BALDUINIA, n. 47, p. 01-11, 30-III-2015 http://dx.doi.org/10.5902/2358198017228

RESGATE HISTÓRICO PARA O BUTIÁ DE BONPLAND, BUTIA NOBLICKII DEBLE, MARCHIORI, F.S. ALVES & A.S. OLIVEIRA, DA PROVINCIA DE CORRIENTES, ARGENTINA1

JOSÉ NEWTON CARDOSO MARCHIORI2

RESUMO Com base em edição facsimilar dos manuscritos de Aimé Bonpland, verificou-se que Butia Noblickii, pal- meira recentemente descrita, já era reconhecida pelo grande botânico francês como espécie distinta de Butia yatay. Palavras-chave: Aimé Bonpland, Arecaceae, Butia Noblickii, Butia yatay, butiá de Bonpland.

ABSTRACT [An historical rescue to Bonpland’s palm tree, Butia Noblickii Deble, Marchiori, F.S. Alves & A.S. Oliveira, Arecaceae from , ]. Based on a facsimile edition of Aimé Bonpland’s manuscripts, it was verified that Butia Noblickii, a palm tree recently described, was previously recognized by the great French botanist as a distinct species from Butia yatay. Key words: Aimé Bonpland, Arecaceae, Bonpland´s palm tree, Butia Noblickii, Butia yatay.

INTRODUÇÃO Becc., Arecaceae de ampla distribuição na A espécie formadora do palmar que se es- Mesopotâmia argentina e oeste do Uruguai. O tende à margem direita do rio Uruguai desde as presente artigo visa a demonstrar, com base em 3 4 proximidades de Yapejú até Bonpland , na pro- fragmentos literários pouco conhecidos, que o víncia argentina de Corrientes, era até poucos butiá de Bonpland (Butia Noblickii Deble, 5 anos atrás confundida com Butia yatay (Mart.) Marchiori, F.S. Alves, A.S. Oliveira) já era con- siderado espécie distinta por Aimé Bonpland, 1 Recebido em 05-10-2014 e aceito para publicação em 26-02-2015. um dos mais importantes botânicos da primeira 2 Engenheiro Florestal, Dr. Bolsista de Produtividade em metade do século dezenove, e que viveu os últi- Pesquisa (CNPq – Brasil). Professor Titular do Depar- tamento de Ciências Florestais, Universidade Federal mos quarenta e um anos de sua vida na Argenti- de Santa Maria. [email protected] na, Paraguai e . 3 Ocupando o sítio da antiga redução jesuítica de Nuestra Para a abordagem dos referidos textos con- Señora de los Santos Reyes Magos de Yapejú, fundada em 4 de Fevereiro de 1627, Yapejú é, atualmente, o nome vém tecer, previamente, algumas notas de uma localidade e município do Departamento de San elucidativas sobre a vida do eminente cientista Martín, na província de Corrientes (29°28’00"S 56°50’00"O). Berço natal do prócer argentino José de e sobre a procedência dos fragmentos literários San Martín, a localidade dista 395km da capital provin- utilizados. cial (Corrientes), e fica à margem direita do rio Uru- guai, entre Paso de los Libres e Alvear (cidade em fren- te à gaúcha Itaqui), ao sul da foz do rio Ibicuí, afluente O ROMANESCO AIMÉ BONPLAND da margem esquerda do rio Uruguai. Companheiro de Alexander von Humboldt 4 Atualmente, Bonpland é nome de uma localidade (29°49’03"S 57°25’40"O) e município do departamen- na célebre viagem às “regiões equinociais” do to de Paso de los Libres. É em terras desse município do sudeste da província de Corrientes que ficava a “Estân- cia Santa Ana”, de Aimé Bonpland, bem como o limite CHIORI, J.N.C.; ALVES, F. da S.; DEBLE, A.S. de O. austral de distribuição geográfica de Butia Noblickii. O tipo de Butia yatay (Mart.) Becc. e descrição de uma 5 Trata-se de Butia Noblickii, espécie descrita no seguin- espécie nova do gênero. Balduinia, Santa Maria, n. 35, te artigo desta mesma revista: DEBLE, L.P.; MAR- p. 1-18, 2012.

1 continente americano6 , expedição cujos resul- Frustrados os projetos do Jardim Botânico e tados bastam para justificar sua merecida fama Museu de História Natural devido a questões na história das ciências, Aimé Bonpland aban- políticas, o botânico deixou os familiares, que donou os estudos de gabinete e a vida confortá- não voltaria a ver, e partiu para província de vel na Europa ao final de 1816 para se estabele- Corrientes em Outubro de 1820. Ao chegar às cer em , atraído pela perspectiva selvas da atual província de Misiones, instalou- da criação de um Jardim Botânico e Museu de se em Junho de 1821 na antiga redução jesuítica História Natural na cidade7 . de Santa Ana11 , onde “limpou ervais abandona- De 1804, ano do consagrador retorno à Fran- dos e os pôs em condições de exploração”12 . ça8 , até a partida definitiva para a América do Tratado como espião13 , foi seqüestrado por um Sul, Bonpland dedicou-se ao estudo e publica- contingente de mais de 400 soldados a mando ção de parte dos materiais coletados em sua pri- do ditador Francia14 e levado para a margem meira viagem ao Novo Mundo, além de desem- penhar-se na superintendência dos parques e Graham, que a conheceu no Rio de Janeiro, refere-se a jardins do Château de Malmaison, a pedido da ela como frívola, intrigante e sem escrúpulos, chegando a afirmar que “não pode haver dúvida que o intento des- Imperatriz Josefina. ta mulher era suplantar Mme. de Castro”, ou seja, tomar Bonpland chegou a Buenos Aires em Janei- o lugar de Domitila de Castro (Marquesa de Santos) ro de 1817, juntamente com sua esposa (Adelia como amante de Dom Pedro I (GRAHAM, M. Escorço biográfico de Dom Pedro I. Rio de Janeiro: Fundação Bouchy) e enteada (Emma), passando a exercer Biblioteca Nacional, 2010. p. 160). a medicina e a coletar espécies nativas, enquan- 8 Humboldt e Bonpland partiram da América para a Eu- ropa a 9 de Junho de 1804, chegando a Bordéus em 03 to buscava a viabilização dos projetos que o trou- de Agosto do mesmo ano (CASTELLANOS, 1963. Op. xeram à Argentina. Foi em uma dessas excur- cit., p. 60). sões que veio a conhecer, na ilha de Martin 9 Território argentino, a ilha de Martín Garcia situa-se na 9 embocadura do rio da Prata, a escassos 8km da locali- Garcia , alguns pés de erva-mate remanescen- dade uruguaia de Martín Chico. A respeito de sua flora, tes de plantio atribuído aos jesuítas10 , desco- levantamento recente, dirigido por Lahitte & Hurrel berta que veio a influir, decisivamente, nos ru- (1994), não registrou a existência de um único exem- plar do gênero Ilex na ilha. mos de sua vida. 10 Essa excursão à ilha de Martin Garcia deu-se em 6 de Dezembro de 1818; sobre as referidas plantas de erva- mate, consta terem sido levadas por jesuítas de São Javier (CASTELLANOS, 1963. Op. cit., p. 63). 6 Referência ao título do relato dessa viagem: 11 Declaradas Patrimônio Cultural da Humanidade pela HUMBOLDT, A.v.; BONPLAND, A. Voyage aux UNESCO, em 2011, as ruínas jesuíticas de “Nuestra régions équinoxiales du nouveau continent, fait en 1799, Señora de Santa Ana” encontram-se cerca de 2km da 1800, 1801, 1802, 1803, et 1804, par Al. de Humboldt atual cidade argentina de Santa Ana, na província de et A. Bonpland. Paris, 1820. 5 v. Misiones. 7 Apesar destas perspectivas, Castellanos aponta uma cau- 12 KRAPOVICKAS, A. Bonpland, sesquicentenario de su sa mais importante e de natureza familiar: “Bonpland muerte. Bonplandia, Corrientes, v. 17, n. 1, 2008, p. 8. havia casado aos quarenta anos com uma mulher vinte 13 Além dessa causa, o botânico Antonio Krapovickas anos mais moça do que ele, a quem havia atendido como elenca outros dois possíveis motivos para a prisão de médico. Uma “coquine” (mulher libertina), como a cha- Bonpland: “Ao explorar os ervais, ele competiria com o mava Humboldt, que havia sido esposa e mãe, e a quem monopólio que os paraguaios tinham do comércio da sua família de La Rochelle (refere-se aos pais de erva”; além disso, o botânico “se instalou em território Bonpland) não a queria. Com o andar do tempo lhe era que Francia considerava paraguaio e na única rota de comunicação que tinha o Paraguai com o exterior” cada vez mais insuportável e o botânico buscava a paz (KRAPOVICKAS, 2008. Op. cit., p. 8). em suas herborizações, logo que havia chegado a Buenos 14 José Gaspar Rodríguez de Francia (1776-1840). Dou- Aires ou em sua ausência nas Missões; enquanto isso tor em Teologia (Universidad de Córdoba, Argentina), ela se foi a Montevidéu, onde deu uma audição “quase” revolucionário e político paraguaio, nomeado “Ditador musical, a La Paz, Rio de Janeiro, Jamaica, Nova Iorque Perpétuo da República do Paraguai” a partir de 1816. e Paris (1826)” (CASTELLANOS, A. Bonpland en los Outro cognome associado ao ditador é o de “El Supre- paises del Plata. Revista de la Academia Colombiana mo”, título, aliás, utilizado pelo eminente intelectual e de Ciencias, Bogotá, v. 12, n. 45, 1963, p. 62). Sobre a historiador paraguaio Augusto Roa Bastos (1917-2005), personalidade de Adelia Bouchy, a viajante inglesa Maria em sua biografia dessa personalidade histórica.

2 direita do rio Paraná, onde ficou retido na al- Em São Borja, Bonpland viveu até 01 de deia paraguaia de Santa Maria de Fé15 . Junho de 1853, data em que se transferiu, defi- Após nove anos e dois meses de cativeiro, nitivamente, para a estância de Santa Ana (Fi- Bonpland deixou o Paraguai a 2 de Fevereiro gura 1)18 , ao sul de Restauración (atual Paso de de 1831. Decidido a instalar-se no Rio Grande los Libres, Corrientes), local em que veio a fa- do Sul16 , passou a dedicar-se à medicina, à cri- lecer a 11 de Maio de 1858. ação de gado e, com especial afinco, ao cultivo Durante a longa permanência em São Borja, e exploração da erva-mate, inicialmente em sua Bonpland realizou diversas viagens pelo interi- propriedade rural do rincão de São João Mi- or do Rio Grande do Sul19 e província de rim17 , ao sul da embocadura do rio Piratini, onde Corrientes, bem como a Montevidéu e Buenos viveu por oito ou nove anos, e após esse perío- Aires; a capital paraguaia (Asunción), entretan- do na vila de São Borja. to, somente foi por ele conhecida no ano anteri-

FIGURA 1. Sede da Estância Santa Ana (Corrientes), de Aimé Bonpland, em desenho feito in loco pelo médico e viajante alemão Robert Avé-Lallemant, em Abril de 1858.

15 Fundada em 1647, Santa Maria de Fe (26°47’6"S 18 Recebida em enfiteuse em 1838, o título definitivo da 56°56’24"O) situa-se, atualmente, no departamento de propriedade concretizou-se apenas em 25 de Novembro Misiones, distando 253km ao sul de Assunção. de 1856, graças a um decreto do governador Juan 16 Ao vir do Paraguai, Bonpland chegou a São Borja na Gregorio Pujol, aprovado pelo congresso provincial de tarde de 14 de Fevereiro de 1831 (BELL, S. A life in Corrientes (BELL, 2010, p. 202). shadow. Aimé Bonpland in Southern South America, 19 Das muitas viagens pela província do Rio Grande do 1817-1858. Stanford: Stanford University Press, 2010. Sul, salienta-se a travessia de São Borja a Porto Alegre, p. 89). iniciada a 11 de Fevereiro de 1849, e com o objetivo 17 Foi nessa modesta casa do rincão de São João Mirim principal de conduzir um rebanho de ovelhas de fina lã que Bonpland recebeu o viajante Arsène Isabelle du- de sua propriedade para ser vendida ao dono da “estân- rante os “dois meses” (dezembro de 1833 e janeiro de cia de Santa Cruz”, situada em área próxima à atual ci- 1834) em que o autor de “Viagem ao rio da Prata e ao dade gaúcha de mesmo nome. Além desse objetivo prin- Rio Grande do Sul” passou em São Borja, indo e vindo cipal, Bonpland também pretendia investigar a presen- da vila (ISABELLE, A. Viagem ao Rio da Prata e ao ça de ervais na floresta do rebordo do Planalto Meridi- Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Livraria Editora Zelio onal e, se possível, enviar por correio o “certificat de Valverde S.A., 1949. p. 231). vie” a partir da capital gaúcha, documento necessário

3 or a sua morte (1857), em viagem de barco a “Accoutumé à vivre libre, à l’ombre des arbres partir da cidade de Corrientes20 . séculaires de l’Amérique, à entendre le chant Personalidade singular, sob muitos aspectos, des oiseaux, qui suspendent leurs nids au- Aimé Bonpland teve vida tão romanesca que dessus de ma tête, à m’asseoir pour voir serviu de motivo para obras literárias, caso da couler, à mes pieds les eaux pures d’un recente “Figura na sombra”, do gaúcho Luis ruisseau; à la place de tous ces biens, que trouxerais-je, dans le quartier le plus brillant, Antonio de Assis Brasil21 . Um dos pontos de le plus aristocratique de Paris? Enfermé dans difícil entendimento prende-se aos motivos que mon cabinet, je devrais travailler jour et nuit levaram o botânico francês a não retornar à pour le compte d’un libraire, qui voudrait bien Europa após o longo cativeiro no Paraguai, pre- se charger de la publication de mes oeuvres, ferindo permanecer, definitivamente, na região j’aurais pour toute compensation le plaisir de platina, em locais distantes da alta cultura e do voir éclore de temps en temps une rose chétive mundo científico, levando uma vida de muita sur ma croisée. Je perdrais ce que j’apprécie atividade e compromissos materiais, marcada le plus: ma societé de prédilection, mes , por solidão intelectual e dificuldades de toda a qui font mon bonheur et ma vie. Non, non, 24 sorte. Esse enigma, dificilmente entendido em c’est ici que je dois vivre et mourir”. tempos hedonistas como os da atualidade, foi, todavia, explicado pelo próprio Bonpland, cons- Embora apaixonado pela natureza, Bonpland tando em uma das primeiras biografias do botâ- provou no dia-a-dia que não era um utópico nico22 , escrita por Adolphe Brunel23 : adepto do “L’appel de la forêt”, tão ao gosto dos românticos de sua época. Apesar da inces- sante atividade física e preocupações materiais para receber os semestres atrasados da pensão que lhe ao longo de toda a sua vivência na região do fora concedida pelo governo francês. O manuscrito dessa Prata, o botânico nunca deixou de lado a curio- viagem foi organizado e publicado pela botânica Alicia Lourteig na seguinte obra: BONPLAND, A. Journal sidade científica, o desejo de penetrar nos se- Voyage de Sn. Borja a la Cierra y a Porto Alegre. Porto gredos da natureza por meio do estudo e obser- Alegre: Instituto de Biociências, Departamento de Bo- vação, notadamente das plantas, que tanto o atra- tânica; Paris: Centre Nationale de la Recherche Scientifique, 1978. 175 p. íam. 20 A viagem, a bordo do vapor de guerra “Le Bisson”, sob o comando do “Señor Mouchez”, estendeu-se de 26 de OS ARCHIVES INÉDITES Fevereiro a 16 de Abril de 1857. Conservado na Biblio- A predileção de Bonpland pela scientia teca Nacional do Peru (Lima), o manuscrito foi traduzi- do do original francês para o espanhol, e publicado no amabilis explica seu costume de aproveitar as Paraguai em 2006 (CONTRERAS ROQUÉ, J.R.; ROMAÑACH, A.B. El Paraguay en 1857. Un viaje iné- dito de Aimé Bonpland. Asunción: Servilibro; lo de curiosidade, resta salientar que Adolphe Brunel Universidad Nacional de Pilar, 2006. 222 p.). notabilizou-se na história da medicina sul-americana 21 ASSIS-BRASIL, L.A. de. Figura na sombra. Porto Ale- pelo pioneirismo no uso de anestesia geral com “éter gre: L&PM, 2012. 264 p. sulfúrico” (01-5-1847). 22 BRUNEL, A. Biographie d’Aimé Bonpland, compagnon 24 “Habituado a viver ao ar livre, à sombra das árvores de voyage et collaborateur d’Al. de Humboldt. Paris: L. seculares, a escutar o canto dos pássaros que suspen- Guérin & Cie.; London: Trubner & Co.; Montevideo: dem seus ninhos acima de minha cabeça, a olhar correr Lastaria y Cia., 1871. 3ª ed. p. 101. Resta informar que as águas puras de um riacho; em lugar de todas essas a primeira edição dessa obra veio a lume em 1859, pou- maravilhas, que poderia eu encontrar no bairro mais aris- cos meses após a morte do biografado. tocrático e brilhante de Paris? Encerrado em meu escritó- 23 Era na casa desse amigo e médico francês, radicado em rio, estaria obrigado a trabalhar dia e noite por conta de Montevidéu, que Aimé Bonpland costumava se hospe- um livreiro, tendo por toda a compensação o prazer de dar quando chegava à capital uruguaia a fim de enviar o ver se abrir de tempo em tempo uma frágil rosa em minha “certificat de vie”, documento indispensável ao recebi- janela. Perderia o que mais quero, minha sociedade de mento da pensão anual que o governo francês lhe con- predileção, minhas plantas, que fazem minha alegria e cedera desde os tempos de Napoleão Bonaparte. A títu- minha vida. Não, não, é aqui onde devo viver e morrer”.

4 viagens e excursões para herborizar espécimes sequência, e que inclui as diagnoses de número interessantes, cujas diagnoses eram anotadas no 2.450 (Novembro de 1849) a 2.884 (Dezembro Journal Botanique25 , enriquecido, não raro, com de 1857). Redigidas em latim, com freqüentes ilustrações de detalhes morfológicos. anotações em francês e espanhol, essas descri- Os fragmentos reproduzidos neste artigo pro- ções e anotações variadas sobre plantas seguem cedem de edição facsimilar de parte do diário a sequência cronológica das expedições, permi- botânico, mais precisamente do segundo volu- tindo, inclusive, a definição do local e data de me dos Archives Inédites de Aimé Bonpland, coleta. publicado pelo Instituto de Botânica e Farma- cologia da Faculdade de Ciências Médicas de REGISTROS DE BONPLAND SOBRE BUTIA Buenos Aires em 1924. O histórico desse res- NOBLICKII gate documental foi assim detalhado por Em uma das páginas finais do segundo tomo Philippe Foucault, em sua biografia sobre o dos Archives Inédites, Bonpland listou as espé- botânico francês: cies de palmeiras por ele reconhecidas em Corrientes (Palmiers de Corrientes) e no “En 1905, Juan A. Dominguez, director de la Paraguai (Palmiers du Paraguay). No caso da Facultad de Ciencias Médicas de Buenos referida província argentina constam cinco es- Aires, al enterarse de que un alumno llamado pécies, sob os nomes de iba puyta, yatay, yatay Bonpland realizaba sus estudios en la poñi, palma de sombrero e bocaya (Figura 2). Facultad, lo hizo llamar a su despacho. Éste 26 Resta comentar que Bonpland incluiu a “Palma le declaró que era, en efecto, el nieto del negra” (Copernicia australis Becc.) na coluna sabio francés, hijo de Amadito, y que quedaba das Palmiers du Paraguay, informando que a un gran número de cartas y de manuscritos en Santa Ana donde residia todavía su família. mesma também se encontra em Corrientes e no 29 Algunos meses más tarde, Amadito Bonpland Chaco . en persona se presentaba a Domínguez con A respeito dos nomes listados para Cor- un baúl lleno de documentos, los que donaba rientes, iba puyta30 , palma de sombrero31 e a la Facultad para ser estudiados y publica- dos”.27 28 BONPLAND, A. Archives Inédites. Journal de Botanique. Tomo 2. Buenos Aires: Jacobo Peuser Ltda., É do material guardado no referido baú que 1924. (Trabajos del Instituto de Botánica y Farma- cologia, Facultad de Ciencias Médicas de Buenos se exumou para publicação o segundo volume Aires, n. 42). dos Archives Inédites28 a ser analisado na 29 Em guarani, o termo “carandá” se aplica a espécies de palmeiras (PERALTA, A.J.; OSUNA, T. Diccionario Guaraní-Español y Español-Guaraní. Buenos Aires: 25 Título original francês (Diário Botânico, em portu- Editorial Tupã, 1950. p. 39), mais precisamente a espé- guês) do manuscrito de Aimé Bonpland, que foi uti- cies de folhas flabeladas, casos de campestris, lizado como subtítulo na edição facsimilar dos dito “caranda-i” (carandá pequeno), e Copernicia australis, o caranda-hu (carandá-preto) (BILONI, J.S. Archives Inédites. 26 Arboles autoctonos argentinos. Buenos Aires: Tipográ- Trata-se de Pompeyo Bonpland, neto do botânico, que fica Editora Argentina, 1990. p. 68,69). graduou-se em Medicina em Buenos Aires. Em segun- 30 Para “iba puyta”, o francês agregou, entre parênteses, das núpcias, Aimé Bonpland casou-se com Victoriana os nomes comuns “datil”, na lista das Palmiers de Cristaldo, filha de Juan Nicolás Cristaldo, antigo depu- Corrientes, e “pindo”, no caso das Palmiers du tado da República Entrerriana e proprietário na região Paraguay. de Yapeju (província de Corrientes). Com Victoriana, 31 Para a “palma de sombrero”, Bonpland acrescenta que Bonpland teve três filhos: Carmen, nascida em 1843; as folhas se prestam para a confecção de chapéus, e Amado (pai de Pompeyo), nascido em 1845; e Anastácio, que as mesmas são palmadas (palmatis), caráter nascido em 1847. marcante em , compartilhado, 27 FOUCAULT, P. El pescador de orquídeas. Aimé entre as palmeiras de Corrientes, tão somente com a Bonpland, 1773/1858. Buenos Aires: Emecé Editores, “palma negra” (Copernicia australis), comentada em 1994. p. 294. nota anterior (n. 29).

5 FIGURA 2. Lista das palmeiras de Corrientes (Palmiers de Corrientes) e do Paraguai (Palmiers du Paraguay), constan- te em uma das páginas finais dos Archives Inédites de Aimé Bonpland. bocaya32 correspondem, indiscutivelmente, a No segundo tomo de Archives Inédites, a romanzoffiana (Cham.) Glassman, espécie é descrita e ilustrada à folha 36 do ma- Trithrinax campestris Drude & Griseb. e nuscrito (n. 2584), com base em coleta realiza- Acrocomia aculeata (Jacq.) Lodd. ex Mart., res- da em fevereiro de 1854 nos arredores da atual pectivamente. Restam para análise os termos cidade de Concórdia (província de Entre Rios), yatay e yatay poñi. durante viagem pelo rio Uruguai, de Montevi- Com relação a “yatay”, este é o nome déu a São Borja. A identificação mais precisa comumente atribuído em toda a região para do local é esclarecida no próprio texto do autor, Butia yatay (Mart.) Becc., a palmeira de mais ao mencionar o palmar existente “autour le río ampla dispersão geográfica na Mesopotâmia Yuquirí Grande et le río Yuquiri Chico” (Figura argentina e oeste do Uruguai, onde forma ex- 3), conhecidos tributários do rio Uruguai, situ- tensos palmares, inconfundíveis pelo tom cin- ados ao sul da referida cidade entrerriana. zento-azulado da folhagem. O objetivo prático do desembarque e pro- longada estadia nesse ponto da margem direita do rio Uruguai visava a atender a um pedido do cônsul Maillefer33 , que encomendara sementes 32 No caso de “bocaya”, além deste ser o nome ainda hoje utilizado para designar a espécie na Argentina e Paraguai (bocaiúva, no Brasil), Bonpland informa que seu tron- 33 Pierre-Daniel Martin-Maillefer (1798-1877). Jornalista co é épineux, ou seja, “espinhoso”, caráter morfológico e diplomata, Maillefer foi nomeado Cônsul Geral da suficiente para a identificação dessa palmeira na flora França em Montevidéu em 1854, no mesmo ano da vi- regional. agem de retorno de Bonpland a São Borja.

6 FIGURA 3. Descrição da “Palma yatay”, constante à folha 36 do segundo volume dos Archives Inédites de Aimé Bonpland. Conferir a referência aos rios Yuquiri Grande e Yuquiri Chico nas duas últimas linhas manuscritas.

7 de árvores interessantes ao botânico, a fim de l’ março 1854), à interrupção da via- serem enviadas ao “jardim botânico experimen- gem e à prolongada estadia de Bonpland em sua tal” de Argel, como “parte de seus esforços no estância de Santa Ana, na província de desenvolvimento” daquela colônia34 . O primeiro Corrientes. De todo modo, a coleta n. 2597 foi embarque, procedente de Concórdia, justamen- realizada num último desembarque antes da te, foi realizado em março de 1854, e compre- chegada a Santa Ana ou, então, na ida do em- endia “duas caixas cheias de frutos maduros da barcadouro a sua propriedade. O que importa palmeira yatay”, espécie por ele reconhecida destacar, no caso, é que essa coleta foi certa- como “valiosa”. A proximidade entre as datas mente obtida de ponto próximo ao extremo sul da coleta n. 2584 (Fevereiro de 1854) e o envio do palmar de Butia Noblickii, espécie com dis- das caixas com sementes (Março de 1854) tam- tribuição restrita à margem direita do rio Uru- bém comprovam a procedência da amostra em guai (província de Corrientes), entre as atuais exame. O envio limitado a esta única espécie, cidades de Bonpland e Yapeju, aproximadamen- por sua vez, foi atribuído por Bonpland ao ve- te. rão extremamente seco. Para conservar as se- Stephen Bell, autor que pesquisou detida- mentes e prepará-las para a longa viagem oceâ- mente a vida de Bonpland na região platina, nica, o botânico recomendou que elas fossem esclarece que ao chegar a Santa Ana, na tarde estratificadas em terra nova, em Montevidéu, de 22 de Março de 1854, o viajante apressou-se indicando o jardineiro francês Margat35 como a visitar as plantações feitas antes da ida a Mon- pessoa adequada para supervisionar a tarefa. tevidéu, verificando, com um “misto de dor e Para o plantio, na Argélia, Bonpland indicou prazer”, que a única em bom estado era a de solo arenoso.36 mandioca; as batatas-doces haviam sido devo- Com relação ao “yatay poñi”, tema central radas por veados, e a cerca em torno da “quin- do presente estudo, constam duas coletas no ta” fora destruída por “inexplicável negligên- segundo volume dos Archives Inédites: a de cia”. Foi nessa oportunidade que o botânico ini- número 2597 (Figura 4), que fecha a folha 38 ciou o plantio do chá da Índia, “procedente do do manuscrito, a última indicada como “Voyage Brasil”, do qual ele foi pioneiro na província de de Montevideo a Sn. Borja”; e a de número de Corrientes.37 2606 (Figura 5), coletada em novembro de 1854 Na diagnose da coleta n. 2597, Bonpland em “Restauración”. registrou que se trata de “palmeira de pouca al- Cabe salientar que a primeira destas foi rea- tura”, fornecendo desenhos em tamanho natu- lizada ainda na mesma viagem de Montevidéu ral do fruto e semente (Figura 4). a São Borja, explicando-se a informação distin- Em novembro de 1854, mês da coleta da ta no cabeçalho da folha seguinte (Sta. Ana de “Palma yatay poñi” número 2606 (Figura 5), Bonpland se encontrava em Restauración, anti- go nome de Paso de los Libres (Corrientes), conforme indicação no cabeçalho da folha 41 34 A Argélia foi declarada “parte integrante da França” pela Constituição Francesa de 1848. do “Diário Botânico”. A respeito dessa viagem, 35 Pedro Margat (Versalhes, VII-1807, Montevidéu, 26- Stephen Bell comenta que o volume de traba- VI-1890) chegou a Montevidéu em 1838 e, em 1841, lho que aguardava o francês na estância de San- fundou o “primeiro estabelecimento de horticultura e floricultura da América do Sul”, no “Camino de ta Ana exigira sua saída de São Borja ainda em Burgues”. “Único fornecedor de plantas raras” na capi- setembro, conforme informação constante em tal uruguaia, “por muitos anos”, atribui-se a ele, entre carta ao governador Pujol, de Corrientes, pos- outras, a “introdução da camélia” (BERRO, M. La Agri- cultura Colonial. Montevideo: Ministerio de Educación y Cultura; Biblioteca Artigas, 1975. p. 283-284). 36 BELL, 2010. Op. cit., p. 188-190. 37 BELL, 2010. Op. cit., p. 191.

8 FIGURA 4. Descrição do “yatay poñi” (n. 2597), ilustrada com desenhos do fruto e semente, constante à folha 38 dos Archives inédites de Aimé Bonpland.

tada a 30 desse mês em Restauración38 . Resta CONCLUSÕES salientar que o número 2606 do “Diário Botâ- Os fragmentos do manuscrito de Aimé nico”, por ser procedente de Paso de los Libres, Bonpland presentemente analisados demons- foi coletado em ponto ao norte da área de distri- tram que o botânico francês já reconhecia, em buição geográfica de Butia Noblickii. meados do século dezenove, a existência de duas Embora tenha reconhecido o “yatay poñi” espécies distintas de butiá na província de como espécie distinta do verdadeiro “yatay”, Corrientes: o “yatay”, cujo binômio latino váli- Bonpland não chegou a publicar seus estudos, do é Butia yatay (Mart.) Becc.; e o “yatay poñi”, o que explica a descrição da primeiras destas descrito apenas em 2012, sob o nome de Butia somente em 2012. Noblickii Deble, Marchiori, F.S. Alves & A.S. Oliveira. O nome comum utilizado no presente artigo (Butiá de Bonpland), além de referência 38 BELL, 2010. Op. cit., p. 193. geográfica à distribuição natural de Butia

9 FIGURA 5. Descrição da “Palma yatay poñi” (n. 2606) de “Restauración, Nov. 1854”, constante à folha 41 dos Archives Inédites de Aimé Bonpland.

10 Noblickii, também se mostra adequado por pres- CASTELLANOS, A. Bonpland en los países del tar homenagem ao grande botânico francês que Plata. Revista de la Academia Colombiana de viveu os últimos 41 anos de sua vida na região Ciencias, Bogotá, v. 12, n. 45, p. 57-85, 1963. platina, e foi o primeiro a reconhecer esta espé- CONTRERAS ROQUÉ, J.R.; ROMAÑACH, A.B. cie botânica como distinta de Butia yatay. El Paraguay em 1857. Un viaje inédito de Aimé Bonpland. Asunción: Servilibro; Universidad Nacional de Pilar, 2006. 222 p. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DEBLE, L.P.; MARCHIORI, J.N.C.; ALVES, F. da S.; OLIVEIRA-DEBLE, A.S. de. The type of ASSIS-BRASIL, L.A. de. Figura na sombra. Porto Butia yatay (Mart.) Becc. and description of a Alegre: L&PM, 2012. 264 p. new species of the same genus. Balduinia, San- BELL, S. A life in shadow. Aimé Bonpland in ta Maria, n. 35, p. 1-18, 2012. Southern South America, 1817–1858. Stanford: FOUCAULT, P. El pescador de orquídeas. Aimé Stanford University Press, 2010. 320 p. Bonpland, 1773/1858. Buenos Aires: Emecé BERRO, M. La Agricultura Colonial. Montevideo: Editores, 1994. 305 p. Ministerio de Educación y Cultura; Biblioteca GRAHAM, M. Escorço biográfico de Dom Pedro I. Artigas, 1975. p. 283-284. (Colección de Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, Clásicos Uruguayos, v. 148). 2010. 352 p. (Cadernos da Biblioteca Nacional). BILONI, J.S. Arboles autoctonos argentinos. HUMBOLDT, A.v.; BONPLAND, A. Voyage aux Buenos Aires: Tipográfica Editora Argentina, regions équinoxiales du nouveau continent, fait 1990. 335 p. en 1799, 1800, 1801, 1802, 1803, et 1804, par Al. BONPLAND, A. Journal Voyage de Sn. Borja a la de Humboldt et A. Bonpland. Paris, 1820. 5v. Cierra y a Porto Alegre. Porto Alegre: Instituto ISABELLE, A. Viagem ao rio da Prata e ao Rio de Biociências, Departamento de Botânica; Pa- Grande do Sul. Rio de Janeiro: Livraria Editora ris: Centre Nationale de la Recherche Scien- Zelio Valverde S.A., 1949. 345 p. tifique, 1978. 175 p. KRAPOVICKAS, A. Bonpland, sesquicentenario de BONPLAND, A. Archives inédites. Journal de su muerte. Bonplandia, Corrientes, v. 17, n. 1, Botanique, Tomo 2. Buenos Aires: Jacobo p. 5-11, 2008. Peuser Ltda., 1924. (Trabajos del Instituto de LAHITTE, H.B.; HURRELL, J.A. Los árboles de la Botánica y Farmacologia, Facultad de Ciencias isla Martín Garcia. Buenos Aires: Programas Médicas de Buenos Aires, n. 42). Estructura y dinámica y Ecologia del No Equilí- BRUNEL, A. Biographie d’Aimé Bonpland, brio, Comisión de Investigaciones Científicas, compagnon de voyage et collaborateur d’Al. de 1994. 135 p. Humboldt. Paris: L. Guérin & Cie.; London: PERALTA, A.J.; OSUNA, T. Diccionario Guaraní- Trubner & Co.; Montevideo: Lastaria y Cia., Español y Español-Guaraní. Buenos Aires: Edi- 1871. 3ª ed. 185 p. torial Tupã, 1950. 426 p.

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