A Narrativa Decolonial No Desfile Da Escola De Samba Mangueira No
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03 A narrativa decolonial no desfile “ da escola de Samba Mangueira no carnaval de 2019 Tiago Herculano da Silva UDESC 10.37885/201101968 RESUMO A narrativa carnavalesca muda conforme a realidade histórica de sua época e de acordo com a maneira como o carnaval dialoga com suas comunidades. É possível perceber diferentes formas narrativas nos enredos dos desfiles das escolas de samba, contudo, desde 2018 vem prevalecendo uma narrativa com ênfase decolonial. Essa narrativa busca questionar o sistema social vigente e a forma como as minorias são vistas por aqueles que estão no poder. No carnaval de 2019 da Estação Primeira de Mangueira, o enredo História para ninar gente grande, de Leandro Vieira, olha para as páginas ausentes na história brasileira apontando o negro, índio e pobre como os verdadeiros heróis e protagonistas dos fatos históricos do país. O enredo escrito em uma narrativa decolonial proporciona visibilidade às minorias sociais que foram subjugadas ao longo da história do Brasil. Essa visibilidade termina por incomodar aqueles que detêm o poder no sistema, assim, eles tentam descredenciar tanto o carnaval como o discurso artístico apresentado pelas comunidades quanto à legitimidade da narrativa apresentada pela agremiação. O presente artigo aborda a narrativa encontrada nesse desfile da escola de samba Estação Primeira de Mangueira, relacionando-o com outras formas de discursos encontradas no carnaval carioca, e como seu discurso sobrevive chegando às salas de aulas de todo país, mudando a forma de ensinar os fatos históricos de nosso Brasil. Palavras-chave: Narrativa Decolonial, Mangueira, Carnaval. Infância com Artes e Artes na Infância: Implicação das artes no processo de crescimento e desenvolvimento da criança INTRODUÇÃO Esse artigo é um recorte de minha pesquisa em andamento no programa de doutorado em teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) que busca compreen- der o corpo do folião nos desfiles da escola de samba Estação Primeira de Mangueira, nos anos 2019 e 2020, enquanto lugar de representatividade da comunidade carente do morro da Mangueira. Para este artigo, proponho uma análise da narrativa do desfile de 2019 da agremiação cujo enredo intitulado História para ninar gente grande, de autoria do carnavalesco Leandro Vieira, olha para as páginas ausentes da história brasileira estabelecendo uma narrativa em que o negro, índio e pobre são percebidos como os protagonistas da história do Brasil. Com base nesse desfile, pretendemos levantar questionamentos sobre a narrativa colonial e a decolonial com base nos cortejos carnavalescos do carnaval carioca. Abordando temáticas de enredos históricos nos desfiles das escolas de samba, também apontamos para a narrativa dos fatos históricos do país ao longo do tempo nos livros de história nacional em diálogo com as narrativas artísticas encontradas no carnaval. Alguns enredos dos desfiles visam narrativas que começam a propor um novo olhar para a história de nosso país de forma diferenciadas das encontradas nos livros educacionais. Narrativa colonial A história brasileira foi escrita pelo olhar do homem branco colonizador, assim, o seu ponto de vista foi usado para descrever fatos históricos do Brasil e a narrativa dessa escrita colocou esse personagem como aquele que venceu na história, como o herói nacional. Neves (2019, p. 88) aborda o fato da educação no Brasil ter uma perspectiva colonial: “O grande dilema da educação brasileira é que ela está atrelada a um modelo educacional colonial e que seria necessário romper com esse sistema servil para que houvesse avanço na área”. Antes de abordarmos o rompimento desse sistema servil pelas agremiações carnavalescas, é válido salientar que nos livros didáticos de história usados em sala de aula nas instituições de ensino, sejam particulares ou públicas, é possível encontrar ainda a narrativa histórica em que Pedro Alves Cabral descobriu o Brasil, por exemplo. O termo descobrir é usado para realçar que o colonizador pode reivindicar o direito de posse das terras encontradas nas expedições de colonização da colônia portuguesa. Como uma terra sem dono que é descoberta pelos colonizadores e porque o termo sem dono im- plicava, necessariamente, que não havia civilização nessas terras, eles podiam tomar posse daquilo que foi descoberto. Nessa narrativa, os nativos encontrados na terra descoberta são colocados como selvagens e vistos como indivíduos sem direito àquele local. O estudo dos 42 Infância com Artes e Artes na Infância: Implicação das artes no processo de crescimento e desenvolvimento da criança fatos históricos do Brasil, por esses livros, começa a partir desse descobrimento ignorando a história e a cultura desses povos nativos que habitavam essas terras muito antes de Cabral. Toda essa educação do ponto de vista eurocêntrico na história da formação do povo brasileiro, acarreta na desvalorização de nossa cultura afro descendente, assim como de nossa cultura indígena. Lima (2020, p. 115) nos lembra que “em todos momentos históri- cos e territórios colonizados, as mesmas metrópoles europeias construíram a face racista do capitalismo, em que o rosto branco da morte produziu milhões de cadáveres negros e indígenas”. As narrativas do ponto de vista do homem branco estão presentes nessa pers- pectiva que coloca como subalterno todas as formas culturais e grupos sociais opostas ao homem branco heteronormativo cis gênero, ou seja, o índio, o negro, a mulher, os LGBTs, entre outros. Dessa forma, a luta social desses grupos minoritários busca a valorização que lhes foi negada ao longo da história para que possíveis novas mudanças sociais aconteçam. Lutas contra o preconceito racial, de gênero, classe social, sexualidade são maneiras de lutar contra a narrativa colonial que coloca o homem branco cis gênero e heteronormativo como o centro do poder social. Narrativa artística decolonial A arte é um meio pelo qual podemos proporcionar reflexões e indagações frente às narrativas coloniais do sistema social vigente. O carnaval das escolas de samba é uma forma artística que parte de uma pesquisa de enredo – texto narrativo e justificado do tema proposto para o desfile – para atravessar as esferas plásticas – fantasia e alegoria – e mu- sicais – samba-enredo, canto e dança. O enredo é a base textual que fornece norteamento para todo o processo criativo e para tudo aquilo que a escola quer transmitir enquanto men- sagem. Para Ana Luísa Azêdo (2019, p. 17): Quando se fala no desenvolvimento de enredos históricos no Carnaval, fala-se do estabelecimento de uma narrativa que oferece uma representação esté- tica e audiovisual de um período ou acontecimento. O carnavalesco assume então o papel do historiador ao mediar a relação daquela sociedade com o seu passado. Muitos enredos históricos vieram de livros de história nacional escritos com uma nar- rativa colonial. Muitas vezes o carnavalesco não questiona os fatos históricos em sua pro- posta de enredo; apenas os organiza em uma narrativa. É interessante perceber que alguns enredos de narrativas coloniais que alguns desfiles ficaramdatados no tempo em que foram realizados, ou seja, a narração dos fatos históricos sem questionamentos não se torna inte- ressante na atualidade, dessa forma, essas mesmas narrativas não seriam bem apreciadas na atualidade como foram em seu tempo. Essa não apreciação acontece devido aos desfiles 43 Infância com Artes e Artes na Infância: Implicação das artes no processo de crescimento e desenvolvimento da criança de escolas de samba na atualidade conversarem mais com a sociedade por um prisma não hegemônico, valorizando a forma de pensar e de questionar o mundo à sua volta. Assim, podemos apontar para o desfile da Grêmio Recreativo Escola de Samba (GRES) Imperatriz Leopoldinense no carnaval de 2000 como um enredo/desfile datado. No ano 2000 o Brasil realizava uma comemoração dos seus 500 anos de sua história e os desfiles das escolas de samba abraçaram essa comemoração como temática de seus enredos. A im- peratriz Leopoldinense desfilou com o enredo intitulado Quem descobriu o Brasil, foi seu Cabral, no dia 22 de abril, dois meses depois do carnaval1 sobre o descobrimento do nosso país. A narrativa desse enredo foi com base nos livros de história da época que visam a visão colonial da chegada do Cabral, assim, não houve um questionamento perante o fato histórico. A escola se consagrou campeã daquele ano e o desfile ainda é percebido como um grande desfile da agremiação. Se olharmos para a época do desfile a narrativa comunga com a comemoração e as festividades dos 500 anos do Brasil. É um enredo cuja a narrativa era condizente ao período histórico do ano 2000. Contudo, se esse mesmo desfile fosse feito hoje com essa mesma narrativa a escola não teria o mesmo apreço que teve na época e, possivelmente, não seria campeã. Imagem do desfile da Imperatriz Leopoldinense no carnaval do ano 20002. 1 DESFILE COMPLETO IMPERATRIZ LEOPOLDINENSE 2000: Globo. 23 dez. 2016. 1 vídeo (1h 31min 31seg), son., color. Publicado pelo canal Thiago Tapajós. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=9tmVPlF1loU>. Acesso em: 08 jul. 2020. 2 Fotografia de Wigder Frota. Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Imperatriz_Leopoldinense_2000_-_Wigder_ Frota.jpg>. Acesso em: 04 nov 2020. 44 Infância com Artes e Artes na Infância: Implicação das artes no processo de crescimento e desenvolvimento da criança Destaco três pontos de desconstrução da narrativa hegemônica nos enredos das es- colas de samba, a primeira ruptura começa com o fato das agremiações perceberem com mais relevância a sua conexão com a sociedade. Os carnavalescos começam a olhar para as suas comunidades buscando aproximá-las da agremiação e percebem, nesse processo de aproximação, questões pertencentes aos seus grupos sociais. Dessa forma, as narrativas dos enredos passam a ser com base nos interesses das comunidades e o ponto de vista do componente da escola. O componente e o público começam a se identificar e apreciar mais os enredos que tenham um cunho crítico e social, pois esses dão voz aos questionamentos e necessidades de nossa atualidade.