Revista Tempos Acadêmicos, Dossiê Arqueologia Pré-Histórica, nº 11, 2013, Criciúma, . ISSN 2178-0811

AMA - ARQUEOLOGIA NA MATA ATLÂNTICA1

Deisi Scunderlick Eloy de Farias2 Marcia Fernandes Rosa Neu3 Alexandro Demathé4 Geovan Martins Guimarães5 Tiago Atorre6

RESUMO Este artigo visa a apresentar sucintamente as atividades de pesquisas arqueológicas desenvolvidas no projeto AMA – Arqueologia na Mata Atlântica. Esse projeto, em desenvolvimento desde 2005, busca identificar, na região da encosta sul de Santa Catarina, evidências de ocupações de grupos pré-coloniais. A pesquisa, desenvolvida até o momento, demonstra que o local esteve constantemente ocupado, em diversos períodos da pré-história, por diferentes grupos humanos, portadores de culturas e tecnologias distintas.

Palavras-chave: Arqueologia. Mata Atlântica. Diversidade cultural na pré-história.

ABSTRACT This article presents, in a brief way, the activities of archaeological research project developed in AMA - Archaeology in the Mata Atlântica. This project is in development since 2005 and seeks to identify, in the region of the southern slope of Santa Catarina, evidences of occupations groups pre-colonial. The research conducted to date, demonstration that this place was constantly occupied in different periods of Prehistory by different human groups, people with different cultures and technologies.

Keywords: Archaeology. Mata Atlântica. Cultural diversity in Prehistory.

1 Projeto com financiamento do CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico desde 2005. 2 Arqueóloga pesquisadora e coordenadora do GRUPEP-Arqueologia/UNISUL. 3 Geógrafa pesquisadora do GRUPEP-Arqueologia/UNISUL. 4 Arqueólogo pesquisador do GRUPEP-Arqueologia/UNISUL. 5 Arqueólogo pesquisador do GRUPEP-Arqueologia/UNISUL. 6 Mestrando do MAE-USP.

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1. Introdução

O projeto AMA tem como objetivo central evidenciar os elementos regionais e locais que permitam demostrar que a região da Encosta Sul de Santa Catarina foi uma área ocupada de forma permanente e constante por diferentes grupos humanos, culturamente diversos em diferentes momentos no período pré-colonial. Esse ambiente foi escolhido não apenas por suas características geográficas, mas também pela quantidade de vestígios arqueológicos, identificados e associados a padrões culturais, que não apenas os descritos pela literatura arqueológica como pertencentes à Tradição Umbu. Durante os seis anos de projeto foram realizadas prospecções arqueológicas, escavação em vários sítios, com aprofundamento no SC-RF-11 onde também foram realizadas atividades de geofísica, produção de uma cronologia regional, análises laboratoriais e atividades educativas. Nesse artigo, faremos um breve relato de algumas dessas ações.

2. Breve retrospectiva do projeto

A área de pesquisa engloba os 17 municípios da AMUREL (Associação dos Municípios de Laguna), localizados na encosta sul do Estado de Santa Catarina, tendo como centro os municípios de Rio Fortuna e Grão Pará, na bacia do Rio Braço do Norte (figura 1). Esse projeto possui um duplo enfoque, que converge, simultaneamente, na escala regional e local. No enfoque regional buscaremos inferir, em detalhe, a evolução dos processos naturais e sua correlação com o estudo da ocupação humana, possibilitando desenvolver perspectivas arqueológicas de territorialidade, economia e sociabilidade em grande escala. No enfoque local, o projeto busca compreender, sobretudo, as formas culturais de apropriação deste território e de construção social da paisagem, o que envolve uma atenção especial e detalhada na investigação da natureza dos processos formativos associados aos sítios líticos a céu-aberto, buscando compreender as evidências relacionadas aos espaços domésticos, ou associadas à vida cotidiana. A idéia é investigar a funcionalidade e a distribuição dos diferentes componentes arqueológicos que configuram o sistema de ocupação da encosta. Buscamos com isso, a análise intra-

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Revista Tempos Acadêmicos, Dossiê Arqueologia Pré-Histórica, nº 11, 2013, Criciúma, Santa Catarina. ISSN 2178-0811 sítio, mais focada e minuciosa, cuja intenção é avaliar os processos formativos desses sítios a céu-aberto que possuem características específicas e pouco pesquisadas.

Figura 1: Mapa da AMUREL com as áreas pesquisadas.

Essa pesquisa, iniciada em 2004 com apoio da FAPESC, e posteriormente, em 2006 e 2009 com apoio do CNPq, gerou informações importantes onde foi possível integrar vários métodos de investigação arqueológica ao estudo destes pouco conhecidos vestígios arqueológicos de sociedades pré-históricas adaptadas aos ambientes de floresta, uma abordagem que expandimos consideravelmente, em seis anos de pesquisa, com escavações sistemáticas, mapeamento de novos sítios, análise de

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Revista Tempos Acadêmicos, Dossiê Arqueologia Pré-Histórica, nº 11, 2013, Criciúma, Santa Catarina. ISSN 2178-0811 material lítico e datações. Na primeira fase do projeto, desenvolvida em 2005 e 2006, encontramos vários sítios líticos ligados à Tradição Umbu e aos grupos ceramistas do litoral e planalto. No entanto, naquele momento não foi possível esclarecer aspectos cronológicos e culturais, já que não escavamos nenhum sítio mapeado. Na segunda fase, continuamos mapeando novos sítios arqueológicos, localizados em Rio Fortuna, Grão Pará, Laguna, Armazém, , Tubarão e demais municípios da AMUREL e aprofundamos a pesquisa com a escavação de sítios localizados em compartimentos diferenciados dessa região. As intervenções nos propiciaram resgatar vestígios que foram datados, processados e analisados em laboratório. Com as pesquisas de Farias7, Dias8 e Perin9 foi possível inferir que os grupos humanos, adaptados a esse ambiente, criaram processos de aproveitamento e otimização do espaço, refletidos nas evidências da cultura material identificada nos espaços intra- sítios, demonstrando relações estabelecidas entre eles. Essas, por sua vez, apresentaram a acumulação do conhecimento gerado durante anos de convívio, criando uma espécie de “saber ecológico”10. A pesquisa propõe uma metodologia sistêmica e interdisciplinar, envolvendo um sistema geo-referenciado de informações (GIS), com o objetivo de elaborar modelos integrados de transformações ambientais e culturais, e também micro-evolução humana, da sociedade caçadora-coletora11. Os modelos propostos inferem tanto fatores naturais, como a expansão da Mata Atlântica12, como fatores históricos, que indicam a longa ocupação e adaptação das sociedades caçadoras-coletoras, seguidas das sociedades ceramistas, a estes cenários das Serras do Leste Catarinense, que envolvem, entre outras situações, a organização social, o padrão de assentamento, a tecnologia e a base

7 FARIAS, Deisi Scunderlick Eloy de, Distribuição e Padrão de Assentamento – propostas para os sítios da Tradição Umbu na Encosta de Santa Catarina, 2005. 8 DIAS, S., SIG e Arqueologia na Mata Atlântica - Padrão de Assentamento e Aproveitamento do Ambiente pelos Grupos Pré-Históricos na Micro-Bacia do Caruru - Tubarão – SC, 2007. 9 PERIN. E.B., Padrão de Assentamento dos Sítios Líticos do Alto Curso da Bacia Hidrográfica do Rio Tubarão - Municípos de Grão Pará e Rio Fortuna – SC, 2007. 10 BATES, Daniel G.; LEES, Susan H., Case studies in Human Ecology, 1996. 11 KNEIP, Andreas, O povo da lagoa: uso do SIG para modelamento e simulação na área arqueológica do Camacho, 2004; DIAS, S., op. cit., 2007; FARIAS, D. S. E., AMA - Arqueologia na Mata Atlântica – Padrão de assentamento e aproveitamento do ambiente pelos grupos pré-históricos na região da AMUREL, 2009. 12 BEHLING, Hermann, Late Quaternary vegetational and climatic changes in , 1998; ARAUJO, Astolfo G. M. et al., Eventos de Seca no Holoceno e suas implicações no povoamento pré-histórico do Brasil Central, 2003.

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Revista Tempos Acadêmicos, Dossiê Arqueologia Pré-Histórica, nº 11, 2013, Criciúma, Santa Catarina. ISSN 2178-0811 alimentar. Além disso, a pesquisa busca identificar a expansão demográfica desses grupos e o possível contato com a chegada dos ceramistas Jê ao Planalto Meridional, estimado entre mil anos atrás aproximadamente13. O foco principal desta pesquisa continua sendo o sítio lítico a céu-aberto SC-RF-11, no município de Rio Fortuna, cujo estágio avançado de informações produzidas possibilita um salto qualitativo no conhecimento dos sítios a céu-aberto do interior.

Figura 2: Implantação do Sítio SC-RF-11 em meio aos "mares de morros" da Encosta Catarinense.

3. Procedimentos metodológicos

Para a identificação de novos sítios na região da AMUREL utilizamos a metodologia de full-coverage-survey, ou varredura completa. Baseada em Fish e Kowalewsky14, essa metodologia tem como denominador comum o exame sistemático de blocos contíguos de terra em níveis uniformes de intensidade. A intensidade ou o detalhe e a escala de observação espacial, é considerada como variável independente para os autores. Varredura completa implica uma área de pesquisa, englobando sítios múltiplos e suas imediações. Portanto, a dimensão da área torna-se um elemento central. Tal forma de trabalho não substitui a amostragem, apresentando-se como uma alternativa eficiente

13 FARIAS, Deisi Scunderlick Eloy de, op. cit., 2005. 14 FISH, Suzanne K.; KOWALEWSKI, Stephen A., The Archaeology of regions: a case for full-coverage- survey, 1990.

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Revista Tempos Acadêmicos, Dossiê Arqueologia Pré-Histórica, nº 11, 2013, Criciúma, Santa Catarina. ISSN 2178-0811 e econômica para que se cubram áreas de alcance regional. A varredura completa não absolve seus praticantes da explicitação, do rigor matemático ou até da necessidade de lidar com a metodologia de amostragem. Estudos que a utilizam enfatizam o retrato acurado da maneira como cada dado foi coletado e o emprego de métodos apropriados de recuperação com relação aos problemas endereçados. Embora a amostragem não seja uma exigência em uma área de estudo definida, pode se tornar uma em outros aspectos do estudo, como por exemplo, na coleta de artefatos nos sítios. Técnicas quantitativas sofisticadas tornaram-se particularmente cruciais com o crescente conjunto de dados gerados a partir da varredura completa15. Para a aplicação dessa metodologia, duas polaridades são apresentadas. Uma refere-se ao aspecto geográfico. Os casos de varredura completa são realizados predominantemente em ambientes áridos e semi-áridos, os quais proporcionam ótima visibilidade de superfície. No entanto, não se inviabiliza a utilização da metodologia em áreas florestadas, onde a visibilidade do solo é mais baixa. Fish e Gresham16 utilizaram essa metodologia num estudo realizado na Geórgia, demonstrando sua viabilidade. De Blasis17 também as utilizou na região de Ribeira do Iguape, assim como Farias18 para a região de encosta de Santa Catarina. Enfim, a varredura total pode ser aplicada em vários ambientes, dependendo apenas da vontade dos pesquisadores em superar obstáculos e adequar a metodologia ao ambiente pesquisado. O projeto direcionou o seu problema para a cobertura da área e buscou estabelecer relações padronizadas entre ocupantes de múltiplos sítios19. A segunda linha de investigação, que envolve a escavação dos sítios arqueológicos, incorpora perspectivas tanto antropológicas quanto históricas. De maneira geral, busca-se compreender os processos antrópicos atuantes nesta dinâmica de construção dos sítios e sua relação com o ambiente, através de remanescentes deixados intencionalmente, ou não. Pretende-se, desta forma, acessar a cultura material pré-colonial, objeto por excelência do questionamento arqueológico neste projeto:

15 FISH, Suzanne K.; KOWALEWSKI, Stephen A., The Archaeology of regions: a case for full-coverage- survey, 1990, p. 3. 16 FISH, Paul R.; GRESHAN, Thomas, Insights from full-coverage-survey in the Georgia Piedmont, 1990, p. 151. 17 DE BLASIS, Paulo A. D., Bairro da Serra em três tempos: arqueologia e uso do espaço regional e continuidade cultural no Médio Vale do Ribeira, 1996. 18 FARIAS, Deisi Scunderlick Eloy de, op. cit., 2005. 19 FISH, Suzanne K.; KOWALEWSKI, Stephen A., The Archaeology of regions: a case for full-coverage- survey, 1990, p. 5.

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Revista Tempos Acadêmicos, Dossiê Arqueologia Pré-Histórica, nº 11, 2013, Criciúma, Santa Catarina. ISSN 2178-0811 aspectos da vida e da cultura dos caçadores-coletores, como e por que habitaram o espaço da encosta, como era sua subsistência e economia, onde enterravam seus mortos, quais suas rotas de deslocamento, enfim, como se apropriaram do ambiente da encosta. O enfoque de múltiplas escalas20, tanto nos deu parâmetros de alta escala, para os padrões culturais característicos da sociedade caçadora-coletora (territorialidade e recursos, tecnologia e economia, organização do sistema de assentamento), quanto na compreensão de aspectos de escala micro ligado à organização dos espaços domésticos e áreas funcionais. É importante frisar que a atenção da investigação arqueológica agora se concentra principalmente nos aspectos tecnológicos e econômicos que parecem estar na base dos processos ocupacionais na área de Mata Atlântica, ponto central de interesse deste projeto, com grande potencial informativo sobre paleoambiente, costumes, demografia e hierarquização social das sociedades pré-coloniais da encosta, assim como das mudanças destes parâmetros ao longo do tempo. Para a indústria lítica realizamos análise tecno-tipológica dos materiais líticos lascados e polidos baseados em Hoeltz21; Prous22; Laming-Emperaire23, Isnardis24, Andrefsky25 e Vialou26. Além dos critérios quantitativos gerais, identificamos as semelhanças tipológicas desse material e a matéria-prima utilizada pelos grupos.

4. Atividades de campo 4.1. Prospecções arqueológicas

A prospecção foi realizada nos municípios de Rio Fortuna, Braço do Norte, Grão Pará, Armazém, Laguna, Jaguaruna e Tubarão. Onde foram realizados caminhamentos, coletas de superfície e eventualmente, abertura de poços testes. Os sítios mapeados inserem-se em uma área de ecótono, na encosta sul de Santa Catarina e estão envolvidos por uma região que favorece a variedade de captação de recursos. Localizados nos

20 CLARKE, David L., Spatial Archaeology, 1977. 21 HOELTZ, S. Tecnologia Lítica – Uma Proposta para a Compreensão da Industrias do Rio Grande do Sul: Brasil em Tempos Remotos, 2005. 22 PROUS, A., Os artefatos líticos: Elementos Descritivos e Classificatórios, 1986/1990; ______, Arqueologia Brasileira, 1992. 23 LAMING-EMPERAIRE, Anette, Guia para o estudo das indústrias líticas da América do Sul, 1967. 24 ISNARDIS, Andrei, Entre as pedras: as ocupações pré-históricas recentes e os grafismos rupestres da região de Diamantina, Minas Gerais, 2009. 25 ANDREFSKY, William, Jr., Lithics: Macroscopic Approaches to Analysis, 1998; ______, Lithic Debitage Analysis: Context Form Meaning, 2001. 26 VIALOU, A. V., Tecnologia das indústrias líticas do Sítio Almeida em seu Quadro Natural, Arqueo- etnológico e Regional, 1980.

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Revista Tempos Acadêmicos, Dossiê Arqueologia Pré-Histórica, nº 11, 2013, Criciúma, Santa Catarina. ISSN 2178-0811 municípios de Rio Fortuna, Grão Pará, Tubarão e Armazém os sítios arqueológicos encontram-se nas partes mais fundas dos vales, próximos aos interflúvios dos rios e seus afluentes e nos terraços fluviais mais antigos, protegidos das enchentes periódicas. Já em Jaguaruna, os sítios estão próximos a planície quaternária, em área de promontórios que a cincunda. Observou-se que a complexa rede hidrográfica local propiciaria ao grupo condições de sustento e até de transporte, pois os rios maiores como Capivari e Braço do Norte, seriam navegáveis. Além disso, o entorno imediato dos pequenos rios seriam fonte de alimentos e matéria-prima. O tipo de solo adequado atualmente à plantação de fumo, feijão, milho e mandioca é utilizado há anos para a lavoura extensiva. Estudos anteriores avaliaram que os sítios líticos a céu aberto encontram-se em assentamentos rurais, o que demonstra a preferência por locais com atrativos que favoreçam o grupo na escolha da moradia27. O grau de conservação desses sítios variou, mas a sua maioria é de médio a baixo. Durante muitos anos, boa parte das terras onde estão os vestígios arqueológicos, foi utilizada como pasto, sendo posteriormente aradas para plantio de culturas sazonais (fumo, milho, feijão, amendoim e aipim), o que dificulta a preservação. Os sítios mais conservados, que apresentaram algumas estruturas inalteradas e quantidade significativa de materiais, foram os que estavam em áreas de pastagem, que estão sem intervenção a pelo menos 15 anos. Dividiu-se a pesquisa por municípios localizando novos sítios arqueológicos e revisitando os mapeados nas campanhas anteriores. Nos locais foram verificados sítios pouco preservados. Escolheu-se alguns para serem escavados posteriormente, em função da sua localização (nesse caso, avaliou-se o compartimento geomorfológico onde o sítio estava assentado), quantidade de material disperso em superfície, integridade futura (próximo a um dos sítios mapeados estava sendo construída uma linha de transmissão) e os sítios inusitados, como as estruturas subterrâneas que foram identificadas na etapa anterior, que foram revisitadas e posteriormente, escavadas.

27 DE BLASIS, Paulo A. D., op. cit., 1996; BINFORD, Lewis R., Willow smoke and dogs’ tails: hunter- gatherer settlement systems and archaeological site formation, 1980; ______, Organization and formation process: looking at curated technologies, 1979; FARIAS, Deisi Scunderlick Eloy de, Distribuição e Padrão de Assentamento – propostas para os sítios da Tradição Umbu na Encosta de Santa Catarina, 2005; ______, AMA - Arqueologia na Mata Atlântica – Padrão de assentamento e aproveitamento do ambiente pelos grupos pré-históricos na região da AMUREL, 2009; ______, AMA - ARQUEOLOGIA NA MATA ATLÂNTICA - Reconstituindo a evolução paleoambiental e as transformações culturais na encosta , 2012.

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Com a prospecção foram identificados 20 sítios no município de Tubarão; oito no município de ; 23 no município de Rio Fortuna; dez em Grão Pará; oito em Braço do Norte; três em Armazém. São sítios líticos, cerâmicos da Tradição Tupiguarani e Taquara, esses últimos representados pelas estruturas subterrâneas.

Figura 3: Sítio lítico a céu aberto, SC-RF- Figura 4: Sítio lítico a céu aberto, SC-RF-11 14

Figura 5: Sítio lítico a céu aberto, SC- Figura 6: Sítio lítico a céu aberto, SC- GVT-Medeiros 02 GP-04

4.2. Geofísica

A utilização da geofísica em sítios da encosta se justifica pelo fato de que quase todos os sítios mapeados e pesquisados são compostos por vestígios materiais de grupos caçadores-coletores e alguns poucos sítios representativos dos grupos Guarani. Diversos são os problemas que envolvem os sítios dessa área. A cronologia por 14C obtida nas intervenções arqueológicas coloca os sítios dentro do período de ocupação dos grupos Jê (entre 400 e 1200 anos AP) na região, muito embora os vestígios materiais indiquem a presença de grupos caçadores-coletores, especialmente de Tradição Umbu.

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Nesse contexto, quaisquer evidências que possam ser recuperadas para fora das manchas escuras que caracterizam os sítios podem ser de grande auxílio na interpretação desses registros. Nesse sentido, fizemos um levantamento preliminar no Sítio Rio Facão 11 (SC-RF-11), o único em seu cluster a não apresentar pontas de flecha. O SC-RF-11 se caracteriza por duas manchas escuras aparentes em superfície onde ocorrem materiais arqueológicos até cerca de 50 cm de profundidade. Duas áreas de escavação foram abertas por sobre as manchas em etapas anteriores a este levantamento, sendo a área 1 uma área de escavação ampla, e a área 2 composta por duas trincheiras perpendiculares. A análise do material recuperado coloca o sítio entre 920 - 1060 anos Cal AP28, dentro do horizonte de ocupação Jê para a região, embora a cultura material encontrada não seja suficiente para definir essa questão. Em busca de vestígios para além das manchas escuras escavadas anteriormente foram adquiridos um total de 34 perfis de georadar em 5 grids nas adjacências da área de escavação 1, além de 5 perfis exploratórios na porção noroeste do grid 4, totalizando um imageamento de cerca de 1.500 metros lineares de terreno, cuja resposta em subsuperfície chegou claramente até pelo menos 2 metros de profundidade. Lembrando que o grid 3 foi adquirido por cima da área de escavação 2, extrapolando um tanto a mesma.

28 Amostra de carvão codificada por “Beta 280022”, com data convencional de 1130 +/-40 calibrada pela curva SHCAL04 cujo intervalo de calibração é apresentado aqui em 2σ.

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Figura 7: Detalhe do sítio com indicação das áreas de escavação anteriores ao levantamento geofísico, além dos grids e perfis de georadar adquiridos no levantamento.

Por se tratar de um trabalho ainda em andamento, no âmbito do projeto de mestrado de Tiago Atorre, “Um método, múltiplas possibilidades: aplicações do radar de penetração de solo em diferentes contextos arqueológicos do sul catarinense”, que está sendo realizado no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, sob orientação do Prof. Dr. Paulo DeBlasis, apresentaremos aqui apenas dados preliminares do grid 5, além de algumas considerações. Os grids 1, 2 e 3 foram adquiridos nas áreas que apresentavam um contexto idêntico ao das áreas escavadas, com o intuito de se imagear possíveis estruturas no entorno imediato das escavações, com uma resolução capaz de detectar a ocorrência de estruturas de combustão similares às escavadas, proveniente de uma malha de perfis paralelos de metro em metro tanto na porção norte quanto sul do sítio. Já o grid 4 foi adquirido na tentativa de se esclarecer a origem de uma formação doliniforme que se apresenta na porção setentrional do terreno, sendo que uma anomalia

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Revista Tempos Acadêmicos, Dossiê Arqueologia Pré-Histórica, nº 11, 2013, Criciúma, Santa Catarina. ISSN 2178-0811 de grande porte foi detectada, ainda em campo, na porção NW do grid gerando alguns perfis exploratórios naquela área. O grid 5 é composto de 4 perfis paralelos, distando 5 metros entre si, que cobrem a totalidade da porção leste de todo o topo do morro onde a vegetação foi suprimida. O intuito dessa aquisição foi o de explorar o terreno não contemplado nos outros grids em busca de áreas propícias para a ocorrência de material arqueológico, que possam levar à execução de outros grids com maior definição, ou mesmo de escavações de sondagens.

Figura 8: Segmento do Perfil 205, com indicação da faixa central dos horizontes.

De maneira geral, os quatro perfis que compõe o grid 5 (204, 205, 206 e 207) parecem concentrar os eventos em subsuperfície ao longo de dois horizontes cujo centro varia entre 10 e 20 nano segundos, respectivamente, o equivalente a 50 e 100 cm de profundidade, com variação de +/- 20 cm em cada um. Em outras palavras, os eventos observados se encontram entre 30 e 70 cm no primeiro horizonte e 80 e 120 cm no segundo. Há ainda um horizonte mais profundo, mas esse não será abordado aqui, por se tratar provavelmente de eventos geológicos.

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Dada a grande extensão dos perfis (110 metros em média) as imagens serão apresentadas em recortes e serão utilizadas para exemplificar as interpretações. A distribuição geral das diferentes anomalias observadas, no horizonte mais superficial foi esquematizada em uma ilustração que representa cada uma das linhas, com divisões de meio em meio metro, cada área de interesse foi assim demarcada dentro desses 50 cm, muito embora essa não seja sua dimensão real. Dessa maneira, cada perfil foi analisado separadamente e as áreas de maior interesse foram marcadas nas áreas de 50 cm de cada perfil. A área que mais chama a atenção, quando comparada ao conjunto, se encontra entre os metros 40 e 50. Nesse ponto, com pequena variação, todos os perfis, com exceção do primeiro, concentram áreas de interesse entre 35 e 80 cm de profundidade. Uma segunda etapa de campo poderia imagear essa área em um grid com maior resolução para determinar a continuidade, ou não, das anomalias ao longo do terreno, lembrando que no grid 5 os perfis paralelos distam 5 metros entre si. Além disso, há áreas pontuais de interesse ao longo de cada um dos perfis, que poderiam ser alvo de sondagem arqueológica, em uma segunda etapa, não obstante o mais importante seria determinar a origem da concentração dos eventos ao longo dos dois horizontes, sendo que a maior probabilidade é de que se trate de um evento geológico, dada a grande dispersão observada do fenômeno. Mesmo a origem geológica do fenômeno pode vir a ser de interesse arqueológico, uma vez que os horizontes parecem concentrar eventos e uma ocupação humana mais antiga poderia figurar entre eles. Figura 9: Distribuição das anomalias imageadas no horizonte mais superficial.

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Figura 10: Anomalias imageadas entre os metros 40 e 50 dos perfis indicados.

5. Atividades de Laboratório 5.1. Análise Tecno-Tipológica dos Artefatos Líticos

Durante a execução do projeto, houve escavação e prospecção com coleta de artefatos em 23 sítios arqueológicos, o que gerou uma coleção de 5.586 artefatos líticos que foram submetidos a todas as etapas laboratoriais que envolvem: higienização, catalogação e análise tecno-tipológica.

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Sítio Arqueológico Quantidade de Artefatos Líticos SC-RFT-23 131 SC-RFT-54 481 SC-RFT-55 71 SC-BNT-04 1687 SC-BNT-07 33 SC-BNT-08 71 SC-GP-01 965 SC-GP-02 651 SC-GP-04 151 SC-GP-05 83 SC-GP-06 86 SC-GP-07 132 SC-GP-10 24 SC-GP-08 31 SC-GP-11 45 SC-GP-12 72 SC-GP-15 86 SC-RF-03 22 SC-RF-08 125 SC-RF-09 273 SC-RF-12 151 SC-RF-13 98 SC-RF-14 117 Total 5.586 Tabela 1: Sítios arqueológicos que possuem material lítico com as respectivas quantidades.

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Para a análise dos artefatos líticos foi elaborada uma lista de atributos com base nos trabalhos de Hoeltz29; Prous30; Laming-Emperaire31, Isnardis32, Andrefsky33 e Vialou34. A interpretação da paisagem onde estão inseridos os vestígios arqueológicos foi realizada levando-se em consideração os vários níveis de contexto, que vai desde a micro até a macro escala de um assentamento. O espaço micro, mais detalhado, é o ambiente dos sítios escavados ou documentados; já o espaço macro pode ser estendido pela região de captação de recursos do grupo. Esses componentes representam variáveis dinâmicas características de diversos subsistemas fundamentais na interação, entre os grupos pré-coloniais e seus ambientes biofísicos: os lugares de assentamento como sistemas sedimentários especiais, o uso do solo como intervenção sobre a paisagem, bem como a utilização de plantas e animais que lhe conferem uma intervenção biótica, promovendo uma transformação ecossistêmica35. Por isso, os sítios escavados nessa região são caracterizados como subsistemas interativos, que integram os sistemas de subsistência, arranjos de assentamentos permanentes e sazonais, conectando a arqueologia regional à arqueologia social36. Optamos por utilizar elementos geográficos e ecológicos para compreender a captação e utilização de matérias-primas, a produção de artefatos, as estruturas e as rotas escolhidas pelos grupos, já que sabemos que a arqueologia regional ocupa-se de elementos que se relacionam e representam as atividades humanas em todos os seus níveis37. Buscamos, dessa forma, compreender as interações entre os diversos grupos habitantes da região, avaliando as redes e o padrão de assentamento, construídas em tempos remotos e suas áreas de captação de recursos. De acordo com o mapa geológico elaborado pelo Departamento Nacional de Produção Mineral - DNPM na escala 1:500.000, as rochas locais fazem parte das formações geológicas da faixa granito-gnáissica Santa Rosa de Lima – e a do

29 HOELTZ, S., op. cit., 2005. 30 PROUS, A., op. cit., 1986/1990; ______, op. cit., 1992. 31 LAMING-EMPERAIRE, Anette, op. cit., 1967. 32 ISNARDIS, Andrei, op. cit., 2009. 33 ANDREFSKY, William, Jr., op. cit., 1998; ______, op. cit., 2001. 34 VIALOU, A. V., op. cit., 1980. 35 BUTZER, Karl W., Arqueología – Una ecología Del hombre: método y teoría para un enfoque contextual, 1989. 36 ______, op. cit., 1989. 37 FARIAS, Deisi Scunderlick Eloy de, op. cit., 2005.

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Revista Tempos Acadêmicos, Dossiê Arqueologia Pré-Histórica, nº 11, 2013, Criciúma, Santa Catarina. ISSN 2178-0811 complexo Tabuleiro, essa última é constituída de granitóides foliados de composição tonalítica a granítica, com granitos verdadeiros, portando xenólitos anfibolíticos. O Complexo Tabuleiro A(T-B)t, no qual fazem parte alguns municípios que envolvem o projeto, é o representante de uma das unidades com maior diversidade petrográfica e estrutural. A Faixa Granito-Gnáissica Santa Rosa de Lima-Tijucas A(T- B)t 3 estende-se de maneira contínua por cerca de 150 km, desde as proximidades de Orleans até Tijucas. Em toda a sua extensão oriental, a faixa limita-se com a suíte intrusiva Pedras Grandes e o Complexo Brusque. A extremidade ocidental acha-se coberta pelos depósitos da Bacia do Paraná. Seu limite norte dá-se com o Cinturão Brusque38. Na área da pesquisa observaram-se dois tipos de fontes de matéria-prima: os rios com seixos e os afloramentos de quartzo em veio entre o granito. Essas fontes apresentam variações de rochas que servem de base para a indústria lítica verificada nos sítios estudados. Esse fato, associado à grande quantidade de recursos e a paisagem diversificada, faz que essa área seja apropriada para assentamentos estáveis, cuja funcionalidade pode ser atribuída a locais de habitação e processamento de matéria- prima. Os sítios escavados são, em sua maioria, pequenos, apresentando uma área com vestígios bastante dispersos e alterados pela ação pós-deposicional, que envolve, principalmente, a agricultura. Alguns desses sítios, no entanto, apresentam áreas com forte densidade de material lítico disperso por uma área maior. Em todos os sítios escavados, foram abertas trincheiras e quadrículas a fim de identificar as características estruturais e de distribuição intra-sítio, no entanto, a baixa integridade de quase todos eles não possibilitou uma investigação mais aprofundada. O material lítico foi produzido em cima de um conjunto de matérias-primas disponíveis na área de estudo, presentes nos rios, como seixos e nos morros, como os quartzos em veio. Os artefatos foram produzidos sobre lascas, em rochas de quartzo, basalto e granito. As formas básicas distribuem-se entre lascas bipolares, detritos, artefatos bifaciais e polidos, bloco natural e, em alguns casos, a pré-forma. A maioria das peças está sem superfície natural e em baixo estado de preservação. Grande parte da amostra analisada é de peças pequenas e finas, indicando que o local escavado poderia ter sido o ponto final de acabamento do material, isso é

38 SILVA, Luiz Carlos da; BORTOLUZZI, Carlos Alfredo (Eds). Texto explicativo para o mapa geológico do Estado de Santa Catarina, 1987, p. 40.

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Revista Tempos Acadêmicos, Dossiê Arqueologia Pré-Histórica, nº 11, 2013, Criciúma, Santa Catarina. ISSN 2178-0811 corroborado pela grande quantidade de detritos e lascas corticais e de preparação presentes em todos os sítios escavados e prospectados. Dos artefatos bifaciais analisados, percebe-se a proeminência das pontas de projétil. A análise tecno-tipológica nos indicou que, esses grupos produziam artefatos sobre lascas, utilizando o sistema de debitagem e priorizando a técnica bipolar. Essa pesquisa possibilitou saber o tipo de matéria-prima utilizada e quais os processos de debitagem ocorridos nos sítios escavados. O material indicou que nos sítios líticos a céu-aberto havia diferença no processo produtivo das peças, por exemplo, nos sítios SC-BN-04 e 08 ocorria todas as etapas de debitagem; o mesmo não acontecia em outros sítios, onde as peças eram levadas semi-acabadas para serem finalizadas na área do sítio, como é o caso do SC-RF-11 e SC-RF-01. No caso do SC-BN-08 o sítio encontra-se a 700 metros do Rio Braço do Norte, facilitando a coleta de seixos para produção de artefatos. Dos vários sítios escavados e prospectados obteve-se 197 artefatos que correspondem a 6,68% da amostra, 107 deles são provenientes dos sítios SC-GP-01 e SC-GP-02 o que equivale a (54,3%) dos artefatos. Até o momento estes sítios são os mais densos da área pesquisada, tanto em artefatos quanto peças, (54,7%) de todo o universo lítico coletado. Os artefatos foliáceos identificados possuem entre 4 e 6 centímetros e correspondem a 5% do total dos artefatos. A matéria-prima predominante é o sílex e as peças exibem quase sempre a forma de folha. Aparentam origem de lascas ligeiramente estreitas obtidas por percussão unipolar. A extremidade distal sempre acaba ligeiramente mais fina e pontiaguda, local onde os retoques são menores, realizados por pressão. Todos exibem mais retoques na lateral mais fina da peça, dando-lhes características morfológicas que lembram raspadores. O ângulo da ponta do artefato também lhe confere a possibilidade de uso como furador. Um artefato em especial apresenta significativas evidências de tratamento térmico, regiões com deformações arredondadas onde as estrias do lascamento são ocultas, e principalmente a coloração avermelhada do sílex, comumente associada a este tipo de trabalho. As pontas de projétil constituem a maior parte dos artefatos da amostra (49,7%), provenientes principalmente dos sítios SC-GP-01 e SC-GP-02. Apresentam, em geral, tamanho pequeno; algumas muito pequenas não ultrapassam dois centímetros. Pontas grandes também estão presentes, merecendo destaque um exemplar da coleção

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Revista Tempos Acadêmicos, Dossiê Arqueologia Pré-Histórica, nº 11, 2013, Criciúma, Santa Catarina. ISSN 2178-0811 particular do Senhor Lourenço Gil, com mais de catorze centímetros de comprimento. A maior parte da amostra possui pedúnculo; as aletas são ligeiramente discretas, embora presentes na maioria dos artefatos. A matéria-prima é quase sempre o quartzo (83,4%) e predominam retoques pequenos que cobrem toda a peça. Toda a amostra é caracterizada por artefatos bifaciais. Outro aspecto destes artefatos é a relativa fragmentação (51%), que a princípio não pode ser relacionada a etapas da produção, pois a maior parte da amostra provém de sítios localizados em áreas de plantio onde se faz uso do arado. A fragmentação também é freqüente nas lascas. Outro fato que pode ser mencionado é a quantidade destes artefatos que se encontra em posse dos moradores locais, que mantêm pequenas coleções de até 30 peças, cuja proveniência, na maioria dos casos, é indeterminada. Foram identificadas raspadeiras plano convexas (3,5%) dos artefatos. Esse tipo de artefato foi encontrado nos sítios SC-GP-O1, SC-GP-04, SC-GP-07, SC-RF-08 e SC- RF-09. A matéria-prima é o sílex e alguns artefatos exibem parte cortical de bloco (artefatos unifaciais de até 10 centímetros). O suporte é uma lasca relativamente espessa e o lascamento é unipolar, mais presente em um lado específico, o que pode apontar para o sentido do uso do artefato ou até mesmo reativamento dos bordos. Um artefato da coleção particular da Senhora Nadir de Oliveira apresenta pedúnculo, que pode ter sido uma raspadeira em forma de lesma, reciclada em virtude de quebra da parte distal. Há na amostra, raspadeiras circulares ou semicirculares (2,5% dos artefatos) definidas por artefatos bifaciais geralmente espessos. São provenientes dos sítios SC- GP-01, SC-GP-07 e SC-RF-09. Estes artefatos apresentam retoques marginais ligeiramente grandes e sua forma é robusta. Pela estrutura, pode ser relacionado uma raspadeira. São comuns também raspadores nucleiformes, artefatos bifaciais com tamanho variável. Foram encontrados em vários sítios, tornando-se comum na amostra (13,7%). São geralmente espessos e quase totalmente lascados, apresentam inclusive retoques e a própria morfologia relacionada a raspadores utilizados antes da fase terminal de elaboração. A maior parte das pré-formas destas indústrias líticas apresenta tamanho pequeno, não ultrapassando cinco centímetros. Podem estar relacionados a pontas abandonadas durante o processo de produção ou foram, possivelmente, artefatos foliáceos de tamanho maior que passaram novamente por processo de lascamento, com a intenção de

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Revista Tempos Acadêmicos, Dossiê Arqueologia Pré-Histórica, nº 11, 2013, Criciúma, Santa Catarina. ISSN 2178-0811 reativar os bordos. Aparecem também lascas retocadas, principalmente aquelas de tamanho maior. Dentre os artefatos reconhecidos nos trabalhos de campo há duas peças que se diferenciam do restante dos materiais: trata-se de uma mão-de-pilão em rocha básica e uma outra peça lascada, também em rocha básica com característica morfológica que lembra um machado de mão. Os materiais fazem parte do acervo particular do Senhor Damião, e foram encontrados, segundo ele, nas imediações do sítio SC-GP-11.

6. Conclusão

Sem dúvida alguma, os dados obtidos com a pesquisa desenvolvida até então, estão construindo um importante cenário para a arqueologia da encosta sul catarinense. Os dados arqueológicos e pré-históricos obtidos precisam ser aprofundados, no entanto consideramos que a prospecção e as escavações realizadas na encosta está cumprindo com o seu objetivo inicial, que é confirmar a diversidade dos grupos humanos que habitavam aquela região, que de alguma maneira está documentada historicamente, quando apresenta o conflito entre colonizadores e Xokleng39. Outrossim, a pesquisa mais detalhada no sítio SC-RF-11, onde realizamos uma prospecção geofísica, levantou nova possibilidade de ocupação. Essa metodologia apontou uma anomalia em uma profundidade que pode indicar a presença de grupos mais antigos na região. Em breve iremos testar tal hipótese. A prospecção realizada detectou novos sítios com características ambientais e tecnológicas semelhantes aos sítios já mapeados. Diante disso, escolhemos realizar a intervenção aprofundada no SC-RF-11, alguns revisitados e outros inéditos na área do projeto. Realizou-se a análise dos artefatos líticos onde se concluiu a continuidade da tecnologia de lascamento vinculada a grupos caçadores-coletores. Nenhum vestígio que indicasse a presença de grupos ceramistas foi encontrado nos novos sítios mapeados. O único elo entre os sítios a esses grupos é o horizonte cronológico, que varia entre 400 e 1200 AP, indicativo de grupos ceramistas Jê Meridional. Inicialmente a encosta era considerada apenas como área de transição e ocupação sazonal entre populações que migravam do planalto para o litoral, sendo ocupada de forma periférica. No entanto, a pesquisa desenvolvida desde 2004 vem demonstrando o

39 SANTOS, Sílvio Coelho dos, Os índios Xokleng: memória visual, 1997; ______, Índios e Brancos no Sul do Brasil: a dramática experiência dos Xokleng, 1973.

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Revista Tempos Acadêmicos, Dossiê Arqueologia Pré-Histórica, nº 11, 2013, Criciúma, Santa Catarina. ISSN 2178-0811 alto potencial ambiental e antrópico da região. Muitos sítios estão sendo mapeados, outros escavados, todas as informações apontam para um cenário de ocupação complexo, com muita variabilidade cultural, onde são verificados sítios com tecnologia e morfologia diferenciada. Perin40 detectou sítios arqueológicos com os seguintes tipos de ocupações: a) sítios líticos que apresentam manchas escuras no solo; b) sítios líticos sem estruturas aparentes e c) sítios com manchas sem lítico associado. Os sítios que apresentaram materiais líticos possuem peças lascadas como pontas bifaciais em quartzo e alguns artefatos polidos em arenito ou basalto. Historicamente, sabemos que a região foi ocupada pelos Xokleng, os quais tiveram contato direto com os colonizadores europeus que ocuparam a área na metade do século XIX. A cultura material presente nos sítios demonstra a presença de grupos caçadores-coletores vinculados a Tradição Umbu, pois em muitos sítios mapeados se verifica a presença de uma indústria lítica sobre lascas, com muitos artefatos bifaciais, típicos desses grupos. Por outro lado, temos uma cronologia que nos remete a ocupação de grupos ceramistas portadores da Tradição Taquara/Itararé. O levantamento de sítios em um espaço regional, sobretudo na encosta, mostra sítios de tamanhos e estruturas diversificadas, com diferentes padrões de ocupação, onde unidades maiores e menores parecem configurar pequenas aldeias, ordenadas em conjuntos concêntricos, com diversas cabanas distribuídas em uma área de até dois quilômetros quadrados. As pesquisas demonstraram que os grupos reconheceriam seu espaço de moradia, saberiam onde coletar determinados tipos de alimentos, e a época do ano em que eram abundantes; reconheceriam a qualidade do solo e suas épocas para plantio; entenderiam o ciclo produtivo dos animais e utilizariam a caça na complementação protéica; buscariam, nas reservas minerais, o material propício para a produção de artefatos, quando essas jazidas não afloracem na superfície; encontrariam nos leitos dos rios e córregos a fonte da matéria-prima. Bates e Lees41 esclarecem que depois que se iniciou a domesticação de plantas e animais e os grupos humanos começaram a depender de maneira crescente das plantas cultivadas e dos animais domesticados, o forragear continuou a ser importante para subsistência de muitos grupos, algumas vezes, na base sazonal.

40 PERIN. E.B., op. cit., 2007. 41 BATES, Daniel G.; LEES, Susan H., Case studies in Human Ecology, 1996, p. 14.

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O exemplo de forrageadores como os Xokleng42, Batak43 e Nukak44 podem ser utilizados para entendermos o padrão de mobilidade e estabilidade dos grupos caçadores-coletores na Mata Atlântica catarinense. A princípio, podemos apenas supor que esta área possuía uma função estratégica na subsistência do grupo, não podendo ser descartada, ou apenas transformada em local de passagem. Por estar situada entre o litoral e o planalto, ela possui uma forte relevância habitacional. A floresta oferecia vegetal em abundância. O palmito pode ser visto como um elemento dinamizador, que se apresenta como um recurso permanente e estável. Outro elemento é o pinhão, importante fonte de carboidrato, porém ocorrendo em alguns meses do ano. Para a área de pesquisa, buscamos entender as interações sistêmicas em grande escala, as redes de assentamentos e suas zonas de recursos correspondentes45. Para tanto, pesquisamos em uma área com semelhanças geomorfológicas, fitogeográficas e litológicas que apresentassem pequenas variações, as quais possibilitariam aos grupos a organização de uma logística de captação de recursos que gerasse um melhor aproveitamento dos recursos disponíveis. Entendemos que o espaço não é uma configuração topológica homogênea. Sua ocupação e transformação estão integradas a uma perspectiva econômica, social, religiosa, cognitiva e ambiental46. Os lugares possuem, portanto, valores diferenciados conforme o que oferecem ao grupo, mostrando-se, dessa maneira, complexos e heterogêneos. Fatores como clima, topografia, solo, água, vegetação e fauna inter-relacionam-se e definem-se dentro de um ecossistema. Com isso, o estudo regional realizado até então propiciou examinarmos, comparativamente, padrão de assentamento, geoarqueologia e o estudo intra-sítio, o que possibilitou entender o padrão de assentamento dos grupos e a forma como exploravam esse ambiente, com recursos estáveis e regulares em alguns pontos de maior diversidade e em outros, escassos, impulsionando seus habitantes a buscar outras alternativas. Outros pontos ainda estão sendo avaliados, e apenas com a continuidade das pesquisas poderemos aprofundar os dados e construir um modelo mais robusto para a encosta sul catarinense.

42 FARIAS, Deisi Scunderlick Eloy de, op. cit., 2005. 43 EDER, James F., Batak Foraging camps today: A window to the History of a hunting-gathering economy, 1996. 44 POLITIS, G., Nukak, 1996. 45 BUTZER, Karl W., op. cit., 1989. 46 FARIAS, Deisi Scunderlick Eloy de, op. cit., 2005.

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