Pb (1970-1990)
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TECENDO MEMÓRIAS: RELATOS SOBRE AS REFORMAS DOS ESPAÇOS NA CIDADE DE AROEIRAS - PB (1970-1990) APARECIDA BARBOSA DA SILVA* Na cidade deAroeiras 1, na Paraíba, nos anos de 1970 a 1990, ocorreram significativas alterações nas características da malha urbana. Paulatinamente, os espaços que compunham a paisagem urbana foram ganhando outras configurações. Neles, enquanto as transformações eram desencadeadas, a vida acontecia, e os diferentes citadinos traçavam seus percursos, vivenciavam suas experiências, escreviam as muitas histórias que compõem a cidade. Essas pessoas eram moradoras de um espaço urbano de pequeno porte, testemunhas e sujeitos das reformas que estavam sendo processadas. Através dos seus relatos de memória, os moradores de Aroeiras que entrevistamospossibilitam que exploremos aspectos que dizem respeito às vivências/sociabilidades urbanase, dessa maneira, também são responsáveis por fornecer os fios que ajudam a compor uma significação sobrea cidade que ganha visibilidade ao longo deste trabalho, uma vez que os relatos de vivências são passíveis de análise, críticas e interpretação, assim como qualquer outro tipo de fonte . Como propõe ALBERTI (2004: 9), os relatos orais não trazem o ineditismo da informação, nem tão pouco o preenchimento das lacunas da documentação escrita, a escolha pelos métodos da história oral decorre de toda uma postura em relação à história que privilegia a emergência do vivido conforme a narração de quem viveu. 1970. Eu me lembro da cidade como uma poesia. As ruas não tinham calçamento, nós brincávamos nessa rua [atual Avenida José Pedro de Melo]. As pessoas conversavam nas calçadas. O nosso carro era feito de lata de doce, carregávamos com caixas de fósforo, de sabugo, castanha. Nós vivenciávamos uma época maravilhosa, trocávamos nossa bola de gude por uma bola de meia, acreditávamos piamente em papai Noel. Pra mim foi a melhor época da minha vida! Essas coisas *Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Campina Grande – UFCG, Campina Grande, PB – Brasil. E-mail: [email protected] 1O Município de Aroeiras está situado no Agreste paraibano, limitando-se, ao Sul com a cidade de Umbuzeiro, ao Norte com Fagundes e Itatuba, ao Oeste com Gado Bravo, ao Nordeste com Queimadas e ao Leste com Natuba. O Município possui duas estradas: a BR 102, no sentido de Campina Grande a Aroeiras, e a BR 090, no sentido Itatuba a Aroeiras. Está situada a uma distância de cerca de 54 km de Campina Grande, cidade polo, e 178 km de João Pessoa, Capital do Estado. Possui uma área territorial 374, 697 km². Segundo os dados do IBGE sua população estimada em 2013 corresponde 19. 259 habitantes. A cidade foi emancipada em 1953. Antes da emancipação pertencia a Comarca de Umbuzeiro. 2 se perderam, a cidade mudou, mas não melhorou, não desenvolveu, e essas coisas se perderam. 2 Percebe-se, neste relato saudoso, que a cidade de Aroeiras é apresentada pelo entrevistado como um espaço urbano de fisionomia rural. Nos primeiros anos da década de 70, as ruas de chão batido, enaltecidas pelanarrativa do senhor José Severino, eram os espaços nos quais ele e outras crianças brincavam, corriam de boi brabo, tomavam banho nas pedras das lajes, experimentavam momentos lúdicos nessas ruas rememoradas como uma extensão do quintal de suas residências. Osaudosismo, expresso nas entrelinhas do relato,pode ser problematizado a partir da compreensão de que a cidade de Aroeiras vivenciou reformas que conferiram uma nova fisionomia à paisagem. As transformaçõesque culminaram na redefinição e na expansão urbana alteraram os hábitos e as práticas cotidianas realizadas nas ruas de Aroeiras pelos seus habitantes.Com o intuito de promover mais urbanização, as alterações materiais foram consolidadas através de muitas medidas que visavam reformar a paisagem, instituir outras práticas. Verificamos assim mudanças consideráveis da materialidade dos espaços e nas relações dos moradores, muito embora a vida cotidiana dos aroeirenses tenha continuado seguindo seu curso habitual, de dias tranquilos, com um ritmo de vida que parece não ter pressa. Nesse sentido, não podemos esquecer que a fisionomia do urbano modificou-se consideravelmente, mas ainda persistiram muitos traços rurais e muitos costumes outrora existentes. Na nossa compreensão, a pretensa vontade de eliminar as marcas de um passado rural, alcançando as sociabilidades dos moradores era responsável por legitimar as reformas, pondo em prática os projetos de ruas amplas, ordenadas, com canteiros, iluminação, principalmente, atrativa aos olhos de quem a contemplasse, trazendo urbanização, e “embelezamento” para a pequena cidade. Neste cenário, é possível verificar a inserção de todo um conjunto de elementos que deveriam culminar na transformação de Aroeiras. O senhor José Severino visualiza uma completa alteração nos modos de viver, remete-se à cidade de maneira poética, expressa sua afetividade, e deixa transbordar a saudade das experiências que viveu. Vivências suplantadas pelo tempo, pelas ações que culminaram nas redefinições do espaço urbano que, com pouca urbanização, é apresentado como um “cenário” maravilhoso de se viver. Desse modo, essa compreensão do senhor José Severino ganha ênfase, principalmente,quando o entrevistado menciona aspectos relacionados à sua infância. No 2 José Severino da Costa Barbosa. Concedeu-nos entrevista em 21/05/2013. 3 entanto, não se pode deixar de considerar que esse senhor, morador de Aroeiras, é um poeta conhecido pelo nome de Dudé das Aroeiras. Compositor e escritor, esse entrevistadoescreve sobre a cidade onde vive. Em seus escritos, assim como nos relatos de memória por ele proferidos, é possível observar a existência de uma clara pretensão de enaltecer a cidade do passado, muito embora conheçamos a efetiva existência de um processo de urbanização responsável por suplantar certas práticas e imprimir novos hábitos ao viver urbano, como ele deixa transparecer. Verificamos que com os serviços de calçamento das ruas de chão batido,que culminaram no desaparecimento da insalubridade,desaparecerá o campinho de futebol das crianças;os pedestres passaram a caminhar pelas calçadas, e nos espaços da rua empoeirada ou lamacenta - em que estavam presentes os carros feitos a partir de latas de doce, carregados com sabugos de milho, castanha, caixas de fósforo - passaram a transitar veículos automotores. Tais elucidações sobre as práticas do contexto citadino também são relevantes para a compreensão de que uma cidade também pode ser interpretada como uma espacialidade construída pelos seus habitantes. CERTEAU (1994: 202) nos fala sobre as pessoas que vivem no urbano, sujeitos responsáveis por estabelecer as articulações necessárias para elaborar os espaços da cidade, construídos e reconstruídos pelas ações dos seus habitantes. O espaço é um cruzamento de móveis. É de certo modo animado pelo conjunto dos movimentos que aí se desdobram. Espaço é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas conflituais ou de proximidades contratuais. [...] Diversamente do lugar, não tem portanto nem a univocidade nem a estabilidade de um “próprio”. Em suma, o espaço é um lugar praticado. (CERTEAU, 1994, p.202) Diferente do espaço, o lugar se relaciona com a imobilidade, com a fixação. Sendo assim, a cidade de Aroeiras assume a conotação de lugar nos relatos dos entrevistados quando é lembrada como o lugar das brincadeiras da infância, dos namoros, dos encontros na praça, entre outros aspectos. O lugar se constitui como tal nas memórias dos entrevistos a partir das emoções das pessoas, pois os sentimentos contribuem para que os indivíduos pensem a cidade como o lugar de viver, de morar, de ser feliz. Essa rua [cidade de Aroeiras] tinha muito poucas casas, era só mato. Essa rua que nós estamos morando hoje [atual Rua Epitácio Pessoa] tinha muito poucas casas, era só mato, cheia de pedra, e de buraco. Não tinha essas casas assim como é hoje não. Era muito pouca e tudo de taipa, aqui [aponta para a Rua Epitácio Pessoa, antes Rua do Alto] no tempo que nós casamos [casou na década de 1960] não tinha nem calçamento. Nessa rodoviária, aqui onde hoje tem esse galpão era um campo. 4 Nesse campo, o povo fazia tourada, vaquejada... Era a atração da cidade! Eu mesmo gostava muito de ver os bois brabos, mais era tudo de longe, porque se chegasse perto se acabava o mundo [risos]. Era tudo cercado, né? E a gente ficava na parte mais alta. Pagava e ia assistir. Também tinha o futebol, mas não era como esses outros não, era só um campinho para as crianças. Os adultos também se divertiam aí [aponta para o terminal rodoviário desativado, nos dias atuais apenas uma cobertura que abriga feirantes e fregueses em dias de feira]. E tinha mais, viu! Quando chovia, isso aqui [aponta para a Rua Antônio Gonçalves] ficava um mar de água quando o riacho enchia. Tinha muito pé de Aroeira, ali na Rua do “Aricuru” [atual Rua da Areia], ali não tinha rua não, era só os terrenos, viu? 3 Este relato, expressão das lembranças da senhora Severina Muniz, está permeado por subjetividades individuais da entrevistada. Sua narrativa sobre a paisagem que se modificou está atrelada às alusões a falta de infraestrutura e aos momentos de diversão. Ao longo do depoimento, verificamos o emergir das significações de uma senhora que, além das palavras, a entonação da voz, falando com saudade, e o brilho nos olhos no decorre da conversa, como se estivesse vivendo os acontecimentos daquele contexto histórico, configuram-se como indícios de que, após o seu casamento, deixou de frequentar de forma habitual os espaços de diversão da cidade. Percebe-se ainda que as poucas opções de diversão mesclavam-se a sútil urbanização de Aroeiras, detentora de poucas edificações que dividiam espaço com a presença significativa de vegetação, pois os espaços que não eram ocupados por casas, eram preenchidos por “mato”. Os outros vazios, sem edificações, eram aproveitados, mesmo que temporariamente, para a realização de alternativas de diversão como o futebol, as touradas e as vaquejadas.