Rituais, cosmologia e musicalidade Timbira: os casos do Pepcahàc Ràmkôkamekra/Canela e o Pẽpkaak Apinaje.1

Ligia Raquel Rodrigues Soares (UFAM) Odair Giraldin (UFT)

RESUMO Os Apinaje e os Ramkôkamẽkra-Canela são dois povos Jê Setentrionais que são classificados desde Nimuendaju como sendo grupos Timbira. Pretende-se, neste artigo, apresentar e discutir os rituais Pẽpcahàc e Pẽpkaak apresentando dados comparativos entre ambos. O primeiro é realizado atualmente pelos Ràmkôkamẽkra-Canela enquanto que o segundo era praticado pelos Apinaje até os anos 1930. Ambos apresentam características que os assemelham e também que os diferem entre si. Como semelhança ambos os rituais se ligam ao término do processo de formação masculina, bem como pelo fato de serem rituais que colocam (ou colocavam) os homens em contato com os seres do cosmos. A diferença está em que entre os Apinaje esse contato era mediado através de cantos xamânicos chamados mẽ amnhi, cuja música tinha a capacidade de controlar elementos do mundo. Nos Ramkôkamekra-Canela, cuja formação masculina se dá por um conjunto de quatro reclusões que exige resguardos alimentares que possibilitam a formação do corpo e estimula a criação de habilidades, como preparo para ser cantador, caçador, corredor ou um xamã, será no Pẽpcahàc que os homens iniciados poderão apresentar as definições dessas possibilidades após as reclusões. Nas músicas executadas no Pẽpcahàc, canta-se elementos do mundo animal, visando colocar em interação os iniciados com esses seres, em busca de compartilhamento de forças potenciais.

PALAVRAS-CHAVES: Timbira, cantos, Pẽpcahàc e Pẽpkaak.

Introdução

A proposta deste artigo é realizar uma reflexão sobre os cantos do Pẽpcahàc e Pẽpkaak para os povos Ràmkôkamekrá/Canela e Apinajé respectivamente, através da interpretação de alguns cantos desses rituais2, uma vez que a música é tida como sendo um aspecto central para todos os povos (TRAVASSOS, 2007), sendo considerada como

1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN. 2 Vale a pena ressaltar que os dados e as interpretações aqui apresentados são as primeiras notas de uma pesquisa em andamento, não devendo elas serem tomadas senão nesta condição e não como resultado de análises ou interpretações conclusivas. Expo-las aqui dessa maneira é um convite à reflexão sobre a etnomusicologia dos povos indígenas no Brasil.

“um sistema modelar primário do pensamento humano e uma parte da infraestrutura da vida humana” (BLACKING, 2007). A escolha de refletir sobre o universo musical Timbira3 se deu a partir de diálogos entre os autores sobre diversos aspectos da vida desses povos, observando-se as suas semelhanças e diferenças. Em uma pesquisa de mestrado, se verificou como o mundo dos Ràmkôkamekrá/Canela está diretamente ligado aos rituais, mais exatamente na relação entre mitos, rituais e cantos e como esse tripé está o tempo todo entrelaçado aos mundos das plantas e dos animais (Soares, 2010). Após esta pesquisa houve um investimento nesse tema para uma pesquisa de doutorado4, conjugada com pesquisa de pos-doutoramento em que esse universo Timbira passou a ser fruto desse trabalho compartilhado.5 Esse diálogo tem se mostrado frutífero uma vez que ainda resta muito a dizer sobre diversos temas relacionados a esses povos e por considerar que este ainda era um universo pouco descrito e estudado por aqueles que pesquisaram e que pesquisam no contexto Timbira. Nesse diálogo, houve então uma retomada de dados do passado a partir dos cadernos de cadernos de campo e anotações sobre os cantos e as letras do Pẽpkaak nos Apinaje, assunto pouco abordado na tese de doutorado (Giraldin, 2000). Voltar-se para esse material foi importante para retomar o olhar sobre os dados Apinaje a partir do universo ritomusical o que permite a elaboração de um texto, como esse aqui, escrito a quatro mãos.

Os Ràmkôkamẽkra/Canela e os Apinaje

Esses povos tornaram-se conhecidos na literatura antropológica, em particular a partir da monografia The Eastearn Timbira, escrita por Curt Nimuendaju (1946), estendendo-se para uma ampla produção antropológica posterior (Azanha, 1984, Crocker, 1958, 1978, 1990; Ladeira, 1982, Panet, 2003 e 2008). A semelhança da

3 Os Timbira são formados, atualmente, pelos povos indígenas Krahô (TO), Krikati (MA), Apãnjekrá/ Canela (MA), Ramkokamekrá/Canela (MA), Pykobjê, Gavião (MA), Krepumkatejê (MA), Pàrkatejê/Gavião (PA) – considerados por Nimuendaju (1946) como Timbira orientais, além dos Apinaje (TO) como Timbira Ocidental. Neste texto quando utilizado sem adjetivo (apenas Timbira), estaremos nos referindo tanto aos Orientais quanto ao Ocidental. Quando se tratar de algo específico de um povo, usaremos o etnônimo a ele atribuído. 4 Doutorado (em curso) em Antropologia Social na UFAM realizado por Ligia Raquel R. Soares sob a orientação da Dra. Deise Lucy Montardo. 5 Pesquisa de pós-doutorado realizado por Odair Giraldin no Departamento de Antropologia da UnB e que se desdobra agora em pesquisa como bolsista produtividade do CNPq. 2

organização social deste povo com os demais povos Timbira permitiu a generalização da descrição feita por Nimuendaju, referentes aos Ràmkôkamẽkrá/Canela, para todos os demais Timbira. Hoje sabemos que muitas características socioculturais descritas por ele não se aplicam a todos os povos Timbira Orientais. Tratamos os Ràmkôkamẽkra/Canela no plural por se tratar de vários povos Timbira que vivem na aldeia Escalvado, situada na Terra Indígena Kanela, município de Fernando Falcão (MA), com uma população de aproximadamente 2.500 habitantes. A aldeia é habitada pela reunião dos seguintes povos Timbira: Memõrtumre, Iromgatejê, Krôre Kamekra, Carêc Catejê, Kýýre Kamekra, Apánjêhkrá, Krahô Kamekrá, Apinajé e Txócamekra (Crocker, 1990; Soares, 2006). Essa diversidade é explicitada durante a realização do Pẽpcahàc (um ritual de formação de rapazes), quando esses povos, com seus descendentes atuais, se posicionam separadamente no pátio da aldeia. A organização social dos Ràmkôkamẽkra/Canela se dá de maneira que há dois grandes pares de metades: as metades Harãcatejye e Kyjcatejye (relacionadas a uma lógica diametral opondo oeste e leste, respectivamente) e a metades Càmakra e Atykmakra (associadas a uma lógica concêntrica ligadas a centro e periferia, respectivamente). Ligadas às metades Harã e Kyj, estão as dez classes de idade formadas pelos homens que passaram pelos inúmeros rituais de iniciação, sendo estes dois períodos de reclusão chamados de Ketuwajê, dois outros chamados de Ihcreré ou Pẽpjê, culminando com a reclusão de Pẽpcahàc. Já as metades Càmakra e Atykmakra estão formadas pelos oito grupos cerimoniais aos quais todos os homens estão afiliados através do sistema de nominação. Os Apinaje possuem dois pares de metades. As metades Koti e Koore tem a lógica diametral opondo Leste e Oeste, respectivamente. Já as metades Ipôknhôxwàin e Ihkrenhôxwàin seguem lógica concêntrica relacionadas a centro e periferia, respectivamente. Afilia-se às metades Koti e Koore pelo nome pessoal recebido enquanto que a afiliação ao segundo par de metades se dá pelo pertencimento a mesma metade do arranjador de nomes da pessoa6. Essa forma de organização social levou a que equivocadamente Nimuendaju ([1939]1983) tratasse dessas metades como de dupla filiação, criando o que ficou conhecido como “anomalia Apinaje”, equivoco que foi esclarecido posteriomente por Damatta (1976). Diferentemente de outros Timbira Orientais, os Apinaje não possuiam nem possuem classes de idade, nem grupos

6 Sobre esse tema, consultar Giraldin (2000) 3

cerimoniais ligados ao pátio. No entanto, os Apinaje também realizavam um sistema de reclusão de jovens em dois momentos, chamados de Pẽpkaak e Pẽpkumrex. E a formação dos homens que participavam destes dois rituais, se dava através do aprendizado de diversos conhecimentos, dentre eles o mais significativo era o canto de mẽ amnhi. Tanto os Ràmkôkamẽkrá/Canela quanto os Apinaje vivem em ambiente de cerrado, situados entre as regiões do sul do Maranhão e norte do no norte do Brasil, respectivamente, e tem sua terra atualmente cercada por povoados composto basicamente de pequenos produtores agropecuários e por plantações de soja e eucalipto para a produção de carvão. São povos que sofreram e sofrem ainda muito com a pressão dos não indígenas em seus territórios, caçando, pescando, extraindo mateira e invadindo as fronteiras da área plantando capim e colocando gados para pastarem em terras indígenas. A ausência de uma fiscalização rigorosa torna esses territórios bem fragilizados especialmente em suas fronteiras pela invasão dos não-índios. Os inúmeros conflitos que já tiveram nas regiões fazem com que esses dois povos sempre estejam constantemente assustados com qualquer movimentação que possa provocar outras mortes ou outros conflitos.

O universo mítico- ritual-musical-performático Timbira

A abordagem da relação mítico-ritual dos povos indígenas no Brasil vem sendo feita por diversos autores e a partir de diversas perspectivas, como aquelas realizadas por antropólogos como Seeger (1980); Pechincha (1994); Mello (1999 e 2005) e também por etnomusicólogos, como Barros (2006 e 2009); Menezes Bastos (2010); Tugny (2009 e 2009a). E mesmo autores clássicos da antropologia já chamavam atenção para essa relação. Podemos citar Leach ([1964] 1996) que em sua obra “Sistemas políticos da Alta Birmânia” em que ele interpreta o mito como contrapartida do ritual, em que mito implica ritual, assim como ritual implica mito, em que ambos são uma só e a mesma coisa, “o mito é encarado como uma afirmação em palavras que “diz” a mesma coisa que o ritual, encarado este como uma afirmação em ação” (p.76). Considera-se, então, que os amji kĩn existentes entre os povos Timbira, são abordados aqui como um universo mítico-ritual-musical-performático, uma vez que se cada elemento for abordado isoladamente, perde em capacidade de explicação e para o entendimento dessa linguagem. Poucas ainda são as descrições etnográficas detalhadas

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com uma análise e interpretação aprofundada. Apesar de hoje poder contar com alguns estudantes indígenas Timbira que estão iniciando as suas reflexões sobre a sua própria sociedade (em termos de História, Mito, Ritual, Cantos, Cosmologia), eles ainda sentem muitas dificuldades de estranhar suas sociedades com muita profundidade para realizaram uma etnografia exaustiva de tais rituais. O que nos leva a entender que podemos contribuir para ampliar esse conhecimento com as interpretações aqui apresentadas.

Um panorama mais geral sobre os cantos Timbira

Como para a maioria dos povos indígenas das terras baixas da América do Sul, em que o processo composicional não exerce o papel preponderante para o acervo musical dos povos, sendo este formado principalmente pelo processo de preensão dos cantos performados por outros seres que compõem o universo, a maior parte do repertório de cantos Timbira foram ensinadas por algum caj ou wajanga (xamã)7 que os recebeu e os aprendeu de outros seres (animais, plantas, aves ou dos mekarõ8), os quais foram memorizados e ensinados durante períodos liminares vividos pelos caj ou wajanga. Um caj ou wajanga entra em contato com esses outros seres, considerados como povos, pois vivem também em aldeias, correm com tora, compartilham de uma mesma humanidade e também de uma língua através da qual, em algum momento no passado, todos os seres podiam conversar e falar entre si. Esse fato não ocorre mais, pois por algum motivo em algum momento de suas vidas esses seres perderam a comunicabilidade após os processos de transformações corporais que lhes modificaram também as perspectivas. Entre os Timbira, portanto, também não há processos composicionais musicais. Os cantos dos rituais, assim como os cantos executados fora dos rituais (cantados no pátio ou nas casas), foram aprendidos em outros mundos e executados desde então, não cabendo compor músicas novas ou mesmo inventar novas performances nos rituais. O

7 Entre os Timbira Orientais os especialistas xamânicos são chamados caj. Já os Apinaje o chamam de wajanga. Ambos os termos referem-se tanto ao agente que exerce essa prática quanto ao poder que o agente utiliza para exercer a atividade xamanística. 8 Categoria polissêmica que se refere ao duplo de qualquer coisa, exceto água e terra. Mekarõ refere-se tanto a imagem (fotografia, desenho) quanto a sombra projetada pelas coisas, bem como a parte não material que anima os corpos e seres, podendo ser glosado como espírito ou alma. Sobre o assunto entre os Timbira, ver Carneiro da Cunha (1978). 5

que os difere de alguns povos indígenas onde o processo composicional pode vir através dos sonhos, como acontece com os (Graham) e com os (Mello, 1999 e 2005). Ou mesmo entre os Javaé em que mesmo cantos praticados em rituais e iniciação, como o Hetohoky, podem ser criados por compositores e executados ao lado de outros cantos já consolidados como tradicionais (Lourenço, 2010). Entre esses povos o canto vocal é amplamente executado pelos homens com o uso de instrumento ideofônico maracá9. Não temos conhecimento de cantos instrumentais entre os Timbira. No entanto os instrumentos aerofônicos parecem fazer parte de um cenário musical mais amplo. Tanto a buzina confeccionada com cabaças ou chifres de boi, quanto flautas confeccionadas com cabacinhas ou coco de tucum, são executados num conjunto sonoro que compõe o ambiente de execução no pátio das aldeias. Além da voz do cantor com o maracá, há também as vozes do coro de mulheres e também do animador, que é um homem que instiga todos a realizarem bem a performance em execução. Os increr (como são chamados os cantos Timbira) possuem classificações diferentes para os dois povos aqui considerados. Para os Ràmkôkamekra/Canela, existem os cantos chamados de increr cati, que são cantos de pátio considerados prestigiosos cantados somente do meio da tarde até o crepúsculo e também ao amanhecer, encerrando-se quando o sol esquenta. Há também os increr cahàc que são cantos de pátio menos prestigiosos e podem ser realizados no mesmo horário do increr cati. Existe também os increr cahàc-re, cantos ainda menos prestigiosos que o increr cahàc indicando que são cantos de pátio mas realizados no começo da noite, cantados por cantoras iniciantes que são considerados menos habilidosos nessa arte. Existem os cantos de rituais que fazem parte de outro conjunto onde estão os cantos específicos dos amjĩ kin – Wyhty, Ketuwajê, Ikrerê, Pĩxo (festa das frutas), Jàt (festa da batata), Põhỳ (festa do milho), Pẽpcahac, Kokrít, entre o Timbira Orientais - assim como os cantos de Mẽôkrepoxrundi e do Pàrkapê, entre os Apinaje -. Os cantos relacionados a cada uma destes rituais somente são executados nestas ocasiões especiais de suas ocorrências. Diante dessas duas classificações maiores podemos pensar no que sejam os cantos de amjĩ kin. Assim como a performance, que deve obrigatoriamente e

9 Entre os Timbira os homens prestigiados como bons cantores, são escolhidos por seus grupos como Mehõpahi (um tipo de líder do grupo), sendo estes os cantadores oficiais de cada grupo. Esse processo não ocorre entre os Apinaje. 6

rigorosamente ser executada como fora aprendida, como uma forma de garantia de uma harmonia e de que nenhum acontecimento fora da normalidade venha a ocorrer (pois uma performance mal executada pode indicar que algo maléfico poderá acontecer com os cantores ou com alguém da comunidade), também os cantos são reproduções de palavras de determinados seres e a sua execução induz geralmente a aquisição das características deles e provavelmente de seus poderes (animais ou plantas) pelos executores. Diante desse contexto, os cantos para os Timbira (Setti, 1994, 1995, 2000, 2004), além de transmitir conhecimentos dos elementos do ambiente, eles fazem parte de um corpus mítico musical (Tugny, 2009). Assim, todos os amji kĩn (CTI, 2006) estão ligados e relacionados a um mito em especial e expressam a forma desses povos pensarem para além da organização social. Os cantos expressam a sua reprodução e manutenção de mundo, assim como a construção de corpos e pessoas preparadas e bem formadas para lidarem com as diferentes situações do mundo atual. Vale a pena insistir e ressaltar que os cantos não são sobre os seres, mas são falas dos próprios seres do mundo estabelecendo uma comunicação dos humanos com eles. É nesse sentido que Seeger (1980, 1981 e 2004) destaca, em seus trabalhos com os Suyá, que a música é uma forma específica de comunicação, um veículo privilegiado para transmissão de valores e ethos que são transmitidos não somente através dos sons, mas dos movimentos dos seus intérpretes, do tempo, do local e das condições que são executados. Assim como nos Suyá, as origens das canções Timbira também estão relacionadas aos tempos míticos, também estabelece a organização do espaço físico e social (centro – periferia) e bem como o cosmológico, em que a posse do conhecimento está relacionada à audição e a música é tida como um instrumento de transformação e incorporação, pois através das canções, suas letras e palavras, estão todas intimamente ligadas aos poderes fortes e fracos. A organização musical dos rituais Timbira possui uma sequencialidade de cantos, com planos intercancionais (cadeia de cantos com seqüências cronológicas e temporais restritas ao dia, à noite e a madrugada), uma organização parecida com a descrita por Menezes Bastos (1999) entre os Kamayurá. Os cantos estão intimamente ligados e condensados a determinadas performances. Nesse contexto, consideramos que os amji kĩn, através de seus cantos e danças perfazem um momento compreendido como um ato de recriação de momentos primordiais, pelo fato de serem os cantos aprendidos com os seres que compõem o pjê

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cunẽa (tudo que existe sobre a terra). Ao executá-las, os Ràmkôkamekrá/Canela promovem a reprodução e manutenção de todas as espécies existentes do pjê cunẽa (Soares, 2010). Os amji kĩn parecem servir para os Timbira como uma forma de estabelecer contato, comunicação com os seres do universo através dos cantos que são seus próprios atos verbais, através dos quais cria-se situação de compartilhando de princípios vitais. Alegrando-se nos seus rituais, os Ràmkôkanmẽkra/Canela alegram também os demais seres do mundo e contribuem para que eles possam se reproduzir com mais amplitude e vigor. Mas, é importante frisar, essa reprodução do pjê cunẽa também se estende aos Ràmkôkamekrá/Canela, pois sem amji kĩn não há reprodução da própria sociedade e estabelecem nesse contexto uma imersa identidade com todos os seres existentes, seres esses que são vistos, percebidos e considerados repletos de uma humanidade. Considera-se que os amji kĩn com seus cantos e danças são ações fundamentais para a vida Ràmkôkamekrá/Canela (e para os Timbira), pois não são apenas festas para os humanos, mas veículos de comunicabilidade para todos os seres do pjê cunẽa, para que estes possam se reproduzir. Assim como Tugny (2009) aponta a música como a ciência Maxakali, consideramos que esse é também o status dos cantos, da performance, do mito e do rito para os Timbira em geral e, especificamente, para os Ràmkôkamekrá/Canela e os Apinaje. Esses elementos condensados fazem parte de um poder epistemológico referente ao mundo. A existência dessa comunicabilidade entre todos os seres que vivem no pjê cunẽa (terra) possibilita que os amji kĩn promovam alegria e reprodução de todos eles. Esta condição decorre da concepção de uma possível “humanidade” que garante a todos eles a capacidade de serem sujeitos ou de terem uma perspectiva humana, muito embora atualmente esse assujeitamento somente possa ser exercido pelos caj ou wajanga. Para os Timbira no princípio dos tempos todos os seres ou tinham forma humana, ou se comunicavam numa mesma língua e em algum momento perderam a capacidade de se comunicar ou se transformaram em outros seres. Hoje para a maioria essa comunicabilidade se restringe as atuações dos xamãs (Melatti, 1978: 82; Crocker, 1990: 311).

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O Pẽpcahàc nos Rámkôkamekrá/canela e o Pẽpkaak nos Apinaje Não apenas os nomes se assemelham entre os dois rituais, em ambos os povos. Também o mito que dá origem a ambos é semelhante. O mito conta a história de um homem que ficou adoentado e foi deixado abandonado numa aldeia. Os pássaros, liderados pelo urubu-rei, desceram e descobriram que o homem estava vivo mas com inflamação no ouvido provocado por algum inseto que ali havia entrado. Levaram-no então para o céu onde diversos pássaros foram chamados para proceder a cura, a qual foi conseguida pelo beija-flor que, com seu bico fino e comprido, conseguiu atingir o fundo da cavidade do ouvido do homem e remover o inseto. Curado, o homem retorna para a terra onde consegue reencontrar seu grupo que o deixara abandonado. Recuperado, o homem também trazia consigo o poder xamânico aprendido com os pássaros no processo de cura ao qual foi submetido. Assim, o ritual do Pẽpcahàc atual dos Rámkôkamekrá/Canela consiste em manter reclusos homens (desde crianças até homens maduros) que permanecem nessa condição por um período de até sete ou oito meses. E nesse período, ficam reclusos em uma habitação construída especialmente para eles, fora do círculo de casas da aldeia. Nesse período de reclusão são executados os cantos exclusivos do Pẽpcahàc, que somente são executados neste tempo e nesse espaço. Esses cantos são quase que exclusivamente cantos dos pássaros. Existem os cantos que são executados a noite, sem o uso de instrumento musical, quer ideofônico (como maracá) quer aerofônico (como flautas ou buzinas). Esses cantos são realizados com todos os homens sentados no chão da casa onde estão reclusos, quando então o cantor experiente executa com os jovens utilizando um bastão e realizando um movimento circular com o corpo. Consideram esses cantos como altamente respeitosos, traduzindo-os às vezes pelo termo “reza”. O ritual do Pẽpkaak dos Apinaje que não é mais realizado desde possivelmente os anos 1940, era composto por dois períodos interligados. O Pẽpkaaak e o Pẽpkuremx. Neles, também participavam desde crianças até homens maduros que ficavam reclusos em habitações construídas fora da aldeia e os neófitos não podiam ser vistos pelos membros da aldeia. Segundo os últimos homens que passaram pela experiência desse ritual, um dos elementos mais importantes desse processo de aprendizagem eram os cantos de mẽ amnhi. Segundo Nimuendajú os Apinaje traduziam para ele os cantos mẽ amnhi como “rezas” (Nimuendaju, 1983:49). Esses cantos mẽ amnhi tinham poder xamânico, com os quais os Pẽp (guerreiros) podiam interagir subjetivamente com os seres do mundo, podendo interferir

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em suas ações. Como exemplo, sempre são citados o mẽ amnhi do formigão, cujo canto tinha o poder de tirar a dor da picada deste inseto; o mẽ amnhi da chuva, com a qual os Pẽp podiam controlar uma tempestade impedindo que houve chuva muito forte e também o mẽ amnhi da bacaba, que era executado na presença das primeiras bacabas amadurecidas que então eram consumidas pelos velhos da aldeia, o que protegia para que as demais pessoas pudessem consumir sem perigo de serem atacadas pelo espírito da bacaba.

Conclusão As semelhanças entre os dois rituais e seus cantos, aqui apresentados para o Pẽpcahàc dos Râmkôkamekra/Canela e o Pẽpkaak dos Apinaje, nos levam a concluir que é preciso investigar com mais atenção a relação possível entre os cantos do Pẽpcahàc atuais com os cantos mẽ amnhi dos Pẽpkaak passados dos Apinaje. As semelhanças entre os rituais e o caráter prestigioso dos cantos praticados atualmente pelos Râmkôkamekra/Canela instigam a verificar que semelhanças cosmológicas podem existir entre ambos os cantos e rituais.

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