacramentalidade. O que fica escondi- e computação. (Nota da IHU On-Line) por uma constante transformação, em SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 49 do nos templos territorializados, como “O sistema indica ao fiel rios do mundo offline. Uma mídia tão o ritual de acender velas, passa a ser simbólica da pós-modernidade como exposto e oferecido como o principal não apenas uma forma a internet permeia, mas também al- ritual religioso das “capelas virtuais”. tera, a vivência e a experiência de A partir da midiatização digital de ler o sagrado, mas uma fé tradicional, pré-moderna. do fenômeno religioso, portanto, vai Não acredito que se dê um processo acontecendo uma metamorfose da fé, também uma forma de de substituição de um por outro, mas somada aos diversos outros âmbitos so- sim uma justaposição das ofertas re- ciais e históricos que evidenciam esse lidar com o sagrado, que ligiosas offline e online, a partir da- processo. Ou seja, embora mantendo quilo que o mundo digital concede a alguns de seus aspectos tradicionais, raramente é neutra ou mais ou a menos, ou de forma mais produzem-se novas qualidades do reli- instantânea, acessível ou disponível gioso. Mas não podemos perder de vis- automática: ela carrega do que a religião tradicional. ta que a hierofania nunca se restringe a um único âmbito do humano. Por consigo sentidos e afeta a Raízes agrárias meio da midiatização, revelam-se al- gumas faces desse sagrado, que não se mensagem transmitida” Nesse sentido, para religiões tradi- limita a essas manifestações. O sagra- cionais como a Igreja Católica, ainda do escapa ao midiático. Paralelamen- processualidades da midiatização, a tão enraizadas em culturas e origens te aos ambientes online, continua-se lógica midiática vai subsumindo outras agrárias e pastoris, são necessárias vivendo, praticando e experienciando lógicas sociais, em termos de regula- mudanças realmente profundas em a fé nos tradicionais espaços de cul- ção institucional, de conteúdo simbó- seus sistemas simbólicos para que pos- to, em crescentes tensões e desdobra- lico e de práticas individuais. sam ser capazes de responder a todos mentos. esses desafios na compreensão de uma IHU On-Line – Qual o significado da nova forma de ver e de viver o “novo IHU On-Line – E o que a religião em religião em uma sociedade midiati- mundo” que vai nascendo. Noções uma sociedade midiatizada revela zada? Como ela constrói e gera senti- como tempo, espaço, comunidade, acerca da mídia? do nesse novo contexto? autoridade, presença, participação Moisés Sbardelotto – Estamos em uma Moisés Sbardelotto – Hoje, os fiéis es- etc. – tão centrais ao contexto religio- nova etapa da comunicação, em que as tão fazendo de forma online grande so – vão sendo reconstruídos e readap- mídias não são apenas veículos de tro- parte daquilo que fazem offline, mas, tados a uma nova configuração social ca de informações, nem se resumem como dizíamos, fazem isso de uma for- que, por vezes, é combatida pela Igre- a instaurar mediações entre âmbitos ma e em um ambiente diferentes, que ja e tem sua importância diminuída, sociais. Com a convergência tecnoló- geram diferença para a religião como como um processo localizado e sem gica e midiática, temos um ambiente a conhecemos. Essas microalterações grandes repercussões para as estrutu- formado pela comunicação midiática, na vivência da fé não são apenas uma ras eclesiais. Porém, esse é um grande onde se dão os processos sociais con- isenta mudança de “forma”, mas sim, engano, já que, a partir das beiradas, temporâneos. Existe agora uma cultu- em sentido mcluhaniano, uma mudan- uma modificação de fundo vai ocorren- ra atravessada, perpassada, embebida ça de “conteúdo”: religião e mídia co- do, para o bem ou para o mal, na con- pelas mídias. A partir dessa compreen- evoluem de forma midiatizada, geran- figuração das religiões tradicionais. são, percebe-se que é esse ecossiste- do novos predicados. ma midiático que constitui o socius. O Em um contexto de aprofunda- IHU On-Line – Como vê o incentivo e conteúdo do fenômeno da midiatiza- mento das interações sociais via mí- o estímulo que a Igreja tem dado à ção é a convergência das mídias, cada dia, ganha menos destaque o discur- relação e ao vínculo do fiel com Deus vez mais abrangente, cada vez mais so sobre Deus, e mais o contexto, as por meio do ambiente digital? acelerada. Não se trata apenas de um circunstâncias específicas, em que Moisés Sbardelotto – A relação com os avanço tecnológico, mas sim de uma as pessoas interagem com Deus: não meios de comunicação é quase vital à nova configuração social ampla, que como as pessoas creem ou devem crer Igreja. Como indicou a Instrução Pasto-  gera novos sentidos em escala comple- (doxa), mas sim como as pessoas ex- ral Communio et progressio , ainda em xa e dinâmica, a partir da tecnologia e pressam a sua fé (praxis). Hoje, esse 1971, “os modernos meios de comu- para além dela. contexto da fé é vivenciado na inter- nicação social dão ao homem de hoje Analisar a midiatização da religião, net, é um o contexto comunicacional novas possibilidades de confronto com portanto, é analisar também um pro- construído pela interação entre o fiel a mensagem evangélica”. Para o então cesso de secularização: o processo e o sistema católico online. No fundo,  A Instrução Pastoral “Communio et Progres- histórico em que as mídias assumiram os fiéis encontram nos protocolos da sio”, sobre os meios de comunicação social, muitas das funções sociais que costu- internet características outras, que foi publicada em 1971 por mandato do Concí- mavam ser desempenhadas, por exem- lio Ecumênico II do Vaticano. Pode ser lida em são ou não encontradas nos santuá- português em http://bit.ly/j8pAmK (Nota da plo, pela própria religião. Por meio das IHU On-Line) 50 SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 Papa Paulo VI, a Igreja “viria a sentir-se “Por outro lado, o técnica diante das impossibilidades e culpada diante do seu Senhor” se não limitações da episteme contemporâ- lançasse mão dos meios de comunica- contato entre fiel e nea (social, política, econômica, mas ção. Já para o Papa João Paulo II, na também religiosa). A tentativa de encíclica De Redemptoris Missio, os sagrado passa pelo conjugar e resolver essa tensão será meios de comunicação social seriam cada vez mais forte. “o primeiro areópago dos tempos mo- discurso, pela narração dernos”. E aqui, o papa reconhece um IHU On-Line – A virtualização provo- ponto importante, já em uma era di- da fé, pela ‘realidade ca alguma modificação na vivência gital (1990): “A experiência humana da fé? como tal se tornou uma experiência material de coisa Moisés Sbardelotto – Cremos que vivida através dos mass media”. apontamos diversos aspectos nas res- Portanto, em nível internacional, pronunciada ou escrita’” postas anteriores. Mas a pergunta é começando pelo órgão máximo da válida para debater o conceito de Igreja, o Vaticano lançou sua página “virtual”, tão disseminado no campo online ainda nos primórdios da inter- ligiosos, além de links para a Jornada de estudos das mídias digitais. Virtual net, em 1995. O sítio continha apenas Mundial da Juventude e para a página é um termo que vem do latim (vir- o texto da mensagem de Natal do en- do Vaticano no YouTube. O fiel conti- tus), no sentido de força, potência, tão Papa João Paulo II para aquele ano nua apassivado para o sistema, e pre- virtude. Ou ainda, filosoficamente, e um e-mail de contato. Hoje, o sítio cisa encontrar brechas em outros am- é aquilo que não tem efeito atual oficial da Igreja Católica já está dis- bientes online, não oficiais, em que dá (“concreto”), que existe somente ponível em oito idiomas, incluindo o vazão à sua construção simbólica do em potência. Mas essa conceituação português e até o latim, língua oficial religioso. não nos possibilita compreender a do Vaticano. Em junho de 2011, foi internet e suas processualidades. A lançada uma nova interface do sítio Tecnologia à “nossa imagem internet pode, sim, ser considerada com poucas alterações na página de e semelhança” virtual quando o indivíduo está, por entrada, principalmente, um menu exemplo, descansando no campo, em formato de “calendário maia”, Porém, é preciso superar, por par- longe de um computador conectado. como li em uma crítica. A grande te da Igreja, uma imagem das mídias Nesse momento, ela, para ele, é vir- novidade do novo sítio ainda está meramente como meios a seu dispor tual. Porém, assim que ele a acessa e em construção, que será um serviço para a difusão de uma mensagem, interage com a rede, ele já a atuali- de notícias do Vaticano, o News.va. como se a “influência” da tecnologia za, a presentifica, poderíamos dizer. Também houve uma recente amplia- sobre nossas vidas fosse só um proble- Passa-se do virtual ao atual. Por isso, ção dos serviços prestados pelo sítio, ma no “modo de usar”. Ao contrário, mesmo que a informação da internet como uma seção de vídeos e a criação é necessário compreender que toda a esteja “virtualmente presente em de uma “visita virtual” a diversas ba- tecnologia – incluindo a comunicacio- cada ponto da rede onde seja pedi- sílicas vaticanas, além da Capela Sis- nal midiática – não é uma “escrava” da”, como afirma Pierre Lévy10, ela tina e da Necrópole Vaticana. a serviço do ser humano, nem mero se atualiza, fisicamente até, em al- Além do sítio oficial, o Vaticano tam- prolongamento, extensão ou magni- gum lugar (por exemplo nos mais de bém criou outros serviços específicos, ficação das capacidades humanas. A 7 mil metros quadrados ocupados pe- como a página Pope2You (pope2you. tecnologia é nossa “irmã” (como diria los quase 2 mil servidores do centro net), lançada em 2009. A intenção de São Francisco) e nasce à “nossa ima- de dados do Google na Califórnia, ou lançar esse sítio foi o de aproximar os gem e semelhança”, da nossa “cos- nos mais de 65 mil metros quadrados jovens à mensagem de Bento XVI, ou a tela”, depende de nós. E, por isso, do centro de dados da Microsoft, em chamada “geração digital”, conforme também nos molda poderosamente Chicago), em determinado momento, palavras do próprio pontífice. Foi uma através de uma coevolução cada vez em determinado suporte, deixando aproximação, mas nada além disso. Na mais intensa. Como a Igreja, enquan- assim de ser virtual. A internet em página, os usuários têm acesso a apli- to instituição hierárquica, em sua or- sua virtualidade não é do interesse da cativos para Facebook, iPhone e iPad, ganização interna, irá reagir ao longo comunicação, mas sim a atualização para o recebimento de conteúdos re- do tempo a uma cultura do compar- 10 Pierre Lévy: filósofo da informação que  Redemptoris Missio: encíclica do Papa João tilhamento, da instantaneidade, das estuda as interações entre a internet e a so- Paulo II, publicada em 1990, dedicada ao tema redes, da fluidez de tempo, espaço ciedade. Mestre em História da Ciência e dou- da “urgência da atividade missionária” e da tor em Sociologia e Ciência da Informação e “validade permanente do mandato missioná- e vínculos etc.? Acho que o Wikileaks Comunicação, pela Universidade de Sorbonne, rio”. Nesta carta, o Papa desejava “convidar a e as revoluções no Oriente Médio são França, Lévy é titular da cadeira de pesquisa Igreja a renovar o seu compromisso missioná- demonstrações mais do que suficien- em inteligencia coletiva na Universidade de rio”. (Nota da IHU On-Line) Ottawa, Canadá. Entre outras obras, escreveu  1.- O novo portal do Vaticano, news.va tes de que a cultura contemporânea A ideografia dinâmica:rumo a uma imaginação (http://www.news.va/), foi apresentado ofi- é, em grande parte, o resultado do artificial?. São Paulo: Loyola, 1998. e O que é cialmente nesta segunda-feira, dia 27 de ju- encontro entre as possibilidades da o virtual? São Paulo: Editora 34, 1996. (Nota nho, em Roma. (Nota da IHU On-Line). da IHU On-Line) SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 51 “Um ritual religioso (missa, adoração ao Ciclo de Estudos: Repensando os Clássicos Santíssimo, da Economia – Edição 2011 acompanhamento espiritual etc.) pode ser feito a qualquer hora do dia, independentemente dos horários dos demais membros da comunidade religiosa” do virtual nas interações e processos comunicativos. Por isso, preferimos usar conceitos como digital ou online (conectado), mas que também não são sinônimos. Digital é a operação computacional que lida com quantidades numéricas ou informações expressas por algaris- mos (dígitos), com bits, com “cacos” Adam Smith: os sentimentos morais de informação. Mas os fenômenos aos quais nos referimos aqui não são ape- e as razões da acumulação e da nas digitais, mas também online, ou seja: o acesso do fiel ao “sagrado digi- conservação da fortuna material talizado” se dá por meio da internet, em rede, em qualquer ponto do tempo e do espaço. Em uma analogia teológica, para Palestrante: Prof. Dr. André Filipe Zago se fazer presente na internet, o Verbo se torna informação e faz-se bit. Mas de Azevedo - Unisinos Deus, segundo a tradição cristã, se faz “carne”, para integrar tudo o que é do ser humano: seus órgãos, seus senti- dos, a terra que o envolve. E não ape- nas o seu DNA. Em bits (o DNA da com- putação), o Verbo fica impossibilitado Data de início: 29 de agosto de 2011 de assumir o “homem todo inteiro”, segundo Leonardo Boff – assim como o Data de término: 07 de novembro de 2011 DNA não dá conta de toda a complexi- dade da “carne”. Portanto, na internet - entre fiel, Igreja e Deus - interpõe-se a técnica comunicacional digital, que Local: Sala Ignacio Ellacuría reduz a bits, a “cacos”, a experiência multissensorial do sagrado. E “os bits e Companheiros – IHU fazem com que a matéria seja mais maleável do que os átomos”, como Informações em www.ihu.unisinos.br aponta Kerckhove.

52 SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 IHU Repórter

Frank Jorge

Por Graziela Wolfart, Márcia Junges, Rafaela Kley e Stefanie Telles, | Fotos Arquivo Pessoal

eu nome é Jorge Otávio Pinto Pouey de Oliveira, mas todos o conhecem por Frank Jorge. Ele é músico, multi-instrumentista e uma importante figura do cenário do rock and roll gaúcho. Aqui na Unisinos é um dos coordenadores e professor do cur- so de Formação de Produtores e Músicos de Rock. Na entrevista a seguir, ele conta aspectos marcantes da sua trajetória pessoal e profissional. Saiba um pouco mais Ssobre este porto-alegrense apaixonado por música, literatura e comunicação, cujas raízes vêm da fronteira do Brasil com o Uruguai e Argentina, elementos fundamentais para en- tender o surgimento de Amigo Punk, um de seus grandes sucessos.

Origens – Venho de uma família tango como dos Beatles, que estavam nalista, uma irmã fisioterapeuta, uma muito rica culturalmente. Meu pai é saindo nos anos 1960. Usufruí desse bióloga e outra fisioterapeuta. Já na de Uruguaiana, médico, filho de famí- ambiente de bens culturais, e isso me minha adolescência, acompanhando a lia que trabalhava com agropecuária. marcou profundamente. Eu tinha uma cena musical de Porto Alegre, no final Não cheguei a conviver muito com ele diversidade cultural muito grande em dos anos 1970, surge todo um cenário porque faleceu quando eu ainda era casa, que não é a realidade de todo de música pop brasileira. Era um ce- pequeno. Desde sempre vivi em Porto mundo, embora hoje se tenha a inter- nário de música popular e brega muito Alegre, de onde minha mãe é natural. net. Acho que os filhos ficam um pouco sólido no Brasil, resquícios da Bossa Mas a família dela veio de Santana do à mercê do que a internet mostra; não Nova, Chico, Caetano, Gil, pouca coi- Livramento. Então, minhas origens há um guia para dizer que isso aqui é sa de rock, mas alguns heróis dos anos vêm do interior do nosso estado, da bacana, isso aqui é cool, isso não é. 1970. Mas nos anos 1980 é que vai sur- fronteira com o Uruguai e Argentina gir um apelo forte para eu começar a – Uruguaiana e Paso de Los Libres por Porto-alegrense – Sou porto-ale- tocar violão, e passei a estudar o ins- parte de pai e, por parte da minha grense. Morei um tempo no bairro Bom trumento com 14 anos. mãe, Santana do Livramento e Rivera. Fim, um outro período no bairro Mon’t Quando meu pai veio estudar medicina Serrat, mas sempre indo e voltando no Música – Comecei a tocar violão em em Porto Alegre, conheceu minha mãe, Bom Fim. De um modo ou de outro, 1981. Mal sabia eu que viria a traba- se casou e teve filhos. Gosto sempre de sou muito vinculado a esse lugar. lhar com música de verdade, compon- comentar que tive uma infância muito do, tocando, fazendo shows. Comecei legal, rica de convivências, com todos Influências – Costumava ouvir or- a tocar porque eu gostava de música, os irmãos juntos. Tenho três irmãs e questras de tango, Paixão Cortes, Celly mas não tinha uma formatação, uma dois irmãos antes de mim. Sou o caçu- Campelo, Mutantes, Beatles, Roberto clareza que seria, de certo modo, um la desses seis. A família era muito li- Carlos. Esse acesso e a importância de ofício, uma profissão. Esse período vai gada à música e à leitura. Minha mãe, entender com naturalidade o acesso à de 1981 até 1986, uma época adoles- mesmo não tendo feito curso superior, informação ampla foi vital para o que cente, confusa e deslocada do mundo, tinha uma formação bacana, sólida, eu viria fazer. como qualquer adolescente, em qual- cultural, de gostar muito de ler, de quer época. E eu estava ali tocando música, MPB, tango. Meu pai, quando Irmãos – Meus irmãos não têm en- violão, terminando o ensino funda- vivo, viajou muito com mamãe pela volvimento formal com a música. A mental, depois o ensino médio, mas Argentina, Uruguai em congressos de mais velha, mais próxima de mim, é completamente sem saber o que faria medicina. De lá trazia discos tanto de nutricionista, e tenho um irmão jor- da vida. Tinha uma margem de gran-

SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 53 de prazer e identificação com música, de estar atuando ainda com bandas, roteiro, edição de fita, que nem era com literatura, mas não me enxergava principalmente com Graforreia Xilar- digital ainda. Fiz curso de radialista, como um artista. Servi o Exército em mônica, Julio Renny, e estar corren- para ter uma mínima condição do pon- 1985, e em 1983, 1984 tive as primei- do atrás de outras possibilidades de to de vista de regulamentação do ofí- ras bandas, que são importantes pela ganhos dentro da área da Literatura. cio, não sendo jornalista, o que agre- ideia da largada, de dar um start, ter No final dessa década surge o Sarau gou muito. Fiquei quase três anos na coragem e cara de pau para fazer um Elétrico, com a Kátia Sumann e o Au- TV Educativa e fazendo no período um show. Estou falando do Prisão de ven- gusto Fischer. Comecei a carreira de programa de rádio na FM Cultura, isso tre, banda anterior à Graforreia Xilar- escritor, mas muito destrambelhada sempre tocando o dia a dia familiar, mônica. Mas essa questão de profis- (com o perdão da palavra). De tanto minha proximidade com minha mãe, sionalização ocorre em 1986, quando que lia crônicas e gostava de escri- com meus irmãos, dentro das minhas saio do quartel e entro nos Cascavel- tores mais escatológicos, mais irre- condições. E, a essa altura, já tinha os letes. Isso tem ainda a ver com aquilo verentes, comecei a tentar escrever dois filhos, Rafael e Érico, e, seguin- que comentei: eu não tinha noção de algo assim e aí, com o Sarau, tive que do essa sequência, depois da TVE em que entrar naquela banda estava sen- gerar uma produção textual para ler. 2003, eu atuo na Usina do Gasômetro do uma profissionalização e foi o que Isso porque além de ler outros escri- por um ano como diretor, que também aconteceu. Com 20 anos de idade, to- tores, tinha um momento em que eu foi outra atribuição. É também o ano car numa banda, num cenário históri- lia alguma coisa minha, inédita. Isso (2004) que nasce minha terceira e últi- co, num contexto brasileiro e riogran- foi gerando material, acabei lançando ma filha, a Glória, que já está com seis dense, que estava repleto de bandas quatro livros, mas não era um projeto anos. Minha esposa se chama Daniela e novas, foi algo marcante. O Cascavel- literário, era uma literatura possível é professora de inglês. letes tinha uma linguagem muito pró- que estava ao meu alcance fazer, que pria, e daí estreou no bar Ocidente em era um texto meio despretensioso, às Outros caminhos profissionais e 1986 e, em seguida, estava fazendo vezes um conto, um poema. É na dé- entrada na Unisinos – Em 2005, co- abertura de shows do Capital Inicial, cada de 2000 que vou dar um “pique” meço a trabalhar na Secretaria de em Porto Alegre. maior nessa perspectiva, porque nas- Cultura de São Leopoldo, que viria ce meu segundo filho, em 1999. Então, a ser a minha ponte com a Unisinos, Curso de Letras – De 1986 em dian- é nos anos 2000, que encaro de uma pela proximidade geográfica. O Fabrí- te foi um ritmo frenético. Esse foi o maneira pragmática a necessidade de cio Carpinejar me convidou para ser ano em que, além da estreia do Cas- seguir sendo músico. Sempre fui uma o seu secretário adjunto. Ele seria o cavelletes, entrei no curso de Letras pessoa de não trabalhar só com um secretário de cultura, mas neste ínte- da PUC. Eu tinha uma noção e inte- nicho do mercado musical, “só com rim desistiu e aí eu me construí como resse pela academia, por uma profis- shows em bares”. Eu dialogava já com alguém disponível para trabalhar na são reconhecida pela interface do co- a Câmara Riograndense do Livro, com Secretaria de Cultura. Estava inician- nhecimento, do saber científico. Isso as secretarias de cultura, tentava ter do a Secretaria, e de certo modo não aconteceu sem uma imposição fami- uma rede muito ampla de relações, de deixei de ser um fundador da Secreta- liar. Minha mãe tinha respeito por em laços fortes e fracos, que ia gerando ria de Cultura de São Leopoldo. Fiquei nossas escolhas, mas estava implícito uma perspectiva de trabalho e de ga- ali por um ano e meio e, no decor- na maneira como funcionava a famí- nhos, uma continuidade. Todo proble- rer de 2006, o Fabrício me convidou lia, como enxergava o mundo, o quan- ma de um artista é a continuidade: tu para conhecer a unidade acadêmica to era importante que cada um tivesse desenvolves um disco, um trabalho e de graduação da Unisinos. O Gustavo a sua passagem pelo ensino superior. tem que divulgar bem, distribuir bem, Borba atuava com os novos projetos e Fiz Letras por gostar muito de Litera- fazer shows e tu tens que estar sempre a ideia que o Fabrício tinha era que tura. Cursei a graduação conciliando pensando no próximo passo. Vais fazer eu constituísse um curso de música a fase de efervescência juvenil, e to- o quê? Gravar outro material? Vais ten- diferente. Nessa história com a Uni- cando com . Foi bem tar gravar em outros estados? Então, sinos sempre tive uma relação muito bacana, muito rico, tive professores nos anos 2000 foi importante manter boa, muito intensa. É um namoro que excelentes, assisti a vários seminários a atividade musical. Comecei a lançar está durando muito, no sentido de e palestras importantes. Ficava exta- discos solo, só como Frank Jorge, mas surpreender minhas expectativas e da siado. Entre colegas falávamos muito já tentando trabalhar como redator própria Universidade, com um nível sobre literatura, em criar um grupo de em produtora de vídeo. de satisfação também pelo que tanto estudos, um grupo literário. A gradu- eu quanto o professor Sefrin estamos ação durou de 1986 a 1992. Em 1991 Experiência em TV – Fui convidado, atingindo. Fiz um rascunho singelo nasceu meu primeiro filho, o Rafael, muito em função do Sarau elétrico, a do que poderia ser um curso de mú- hoje estudante de Letras na UFRGS. trabalhar na TV Educativa, durante o sica diferente dos cursos tradicionais governo Olívio Dutra. Não tinha no- de música erudita, de licenciatura, Aventuras literárias – Nos anos ção de como era trabalhar em TV, mas composição e regência. Pensei em um 1990, já vivia uma outra realidade, aprendi a trabalhar, a fazer produção, curso diferente, agregando saberes na 54 SÃO LEOPOLDO, 27 DE JUNHO DE 2011 | EDIÇÃO 367 e fizemos cinco -fes ta alegria, um humor, uma visão tivais fora do câmpus mais crocante das coisas. Muito Unisinos, em Porto mais do que cumprir com assidui- Alegre. Ano passado, dade, com profissionalismo. Sim, entrei em uma espe- isso tudo é importante, mas tem cialização em docên- que enxergar a graça das coisas. cia no ensino superior, aqui na Unisinos, cur- Unisinos – O bacana de en- so que foi formatado tender uma universidade jesuíta com muito zelo, com e ler alguma coisa da história da um corpo docente ex- Companhia de Jesus, da pedago- celente. Passei pela gia inaciana, é que você vai per- seleção do mestrado cebendo a construção de saberes do PPG em Comunica- e competências como um ideal ção aqui da Unisinos. muito bacana, muito singelo. Mi- área do Direito, de software de E agora estou muito nha vida inteira teve muito desta áudio, da história da música po- feliz, independentemente da cor- perspectiva de não se enxergar pular. Fomos construindo um nível reria, de manter a coordenação acovardado, sem capacidade de de sensibilidade e atenção tão do curso com o professor Sefrin, trabalhar os desafios. E é o que interessante que o curso de For- com a docência, com o fato de es- a gente faz no dia a dia: pensar mação de Produtores e Músicos de tar estudando. Esta tem sido mi- em uma integração para que o Rock foi ofertado no final de 2006 nha realidade. aluno consiga ter um bom domí- e a primeira turma já entrou no nio dos conteúdos que vão fazer início de 2007. Já formamos cin- Rádio – Agora recebi um convi- diferença no mercado, e que vá co turmas, e na medida em que o te da rádio Ipanema para produzir fazer diferença na vida dele, na curso foi sendo organizado e tendo e apresentar um programa, que vai convivência e experiência que os a previsão de lançamento de co- se chamar “Crocâncias diversas”. professores conseguem transmi- letânea de trabalho autoral, bem É uma expressão que gosto muito tir e construir. Vejo isso de uma como de projeto-festival, tam- de utilizar. Independentemente maneira muito bonita e me sinto bém lançamos cinco coletâneas dos desafios e dos (dis)sabores, a muito identificado com estes pre- de trabalhos autorais dos alunos gente não pode perder uma cer- ceitos, que são caros.

Confira as publicações do Instituto Humanitas Unisinos - IHU

Acesse na página eletrônica do IHU - www.ihu.unisinos.br Destaques

Repensando os Clássicos da Economia Para compreender quais são as ideias e as implicações das obras de au- tores que contribuíram para a estruturação do pensamento econômico contemporâneo, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU promove o Ciclo de Estudos: Repensando os Clássicos da Economia – Edição 2011. A cada encontro, um professor convidado apresentará a obra de um economista e refletirá sobre a viabilidade de aplicação na solução de problemas econômicos atuais. Intitulada Adam Smith: os sentimentos morais e as razões da acumulação e da con- servação da fortuna material, a primeira palestra do Ciclo será ministrada pelo Prof. Dr. André Filipe Zago de Azevedo, da Unisi- nos, no dia 29 de agosto, às 20h, na Sala Ignacio Ellacuría e Compan- heiros – IHU. A programação completa está disponível no link http://mi- gre.me/56fGa.

Perspectivas do Humano Promovido pelo PPG em Filosofia da Unisinos e em parceria com o Instituto Humanitas Unisinos - IHU, se realizará de 16-08 a 25-09 próximos o Ciclo de Estudos: Perspectivas do Humano. Com o objetivo de proporcionar uma reflexão plural a respeito do ser humano, seus direitos (e responsabili- dades) e suas múltiplas possibilidades de ser, o programa do evento tem como referência a filosofia de alguns pensadores espanhóis contemporâneos, como Ortega y Gasset, Miguel de Unamuno, José Luis Aranguren e Ignacio Ellacuría. Mais informações podem ser obtidas em http://bit.ly/imNmTU

Jesus e o Reino no Evangelho de Marcos Durante três meses, o IHU promove o curso EAD – Jesus e o Reino no Evangelho de Marcos – 2011, por meio da plataforma Moodle. Através de encontros virtuais, os participantes irão estudar e meditar a vida de Jesus de Nazaré que anuncia o Reino de Deus, ‘já’ e ‘ainda não’. O curso acontece entre os dias 15 de agosto e 27 de novembro, com horário livre. A programação com- pleta pode ser acessada no link http://migre.me/56fT9.

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