Os vivos, os mortos e os mortos-vivos: uma análise sociológica do se- riado The Walking Dead* Jorge Henrique Fugimoto**

Abstract

The Walking Dead es una serie de televisión producida en los Estados Unidos por Frank Darabont y Gale Anne Hurd y basado en la exitosa cómics del mismo nombre, desplegada por primera vez en 2010, por la red de televisión norteamericana AMC. Aprovechando el camino abierto por la revista y el programa, se han desarrollado varios nuevos productos. En resumen, el programa sigue el sheriff Rick Grimes (interpretado por Andrew Lincoln ), que después de despertar de un coma en un hospital vacío en la ciudad de Atlanta se ve obligado a luchar por su supervivencia en un “nuevo” mundo, habitado por “muertos vivientes”. La presencia del “” tiene una larga historia en el cine, y su representación en la forma en que lo conocemos hoy se inicia en 1968 con la película The Night of the living dead (George A. Romero ). Muchas variaciones sobre el tema aparecieron com éxito en los cines, lo que llevó a algunos analistas a relacionar las tramas de las pe- lículas con ciertos acontecimientos vividos por la sociedad. Teniendo en cuenta estos antecedentes y con el fin de examinar más a fondo la relación entre el producto audiovisual y la sociología, este trabajo tiene como objetivo analizar internamente la primera temporada de la serie, tratando de establecer marcos de análisis y destacar elementos como la formación del carácter, narrativa, color, sonido, etc. La cuestión que moviliza esta investigación es analizar cómo estos elementos son articulados y qué aspectos sociales se movilizan para la construcción de una noción de la “civilización”, el fin de la “civilización “ o mismo “post- civilización”, ya que, según nuestra hipótesis preliminar, el producto cultural en la agenda podría apuntar a manifestaciones discretas - con juicios sobre las relaciones sociales - de ciertos deseos o temores de la sociedad en que fue creada y distribuida.

* Trabalho encaminhado à Asociación Argentina de Estudios sobre Cine y Audiovisual, para apresentação no IV Congreso Interna- cional AsAECA, sob a orientação do Prof. Dr. Mauro Luiz Rovai e com financiamento pela CAPES – Coordenação de Aperfeiçoa- mento de Pessoal de Nível Superior.

** Formado em Ciências Sociais pela Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da UNIFESP – Universidade Federal de São Paulo. Mestrando do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da UNIFESP – Universidade Federal de São Paulo.

1. Introdução

A temática “zumbi” voltou a se popularizar nos últimos anos com o lançamento de diversos filmes, livros, jogos, incluindo uma grande passeata que vem ocorrendo em diversas cidades do mundo, a Zombie Walk1. Um sub-gênero dentro do cinema de terror, foi consagrado em 1968 por George A. Romero, com o filme A noite dos mortos-vivos, e teve maior atenção do grande público com a estréia do seriado televisivo norte americano The Walking Dead, em 2010 pela rede de televisão AMC, alcançando expressivos números de audiência.

Na maior parte dos casos, o tema recorrente, seja em filmes, no seriado ou outras produções, principalmente

1 “A Zombie Walk é uma marcha pública de pessoas vestidas de zumbi que acontece em diversas cidades do mundo. O evento surgiu na Califórnia em 2001, e desde 2006 vem sendo feito anualmente em São Paulo, sempre no dia 2 de novembro (Dia de Finados).”. Fonte: http://zombiewalksp.com/sobre/ 540 nos últimos anos2, remetem ao fim do mundo, neste caso, mais conhecido por seus fãs como “apocalipse zum- bi”. Em grande parte dessa produção recente haveria um colapso da “civilização” causado por uma epidemia, que faz com que os seres humanos que morrem, retornem sob a forma de “morto-vivo”, sem consciência e com um único instinto, alimentar-se de carne humana em geral (ainda que em outras produções os “zumbis” alimentem-se de partes mais específicas do corpo, como o cérebro no filme de Dan O’Bannon em 1985, A volta dos mortos vivos), retransmitindo a doença. The Walking Dead não é exceção, há o fim das formas de governo, da organização política institucional, do Estado, etc., e os restantes dos vivos lutam para sobreviver. Sobretudo, o principal inimigo, e que orienta essa “nova” organização, é o “zumbi” ou “morto-vivo”, uma espécie de humano não-humano, e não mais os monstros, os alienígenas, comuns nos filmes de ficção cientí- fica, ou as personagens de “russos”, “árabes”, “orientais” e “latino-americanos” de modo geral, em filmes de temática relacionada à espionagem, ameaças terroristas, violência urbana, etc. Como se o problema da ordem civilizacional estivesse na própria existência humana, o ser humano por si só constituiria sua própria ameaça.

A estrutura seriada de The Walking Dead, somada a uma narrativa afeita a este modelo, não apenas reforça tal abordagem temática de uma maneira diferente como, também, prolonga nesse espaço e tempo localizado no pós “fim do mundo”, por meio de capítulos, aspectos que podem chamar a atenção do pesquisador. No seriado é possível acompanhar a evolução das personagens, os dilemas que devem resolver e as decisões que precisam tomar. Apesar de haver traços morais e éticos, resquícios da “antiga” sociedade, os sobreviventes passam a lidar com esta nova sociabilidade e adequar-se a uma nova estrutura social, onde todas as instituições e leis foram “destruídas”. The Walking Dead contribui com situações que simulam a sobrevivência e a vida humana após o colapso da sociedade, o que permite ao pesquisador das Ciências Sociais perscrutar e discutir o modo como tais situações, que envolvem temas caros às Ciências Humanas e Sociais, são elaboradas na forma de um produto cultural de entretenimento.

Várias questões sociais já foram identificadas em diversos filmes anteriores sobre a temática “zumbi”, como se neles estivesse presente a manifestação de problemas latentes vividos pelas sociedades nas quais foram produzidos. Contemporaneamente, no entanto, a forma seriada, trabalhando com o retorno (feed-back) dado pelos consumidores através dos diversos dispositivos tecnológicos virtuais (como a internet, o celular, etc.) e em conjunto com a exploração de diversos produtos (como comic book, episódios on-line, jogos), busca ficar mais próxima do que é esperado pelos espectadores (e aficionados). Sem perder de vista as produções antigas nas quais os produtos mais recentes foram inspirados.

Este texto tem por objetivo explorar uma parte da pesquisa que integrará a dissertação de mestrado3, que ainda está em seu começo. O objetivo aqui proposto é discutir alguns aspectos do seriado, incluindo sua análise, por meio de uma discussão teórica e metodológica entre dois autores: Siegfried Kracauer e Pierre Sorlin.

2. O seriado

Em 2010, o “morto-vivo” apareceu em formato seriado, pela rede de televisão norte americana AMC, com o título The Walking Dead4. Baseada no comic book5 homônimo de grande sucesso nos Estados Unidos, foi 2 Por exemplo, filmes como: ... (Danny Boyle, 2002), Dawn of the Dead (Zack Snyder, 2004), (Ruben Fleischer, 2009), World War Z (Marc Forster, 2013), e muitos outros; Livros como: Apocalipse zumbi: Os primeiros anos de Alexandre Callari, O Guia de Sobrevivência a Zumbis de Max Brooks, a série de livros Apocalipse Z de Manuel Loureiro, entre outros. 3 A pesquisa está sendo financiada pela CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior e orienta- da pelo Prof. Dr. Mauro Luiz Rovai. 4 Ver http://www.amctv.com/shows/the-walking-dead 5 História em quadrinho norte americana com lançamento periódico. The Walking Dead foi criada e escrita por Robert 541 produzida por Frank Darabont e Gale Anne Hurd. Em síntese, na primeira temporada o seriado acompanha a história do xerife Rick Grimes (Andrew Lincoln), que após acordar do coma em um hospital vazio na cidade de Atlanta, se vê obrigado a lutar por sua sobrevivência em um “novo” mundo, habitado por “mortos-vivos”, ao mesmo tempo em que tenta reencontrar sua esposa, Lori Grimes (Sarah Wayne Callies), e seu filho, Carl Grimes (Chandler Riggs). Após encontrá-los, Rick passa a liderar um grupo de sobreviventes, precisando tomar diversas decisões.

A série obteve um sucesso imediato, devido, em grande medida, ao sucesso construído e alcançado pelo comic book6, lançado em 2003. O episódio piloto7 teve recorde de audiência e foi visto por cerca de 5,3 milhões de espectadores nos Estados Unidos, o maior número obtido até então por um canal da televisão a cabo norte americana8. O sucesso da série televisiva alavancou as vendas do comic book e, em um efeito de retroalimen- tação entre os produtos, os fãs da revista prontamente experimentaram o seriado, enquanto os telespectadores procuraram conhecer a revista9. Aproveitando o caminho aberto pela revista e pelo seriado, novos produtos foram desenvolvidos. Até o momento foram lançados diversos jogos eletrônicos (para facebook, computador, celular e vídeo game), dois livros e duas temporadas de webisodes10.

No Brasil, o primeiro volume da coletânea de revistas foi lançado em 2006 pela editora HQM, sendo relança- do em edições mensais no fim de 2012. O seriado foi exibido primeiramente pelo canal de televisão a cabo Fox em 2010 e teve sua melhor audiência com a exibição do primeiro episódio da segunda temporada, com cerca de 1,47 ponto11. A série teve sua estréia na rede aberta no início de 2013, na TV Bandeirantes, alcançando mais audiência que diversos programas ao vivo12 e liderando por algumas vezes a audiência semanal da emissora em São Paulo e no Rio de Janeiro13.

Se considerarmos, conforme Arlindo Machado (1997), o vídeo (formato que é utilizado na televisão) como sendo um fenômeno de comunicação em que “uma mensagem é transmitida de uma comunidade de produto-

Kirkman e desenhada por Tony Moore, que pouco tempo depois foi substituído por Charlie Adlard. Para isso, v. http://www.image- comics.com/series/349/The-Walking-Dead 6 O sucesso no EUA aconteceu de forma gradual ao longo dos lançamentos, em 2006 ficou evidente que ocomic book havia alcançado um número expressivo de vendas, quando a edição número 33 se esgotou em 24 horas. Fonte: http://omelete.uol.com.br/ quadrinhos/edicao-33-de-the-walking-dead-esgota-em-24-horas/ 7 Episódios piloto são típicos dos seriados televisivos nos Estados Unidos. Muitas vezes eles servem para que um projeto seja ou não aprovado em alguma rede televisiva, para em seguida ser apresentado ao público. É também por meio desse episódio que as grandes produtoras e canais de televisão podem medir o impacto causado no grande público, analisando em seguida quantos episódios terão uma temporada. 8 Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/824113-the-walking-dead-estreia-com-recorde-de-audiencia-nos-estados -unidos.shtml 9 Em 2011 o primeiro volume da coletânea de revistas, inicialmente lançado em 2004, contendo desde a primeira edição até a sexta, foi o mais vendido. Fonte: http://omelete.uol.com.br/quadrinhos/walking-dead-liderou-vendas-de-comic-shops-nos-eua -em-2011/. Em 2012, as vendas continuaram crescendo e The Walking Dead liderou a lista anual dos quadrinhos compilados mais vendidos. Fonte: http://diversao.terra.com.br/arte-e-cultura/hq-de-the-walking-dead-lidera-lista-de-vendas-em-2012,b286a908d4a- 1c310VgnVCM5000009ccceb0aRCRD.html. Além disso, a centésima edição teve a tiragem inicial de cerca de 383.000 exemplares esgotada, tornando-se a mais vendida dentre os 15 anos anteriores. Fonte: http://extra.globo.com/tv-e-lazer/numero-100-de-the -walking-dead-bate-recorde-de-vendas-5496771.html 10 São episódios desenvolvidos exclusivamente para a web, lançados algumas semanas antes da estréia de uma nova temporada, contando histórias de eventos paralelos à narrativa principal. Fonte: http://www.amctv.com/shows/the-walking-dead/ tag/videotype/webisode 11 A maior das TVs pagas no horário e recorde da emissora no Brasil. Fonte: http://televisao.uol.com.br/colunas/flavio-ric- co/2011/11/08/canal-fox-bate-recorde-de-audiencia-no-brasil-com-the-walking-dead.htm 12 Fonte:http://f5.folha.uol.com.br/televisao/1258803-the-walking-dead-tem-mais-audiencia-que-programas-ao-vivo-na -band.shtml 13 Fontes: http://www.ibope.com.br/pt-br/conhecimento/TabelasMidia/audienciadetvsp/Paginas/TOP-5-S%C3%83O-PAU- LO-SEMANA-02.aspx e http://www.ibope.com.br/pt-br/conhecimento/TabelasMidia/audienciadetvrj/Paginas/TOP-5-RIO-DE-JA- NEIRO-SEMANA-06.aspx 542 res ou emissores a uma comunidade de consumidores ou receptores.” (p. 193), e que, devido à suas caracte- rísticas próprias, “(...) as ‘possibilidades’ dessa tecnologia estão em permanente mutação e crescem na mesma proporção de seu repertório de obras.” (1997, p. 200), o seriado em tela permite ao pesquisador um interessan- te material para o qual podem ser feitas diversas perguntas e, a partir delas, análises aprofundadas.

Diferente de outros meios, em particular do cinema, o vídeo, segundo Machado, apresenta, entre outras carac- terísticas, uma imagem que é fragmentada, isto é, o todo, muitas vezes, é sugerido pelo detalhe, nunca sendo “revelado de uma só vez” (MACHADO, 1997, p. 194). Isso leva ao predomínio de planos aproximados, em detrimento aos planos gerais, e a uma limitação estratégica do número de elementos que aparecem na tela, dado que o espaço trabalhado é reduzido. Diferentemente do cinema que acontece em uma sala escura, “(...), o vídeo em geral ocorre em espaços iluminados, em que o ambiente circundante concorre diretamente com o lugar simbólico da tela pequena, desviando a atenção do espectador e solicitando-o permanentemente (...)” (MACHADO, 1997, p 198). Outras diferenças incluem a predisposição do espectador ao assistir um filme, em contraponto ao da televisão que tenderia a ser mais disperso e distraído. Isso, no entanto, se ocorre nas séries, é reduzido por outros aspectos, dado que uma parte de quem a segue é formada por aficionados que estão (ou deveriam estar) atentos ao conteúdo para não perder o sentido aquilo que é exibido.

Concomitantemente, há diferentes estratégias utilizadas na narrativa seriada que agem no sentido de “prender a atenção”, como destaca Machado (2005). Segundo o autor, existem os “ganchos de tensão”, utilizados entre os comerciais e ao final de capítulos, “Seccionando o relato no momento preciso em que se forma uma tensão e em que o espectador mais quer a continuação ou o desfecho, a programação de televisão excita a imagi- nação do público.” (p. 88). Outro fator importante, levantado por Machado e que ocorre nas diversas séries produzidas atualmente (e em outros tipos de programas como as telenovelas), incluindo The Walking Dead, diz respeito ao “processo produtivo”:

“(...) (a produção se dá ao mesmo tempo que a recepção, ou com uma pequena diferença de tempo), que permite incorporar ao programa os acidentes do acaso e as demandas da audiência, através da expansão, enxugamento ou supressão das tramas paralelas.” (2005, p. 95)

Além disso, com o desenvolvimento tecnológico e do formato em vídeo, destaca Machado, tornou-se possível gravar o programa, armazená-lo, pular partes que não se quer assistir, acelerar a exibição, repetir determinada seqüência, além de outras possibilidades dadas ao espectador. De tal modo a permitir uma “margem de auto- nomia”, pois nem sempre a leitura realizada pelo receptor é a mesma proposta pelo emissor (1997, p. 199).

Os seriados televisivos ganharam mais atenção do público e da crítica ao longo da última década. Chamados de “enlatados” nos anos 80, ganharam sofisticação técnica e, com o advento da TV por assinatura e da internet, tornaram-se presentes no cotidiano de milhões de pessoas em todo o globo, universalizando temas e, assim, obtendo expressivos índices de audiência14. A narrativa seriada também pode apresentar pontos interessantes para além de uma simples “repetição”, como ressalta Machado ao falar da série The X Files: “Mas em con- dições de produção mais privilegiadas, é possível encontrar estruturas seriadas realmente interessantes, nas quais a repetição torna-se, como na música minimalista, a condição inaugural de uma nova dramaturgia.” (2005, p. 89). Ademais, a “serialização televisual” chama atenção ao “fazer dos processos de fragmentação e embaralhamento da narrativa uma busca de modelos de organização que sejam não apenas mais complexos, mas também menos previsíveis e mais abertos ao papel ordenador do acaso.” (2005, p. 97).

14 Foram os casos do último episódio de Seinfeld, do lançamento da temporada final de Lost ou os expressivos índices de audiência de The Walking Dead. 543 3. Kracauer e Sorlin

Siegfried Kracauer e Pierre Sorlin tentaram compreender o cinema, sua forma, suas imagens e sons, em re- lação com o contexto social em que se inseriam. Visualizaram algo além do que um simples conteúdo que “copia” a realidade, mas que poderia ser analisado para fornecer informações correspondentes à sociedade em que foram produzidos.

Kracauer iniciou seu trabalho sobre cinema escrevendo críticas para o Frankfurter Zeitung no ano de 1921, publicando cerca de 1000 artigos durante os anos seguintes (HANSEN, 2009, p. 10). Mas a obra que o tor- nou mais conhecido e discutido na academia foi De Caligari a Hitler – Uma história psicológica do cinema alemão, publicada em 1947. Diferente dele, Sorlin escreveu muitos anos depois dessas publicações, na obra intitulada Sociologia del cine – La apertura para la historia de mañana e publicada em 1977, e procurou apro- fundar-se teoricamente, delimitando as características deste objeto e o método para melhor analisá-lo. Apesar de ambos terem como objeto o cinema, traçaram metodologias para a análise de imagens, o que não impede a tentativa de analisar as imagens produzidas na televisão, principalmente os seriados, que tiveram a maior parte de sua técnica extraída de experiências realizadas no cinema.

O cinema, para Kracauer, serviria para compreender um pouco mais sobre a sociedade na qual surgiu e circula. Tal como outros produtos, como as Tillergirls15, o cinema poderia ser considerado como uma “discreta mani- festação de superfície” a ser analisada com o objetivo de se entender uma determinada época. Essas manifes- tações, inconscientes, permitiriam acessar tanto informações fundamentais quanto “impulsos desprezados”, por meio da interpretação, e se revelariam em uma ação recíproca (KRACAUER, 2009, p. 91). Tal como ele afirma: “Os filmes são o espelho da sociedade constituída.” (2009, p. 1).31

O cinema teria tamanha força por desenvolver-se dentro do capitalismo e cumprir interesses de corporações, que de alguma forma devem entender o público consumidor para obter cada vez mais lucro. À época da pu- blicação de seus artigos o público era composto “basicamente de operários e pessoas simples”, e Kracauer identificava nos filmes um meio pelo qual esta classe imaginaria como seria a vida em um estrato superior. As produções sempre visariam atender às “necessidades de crítica social de seus consumidores”, e por estarem inclusas na sociedade, nunca tentariam ferir seus fundamentos (KRACAUER, 2009, p. 311). Neste sentido, a maioria dos filmes responderia ao “sistema dominante”, pois, caso contrário, a sociedade não os toleraria e estes tenderiam ao fracasso. (KRACAUER, 2009, p 312).

Apesar dos filmes exagerarem certas coisas e amenizarem outras, para Kracauer, estes não deixariam de “re- fletir a sociedade”. É nesse movimento que o “mecanismo secreto da sociedade” seria revelado, através da incorreta apresentação da “superfície das coisas”. Pois como ele afirma: “As fantasias idiotas e irreais dos filmes são ossonhos cotidianos da sociedade, nos quais se manifesta a sua verdadeira realidade e tomam for- ma os seus desejos de outro modo represados.” (KRACAUER, 2009, p. 313). Kracauer avança na questão da pesquisa sobre a sociedade e o papel do cinema:

“Para pesquisar a sociedade atual, seria necessário ouvir aquilo que revelam os produtos da grande indústria cinemato- gráfica. Todos eles revelam um segredo rude sem que na realidade o queiram. Na seqüência infinita de filmes um número limitado de temas típicos retorna sempre e eles revelam como a própria sociedade deseja ver a si mesma. A quintessência destes temas de filmes é, ao mesmo tempo, a soma das ideologias da sociedade, despidas de seus encantos através da inter- pretação dos motivos.” (2009, p. 315).

15 Era uma companhia de uma revista americana, fomarda por diversas garotas que saiu em turnê pela Europa em 1929 (KRACAUER, 19xx, p. 92). 544 Logo após a Segunda Guerra Mundial, Kracauer aprofunda sua visão sobre o cinema e sobre as leituras que poderiam ser realizadas. Toma como base o cinema alemão e analisa-o para buscar as “profundas tendências psicológicas” e todas as características que acabaram por se consolidar em Hitler. Além disso, para ele, o cine- ma também poderia ser utilizado para entender a “conduta das massas” (KRACAUER, 1985, p. 09).

Para Kracauer, os filmes realizados em determinada nação refletiriam de forma mais direta sua “mentalidade” do que outras formas de arte, por duas razões: em primeiro lugar, pois um filme é fruto de uma equipe e não de um indivíduo; e em segundo lugar, porque os filmes são realizados para atender a demanda de uma multidão anônima (1985, p. 13). O cinema, especialmente os filmes populares, satisfaz os “deseos reales de las masas”, caso contrário, o desagrado do público se refletiria diretamente em sua bilheteria. Então, uma indústria, inte- ressada em obter retornos cada vez maiores, tentaria se adequar às mudanças de “clima mental”, como seria o caso de Hollywood: “El público norteamericano recibe, sin duda, lo que Hollywood quiere que reciba; pero, a la larga, los deseos del público determinan la naturaleza de los filmes de Hollywood.” (KRACAUER. 1985, pp. 14).

O cinema poderia ir além do explícito, seria possível ver refletido no filme as tendências psicológicas e tudo o que se encontra em um nível abaixo da dimensão consciente de toda uma mentalidade coletiva. Pois, as películas devem analisar o mundo visível em sua totalidade para serem realizadas, e os filmes possibilitariam, ao registrar isso, olhar para pontos dos processos mentais ocultos (KRACAUER, 1985, p. 14). A tela cine- matográfica parece estar interessada pelo detalhe, pelo que antes não poderia ser visto. Por isso a importância do primeiro plano, “Las películas parecen cumplir la misión innata de escarbar en la minucia.”. Os pequenos movimentos captados, como o fechar da mão em primeiro plano, constituíriam os “jeroglíficos visibles”. Uma série de pequenas coisas que revelariam a dinâmica das relações sociais, e que por sua vez, estariam revelando a vida interior da nação onde o filme fora realizado, Kracauer retira essa idéia de Horace M. Kallen. (1985, p. 15).

Kracauer faz algumas ressalvas ao pesquisador, não deve ser ingênuo e acreditar que um filme com grande bilheteria trataria estritamente dos desejos da massa. Por vezes um filme pode satisfazer somente a uma das muitas necessidades, e talvez esta nem seja uma muito específica. A importância de uma produção não está exatamente em sua popularidade e em tudo o que pode ser medido estatisticamente, mas sim naquilo pelo qual atrai mais atenção em determinado filme, “la popularidad de sus motivos anecdóticos y visuales.” (1985, p. 15). Além disso, certas características recebem um peso mais sintomático quando aparecem tanto em peque- nas quanto em grandes produções.

Kracauer defende a busca por uma “mentalidade peculiar”, diferente de uma busca por um caráter nacional fixo. Seu interesse recai sobre as “tendencias colectivas” dentro de uma determinada etapa do desenvolvi- mento de uma nação na qual o filme foi realizado. As perguntas que são dirigidas devem se enquadrar neste determinado período. Portanto, Kracauer não está interessado em estabelecer “una imagen del carácter nacio- nal”, mas em buscar uma “fisionomia psicológica de um pueblo en um momento determinado” (1985, p. 16). Apesar de existirem “determinados argumentos cinematográficos” que só façam sentido e se apliquem a uma determinada parte da nação, não se deve deixar de procurar a existência de tendências que afetem a nação como um todo. Kracauer utiliza o exemplo da Alemanha pré-nazista e a forma como a classe média penetrou em todos os estratos, conseqüentemente o cinema alemão estava enraizado pela mentalidade desta classe.

Para Sorlin, o cinema constitui um rito social e seu público já está acostumado a ele. Sobretudo, é um meio

545 que está presente na vida de um número imenso de pessoas e, como qualquer forma de comunicação, possui um plano de fundo e uma “reserva de ideas y de imágenes” pelas quais os produtores conseguem fazer suas produções serem entendidas (SORLIN, 1992, p. 12).

Sorlin aponta para duas principais dificuldades a serem superadas pelo pesquisador. A primeira se deve à afe- tividade. Um filme pode permitir várias leituras, muitas vezes uma contradizendo a outra, ou em outras vezes uma complementando a outra. O principal cuidado a se tomar quando se analisa um filme é não tomá-lo como “realidade”, pois o cinema, bem como a fotografia, apenas recortam uma parte do todo a partir de determinado ponto de vista. Para além disso, no cinema ainda há a força da montagem de diversos fragmentos. O pesqui- sador não deve procurar saber até que ponto o cinema influencia parte dos espectadores, pois na maior parte das opiniões apenas haverá algo muito geral sobre o filme. O público não se interessa por minúcias e capta apenas aquilo a que estão familiarizados. Neste sentido é que o pesquisador deve se atentar, pois, assim como o público, ele não está excluído de formar opiniões gerais, familiarizadas e afetivas sobre os filmes (SORLIN, 1992, p. 29-32).

A segunda dificuldade diz respeito às “falsas evidências da imagem”. Para não cair nessa armadilha, a prin- cipal ação do pesquisador é rever o filme por inúmeras vezes, para não ficar atento somente ao que é “visible y lo que se mueve” (SORLIN, 1992, p. 33). Há de se levar em consideração que as imagens de um filme não são arbitrárias, mas são escolhidas e recortadas para apresentarem um argumento. Cabe ao investigador com- preender quais os sentidos e significados foram dados para tais imagens. Outra implicação se deve ao papel subestimado antes designado aos filmes e documentos visuais, o de simples ilustração de argumentos. Para Sorlin, o filme não é nem melhor nem pior do que um texto (1992, p. 34). Para contribuir na superação desse obstáculo, Sorlin alerta: “Cuando el historiador se pone por tarea el estudio de las mentalidades, le está prohi- bido hacer elecciones a priori; decidir, en nombre de sus solas normas de apresentación, que una fotografia es importante y que otra no lo es.” (1992, p. 36). Para ele, os filmes devem ser tratados como conjuntos nos quais os diversos elementos inseridos possuem uma significação, em paralelo com a tentativa de captar os esquemas e as relações internas, que organizam as diferentes partes do filme. (1992, p. 37).

Para Sorlin a comunicação em sociedade ocorre por meio de um sistema de signos, ele não nega considerar o cinema como uma linguagem, portanto é possível compreender seus signos. O signo seria uma unidade posta no lugar de outra, eventualmente um objeto definido e concreto, e que teria a característica fundamental de responder a uma convenção. Portanto, a construção cinematográfica é baseada em diversas convenções, desde o formato da tela até a forma como o filme é realizado (SORLIN, 1992, p. 47). Iconicamente existem infinitas variações para um mesmo objeto, pois a visão é um sentido muito mais amplo do que a audição, ela envolve cor, distância, ângulo, sombra, etc. Seria possível ao cinema apresentar uma sucessão infinita de mensagens, embora, como aponta Sorlin, não seja isso que ocorra, pois algumas produções de uma mesma época tendem a se alinhar e apresentar combinações visuais parecidas. (1992, p. 48). O filme em si não possui a pretensão de constituir um sentido único, mas permite múltiplas linhas. O papel do pesquisador é explicitado por Sorlin: “No existe una significación inherente al filme: son las hipótesis de la investigación las que permiten descubrir ciertos conjuntos significativos.” (1992, p. 49).

Analisar imagens é um trabalho difícil e extremamente importante, pois a imagem passou a ter grande im- portância na vida moderna. A imagem não impõe um significado ou mesmo regras para ser decifrada. Ela é global e possui um caráter restrito, é polissêmica. Possui diferentes significados, mas finito dentro do alcance do espectador que reagrupa aqueles elementos icônicos e tenta ordená-los a partir de sua bagagem, para obter 546 uma mensagem. A imagem não “fala” por si mesma, mas é interpretada. Apesar de haver muitas possibilida- des de leitura, o filme é constituído por uma série de planos e em forma seqüencial. Um plano isolado poderia abrir brechas para diversas interpretações, mas se é apresentado em determinada ordem, sua posição provoca uma determinada leitura. Além disso, Sorlin enumera outros pontos que servem para guiar a leitura: o jogo de câmera, a montagem e os diálogos (SORLIN,1992, p. 56).

O cinema também opera por elementos visuais exteriores a ele próprio, que já possuem certas indicações e encontram-se socializados, funcionando como signos que são percebidos imediatamente após serem exibidos. Outras indicações, recebidas como sema (elemento significante), não são alteradas pelo filme e passam a inte- grar seu sistema de signos. Como descreve Sorlin:

“Debemos completar la proprosición antes emitida: cada filme se constituye un código, y también existen códigos proprios de una época, de un área cultural, de un medio, cuyo conocimiento es indispensable para quien desea estudiar el cine.” (1992, p. 58).

Sorlin esclarece outro ponto importante para a análise fílmica, o pesquisador deve compreender do que se trata o “visible”. Claramente não vemos o mundo que nos cerca exatamente como ele é, mas o percebemos através de uma série de fatores, como hábitos, experiências e mentalidades, julgando o que é mais importante em detrimento do que não é. Para Sorlin, o que é visível para determinada época é “lo que los fabricantes de imágenes tratan de captar para transmitirlo, y lo que los espectadores aceptan sin asombro.”. Por isso, cada época possui seu leque de signos que permite perceber o que é visível. Este leque pode aumentar e ser modi- ficado, como consequência, cada época apresenta signos diferentes e desconhecidos para uma época anterior (SORLIN, 1992, p. 58).

Para entender as nuances do que é “visível” e a forma pelo qual isto se transforma, Sorlin destaca uma “cegue- ra social”, que não permite olhar para aquilo que não estamos preparados a enxergar. Para estar preparado é preciso se acostumar a olhar sistematicamente às imagens e questioná-las, deve-se procurar entender quais as relações existentes entre “nociones y imagenes” ou quais “representaciones” foram reveladas. O pesquisador também deve se atentar para não cometer a falha inversa, expondo inúmeros detalhes e tecendo uma quanti- dade imensa de pontos de vistas sem nenhum sentido (SORLIN, 1992, p. 59).

As mudanças sobre o que é “visível” não ocorrem aleatoriamente, mas seguem as imposições da formação social da qual faz parte. O cinema corresponderia ao mesmo tempo ao repertório e à produção de imagens. Mostrando fragmentos de uma realidade que o público aceita e reconhece, e assim o visível se propaga em conjunto às novas imagens. Ao pesquisador também cabe identificar o visível e suas mudanças (SORLIN, 1992, p. 60). Por fim, Sorlin destaca alguns cuidados:

“Los elementos codificados no llenan todos los planos que componen un filme; la mayor parte de las tomas yuxtaponen figuras socialmente determinadas y las figuras ‘libres’, flotantes, que los espectadores deberán interpretar a su manera. Pero el cine comercial está organizado de tal modo que limita esta intervención del público, dirigiendo la mirada, indicando lo que hay que contemplar, qué selecciones conviene operar en el interior de cada imagen.” (1992, p. 60).

Sorlin conclui que o filme exibe imagens que seriam visíveis para o público da época, mas cabe ao pesquisador olhar para as imagens que estão “invisíveis”, mas que aos poucos estão começando a tornarem-se visíveis.

Sorlin comenta brevemente as contribuições e os problemas encontrados no trabalho de Kracauer, mas o identifica como o responsável por abrir caminho para o que ele chamou de “sociologia del cine” ou “sociolo- gia histórica”. Kracauer teria se esforçado para tentar entender em que medida o cinema alemão anunciava o nazismo, relacionando o cinema com a sociedade que o produziu, mas de uma forma muito frágil: o cinema

547 como reflexo da sociedade. Para ele, Kracauer apresenta a idéia sobre o que seria uma mentalidade da época, mas de uma forma muito vaga, somente a descrevendo como uma espécie de psicologia popular de um deter- minado momento. Apesar de Kracauer avançar na busca de outras explicações menos fáceis de verificar do que as já dominantes, política e econômica, para Sorlin ele estava “ansioso por convencer”.

A partir da existência de traços psicológicos dominantes, advindos da pequena burguesia, Kracauer procura encontrá-los nas obras cinematográficas e comete o exagero de indicar todos os dados “característicos”, que para ele eram possíveis de se conseguir ao observar os filmes, como algo que indicava a “mentalidade” daque- la época (SORLIN, 1992, p. 40). Kracauer também teria cometido um erro comum a diversos pesquisadores: utilizar o cinema como se este fosse a própria realidade ou algo que captasse a realidade. Outra crítica estava na forma como Kracauer olhava para os filmes, a partir de uma visão fortemente arraigada pelo nazismo, o que o pressionou a não encontrar nada além do que uma predisposição ao “hitlerismo”. Kracauer faria o que os matemáticos chamam de “clase de equivalência”. Descobriu as mesmas cadeias de relações tanto nos filmes como na sociedade, assim repetindo e descobrindo o mesmo, tanto em um quanto em outro (SORLIN, 1992, p. 41).

Sorlin também discorda em outros pontos. Em primeiro lugar, Kracauer tomava a “mentalidad de una nación” como algo global, enquanto que para Sorlin ele deveria ter a consciência de que o trabalho na verdade apenas descobre um “caracter estrecho, limitado y parcial de cada una de las expresiones ideológicas de um período dado”. Portanto, o período do cinema alemão estudado por Kracauer mostraria somente uma fração do campo ideológico anterior a Hitler e não a totalidade como ele havia afirmado. Em segundo lugar, para Sorlin, Kra- cauer exagera a importância do cinema, por acreditar que o filme seria um documento mais verdadeiro do que outras fontes, além de acreditar que devido ao público ser tão variado, a sociedade estaria ali representada. Sorlin, por sua vez, acredita que a imagem captada não é a realidade, mas uma percepção sobre a vida real, uma reconstrução imaginada pelos realizadores do filme, nada além de “representações”. Se por meio do pú- blico pudesse ser realizada a leitura do que corresponde aos anseios e desejos da sociedade, bastaria realizar um levantamento estatístico, sem precisar analisar os filmes em si. Por último, Sorlin destaca que “faltaba a sus [Kracauer] estudios una reflexión sobre los materiales utilizados por el filme, y sobre las relaciones exis- tentes entre el cine y su público.” (1992, p. 43).

Mas Sorlin não deixa de notar a importância da obra de Kracauer:

“En 1947, el libro de Kracauer era una novedad notable. Aun cuando sus insuficiencias aparezcan hoy, no parece que se le haya superado: la sociologia del cine sigue estableciendo relaciones de homologia entre los filmes y el medio en que nacen. Considera una especie de vaivén entre el cine y la sociedad: la sociedad impone un cuadro, es un peso que abruma a los realizadores; sin embargo, los cineastas no tratan de ‘copiar’ esta realidad; la transponen, le dan una visión de perspectiva que revela sus mecanismos y aclara sus trasfondos.” (1992, p. 41).

Sorlin acrescenta que concorda com o pensamento de Kracauer ao perceber que há muita coisa além de um simples filme, haveria neste objeto algo intrínseco a ser revelado, como as preocupações, as tendências e as aspirações da época na qual o filme foi produzido. A partir de sua idéia de ideologia, Sorlin equipara-a com a ideia de Kracauer de tentar buscar algo além do desequilíbrio político e econômico para entender a Alemanha do período. Seria preciso levar em consideração o “estado de espíritu de los alemanes, sus menesteres, sus temores, y el cine abre la vía para estudiar esos diferentes dominios, nos [Sorlin] sentimos completamente de acuerdo com él [Kracauer].” (SORLIN, 1992, p. 42).

4. Breve análise do primero episódio

Por fim, será realizada uma breve análise do primeiro episódio de The Walking Dead, tendo como base algu- mas das considerações elencadas por Kracauer e Sorlin. Nessa primeira abordagem a principal hipótese é que o seriado trabalha com alguns elementos significantes sobre a noção de “civilização”, “fim da civilização” ou

548 mesmo “pós civilização”. Pois tal como afirma Sorlin, é a partir da hipótese de investigação que se chega aos conjuntos significativos.

A partir da primeira seqüência uma série de elementos contribui para a construção de um cenário caótico e des- truído. Um plano geral acompanha um carro que vem em direção à tela, a estrada está deserta e os semáforos não estão funcionando. O veículo, uma viatura policial suja, se aproxima de carros capotados e para, o policial desce calmamente. Outro elemento se faz presente na seqüência, o silêncio prevalece. Há lixo espalhado pelo chão e algumas pessoas mortas dentro de carros. O policial olha para uma grande placa onde está escrito que não há mais gasolina naquele lugar (“no gas”). Ao longo do episódio alguns desses elementos se repetem tanto no hospital onde Rick acorda do coma, quanto em sua cidade ou mesmo em Atlanta: as ruas vazias, a sujeira espalhada, a desordem, carros destruídos, o silêncio. Deste modo, cria-se um ambiente sobre o “fim da civilização” com elementos identificáveis pelo espectador em seu cotidiano. Se no mundo “civilizado” o que prevalece é a ordem, neste “novo mundo” tudo está desorganizado, se antes zelava-se pela limpeza, agora tudo está sujo, o “barulho da civilização” abriu espaço para o “silêncio do fim da civilização”.

Em continuidade a primeira seqüência do episódio outro elemento aparece de forma contundente. O policial ouve um barulho e olha por debaixo de um carro, há um primeiro plano das pernas de uma criança que cami- nha calmamente e abaixa o braço para pegar um ursinho de pelúcia. Em seguida, a criança continua andando e aparece de costas, o policial a chama, mas quando ela se vira, percebemos que se trata de uma menina zumbi. Ela caminha em direção ao policial para atacá-lo, que recua, saca uma arma e atira em sua cabeça. A morte é enquadra de cima, ela cai em slowmotion enquanto o ursinho é jogado para longe. Com o fim da civilização, há também o fim da inocência: um policial para sobreviver precisa matar uma menina.

A alimentação aparece duas vezes no episódio. Na primeira, um flashback de Rick enquanto trabalhava como policial, momentos antes de ser baleado. Há um primeiro plano da comida, um típico fast-food com batata frita, lanche e refrigerante, Rick e Shane conversam dentro da viatura enquanto comem. Algumas conclusões podem ser tiradas a partir daí: eles não tinham tempo para preparar a comida; não tinham tempo para sentar-se a mesa; comem dentro da viatura, durante o trabalho; a comida precisa ser rápida e prática. Ao contrário disso, em outra seqüência no mesmo episódio, após Rick ser cuidado por Morgan, eles sentam-se para comer: o ali- mento foi preparado por Morgan; eles sentam a mesa para comer; a mesa está arrumada com pratos e talheres; há tempo para rezar e agradecer pelo alimento.

Outro elemento importante na caracterização da “não-civilização” é o fogo, uma das invenções mais primiti- vas do homem. Após acordar do coma e caminhar pelo hospital, bagunçado e vazio, Rick encontra uma caixa de fósforos e a utiliza para iluminar seu caminho até a saída. Além disso, o fogo ilumina a casa onde estão Morgan e seu filho, por meio de diversas velas espalhadas pela casa.

Neste primeiro episódio há também a apresentação do novo perigo: os zumbis. Ao mesmo tempo em que a sobrevivência depende da morte desses “mortos”, que tentam atacar os vivos, a série trata de “humanizá-los”. Por exemplo, A menina zumbi no começo do episódio pegando um ursinho de pelúcia no chão e carregando-o. A mulher de Morgan, depois de morta retorna a casa onde estava seu marido e seu filho e tenta mexer na ma- çaneta para entrar. Por fim, duas seqüências que se intercalam, enquanto Rick vai atrás de um zumbi que ele avistara anteriormente para acabar com seu sofrimento, Morgan tenta atirar em sua mulher através da janela da casa. Rick consegue atirar, por outro lado Morgan chora e não prossegue, a partir do momento em que ela passa a olhar fixamente para a lente de seu rifle. De certa forma, há a lembrança de que os zumbis não são

549 monstros, mas seres humanos que sofreram por causa de alguma doença e agora estão nessa situação.

Por último, a música (Space Junk da banda Wang Chung) tocada ao fim do episódio convida o espectador a embarcar naquele “novo” mundo. Enquanto o cavalo que Rick encontrou é devorado por zumbis, ele perman- ece dentro de um tanque de guerra cercado por outros tantos, e o refrão da música diz: “Welcome to my world / Welcome to my only world / It is full of space junk / But your words are coming through / I’m riding on the space junk / And it’s bringing me to you / Bringing me to you”16.

5. Referencias bibliográficas

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KRACAUER, Siegfried. Prefácio; Introducción. In: De Caligari a Hitler: Una historia psicológica del cine alemán. Barcelona: Paidós, 1985. p. 09-19.

______. O ornamento da massa; As pequenas balconistas vão ao cinema. In: O ornamento da massa: ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 91-103; 311-326.

MACHADO, Arlindo. O vídeo e sua linguagem. In: Pré-cinemas & pós-cinemas. Campinas: Papirus, 1997. p. 188-201.

______. A narrativa seriada. In: A televisão levada a sério. São Paulo: Editora Senac, 2005. p. 83-97.

SORLIN, Pierre. Sociología del Cine: La apertura para la historia de mañana. Mexico: Fondo de Cultura Econômica, 1992. p. 07-64.

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HQ de “The Walking Dead” lidera lista de vendas em 2012. Disponível em: Acesso em: 15 jul 2013, 13:21:40.

JIMENEZ, Keila. “The Walking Dead” tem mais audiência que programas ao vivo na Band. Disponível em: Acesso em: 15 jul 2013, 13:34:30.

Número 100 de ‘The Walking Dead’ bate recorde de vendas. Disponível em:

16 Tradução minha: “Bem vindo ao meu mundo / Bem vindo ao meu único mundo / Ele está cheio de lixo espacial / Mas suas palavras estão vindo através / Eu estou montando em lixo espacial / E ele está me trazendo até você / Me trazendo até você”. 550 lazer/numero-100-de-the-walking-dead-bate-recorde-de-vendas-5496771.html> Acesso em 15 jul 2013, 13:30:10.

RICCO, Flávio. Canal Fox bate recorde de audiência no Brasil com “The Walking Dead”. Disponível em: Acesso em: 15 jul 2013, 13:32:20.

“The Walking Dead” estreia com recorde de audiência nos Estados Unidos. Disponível em: Acesso em: 15 jul 2013, 13:16:40.

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