UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

EMILENE FONTES DE OLIVEIRA

USINA ITAICÍ – MATO GROSSO: HISTÓRIA, TRABALHO E EDUCAÇÃO (1897-1930)

CUIABÁ – MT 2019

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

EMILENE FONTES DE OLIVEIRA

CUIABÁ – MT 2019

EMILENE FONTES DE OLIVEIRA

USINA ITAICÍ – MATO GROSSO: HITÓRIA, TRABALHO E EDUCAÇÃO (1897-1930)

Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso, como requisito para obtenção do título de Doutor em Educação na Área de Concentração Educação, Linha de Pesquisa Cultura, Memória e Teorias em Educação.

Orientadora: Profª. Dra. Elizabeth Figueiredo de Sá Coorientadora: Profª Drª. Margarida Louro de Felgueiras. (Universidade do Porto- Portugal).

CUIABÁ – MT 2019

Dados Internacionais de Catalogação na Fonte.

O48u Oliveira, Emilene Fontes de. Usina Itaicí - Mato Grosso : História, Trabalho e Educação (1897-1930) / Emilene Fontes de Oliveira. -- 2019 225 f. ; 30 cm.

Orientadora: Elizabeth Figueiredo de Sá. Co-orientadora: Margarida Louro Felgueiras. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Cuiabá, 2019. Inclui bibliografia.

1. Educação escolar e não escolar. 2. Primeira República. 3. Usina Itaicí. I. Título.

Ficha catalográfica elaborada automaticamente de acordo com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).

Permitida a reprodução parcial ou total, desde que citada a fonte.

RESUMO

OLIVEIRA, Emilene Fontes de. Usina Itaicí – Mato Grosso: História, Trabalho e Educação (1897-1930). Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de Mato Grosso, Programa de Pós-Graduação em Educação, Cuiabá, 2019.

Esta tese tem como objeto de estudo a Usina Itaicí, uma usina de produção de açúcar criada no final do século XIX no município de Santo Antonio de Leverger – MT. Esta investigação foi desenvolvida por meio do Grupo de Pesquisa História da Educação e Memória da Universidade Federal de Mato Grosso. O ponto central desta pesquisa é analisar a educação de maneira mais ampla, pontuando os elementos presentes no âmbito da educação escolar e não escolar. Para isso, optou-se por utilizar as categorias espaço, escolarização e trabalho, por permitirem olhar para educação na sua pluralidade. Isso foi possível por meio da operação historiográfica que envolve ações como localizar, selecionar, reunir, cotejar, analisar, enfim, apropriar de um corpus documental que contêm informações importantes acerca das ações de cunho educativo fabricadas no contexto da Usina Itaicí. No campo da educação escolar, a ênfase foi dada na escolarização das crianças, buscando evidenciar a criação, organização e funcionamento da Escola de Itaicí enquanto uma instituição de ensino primário, fomentada a priore pela iniciativa privada empresarial, e mais tarde pela administração pública. Também; voltamos o olhar para alguns aspectos da cultura escolar da Instituição. Este estudo busca também refletir acerca das perspectivas da história da educação para além da escola com base nos compartilhamentos de saberes e fazeres direcionados à educabilidade de homens, mulheres e crianças para a convivência nos moldes hierárquicos da sociedade coronelística, que atuavam com base nas práticas clientelísticas pensando na adequação das famílias para o trabalho na produção do açúcar de forma industrial e para o modo de vida na usina. Tomam- se como referência nessa investigação os anos de 1897 a 1930 que se explica por serem os anos do auge do funcionamento da usina, sem desconsiderar que o referido recorte trata-se do limiar da República, momento de muita tensão política no estado. Esse cenário certamente influenciou a formação da sociedade que tinha que conviver com a implantação dos ideários republicanos diante de práticas fortemente oligárquicas. A tese, ao tratar da educação dentro e fora da escola, partiu do olhar da história cultural com foco nos conceitos de representações e apropriações no sentido de compreender a dimensão educativa produzida na usina de forma plural, observando como se deu a formação de valores, hábitos, costumes e comportamentos. Recorremos ao conceito de práticas considerando as maneiras como as pessoas faziam uso das práticas e dos lugares de poder. A partir da operação historiográfica, a narrativa histórica aponta a variedade de representações, apropriações e práticas que configuraram as maneiras de compreender a educação no contexto da primeira república no estado de Mato Grosso, e especificamente, no universo da Usina Itaicí. Nessa construção, constatou-se que o contexto histórico pautado na cultura coronelística delineou princípios, padrões e condutas que influenciaram na formação dos atores sociais por meio das práticas culturais presentes na usina, observáveis na produção do espaço, na cultura do trabalho, nas práticas de punição e resistência, como também na escolarização das crianças.

Palavras-Chave: Educação escolar e não escolar. Primeira República. Usina Itaicí.

ABSTRACT

This research has as object of study the Usina Itaicí, a sugar production plant created at the end of the 19th century in the municipality of Santo Antonio de Leverger - MT. This research was developed through the research group history of education and memory at the Federal University of Mato Grosso.The central point of this thesis is to analyze education in a broader way, punctuating the elements present in the scope of school and non-school education. For this, we chose to use the categories space, schooling and work, for allowing look at education in its plurality. This was possible through the historiographic operation that allowed to locate, select, gather, collate, analyze, finally, appropriate a corpus of documents that contain important information about educational actions made in the context of the Itaici plant. In the field of school education, emphasis was placed on the schooling of children, seeking to highlight the creation, organization and functioning of the Itaicí School as a primary education institution, priored by private enterprise and later by public administration, as well as , we look back at some aspects of their school culture. This study also seeks to reflect on the perspectives of the history of education beyond school based on the sharing of knowledges and actions directed to the educability of men, women and children for the coexistence in the hierarchical molds of the clientelistic society, that acted on the basis of the clientelistic practices thinking about the adequacy of families to work on sugar production in an industrial way and the way of life in the plant. It is taken as reference in this investigation the years from 1897 to 1930, which explains why it is the peak of the operation of the plant, without disregarding that this cut is the threshold of the Republic, moment of much political tension in the state. This scenario certainly influenced the formation of society that had to coexist with the implantation of Republican ideas in the face of strongly oligarchic practices. The thesis on education within and outside school started from the perspective of cultural history with a focus on the concepts of representations and appropriations in order to understand the educational dimension produced in the plant in a plural form, observing how the formation took place values, habits, customs and behaviors. We turn to the concept of practices considering the ways in which people used practices and places of power. From the historiographical operation, the historical narrative points out the variety of representations, appropriations and practices that shaped the ways of understanding education in the context of the first republic in the state of Mato Grosso, and specifically, in the universe of Itaicí Power Plant. In this construction, it was observed that the historical context based on the coronel culture delineated principles, standards and behaviors that influenced the formation of social actors through the cultural practices present in the plant, observable in the production of space, in the culture of work, in the practices of punishment and resistance, as well as in schooling of children.

Keywords: School education and school No. First Republic. Itaicí Plant.

Esta tese é dedicada às famílias que construíramsua história no universo da Usina Itaicí.

Agradecimentos

À Deus, pela vida e pelas oportunidades que me são dadas a cada novo dia. Por me permitir sonhar, e mais ainda, por me permitir realizar os desejos mais ousados. Aos meus amores, meu esposo Marcelo, e meus filhos Jair Neto e Sophia, pelo incentivo, pela motivação e, sobretudo, pela compreensão sincera, por suportar as ausências até mesma na presença. Aos meus pais, Maria e Estalin, e aos meus irmãos Aracely e Antonio Carlos por me acompanharem em todas as trajetórias da minha vida, sonhando junto comigo, me ajudando no cuidado com a minha família nos momentos de jornada intensa. À vocês todo o meu amor e gratidão. À minha querida e mui admirada orientadora Profª Drª Elizabeth Figueiredo de Sá, ou simplesmente Beth, como gosta de ser chamada - agradeço por confiar e acreditar em mim. Sou grata pela parceria no processo de pesquisa, leitura e escrita; enfim, pelas orientações sábias e enriquecedoras. Gratidão pela atenção, pela liberdade intelectual e autonomia. Muito Obrigada! À Profª Drª. Margarida Louro Felgueiras, toda gratidão por ter aceitado coorientar a minha tese. Obrigada pela interlocução, pela atenção com o meu trabalho e por dividir o seu tempo e sabedoria comigo. Às professoras Alessandra Cristina Furtado, Betânia de Oliveira Laterza Ribeiro, Lúcia Helena Gaeta Aleixo e ao professor Edson Caetano, membros da Banca Examinadora, gratidão pela leitura atenciosa do meu trabalho e pelas preciosas contribuições. Aos colegas do Grupo de Pesquisa História da Educação e Memória – GEM/UFMT, quero que saibam o quanto eu sou grata pela colaboração na pesquisa, pela amizade, bom humor, por compartilhar comigo os momentos de alegria, angústias e descobertas históricas, sem falar das interlocuções, especialmente nas aventuras durante as viagens para os encontros e congressos. Aos funcionários do Arquivo Público de Mato Grosso, Casa Barão de Melgaço, Núcleo de Documentação e Informação histórico regional e, Secretaria Municipal de Educação de Santo Antonio de Leverger, agradeço a atenção, a presteza e as trocas de saberes. À Profª Drª Nileide Souza Dourado obrigada por oportunizar o acesso precioso aos bancos de dados do Projeto Arquivo Foto fonográfico - Memória social da cuiabania da

Coleção: Martha Arruda Paiva, no qual pude conhecer vozes silenciadas. Obrigada pelo convite para participar de uma das etapas desse projeto e de poder vivenciar do meu lugar e do lugar do outro tamanha experiência. Agradeço a todos e todas que direta e indiretamente dividiram seu tempo comigo e com o meu desejo de trilhar pelos caminhos da História da Educação mato-grossense. Recebam minha eterna gratidão!

Pode-se supor que essas operações multiformes e fragmentárias, relativas a ocasiões e a detalhes, insinuadas e escondidas nos aparelhos das quais elas são os modos de usar, e, portanto, desprovidas de ideologias ou de instituições próprias, obedecem a regras. Noutras palavras, deve haver uma lógica dessas práticas. Isto significa voltar ao problema, já antigo, do que é uma arte ou ―maneira de fazer‖.

Michel de Certeau (1994)

LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Igreja Matriz...... 60 Figura 2 - Santo Antonio do Rio Abaixo em 1906 ...... 61 Figura 3 - Santo Antonio do Rio Abaixo 1906 – Rua da Matriz ...... 62 Figura 4 - Mapa do município de Santo Antonio de Lever ...... 63 Figura 5 - Conflitos políticos ...... 67 Figura 6 - Rota das usinas ...... 80 Figura 7 - Casa de Máquinas Usina Flexas ...... 82 Figura 8 - Proprietários da Usina Flechas ...... 83 Figura 9 - Usina Aricá ...... 84 Figura 10 - Usina Conceição ...... 85 Figura 11 - Usina Itaicí...... 87 Figura 12 - Casa de Máquinas Usina Maravilha ...... 88 Figura 13 - Cel. Antonio Paes de Barros ...... 102 Figura 14 - Trabalhadores e crianças na limpeza de garrafas na Usina Itaicí...... 116 Figura 15 - Professores e Alunos da Escola de Itaicí...... 129 Figura 16 - Ata de solicitação da abertura da Escola de Itaicí...... 132 Figura 17 - Sobre o indeferimento da Escola de Itaicí...... 133 Figura 18 - Relação das escolas em área particular...... 135 Figura 19 - Atestado de trabalho ...... 138 Figura 20 - Solicitação de material escolar ...... 139 Figura 21 - Lista de material escolar da Escola Ambulante mista de Itaicí de 1931...... 140 Figura 22 - Lista de materiais da Escola Mista Ambulante de Tamandaré...... 142 Figura 23 - Solicitação de Licença para tratamento de saúde...... 144 Figura 24 - Resumo geral de ponto...... 145 Figura 25 - A Escola de Itaicí...... 150 Figura 26 - A Escola de Itaicí e o setor comercial ...... 151 Figura 27 - Aula de música...... 154 Figura 28 - A banda de música de Itaicí...... 155 Figura 29 - Vista aérea da Usina Itaicí...... 170 Figura 30 - Fachada da Usina Itaicí...... 171 Figura 31 - Casa de máquinas da Usina Itaicí...... 173 Figura 32 - Equipamentos da Usina Itaicí...... 173 Figura 33 - Trabalhadores da Usina Itaicí na lavoura de cana...... 192 Figura 34- Foto mais recente da Usina Itaicí ...... 218 Figura 35 - A farmácia ...... 219 Figura 36 - A Capela da Usina Itaicí ...... 220 Figura 37 - Relato do Sr. Luiz Pereira Duarte – Ex-aluno da Escola de Itaicí ...... 221

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Referente à relação de mensagens, relatórios e regulamentos emitidos pelos Presidentes de Estado e Diretores da Instrução Pública do Estado de Mato Grosso...... 29 Quadro 2 - Relação das fontes manuscritas referente à Escola de Itaicí...... 30 Quadro 3 - Jornais: Assuntos diversos...... 31 Quadro 4 - Número de fontes iconográficas ...... 34 Quadro 5 - Obras memorialísticas de Mato Grosso...... 34 Quadro 6 - Usinas de Mato Grosso em 1914 ...... 79 Quadro 7 - Usinas localizadas em Santo Antonio do Rio Abaixo ...... 79 Quadro 8 - Usinas existentes em Mato Grosso. Organizado pela pesquisadora ...... 80 Quadro 9 - Composição social ...... 99 Quadro 10 - Lista dos moradores ...... 131 Quadro 11 - Lista das ambulantes do Município de Santo Antonio do Abaixo ...... 136

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - População de Mato Grosso ...... 97 Tabela 2 - Rotina dos trabalhadores nas usinas de açúcar do Rio Abaixo ...... 195

LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 - Coeficiente da população de Mato Grosso ...... 97 Gráfico 2 - Coeficiente da população de Santo Antonio do Rio Abaixo de 1920 ...... 98

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ACBM – Arquivo da Casa Barão de Melgaço APMT – Arquivo Público de Mato Grosso BN – Biblioteca Nacional CEL – Coronel GEM – Grupo de Pesquisa História da Educação e Memória IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IHGMT – Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso NDIHR – Núcleo de Documentação e Informação de História Regional da UFMT SAL – Santo Antonio de Leverger UFMT – Universidade Federal de Mato Grosso

Sumário INTRODUÇÃO ...... 19 I O PERCURSO ...... 20 II A PESQUISA ...... 24 III A NARRATIVA HISTÓRICA ...... 45 CAPÍTULO I ...... 48 CORONELISMO, CLIENTELISMO E HISTÓRIA LOCAL ...... 48 1.1 A política em jogo ...... 49 1.2 O passado Histórico ...... 59 CAPÍTULO II ...... 75 NAS TRILHAS DO AÇÚCAR E DA SOCIEDADE CORONELÍSTICA ...... 75 2.1 O ciclo do açúcar em Mato Grosso ...... 76 2.1.1 Usina Flexas ...... 82 2.1.2 Usina Aricá ...... 84 2.1.3 Usina Conceição ...... 85 2.1.4 Usina Itaicí ...... 86 2.1.5 Usina Maravilha ...... 87 2.2 Os atores e seu papel social ...... 95 2.2.1 Os Coronéis do açúcar...... 99 2.2.2 Os agregados e os camaradas ...... 107 2.2.3 As crianças em foco ...... 111 CAPÍTULO III ...... 118 A ESCOLA DE ITAICÍ E A ESCOLARIZAÇÃO DAS CRIANÇAS ...... 118 3.1 A Escola de Itaicí: da iniciativa privada à gestão do estado...... 119 3.2 Aspectos da Cultura escolar ...... 146 CAPÍTULO IV ...... 159 A DIMENSÃO EDUCATIVA DA USINA ITAICÍ PARA ALÉM DA ESCOLA ...... 159 4.1 A educação (re)inventada ...... 160 4.1.1 O espaço ...... 161 4.2 As convivências ...... 176 4.3 Trabalho, Educação, Punições e Resistências ...... 183 4.3.1 A cultura do trabalho ...... 183 4.3.2 Vestígios da formação para o trabalho ...... 190 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 204 REFERÊNCIAS ...... 208

ANEXOS...... 218 APÊNDICE ...... 224

INTRODUÇÃO

I O PERCURSO

...Os projetos abandonaram os atores donos de nomes próprios e de brasões sociais para voltar-se para o coro dos figurantes amontoados dos lados, e depois fixar-se enfim na multidão do público. Sociologização e antropologização da pesquisa privilegiam o anônimo e o cotidiano onde zooms pesquisa detalhes metonímicos – partes tomadas pelo todo.

(CERTEAU, 1994, p. 57)

Historiadora de formação e de coração, vejo-me diante de um exercício de pesquisa que faz parte de um objetivo de vida - Historiar. Este passa pelo desejo de investir na busca de elementos e vestígios indicativos de histórias e memórias que se encontram enclausuradas nos documentos, nas fotografias, nas páginas dos jornais, no imaginário, aguardando por uma narrativa que seja capaz de dar vida ao passado e dele ressurgir através do lugar do outro. Para a realização desta pesquisa, busca-se inspiração na compreensão de operação historiográfica apresentada por Certeau (2002) a qual passa primeiramente pelo exercício de se indagar: O que fabrica o historiador quando faz história? Para quem trabalha? O que produz? Para o autor, historiar tem a ver com a ―particularidade do lugar de onde falo e do domínio em que realizo uma investigação‖ (CERTEAU, 2002, p. 65). O lugar social ressalta a atividade de pesquisa e representa um aspecto importante a ser observado nos princípios da História Cultural pelo qual este estudo é pautado. Nesse sentido, o lugar no qual me apresento é o de professora de História, atuando na Educação Básica do estado de Mato Grosso e como membro do Grupo de Pesquisa História da Educação e Memória. O envolvimento com a pesquisa científica ocorreu na graduação em História, no momento em que fui selecionada para participar como bolsista (CNPq) no Projeto Catalogação de Fontes documentais para História da Educação de Mato Grosso, que foi elaborado pelo Profº. Dr. Nicanor Palhares Sá e pela Profª. Drª Elizabeth Madureira Siqueira no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e desenvolvido no Grupo de Pesquisa História da Educação e Memória. Com o fim do projeto, optei por permanecer no referido grupo de pesquisa porque me apaixonei pela experiência com as investigações sobre os processos educacionais, pelos

estudos da cultura escolar e dos referenciais teóricos e metodológicos voltados para a História da educação e para a História Cultural. O resultado dessa permanência motivou a elaboração do projeto de Mestrado sob o título: Cultura Brasileira e a Memória da construção da Identidade Nacional no Grupo Escolar Leônidas de Matos (1937-1930) defendido em 2005. Essa experiência me instigou a refletir como o grupo escolar propagou os ideais do Estado Novo na perspectiva da construção da identidade nacional, com base na construção de sentimentos patrióticos e da ideia do homem novo. Após a defesa de mestrado, por motivos pessoais, me ausentei por um período das atividades de pesquisa. Esse afastamento me fez perceber o quanto as experiências acadêmicas faziam parte de mim, da minha vida, do meu ser. Passei por alguns anos distante do exercício de localizar os documentos, inquiri-los; enfim, foi um momento que me levou a repensar certas escolhas e voltar para o lugar da pesquisa. Em 2015 regressei ao GEM/UFMT como aluna especial e com o sentimento de aperfeiçoar, revisar teorias e métodos e retomar as atividades de pesquisa. Voltei com a intenção de elaborar um projeto de doutorado para investigar a história da Escola de Itaicí, uma escola primária que foi criada numa usina de produção de açúcar chamada Usina Itaicí1. Essa usina foi implantada no município de Santo Antonio de Leverger – Mato Grosso, que na época era denominado Santo Antonio do Rio Abaixo, e ficava especificamente na comunidade de Melgaço. Essa usina funcionou pelo período que correspondente ao ano de 1897 até a década de 1950. Foi com esse objetivo que ingressei no Doutorado em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso na Linha de Pesquisa Cultura, Memória e teorias em Educação. No entanto, notou-se logo que seria necessário alterar o objeto, uma vez que a educação presente no universo da Usina Itaicí não se restringia apenas à escola em si. Ao adentrar no cotidiano da usina, percebeu-se que a educação se expressava na organização do espaço, nas relações de convivência, no trabalho, como também na escolarização das crianças. Então, alterou-se o objeto de pesquisa para a Usina Itaicí, voltando o olhar para o estudo da educação de natureza escolar e não escolar, com foco nos vestígios da educação construída na lógica do cotidiano, que nesta pesquisa destaca-se por meio do recrutamento de famílias para o trabalho. A educação será, então, analisada sob a configuração do modelo de

1 A denominação Itaicí varia na sua ortografia. Encontramos nas documentações e referências historiográficas as seguintes construções ortográficas: Itaici, Itaicí e Itaicy. Optamos pela ortografia Itaicí por ser a ortografia registrada na ata do lançamento da pedra fundamental da usina, porém, manteremos a ortografia registrada nos documentos ao referenciá-los. 21

sociedade coronelística tendo como base as práticas clientelísticas. A sociedade coronelística aqui pode ser compreendida como um:

[...] dos princípios do patrimonialismo, que correspondem à extensão do mando doméstico (patriarcal) para o mando público (patrimonial). Neste caso, o poder dos coronéis alcança as famílias e/ou parentela, desde os parentes mais distantes até os agregados, os funcionários das casas comerciais e os camaradas das fazendas, ou, aos comandados nos batalhões e companhias da Guarda Nacional (PORTELA, 2009, p. 63).

Diante disso, apresenta-se a seguinte questão: como historiar uma sociedade tão complexa, envolvida em muitos silêncios, com uma trajetória que se afirma por meio de ações autoritárias e de sociabilidades forjadas? Busca-se, deste modo, entender essa sociedade, suas finalidades e o significado que as atividades desenvolvidas nesse espaço tiveram para as famílias e, sobretudo, compreender a dimensão educativa fabricada nesse locus. Nessa perspectiva, buscou-se mais uma vez suporte em Certeau quando este diz ―Antes de saber o que a história diz de uma sociedade, é necessário saber como funciona dentro dela‖ (2002. p. 76).

Tal é a dupla função do lugar. Ele torna possíveis certas pesquisas em função de conjunturas e problemáticas comuns. Mas torna outras impossíveis; exclui no discurso aquilo que é sua condição num momento dado; representa o papel de uma censura com relação aos postulados presentes (sociais, econômicos, políticos) na análise. Sem dúvida, esta combinação entre permissão e interdição é o ponto cego da pesquisa histórica e a razão pela qual ela não é compatível com qualquer coisa. É igualmente sobre esta combinação que age o trabalho destinado a modificá- la (CERTEAU, 2002, p. 76-77).

A escolha em investigar uma sociedade que ainda se encontra cercada de silêncios, tornou-se, do meu ponto de vista, assertiva por entender a necessidade de desmistificar o não- dito, dar visibilidade a outros espaços educativos, fazendo com que a história da educação, entre outras áreas das Ciências Sociais, dialogue em direção a novas possibilidades investigativas. Mas Certeau nos alerta:

[...] que não se trata apenas de fazer falar estes imensos setores adormecidos da documentação e dar voz a um silêncio, ou efetividade a um possível. Significa transformar alguma coisa, que tinha sua posição e seu papel, em alguma outra coisa que funciona diferentemente. Da mesma forma não se pode chamar ―pesquisa‖ ao estudo que adota pura e simplesmente as classificações do ontem que, por exemplo, ―se atêm‖ aos limites propostos pela série H dos Arquivos e que, portanto, não define um campo objetivo

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próprio. Um trabalho é ―científico‖ quando opera uma redistribuição do espaço e consiste, primordialmente, em se dar um lugar, pelo ―estabelecimento das fontes‖ – quer dizer, por uma ação instauradora e por técnicas transformadoras (2002, p. 82).

Se este estudo instaurou e/ou aplicou técnicas transformadoras, não tenho certeza. Mas não tenho dúvidas que não faltaram tentativas em trilhar novos caminhos, levantando questões de pesquisa importantes para a história da educação e ousando entrar em um espaço de areia movediça por se tratar de um estudo voltado para um locus polêmico no cenário da história de Mato Grosso. Contudo, para mim existe um caráter todo especial em realizar esta pesquisa abordando o locus - Usina Itaicí, o trabalho, a educação, porque estes fazem parte da história do Município de Santo Antonio de Leverger. Eu fui criada neste município. Cresci ouvindo as histórias do Rio Abaixo. Cresci ouvindo a história da minha família que também tem ligação com a história das usinas de açúcar, tanto pelo lado dos proprietários, a exemplo da Usina Aricá que foi de propriedade de Maria Marques de Fontes, como do lado dos trabalhadores, como foi o caso dos meus bisavôs que trabalharam e moraram por anos na Usina Itaicí. No imaginário popular local, a história da usina vem sendo passada de geração para geração conforme as representações e apropriações produzidas ao longo do tempo, cada um se expressando por meio do seu lugar social. As famílias ligadas aos ex-proprietários das usinas fabricam as suas versões, bem como as famílias mais próximas dos trabalhadores também têm a sua. Estas histórias são entendimentos plurais, assim, as suas versões surgem de forma positiva e negativa. Refletir historicamente acerca do trabalho e da educação no universo da Usina Itaicí, tendo com base a sociedade coronelística e as relações clientelísticas, significa explorar um campo ainda em construção. Para isso, o estudo exigiu caminhar por trilhas não muito lineares, mas que permitiram um percurso rumo a novas descobertas. Pensar na rota que nos leva a novas descobertas não é tarefa fácil, propõe um exercício acadêmico sistêmico, metódico, às vezes paradoxal, mas, sobretudo, proporciona uma viagem no tempo, no espaço, na cultura. E cuja trajetória apresenta a oportunidade de ampliar horizontes, romper fronteiras e inovar. Para tanto, foi pensada uma trilha que nos permitisse adentrar no dia a dia da usina,

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observando os discursos, as práticas sociais e culturais2, (re)significadas na formação de homens, mulheres e crianças, com o objetivo de prepará-los para o trabalho e adequá-las à vida na sociedade coronelística. Assim, o processo educativo presente na tese tem como base a cultura produzida pelo fenômeno coronelista em Mato Grosso, voltando o olhar para as atividades desenvolvidas nas invenções do cotidiano da Usina Itaicí, as quais envolvem a questão do trabalho a priore, porque as pessoas eram recrutadas pelos usineiros para tal fim, e, por meio disso, nos é desvelado um cenário possível de ações notadamente pedagógicas, uma vez que a educação pode ser analisada e compreendida nos mais variados espaços e situações como também por meio das relações sociais, da educação na família, da educação produzida nas igrejas, nos internatos, ou, como neste caso, que trata da educação produzida no espaço de uma usina. Esta pesquisa, por sua vez, não foi realizada isoladamente, pelo contrário, a nossa jornada é sempre coletiva, nossas decisões vêm de uma série de discussões, embates, construções e (re)construções compartilhadas na trajetória de vida, nas disciplinas, no grupo de pesquisa, nas orientações, nos congressos, nos arquivos e acervos, enfim, nas relações com todos os outros e outras, que de forma direta ou indireta também participaram das nossas fabricações em prol do exercício de historiar. Segundo Certeau (2002, p. 72) ―é como o veículo saído de uma fábrica, o estudo histórico está muito mais ligado ao complexo de uma fabricação específica e coletiva do que ao estatuto de efeito de uma filosofia pessoal ou à ressurgência de uma realidade passada. É o produto de um lugar‖. Então, para historiar, foi necessário adentrar no mundo dessas fabricações, revisitando os lugares, dialogando e analisando os múltiplos processos educativos que foram fundamentais na tessitura da presente tese.

II A PESQUISA

Esta tese se insere no campo da História da Educação e da História Cultural3. Analisa- se o trabalho e a educação no contexto da Usina Itaicí sob a ótica da sociedade coronelística, que por sua vez tinha como costume a utilização de práticas clientelísticas nas relações entre patrões, empregados e suas famílias, algo comum no limiar da República em Mato Grosso.

2 As práticas culturais e sociais são aqui entendidas como os modos de vida de uma determinada sociedade, as atitudes (acolhimento, hostilidade, vigilância, desconfiança) ou as normas de convivência (caridade, discriminação, repúdio, repressão) (BARROS, 2011, p. 48). 3 Os estudos nesta abordagem procuram demonstrar renovação de objetos, temas e fontes de pesquisa, dando atenção aos aspectos do cotidiano. 24

A delimitação geográfica compreende o Estado de Mato Grosso. Especificamente, trata-se da localização da Usina Itaicí no antigo distrito de Cuiabá denominado Santo Antonio do Rio Abaixo4. Optou-se por essa delimitação por duas razões: a primeira consiste no interesse de investigar alguns aspectos da história local; e a segunda deve-se ao fato de que a Usina Itaicí foi um espaço muito representativo na história de Mato Grosso. Deste modo, a intenção é poder contribuir com o estudo da temática proposta provocando um diálogo sobre a educação produzida no cotidiano, nas relações, nos afazeres, de modo que o trabalho será analisado como uma espécie de espinha dorsal na compreensão da dimensão educativa desse locus, tendo em vista que os trabalhadores moravam na usina em função do trabalho nos canaviais e na produção do açúcar e da aguardente, e a percepção de que os trabalhadores e sua família também serviram nas articulações políticas coronelísticas locais e regionais pelo fato do voto ter sido um importante ponto de interesse. A delimitação temporal corresponde os anos de 1897 a 1930 por se tratar, respectivamente, do momento da inauguração da Usina Itaicí pelo empresário Antonio Paes de Barros, mais conhecido como Coronel Totó Paes, e ao processo de desarticulação do poder dos usineiros no estado. O período também está relacionado ao período da Primeira República que reporta a instituição de um novo regime político e a um cenário marcado por tensões e instabilidades, culminando com a revolução de 1930. Refletir sobre a Usina Itaicí e sua dimensão educativa significa compreender como essa empresa de produção de açúcar e aguardente foi planejada e organizada para o trabalho em escala industrial, mas, sobretudo, entender como a mesma utilizou de estratégias para instruir e educar trabalhadores (as) e crianças para a convivência numa sociedade hierarquizada, sem ignorar o fato de que essas famílias foram seduzidas no sentido de criar laços afetivos e de lealdade para com os seus patrões. Então, entende-se a importância de desvelar como se deu a interação entre os sujeitos e destes com o meio, na construção de saberes, nas atitudes que se formaram trazendo em si as marcas de cada tempo vivido por uma população e os signos impressos no cotidiano daqueles que um dia fizeram história no espaço e no tempo desta usina. A escolha da Usina Itaicí como objeto de pesquisa, com ênfase na História, no trabalho e na educação, faz parte do meu interesse em investigar a educação com outros

4 O Distrito de Santo Antonio do Rio Abaixo foi desmembrado do Município de Cuiabá em 1900, momento da sua emancipação política e continuou com a mesma denominação até o ano de 1948 quando esta foi alterada para Santo Antonio do Leverger, denominação atual. 25

olhares e demonstrar que é possível pensar a educação configurada em espaços diversos, com outras pedagogias, metodologias e finalidades. Este estudo partiu da intenção, interesse e curiosidade em compreender esse universo maior dos processos educativos que tem a ver com o desejo e a sensibilidade em entender a diversidade dos espaços que educam tal qual acontece no exercício desta pesquisa no espaço da Usina Itaicí, onde se colocaram as pessoas, às vezes, como única opção de sobrevivência. A problematização parte da seguinte questão: quais as estratégias utilizadas pelos proprietários da usina para formar e adequar homens, mulheres e crianças, na condição de trabalhadores (as) da usina, ao modo de vida da sociedade coronelística? Partindo dessa pontuação central inquirimos enquanto elementos de investigação: Como a Usina Itaicí foi organizada para administrar centenas de trabalhadores e trabalhadoras? Como era o dia a dia na usina? Quais as relações estabelecidas entre patrões e empregados (as)? Quais eram as atividades propostas e/ou impostas pelos proprietários? Como a educação foi configurada no espaço da usina? Enfim, esses são alguns questionamentos que evocam elementos de pesquisa e que ajudam a pensar a educação nesse locus. Nessa perspectiva, temos como objetivo geral compreender a atuação dos proprietários, trabalhadores (as) e suas famílias na formação de valores, costumes, comportamentos e sentimentos produzidos na sociedade coronelística. A esse objetivo insere- se mais alguns de caráter específico, a saber: a) Entender o projeto da usina e seu funcionamento; b) Conhecer a história da Usina Itaicí sob a ótica da educação; c) Analisar as práticas clientelísticas e políticas, bem como suas influências na formação dos trabalhadores e de suas famílias; d) Demonstrar que o espaço da Usina Itaicí também é representativo enquanto espaço educativo além de um espaço empresarial. Em face de tudo isso, a tese que aqui será defendida é de que a educação configurada no universo da Usina Itaicí era mediada pelos seus proprietários que atuavam em função do trabalho e da política, entre o espaço social mais amplo, o familiar e o escolar, fazendo com que por meio das normas estabelecidas por eles, das práticas clientelísticas e de interesses políticos, determinadas ações fossem produzidas com caráter educativo a fim de preparar os trabalhadores (as) e as famílias conforme os princípios de uma sociedade coronelística. Três hipóteses sustentam a tese: a primeira observa que a educação produzida no

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espaço da Usina Itaicí envolvia a fabricação de valores, costumes, hábitos, atitudes e sentimentos que adequavam às famílias ao modo de vida das sociedades coronelísticas por meio de práticas clientelísticas e políticas em função do trabalho. A segunda é de que os proprietários da usina tiveram condições maiores de imprimir as suas representações em torno da educação sob a ótica de uma sociedade hierarquizada. A terceira é de que as ações fabricadas em função dessas adequações tornavam-se educativas na medida em que satisfaziam interesses e necessidades diversos. Pensando nos possíveis caminhos para responder as inquietações, recorreu-se às relações clientelísticas como o fio condutor para compreender como o trabalho e a educação estavam interligados na formação de hábitos, costumes e nas condutas dos trabalhadores (as) e de suas famílias. Sabendo que o Clientelismo ―indica um tipo de relação entre os atores políticos que envolvem concessão de benefícios públicos, na forma de empregos, benefícios fiscais, isenções em troca de apoio político, sobretudo na forma de voto‖ (CARVALHO, 1997, p. 2), esse movimento de trocas e benefícios implicava em ter um ambiente favorável na concessão de favores. A Usina Itaicí parece ter sido um ambiente propício para determinada prática à medida que o coronel tinha forças necessárias para este fim; ou seja, tinha em suas mãos, na forma de laços de lealdade ou até mesmo por imposição, uma espécie de exército a seu dispor. Observa-se também que a comunidade de Itaicí era formada por centenas de trabalhadores (as) e isso certamente representava inúmeros votos, importantes enquanto elemento de troca. Deste modo, percebe-se que o espaço da usina sugere mais do que um lugar de empreendimento no ramo do açúcar. Os proprietários tiveram condições de fazer com que as pessoas vinculadas a eles fossem conduzidas a pensar e agir da sua maneira, e por que não dizer de acordo com seus interesses e para seus benefícios. Durante o período em questão foram produzidas representações acerca do trabalho e da vida nas usinas de açúcar de Mato Grosso, incluindo a Usina Itaicí, sendo que por meio dessas fontes foi possível tecer uma narrativa da dimensão educativa no contexto da Usina Itaicí. Com o estudo é ancorado na História da Educação e na História Cultural, recorremos à metodologia da pesquisa qualitativa de abordagem histórica. A abordagem histórica faz parte de uma operação que proporciona localizar, inventariar, reunir e analisar um corpus documental referente a atas, ofícios, mensagens, relatórios, regulamentos, imprensa periódica,

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obras memorialísticas, fotografias, relatos, entre outros, os quais permitem visualizar os mais diversos contextos no ambiente da usina.

Em história, tudo começa com o gesto de separar, de reunir, de transformar em ―documentos‖ certos objetos distribuídos de outra maneira. Esta nova distribuição cultural é o primeiro trabalho. Na realidade, ela consiste em produzir tais documentos, pelo simples fato de recopiar, transcrever ou fotografar estes objetos mudando ao mesmo tempo o seu lugar e o seu estatuto (CERTEAU, 2002, p. 80). Escrever uma narrativa sobre a educação por meio de ações fabricadas no contexto da Usina Itaicí é se deparar com a problemática das fontes a serem transformadas em testemunhos a interrogar. Sabemos que na pesquisa histórica é necessário um pouco mais de coragem, paciência e criatividade para superar os bloqueios que às vezes o tempo impõe sobre a documentação disponível. Nesse sentido, o trabalho investigativo nos arquivos sabe compensar a quem se dedica a ele, porém, nem toda empolgação esconde que aquilo que se encontra num primeiro momento é material bruto, ou como o designava Duby: ―uma massa inerte, o enorme amontoado de palavras escritas mal extraídas das pedreiras de onde os historiadores se abastecem, selecionando, recortando, ajustando, para construir em seguida o edifício cujo projeto conceberam provisoriamente‖ (DUBY, 1993, p. 21). Essa massa ―inerte‖ espera por uma narrativa capaz de atribuir-lhe vida, intencionando trazer a tona os interesses, as experiências, os saberes, daqueles que no turbilhão de sua existência, ora tranquila, ora mais hostil, produziram um material ou foram fabricados a partir dele. Esse esforço historiográfico sugere ―reencontrar o sabor do passado, a vida, os sentimentos, as mentalidades de homens e de mulheres, mas em sistemas de exposições e interpretações de historiadores do presente‖ (LE GOFF, 2007, p. 103). Nessa perspectiva, foi feito um percurso na busca do corpus documental em vários acervos existentes em Mato Grosso e via online, tais como: Arquivo Público de Mato Grosso (APMT), Arquivo da Casa Barão de Melgaço (ACBM), Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional (NDIHR/UFMT), acervo do Grupo de Pesquisa História da Educação e Memória (GEM), acervo da Biblioteca Nacional (BN), Secretaria de Cultura de Santo Antonio de Leverger – MT. Para análise dos dados empíricos, realizou-se um entrelaçamento dos dados contidos nas fontes, sem deixar de cotejá-los com as produções especializadas. Os documentos e as

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leituras do período contribuíram para compreensão do contexto histórico, político e educacional. Ao revisitar as fontes oficiais no Arquivo Público de Mato Grosso (APMT) por meio de um trabalho em equipe realizado pelos mestrandos e doutorandos do Grupo de Pesquisa História da Educação e Memória, foi possível observar as ações governamentais expressas nas normas, leis e decretos, e as referências relativas ao modelo de sociedade e de educação que se pensava naquele período. A legislação foi analisada com foco nas representações sociais e educacionais presentes naquele contexto, para assim obtermos uma melhor compreensão da ação do Estado na constituição de um modelo de sociedade e de educação. Aqui, entendemos a legislação como fruto de relações sociais e como fator importante na constituição das deliberações. Dentro do período de 1897 a 1930, às vezes ultrapassando um pouco essa margem de forma pontual, foi possível explorar os Relatórios e Mensagens dos governantes do Estado, as Regulamentações da Instrução Pública (1896, 1910 e 1927), os Relatórios da Diretoria da Instrução Pública, e ainda, atas, ofícios, atestados referentes à Escola de Itaicí. Esses documentos estão disponíveis no Arquivo Público de Mato Grosso e no acervo do Grupo de Pesquisa História da Educação e Memória. Essas fontes permitem visualizar representações sobre o que se pensava acerca da sociedade da época e o funcionamento da escola, oferecendo elementos acerca das representações da sociedade, da educação, formação, como também sinalizam aspectos das ações desses atores sociais (governantes, políticos, diretores, inspetores, professores etc). Segue os quadros que informam o levantamento realizado: Quadro 1 - Referente à relação de mensagens, relatórios e regulamentos emitidos pelos Presidentes de Estado e Diretores da Instrução Pública do Estado de Mato Grosso.

A A Ano Mensagens Ano Relatórios Ano/Regulamentos 1Dr. Antonio Corrêa 1Dom Aquino Corrêa 1896 – Decreto nº 1897 da Costa 1920 da Costa 68 de 20 de junho 1Coronel Antonio Sr.1 Augusto Moreira de 1896 1899 Cesário de 1938 da Silva Filho 1910 – Decreto nº Figueiredo 265 de 22 de 1Antonio Pedro de outubro de 1910 1900 a Barros 1927 – Decreto nº 1903 759 de 22 de abril 1Coronel Antonio de 1927. 1905 Paes de Barros 1Coronel Pedro 1910 Celestino Correa da 29

e Costa 1 1911 1Dr. Joaquim 1913 a Augusto da Costa 1915 Marques 1Estevão Alves 1928 Correia 1Dr. Annibal Toledo 1930 Fonte: APMT/Livros/legislações.

Quadro 2 - Relação das fontes manuscritas referente à Escola de Itaicí.

ANO DOCUMENTO ASSUNTO 1890 a Ementário Relação das escolas Santo Antonio e da Usina Itaicí 1935 1910 Ata Solicitação dos moradores de Melgaço para criar uma Escola em Itaicí 1910 Jornal O Commércio Sobre a negação da criação da Escola de Itaicí 1910 Jornal O Commercio Sobre a solicitação da criação da Escola de Itaicí 1910 Jornal o Commercio Continuando a falar sobre a solicitação da Escola de Itaicí 1911 Jornal O Commércio Sobre a criação da Escola de Itaicí 1912 Jornal o Mato Grosso Descrevendo sobre a escola e a usina 1912 Jornal o Mato Grosso Sobre a apresentação da banda de música 1929 Oficio Comunicando junta médica, como membro dr. Alberto Novis 1930 Atestado Comunicando que a profª Maria de Souza Escola Itaicí encontra-se enferma Vários Livro Com quadros das escolas particulares do estado de Mato Grosso, tem Itaicí 1928 1930 Atestados Profª Maria de Souza referente aos meses de maio, agosto, setembro e outubro informando que trabalhou na Escola de Itaicí 1931 Recibo de pagamento Pagamento do Professor de Itaicí com dedução de salário 1931 Portaria de nomeação Nomeação do professor Francilino de Souza Filho Escola Itaicí, mês de fevereiro 1931 Atestado Reforçando que a profª Maria de Souza Escola de Itaicí esteve em gozo de férias 1931 Atestado Informando que a profª Maria de Souza Escola de Itaicí esteve em gozo de férias 1931 Atestado Informando que o profº Fabilino de Souza filho trabalhou exercendo o magistério em Itaicí/Melgaço e a escola era de propriedade particular 1931 Atestado Informando que a profª Maria de Souza Escola de Itaicí esteve em gozo de férias mês de janeiro 1931 Oficio Profº José Fabilino de Souza Filho solicitando 30

passagem para Campo Grande a fim de descontar em seu vencimento 1931 Solicitação Profº interino de Itaicí solicitando material escolar para o almoxarifado do estado Fonte: Acervo do Arquivo Público de Mato Grosso e Hemeroteca Digital – Biblioteca Nacional.

As pesquisas realizadas no APMT envolveram também um trabalho intenso de localização e digitalização das fontes relacionadas à história da educação de Mato Grosso. Além do objetivo de encontrar as documentações referentes à Usina Itaicí e à educação entre os anos 1897 a 1930, nos disponibilizamos para criar um acervo de documentação digitalizada com todas as fontes encontradas em arquivos específicos da Instrução Pública de Mato Grosso e em arquivos avulsos, os quais continham fontes da educação e de outras secretarias do estado. A criação do referido acervo foi idealizado pela nossa orientadora - profª Dra. Elizabeth Figueiredo de Sá, com o objetivo de deixar registrado no site do GEM um banco de dados com documentos correspondentes ao período de 1930 a 1950. Os documentos seguem na fase de catalogação para em seguida serem incluídos no acervo online do grupo de pesquisa. Dando continuidade as informações específicas desta pesquisa, vimos que as leituras dos jornais contribuíram para localizar outras informações, principalmente do cotidiano das usinas de açúcar de Mato Grosso e da Usina Itaicí. Nessas fontes, encontramos notícias referentes à inauguração da usina, sobre a produção, sobre as pessoas que circulavam por lá, trabalho, escola e denúncias de maus tratos. Os jornais apontam elementos de representação e ações acerca das usinas de açúcar e constituem espaço de expressão de atores diversos (políticos, comerciantes, governo, intelectuais, poetas, e também, de pessoas comuns, trabalhadores, etc). Mas a característica principal desse tipo de fonte é a possibilidade de visualizar as vozes ausentes nos documentos oficiais. Segue o quadro do levantamento realizado: Quadro 3 - Jornais: Assuntos diversos.

ASSUNTOS JORNAL ANO ASSUNTO A capital 1926 Terras da usina A cruz 1962 Falando sobre Inauguração da usina Autonomista 1904- Propaganda da usina O Brasil 1909 Violências e descaso O Commercio 1906 Chamadas para trabalhar na usina O Mato Grosso 1910 Produção O Mato Grosso 1917 Visitas de autoridades 31

O Republicano 1920 Chegada das máquinas Usina Itaicí O Republicano 1897 Importância do desenvolvimento da usina O pharol 1898 Associação da usina à metrópole O Commercio 1909 Firma Almeida e Cia O Commercio 1910 Jorge Reinners A Cruz 1930 Prefeitos e intendentes O Mato Grosso 1931 Intervenção em Santo Antonio 1930 Observações sobre o leito do rio Santo Antonio do 1930 Cuiabá de SAL até Pirayn Rio Abaixo 1931 Sobre a vida em SAL 1930 Problemas políticos 1932 Sobre a pessoa de Totó Paes 1899 Totó Paes se desculpando aos amigos 1898 Presença de Totó Paes em Cuiabá Antonio Paes de O Republicano 1898 Retorno de Totó Paes Barros 1899 Presença de Totó Paes em Cuiabá 1897 Totó Paes em evento em de 22 de 1918 abril de 1897 A Luz 1924 Instrução primária rural A Cruz 1937 Sobre educação A Cruz 1911 Escola sem Deus A Cruz 1948 Primeira comunhão nas escolas rurais O Commercio 1910 Sobre indeferimento da Escola de Instrução e escola Itaicí Itaicí O Commercio 1910 Criação da escola O Mato Grosso 1912 Escola de Itaicí descrição O Mato Grosso 1912 Apresentação da banda de música Itaicí O Mato Grosso 1911 Instrução pública O Commercio 1910 Criação da escola A Cruz 1910 Religião e educação A Semana 1924 Denuncia de escravidão nas usinas de Escravidão SAL A Semana 1926 Vendas de escravos

O Mato Grosso 1917 Discurso de Azeredo A Luz 1915 Denúncia de maus tratos A Cruz 1934 Grito de sangue A Plebe 1928 Críticas de Mário e Pedro Celestino A Reação 1928 Trabalho nas usinas A Luz 1924 Destruindo calúnias e mentiras A Capital 1924 Patrões e empregados A Capital 1925 Partidários usineiros A Capital 1934 Benfeitorias do cel. Palmiro Paes de Barros A Cruz 1924 Denúncia de feudalismos dos coronéis Grito de sangue na usina Aricá A Luz 1925 Denunciante Ignotus A Noticia 19927 Criação batalhão de Cuiabá e de SAL 32

A Plebe 1927 Assinatura de uma lista Conflitos A Plebe 1927 Depoimento de operário A Plebe 1927 Censura da imprensa A Plebe 1928 Maus tratos A Reação 1927 Cobrança de impostos causa A Reação 1928 indignação A Semana 1924 Poema sobre atrocidades nas usinas A Semana 1926 SAL A Tribuna 1927 Usinas em SAL O Democrata 1910 Conflitos em jornais republicanos e a reação O Mato Grosso 1916 Fugitivos das usinas O Mato Grosso 1917 Respondendo ao jornal o democrata O Mato Grosso 1917 Propaganda para trabalhar nas usinas O Mato Grosso 1933 Conflito na usina Aricá O Mato Grosso 1928 Baia do Garcez

Sobre cartões O Mato Grosso 1913 Coleções de cartão postais de Itaicí postais Embarcações O Commercio s/d Embarcações Lucy

A Capital 1926 Capital, escotismo e infância O Debate 1911 Congresso sobre infância O Pharol 1902 Infância rural A Capital 1946 Vagabundagem Correio do 1921 Representação da infância estado O Jornal 1930 Furtos de escolares em Cuiabá Infância A Capital 1925 Infância brasileira A Luz 1924 Sobre as usinas Correio do 1923 Censo crianças em idade escolar estado O Debate 1911 Educação O Debate 1913 Poesia sobre infância O Pharol 1902 Importância da educação para progresso e trabalho O Pharol 1903 Educação da infância e combate ao trabalho infantil O Jornal 1907 Escolas particulares O Jornal 1930 Infância ociosa O Mato Grosso 1915 Sobre o estado de Mato Grosso O Mato Grosso 1916 Visita do deputado Carlos Gomes Borralho em Itaicí Poesias O Republicano 1917 Dedicada à Salvador Albuquerque (despedida) O Republicano s/d Vozes de Cuiabá O Republicano 1926 Para Mario Correa da Costa Fonte: Hemeroteca Digital – BN.

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As fontes iconográficas, em particular as fotografias, certamente são uma possibilidade a mais de leitura e interpretação do espaço educativo que propomos investigar. Entendemos as fotografias enquanto fontes, elas se posicionam como instrumento de memória, permitindo dar visibilidade para as pessoas, os objetos, as ruas, as casas, a sociedade, enfim, para o espaço e ao tempo. Enquanto representação, a fotografia nos revela sinais, símbolos, segredos, mistérios ou o obvio. Segue quadro da quantidade de fontes iconográficas localizadas:

Quadro 4 - Número de fontes iconográficas

FIGURAS 34 Elaborado pela pesquisadora.

Foram utilizadas também algumas obras consideradas memorialísticas que nos auxiliaram com informações pertinentes a vida na Usina Itaicí. Essas obras são ricas em representações e dados referentes ao cotidiano na usina. São elas: Quadro 5 - Obras memorialísticas de Mato Grosso.

AUTOR OBRA ANO Virgílio Corrêa Filho As indústrias mato-grossenses 1945 Virgílio Corrêa Filho História de Mato Grosso 1969 Antonio Fernandes de Souza Antonio Paes de Barros e a Política de Mato 1958 Grosso Lenine Póvoas O ciclo do açúcar e a Política de Mato Grosso 2010 Fonte: Elaborada pela pesquisadora. Os testemunhos utilizados foram localizados da seguinte forma: a) na pesquisa da Profª Drª Marlene Gonçalves, b) acervo de família, c) acervo do NDIHR. Os testemunhos localizados na tese de doutorado de Gonçalves (2011) tratam de relatos de ex-funcionários das usinas de açúcar de Mato Grosso. Encontramos em um acervo de família o testemunho do Sr. Luiz Pereira Duarte, ex-aluno da Escola de Itaicí, que foi registrado por escrito no ano de 1995 e devidamente assinado por ele. Esse senhor morou e estudou na Usina Itaicí entre os anos de 1924 a 1928. A referida fonte foi gentilmente cedida pela sua família para a pesquisadora e disponibilizada para o acervo do Grupo de Pesquisa (GEM/UFMT). Os testemunhos localizados no acervo do NDIHR dizem respeito ao Projeto: Arquivo Foto fonográfico - Memória social da cuiabania, coleção: Martha Arruda Paiva, o qual se encontra em fase de catalogação pelo Núcleo de Documentação Histórico Regional (NDIHR/UFMT). Na oportunidade, fui convidada para participar do processo de catalogação 34

nos anos de 2017 e início de 2018, colaborando voluntariamente com a elaboração de resumos das transcrições dos testemunhos. Trata-se de testemunhos de ex-trabalhadores das Usinas de Açúcar de Mato Grosso, inclusive da Usina Itaicí, e também constam outros depoimentos referentes às temáticas voltadas para a história do estado de Mato Grosso. Após uma série de buscas nesses arquivos e acervos foi possível reunir um corpus documental expressivo que será interrogado ao longo desta tese. De forma concreta, essas memórias do passado serão aqui apresentadas a partir de três categorias que possibilitaram direcionar o olhar para empiria. A primeira categoria que elencamos trata-se do espaço. O espaço é analisado com base em Certeau:

Espaço é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas conflituais ou de proximidades contratuais. [...] Em suma, o espaço é o lugar praticado. Assim a rua geometricamente definida por um urbanista é transformada em espaço pelos pedestres. Do mesmo modo, a leitura é o espaço produzido pela prática do lugar constituído por um sistema de signos – um escrito. [...] Organizam também os jogos das relações mutáveis que uns mantêm sobre os outros. São inúmeros esses jogos, num leque que se estende desde a implantação de uma ordem imóvel [...] até a sucessividade acelerada das ações multiplicadoras de espaço (1994, p. 202-203).

Certeau (1994) procura tratar do espaço habitado. Esse espaço habitado resulta, para ele, de três operações: a produção de um espaço próprio, o estabelecimento de um não tempo com relações às tradições, bem como, a criação de um sujeito universal e anônimo que é a própria cidade (Idem,1994). O lugar praticado segundo a lógica de Certeau (1994) tem a ver com a espacialidade, com as atitudes humanas, vivências e convivências fabricadas no cotidiano, uma vez que ele entende que o espaço é composto por práticas. O ponto de interesse no conceito de espaço de Certeau (1994) está em observar os modos de ver e fazer dos proprietários, moradores (as) e trabalhadores (as) da população de Itaicí. Dá-se atenção aos aspectos de apropriação do espaço diante das relações exercidas no fluxo dos movimentos dos atores sociais, configurados em meio a uma relação de poder, observando a construção de identidades, sentimentos, sensibilidades, símbolos e, imaginários, os quais potencializam o olhar para o espaço como um elemento pedagógico. A segunda categoria é a escolarização. Mesmo tendo como prioridade um estudo referente às ações produzidas em um espaço considerado pouco convencional para fins educativos, não se ignorou nesta pesquisa o espaço escolar configurado na Escola de Itaicí,

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por entender que a escola é uma ferramenta de formação fomentada pelos proprietários da usina, direcionada para alfabetização das crianças e, portanto, se integra ao conjunto de ações de cunho educativo produzidos nesse locus. Tal perspectiva possibilita pensar a história da educação e a história da escola, conforme Faria Filho (2002), associada à constituição de mecanismos internos e de uma materialidade própria à escola, como também, à produção do entendimento de educabilidade da infância. Ressaltando:

A escola, ao constituir-se como agência responsável pela educação e instrução das novas gerações o faz não de forma pacífica e consensual, mas de forma conflituosa, buscando agressivamente resgatar a infância de outros espaços-tempos de formação, notadamente a família, a religião e o trabalho (FARIA FILHO, 2002, p. 1).

Pretende-se investigar com isso a função social da escola, seu papel diante da proposição de instruir e educar, as intencionalidades, e, portanto, busca-se apreender os vestígios da história da instituição, isto é, a história da Escola de Itaicí e a formação das crianças, observando como ―a ação escolar fez-se sentir além de seus ‗muros‘, irradiando para o conjunto da sociedade, constituindo-se em referência importante para a definição de identidades pessoais e coletivas, públicas e privadas, políticas e profissionais, dentre outras‖ (FARIA FILHO, 2003, p. 2). Então, para melhor esclarecimento, entende-se por escolarização ―o processo e a paulatina produção de referências sociais tendo a escola, ou a forma escolar de socialização e transmissão de conhecimentos, como eixo articulador de seus sentidos e significados‖ (FARIA FILHO, 2003, p. 2). Nessa direção, procura-se por indícios da cultura escolar fabricada na usina por meio da Escola de Itaicí. A terceira categoria é o trabalho. A intenção é investigar as atividades produtivas presentes no universo da Usina Itaicí, em especial, o processo de produção do açúcar, bem como, as representações e apropriações inerentes à construção da cultura do trabalho. As fontes referentes ao trabalho indicam que os trabalhadores (as) passavam por uma rotina organizada através de horários e tarefas específicas. Isso envolvia uma variedade de trabalho existente na usina para homens, mulheres e crianças, como as atividades nos canaviais, a produção industrial do açúcar, o trabalho doméstico, o trabalho docente, comercial, religioso e administrativo, e etc. Nesta perspectiva, intenciona-se aqui compreender a cultura do trabalho fabricada na usina, voltando o olhar para a formação de valores, hábitos, comportamentos e,

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técnicas, que se apresentam por meio de normas e regras, cronogramas, condutas disciplinares, e também por meio de saberes e experiências adquiridas ao longo da vida. A cultura do trabalho será o elemento norteador para o entendimento da formação dos trabalhadores (as) da usina para o trabalho e para adequação ao modo de vida das sociedades coronelísticas. Para tanto, fundamenta-se no aporte teórico apresentado por Palenzuela:

Las centralidade del trabajo em la vida social no sólo está sustentada em la universidad de la actividad de bienes y servicios para la subsistência material de cualquier forma de organizacíon social, sino también em la enorme eficácia que, a los afetos de la reproducción social, cobra el conjunto de construcciones ideáticas que sobre el trabajo han elaborado Las tradiciones idelólogicas (PALENZUELA, 1995, p. 3).

Portanto, busca-se analisar o trabalho na usina como:

un conjunto de aciones intencionales y no instintivas, individuales o coletivas, encadenadas y ordenadas, que relacionan la fuerza del trabajo com los medios de producción y com los instrumentos de trabajo al objeto de conseguir un resultado final que responda a uma necessidade social (PALENZUELA, 1995, p. 4).

Com isso, percebe-se que os direcionamentos apresentados por Penzuela (1995), ambos complementares, evidenciam a funcionalidade do trabalho tanto no aspecto material quanto ideológico, de modo que se aproxima do estudo de elementos condizentes à história cultural, perceptíveis no cotidiano desses trabalhadores (as) na forma como os fabricam, representam e apropriam-se de determinados valores e habilidades ligados à cultura do trabalho, que por sua vez, traz consigo os componentes de uma pedagogia, ou seja, o espaço, os horários (tempo), as atividades, os mediadores, as ferramentas, o conteúdo, a metodologia, a avaliação, entre outros. Ao tratar da educação na escala que propomos, assumimos que é um esforço que se apresenta como um grande desafio. Ao verificar as produções sobre História da Educação no Brasil, vimos que na maioria das vezes, as pesquisas estão direcionadas aos estudos referentes aos processos de escolarização, vistos sob diferentes ângulos e variadas fontes, abarcando as mais diversificadas delimitações temporais. Contudo, pesquisadores de destaque da história da educação têm evidenciado que as experiências educativas ocorridas fora da escola precisam ser exploradas, ressaltando que a história da educação não pode ficar reduzida a história da escolarização. Bastos (2016), Monarcha (2007), Gondra e Schueler (2008); Galvão e Lopes (2010), e

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Gohn (2006) da área da sociologia, são alguns dos pesquisadores que sinalizam a perspectiva de estudos sobre a educação a partir das abordagens: formal e informal, institucionalizados ou não, processos educativos e escolares. Bastos (2016) retoma o debate referente à História da educação, uma vez que a autora considera que a busca por resposta para essa indagação aparentemente simples é bem complexa e provisória. A autora assinala o diálogo positivo com a historiografia da História e da História da Educação, em termos nacionais e internacionais, bem como, a diversidade de temas e abordagens teórico-metodológicas que decorre da formação multidisciplinar dos pesquisadores que produzem na área. Dessa forma, aproveitamos para salientar que a própria maneira como Bastos (2016) trata os estudos em educação, ou seja, como memória educacional e escolar indica um olhar plural para os processos educativos, não limitados ao conhecimento da educação escolarizada. Inclusive, uma das abordagens que muito nos interessa, apontada pela autora, trata-se da relação História Cultural e História da Educação apresentada por Cunha quando diz que essa relação ―promove um alargamento das possibilidades investigativas, indo além dos espaços mais formais da educação, em direção a outros campos do conhecimento, sujeitos e objetos até então inexplorados‖ (CUNHA, 1999, p. 41 apud BASTOS, 2016, p. 49). Nesse sentido, Bastos5 há alguns anos vem despertando os pesquisadores da História da Educação a pensar acerca de outros processos educativos que caminham junto com a educação escolarizada, uma vez que esse olhar plural reflete as ações do cotidiano de todos os atores sociais e, essas ações são produtoras de cultura, conforme o lugar que cada um (individual e coletivamente) ocupa na sociedade. Monarcha (2007) traz algumas reflexões acerca do desenvolvimento da pesquisa e produção do conhecimento histórico em educação no Brasil a partir de 1930. A parte que chama atenção dentro do nosso campo de interesse é quando o autor relata que a partir dos anos 70 e, mais consideravelmente, dos anos de 1990, novas clivagens na paisagem intelectual, seguidas também de reorientações enfáticas nos estudos históricos em educação, explicitaram o desejo de diferentes atores, dos discursos acadêmicos, de produzir outro tipo de conhecimento histórico em educação. Nessa perspectiva, Monarcha (2007) aponta ainda que gradativamente se foi delineando uma fundamentação de que tudo é objeto histórico. Segundo o autor, foram

5 Ver Maria Helena Câmara Bastos (2006, 2009, 2011); Bastos & Almeida (2013). 38

acolhidos e legitimados nos estudos em educação, outros temas e objetos de conhecimento, como, gênero, infância, identidades, tempo, disciplinas e formas escolares, modos de ler, métodos de ensino, profissão docente, instituições escolares, periodismo pedagógico e, sobretudo, cultura escolar, temas que se encontram hoje amplamente trivializados no sistema intelectual acadêmico. De outra parte, Monarcha (2007) afirma que na contemporaneidade a produção do conhecimento histórico em educação como em outros campos das Ciências humanas e sociais, encontra-se sobressaltada pela crise dos ismos e pelas vagas sucessivas de modelos teórico- explicativos e métodos críticos ―provocando desaparecimento e surgimento de temas e objetos de investigação pelo aparente esgotamento de esquemas analíticos legitimados‖ (MONARCHA, 2007, p. 74). Assim, o autor conclui:

Contudo, podemos dizer que, neste momento, estamos diante de um certo paradoxo, a saber: em consequência do descarte da noção de totalidade (que obviamente não deve ser confundida com abordagem macrossocial), boa parte da expansão dos estudos históricos vem se processando graças à retração tendente a reduzi-los ao estudo da escola e fenômenos derivativos. Todavia, não é desejável e oportuno reduzir tais estudos à esfera escolar fechada sobre si mesma (MONARCHA, 2007, p. 74).

A consideração de Monarcha no sentido de não reduzir as pesquisas em História da Educação à esfera da escola nos apresenta como suporte para pensar nos demais espaços de convívio social, que por sua vez, tornam-se educativos através de representações e ações produzidas coletivamente. Produções do cotidiano que também são formativas e que por sua vez chegam à escola. Um exemplo deste tipo de pesquisa é a tese de Juarez Anjos (2015) que trata da educação da criança pela família no século XIX. Gondra e Schueler (2008) fazem uma reflexão acerca dos projetos e experiências de escolarização a partir de suas relações com Forças, Formas e Sujeitos distintos. A intenção dos autores é possibilitar uma melhor compreensão de outros tempos e do presente, combatendo muitos esquecimentos e problematizando o que já foi narrado sobre aquelas vivências. Nesta operação os autores evidenciam, entre outras coisas, a necessidade de pensar a história em sua historicidade, destacando que diferentemente do que foi (e é) escrito acerca deste passado, os vestígios e pistas dão a ver embates, projetos, lutas e experiências. Um apontamento relevante para esta pesquisa é a noção de educação apresentada por

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Gondra e Schueler (2008), que assumem como válida a compreensão de educação como ―experiências educativas institucionalizadas ou não institucionalizadas, de forma a dar a ver ações do convívio privado, sociabilidades, festas etc‖ (Idem, 2008, p. 704). Ficam evidenciadas também análises voltadas para as iniciativas do estado como pela igreja, pelos comerciantes, intelectuais, filantropos. Para os autores é possível notar nos novos estudos de história da educação que esta é uma tentativa de romper com as perspectivas até então hegemônicas, que priorizam apenas agências centrais na escolarização (o estado e a Igreja). E ainda, deixam claro que ―ao contrário, estiveram preocupados em destacar a exigência de diversos outros tipos de processos educativos, formais ou informais‖ (GONDRA; SCHUELLER, 2008, p. 74). No campo da sociologia, Gohn (2006) apresenta várias pesquisas que abordam a questão da educação não-formal. Para a autora, quando tratamos da educação não-formal, a comparação com a educação formal é quase que inevitável. Nesse sentido, ela procura demarcar e distinguir as diferenças entre os conceitos de educação formal, informal e não- formal. Sendo assim:

A educação formal é aquela desenvolvida nas escolas, com conteúdos previamente demarcados; a informal como aquela que os indivíduos aprendem durante seu processo de socialização – na família, bairro, clube, amigos etc., carregada de valores e culturas próprias, de pertencimento e sentimentos herdados; e a educação não-formal é aquela que se aprende "no mundo da vida", via os processos de compartilhamento de experiências, principalmente em espaços e ações coletivos cotidianas (GOHN, 2006, p. 25).

A educação de natureza não escolar discutida neste estudo segue na direção da Educação não-formal apresentada por Gohn (2006), a qual considera as aprendizagens no cotidiano, na vida, nos compartilhamentos de experiências nos espaços mais variados.

O educador é o outro, aquele com quem interagimos ou nos integramos. Os espaços educativos localizam-se em territórios que acompanham as trajetórias de vida dos grupos e indivíduos, isto é, fora das escolas, locais onde há processos interativos intencionais, guiado à luz das diretrizes desses grupos. O método surge a partir de problematização da vida cotidiana; os conteúdos emergem a partir dos temas que se colocam como necessidades, carências, desafios, obstáculos ou ações empreendedoras a serem realizadas. São construídos no processo. O método passa pela sistematização dos modos de agir e de pensar o mundo que gira em torno das pessoas. A educação insere-se, contudo, no campo do simbólico, das orientações e representações que conferem sentido e significado às ações humanas (GOHN, 2006, p. 29).

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No contexto de Mato Grosso, segundo balanço realizado por Sá e Siqueira (2004), observa-se que desde os primeiros trabalhos desenvolvidos em História da Educação no estado foram priorizadas pesquisas com foco nas temáticas voltadas para educação escolarizada. Nos estudos de Virgílio Alves Corrêa Filho que em 1925 publicou Questões do ensino, encontramos uma abordagem histórica da educação no estado referente ao período do século XVIII a meados do XX, traçando um panorama do cenário educacional mato- grossense. Em seguida Gervásio Leite, em 1940, propôs-se a escrever Um século de instrução pública (História do ensino primário em Mato Grosso), publicado somente em 1970. Em 1960 foi publicada História do ensino em Mato Grosso de Humberto Marcílio Reinaldo. Segundo Sá e Siqueira (2004) foi uma das obras mais completas naquele momento. Esses autores representaram a primeira tentativa de reconstituição da trajetória da História da Educação de Mato Grosso ―tendo sido fundamental para cimentar e dar base e apoio às produções que se seguiram, nascidas no interior das universidades e cuja autoria se deve a educadores ou historiadores de formação‖ (SÁ; SIQUEIRA, 2004, p. 55). Os autores mostram que a partir de 1970 as produções passaram a ser realizadas não mais do ponto de vista clássico que enfatizava os trabalhos através de uma visão ―panorâmica‖ da educação. Os trabalhos que sucederam essa primeira geração de produções na área foram elaboradas a partir do ponto de vista acadêmico. Sá e Siqueira (2004) ressaltam que os programas de pós-graduação serviram como alavancas para desencadear uma nova produção no campo da historiografia da educação e ao lado desse fator se configura o esforço dos grupos de pesquisas em História da Educação que vêm ao longo do tempo investindo na localização, catalogação e divulgação dos acervos documentais existentes no estado. Desta forma, o grupo de pesquisa História da Educação e memória existente a mais de 20 anos na Universidade Federal de Mato Grosso, priorizou um trabalho de levantamento de fontes capaz de dar suporte aos pesquisadores da área da história da educação. Na trajetória do grupo de pesquisa foram desenvolvidas dissertações e teses voltadas para os processos de escolarização pública e privada, com foco nos aspectos institucionais, expansionistas, formação, culturas escolares, entre outros. Dentre essas, duas pesquisas foram desenvolvidas no campo da educação vista de forma mais ampla, abordando aspectos da educação configurados através das práticas sociais e culturais, com ênfase nos estudos da educação escolar e não escolar. Assim, temos as pesquisas da Drª Nileide Souza Dourado (2014) que investigou as Práticas Educativas

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Culturais e Escolarização na Capitania de Mato Grosso e do Dr. Gino Buzato (2015) que trata sobre Transformações Urbanas em Cuiabá e a formação do cidadão moderno. A tese de Dourado (2014), intitulada Práticas educativas culturais e escolarização na capitania de Mato Grosso (1748-1822), analisa diversas modalidades educacionais de natureza escolar e não escolar. No campo da educação formal o destaque foi para as reformas, com foco na instituição de aulas régias em Cuiabá e Vila Bela, nos concursos para provimento das cadeiras e no deslocamento de alunos mato-grossenses para os estudos superiores em Portugal. O estudo também nos chama a atenção para a dimensão não escolar, que se manifestou pela circularidade de saberes necessários para o desenvolvimento de atividades técnicas de engenharia militar e de ensino de ofícios, que segundo Dourado (2014), eram imprescindíveis na construção e garantia da segurança na fronteira oeste. Para isso, se fez necessário ampliar as abordagens tendo como base as relações de sociabilidade presentes no território mato-grossense, tanto pelo ponto de vista do âmbito escolar quanto na dimensão não institucional. A pesquisa de Buzato (2015), Transformações urbanas em Cuiabá e a formação do cidadão moderno (1937-1945), consiste em uma análise da dimensão educativa da cidade de Cuiabá – MT no período do Estado Novo e a formação de um perfil de cidadão dinamizado pelas relações entre a população e a administração pública, na construção e reconstrução da cidade enquanto materialização de espaços educativos. O principal objetivo foi analisar a formação do cidadão moderno na capital, no âmbito da produção do espaço e da convivência urbana, promovida na gestão do interventor Júlio Müller. Para o autor,

As transformações realizadas na cidade de Cuiabá, promovidas pelas ações governamentais, ao se materializarem em novos elementos da paisagem urbana, visavam formar cidadãos modernos em contraposição ao cidadão com hábitos rurais (BUZATO, 2015, p. 11).

Essas pesquisas tiveram como proposta explicar a educação através das ações do cotidiano, das práticas sociais e culturais presentes na sociedade mato-grossense em períodos diferentes, buscando dar visibilidade para a educação em espaços diversos. Sobre as produções acerca das usinas de açúcar de Mato Grosso, temos os trabalhos de Siqueira; Costa; Carvalho (1990); Siqueira (1997); Aleixo (1984; 1995); Póvoas (2010); Correa Filho (1945; 1969); Souza (1958); Silva (1997). Dentre essas obras temos as de cunho historiográfico e memorialísticas, que destacam ora aspectos da história de Mato Grosso, ora tratam da história das indústrias mato-grossenses, como também, destacam a produção e a

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vida nas usinas de açúcar, o trabalho escravo e o trabalho livre nas lavouras de cana de açúcar, sem deixar de registrar a participação dos usineiros na política de Mato Grosso. Siqueira et al em O Processo Histórico de Mato Grosso (1990) esclarece sobre as fases da história do estado partindo da análise de fatores sociais, econômicos, políticos e culturais. O livro está dividido em quatro unidades correspondentes as seguintes temáticas: sistemas produtivos, movimentos sociais, fronteiras e abastecimento e a questão indígena. A parte que nos chama a atenção é sobre a produção açucareira no estado, a qual destaca o momento dos engenhos e das usinas de açúcar, relata sobre o trabalho, as instalações e o tempo nas usinas. As autoras apresentam informações importantes para pensar a dimensão educativa da Usina Itaicí. Outro trabalho de Siqueira (1997), A ocupação pioneira do Rio Cuiabá Abaixo, analisa aspectos do povoamento dessa região do estado, e busca evidenciar como foram concedidas as cartas de sesmaria, a formação da comunidade de Santo Antonio do Rio Abaixo, o tráfego pelo Rio Cuiabá e, sobretudo, trata da instalação e funcionamento das usinas do estado. A obra de Aleixo (1984), Mato Grosso Trabalho escravo e trabalho livre (1850-1888), analisa como o capital mercantil organizou as relações de trabalho na província de Mato Grosso. A autora procura dar visibilidade na forma como essa atividade conseguiu absorver a força de trabalho escravizada e livre. Essa leitura ajuda a pensar o que permaneceu e o mudou nas relações de trabalho entre o regime imperial e o republicano, ou entre a província e o estado. Já em Vozes no Silêncio: subordinação e trabalho em Mato Grosso, Aleixo (1995), trata sobre a exploração do trabalho no cenário mato-grossense no período de 1888-1930. A autora faz ecoar as vozes dos trabalhadores e as suas representações acerca do tratamento dado nas usinas de açúcar, como também procura dar destaque aos momentos de resistências à exploração do trabalho e a organização da classe trabalhadora nos principais centros urbanos. Sobre a vida nas usinas, a autora relata que não era difícil perceber como os coronéis tinham o poder sobre a vida de cada trabalhador, e como o mesmo estava condenado a uma espécie de servidão. Lenine Póvoas (2010) na obra O Ciclo de Açúcar e a Política de Mato Grosso dá atenção aos aspectos da vida cotidiana de experiência industrial em ambiência predominante rústica. O livro traz informações sobre a organização das usinas de açúcar, relata como era a produção, quem eram os proprietários, e não dispensa atenção em falar do tratamento dado aos trabalhadores, e por fim, o autor faz um apanhado da participação dos usineiros na política

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mato-grossense. As indústrias de Mato Grosso, livro do autor Corrêa Filho (1945), destaca as principais indústrias existentes no estado naquele período. Ele também relata sobre a atuação das usinas de açúcar na economia, buscando mostrar a supremacia do Rio Abaixo no cultivo da cana e na produção do açúcar. Para ele as estatísticas mostravam certa monopolização do Rio Abaixo. A produção de Souza (1958), denominada Antonio Paes de Barros e a Política de Mato Grosso, propõe não silenciar acerca das suas impressões sobre os fatos da política mato- grossense e como testemunha dos acontecimentos que agitaram a vida social e política de Mato Grosso. O seu livro, segundo o autor,

É em homenagem à memória daquele que no cenário da atividade industrial e como homem político, muitos serviços prestou à coletividade, não tendo sido compreendido pelos seus conterrâneos, os ainda não lhe fizeram a necessária justiça. (SOUZA, 1958, p. 3).

Essa homenagem foi uma forma de combater a imagem negativa do proprietário da Usina Itaicí – Cel. Antonio Paes de Barros, seu amigo, deixada pela família de Generoso Ponce, principalmente em livro publicado com o título de Generoso Ponce – Um Chefe (1952), o qual se destinou a circular uma imagem demonizada do referido empresário do ramo do açúcar. Desta forma, Souza (1958) fez uma versão da história com o propósito de priorizar os aspectos que para ele aram mais positivos sobre a pessoa de seu amigo e chefe Cel. Totó Paes. Assim, ele buscou mostrar, segundo a sua representação, quem era o industrial Antonio Paes de Barros, a sua origem, o espirito de iniciativa, a obra (usina), a vida na usina, o ingresso do empresário na política e a sua atuação como Presidente de estado entre os anos de 1903 a 1906. Da mesma forma, Silva (1997) publicou A visão dos vencidos: Totó Paes cem anos depois. Esse livro foi em comemoração ao centenário da Usina Itaicí (1897-1997). O objetivo foi mostrar a visão dos vencidos, uma vez que a versão predominante na historiografia de Mato Grosso foi a imagem negativa repassada por Ponce sobre a atuação do Cel. Totó Paes como empresário e como político, caracterizando-o como espécie de ―encarnação do mal‖. O coronel recebeu um legado deixado pelos poncistas como um homem sanguinário, assassino e violento. A versão do referido autor tenta andar na contramão desse legado, remetendo a uma representação mais positiva. A Usina Itaicí, colocada em destaque nesta pesquisa, com foco no trabalho e na

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educação, é compreendida por meio de uma rotina que envolve elementos presentes na produção de culturas, como as influências da cultura coronelística e das práticas clientelísticas na vida dos proprietários, dos trabalhadores (as) e moradores (as) da usina e, bem como, na cultura do trabalho (―livre‖ ou semiescravo) e na cultura escolar. A reflexão segue no sentido de perceber como a educação pode ser analisada a partir do contexto de uma usina de açúcar, evidenciando os modos de ver e fazer de uma sociedade. Observa como se relacionavam, interagiam, comunicavam, produziam e interpretavam o mundo. A nossa inquietação direciona-se no estudo do modo de vida de uma sociedade desigual, localizada no meio rural de Mato Grosso, onde se observa uma espécie de confinamento, imbuído de ações autoritárias, disciplinadoras e de assujeitamento, características marcantes de um passado histórico que ainda sobrevive nas sombras do presente. Conforme Nunes e Sá (2006, p. 7) ―As instituições são os instrumentos de confinamento, e nesses espaços fechados os indivíduos circulam incessantemente. Eis algumas instituições típicas: a família, a escola, a caserna, a fábrica, o hospital, a prisão‖. Assim, interessa-nos aqui a apreensão do movimento dessas forças materiais, humanas, simbólicas, coercitivas, sensíveis e, sobretudo, pedagógicas, provocadoras de representações, apropriações e práticas, próprias do modo de vida das sociedades coronelísticas. A relevância de investigar a Usina Itaicí a partir do trabalho e da educação na perspectiva da história da educação e da história cultural, acontece ao poder dar maior visibilidade à educação na sua pluralidade, à medida que ―da educação ninguém escapa‖ (NUNES, 2003, p. 115) ―seja ela qual for e como for‖ (ANJOS, 2015, p. 48).

III A NARRATIVA HISTÓRICA

Conforme a pesquisa no universo da Usina Itaicí foi tomando forma, acercaram-se de mim homens, mulheres e crianças na condição de empresários (as), políticos, trabalhadores (as), domésticas, alunos (as). Não se podia ignorá-los. Então, optou-se por estudar esses atores com o olhar voltado para educação, uma vez que ao conhecer as histórias da produção de açúcar no estado de Mato Grosso e, especificamente, na Usina Itaicí, observou-se logo o potencial desse locus enquanto produtor de culturas.

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A partir do momento que as fontes ligadas ao problema da pesquisa foram localizadas, surgiram os atores com fragmentos de suas vidas ajudando a compor uma trama do passado, na qual esta pesquisa reflete um esforço de investigação. Por esse motivo, esses protagonistas, tal qual nos registros que nos uniram, compareceram de diferentes formas na difícil tarefa de pensar a educação e o trabalho no universo da Usina Itaicí. A tese está dividida em quatro capítulos e apresenta-se nas próximas páginas como narrativa histórica. Os capítulos foram organizados pensando no entendimento das questões políticas, econômicas e sociais, na cultura local, na identidade das usinas de produção de açúcar instaladas no município de Santo Antonio de Leverger, com destaque para a Usina Itaicí, nos protagonistas da história e na configuração da educação de natureza escolar e não escolar, expressando-se por meio do processo de escolarização e da formação de valores, costumes, hábitos e comportamentos produzidos no cotidiano de homens, mulheres e crianças. No primeiro capítulo, o olhar está voltado para o contexto republicano no cenário de Mato Grosso, dando destaque para o fenômeno do coronelismo, que neste caso trata-se de uma cultura política presente nas comunidades formadas em torno da produção do açúcar, que por sua vez, apropriaram-se de práticas clientelísticas visando maiores prestígios, controle e manutenção do poder. A sociedade coronelística foi formada por meio de princípios hierárquicos, disseminando uma visão de mundo delineada por tratamento desigual. Assim, problematizou- se o contexto histórico imbuído de diferenças, tensões, conflitos e instabilidades, de modo que o modelo de sociedade coronelística, as práticas clientelísticas e interesses políticos, permitissem uma análise sobre a educação com base nas intencionalidades, observando como pano de fundo o ambiente de trabalho que produziu bem mais que açúcar e aguardente. O segundo capítulo trata sobre as usinas de açúcar de Mato Grosso. Procura-se dar ênfase ao período do ciclo do açúcar no estado, destacando cada uma das usinas e os atores sociais protagonistas da história e o perfil de cada uma delas. O terceiro capítulo refere-se os estudos referentes à educação de natureza escolar, isto é, procura-se dar visibilidade para a Escola de Itaicí e para a escolarização das crianças. Trata- se de reflexões acerca da criação, organização e da função social da escola e da produção da cultura escolar. O quarto e último capítulo diz respeito à dimensão educativa para além da escola. Busca-se a apreensão da educação sobre vários ângulos, mostrando estratégias fabricadas no

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espaço da usina, as quais envolviam criar condições para que os trabalhadores (as) e suas famílias permanecessem na usina sob a ótica de uma liberdade controlada. De todo modo, as pessoas que optaram por viver na usina seguiram regras rigorosas e apropriaram-se de costumes, hábitos e comportamentos construídos como algo necessário para a convivência em grupo naquele momento e para aquele modelo de sociedade. A conclusão, sem pretender esgotar a temática, sintetiza os aspectos principais da pesquisa, dando destaque para a defesa da tese que mesmo sendo uma versão provisória da historiografia da educação de Mato Grosso certamente irá contribuir com os elementos de pesquisa levantados diante do desafio apresentado na operação historiográfica.

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CAPÍTULO I

CORONELISMO, CLIENTELISMO E

HISTÓRIA LOCAL

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1.1 A política em jogo

Os coronéis em Mato Grosso, cujas bases econômicas podiam, então, porvir tanto da grande propriedade rural, como de um patrimônio urbano (coronéis pecuaristas, usineiros, agricultores, comerciantes grandes ou pequenos, etc) exerciam o poder de decisão efetivamente a nível local ou estadual, mantendo o controle dos empregos públicos e outros privilégios econômicos e sociais, e dispunham também de uma grande capacidade de mobilização de forças sob seu comando direto. (CORRÊA, 2006)

A afirmação de Corrêa (2006) leva-nos a refletir sobre a atuação dos coronéis em Mato Grosso e sobre as narrativas utilizadas para explicar o fenômeno do coronelismo. Começar por essa pontuação leva a refletir sobre as formas como as sociedades rurais foram organizadas e estruturadas no contexto da Primeira República no estado, considerando que muitas dessas sociedades passaram pela experiência da cultura política coronelística. Entende-se que esse seja o primeiro passo para compreender a configuração social da população de Itaicí, ou seja, assumir que a cultura política coronelística produziu valores, hábitos e comportamentos gerados por princípios e atitudes hierarquizados. Segundo Portela (2009), o coronelismo foi um fenômeno característico da Primeira República brasileira, considerando que este fez parte do folclore político nacional com seus coronéis de casaca ou terno de linho, calçando botina, de rosto sisudo, arrematando eleitores, trocando favores, distribuindo cargos, exercendo poder em um determinado município do interior. Mas a pesquisa do autor (2006) discute o coronelismo em Mato Grosso muito além desse estereótipo, ele propõe uma releitura do coronelismo a partir do entendimento que ele ocorreu como uma figuração específica da Primeira República, isto é:

O fenômeno do coronelismo tem balizas temporais rigorosamente definidas: inicia-se com a proclamação da República em 1889, se estruturando no governo de Campos Salles (1898-1902) e termina com a Revolução de 1930, que pôs fim à Primeira República e sua experiência federalista. Deste modo, o coronelismo deve ser definido pelo federalismo implantado a 15 de novembro de 1889 e, principalmente, pelo arranjo político orquestrado por Campos Salles que deu feição e estabilidade à República brasileira por mais de trinta anos, estabelecendo novas relações de interdependências entre poder local (os coronéis, em si, e os chefes políticos locais), entre o conjunto dos estados, e o governo federal. O espaço geográfico do coronelismo é, pois, local: municipal e estadual. Mas sua influência é nacional (PORTELA, 2009, p. 21).

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Compartilho da concepção de Portela (2006) por tratar da mesma fonte de Carvalho (1997, p. 1), o qual afirma ―o fato político é o federalismo implantado pela República em substituição ao centralismo imperial. O federalismo criou um novo ator político com amplos poderes, o governador de estado‖. A entrada dessa personagem no cenário político brasileiro, isto é, o governador, ajudou a formar uma nova rede de relações que implicou na política dos estados ou dos governadores. Todavia, de modo diferente do entendimento de Portela, ao dizer que a experiência federalista nos moldes orquestrados por Campo Sales representou estabilidade à República, entendemos que no caso de Mato Grosso, houve a ocorrência de uma série de tensões e conflitos por disputa de poder, o que envolvia também as escolhas dos grupos políticos aliados ao governador. Reconheço que a política dos governadores foi uma estratégia do poder central que tinha como intenção garantir certa governabilidade a partir de uma rede de alianças que envolvia o presidente da república, governadores, prefeitos e o povo. Essa governabilidade tinha como elemento de sustentação a troca de favores entre esses atores políticos, que muitas vezes iniciava-se pelo presidente da república por representar maior poder de barganha, depois numa linha decrescente este era seguido pelos governadores, e respectivamente, pelos chefes municipais, coronéis e o povo. Essa configuração em que a emergência dos poderes locais, ocasionada pelo federalismo, permitiu ditar uma nova realidade política, demonstra que a política dos governadores conduziu arranjos e disputas em Mato Grosso, considerando que o fortalecimento dos poderes locais por meio de promoções da Guarda Nacional, composta por civis, forneceu ao coronel, grande peso nas relações políticas locais e nacionais, imprimindo sua condição de poder e liderança diante de uma sociedade hierárquica. Essa rede de relações deu protagonismo ao fenômeno do coronelismo que na visão de Leal (1993) é um sistema político, uma complexa rede de relações que vai desde o coronel até o presidente da República, envolvendo compromissos recíprocos. Inspirado em Leal, Carvalho (1997, p. 2) afirma que:

[...] o coronelismo é, então, um sistema político nacional, baseado em barganha entre o governo e os coronéis. O governo estadual garante, para baixo, o poder do coronel sobre seus dependentes e seus rivais, sobretudo cedendo-lhe o controle dos cargos públicos, desde o delegado de polícia até a professora primária. O coronel hipoteca seu apoio ao governo, sobretudo na forma de votos. Para cima, os governadores dão apoio ao presidente da República em troca do reconhecimento deste de seu domínio no estado. 50

O coronel, por sua vez:

(...) é o chefe político local por ser proprietário de terras, ou seja, um latifundiário. Neste sentido, estão a ele tutelados clientes, funcionários, agregados rurais e outros, que invariavelmente votam com ele. Seu poder político consiste, portanto, em utilizar-se de seu prestígio (afinal é ele quem provê as necessidades imediatas dessa população no município) e mando para manipular o eleitorado em troca da complacência do Estado (LEAL, 1993, p. 53-54).

Com isso, nota-se que a atuação dos coronéis na esfera local se dava com o uso da força política para manutenção da ordem. Utilizava-se também a força de milícias que atendiam muitas vezes interesses particulares. Em uma sociedade em que o espaço rural era considerado o grande palco das decisões políticas, o controle dessas decisões fazia do coronel uma autoridade quase inquestionável. A historiografia brasileira tem mostrado que durante as eleições os favores e ameaças tornavam-se instrumentos de realização da ―democracia‖ no país. Arruda (2013) afirma que o sistema coronelista abrangia três esferas de poder: o municipal, o estadual e o federal. Sendo assim, ele considera que o coronelismo não é meramente um fenômeno da política local. Caracteriza-se quando a política local está articulada nacionalmente. Esta afirmação levanta um ponto importante tratado por Leal:

O coronel não era funcionário do governo, mas tão pouco senhor absoluto, independente, isolado em seus domínios. Era um intermediário. Sua intermediação sustentava-se em dois . Um deles era a incapacidade do governo de levar a administração, sobretudo da justiça, à população. Constrangido ou de bom grado, o governo aliava-se ao poder privado, renunciando o seu caráter público. (...) a lei parava na porteira das fazendas. O outro era a dependência econômica e social da população (LEAL, 1993, p. 276).

A afirmação de que o coronel do contexto da Primeira República não era um senhor absoluto, muito menos isolado, mas talvez um intermediário entre administradores públicos e a população, pressupõe, segundo Arruda (2013), que haja uma pequena margem de urbanidade dos domínios rurais. Arruda (2013) afirma também, que isso pode explicar a ampliação do espaço urbano e o crescimento do número de municípios durante a Primeira República, os quais destaca-se muitas vezes surgiam a partir das fazendas dos coronéis, fomentando seu poder. Sendo assim, percebe-se que se a vida social ainda ocorria

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predominantemente nas fazendas, ou como no nosso caso – na usina, o coronel dependia de certo modo de um polo urbano, geralmente de onde podia realizar parte do jogo de relações, articulando com os órgãos públicos ―para fazer justiça aos amigos e aplicar a lei aos adversários‖ (LEAL, 1993, p. 242). Essa falta de autonomia política integrava aos processos onde os governadores, deputados, entre outros, se perpetuavam no poder. Os hábitos políticos dessa época vinham da chamada política dos governadores, porque a política tornava viável por meio da ação coronelística. Assim, percebe-se que agindo de forma hegemônica na república oligárquica, o coronelismo tornou-se um traço da cultura política brasileira no período da Primeira República, sendo que em Mato Grosso não foi diferente. A troca de favores entre os chefes (coronéis, de partidos, governantes, entre outros) e a manipulação de votos são dois exemplos de como o poder político nesse modelo de sociedade impediam a consolidação de princípios morais definidos nos processos eleitorais e na ação de escolha dos representantes políticos. No contexto de Mato Grosso é necessário retratar as práticas políticas das elites mato- grossenses durante a Primeira República, considerando que elas provocaram intensos debates e tensões visando preservar a hegemonia nas tomadas de decisão, bem como, mostrar suas estratégias de manutenção de poder, mas, sobretudo, é nessa abordagem que se passa a constituir, no cenário político e econômico mato-grossense, a família Paes de Barros, particularmente, o proprietário da Usina Itaicí – O Coronel Antonio Paes de Barros. Segundo Franco (2014), na composição da fração civil do universo político que se formava à época, muitos dos novos atores eram proprietários das usinas de açúcar instaladas às margens do Rio Cuiabá, como exemplo, os Paes de Barros - proprietários das usinas Conceição e Itaicí, os Costa Marques - donos da Usina Ressaca, e José Marques Fontes - da Usina Aricá. E ainda:

Senhores de um vasto complexo de produção que incluía a posse da terra, os meios, os instrumentos, a força de trabalho e a organização para o comércio, os usineiros materializavam a face mais evidente da intercomplementaridade que forjou a natureza urbano-rural das classes dominantes em Mato Grosso (NEVES, 2006. p. 89).

Foi comum a circulação dos usineiros no contexto da política em Mato Grosso. É possível observar que famílias inteiras, por gerações, mantinham fortemente um fluxo de

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atividades econômicas e políticas, concentrando o voto enquanto dispositivo de controle e empoderamento. Sobre isso:

Oriundos de famílias que, não raro, já desempenhavam papel na política local, os proprietários dos empreendimentos que se modernizaram no limiar do século XX, ligados à produção de açúcar e seus derivados, gradativamente, tomaram parte ativa das disputas políticas ocorridas em Mato Grosso após a Proclamação da República, notadamente, no período em análise neste estudo. Havia ainda nomes ligados ao comércio e profissionais liberais. Dentre os que alcançaram visibilidade e tornaram-se figuras centrais na política mato-grossense, após Proclamação da República, estão: Generoso Paes Leme de Souza Ponce, comerciante, e Joaquim Duarte Murtinho, profissional liberal e empresário que, embora com vínculos familiares e políticos com Mato Grosso, sempre atuou a partir do , para onde havia seguido ainda jovem (FRANCO, 2014, p. 65).

Uma dessas especificidades regionais marcadas na história de Mato Grosso até meados do século XX ficou conhecida como a história do povo armado. ―A região foi consumida por um nativismo violento. As raízes desse legado baseadas em conflitos e violência nas primeiras décadas do século XX marcaram o domínio de coronéis e bandidos‖ (CORRÊA, 2009, p. 67). É nesse cenário que o coronelismo surgiu como força política presente em todo o país, inclusive em Mato Grosso. Foi um período no qual vigorava uma política controlada e comandada pelos ricos fazendeiros, donos de grandes faixas de terras conhecidos como coronéis. Como a base da economia brasileira era vinculada à produção agrícola, com um latifúndio, esses homens possuíam um grande poder, tanto financeiro quanto político. Os coronéis possuíam muitos funcionários, com isso podiam ter o controle dos votos, sendo que na época da política isto era muito bem explorado. Muitos dos trabalhadores eram analfabetos. No período eleitoral nota-se o uso de ameaças, elemento que esses latifundiários utilizavam muitas vezes para eleger a si ou os seus candidatos. Geralmente as pessoas não revidavam os interesses dos coronéis, a escolha de seu candidato, pois poderiam sofrer perseguições. Os coronéis de Mato Grosso dispunham de bases econômicas distintas, constituídas por patrimônio de largas faixas de terras ou provindas do comércio. Suas ações eram dominantes na concessão ou não de privilégios e na questão moral e física num cenário de uso de sua influência. Dessa forma, encontravam-se presentes no meio urbano e rural, embora mais intensamente no campo, e, assumiam inúmeras funções como a de empregador, protetor, compadre, festeiro, juiz, dentre outras funções (SIQUEIRA, 2009, p. 40).

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A imagem do coronel que ficou representada no imaginário mato-grossense foi a de uma figura emblemática, revestida de ações positivas e negativas. Ao mesmo tempo em que eram endeusados por uns, eram também demonizados6 por outros. Os coronéis tinham muita atuação na política e na economia do estado, o que fortalecia seu poder de decisão sobre questões locais e regionais. Para garantir esse posicionamento político, percebe-se que ações consideradas violentas serviram de mecanismo para tal fim. A violência e a instabilidade influenciaram o modo de vida da população que convivia em meio a tensões e conflitos como algo corriqueiro. ―O banditismo em Mato Grosso floresceu atrelado às lutas coronelistas como parte integrante de suas forças e sobrevivendo na órbita dos coronéis‖ (CORREA, 2009, p. 67). Essa relação coronéis-bandido evidenciou uma fase conhecida como banditismo, identificando-se as disputas pelo poder local e pela posse da terra. Por ocasião do início do período republicano em Mato Grosso não ter apresentado mudanças significativas que pudessem transformar as relações socioeconômicas e culturais da região e caracterizar uma nova situação em relação à violência, permaneceu a situação pré- existente no contexto das lutas pelo empoderamento a nível local e regional. Esse momento também representou a intensificação do clima de violência e abriu espaço para atuação declarada do coronelismo. Mato Grosso passou a ser conhecido como terra sem lei onde a única lei existente obedecia ao artigo 44, isto é, a lei do calibre 447. O banditismo foi reforçado pelas disputas políticas, envolvendo bandidos em conflitos político-partidários locais. O relacionamento direto ou indireto entre coronéis e bandidos tornou-se comum a todos os movimentos revolucionários a partir de 1891, de tal forma que em relação a Mato Grosso, ambos os fenômenos - coronelismo e banditismo - não podem ser compreendidos separadamente (CORRÊA, 2009). A relação coronel-bandido, tendo em vista o contexto político do início da república, tornou-se mais evidente mediante a prática de chefes locais trazerem para si homens armados. Essa capacidade de arregimentação foi um dos mecanismos dos coronéis usados na intenção de impor ou manter seu poder em momentos mais críticos de conflitos político-partidários ou na administração de suas fazendas.

6 Expressão utilizada por Gilmara Franco em sua tese de doutoramento intitulada A ordem republicana em Mato Grosso: disputas pelo poder e rotinização das práticas políticas (2015, p. 173), no sentido de exprimir uma das formas de representação da imagem do Coronel Totó Paes que ficou popularizada no imaginário dos mato- grossenses. 7 Termo usado em comparação com o revolver de calibre 44, caracterizando tamanha violência ocorrida no estado naquele momento. 54

Os elementos egressos do banditismo e da marginalidade, ostensivamente convocados por coronéis, tornaram-se então aliados e/ou agentes de facções políticas que, ora estavam lutando para assumir o poder, ora estavam defendendo a manutenção do status quo e a ordem pública. Assim, as lutas coronelistas podiam ser revolucionárias quando objetivavam a ascensão de uma facção de coronéis ao poder, ou inversamente, contra-revolucionárias quando tratavam de preservar os cargos e os postos conquistados anteriormente na política regional (CORRÊA, 2009, p. 69).

Segundo Neves (2006), as disputas ocorriam pelo domínio dos aparatos públicos, num momento em que a fragilidade de Mato Grosso perante a União ficava clara na dependência de cargos e verbas públicas, pois a economia não era dinâmica. Nas cidades mato-grossenses, os empregos restringiam-se aos cargos públicos: ―O prestígio de um grupo mediava-se pela quantidade de seus correligionários em postos de mando no estado, nos municípios e nos cargos federais existentes‖ (MENEZES, 2007, p.15). As lutas armadas coronelistas em Mato Grosso não foram somente observadas pelas suas dimensões políticas. Segundo Corrêa (2009, p. 61) ―elas adquiriram também dimensão econômica na medida em que geravam benefícios e privilégios, tais como remuneração (soldos), indenizações, desapropriações de Bens e resgates, etc‖. Para o autor, essa função econômica da luta armada tornou-se um meio de vida de uma parcela substancial da população mato-grossense, ocupando um grande contingente de mão de obra ociosa e desprovida de posse de terras e do processo de produção da região. Outra observação feita pelo autor é que essa situação de violência não envolveu tão somente coronéis e bandidos, mas outros segmentos da sociedade a eles vinculados. À exemplo: as forças militares tiveram um papel destacado nesse processo nas primeiras décadas do período republicano, aparecendo envolvidas diretamente nas lutas coronelistas. Assim, percebe-se que Mato Grosso nesse período configurou-se também pela impunidade e a inoperância do estado em segurança pública e controle do poder regional. Para Corrêa (2009), a tolerância à violência dos revolucionários e do banditismo demonstrou. por outro lado, o quanto eram sutis os limites que separavam o crime e a transgressão às leis das práticas políticas e atuação repressiva das autoridades locais. Nesse sentido, as ações do governo estadual que pressupunham a manutenção da ordem, da segurança individual e da tranquilidade pública estavam desacreditadas. Outra violência tolerada foi a da utilização do modelo de trabalho compulsório ou análogo ao trabalho escravo. A existência desse tipo de ação em algumas usinas do norte foi marcada pelo sistema repressivo, com destaque para os troncos e casas de suplício.

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Desta forma, observa-se que o fenômeno coronelista foi se constituindo na qual uma das principais fontes de riqueza era a posse da terra. As relações de trabalho fundamentaram em obrigações pessoais ocasionadas por troca de favores. À medida que a posse da terra era concentrada nas mãos de poucos que se enriqueciam a olhos vistos e representavam uma elite de proprietários de terra, a maioria da população se via marginalizada desse processo, restando como alternativa oferecer a sua força de trabalho. Mas é preciso salientar que estas relações não se concretizaram de forma explicita na forma de contrato de trabalho, mas na prática, uma espécie de obrigação que tornou o trabalhador um agregado do proprietário da terra que se esforçava para executar todo tipo de serviço (CORRÊA, 2009). As considerações de Correa (2009), a nosso ver, representam a utilização de práticas clientelísticas pelos proprietários da usina. O clientelismo na sua forma mais comum é compreendido como prática política de trocas de favores. Sendo assim, fazendeiros, empresários e políticos concentravam seus projetos e funções no objetivo de prover os interesses de indivíduos ou grupos com os quais mantinham uma relação de proximidade muitas vezes para benefício próprio. Em meio a essa relação de troca é que o político recebe os votos que busca para se eleger no cargo desejado. Desta forma, o clientelismo diz respeito às trocas de bens privados entre atores que se colocam em posições sociais desiguais. A origem dessa relação possui suas raízes na sociedade rural tradicional, assim como os laços latifundiários e camponeses fundados na reciprocidade, confiança e lealdade. É possível entender o conceito básico de clientelismo como um tipo de relação entre atores políticos envolvendo a concessão de empregos públicos, da formação de empregos, benefícios fiscais, isenções e trocas de apoio político permanecendo na sua forma clássica que envolve a negociação do voto (CARVALHO, 2017). Na literatura internacional esse é o sentido em que o conceito foi mais difundido. Desta forma, traduz um fenômeno de relação cuja dominação é maior do que as que ocorrem em outros fenômenos similares, como por exemplo, o coronelismo. O clientelismo tem como objetivo amarrar politicamente o beneficiário. Contudo, buscou-se aprofundar a análise. Bahia (2003) em seu livro O poder do clientelismo: raízes e fundamentos da troca política propõe uma revisão do conceito de clientelismo e soma esforços a uma tendência de repensar as percepções correntes sobre um fenômeno que possui abrangente tradição na produção historiográfica nacional.

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Para o autor (2003), uma determinada percepção de que seríamos um país atrasado com relação às conquistas de liberdade e igualdade, características importantes de uma ordem exitosa nos países industriais modernos, sugere uma interpretação das mazelas nacionais. No seu entendimento, isso ocorre a partir da estreita relação entre as formas clientelistas de dominação e o fenômeno do atraso que foram associadas em sua forma clássica. Assim, essa identificação acaba por desagregar o valor heurístico do conceito, muitas vezes confundido com as características do patrimonialismo e do mandonismo. É nesse ponto que Bahia (2003) realiza uma ruptura com algumas interpretações correntes. Para ele, a característica fundamental a toda organização será a produção de hierarquias e assimetrias de poder presentes no âmbito da troca política. As outras formas de troca serão autorizadas por uma hierarquia de poder legitimada por leis, consensos e costumes. Deste modo, segundo o autor, a assimetria é um fator endógeno à troca política e o clientelismo será caracterizado como um tipo de troca política assimétrica, marcado por uma série de especificidades que precisam ser observadas. Em sua pesquisa, ele recorre a um conjunto de trabalhos procurando identificar os aspectos constituintes das características fundamentais do fenômeno. Suas buscas nas literaturas mais recentes apontam um entendimento comum de que o clientelismo é endógeno à organização e ao fenômeno do poder, onde o que se troca é apoio político e lealdade por benefícios (BAHIA, 2003). Para o autor, a forma tradicional do clientelismo dá lugar a um clientelismo organizacional, cujas características se afastam um pouco dos traços originais, mas mantém a essência do fenômeno. Partindo desses elementos, nota-se que o clientelismo na concepção de Bahia (2003) é um fenômeno relacionado ao acesso e à exclusão de bens e serviços não regulados diretamente pela ordem jurídica e pelos valores de mercado. Os mecanismos de trocas não dão garantias legais, não constituem direitos, mas são tolerados nas relações sociais. Quem também trata sobre a cultura do clientelismo é Mateus Malvestio (2015) em seu artigo A cultura política do clientelismo: uma análise no Brasil contemporâneo no qual estabelece uma análise das relações clientelísticas, bem como traça um paralelo com outras conjunturas de trocas e beneficiamento mútuo. Esse autor segue na linha de Bahia (2003), ou seja, o conceito utilizado identifica o clientelismo como uma configuração por relações de trocas assimétricas, no qual essas trocas são caracterizadas por trocas políticas. Em outras palavras, entende-se que as relações clientelísticas estabelecem interações entre atores de

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poder e status desiguais e por fundamentar-se no princípio da reciprocidade. Sendo assim, o clientelismo:

[...] é um fluxo de utilidades que se processa através de mecanismos de interação específicos e que depende do retorno, a prazo, da lealdade da clientela ao patrão. Para que isso se dê é necessário que, de fato ou por manipulação simbólica, o patronus seja visto como detentor do monopólio da distribuição das utilidades (MALVESTIO, 2015, p. 117).

As desigualdades nas relações de trocas são relevantes para o entendimento das relações clientelísticas, uma vez que a assimetria de poder se configura como fator que se origina no interior de determinada instituição. A usina pode ter sido um exemplo disso. Pode- se dizer que a desigualdade social e nas relações será características marcantes ao longo da sua história. No sentido mais preciso, ―esse fluxo de utilidades ocorre de trocados bens clientelísticos‖ (BAHIA, 2003, p. 219), como também aponta Aleixo ―Laços estreitos de compadrio e de favores conduziram este homem8 ao respeito e a obediência. O resultado não poderia ser outro: acabaram por se curvar diante do capital‖ (ALEIXO,1995, p. 65). Contudo, deve-se atentar que o clientelismo se configura também como formas de relações simbólicas de poder. Conforme destaca Neves (2006), ao apontar que o benefício ultrapassa as simples trocas econômicas, o clientelismo vai além dessa relação e não pode ser entendido apenas como troca por bens materiais, tendo em vista que deve ser analisado também como troca simbólica, uma ajuda, um apoio de poder e influência. Deste modo, nota-se que as práticas clientelísticas, observadas tanto do ponto de vista voltado para as trocas de bens materiais quanto simbólicas, deixa claro a manutenção e até mesmo a adaptação de formas de relações desiguais com fins de benefício. É notório o uso dessas práticas na história recente e discutir o processo histórico que desencadeou tal configuração é importante como instrumento de reflexão e descontinuidade. Por isso, é relevante à utilização do conceito de clientelismo como uma das ferramentas norteadoras desta pesquisa por se tratar de uma atividade que permeia os processos históricos que insistem muitas vezes na permanência de práticas ultrapassadas, com um forte potencial de manutenção das desigualdades sociais. Enfim, pode-se dizer que tensões, lutas armadas, empoderamento de coronéis, práticas clientelísticas, entre outros múltiplos fatores, fizeram parte do advento da República, permitindo que Mato Grosso vivenciasse um dos períodos mais tumultuados de sua história.

8 Referente ao homem pobre. 58

A história da Usina Itaicí, por sua vez, evidencia esse movimento na sua internalidade e nas suas relações em âmbito regional e local. Desta forma, percebe-se que a população era submetida a uma rígida disciplina, que pretendia torna-la passiva e obediente. Para tal objetivo, era necessário um conjunto de ações capaz de manter a ordem. Esse conjunto de ações, a nosso ver, implica-se na relação coronelística, nas práticas clientelísticas, bem como nas formas de educar, sejam elas formais ou informais.

1.2 O passado Histórico

A história de um povo ou de uma comunidade dificilmente pode ser analisada sem que se observe as culturas produzidas pelos atores sociais, especialmente se há pouca atenção ao lugar em que essas pessoas ocupam na sociedade, de onde falam, sobre o que pensam e como se apropriam historicamente. Santo Antonio do Rio Abaixo, atualmente denominado Santo Antonio de Leverger, foi desmembrado do Município de Cuiabá. O início da sua história mostra que as terras do Rio Abaixo9 foram povoadas desde 1721, conforme registram as cartas de Sesmarias doadas pelo então governador da Capitania de São Paulo Rodrigo César de Menezes. No século XVIII as regiões auríferas dos rios Coxipó e Cuiabá com intensa atividade mineradora dependiam das roças e sítios circunvizinhos para garantir seu abastecimento. Coube à região do Rio Abaixo a função de produtora de alimentos necessários à subsistência do Arraial. O povoamento da área do rio Cuiabá abaixo foi expressivo. Os trajetos fluviais feitos pelos sertanistas para chegar ao Arraial cuiabano passava necessariamente pelo Pantanal do rio Cuiabá Abaixo. Segundo relato do primeiro cronista setecentista, a passagem por esta zona pantaneira:

Da barra d‘este rio serão vinte ou vinte e dois dias de viagem. Ao quarto dia ou quinto dia se chega ao Arraial Velho, ou registro, que vem a ser uma roça com muito bom bananal; dia e meio mais acima desta roça está outra também povoada, e d‘esta até os Morrinhos, que serão sete ou oito dias de viagem, há outras duas que dão bastante milho e feijão; porém dos Morrinhos até a vila que são sete dias, quase todo este rio está cercado de roças e fazendas [...] (COELHO, 1976 apud SIQUEIRA, 1997, p. 33).

Conforme os registros das terras de Santo Antonio, em 1734 ergueu-se uma capela

9 Foi comum o uso da expressão Rio Abaixo também como identificação de Santo Antonio do Rio Abaixo (Cf. SIQUEIRA, 1997, p. 11). 59

onde hoje está situada a cidade de Santo Antonio de Leverger. Essa capela foi criada em homenagem a Santo Antonio (FERREIRA, 1997). Não foram encontradas imagens da antiga capela, mas localizamos registro da igreja Matriz que foi construída posteriormente:

Figura 1 - Igreja Matriz.

Fonte: Página do Blog da comunidade do distrito de Varginha10.

A história do município em seus primórdios envolveu um misto de mitos e lendas acerca da imagem de Santo Antonio. Permaneceu a representação no imaginário popular de que a imagem do santo queria ficar nas terras que constituíram a cidade. Esse episódio foi incorporado à cultura regional e transmitido por gerações até o presente momento. Nas memórias populares ficou registrado que:

Rompia de arrepio as corredeiras de água barrentas do rio Cuiabá, em plena enchente, uma monção que demandava às minas descobertas por Pascoal Moreira Cabral e Sutil. Vinha desfalcada de algumas canoas e de vários de seus componentes, afundadas e sacrificadas na refrega com os índios canoeiros ―guató‖. Penetraram um certo entardecer por uma boca de água remansosa, acompanhando à beira do sangradouro para o pernoite. Refeitos na manhã seguinte aprestaram-se novamente para o reinicio da viagem quando um dos ―batelões‖ fica preso como se encalhado em banco de areia, não havendo como sair, à força de remos e ―zingas‖. A superstição apodera- se dos rudes canoeiros e por sugestão de um deles é desembarcada a imagem

10 Disponível em: www.http://varginha-news.criarumblog.com. Acessado em 06/09/ 2016. 60

de Santo Antonio que transportavam. O resultado foi surpreendente, pois em seguida a embarcação tomou impulso e seguiu viagem. Outra monção por ali de passagem, querendo transportar o Santo, o mesmo fenômeno se repetiu. Foi então levantada, à beira do rio, uma tosca cobertura de palha onde instalaram-no justamente no local em que se ergueu a primitiva igreja, que não mais existe e se construiu uma nova, elegante em suas linhas sóbrias e originais (BRASIL, IBGE, 1958, p. 289).

O território do município naquele momento concentrava-se nas áreas em que hoje correspondem aos municípios de Santo Antonio de Leverger e de Barão de Melgaço11. Entre um movimento de alternância na denominação e no regime administrativo (vila//distrito/cidade) esses municípios ajudaram a construir a história do povo ribeirinho do Pantanal Norte. O distrito de Santo Antonio do Rio Abaixo foi criado pela Lei provincial nº 11, de 26 de agosto de 1835. Por efeito da Lei estadual nº 211, de 10 de maio de 1899, foi criado o município de Santo Antônio do Rio Abaixo com território desmembrado de Cuiabá e o primeiro em Mato Grosso a ser criado após a Proclamação da República. Sua implantação data de 13 de junho de 1900. Segue abaixo fotos da cidade de santo Antonio do Rio Abaixo nos anos iniciais à sua emancipação, destacando uma das ruas principais da cidade que dava acesso ao porto. Observa-se um cenário que apresenta como característica a paisagem de uma cidade bucólica, pacata, de casas simples, no qual verifica-se algumas casas com portas e janelas abertas e a rua marcada pela memória da estrada de chão. Figura 2 - Santo Antonio do Rio Abaixo em 1906

Fonte: AYALA; SIMON, [1914] 2011, p. 361.

11 Antes denominado Distrito de Melgaço. 61

Figura 3 - Santo Antonio do Rio Abaixo 1906 – Rua da Matriz

Fonte: AYALA; SIMON, [1914] 2011, p. 279.

Na figura acima observa-se a mesma rua, porém, sob outro ângulo, o qual proporciona um olhar mais amplo da Praça da Matriz com a Igreja de fundo, evidenciando outros elementos importantes na constituição do espaço, como a iluminação pública, faixadas das casas padronizadas, área de laser e de religiosidade, concentrados num dos espaços de maior circulação de pessoas. Embora as fotos não evidenciem essa movimentação, pode-se dizer que ela era uma das ruas principais da Vila, pois era rota do comercio local e de acesso ao rio. O município de Santo Antonio de Leverger está situado no planalto cuiabano e no início do pantanal mato-grossense. Localiza-se em um território que faz parte do Vale do Rio Cuiabá. Faz limite com os municípios de Nossa Senhora do Livramento, Várzea grande, Cuiabá, Rondonópolis, Itiquira e Barão de Melgaço. A cidade está localizada à margem esquerda do rio Cuiabá e fica a 30 quilômetros da Capital. Segue abaixo a localização do município de Santo Antonio em relação ao estado.

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Figura 4 - Mapa do município de Santo Antonio de Lever

Fonte: Enciclopédia dos municípios brasileiros – IBGE; FERREIRA, 1958, p. 291.

Esclarecidas as questões de topônimos e de localização, destacamos outro elemento importante para compreensão do lugar, que tem a ver com a cultura da população do Rio Abaixo, que é o rio. É necessário enfatizar o lugar que o rio reservou na experiência de vida dos povos ribeirinhos de outrora pela relevância que teve na vida das pessoas dessas comunidades. Segundo Suíse Bordest (2014) propõem uma análise acerca da oportunidade de relacionar percepções e lugares para refletir onde estamos, onde nos situamos, como parte da espacialidade que contém uma sociedade. Desta forma, encontramos nesta proposta mais um olhar sobre o lugar e os atores que ajudaram a construir a história do município de Santo Antonio de Leverger. A proposta da autora é tratar sobre leituras cartográficas não convencionais, leituras que possam ser vistas com diferentes olhares, incluindo o olhar das margens, do periférico. O seu olhar começa pela população ribeirinha do rio Cuiabá. Ela procura demonstrar os sentidos que ecoam quando investigamos a representação do passado. Para a autora ―as pessoas olham 63

para trás por várias razões, mas uma é comum a todos, ou seja, a necessidade de adquirir um sentido do eu e da identidade‖ (BORDEST, 2014, p. 94). A autora aponta a circulação das pessoas pelo Rio Cuiabá desde os primórdios, procurando responder a pergunta que lançou ―o que poderia ser visto nas margens do rio Cuiabá ao longo do tempo?‖ (BORDEST, 2014. p. 94). Procurando possíveis respostas, ela inicia sua trajetória afirmando que o rio Cuiabá foi o grande e maior atrativo do processo migratório para o arraial minerador, em cujas margens a população se estabeleceu na esperança de enriquecimento. A circulação se deu pelo sistema monçoeiro, que do rio Tietê, atingia o rio Cuiabá. Esse caminho fluvial foi utilizado durante todo o século XVIII. Foi também nas margens do rio que foram estabelecidas as agências de cobrança de impostos de mercadorias, ouro e escravos. No século XIX, com a abertura da navegação pelo rio Paraguai, considerando a hidrovia Estuário do Rio da Prata, rio Paraguai e rio Cuiabá, o porto de Cuiabá foi dinamizado, uma vez que Mato Grosso havia ingressado no movimento do capital, e esse movimento se dava muitas vezes sob o Rio. Siqueira (2009) também relata sobre a vida em torno do rio, considerando que desde a fundação de Cuiabá no século XVIII já se registrava presença expressiva de população às margens dos rios. Esta se estabeleceu inicialmente pelo rio Coxipó-Mirim, para mais tarde, com as descobertas das Lavras do Sutil, no rio Cuiabá, parte desse contingente se deslocar para o novo veio aurífero. Em relação ao contexto de Santo Antonio do Rio Abaixo, uma das representações dessa circulação pelo rio está associada à implantação das usinas de açúcar. Essa representação sugere um olhar cartográfico das margens do Rio Cuiabá do ponto de vista de Bordest (2014), de modo que o rio não poderia ser entendido somente como possibilidade de tráfego fluvial, pois é dele que vinham os elementos necessários para adubação do solo por meio das enchentes, o que resultou nas safras de cana plantadas às margens do rio Cuiabá. Como consequência muitos proprietários de engenhos de açúcar investiram na criação de usinas nestas localidades, impulsionando um movimento migratório para região no final do século XIX como também a economia do estado de Mato Grosso. A Usina Itaicí é reconhecida historicamente como a usina que mais se destacou na modernização da produção da cana de açúcar, álcool e aguardente. Tanto na plantação de cana quanto na industrialização, Itaicí mostrou-se a maior produtora do estado de Mato Grosso.

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Uma das pioneiras nessa direção modernizadora foi a Usina do Itaicí, de propriedade do empresário e politico mato-grossense Antonio Paes de Barros (Totó Paes). Ali, ele implantou um complexo industrial moderno, suficiente para produção de açúcar e aguardente de qualidade, além de rapaduras, tão apreciadas em Mato Grosso. Foi também na Usina do Itaicí que floresceu uma das mais antigas escolas rurais, onde foi instalada a primeira banda de musica e local onde foi cunhada moeda própria, intitulada tarefa, utilizada nas transações comerciais efetivadas no interior do estabelecimento industrial. Foi também local de muita festa popular, batizados, casamentos e enterramentos, mas também repleta de ideário místico, muitos deles relacionados diretamente ao rio Cuiabá (BORDEST, 2014, p. 99).

O rio teve e ainda tem um papel relevante para as comunidades ribeirinhas de Santo Antonio, dele vinha também grande parte do sustento das famílias. Além de ter sido um importante elemento de locomoção, o rio deixou seu legado na cultura desse povo que tem sua identidade como população ribeirinha do pantanal mato-grossense. O Ciclo do açúcar, por sua vez, foi um momento muito próspero para economia de Mato Grosso, tanto em nível de estado como em nível local. Somados aos fatores naturais como a fertilidade do solo, o espírito empreendedor dos fazendeiros locais – logo, usineiros do açúcar, a mão de obra barata, o incentivo do estado, viu-se a expansão de várias usinas e o aumento da produção do açúcar. Porém, essa prosperidade beneficiou apenas pequenos grupos, geralmente, as elite mato-grossenses, entre elas, situam-se os coronéis do açúcar. Na questão local, foi observada uma população pobre, desassistida socialmente e pouca esperançosa. Em um relato anônimo publicado no Jornal o Mato Grosso (1930), relato cujo autor foi identificado apenas como um leitor assíduo, percebe-se a indignação com o tratamento dado pelo diretor das Escolas Reunidas12 aos alunos, consideramos o fato dele dar ênfase na pobreza dessa população frente às exigências feitas pelos mestres da escola que visavam apenas cumprir com as regras vindas da Diretoria da Instrução Pública, sem se solidarizar com as limitações na condição de vida daqueles citadinos. O que queremos aqui é evidenciar o contraste apontado anteriormente, uma vez que entre uma sociedade muito produtiva se vê uma distribuição de renda desigual e injusta. Esse relato aponta referências importantes que demonstram a disparidade entre a população rica e a população menos favorecida, mesmo em circunstâncias de prosperidade econômica. Conforme o relato:

12 As Escolas Reunidas citada no relato referem-se a uma escola localizada no município de Santo Antonio de Leverger. 65

Deveis conhecer de perto a cidade de Santo Antonio do Rio Abaixo e, conhecendo-a, não vos será difícil fazer uma ideia da vida, da riqueza e da falta de recursos da maioria dos habitantes d‘esta cidade. Incontestavelmente este município é um dos mais prósperos e ricos do nosso estado; mas, infelizmente as pessoas que dispõem de grandes recursos são – os usineiros e fazendeiros. [...] De modo que a população é pobre, digo mal – paupérrima. No entanto, o diretor das escolas reunidas está com a phobia das exigências que terá em resultado o despovoamento das escolas, si os altos poderes não tomarem em consideração o apoio devido à infância desvalida. Todos os dias os pobres meninos, envergonhados, ouvem do mestre estas duras palavras: digam a seus paes que os quero uniformizados, do contrário serão expulsos ou suspensos. Que homem sem coração! Banir da escola uma creança que procura o pão-do-espírito! Que magoa não entra pungente nos corações dos paes que mal podem sustentar e vestir seus filhos, com a imposição tyranica de um indivíduo fanfarrão, que ignora ou finge ignorar as aperturas dos deserdados da fortuna! Pelo modo malfazejo de pensar do irascível diretor, deduz-se facilmente que só os abonados e os ricos podem educar seus filhos na visinha cidade de S. Antonio. Oxalá estas palavras cheguem aos ouvidos dos homens que dignamente dirigem a Instrução Pública em nosso estado e eles, usando da necessária energia que o caso requer o aconselhem o diretor a ser mais patriota e menos energúmeno, menos moralista e mais conciliador (O MATO GROSSO, 1930, p. 2).

Como se não bastasse a condição de vida limitada da população do Rio Abaixo, observa-se ainda a convivência em meio às tensões e conflitos políticos constantes. Conforme documento encaminhado aos Coronéis Joaquim C. Peixoto de Azevedo, Antonio Manoel Moreira e Dr. João da Costa Marques, em 24 de julho de 1916, pelos correligionários Virgínio Nunes Ferraz, Manoel da Silva Fontes, Miguel Angelo de Oliveira Pinto e Luiz da Costa Ribeiro Fontes que trata de ameaças por motivo de conflito político-partidário, observa-se a informação de que o Presidente do estado de Mato Grosso estava organizando ―força‖ - [...] ―gente mandado por Prótones se acha no Mimoso reunindo cavalhada. [...] pessoas vindas de lá garantiram ter mais de 40 cavalos presos para transportar forças de Cuiabá para vir atacar‖ (RIO ABAIXO, ofício, 1924). Eles ressaltaram no documento que mesmo entendendo que não havia motivo para tal agressão, eles estavam unidos e dispostos a defender os seus lares, bem como, destacaram que no quadro de safra, qualquer movimento ameaçava a paralização das usinas, o que ocasionaria prejuízos incalculáveis. Essas são representantes da oposição.

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Figura 5 - Conflitos políticos13

Fonte: Arquivo Público de Mato Grosso (APMT), Lata, 1916 A.

13 Transcrição do documento: Cópia – Rio Abaixo, 24 de julho de 1916. (inelegível) seus leais coronéis Joaquim Caracciolo Peixoto de Azevedo, Antonio Manoel Moreira e Dr. João da Costa Marques. Cordiais Saudações. Constou nos que os senhores Protógenes Francisco da Costa e João Reis Dias de Moura receberam ordem do Exmo. General Presidente de Estado para organizarem força, a essa noticia não demos crédito. Acontecendo porém, verificamos que gente mandada por Protógenes se acha no Mimozo reunindo cavalhada, tanto que pessoa de lá vindo hoje, nos garantem já terem mais de 40 cavallos prezos e que nesse número existem cavalos dos fazendeiros Constantino de Queiroz, Pedro Dias de Moura e Cesário José Maria e que esses cavalos vão para transportar força de Cuiabá para nos vir atacar, e que João Bem Dias também reúne força para o mesmo fim. Esta inesperada notícia nos veio alarmar e por em verdadeiro sobresalto. Conferem recomendação desse diretório, até hoje nos temos conservado na maior calma, cuidando exclusivamente de nosso serviço de safra, não havendo portanto motivo que justifiquem essa pretendida agressão, que no ao ser levada a feito estamos, unidos e dispostos a defender os nossos lares. No quadro atual, épocha da safra, qualquer movimento de força obrigará as usinas a paralisarem o serviço o que nos accasionará prejuízos incalculáveis. De V. V. Excia. Amigos e correligionários. Virginio Nunes Ferraz, Manoel da Silva Fontes, Miguel Angelo de Oliveira Pinto, Luiz da Costa Ribeiro Fontes. Está conforme a original. Francisco Santiago – Official maior. 67

Apesar do ofício, os meses se passaram e o conflito permaneceu. Em 14 de dezembro de 1916, representantes da situação da Câmara de Vereadores de Santo Antonio do Rio Abaixo encaminharam um ofício destinado ao Presidente de estado Caetano de Albuquerque relatando que são testemunhas da tenacidade da oposição, que:

[...] à mão armada, movem há longos meses alguns desnaturados mato- grossenses que, de posse de altas posições políticas abusam em seu exclusivo proveito pessoal e em detrimento dos altos interesses do estado, que desejam ―reduzir a uma simples feitoria sua, os [...] assinados, representantes legaes deste vasto e florescente município, que infelizmente tem servido de cenário aos atos de depredações e terras praticados pelo caudilhismo dos maus filhos da nossa pátria‖. Por fim, despedem garantindo o apoio ao governo (MATO GROSSO, Ofício, 1919, p.1).

Outros conflitos por questões políticas ocorriam entre os proprietários das usinas com membros da mesma família. Outros eram mais evidentes na luta por empoderamento, onde os coronéis trabalhavam em conjunto com os juízes e delegados de polícia para fazer valer as suas leis. Sobre isso, o jornal o Mato Grosso de 1917 relata a presença do Cel. Henrique Paes de Barros e de seus capangas na Vila de santo Antonio do Rio Abaixo. A versão transmitida diz:

A Vila de Santo Antonio do Rio Abaixo chegou em 23 do corrente, o Coronel Henrique Paes com o reduzido pessoal que o terror ainda obriga a acompanha-lo. São indivíduos residentes nas proximidades da sua fazenda e sujeitos aos seus instintos ferozes, esses que ali trouxera com o intuito de alista-los. Não excedendo de duas dezenas. Entretanto, a comitiva do famigerado déspota é mais numerosa, composta dos seus celebres capangas ali desembarcados com grau de provisão de armas e punições. O terror que se apoderou do famoso heroe do Itaicy e do Aricá, fel-o pedir garantias para chegar ao theatro das suas antigas façanhas, ali nas proximidades da Bahia do Garcez. Mas, desconfiado dos seus próprios crimes, veio em pé de guerra, do qual podem originar-se lamentáveis conflitos, devido a prevenção daquela população ordeira e pacífica contra a trahição e instintos sanguinários do celebrizado desordeiro, a cujo encontro partiram os seus comparsas da tragédia que o azeredismo vem representando no Estado (O MATO GROSSO, 1917, p. 2).

Para compreender melhor o contexto histórico local no período delimitado, partimos do entendimento de que o regime republicano não promoveu alterações significativas no aspecto econômico, social, político e cultural, e muito menos ingressou o Brasil no processo da república imediatamente. A República também não promoveu o desfecho das questões religiosas, militares, nem tampouco o fim dos excessos cometidos pela Coroa, bem como a

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solução para a insatisfação dos fazendeiros com a abolição da escravatura. O regime republicano não foi fruto de uma antiga aspiração republicana que se manifestara desde os movimentos revolucionários ocorridos depois da Independência; nem foi a expressão do desejo libertário de segmentos desprovidos de participação política efetiva e com menor qualidade de vida ou dos anseios liberais de uma nascente classe média urbana que os militares representavam, embora esses grupos de forma alguma estivessem alheios ao processo (VIOTTI, 1994). Desta maneira, percebe-se que as alterações no campo político foram resultantes da cisão de elites que se configuraram no cenário social e político ainda no Segundo Reinado, uma vez que as tensões que movimentaram o país em direção ao novo regime tiveram origem na quebra de unidade da classe política brasileira em razão de mudanças econômicas que ocorreram a partir da metade do século XIX. Os conflitos que desencadearam o fim do regime monárquico não se deram somente entre as intensões de um Brasil moderno, progressista, desejoso de democracia, representado pelas classes médias urbanas, e um Brasil conservador, afeito as concepções políticas totalitárias, representado pelas classes oligárquicas do Império. Foi uma luta de novos atores por espaços de poder (ARRUDA, 2013). O estado de Mato Grosso no início da república vivenciou momentos de tensões e conflitos. O período foi marcado por confrontos armados, em um dos quais foi tirada a vida de um governador - neste caso, o governador era o proprietário da Usina Itaicí que administrou o estado no período de 1903 a 1906.

Além dos confrontos, havia saques a cidades (como em Santana do Parnaíba-MS), eliminação dos opositores (massacre da bacia do Garcez, em 1901), ação de bandos armados pela região (o mais conhecido foi o do Silvino Jaques), luta entre coronéis por poder, por terras e outros bens, além de conflitos armados reivindicando a divisão do Estado (em 1907, feito pelo coronel Bento Xavier). Até que em 1917 houve uma intervenção federal encerrando a estratégia da luta armada com finalidade de ascensão política e econômica (CORREA, 2006, p, 137).

Na Primeira República três conflitos ganharam destaque na história de Mato Grosso ao evidenciarem as tensões, disputas e embates por poder político no estado. São eles: o Massacre da Baía do Garcez (1901), o Movimento de 1906 e a Caetanada (1916). O Massacre da Baía do Garcez está ligado com o proprietário da Usina Itaicí. O contexto que engendrou o referido movimento teve por ocasião a eleição mato-grossense de 1898, onde o partido republicano tendo à frente Generoso Ponce indicou a candidatura a governo do estado João Felix Peixoto de Azevedo. José Murtinho não concordou com essa 69

indicação e lançou outro candidato. Isso sinalizou o primeiro desentendimento entre os Ponces e os Murtinhos, cujas famílias tinham muita representatividade na política mato- grossense. O candidato que venceu as eleições foi o representante de Generoso Ponce com longa margem de votos. No entanto, José Murtinho não conformado com o resultado, com apoio do poder federativo, organizou uma reação através da chamada Legião Campos Sales, da qual participou o usineiro Antonio Paes de Barros (Cel. Totó Paes). E esse exército civil invadiu Cuiabá e cercou a Assembleia Legislativa, pressionando-a para que fossem anuladas as eleições. A pressão funcionou e os deputados anularam o pleito e convocaram novas eleições (SIQUEIRA, 2009). O resultado da nova eleição apresentou-se como vencedor Antonio Pedro Alves de Barros, candidato apoiado por José Murtinho. Segundo Siqueira (2009), a sua administração foi marcada por disputas e violência, tendo este chegado a montar força armada com o nome de Divisão patriótica visando perseguir seus adversários políticos. Sobre o movimento sabe que:

Em outubro de 1901, esse exército paramilitar ficou sabendo da existência de um reduto oposicionista junto à Usina Conceição, cujo proprietário era João Paes de Barros, irmão de Totó Paes. Mesmo assim, a Divisão Patriótica, sob o comando desse último, invadiu a fazenda, prendeu 17 oposicionistas que seriam conduzidos de volta para Cuiabá. No meio do caminho, às margens da Baía do Garcez, entre Santo Antonio de Leverger e Cuiabá, estes presos foram mortos, com requintes de crueldade. Seus coros foram abertos e jogados na baía, para ficarem submersos, encobrindo, dessa forma, os assassinatos. O crime foi revelado um ano depois, quando as águas da Baía do Garcez secaram e as ossadas constituíram a prova. No entanto, esse ato hediondo ficou sem punição (SIQUEIRA, 2009, p. 41).

Esse episódio mostra a forma como eram resolvidos os problemas políticos naquela época. As ações de violência foram comuns e se estenderam até meados do século XX, por isso a punição era praticamente inexistente, uma vez que a própria polícia era conivente com atitudes como essa. Os grupos políticos eram temidos pela força bélica e também pelo poder simbólico que representavam através da figura dos coronéis, importantes aliados. Em 1903 Antonio Paes de Barros (Totó Paes) assumiu o governo do estado de Mato Grosso e teve como bandeira uma política de modernização do estado para torná-lo conhecido nacional e internacionalmente. Ele buscou auxílio de jornalistas, advogados e intelectuais. Naquele momento, tinha-se o entendimento de que a modernização do país seria possível se priorizassem a Política dos Governadores, e assim, ocorreu a continuidade dessa 70

política através do Presidente Rodrigues Alves. A situação não deixou de ser complexa, porque a política dos governadores fortalecia o poder central apenas com o apoio de um grupo, tendo contra si a oposição. Mas um detalhe importante a se destacar trata-se do distanciamento de Totó Paes com os Murtinhos, grupo que ajudou a elegê-lo, subestimando essa força regional, porque contava com o apoio do Presidente da República. Com isso, os Murtinhos reaproximaram-se dos Ponces, antes rivais, mas que representavam, por sua vez, a maior expressão do Partido Republicano em Mato Grosso. Essa reaproximação tinha um objetivo: derrubar Totó Paes do poder estadual e retomar a direção política do estado. Coligação foi o nome dado à união Ponce/Murtinho em 1906, com participação de Pedro Celestino Corrêa da Costa, Joaquim Azevedo e Joaquim da Costa Marques. Esse cenário já previa o que ia acontecer em 06 de julho de 1906, ou seja, o confronto e a morte de Totó Paes. Assim, de um lado estavam as forças da Coligação chefiada por Generoso Ponce, e de outro as forças governistas, tendo Totó Paes na liderança política e enquanto Governador do estado. Essas duas frentes desencadearam lutas acirradas. Cuiabá, Poconé, Cáceres e Corumbá presenciaram o terror levado por essas disputas. Em Corumbá houve uma rebelião em 16 de maio de 1906, na qual as forças oposicionistas ―destruíram o comando policial, assumindo-o para si‖ (SIQUEIRA 1990, p. 155). O objetivo era a interrupção das comunicações das cidades de Cuiabá, Corumbá e Cáceres, impedindo a circulação de informações destas cidades com o Rio de Janeiro – capital do país à época. Depois disso, o confronto seguiu-se para Cuiabá, onde forças da Coligação já contavam com aproximadamente 4.000 homens. Os dois lados organizaram vários cercos na capital. A Coligação conseguiu avançar até os pontos principais da cidade enquanto Totó Paes aguardava reforço federal, solicitado ao Presidente da República Rodrigues Alves. Considerando os avanços vitoriosos dos inimigos, Totó Paes resolveu-se retirar-se com um pequeno grupo para o Coxipó, na intenção de aguardar a chegada do reforço. Não houve rendimento por parte do Presidente de estado. Em 06 de julho de 1906, sem o reforço, o grupo governista foi descoberto pelas forças oposicionistas. Os revoltosos abriram fogo no local – fábrica de pólvora do Coxipó – ocasião em que morreu Totó Paes, encerrando o conflito. Consta no Jornal O Brasil de 1906 sobre o discurso pronunciado na Câmara dos Deputados na sessão de 18 de outubro de 1906:

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O Snr. Costa Marques – A revolução em Mato Grosso, não foi inspirada pelo desejo ou pela ambição de conquistar o poder. Não. A Revolução em Mato Grosso representou a justa defesa de um povo que se achava debaixo da mais terrível e insuportável opressão. O Coronel Antonio Paes de Barros, Snr. Presidente, fazia do seu arbítrio a lei única do seu governo. Não era naquele Estado respeitada nenhuma das garantias constitucionais, e o direito de vida; o direito da propriedade, como que já não existia no estado de Mato Grosso. Muitos crimes horrorosos foram ali perpetrados nos últimos dias daquele nefasto governo; entretanto, Snr. Presidente, nem um só dos autores desses graves delitos foi levado perante os tribunaes para soffrer as penas da lei, apezar de ser muitos deles apontados pelo clamor público (O BRASIL, 1906, p. 2).

O terceiro conflito desencadeado em Mato Grosso por questões políticas ficou conhecido como Caetanada. Esse conflito decorreu por motivo da formação de uma nova composição política entre Generoso Ponce e Pedro Celestino, fundando um novo partido com o nome de Partido da Coligação, representante, em âmbito regional, do Partido Republicano Conservador. Por divergências políticas, Generoso Ponce e Pedro Celestino se desligaram desse partido e fundaram outro com a denominação - Partido Republicano Mato-grossense (PRMT). Com esse fato, Ponce se desligou dos Murtinhos que até então eram acionistas majoritários da Companhia Mate Laranjeira. Ponce e Pedro Celestino não concordavam com os arrendamentos feitos pelo estado à Companhia. O rompimento aconteceu quando os Murtinhos solicitavam da Assembleia aprovação do arrendamento das terras ervateiras por mais 22 anos, e autorizaram nesse momento que seus proprietários estabelecessem leis internas da empresa, montando força policial própria. Ponce e Celestino discordavam dessa proposta alegando que a Companhia, pelo poder e riqueza que tinha, representava um estado dentro do estado de Mato Grosso. Esse desentendimento ocasionou na organização de exércitos civis de ambos os lados na defesa de seus interesses (SIQUEIRA, 2009). Caetano Manuel de Faria e Albuquerque foi eleito Governador do estado no ano de 1915 pelo Partido Republicano Conservador, liderado por Senador Azeredo. Assediado por integrantes do Partido Republicano Mato-grossense, opositores foram chamados pelo governador para ocupar cargos administrativos na sua gestão. Colocar membros da oposição no seu governo gerou intrigas e muita pressão sob Caetano Albuquerque, e a partir disso, como de comum, também organizou grupos armados em sua defesa. Membros do PRMT cercaram o Hotel Cosmopolita em Cuiabá, motivo que levou os membros do partido opositor a se refugiarem em Corumbá. Wenceslau Brás, Presidente da República na época, ―frente à delicada situação política de Mato Grosso e temendo que os grupos armados, de lada a lado,

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se confrontassem ainda mais, pressionou Caetano Albuquerque para que renunciasse. [...] Foi o que ocorreu‖ (SIQUEIRA, 2009, p. 43). Com a renúncia, o Bispo de Cuiabá D. Francisco de Aquino Corrêa assumiu o governo depois de muitos debates e perigo de intervenção federal, por ser considerada uma pessoa neutra e capaz de instaurar a paz e minimizar a violência entre os grupos oponentes. Com isso, manteve-se a hegemonia das oligarquias do Norte do estado. Segundo Siqueira (2009), ficou famosa a frase pronunciada por D. Aquino Corrêa à Assembleia Legislativa de Cuiabá, em 13 de maio de 1918, ao reconhecer a função pacificadora que lhe fora outorgada: ―querem parecer-me últimas labaredas do fogo ainda latente sob as cinzas de um grande incêndio que se apaga‖ (Idem, 2009, p. 43). Mesmo com a situação de conflitos, as elites mato-grossenses e a população viram o advento da República de forma otimista e as oligarquias viram uma oportunidade de ascender ao poder. A nova elite mato-grossense também tinha perfil heterogêneo: oriundos dos mais diversos ramos da economia que após 1870 se desenvolveu na província, incluiu-se militares e profissionais liberais que possuíam formação educacional variada. ―O ponto em comum é que eram, em sua maioria, cuiabanos‖ (FANAIA, 2006, p. 81). As famílias que dominaram a frente da elite política no período foram os Ponce, Corrêa da Costa, Paes de Barros e os Murtinhos. Ainda no Império, um nome que já se destacava era o de Generoso Ponce, prestigiado junto ao Partido Liberal. Enquanto que o ilustre mato-grossense Joaquim Murtinho não teve o mesmo sucesso, tentou por várias vezes ser eleito deputado por Mato Grosso e foi preterido (FARIA, 1998). A família Paes de Barros foi uma das que tiveram maior protagonismo na história de Mato Grosso e local. Esta foi uma família de fazendeiros produtores de açúcar desde a fabricação em engenhos no século XIX e depois modernizou a produção com investimentos em usinas de açúcar no século XX. Foi uma prática que passou de pai para filhos. Um dos nomes mais conhecido é do Cel. Antonio Paes de Barros, proprietário da Usina Itaicí, que ganhou destaque por ser de uma família do ramo do açúcar, e ter implantado uma das maiores indústrias no estado naquele momento, além de ter exercido a função de Presidente de estado de Mato Grosso. Boa parte da sua história e trajetória ocorreu no Rio Abaixo. De modo geral, observa-se que Santo Antonio do Rio Abaixo sentiu os reflexos do período de instabilidade que o estado de Mato Grosso enfrentava por ocasião das mudanças pretendidas com a instituição do modelo republicano. Era muito difícil o diálogo entre as elites mato-grossenses. As disputas eram aguerridas pelo domínio político no estado. Não foi

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observado alterações nos privilégios das oligarquias; mas, foi possível visualizar a circulação das elites no poder. Isso acontecia ―em detrimento da participação popular e das instituições democráticas, já que nas disputas oligárquicas eram desrespeitados os resultados de eleições e desfeito governos legalmente constituídos‖ (ARRUDA, 2015, p. 13). Arruda (2015) entende que as disputas significaram a alternância de grupos e até mesmo a divisão das elites, o que justificava a dimensão das tensões e conflitos. Assim, apreende-se que Santo Antonio do Rio Abaixo ficou conhecido na história de Mato Grosso durante o século XVIII por exercer a função de região abastecedora para zona aurífera das Minas de Cuiabá. No final do século XIX passou por uma reestruturação direcionando as atividades econômicas para produção de açúcar em escala industrial, o que provocou uma mudança no modo de vida das comunidades ribeirinhas, uma vez que estas se viram-se atreladas a uma rotina evidenciada no ritmo das máquinas, por uma extensa jornada de trabalho em troca de um retorno financeiro muito baixo. Todavia, o trabalho nas usinas de açúcar era praticamente uma das poucas possibilidades de renda naquele momento, portanto, representava um meio de sobrevivência, fato que levava as famílias do Rio Abaixo a se sujeitarem, em parte, ao modo de vida nas usinas de açúcar de Mato Grosso como veremos mais detalhadamente nas trilhas do açúcar.

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CAPÍTULO II

NAS TRILHAS DO AÇÚCAR E DA SOCIEDADE

CORONELÍSTICA

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2.1 O ciclo do açúcar em Mato Grosso

Hoje conhecida como uma cidade pacata e hospitaleira, berço do pantanal mato- grossense, Santo Antonio de Leverger tem a sua história marcada pela agricultura, pela pesca e, pelo folclore, mas foi com a introdução da cultura da cana de açúcar e sua industrialização que o município deixou seu legado na história de Mato Grosso. Esse foi um momento histórico de prosperidade para uns e pobreza para outros. Um período marcado, de um lado, por avanços compreendidos pela aquisição de equipamentos modernos para industrialização do açúcar e pelo empreendedorismo e, de outro, pela relação de subserviência representada através de práticas clientelísticas, como também pelo trabalho análogo ao escravo, além da situação de tensões e conflitos constantes. Na história das usinas de açúcar do estado, temos como destaque as usinas do Pantanal Norte, concentrava-se a maioria das usinas. Sobre o Pantanal Norte, Borges (2011) elucida que a área de pantanal situa-se na parte central da América do Sul, particularmente em três países: Brasil, Bolívia e Paraguai. No Brasil, ele está localizado nos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. A autora se detém apenas ao estudo do Pantanal Norte banhado pelos rios Cuiabá e São Lourenço. Acerca dos aspectos físicos, observa-se que:

Um fator importante para entender esta extensa área alagável diz respeito aos seus aspectos físicos peculiares, relacionados aos ciclos de cheias e de vazantes, dividido em quatro momentos: enchente (outubro a dezembro), cheia (janeiro a março), vazante (abril a junho) e estiagem (julho a setembro). Diante disso, temos de ter em mente que a paisagem pantaneira anualmente se transformava, uma vez que seu extenso território era tomado por corredores aquáticos de diversos tamanhos, que cobriam as áreas mais baixas, ao mesmo tempo em que as matas se tornavam mais fechadas (BORGES, 2011, p. 1).

Consideramos neste estudo a região do Pantanal Norte banhado pelo rio Cuiabá, especificamente a parte que corresponde às áreas ribeirinhas do município de Santo Antonio de Leverger, tendo em vista que foi a rota em que se proliferaram as usinas de açúcar. Um dado importante levantado por Borges (2011) é sobre o cultivo da cana nas margens do rio pela influência do ciclo das águas do Rio Cuiabá (enchentes, cheias, vazantes e estiagem). Esse fenômeno natural foi fundamental para que o plantio da cana prosperasse, pois esse movimento de cheias e vazantes fazia com que as terras fossem naturalmente adubadas, tornando-se férteis e favoráveis para o cultivo da cana. ―As canas usuais nesse

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período eram a caiana, a salangor, a rosa, cristalina e até a roxa, originária da Bolívia‖ (SIQUEIRA, 1997, p. 64). Com a prosperidade no cultivo da cana surgiram primeiramente os engenhos. Os engenhos primitivos existentes desde o século XVIII no estado eram construídos de madeira e sua força motriz era à base de roda hidráulica ou tocada a animal (SIQUEIRA, 1997, p. 64). Virgílio Corrêa Filho, em sua obra História de Mato Grosso14 apontou a existência de engenhos no estado desde a Capitania (período colonial). Relatou que foram criadas na região de Cuiabá 24 engenhos de aguardente e 22 de açúcar e rapadura. Mas esse cenário foi alterado com o episódio da Guerra do Paraguai. Muitos habitantes do rio Cuiabá abaixo foram recrutados e as propriedades ficaram abandonadas, o comércio também ficou estremecido (CORRÊA FILHO, 1969, p. 694). Contudo, o fim do conflito representou uma nova fase para Mato Grosso. O estado ingressou numa próspera fase comercial devido à abertura da navegação pelo rio Paraguai.

...a partir de 1880 a Freguesia de Santo Antonio do Rio Abaixo, cujos proprietários, estimulados pela navegação a vapor, intensificaram a produção do açúcar com a mecanização de seus engenhos que se tornaram os embriões das usinas de açúcar na região, no século seguinte (CORRÊA FILHO, 1969, p. 174).

A ênfase dada por Corrêa Filho para Freguesia de Santo Antonio do Abaixo se deve ao fato de que essa região transformou-se em sede das grandes usinas açucareiras do estado. Os antigos proprietários de engenhos resolveram investir em maquinarias importadas da Europa, suporte para o novo modelo de empreendimento, o industrial. Segundo Siqueira, ―Os equipamentos importados, especialmente da Inglaterra, eram movidos a vapor e foram muitos deles adquiridos através de firmas Importadoras e Exportadoras fixadas na Argentina‖ (SIQUEIRA, 1997, p. 67). Outra obra de Corrêa Filho – As indústrias de Mato Grosso15 – também destacou a supremacia do Rio Abaixo no cultivo da planta e na produção do açúcar. O autor relata que as estatísticas mostravam certa monopolização do Rio Abaixo. As outras usinas eram a Ressaca - no Vale do Paraguai nas vizinhanças de Cáceres; de Santa Fé - no município de Poconé; Santo Antonio Limitada - em Miranda; além das engenhocas em geral agrupadas às margens do Rio Cuiabá, cujas terras eram preferidas pelos plantadores de cana.

14 Obra de cunho memorialista que abarca acerca da história do estado de Mato Grosso (CORRÊA FILHO, 1969). 15 Obra que trata sobre a história das indústrias de Mato Grosso e dos principais aspectos políticos associados à temática (CORREA FILHO, 1945). 77

Sobre as indústrias de açúcar do estado, percebe-se que elas não eram apontadas como de grande porte se comparadas às usinas do Nordeste. Eram fábricas cuja produção abastecia o estado de Mato Grosso, considerando que não há registros expressivos da exportação do produto para outras unidades da federação ou para outros países (SIQUEIRA, 1997). No entanto, as usinas de açúcar representaram um empreendimento de grande porte e de muita importância para os mato-grossenses. No contexto de Mato Grosso elas se tornaram símbolos de modernização e prosperidade. As instalações não eram simplórias para o contexto de Mato Grosso. Os investimentos não foram poucos. O modo de vida não era barato, pelo contrário, as pessoas vivenciaram um momento que era de muito glamour para uns e de inópia para outros. O emblemático Coronel era o proprietário da usina e usando da representação do título de coronel criava suas próprias leis, determinando ações e fazendo cumpri-las muitas vezes sob o peso da violência. Sua família, esposa e filhos revessavam a estadia entre a usina e a cidade devido à escolarização dos filhos. Tinham uma vida de fartura e alto padrão. Os funcionários das usinas eram trabalhadores rurais, livres e pobres que moravam na própria usina ou arranchados, ou ainda residiam em suas imediações16. Lenine Póvoas em seu livro O Ciclo do açúcar e a Política de Mato Grosso17 discorre sobre as usinas de açúcar do Rio Abaixo, sua produção, como também fala das características de cada uma das usinas, destacando, também, a presença dos usineiros na política mato- grossense. Esse trabalho apresenta uma visão geral acerca das usinas do Rio Abaixo. Póvoas (2000) desenvolveu o estudo mais completo sobre a história das usinas de Mato Grosso, embora ele mesmo considere que não foi possível realizar um trabalho mais aprofundado. Contudo, entende-se que ele elaborou a obra sob a ótica dos proprietários, familiares e funcionários de cargos mais elevados e próximos aos donos; e que eram, de certa forma, pessoas que também faziam parte das relações de convivência do autor. Para Póvoas (2000) foi tão marcante a influência econômica, social e política dessa atividade na vida do estado que pode-se dizer que Mato Grosso viveu o ciclo do açúcar posterior ao ciclo do ouro. Assim, ―a indústria do açúcar gerou uma elite que liderou a vida social, ocupando os espaços e se projetando na história econômica e política mato-grossense‖ (PÓVOAS, 2000, p. 18).

16 A caracterização dos sujeitos especificada encontra-se nos trabalhos de Siqueira (1990, p. 36); Ana Carolina da Silva Borges (2011, p. 5) e Lenine Póvoas (2000, p. 12). 17 O autor considera Ciclo do açúcar por configurar-se o modelo de produção industrial que surgiu com intensidade no final do século XIX e sobreviveu aproximadamente até a década de 30 em Mato Grosso (PÓVOAS, 2000). 78

O número de usinas no estado em 1914 era:

Seis usinas a vapor, de sistema duplo e tríplice efeito, regularmente montadas, cinco à margem do rio Cuiabá a saber – São Gonçalo, Conceição, Aricá, Flexas e Itaicí – e uma a margem do rio Paraguai, a da Ressaca que nos pertence. Em quase todas elas existem, além dos aparelhos modernos para o fabrico do açúcar, alambiques contínuos e aperfeiçoados para a destilação do álcool e da aguardente. A produção média diária de cada uma dessas usinas varia entre 2.000 a 5.000 quilogramas de açúcar e média da produção total, por safra, monta em um milhão de quilogramas ou 1.000 toneladas [...] (PÓVOAS, 2000, p. 22).

No quadro abaixo constam as usinas em funcionamento com as devidas localizaçôes:

Quadro 6 - Usinas de Mato Grosso em 1914

Nº USINAS LOCALIZAÇÃO/RIO 1 São Gonçalo Rio Cuiabá 2 Conceição Rio Cuiabá 3 Aricá Rio Cuiabá 4 Flexas Rio Cuiabá 5 Itaicí Rio Cuiabá 6 Ressaca Rio Paraguai Fonte: PÓVOAS, 2000, p. 22.

Na década de vinte, havia nove usinas instaladas em Santo Antonio do Rio Abaixo, dentre elas, três funcionavam apenas como destilarias de álcool e aguardente:

Quadro 7 - Usinas localizadas em Santo Antonio do Rio Abaixo

Nº USINAS DESTILARIA 1 São Sebastião 2 Maravilha 3 Aricá 4 Conceição 5 Itaicí 6 Flexas 7 São Gonçalo 8 São Miguel 9 Tamandaré Fonte: PÓVOAS, 2000, p. 22.

Essas usinas foram instaladas nas margens do Rio Cuiabá numa rota que tinha como referência o percurso descendo o Rio, começando pela capital com a usina de São Gonçalo chegando até a Usina de Flexas em Melgaço, conforme figura abaixo

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Figura 6 - Rota das usinas

Fonte: PÓVOAS, 2000, p. 20.

Segue a relação das principais usinas de açúcar instaladas em Mato Grosso, considerando a localização, período de fundação, produtos e os primeiros proprietários:

Quadro 8 - Usinas existentes em Mato Grosso. Organizado pela pesquisadora

Usina Localização Fundação Produtos Proprietários Aricá Rio Cuiabá/Santo 1896 Açúcar/aguardente/álcool Maria Marques Antonio de Leveger Fontes Conceição Rio Cuiabá Santo 1888 Açúcar/aguardente Joaquim José 80

Antonio de Leveger Paes de Barros Flexas Rio Cuiabá/Santo 1884 Açúcar/aguardente/álcool Cesário Correa da Antonio de Leveger Costa Itaicí Rio Cuiabá/ Santo 1897 Açúcar/aguardente/álcool Antonio Paes de Antonio de Leveger Barros Maravilha Rio Cuiabá 1928 Açúcar/aguardente/álcool Alberto Garcia e Palmiro Paes de Barros Ressaca Rio Paraguai/Cáceres 1902 Açúcar/aguardente/álcool Francisco Villanova São Rio Cuiabá/Cuiabá 1914 Açúcar/Aguardente Gonçalo São Miguel Rio Cuiabá/ Santo Aguardente/álcool Antonio de Leveger São Rio Cuiabá/ Santo Aguardente/álcool Sebastião Antonio de Leveger Tamandaré Rio Cuiabá/ Santo 1818 Aguardente/álcool Antonio Joaquim Antonio de Leveger Moreira Serra Fonte: SIQUEIRA ET AL, 1990, p. 42.

O quadro mostra que a maioria das usinas em funcionamento em Mato Grosso no final do século XIX e começo do XX foi instalada em Santo Antonio do Rio Abaixo, nas margens do Rio Cuiabá. A Usina Ressaca foi a única implantada em outra região, no caso, em Cáceres, no Rio Paraguai. No tempo presente ainda é possível avistar nas margens do rio Cuiabá as instalações das usinas de açúcar, algumas que ainda resistem fortemente a sua temporalidade, outras que de alguma forma, resistem também através das suas ruínas, porque certamente são todas sobreviventes. Sobreviventes nos manuscritos, nas narrativas, no imaginário popular e ao tempo, enfim, sobrevivem na memória de um povo permitindo (re)significar os encantos e desencantos das trajetórias de vidas marcadas pela cultura da sociedade coronelística. Essas memórias possibilitam repensar os espaços que serviram de cenário para uma das formas produtivas mais intensas da história de Mato Grosso com base no que podemos visualizar no presente. Estas foram intensas porque deixaram legados, marcaram vidas, fabricaram um cotidiano de práticas diversas que produziram culturas. Deste modo, é possível adentrar no universo das usinas de açúcar, começando pela composição do espaço. Casa das maquinas, Casa de vivenda, Casas dos Colonos, escolas, armazéns, depósitos, serrarias e moendas. Esses são os espaços demarcados no universo das usinas que ajudaram a fabricar o modo de vida da população ribeirinha que vivenciou o processo da industrialização da cana- de-açúcar e viu-se inserida nele.

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A arquitetura mais proeminente dentro da usina era a Casa das máquinas, denominação referente ao local onde era desenvolvida a maior parte do processo produtivo. A Casa de vivenda era a residência do proprietário da usina e de seus familiares. Para os trabalhadores foram reservadas pequenas casas geminadas, conhecidas como Casas dos colonos (SIQUEIRA, 1997, p. 71-72).

Essas instalações fizeram com que os proprietários conseguissem manter, na maioria das vezes, uma conjuntura que levava os funcionários e moradores a permanecerem na usina, e assim garantiam o processo produtivo. Cada usina tinha a sua identidade. Elas não eram padronizadas. Apesar de ser comum que em todas elas houvesse quase as mesmas instalações, elas se diferenciavam na organização e nas práticas. Siqueira (1997) aponta informações importantes referentes às usinas de açúcar do Rio Abaixo, relacionadas à localização, área de extensão, produção e estrutura. São informações pontuais que possibilitam ter uma ideia da dimensão de cada uma delas.

2.1.1 Usina Flexas

O primeiro dos grandes estabelecimentos produtores de açúcar a ser instalado foi a Usina Flexas, criada em 1884. Situada à margem direita do Rio Cuiabá sentido Melgaço, possuía uma área correspondente a 18.700 hectares, acrescentados de mais 2 hectares de terras vizinhas adquiridas de Juca da Ilha (PÓVOAS, 2000).

Figura 7 - Casa de Máquinas Usina Flexas

Fonte: PÓVOAS, 2000, p. 30. 82

Figura 8 - Proprietários da Usina Flechas

Fonte: PÓVOAS, 2000, p. 72.

Esta usina foi fundada pelo Cel. Cesário Correia da Costa, e mais tarde foi vendida para João Pedro de Arruda, fazendeiro da região de Cuiabá, em sociedade com a mãe do mesmo e como cunhado, Antonio Paes de Barros, pai do médico Agrícola Paes de Barros. A usina Flexas produzia uma média de 4.000 mil sacas de 60 kl de açúcar por safra, 1.000 litros de álcool e aguardente. A mão de obra contava com aproximadamente 120 homens no período da safra e de 50 a 60 homens no período da entressafra. Nessa usina havia a casa de vivenda, casa da balança, casa das Máquinas, depósitos, Armazém, oficinas, casa de trabalhadores casados, casa de trabalhadores solteiros (repúblicas), ranchos de palha para agregados, e padaria. Havia também empregados especializados, a saber: 1 encarregado geral, 1 guarda-livros, 1 encarregado do armazém, 1 encarregado do depósito, 1 mecânico, 1 fazendeiro e 1 padeiro (SIQUEIRA, 1997). A comercialização era feita em Cuiabá e Corumbá. Em 1910 a sociedade foi desfeita, de forma que João Pedro de Arruda tornou-se único dono. Em 1942 a usina foi vendida para o filho Palmiro Ponce de Arruda e, em 1945, este a transferiu para uma sociedade composta por Fause Scaff Gattass e Salim Moisés Nadaf, e, por fim, a propriedade foi vendida a um grupo de empresários Paulistas.

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2.1.2 Usina Aricá

Localizada à margem direita do Rio Cuiabá, abaixo da localidade da Barra do Aricá, encontra-se a Usina Aricá fundada em 1896: ―Com 4.000 hectares de terras, boas para o plantio da cana. Era uma das usinas de maior produção no estado, tanto de açúcar como de álcool e aguardente‖ (PÓVOAS, 2000, p. 33).

Figura 9 - Usina Aricá

Fonte: Secretaria Municipal de Cultura de santo Antonio de Leverger.

A origem dos proprietários desta usina remonta ao período colonial, conforme uma sequência cronológica deixada por Américo Pinto Brasil (SIQUEIRA, 1997), que informa que inicialmente a propriedade pertenceu a Dona Maria Marques de Fontes, mãe do Cel. José Marques de Fontes (apelidado de sinhozinho) que era também político – deputado e Presidente da Assembléia Constituinte, eleito no pleito de 3 de janeiro de 1891, que posteriormente foi anulado. A referida proprietária foi a única mulher a administrar uma usina de açúcar em Mato Grosso nesse período. O Sr. Américo Pinto Brasil deixou registrado o que ele considera enquanto perfil dessa proprietária: ―Senhora de uma inteligência organizadora, a par de uma energia máscula, promovendo vários melhoramentos de proveitosos alcances atinentes às novas modalidades exigidas pela evolução da usina açucareira‖ (BRASIL, 1943, p. 151 apud SIQUEIRA, 1997, p. 78).

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Em 1920, a referida usina foi vendida para o Cel. Francisco Pinto de Oliveira e logo depois para o seu sogro Cel. Virgínio Nunes Ferraz, isto é, o Cel. Vivi, que a explorou por muitos anos. A maquinaria foi adquirida pelo Cel. Antonio Manuel da Silva Fontes, vinda da cidade de Campos (RJ) da Firma F. E. M Torres & Cia, pelo Cel. José Marques de Fontes, em 23 de julho de 1835. Esta compra objetivava organizar uma sociedade que não chegou a se concretizar. Quanto à mão de obra, consta que era de aproximadamente 80 a 100 empregados por ocasião da safra. A estrutura foi montada com 70 casas de moradia para funcionários efetivos e eventuais. A produção era comercializada na Praça de Cuiabá.

2.1.3 Usina Conceição

A usna Conceição localizava-se à margem direita do rio Cuiabá, pouco acima do porto da cidade de Santo Antonio de Leverger. Foi fundada em 1888. O primeiro proprietário foi o Comendador Joaquim José Paes de Barros, pai de Antonio Paes de Barros (o Totó Paes, fundador da Usina Itaicí) e avô de Palmiro Paes de Barros que construiu a Usina Maravilha. Com o falecimento do Comendador, a direção passou aos seus filhos, e, mais tarde, ao Cel. João Paes de Barros (irmão de Totó Paes)18.

Figura 10 - Usina Conceição

Fonte: PÓVOAS, 2000, p. 23.

18 Cf. PÓVOAS, 2000, p. 23-24. 85

Essa usina possuía uma área de 14.000 hectares, equivalente a sete sesmarias. A sede da usina foi construída em um terreno elevado devido às enchentes. O Porto estava localizado numa curva do rio Cuiabá, o qual contava com razoável profundidade para receber embarcações. Os maquinários foram importados da Inglaterra e a Produção aproximava-se de 14 a 15 mil arrobas de açúcar por safra e 120 a 140 mil litros de álcool e aguardente. O número de empregados geralmente era de 150 homens durante a safra. A estrutura foi montada com base nas seguintes instalações: casa de vivenda, casa da balança, casa das máquinas, depósitos, armazém, rancho. Onze anos depois foi criada a Usina Itaicí. A pedra fundamental foi lançada em 11 de junho de 1896. Com o aceleramento das obras, em 1º de setembro de 1897 ocorreu a sua inauguração. A Usina Itaicí teve como primeiro proprietário o Cel. Antonio Paes de Barros. O Cel. Totó Paes chegou a exercer a função de Presidente de estado de Mato Grosso no período de 1903 a 1906.

2.1.4 Usina Itaicí

Com base na tradição de família no ramo da produção de açúcar, o Cel. Totó Paes construiu um empreendimento considerado bastante moderno para época. Para isso, ―dirigiu- se à República da Argentina à procura de conhecimento técnico e auxílio financeiro que lhe permitisse a ousada iniciativa‖ (PÓVOAS, 2010, p. 26). Nesta viagem, o proprietário conseguiu fechar negócio com o alemão Otto Franke, o qual lhe ofereceu o financiamento necessário ao empreendimento através da sua firma com o objetivo de que o pagamento fosse realizado com a produção da indústria, ou seja, em açúcar e álcool. Esse financiamento propiciou a construção da Usina Itaicí.

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Figura 11 - Usina Itaicí

Fonte: AYALA; SIMON, [1914] 2011, p. 279.

Segundo Póvoas (2010), a usina possuía caldeiras de tríplice efeito a vácuo que eram acionadas por motores com força de 330 cavalos, de forma que em 1913 produzia 225 toneladas de açúcar e 5.000 canadas de aguardente. O autor destaca que a Usina Itaicí chegou a ocupar a quarta posição no país na produção de açúcar.

Cel. Totó Paes criou uma estrutura que continha funcionários de alta administração, vinte empregados técnicos e centenas de trabalhadores. Possuía, além do edifício da fábrica com uma chaminé de 51 metros de altura, mais sessenta casas, das quais quarenta e cinco eram residências de trabalhadores (PÓVOAS, 2010, p. 26-27).

Após a inauguração, o grupo Almeida & Cia. estabelecido em Cuiabá, em conformidade com o proprietário, indenizou a firma Otto Franke correspondente ao valor do financiamento, tornando-se assim a única credora. Com a morte de Cel. Totó Paes em 1906, a propriedade da usina passou para o grupo Almeida & Cia.

2.1.5 Usina Maravilha

Depois da Usina Itaicí, foi criada a Usina Maravilha em 1928, localizada às margens do Rio Cuiabá, a qual começou as atividades como destilaria de aguardente. Esta era de propriedade de Alberto Garcia que se uniu em sociedade com Palmiro Paes de Barros, dando 87

início à construção da usina. Mais tarde, Palmiro Paes de Barros tornou-se o único proprietário.

A Usina Maravilha possuía Casa de vivenda, Casa da balança, Casa das Máquinas, depósitos, Armazém, 20 casas para os trabalhadores fixos. A mão de obra no período de safra correspondia a 120 homens, entre funcionários graduados, operários e camaradas. A comercialização do produto era realizada na Praça de Cuiabá. Nessa usina, o Sr. Bertier de Carvalho trabalhou por quase 20 anos como encarregado geral, este era braço direito do Cel. (PÓVOAS, 2000, p. 29).

O proprietário Palmiro Paes de Barros explorou a atividade canavieira e a produção de açúcar até o ano de 1961, depois a usina foi vendida para um grupo de fazendeiros mineiros da cidade de Araguari (MG), liderado por Walter Nader que após dois anos de safra encerrou as atividades da usina (SIQUEIRA, 1997). Atualmente a usina encontra-se deteriorada pela ação do tempo. Figura 12 - Casa de Máquinas Usina Maravilha

Fonte: PÓVOAS, 2000, p. 28

A necessidade de reportar a cada uma das principais usinas de açúcar do Rio Abaixo deu-se pelo fato de mostrar, mesmo que de modo geral, o perfil de cada uma delas visando dar visibilidade ao que tinham em comum e em dissonância. Como podemos perceber, elas tinham em comum as instalações, a gestão - que era comandada por coronéis, o quadro de funcionários, mas se diferenciavam no tratamento e no investimento. Foi com base nessas especificidades que optamos pela Usina Itaicí, que nesses quesitos se destacou por ser

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considerada a de maior porte, a mais moderna do estado, mais produtiva, contendo o espaço industrial mais influente, enfim, pela representação da usina e de seu proprietário. A escolha também foi feita em virtude do modo de vida configurado nos moldes da sociedade coronelística, o qual envolvia tratamentos diferenciados, no qual se misturavam atitudes hostis e de sociabilidades, que nos chamou a atenção enquanto importantes elementos de pesquisa para pensar na formação das pessoas daquela comunidade e na educação fabricada nesse contexto. Feita a exploração de caráter geral, voltamos o olhar para alguns fatores mais específicos que dão indícios da cultura produzida nas usinas de açúcar, que por sua vez sinalizam discursos e condutas próprios das sociedades coronelistas e de sua dimensão educativa. Algumas representações legitimadas acerca das usinas de açúcar do Rio Abaixo dizem respeito à ideia de terem sido as mais produtivas do estado, as mais modernas, e também, as mais violentas nas relações de trabalho e convivência, além da exploração aplicada à mão de obra. Com base nessas pontuações apontamos através de pesquisas existentes e de jornais, os olhares plurais acerca das usinas de açúcar, com destaque para os depoimentos de ex- funcionários e ex-moradores das usinas e das notícias presentes nos jornais mato-grossenses, utilizados também como instrumento de denúncia de práticas de maus tratos exercidos pelo poder de mando dos coronéis. A tese de Gonçalves (2011) trata sobre a memória subterrânea das usinas de açúcar: Aricá, Conceição, Flexas e Maravilha, todas localizadas no município de Santo Antonio de Leverger, as quais ajudaram a compor a rota das usinas de açúcar existentes no estado. O estudo mostra a construção da memória das usinas através do ponto de vista dos trabalhadores, distanciando da visão mais tradicional que predominava na versão histórica. A autora pontua que o silêncio da memória coletiva imposto pela historiografia oficial tanto no que se refere à vistoria realizada nas usinas Aricá e Conceição, quanto no que diz respeito à continuidade das relações de trabalho escravo nessas e nas demais usinas, é rompido por meio dos depoimentos dos ex-trabalhadores e dos ex-moradores das usinas. Para ela, esses atores fazem imergir ―a voz dos vencidos cuja história foi sepultada pela historiografia tradicional‖ (GONÇALVES, 2011, p. 16). Utilizando a metodologia da memória oral, a autora registrou uma série de depoimentos com ex-trabalhadores e ex-moradores das usinas de açúcar. As narrativas

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lançadas por eles mostram sob outra perspectiva as vivências diárias, as experiências, as convivências sob as ordens do coronel. Coronel este que ora era temido e odiado, ora também era admirado pela personificação de um chefe que quando se aproximava de forma um pouco mais gentil, mudava a representação que o vinculava à hostilidade. Nas lembranças dos depoentes apreende-se que o cotidiano não existia sem a presença do coronel. Era comum que se reportassem à pessoa do coronel e suas ações, considerando como ele comandava a usina e a vida das pessoas inseridas nesse contexto. A leitura que se faz desses depoimentos é que os trabalhadores eram tratados de forma variada, ou seja, ora eram tratados como coisas/objetos, ora eram tratados gentilmente, às vezes até como membros da família, mas, sobretudo, na visão do proprietário, apreendemos que os trabalhadores acima de tudo eram indispensáveis como mão de obra na produção do açúcar e nas articulações políticas, onde conseguir o voto de cada trabalhador era muito importante para a manutenção do seu poder político. A maioria dos depoentes retratou o lado mais cruel dos coronéis do açúcar, mostrando uma versão sobre a vida no interior das usinas. Segundo os depoentes identificados na pesquisa como (A, F, Q e W):

Ele [coronel] falava: nunca mandei matar ninguém, mas, surra eu mandei dar, isso ele contava dar surra. [...] Batia, batia, ele batia, as pessoas de lá falavam, (...) a senhora não fica com medo de seu Palmyro bater na senhora como bateu no (cita o nome)? Ele não é besta, eu tinha um canivetinho pequeno no bolso do vestido e mostrava para ele, ele só ficava me espiando. [...] Eu nasci no tempo que o coronel João Pedro de Arruda, no tempo que ele era o dono de lá, lá era escravidão. [...] Naquele tempo a dona princesa Isabel deu a liberdade para o povo do Brasil, mas só no papel, positivo mesmo todo mundo ficou como escravo, não é, ainda apanhava (acentuou bem a palavra apanhava), aí depois que Getúlio Vargas chegou, acabou com tudo isso. [...] Naquele do tempo do coronelismo ele era o coronel Palmyro, rico e bravo (GONÇALVES, 2011, p. 56).

Os depoimentos indicam que os coronéis do açúcar agiam ainda com a mentalidade dos senhores de engenho. Não por acaso, pois não podemos ignorar que muitos deles descendiam dos mesmos. Essas práticas apontadas nos depoimentos eram comuns nos engenhos como o ato de castigar, punir, aprisionar ao tronco. A continuidade dessas práticas aos trabalhadores livres insere-se a um processo histórico que não foi interrompido pelas determinações legais, ao contrário, atravessaram as

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fronteiras da demarcação do tempo, uma vez que o trabalho análogo ao escravo resistiu a Lei da abolição e aos princípios republicanos. A punição foi tema recorrente nos depoimentos. Ela não decorria somente nas relações de trabalho. As lembranças trazem a tona que os castigos eram aplicados no dia a dia, pelo simples fato dos proprietários questionarem atitudes corriqueiras como um ato de descuido ao tirar leite da vaca, uma mordida de cachorro, falhar um dia de serviço, entre outros. A exemplo disso, observa-se no relato de um ex-morador da Usina Flexas que ainda criança tinha como incumbência tirar leite das vacas especiais para servir a família do coronel.

Então uma vaca chamada Natália, ela me deu um coice na canela, cortou minha canela, eu não vi nem o coronel nem o preto que batia, chamava (cita o nome), ainda estava escuro, eu não vi. Quando acabei de tirar o leite às 10 horas, levei aquele balde de leite para a cozinha, seu (cita o nome) me disse: você vai apanhar, falei por que? Você bateu na vaca, o preto e o coronel viram, estão esperando você, eu tinha treze anos. O coronel falou: vem aqui para nós conversarmos. Fui conversar com o coronel e o batedor (cita o nome) já estava na porta só esperando ordem dele. Quando eu entrei, vi que tinha duas palmatórias grandes, ajoelhei, o coronel falou: porque você bateu na minha vaca? Eu falei: bati porque ela cortou minha perna, aí ele falou: então você vai apanhar. Falei pode bater, estiquei a mão, pá, pá, pá, pá, quando completou uma dúzia aqui tampou tudo [...], inchou tudo, quase quebrou todas as juntas, era aquela dor que... aí mandou eu ir embora, cortou a boia (alimentação). (GONÇALVES, 2011, p. 61-62).

Depois desse relato o depoente informa que quando o coronel ordenou que fosse embora significou que nenhuma família podia acolhê-lo, deste modo, acrescentou o depoente, ―fui para o mato, não tinha onde ficar, fui para o mato como se fosse um bicho‖ (GONÇALVES, 2011, p. 62). No entanto, a ordem de suspender a alimentação não foi cumprida pelos empregados por uma questão de transgressão à ordem, ―seu [...] que servia a mesa da casa grande, botava sempre uns pedaços de carne no bolso e de noite [...], ele ia lá onde eu estava e eu comia, se o coronel viesse a saber eu apanhava de novo e seu [...] também‖ (Depoente Q) (GONÇALVES, 2011, p. 62). Isso mostra que para as estratégias dos coronéis também haviam as táticas dos empregados. A preservação da ordem do coronel não era unanime. Como dizia Certeau ―gestos hábeis do fraco na ordem estabelecida pelo forte, arte de dar golpe no campo do outro, astúcia de caçadores‖ (1994, p. 104). Os atos de maus tratos eram denunciados por meio da imprensa escrita. São inúmeras notícias que registram com riqueza de detalhes as barbáries ocorridas nas usinas de açúcar do

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Rio Abaixo. A saber, o Jornal A Luz (órgão independente) de 22 de agosto de 1924, trouxe uma reportagem assinada por Agrícola P. B.19 sobre a escravidão nas usinas de açúcar:

Rio Abaixo, onde passei os mais belos dias de ezistencia, meus dez primeiros anos, minha infância!... Sim, é lá nesse rico espaço de Mato Grosso que se passa a mais bárbara das escravidões. É lá que o camarada labuta mais de 12 horas no dia, comendo pouco, ganhando quase nada, comprando tudo por uma exorbitância e tendo ainda por paga, o tronco, o pau, a palmatória. (A LUZ, 1924, p. 1).

O Sr. Agrícola Paes de Barros aponta um lado menos otimista da história das usinas de Mato Grosso, comentando sobre as atrocidades cometidas em nome da modernização e do enriquecimento a qualquer custo. Palavras estas que denunciam práticas de castigos, torturas, maus-tratos e violência. Do mesmo modo, o jornal A Luz de 05 de setembro de 1924 publica uma carta de uma pessoa identificada como Ignotus (desconhecido), escrita em Santo Antonio do Rio Abaixo no dia 30 de agosto do mesmo ano. Essa carta denuncia uma versão do que procedia na internalidade da Usina Conceição, que, segundo o escritor, leva impropriamente o nome da ―mãe da Virgem‖. O autor da carta relatou que percorreu o estabelecimento onde as pessoas derramavam sangue e lágrimas. ―Fui, vi e derramei amargas lágrimas‖ (A LUZ, 1924, p. 2). O autor da denúncia diz ter entrado no calabouço onde estavam dois presos, um deitado no chão com as pernas [ilegível], [...] ―pocilga onde os carrapatos e outras fedentinas são os companheiros inseparáveis destes miseráveis‖ (A LUZ, 1924, p. 2). Ignotus discorre também sobre uma notícia de um artigo que leu num jornal sobre o Santo Antonio do Rio Abaixo, o qual relata que os filhos desses camaradas nascem devendo e desde meninos experimentam a influência do álcool. Ele ainda acrescentou, ―nascem escravos, morrem escravos sem experimentar a liberdade‖ (A LUZ, 1924, p. 2). A respeito da mulher, consta na carta que ela é companheira inseparável do homem que dizem ser ―a parte fraca subjugada e como qualquer objeto vil, é mais ainda alcoolizada e obrigada a um trabalho superior as suas forças. Elas trabalham na carpição, no corte da cana e ainda em atravessar a mesma em barcos de uma usina para outra‖ (A LUZ, 1924, p. 2).

19 Agrícola Paes de Barros, falecido em 1969, era um médico humanista e atendia de graça a população carente de Mato Grosso. Além disso, fundou vários jornais em Cuiabá - A Luz, O Fifó, A Plebe e Brasil Oeste. Disponível em: http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/1997/11/04/julio-campos-homenageia-agricola- paes-de-barros. Acessado em 30 de setembro de 2017. 92

Para o denunciante esses procedimentos apagaram todo o sentimento de humanidade. Ignotus relatou relatou que nasceram sem ele, e que talvez morrerão sem o mesmo, se o grito de liberdade não ecoar na horrível senzala. Esta carta foi destinada ao que parece ser o editor do jornal que tem como codinome Zelito. Por outro lado, nem todas as memórias apontam apenas para a representação mais cruel dos proprietários e da vida nas usinas, como podemos observar através do relato da Senhora Maria de Arruda Muller, publicado no livro de Maria Manuela Renha de Novis Neves (2001). Lembramos que Maria Muller fala do lugar da elite mato-grossense e enquanto filha do usineiro da Usina Flexas. A sua versão acerca do modo de vida nas usinas de açúcar vai de encontro com a versão anterior referente aplicação de maus tratos. Maria Muller relata que:

Eu posso dar a ideia a você de como era a vida do usineiro. Eu sou filha de usineiro (Usina Flexas). Falavam muito que os usineiros maltratavam os empregados, os trabalhadores. Dizem que mesmo depois da abolição da escravatura, os trabalhadores ainda viviam em regime de escravidão. Naquele tempo não havia meios para trazer os filhos dos escravos para Cuiabá. Mas havia aqueles que se apegavam aos senhores, e mesmo livres, não queriam abandoná-los. Criavam-se laços de amizade muito fortes, coisa que hoje dificilmente ainda se vê (NEVES, 2001, p. 243).

As versões plurais demonstram que as memórias são construídas a partir de um lugar, uma vez que os registros são lançados conforme seus sentimentos, sensibilidades, sua posição social, suas práticas, enfim, e partem de um conjunto de fatores que possibilitam analisar de vários ângulos um determinado objeto. Aqui as usinas foram abordadas através da historiografia que nos dá uma visão geral da criação e funcionamento das mesmas e argumenta sobre a sua representatividade no cenário econômico e político no estado de Mato Grosso. Pode-se observar essa construção através dos relatos apresentados na pesquisa de Gonçalves (2011), no qual visualizamos o modo de vida nas usinas sob a ótica dos trabalhadores que apresentaram uma rotina exaustiva de trabalho e de castigos, assuntos também abordados nos jornais mato-grossenses dos órgãos independentes, uma vez que eram eles que publicavam as denúncias de maus tratos ocorridas nas usinas. Também se fez notar os depoimentos em defesa da causa dos coronéis usineiros, ressaltando os laços criados entre patrões e empregados. A nossa intenção é dar visibilidade às mais variadas formas de entendimento do contexto das usinas de açúcar do Rio Abaixo, cujo momento histórico permite apontar discursos, conflitos, espaços e práticas como elementos importantes para reflexão do universo 93

das usinas, em especial, da Usina Itaicí, a partir de uma proposta de análise da sua dimensão educativa. Essas memórias reportam a uma trajetória que começa a ser estremecida a partir de 1930. A historiografia de Mato Grosso registra que a partir desse ano, o poder político e econômico dos coronéis passou por uma intervenção por parte de Mena Gonçalves - interventor federal no estado, o qual agiu com ações repressoras sobre os grandes proprietários, principalmente, os coronéis do açúcar. Essas ações foram direcionadas para o combate ao trabalho semiescravo nas fazendas e nas usinas (CORRÊA, 2009), embora não se pode ignorar que também envolviam questões fortemente políticas e disputa pelo poder. Porém, Gonçalves (2011) aponta que os depoimentos dos ex-trabalhadores das usinas mostraram que apesar de ter ocorrido uma série de ações contra os coronéis do açúcar, combatendo o modo de trabalho nas usinas e a política exercida pelos proprietários, os depoentes relataram que não houve um rompimento imediato da cultura coronelista mesmo com as intervenções. Inclusive, a autora destaca que há registro de que a intervenção não ocorreu em todas as usinas e não enfrentou todos os coronéis.

O Interventor Federal Cel. Antonio Mena Gonçalves, em 1931, iniciou uma campanha contra o trabalho escravo nas usinas nortistas. Com o auxílio de uma força militar invadiu a Usina Conceição, prendendo seu proprietário, o coronel João Celestino Corrêa Cardozo, encontrando nessa fazenda ―um tronco em que eram presas suas vítimas‖ ocorrendo o mesmo na Usina Aricá de Virgílio Nunes Ferraz. A intervenção federal no estado, após a revolução de 1930, em contraposição à realidade mato-grossense, esboçava uma tentativa de fortalecimento do estado. As humilhações impostas pelo Cel. Antonino aos velhos coronéis, muitos deles inclusive sendo amarrados em troncos, significava a presença e a força do estado nos feudos coronelistas (CORRÊA, 2009, p. 38).

Desta forma, outras usinas importantes ficaram de fora dessa vistoria como Flexas, Itaicí e Maravilha. Essa atitude demonstra parcialidade, levando a entender que o interventor federal fez escolhas. Optou por bater de frente com determinado grupo de coronéis usineiros e outros não. Esta ação pode estar ligada ao fato de que o contexto político prevaleceu sobre a questão da gestão, ou seja, as questões de rivalidades entre os próprios coronéis. Nota-se, também, o fato de que os coronéis usineiros vistoriados eram opositores ao regime político no país, o que levou a inspeção a ocorrer de forma pretenciosa (GONÇALVES, 2011). Lenine Póvoas (2010) também se reportou ao período sinalizando que a revolução de 1930 não foi fator determinante para interromper o prestígio dos usineiros. Segundo o autor, o gesto de ―libertar todos os camaradas das usinas, enchendo lanchas e transportando-os para 94

Cuiabá, em cujas ruas ficaram vagando, sem ocupação, para depois voluntariamente retornarem às suas antigas moradas, não abalou a força política dos coronéis‖ (POVÓAS, 2010. p. 76). Seja pela ótica dos usineiros, das memórias dos depoentes (ex-trabalhadores das usinas de açúcar), seja pela do interventor, observa-se que o Interventor Mena Gonçalves foi reconhecido como o gestor que enfrentou os usineiros e coronéis do açúcar. Embora ele tivesse direcionado a sua gestão conforme os princípios da Revolução, o de combater as oligarquias mato-grossenses, isso não se concretizou de imediato, considerando que o poder político do estado continuou por alguns anos sob o comando dos coronéis, porém, não com a mesma representatividade. Observa-se que a partir da década de 40 e 50 foi tornando-se mais perceptível o encerramento das atividades nas usinas açucareiras.

2.2 Os atores e seu papel social

Um dos conceitos mais centrais na sociologia é o de “papel social”, definido com base nos padrões ou normas de comportamentos que se espera daquele que ocupa determinada posição na estrutura social. Peter Burke (2002, p. 70)

O entendimento de que o papel social tem como base os padrões ou normas de comportamentos possibilita ampliar e tencionar as evidências históricas que dispomos acerca das representações dos atores e seu papel social na rotina da Usina Itaicí. Nesse ponto, a história dos coronéis do açúcar, em particular, do Cel. Totó Paes, e dos trabalhadores observada em registros memorialísticos, nos jornais e na historiografia mato-grossense é relevante no sentido do que pode ter sido a experiência desses atores ao serem inseridos no ritmo de vida voltado para o trabalho em escala industrial, que sem dúvida provocou uma adequação dessa sociedade a um espaço que foi reformulado em função das máquinas, a um novo patrão, a nova rotina de trabalho e a outros modos de ver a realidade e a outras maneiras de fazer dar certo a vida imersa no universo das usinas de açúcar de Mato Grosso. O cenário histórico-social e cultural fabricado no contexto das sociedades coronelísticas, no nosso entendimento, tem a ver com o que Gilberto Freyre (2003) observou em Casa Grande & Senzala sobre a formação do Brasil, enfatizando os seus atores e suas formas íntimas: Senhores de Engenho, autoritários e absolutos; Sinhás passivas, submissas, entregues ao espaço do lar e da igreja; Sinhozinhos entusiasmados com as mocinhas;

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Sinhazinhas virtuosas e obedientes; e Escravos domésticos que exerciam diversas funções ligadas à intimidade e ao cotidiano da casa-grande, a música, o canto, a culinária, e que conviviam com as famílias patriarcais como cúmplices, companheiros e confidentes. Neste cenário múltiplo no sentido social, desenvolveram-se relações político-econômicas, sociais, e religiosas resultantes dos encontros impetuosos e ao mesmo tempo confraternizantes entre a Casa-Grande e a Senzala. O livro Casa-Grande & Senzala inspira pela multiplicidade, descrição e análise pormenorizada de temas sociais que muito nos interessa. Freyre (2003) construiu sua narrativa a partir dos detalhes e de cada personagem do cenário histórico-social. Retratou um contexto multifacetado, dando ênfase as formas políticas, sociais, econômicas, religiosas, sexuais, subjetivas, violentas, afetivas, e etc. O autor revelou a seu modo os brasileiros e seus sentimentos no cotidiano social, na sua intimidade, nos comportamentos, e realizou uma reflexão com base na sua versão do nosso passado colonial. Versão que ao mesmo tempo é rica nos detalhes acerca da composição social e do modo de vida naquela sociedade, suscita atenção e cuidado no entendimento de Freyre (2003) quando lançou um olhar positivo para o processo de colonização portuguesa no Brasil. Porém, acredita-se que a sua força está em mostrar como as estruturas econômicas, políticas e sociais foram vivenciadas no cotidiano segundo a representação de Freyre. É sobre os legados que se pretende-se tratar acerca da relação social fabricada na Usina Itaicí. Observa-se que representações e práticas comuns ao período colonial, depois com o Império, perpetuaram até a primeira fase do período republicano. De modo parecido à gênese de formação da sociedade colonial brasileira, cujas relações estão intimamente ligadas à casa-grande, à senzala, ao senhor de engenho, à família patriarcal, à igreja católica, aos escravos, vimos que as relações sociais construídas na Usina Itaicí vivenciaram uma conjuntura parecida. Todavia, seus atores, os espaços e as práticas ganharam outras denominações e funções. Entram em cena além dos coronéis do açúcar, os trabalhadores ―livres‖ e toda rede de convivências construídas às margens do Rio Cuiabá. O que nos faz lembrar da composição populacional mato-grossense. A população de Mato Grosso no período compreendido entre de 1890 e 1920 era composta por um público bastante jovem, apresentando-se na faixa etária de 5 a 39 anos, com maior concentração entre 15 a 29 anos conforme pode ser verificado no gráfico abaixo:

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Gráfico 1 - Coeficiente da população de Mato Grosso

300 250 200 150 100 50 0 0-4 5-9 10-14 15-29 30-39 40-49 50-59 60-69 70-79 80-89 90-99 100+ Idade

1890 1900 1920

Organizado pela pesquisadora. Fonte: Recenseamento do Brasil de 1920.

A população mato-grossense ficou por muito tempo estagnada, mas a partir do final do século XIX apresenta um crescimento devido a inserção de imigrantes atraídos pela expansão de algumas atividades produtivas.

Tabela 1 - População de Mato Grosso

Ano Nº de habitantes

1890 92.827 1900 118.025 1920 246.612 1930 349.857 Organizado pela pesquisadora. Fonte: BORGES, Fernando. T. de M., 1992.

Ainda que o crescimento populacional de Mato Grosso na transição do século XIX para o XX tenha sido significativo para o estado, em nível de Brasil era a menor densidade populacional. A população mato-grossense cresceu, porém, este crescimento concentrou-se próximo aos núcleos urbanos importantes em contraste com uma vasta área desocupada. Este foi o caso de Santo Antonio do Rio Abaixo que teve uma concentração populacional mais significativa por estar próxima a capital e por se estabelecer como região produtiva. A população de Rio Abaixo, segundo o recenciamento de 1920, possuía uma população de aproximadamente 13.714 habitantes, sendo 7.036 representados por homens e 6.678 por mulheres. Era também uma população bem jovem como pode ser observado no

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gráfico abaixo, na qual a maior concentração se encontrava na faixa etária primeiramente de 1 a 9 anos, seguidos de 30 a 39 e de 15 a 20. E esses dados possibilitam ter uma ideia do perfil dessa população.

Gráfico 2 - Coeficiente da população de Santo Antonio do Rio Abaixo de 1920

4000 3500 3000 2500 2000 1500 1000 500 0

Idade

Homens Mulheres Total

Organizado pela autora. Fonte: Censo de 1920.

A composição social de Mato Grosso entre os anos de 1890 e 1930 trouxe elementos novos, embora isso não tenha representado uma transformação na sociedade formada na província. A sociedade republicana mato-grossense foi composta por uma elite local diminuta em número, no entanto detentora de grande influência política e econômica em comparação aos grupos constituídos por homens livres. Algumas redefinições podem ser observadas através dos vários segmentos como: comerciantes, bancários, fazendeiros, proprietários de usinas e de grandes companhias que exploravam a borracha e a erva mate, empresários estrangeiros e nacionais (CORRÊA, 2006), além dos funcionários públicos que assumiam cargos de confiança e dos militares de alta patente. Essa composição mostra uma sociedade heterogênea em que os grupos econômicos começavam a se alinhar no pós-guerra com o Paraguai. Alguns procuravam reafirmarem-se, outros lutavam por espaço entre as atividades mais desenvolvidas no estado e na política. Entretanto, a região do pantanal norte não ficou de fora dessas modificações, uma vez que passou por algumas alterações no tocante aos grupos rurais da região, bem como na relação construída entre si e o meio.

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Mas que papel social era conferido a esses atores na sociedade coronelística? É no contexto de uma sociedade coronelista que os atores compunham uma relação social marcada por divergências e reciprocidades. Diante disso, compreender a dinâmica das relações nesse sistema social é importante para o entendimento da educação fabricada nesse espaço. As relações sociais na Usina Itaicí eram construídas conforme o critério de hierarquia, configuração atribuída conforme o modelo das sociedades coronelistas. Partimos do pressuposto de que práticas voltadas para relações de poder se disseminaram por toda a estrutura social. Desse modo, a figura do Coronel ocupava o primeiro posto, assumindo o lugar de destaque e domínio sobre os demais, sendo o último lugar nessa configuração reservado aos camaradas. Essa sociedade desigual evoca os atores e a função que cada qual exerceu. Eles representam uma história em tessitura, cuja memória possibilita uma análise daquele modo de vida.

Quadro 9 - Composição social

Posição Função Atividades 1ª Coronel Chefe Encarregado Geral Autoridade responsável pelas deliberações na ausência do proprietário (Coronel) Encarregados Supervisão e Execução 2ª Chefe da fábrica Cuidava das atividades da casa das máquinas

Contador Financeiro

Encarregado do depósito Cuidava do armazenamento da produção

3ª Capatazes Responsáveis por liderar um grupo de trabalhadores braçais 4ª Operários Trabalhadores da fábrica 5ª Camaradas Trabalhadores que se dedicavam à lavoura e outros trabalhos pesados Elaborado pela pesquisadora. Fonte: Póvoas, 2000, p. 45-47.

No quadro acima é apresentada a posição e as atividades que cada um ocupava nessa sociedade e em seguida, abordamos sobre cada um dos grupos que compõem a sociedade coronelista no universo da Usina.

2.2.1 Os Coronéis do açúcar

Como foi construída a personalidade do Senhor de usina e seu papel social? Com base no entendimento de Lenine Póvoas (2000), precisa-se situar no tempo e no espaço em que atuavam esses atores sociais. Segundo o autor (2000), Mato Grosso, nas primeiras décadas do 99

século XX, possuía uma vasta extensão territorial e um vazio demográfico. A população amiúde sinalizava um distanciamento entre as comunidades, particularmente, nas áreas rurais, como é o caso da localização da Usina Itaicí e das demais. Muito embora a área que corresponde da capital sentido Rio Abaixo e Melgaço fosse uma das mais povoadas, os núcleos habitados eram distantes uns dos outros e ainda conviviam com a dificuldade de transporte e comunicação. Desta forma ―as usinas constituíam uma comunidade isolada no meio da imensidão verde dos campos e das matas e do intrincado dos rios, ribeirões, baías e lagoas‖ (PÓVOAS, 2000, p. 50). A sua lógica segue no sentido de mostrar que as usinas se organizavam visando uma autossuficiência, uma vez que as adversidades levaram-nas à necessidade de produzir tudo para o seu abastecimento. O autor ainda relata que no armazém da usina se comercializava tanto os produtos produzidos nela, quanto roupas, calçados, tecidos, fumo, objetos de uso pessoal e remédios. Segundo o autor ―esse era o meio em que atuava o senhor de usina‖ (PÓVOAS, 2000, p. 51). Tudo isso foi pensado pelo coronel. No Brasil foi habitual atribuir-se o título de Coronel a pessoas de destacada posição social e boa situação financeira. Em Mato Grosso essa prática foi bastante evidente, sobre isso, Póvoas explica que:

Esses postos se estendiam desde a patente de Tenente, passando por Capitão, Major, Tenente-Coronel e Coronel, conforme a idade da pessoa e a projeção social conquistada no decorrer dos anos. À vista disso, os coronéis adquiriam respeito e estima, mesmo que esses valores fossem conquistados a base da força imposta pelo poder que o título impunha, a qual era de grande representação simbólica sob o ponto de vista político e econômico, além da imposição pela força armada (PÓVOAS, 2000, p. 53).

Corrêa Filho (1945), ao versar sobre a figura do coronel apresenta um ponto de vista convergente ao de Póvoas, isto é, relata sobre a supremacia dos coronéis do açúcar do Rio Abaixo comparando essa personagem ao dos senhores medievais. O autor destaca o poder que este ator social tinha dentro e fora do seu estabelecimento, fazendo com que suas deliberações fossem respeitadas e cumpridas. Sobre isso ele argumenta:

O usineiro consciente do seu poderio, não se limitaria a exercer o mando somente na sua propriedade, onde, por vezes, não ingressaria a autoridade policial, senão mediante prévia licença. Dentro do seu território, lembrava o fidalgo medievo, que diligenciava estender às vizinhanças o influxo da sua supremacia, à que os agregados se dobravam, quando não preferiam abrigar- se a outra sombra, ou no afastamento, a libertação do constrangimento humilhante (CORRÊA FILHO, 1945, p. 32). 100

Para Duarte (1997), o coronel é reconhecido como chefe de uma parentela. Não é a única expressão do poder político, mas sim a expressão de uma rede de relações de dominação que ultrapassa o político, como também ultrapassava a estrutura socioeconômica. Todavia, a força política provinha dos eleitores controlados por um coronel, ou até mesmo de uma família que tinha no coronel a pessoa que ocupava a maior posição em sua hierarquia. Nessa rede de relações, o voto era um instrumento importante de barganha que envolvia uma relação de reciprocidade. Porém, como aponta Queiroz (1997) não se descartava o uso da coerção, contudo, este era evitado pelos coronéis que conquistavam seus eleitores através de favores e proteção. Deste modo, o coronel devia possuir a capacidade de prestar favores. É daí que extraia o seu prestígio perante o eleitorado, considerando o voto um bem a ser barganhado. Neste sentido, a autora (1997) afirma que a fortuna pessoal é fundamental e poderia ser conseguida através da herança (principalmente terras), do casamento ou mesmo do comércio. E, neste sentido, as atividades comerciais pareciam concorrer para um maior prestígio ao coronel do que a posse de terras. Nessa perspectiva, nota-se que o Coronel do açúcar assumiu uma jornada rumo à liderança movida a uma rede de relações que tinha em jogo a prestação de favores, mas quando era contrariado, percebe-se uma relação movida muitas vezes a ferro e fogo, porém estrategicamente suavizada pelo paternalismo, uma vez que as práticas de gentileza, cortesia, apadrinhamentos, balanceavam um cotidiano também marcado por ações consideradas hostis. Desta forma, era entendido que ―para os vassalos, que lhe entrassem na simpatia, abria-se generosamente a bolsa dadivosa do usineiro, bem como a proteção amantadora de quaisquer delinquências‖ (CORRÊA FILHO, 1945, p. 33). A vida na Usina Itaicí girava em torno do trabalho, na maioria das vezes, compulsório. A prioridade era garantir o funcionamento no ritmo das máquinas. Para isso era necessário à distribuição de tarefas organizadas ao modo do patrão. Todos eram trabalhadores e soldados a serviço do coronel, o qual impunha uma relação similar à escravidão, dificultando aos trabalhadores qualquer alternativa de sobrevivência fora da usina. A posição de líder ocupada pela figura do coronel fez com que ele assumisse o posto das deliberações e comandasse as atividades realizadas na usina. Refiro-me atividade laboral e as práticas de convivência. Desta forma, ele criou um conjunto de regras e de ações que cada sujeito deveria cumprir naquela comunidade. Assim, organiram-se os horários de trabalho, os

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momentos das atividades domésticas e do laser de forma que nada pudesse sair de seu controle. Nesta pesquisa o coronel tem nome – Antonio Paes de Barros, mais conhecido como o Cel. Totó Paes. Este senhor entrou para a história de Mato Grosso como o industrial do açúcar20 e homem público. Sua memória é circunstanciada por muita polêmica, porém, nunca esquecida ou despercebida pelos mato-grossenses. A ênfase dada para este ator histórico deve-se ao fato de que ele foi o idealizador e primeiro proprietário da Usina Itaicí. A representação da Usina Itaicí está vinculada diretamente a pessoa do Cel. Totó Paes. Mesmo ela tendo sido vendida várias vezes, passando por muitos proprietários, a memória da usina é marcada pelo seu projetista. Por isso, acreditamos ser importante mostrar as representações acerca do Cel Totó Paes, uma vez que ele foi um dos maiores responsáveis por tornar a Usina Itaicí um centro comercial e industrial, além de ter proporcionado a comunidade de Itaicí elementos que só se encontravam em área urbana, atribuindo a ela características de cidade à localidade. Pois bem, quem foi o Cel. Totó Paes? Segundo informação obtida no site da família Paes de Barros21, sua origem está ligada aos Paes de Barros de Sorocaba, representados pelos irmãos Fernando e Arthur Paes de Barros, os quais entraram para a história de Mato Grosso como desbravadores no período colonial. Figura 13 - Cel. Antonio Paes de Barros

Fonte: Secretaria Municipal de Cultura de Santo Antonio de Leverger, s/d.

20 O termo o industrial foi utilizado na obra de Souza (1958) e a expressão do açúcar foi acrescida pela pesquisadora devido ao contexto. 21 Disponível em . Acessado em março de 2016. 102

Totó Paes era filho do Comendador Joaquim José Paes de Barros e de D. Maria da Glória Vieira de Barros. Seu pai foi o primeiro usineiro de Mato Grosso ao instalar a Usina Conceição, produtora de açúcar e aguardente. A priorie o Cel. Totó Paes auxiliou no funcionamento dessa usina juntamente com seus irmãos, e somente mais tarde conseguiu comprar a Usina Itaicí com a experiência adquirida através dos negócios da família. Sobre a representação do Cel. Antonio Paes de Barros, encontramos maiores informações no relato de João Bosco Paes de Barros publicado em seu blog22 em resposta a sua sobrinha Regina, a qual lhe pedira para visitar a terra de origem (Mato Grosso) e deixar uma amostra da história dos Paes de Barros, demonstrando que muitos fatos ainda não foram escritos. Sob o ponto de vista de João Bosco Paes de Barros, o Cel Totó Paes, bisneto dos dois irmãos desbravadores, não era um político e nem os seus irmãos, ele era um capitalista e empreendedor. Todavia, no sentido de resolver uma disputa entre as lideranças políticas cuiabanas e mato-grossenses, foi envolvido na vida pública e desta maneira foi eleito Presidente do estado de Mato Grosso atuando no período de 1903-1906. Na sua gestão, a prioridade foi organizar primeiramente os fatores de ordem econômico-financeira, depois se dedicou ao setor de explorações, apoiou às missões estrangeiras, auxiliou as missões salesianas, participou de exposições internacionais projetando Mato Grosso no exterior; incentivou a cultura, e ainda, investiu na criação da revista O Arquivo. No setor social, o presidente de estado Totó Paes procurou revitalizar as praças da capital com iluminação, bancos nas alamedas, bem como, fundou o clube internacional, demonstração de que não se limitou ao caráter administrativo, mas teve muita habilidade no quesito inovação, proporcionando a Mato Grosso conhecer propostas mais modernas em muitos setores (Souza, 1958). Essas pontuações feitas por Souza (1958), amigo e pessoa de confiança de Antonio Paes de Barros, priorizaram os aspectos positivos acerca da pessoa, do político e do empresário Totó Paes. Porém, o lado mais obscuro ficou por conta do imaginário popular fabricado pelos adversários políticos, e por conta de uma série de assassinatos pelos quais ele foi acusado de ser o mandante, e, principalmente, pelo episódio do massacre da Baía do Garcez, já mencionado anteriormente, onde foram mortos dezenas de opositores políticos na região do Rio Abaixo, motivo que causou muito ódio e desencadeou um espírito de vingança que viera a ocasionar o assassinado do coronel Totó Paes em julho de 1906, quando ainda

22 Disponível em: http://joaoboscopaesdebarros.blogspot.com.br. Acessado em março de 2016. 103

estava na função de presidente de estado, em meio a uma tensão que tinha como objetivo destituí-lo do poder, embora o seu destino evidenciou o pior – seu assassinato. O jornal O Estado de Mato Grosso de 1958 descreveu a morte do coronel da seguinte maneira:

Nas imediações da fábrica de pólvora do Coxipó do Ouro é morto o Presidente Antonio Paes de Barros sendo o seu corpo horrivelmente mutilado. [...] Fábrica de pólvora do Coxipó, 6 de julho de 1906. Exmo Sr. Pedro Leite Osório, 1º vice presidente do Estado de Mato Grosso – Acaba de ser descoberto o cadáver do coronel Antonio Paes de Barros, vosso digno antecessor no governo do estado. Levando com a máxima urgência possível esse fato ao vosso conhecimento, peço-vos as providências que julgardes mais oportunas, ante a gravidade do fato, pois o cadáver apresenta ferimento que evidenciaram morte violenta, tendo sido levado à pequena distância do ponto em que provavelmente se deu o homicídio (O ESTADO DE MATO GROSSO, 1958, p. 6).

Pela descrição é possível observar que o presidente de estado não ia ser mesmo poupado. Afinal, o momento era de grande tensão e os conflitos se estendiam tanto por parte da situação como da oposição criando um clima de terror em Mato Grosso, portanto, sem sinais de trégua. No entanto, a morte do Cel. Totó Paes não pôs um fim aos embates que os adversários travaram contra ele. A revolução de 1906 que ocasionou na sua morte significou uma vitória em relação à sua pessoa, todavia começava-se outra trajetória rumo ao seu legado material e político. Quanto a isso, conferimos no campo das representações que a imagem do Cel. Totó Paes passou de industrial empreendedor para o de governador assassino. Embora haja registros apontando o lado positivo do coronel considerando o seu espirito empreendedor, o que permaneceu mais proeminente foi a versão negativa. Isso é bastante evidenciado em A visão dos vencidos 23 , no qual é discutida a interpretação da pessoa do coronel pelo ponto de vista dos vencedores, isso quer dizer, de Generoso Ponce. Este foi o responsável por transmitir uma história à sua maneira, imagem essa bastante negativa do presidente, visão que permanece até os dias atuais. O autor do livro, Paulo Pitaluga Costa e Silva afirma que por questão de poder, os opositores ditaram da forma que bem entendiam uma história que do seu ponto de vista ―infelizmente se consolidou, exaltando uns e aniquilando outros‖ (Idem, 1997, p. 13). Usando um tom favorável às condutas do presidente, a escrita mostra que nesse contexto quem teve perdas foi somente o coronel Antonio Paes de Barros que ―perdeu a revolução, perdeu o

23 Ver SILVA, Paulo P. C. e. A visão dos vencidos: Totó Paes cem anos depois. IHGMT, Cuiabá-MT, 1997. 104

poder, perdeu a vida, e o pior, teve sua moral, a sua dignidade, a sua honradez, a sua imagem eternamente abalada pela interpretação dada aos acontecimentos pela gente de Generoso Ponce‖ (Ibidem). O coronel recebeu um legado deixado pelos poncistas como sanguinário, assassino, violento. Um legado que passou a se sustentar com o discurso de que a revolução que ele comandou em 1899 foi ilegítima; de que era o único responsável pelo massacre da Baía do Garcez; e que a sua usina alojava legiões de bandidos e foragidos da justiça; como também, havia escravidão branca e de que ele era desleal na política para com seus amigos e correligionários (SILVA, 1997). Para reforçar sua discussão com base no que foi construído pelos Ponces acerca do Cel Totó Paes, o autor traz alguns tópicos retirados do livro de Generoso Ponce Filho ―Generoso Ponce – Um chefe‖ que demonstram a visão dos então vencedores:

―Roiam-lhe a alma sentimentos corrosivos‖. ―Adubavam-no fertilizantes ressentimentos recalcados. Abundante, proveitosa colheita. Totó Paes está maduro para a traição‖. ―A exaltação de Totó Paes e de seu estado Maior toca as raias da alucinação. Ali só se fala em cortar cabeças e matar‖. ―Pedro Celestino está alarmado com as perspectivas sanguinárias que antevê. Estivera no foco do totopaesismo. Sentira os ânimos daqueles inimigos ferozes, capazes de tudo‖. ―No Itaicy continuam em pé de guerra os seus homens, cujas armas provêm do Depósito Bélico Militar de Corumbá...‖ (PONCE FILHO, 1952 apud SILVA, 1997, p. 15-16).

Segundo Franco (2014, p. 173), antes mesmo da sua morte essas interpretações resultaram na construção de uma imagem demonizada de Totó Paes, e depois de seu assassinato transformaram o coronel numa espécie de ―encarnação do mal‖. Ela mostra a exemplo disso que o jornal A coligação reforçava a imagem com a qual Antônio Paes de Barros passou a ser identificado, ou seja, como tirano, rústico e assassino. A narrativa de Corrêa Filho também é significativa e simbólica na reapresentação acerca da imagem de Totó Paes. Para ele, o empresário revivia anacronicamente o regime feudal desprezando o princípio civilizador (CORRÊA FILHO, 1946, p. 9). No que se refere à relação estabelecida com seus empregados, a postura de Totó Paes não era diferente da que os outros usineiros praticavam comumente na região. Como visto por Valmir Corrêa (2006) até o início dos anos 1930 em muitas usinas e fazendas ainda havia regimes de trabalho análogos à escravidão. Muitos proprietários mantinham troncos no pátio central e casas de suplício. 105

Mas o fato de Corrêa Filho (1946) fazer críticas pesadas à pessoa de Totó Paes se justifica por um lado, por possuir laços familiares com o grupo opositor. Pois, sendo filho de um dos líderes do levante - o coronel Virgílio Corrêa - e sobrinho de Antônio e Pedro Celestino Corrêa da Costa, dois dos principais aliados de Generoso Ponce, a análise de Corrêa Filho promove a defesa do grupo que se consagrou vitorioso (FRANCO, 2014). Por outro lado, Antonio Fernandes de Souza (1958) foi um dos primeiros a contestar a imagem negativa e pejorativa feita a Antonio Paes de Barros com o objetivo de reparar sua memória. Antonio F. de Souza foi um intelectual e era muito próximo de Tóto Paes, e inclusive trabalhou para ele na Usina Itaicí e no governo do estado, se dedicando a organização da revista O Archivo. O texto que produziu é de caráter memorialístico e trata da biografia de Totó Paes, elevando a sua personificação, o trabalho e a dedicação à vida pública. O texto representa, sobretudo, o seu olhar acerca da atuação do ex-presidente do estado de Mato Grosso no interior do universo dos coronéis do açúcar ao qual pertencia, com a ressalva que ele fala de um amigo. O jornal A cruz de 1932 publicou um artigo intitulado Memorias de um cuiabano, assinado por Tacito de Tacape. O assunto dá destaque à eleição do Coronel Antonio Paes de Barros à Presidência do estado de Mato Grosso e de sua postura enquanto empreendedor e industrial de prestígio, a notícia enfatiza a figura do coronel através de uma representação positiva.

Quatro nomes de destaque no momento. É de presumir, porém, apenas o primeiro resista a ação do tempo, como fundador da indústria açucareira em Mato Grosso. [...] Prestativo por índole, generoso e servidor, o seu valimento no município de Santo Antonio do Rio Abaixo firmou-se por consenso unanime (A CRUZ, 1932, p. 2).

Contudo, a trajetória do Cel Totó Paes relacionada ao contexto de enfrentamentos armados em Mato Grosso foi marcada pelo que chamam de seu lado sanguinário, apontada por essa imagem transmitida pelos seus opositores. Tais narrativas conferem legitimidade a esse discurso, inclusive atribuindo a esses o caráter de fundadores e defensores da República mato-grossense. Dantas Barreto (1907) resume que ―da sua Usina do Itaici,‖ Antônio Paes de Barros ―passou às atraentes chamas do inferno político‖ (BARRETO, 1907 Apud FRANCO, 2014, p. 177), ao subestimar a capacidade de reconstituição de seus oponentes, assim, tornou-se vítima

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da sua vontade política e perdeu-se nesse território moldado a base de articulações, conflitos e hostilidades. As ocorrências que marcaram a história de Antônio Paes de Barros, bem como os enfrentamentos armados que ocorreram desde a Proclamação da República, apontam o predomínio da violência no tratamento das questões políticas no estado de Mato Grosso, principalmente nos primórdios do regime republicano. Os enfrentamentos entre grupos oligárquicos e partidários, todavia, não foram exclusivos da política mato-grossense. No Brasil, o fenômeno do coronelismo está associado à luta pela manutenção do poder, desencadeado pela instituição do regime republicano. Assim sendo, esses episódios de confronto armado não revelam uma violência casual, desenraizada, mas apontam para uma identificação cultural. Como mostra, por exemplo, Franco (1997, p. 30) ao analisar as relações sociais dos homens livres no Brasil do século XIX, ―o ajuste violento se integra nas modalidades tradicionais do agir‖. Diante desse campo minado, percebe-se que prevaleceu a representação sobre Antônio Paes de Barros como uma pessoa violenta, sanguinária e assassina. A construção dessa imagem serviu para justificar a razão de seu assassinato, pois visto como autoritário, truculento e alguém que adotava práticas de barbárie era mais fácil convencer a opinião pública de que a versão dos seus opositores talvez fosse a melhor opção (ARRUDA; JUNIOR, 2011).

2.2.2 Os agregados e os camaradas

Com a construção das usinas de açúcar e o aumento do número de fazendas, houve um acréscimo do número de trabalhadores rurais na região. ―As camadas subalternas do meio rural, de modo geral, eram compostas por índios (Bororos, Guatós e Guanás) e por negros e mestiços‖ (BORGES, 2011, p. 5). Corrêa Filho (1946) denomina esses trabalhadores rurais de plebe rural. Não temos nenhuma intenção de incorporar nesta pesquisa o referido termo por entendermos que não seria adequado, mas acreditamos ser pertinente ao mostrar, a partir de uma obra memorialística, as representações acerca dos trabalhadores naquele momento. Corrêa filho (1946) ao tratar sobre o trabalho nas fazendas busca caracterizar o que ele chama de plebe rural:

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[...] se desenvolve o trabalho coletivo, indispensáveis as operações de maior escala e o aparecimento da classe de inferior nível social, constituída pelos agregados, camaradas e os que não se alistam em nenhum destes grupos, embora vivam desprovidos de haveres, como os ribeirinhos modestos. Incluem-se os primeiros no rol de pretendentes a morar em gleba pertencente a outrem, cujos favores são distribuídos periodicamente por meio de trabalho. Em geral, o proprietário de terras, que lhe sobejam, consente na ocupação de pequeno lote a quem solicitar, mediante condições variáveis de um para outro estabelecimento. Terá ou não direito a criar algumas cabeças de gado, abrir roças, até certos limites, mas quase sempre será obrigado a atender aos avisos para auxiliar os trabalhos principais do senhorio (CORRÊA FILHO, 1946, p. 122).

Essa composição social é bem presente no contexto de Santo Antonio do Rio Abaixo, nas usinas de açúcar e na Usina Itaicí. O coronel, os agregados e, os camaradas compartilhavam suas experiências no ambiente da usina. Sobre o coronel já tratamos nas páginas anteriores, mas como eram representados os agregados e os camaradas? No ponto de vista de Corrêa Filho (1946), os agregados juntamente com a sua família eram as pessoas que possuíam a relação mais próxima com os proprietários (usineiros), estes tinham permissão para circularem pela residência do patrão e autorização para desenvolver algumas atividades autônomas como a plantação e criação de animais. Segundo o autor, os agregados eram denominados também como os ―mais graduados‖. A relação de proximidade construída entre os agregados e seus patrões era marcada por práticas relevantes para a ordem desenvolvida no cotidiano da usina, fortalecendo uma convivência baseada na ajuda mútua. As relações de confiança eram estabelecidas pensando na construção de uma relação de fidelidade, a qual orientava as ações e relações desenvolvidas entre eles, contudo, essa relação não era desprovida de tensões e embates. Essa relação não foi a todo tempo a base da harmonia e da boa conduta. Não podemos deixar de salientar que o período da primeira república em Mato Grosso era tenso no estado inteiro. Em Santo Antonio do Rio Abaixo não foi diferente, sobretudo nas usinas de açúcar, afinal essa carga de embates e conflitos políticos, as disputas pela liderança política e econômica, disputa por espaços de poder, geravam práticas de violência que se estendiam ao setor político, passando pelo econômico e também no social. Por isso, as relações não foram construídas a base de uma harmonia permanente. Ser agregado significava, contudo, poder trabalhar com um pouco mais de garantia, no intuito de permanecer realizando as atividades rurais, auxiliando no trabalho nas usinas e, sobretudo, mantendo a sua sobrevivência. Uma vez que nessa condição corriam menos risco

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de uma indefinição, como era o caso dos camaradas, como afirma Corrêa Filho (1946) ―Fora dos compromissos periódicos, vivem em relativa independência, ao contrário dos camaradas, a quem cabe um quinhão maior nos campeios e demais diligências, que se intensificam nas estiagens até o começo da época das águas‖ (Idem, p. 122). As informações sobre caracterização do trabalhador denominado camarada não são muito detalhadas no período em questão, sabe-se que esta atribuição já existia desde o período colonial de Mato Grosso e continuou presente tanto no período provincial como no começo da república. Desde a inserção do trabalho dos camaradas na história de Mato Grosso, percebe-se a sua presença na zona urbana e rural. Eles desenvolviam tarefas variadas nos engenhos, fazendas, propriedades com lavoura, em atividades de mineração/extração. Os camaradas eram definidos como trabalhadores pobres livres ou libertos, estes eram contratados para desenvolver uma determinada atividade. Os acordos de trabalho poderiam ser temporários ou não. Esses trabalhadores poderiam saber algum ofício específico, sendo contratados para tal, ou apenas empregados para desenvolver atividades diversas (SENA, 2010). Segundo Virgílio Corrêa Filho:

Empregam-se de acordo com as normas vigentes, mediante remuneração ajustada. Na região sulina já os nomeiam de peão, por influência forasteira. Quando se iniciou a pecuária pantaneira, ser-lhe-ia diminuto o número, em confronto com a dos escravos, que então constituíam a maioria dos trabalhadores rurais. À medida, porém, que os segundos se reduziam, beneficiados pela alforria, aumentava aqueles em proporção (CORRÊA FILHO, 1946, p. 122-123).

Deste modo, podemos considerar que os camaradas eram os trabalhadores que com a abolição da escravatura compunham a sociedade mato-grossense como um dos grupos sociais mais desfavorecidos dentro da relação de trabalho constituída no estado, e, por sua vez, no contexto da Usina Itaicí e das usinas de açúcar do Rio Abaixo, estes ocupavam um lugar próximo ao do trabalho escravo. Nos trabalhos desenvolvidos nas fazendas, nos engenhos como nas usinas, estes inclusive se diferenciavam do trabalho dos agregados, uma vez que era reduzido o compromisso de fidelidade com o patrão. Nas atividades realizadas nas usinas, os camaradas tiveram presença marcante, tendo em vista que representavam a maioria dentre os trabalhadores nessas propriedades, como foi em Itaicí, principalmente nos períodos de safra. A relação dos camaradas com os usineiros era praticamente voltada para o trabalho. Eles conseguiam o serviço e a partir disso criavam uma convivência baseada nas jornadas de

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trabalho e na dependência que tinham desse locus e de seus patrões. Isso significava sobrevivência, tanto que se sujeitavam às regras estabelecidas pelos patrões como assumirem uma jornada de trabalho intensa, e ainda adquiriam dívidas no setor de serviço das usinas por causa dos altos preços dos produtos que não correspondiam com a realidade do que os camaradas podiam pagar. ―Chamados de camaradas, apesar de assalariados, deixavam quase tudo que recebiam na usina, pois eram obrigados a fazer compras nos armazéns que ali existiam. Neles eram comercializados roupas, calçados, tecidos [...] até mesmo a cachaça‖ (SIQUEIRA, 1997, p. 68). Como também pode ser observado no relato de uma enteada ao tratar sobre a vida de seu padrasto em uma das usinas: ―Meu padrasto, coitado, morreu de tanto trabalhar e nunca soube o quanto ganhava porque estava sempre devendo no armazém‖ (GONÇALVES, 2011, p. 95). Muitas vezes, em razão das dívidas contraídas com despesas de alimentação, moradia, vestuário, bebidas, produtos de higiene, esses trabalhadores tinham seus nomes anotados em cadernetas24, onde se registravam os débitos, tornando-se assim aprisionado ao patrão até que encontrasse alguma maneira de saldarem as dívidas, o que geralmente era muito improvável. Como também salienta Siqueira (1997):

Como os salários eram baixos, os camaradas estavam sempre devendo ao usineiro e ainda afirma que presos economicamente à usina estavam também presos os seus corpos, pois mesmo que desejassem abandonar o emprego, não poderiam fazê-lo livremente (Idem, p. 68).

Esse fato foi constatado por outros autores da historiografia regional25. Há registros nos jornais de trabalhadores que fugiam das usinas de açúcar e iam para a capital (Cuiabá) denunciarem os patrões, como exemplo temos a publicação do Jornal A Semana de 10 de outubro de 1926, este já citado anteriormente, onde três escravos fugiram das usinas de açúcar do Rio Abaixo para delatar sobre os maus tratos do ―Patrãozinho de prestígio junto aos poderosos‖ aplicados aos trabalhadores. Nota-se por meio dos relatos dos ex-trabalhadores das usinas, que muitas ordens que eram dadas pelo patrão aos encarregados não eram cumpridas, isso ocorria sem que o mesmo percebesse, como foi o caso já citado de uma criança incumbida de tirar o leite, que foi machucada por uma vaca e acabou agredindo-a no

24 Trata-se de um caderno de anotações dos débitos feito pelos trabalhadores e moradores da usina. Para maiores informações ver BORGES, Ana Carolina S. Os senhores da área alegável: ruralidade e diversidade social do Pantanal Norte (1870-1930). Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho, 2011.

25 Póvoas (2010), Aleixo (1987), Corrêa (1991). 110

impulso da dor, e como o fato foi observado pelo patrão, que não gostando da atitude deliberou para o seu encarregado punisse o menino, todavia, isso não ocorreu. Observa-se que os trabalhadores procuravam corresponder às regras e normas estabelecidas pelo patrão, mas faziam a sua maneira, ora sujeitando-se em algumas situações e ora resistindo em outras. A relação de trabalho foi se constituindo em meio a um jogo de poder, onde os patrões agiam de forma mais impositiva para garantir a sua posição de chefe, de mando e de dominação sobre os seus empregados e, por sua vez, os trabalhadores sentiam- se empoderados visto que atuavam discretamente em prol de seus próprios interesses à revelia do patrão.

2.2.3 As crianças em foco

O modo de ver e ler a infância nos tempos contemporâneos pode ser compreendido pelo que diz Sarmento sobre o processo de reinstitucionalização da infância. O autor afirma que ―a infância exprime-se e revela-se nos planos estrutural e simbólico. Deste modo, as culturas da infância são também objecto de pluralização e diferenciação‖ (SARMENTO, 2003, p. 1). Sarmento nos faz pensar no lugar que a contemporaneidade reservou para a criança, lugar em que a criança constrói sua interação mútua, a edificação do seu mundo e de suas culturas. Deste modo, nos reportamos à criança como um ator social e não um mero produto dos adultos. Por isso compartilhamos da compreensão que o lugar da infância é um entre- lugar (Bhabha, 1998), um espaço entre dois modos, ou seja, o que é configurado pelos adultos e o que é reinventado no modo de vida das crianças, entre dois tempos, o passado e o futuro. Sá (2007), ao abordar sobre as representações da infância, demonstra que na infância elas eram visualizadas como infantes, crianças, alunos, expostos, órfãos, desvalidos, petizes, peraltas, vadios, capoeiras, menores, entre tantos outros nomes atribuídos à infância brasileira no final do século XIX e inicio do XX. A autora (2007), afirma ainda que essas representações dizem respeito à classe social, à faixa etária, ao grupo cultural, à raça, ao gênero e às diferentes situações em que se encontrava, como a de abandono, exclusão na família, na escola e na rua. Como podemos observar, são múltiplas as representações da infância. São múltiplos os discursos, as práticas. Como também são múltiplos os olhares para a criança e para infãncia.

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A consciência social da existência da infância dentro da abordagem historiográfica emergiu de vários autores, detre eles Arìes (1978) que configurou-se um clássico no assunto. No entanto, a construção histórica da infância foi resultado de um processo complexo de fabricação de representações sobre as crianças no seu dia a dia. Essa nova configuração de análise da infância levantada na contemporaneidade volta o olhar para os vários processos inseridos no contexto da criança, seja urbano ou rural, pobre ou rica, sadias ou enfermas, enfim, possibilita dar visibilidade para as diversas formas de se compreender o mundo infantil a partir da abordagem histórica e educacional. A visibilidade que pretendemos dar aqui é para a infância de Mato Grosso, em direção à infancia rural, pois é uma temática que se encontra em construção no estado. Deste modo, procuramos pela cultura da criança ribeirinha, pantaneira, inserida no modo de vida da Usina Itaicí. Para isso, buscamos uma narrativa da história dessa infância através das representações. A população infantil de Mato Grosso era constituída de índios, brancos, negros e pardos. As crianças negras escravas, eram consideradas recém-nascidas até a idade de dois a três anos, e, conforme o Termo de Declaração, eram citadas como produções, crias, crioulinhos (as), mulatinhos (as), etc. Em área urbana, a condição de criança escravizada era percebida dos 7 aos 8 anos, e então esta passava a ser vista como mercadoria pronta para exercer atividade produtiva (SÁ, 2007). Em relação à zona rural, a autora destaca que ―a condição de criança escrava iniciava- se mais cedo, de cinco anos em diante, mostrando que a infância dessas crianças era abreviada, entrando bem pequenas no mundo do trabalhador‖ (SÁ, 2007, p. 61). Havia diferença nos lugares de circulação das pessoas conforme o grupo social que estas ocupavam, isso incluía as crianças. As crianças da elite

[...] independente da cor, residiam predominantemente na freguesia da Sé ou no 1º Distrito, que era composto pelas ruas centrais de Cuiabá. Essa infância não tinha uma cor que a caracterizasse, [...] já que grande parte da população cuiabana era considerada parda (SÁ, 2007, p. 62).

A população indígena geralmente não era informada nas estatísticas. A informação que se tem, segundo Sá (2007), se reporta a um relatório do Diretor Geral dos Índios datado de 1848, presente no Albúm Gráphico de Mato Grosso de 1914, o qual relaciona 33 etnias conhecidas e declaradas, dentre elas: bororos da Campanha, bororos cabeçaes, cayapós, coroados, Parecis, entre outros.

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As representações do cotidiano das crianças cuiabanas podem ser observadas através das obras memoralísticas que sinalizam vestígios dessa infância e foi assim apresentado por Sá:

As crianças se incubiam de levar mais longe as raias da vinhança, entrando nas casas com toda familiaridade, muitas vezes, sem bater palmas para aununciar, já que as portas de entrada permaneciam sempre abertas. As convivencias entre famílias, compreendendo adultos e crianaças, se davam no fim no dia, quando, à luz da lamparina de querosene, os vizinhos colocavam suas cadeiras na calçada para tirar uma prosa (SÁ, 2007, p. 68).

Em relação às brincadeiras, estas encontravam inspiração nas festas religiosas, como a festa do Divino, nas touradas, cavalhadas e no carnaval:

...a criançada brincava com uma cabeça de boi espetada numa vassoura e vários atacantes, reproduzindo, cada um de sua maneira, o espetáculo que se sucedia à festa do Divino Espírito Santo. As brincadeiras das crianças variavam de acordo com o calendário festivo ou com as variações climáticas, invadindo as ruas da capital. Em agosto, época de vento, os meninos empinavam as pandorgas e, no fim do ano, a fartura do milho verde trazia as petecas. [...] As meninas brincavam de rodas, cirandas, quitutes e também de ―pegador‖ (SÁ, 2007, p. 71-72).

Pensando no cotidiano ribeirinho, Borges (2010) entende que ele pode ser observado por meio dos relatos de viajantes, os quais apresentam algumas representações acerca do modo de vida da população da região do Pantanal Norte, uma vez que esses relatos apontam algumas práticas do cotidiano ribeirinho. A autora (2010) observa que houve um silenciamento construído nas narrativas dos viajantes, entendendo que isso não era imparcial, tendo em vista que agiam deslegitimando o acesso às terras e aos recursos disponíveis por parte dos moradores que nesses espaços se encontravam. Para ela:

...uma vez deslegitimado esse processo de fixação, os discursos visavam oferecer aos grupos de investidores nacionais e estrangeiros um aparato que se configurava em um conjunto de ideias, pensamento e valores, necessários para exploração econômica das florestas, dos rios e do solo. Pouco menciodos nos relatos de viagens, aos trabalhadores livres pobres desses ambientes e suas práticas diárias era conferida uma visão negativa, especialmente, sobre aqueles moradores localizados nas margens dos rios. [...] A utilização local dos recursos disponíveis era criticada pelos estrangeiros, porque não se enquadrava na visão utilitarista da ideologia do ―progresso‖. (BORGES, 2010, p. 61-62).

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A autora aponta que havia, por um lado, uma visão negativa acerca dos trabalhadores pobres ribeirinhos e, por outro, uma visão mais positiva em relação aos grandes proprietários de terras. Ela ressalta que a visão sobre as atividades rurais e o compartamento da elite agrária estava longe de receber as mesmas características despendidas aos trabalhadores financeiramente desfavorecidos, principamente, sobre os ribeirinhos. Para Borges (2011), em Mato Grosso, a elite era dententora de grande influência econômica e política em relação aos grupos cosntituídos por libertos e escravos, esta era composta por vários segmentos: proprietários de usina, fazendeiros, bancários, comerciantes e empresários estrangeiros e nacionais. Com a construção das usinas de açúcar nas margens do rio Cuiabá aumentou a quantidade de trabalhadores rurais que tinham uma condição de vida menos favorável. Esses trabalhadores submetiam-se a viver com sua família em terras de outras pessoas por meio do trabalho como garantia de sobrevivência.

[...] se desenvolve o trabalho coletivo, indispensável às operações de maior escala e o aparecimento da classe de inferior nível social, constituída pelos agregados, camaradas e os que não se alistam em nenhum destes grupos, embora desprovidos de haveres, como os ribeirinhos modestos. Incluem-se os primeiros no rol de pretendentes a morar em gleba pertencente a outrem, cujos favores são retribuídos periodicamente por meio de trabalho. Em geral, o proprietário de terras, que lhe sobejam, consoante na ocupação de pequeno lote a quem solicitar, mediante condições variáveis de um para outro estabelecimento. Terá ou não direito a criar algumas cabeças de gado, abrir roças, até certos limites, mas quase sempre será obrigado a atender aos avisos para auxiliar os trabalhos principais de senhorio (CORRÊA FILHO, 1946, p. 122).

De modo geral, os ribeirinhos, principalmente aqueles vinculados às usinas de açúcar, tinham um grau de dependência desse estabelecimento e se comprometiam com as regras e normas do proprietário a fim de garantir um meio de trabalho e de sobrevivência. As famílias ribeirinhas viviam da roça feita em pedaço de terra cedidos pelos proprietários da usina em troca da produção, e, sobretudo, do trabalho na mesma, o que rendia a família uma jornada de trabalho intensa, sendo que nem mesmo as crianças fugiam das tarefas. Sobre a infância rural há poucos estudos em Mato Grosso. O dia a dia dessa infância, as brincadeiras, a rotina e, a cultur, ainda são pouco exploradas se considerarmos as especificidades locais e a diversidade cultural que cada uma delas possui. Essa temática encontra-se em construção e certamente por si só merece um esforço de pesquisa, o que não foi possivel aprofundar neste estudo.

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Na tentativa de estabelecer algum diálogo sobre a infância a partir da interlocução criança-aluno, encontramos uma fase da vida infantil inserida no contexto das usinas de açúcar do Rio Abaixo representada através do trabalho para os patrões, para a família e na escola. Em relação ao trabalho na usina é de conhecimento que o modelo adotado estava vinculado ao trabalho semiescravo. Esse foi o caso dos trabalhadores das usinas de açúcar de Mato Grosso. Pois, muitos usineiros submetiam os trabalhadores ao seu domínio. O trabalho nas usinas não se restringia a população adulta, mas incluía toda família, até mesmo as crianças:

As crianças inclusive participavam do trabalho na roça, na confecção dos sacos, nos teares, na fabricação da farinha, nas tarefas de descascar arroz e até mesmo no transporte da cana. O trabalho infantil não era legalmente permitido, porém, no interior das usinas, vigorava a lei estabelecida pelo coronel (SIQUEIRA, 2009, p. 36).

A imagem abaixo aponta indícios de trabalho infantil ao apresentar crianças com garrafas na mão ao lado de tanques de água, juntamente com os adultos, sugerindo o exercício de uma atividade comum na época nas usinas de açúcar, que também produziam aguardente, que era a limpeza das garrafas para reaproveitamento na indústria.

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Figura 14 - Trabalhadores e crianças na limpeza de garrafas na Usina Itaicí.

Fonte - Acervo da Secretaria Municipal de Cultura de Santo Antonio de Leverger.

Essa imagem evidencia, sobretudo, toda a sujeição a um tipo de trabalho que era realizado em condições insalubres, com poucos recursos, aparentemente perigoso, principalmente para as crianças, por se tratar de um espaço que não era plano, podendo acarretar acidentes em caso de desiquilíbrio. Percebe-se que a possível sinalização de que as crianças estavam em um ambiente de trabalho, demonstra como as leis do patrão era prioridade nesse espaço. Os adultos também certamente deviam sentir todo tipo de pressões, em ter que realizar um trabalho desprovido do mínimo de conforto, de proteção e de garantias de rendimento. Desta maneira, pouco se sabe acerca do cotidiano da infância rural do Pantanal Norte no período em questão, mas pressupõem-se uma vida ligada ao rio, ao trabalho nas usinas, e também à escola. De modo geral vimos que a região do Rio Abaixo apresentou-se dentro de um universo plural, a começar pela diversidade dos grupos sociais que colaboraram para as espacializações locais no período correspondente ao final do século XIX a primeira metade do século XX. Esses grupos, de forma distinta, deixaram suas marcas na composição social

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ribeirinha e de Mato Grosso. Entre proximidades e distanciamentos, reciprocidades e hostilidade, as pessoas que vivenciaram o modo de vida da sociedade coronelista, hierárquica e adepta a mão de abra compulsória, trilharam seus caminhos entre a necessidade de uma sujeição tática e os embates que decorriam em denúncias contra o patrão e às fugas. São esses atores sociais e suas trajetórias que inspiram a tessitura de uma narrativa da educação para além da escola.

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CAPÍTULO III

A ESCOLA DE ITAICÍ E A ESCOLARIZAÇÃO DAS CRIANÇAS

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A escolarização das crianças era uma das formas de educação presente no universo da Usina Itaicí e neste capítulo propomos refletir sobre a escola de Itaicí, voltando o olhar para a história dessa instituição escolar, para sua função social, sua identidade, para as finalidades e a cultura produzida na mesma. Tem-se como base a criação da escola, organização e produção de uma cultura escolar com foco no processo de escolarização das crianças e na formação de ofícios conforme os indícios nos indicam.

3.1 A Escola de Itaicí: da iniciativa privada à gestão do estado

A história da Escola de Itaicí marca o início da ação educativa escolarizada no contexto da Usina Itaicí. É a história de meninos e meninas ribeirinhos, inseridos num projeto privado empresarial considerado moderno em sua estrutura, mas arcaico nas suas relações. Esse projeto evidencia uma sociedade de controle, ou seja, a centralidade que as instituições escolares tiveram no processo de disciplinarização, com suas estratégias ancoradas na produção de saberes e comportamentos e a produção de identidades, que neste caso se destaca pelo modo de vida das sociedades coronelísticas. A análise destas representações, apropriações e práticas desvela o papel desempenhado pela instituição escolar na fabricação de um ator social alfabetizado e os processos de assujeitamento nela produzidos, demonstrando o aspecto contraditório da modernidade anunciada com a implantação da República. Ao adentrar no interior da escola, onde as relações entre professor, alunos e comunidade foram estabelecidas, e, a partir das quais se constituíram o espaço e o tempo escolar e os saberes que compõem a cultura da escola, reconstitui-se aqui uma história que envolve uma instituição privada empresarial, uma escola de ensino primário, comunidades ribeirinhas, projetos em disputa, estratégias e práticas de formação escolarizada em consonância com os processos socioculturais mais amplos, como por exemplo, a formação de ofícios. Essa reconstituição partiu de questões pertinentes para análise da educação escolarizada e da história dessa instituição de ensino, tais como: Como se deu a criação da escola? Como foi organizada? Qual a sua finalidade? O que ela fabricou? Partindo das reflexões existentes sobre a história das instituições educativas e/ou escolares, nos respaldamos nas concepções de Magalhães (2004) e Gatti Junior (2002), dentre outros autores no campo da história da educação, uma vez que eles direcionam o olhar para os

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elementos que devem ser observados na produção da história das instituições de ensino. Esses elementos se configuram na construção da identidade da escola e na sua relação com a sociedade, nas normas e no cotidiano escolar. Segundo Magalhães (2004, p. 20) ―a educação é processo de humanidade e via de humanitude‖ e o ofício de historiar uma instituição passa por:

Compreender e explicar os processos e os ―compromissos‖ sociais como condição instituinte, de regulação e de manutenção normativa, analisando os comportamentos, representações e projetos de sujeitos na relação com a realidade material e sociocultural do contexto (MAGALHÃES, 2004, p.58).

Nessa perspectiva, observa-se que as instituições escolares devem ser historiadas a partir de seu contexto, de fatores sociais e culturais, ou seja, do ambiente no qual se encontram inseridas. Nesse sentido, as práticas educativas e a relação da escola com a sociedade reverberam a discussão sobre a intencionalidade dos processos educativos na formação social e dos corpos individuais dos professores e alunos, bem como todos os demais envolvidos no processo educacional, tomando forma e cultura escolar como conceitos operatórios para uma análise (SOUZA; VALDEMARIN, 2005). Deste modo, entende-se a importância de contextualizar a instituição escolar, sua integração com a comunidade, sua razão histórica, e o modo como se constituiu cultural e historicamente. Investigar a escola através da sua memória histórica e tentar descortinar a sua cultura, seja ela, imaterial, material ou simbólica, passa também pela lógica compartilhada por Silva de que:

Existem inúmeras características que aproximam os comportamentos das escolas, bem como as investigações sobre ela, e há uma infinidade de outras que os/as diferenciam. No entanto, parece não haver inconvenientes em considerar a escola como uma instituição com cultura própria. Os principais elementos que desenhariam essa cultura seriam os atores (famílias, professores, gestores e alunos), os discursos e as linguagens (modos de conversação e comunicação), as instituições (organização escolar e o sistema educativo) e as práticas (pautas de comportamento que chegam a se consolidar durante um tempo) (SILVA, 2006, p. 202).

Partindo da compreensão de que a escola deve ser historiada a partir da sua multidimensionalidade e da relação escola/sociedade, nos voltamos para a internalidade das instituições educativas. Segundo Gatti Junior (2002) a história das instituições educativas investiga o que se passa no interior da escola pela:

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(...) apreensão daqueles elementos que conferem identidade à instituição educacional, ou seja, daquilo que lhe confere um sentido único no cenário social do qual fez ou ainda faz parte, mesmo que ela tenha se transformado no decorrer dos tempos (GATTI JUNIOR, 2002, p. 20).

Desta maneira, envolve análise sobre a trajetória das instituições, considerando a criação, desenvolvimento, elementos da arquitetura, perfil de seus agentes, corpo docente, funcionários, apoio, projetos e propostas pedagógicas, dentre outras. Desta maneira, ao olhar para uma instituição escolar entendemos que muitos aspectos são primordiais na análise da sua cultura, a partir dos quais se busca a compreensão e a explicação da existência histórica de uma instituição. Isso permite reescrever o itinerário de vida na sua multidimensionalidade, conferindo à instituição um sentido histórico (VIDAL, 2009), de modo que optamos por analisar a escola a partir da instituição, organização e dos aspectos da cultura escolar - seus espaços, as práticas, o tempo, as normas - seguindo na direção de Agustín Escolano (1998) ao dizer que nem o espaço, nem o tempo escolares são dimensões neutras do ensino, não são simples esquemas formais ou estruturas vazias da educação. Ou seja, estas ―Operam como uma espécie de discurso que institui, em sua materialidade, um sistema de valores, um conjunto de aprendizagens sensoriais e motoras e uma semiologia que recobre símbolos estéticos, culturais e ideológicos‖ (ESCOLANO, 1998, p. 26). A escola observada por meio de seus elementos constitutivos nos apresenta também ―como pedagogias permitindo a interiorização de comportamentos e de representações sociais‖ (FARIA FILHO, 2000, p. 20). Ao considerar que os elementos educativos presentes no ambiente escolar não são neutros, que esses mesmos elementos caracterizam pedagogias (ensinam e educam de algum modo) a partir de representações e comportamentos, e que ainda atuam como elementos destacados na construção social da realidade, significa dar atenção ao que a escola fez, como fez, para quem fez e por que fez. É bom lembrar que as ações educativas construídas no ambiente escolar são resultados de um contexto que envolve práticas econômicas, políticas, sociais e culturais. No caso de Mato Grosso:

Com a implantação do sistema de governo republicano, a liderança da administração do estado de Mato Grosso ficou, de forma alternada, nas mãos de dois grupos oligárquicos: do norte, representada pelos senhores de engenho e, posteriormente, usineiros de açúcar: e a do sul, composta de grandes pecuaristas e pelos comerciantes (SÁ; SÁ, 2011, p. 29). 121

Assim, ao adentrar no universo da Escola de Itaicí nos deparamos primeiramente com uma situação específica, isto é, a educação para as crianças. O que logo nos remete a infância. Segundo Sá (2007), esta caminhou paralelamente a historia das instituições escolares ao inserir a criança no espaço escolar, ensinando-a a ser aluno. ―O desenvolvimento da escola primária inventou uma nova tradição e condição da infância, a criança-aluno‖ (SÁ, 2007, p. 18). A infância de que trata este estudo é a infância rural, na qual as crianças foram inseridas no contexto de uma usina de açúcar e vivenciaram a experiência de criança-aluno (SÁ, 2007), crianças trabalhadoras e/ou apenas crianças, embora essa infância de ser somente criança foi a menos observada, pois não se identificou vestígios das práticas dessa infância constituída em casa, nos quintais, na relação com o rio, no contato com a natureza, nas brincadeiras, etc., o que seria comum tendo vista a vida em área rural. Talvez tenha sido pela própria circunstância, permeada de controle, trabalho e cerceamentos. O tempo das crianças e o tempo da escola revelam ―o modo como em diferentes tempos e espaços uma determinada realidade social é construída, pensada e dada a ler‖ (CHARTIER, 1990, p. 17); nessa perspectiva, entende-se que a Escola de Itaicí em particular fugiu um pouco dos padrões estabelecidos para época. A escola constituiu-se nos primeiros anos de funcionamento26 da Usina Itaicí como uma escola de ensino primário de iniciativa privada empresarial que atendeu a infância rural ribeirinha e foi agenciada, a priorie, por uma figura emblemática - o Cel. Totó Paes - e, mais tarde pelo estado. Segundo Araújo (2013), a institucionalização da educação escolar primária no Brasil baseada na diversidade de modalidades, pedagogias, métodos, programas de estudos variados, classes homogêneas, ensino simultâneo, uniformização do tempo e da idade escolar foi decorrente do regime republicano. Para a autora, os preceitos de laicidade, financiamento, regulação social, disciplinamento comum, obrigatoriedade de frequência, uniformização pedagógica e de igualdade jurídica elevaram-se como fundamentos embasadores da educação escolar primária na formação de uma sociedade civil republicana. Nesse cenário, a Escola de Itaicí destacou-se como uma das primeiras instituições de ensino implantada em uma usina de açúcar do estado de Mato Grosso, em ambiência de uma

26 Não foi possível localizar o ano exato de criação da referida escola. Mas há indícios de que a escola foi implantada nos primeiros anos de funcionamento da usina, especificamente entre os anos de 1897 e 1906, período em que se encontraram menções sobre a existência da escola de Itaicí na historiografia mato-grossense e nos jornais. 122

fábrica, voltada para a alfabetização das crianças e para a formação de alguns ofícios como alfaiataria e música. A trajetória da escola remonta ao período de 1897 à década de 1950, sendo que a escola começou seu funcionamento como uma escola de iniciativa privada, e, em 1928, foi configurada como Escola Ambulante de Itaicí. A partir de 1930 recebeu um novo formato – Escola rural mista de Itaicí. Essas alterações acompanhavam as mudanças na legislação educacional do estado que propunham uma escola única e homogeneizante. A legislação da Instrução Pública de Mato Grosso refletia os princípios republicanos que nasceram ―da crença na necessidade de remodelar a ordem social, política e econômica e da convicção de que a educação seria o mais forte instrumento de consolidação do regime e alavanca na construção de um país moderno‖ (PAES, 2012, p. 82). Para Alves (1998) ―com o advento da República e do regime democrático, primou-se pela expansão de escolas como garantia da democracia e como forma de diminuir o número de analfabetos intencionando elevar o Brasil em relação aos países desenvolvidos‖ (idem, 1998, p. 12). Nesse estudo destaca-se a ação dos professores, diretores de Instrução Pública e governantes, no âmbito das relações socioeconômicas e políticas do estado. Então em Mato Grosso:

[...] esse processo de expansão do ensino trilhou pelos (des)caminhos da interferência política. Isso ocorreu devido à própria formação político-social do estado e em decorrência da atuação dos coronéis rurais – grandes proprietários e fazendeiros – e os coronéis urbanos – comerciantes das ―Casas comerciais‖. Estes coronéis constantemente entravam em conflito pelo poder de mando aos níveis local e regional, intensificando o clima de violência e abrindo maior espaço à atuação declarada do Coronelismo. Desta forma, ao longo das décadas de 1910 a 1940, com exceção de algumas conquistas, o ensino sofreu as consequências do predomínio do poder político em que o professor era um elemento de mediação, na cadeia interminável de dominação política e cultural (ALVES, 1998, p. 13).

A autora faz referência às interferências dos coronéis até mesmo nas questões educacionais e demonstra o quanto isso era determinante enquanto elemento de empoderamento e controle. Essa característica percorre todo o período, ora mais acentuado, ora mais ameno, todavia o poder dos coronéis estava sempre presente de alguma maneira. Essa relação pode ser observada no contexto das fazendas de erva-mate de Mato Grosso, que também foram representativas para a economia do estado, como foi o caso da

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Companhia Mate Laranjeira que atuou no sul do estado entre os anos 1880 a 1940, se destacando nesse setor por ter sido detentora do monopólio do extrativismo de erva-mate. Nos ervais, de modo parecido ao da Usina Itaicí, segundo Brasil e Trevisan (2015):

[...] as relações de trabalho entre patrões e camaradas ―mineiros‖ eram as piores possíveis. Grande parte da literatura compulsada sobre a lida nos ervais indica a utilização dos nativos como mão de obra barata, submetidos a condições extremas de espoliação (idem, 2015, p. 37).

No que se refere a Ponta Porã, havia uma visível ―luta de braços‖ entre políticos, governo e a Laranjeira Mendes e Cia pela hegemonia do poder regional. No bojo dessa luta a imprensa local, indubitavelmente vinculada aos interesses de políticos opositores à ―Mate‖ e ao Governo, estampava em suas páginas os problemas educacionais do espaço ponta-poranense (ibden, p. 41).

Os autores destacam que a escola era impensável para o segmento subalternizado e a criança nessa situação era envolvida em atividades vinculadas à vida nos ervais. Tanto que as crianças que conseguiam frequentar a escola iam para o lado paraguaio, pois as escolas brasileiras praticamente não funcionavam por falta de professores (BRAZIL; TREVISAN, 2015). Essa era a situação nos primórdios da história da empresa Mate Laranjeira. A iniciativa de instalação de um grupo escolar nessa região ocorreu em 1923, e foi denominado Grupo Escolar Mendes Gonçalves. Embora a empresa Mate Laranjeira tenha ganhado o crédito devido a doação do terreno para a construção da escola, nota-se que:

De certo modo, um dos artífices do GEMG em Ponta Porã, foi a população que, por meio de constantes pressões, cobrava dos governantes a instalação de um GE na cidade. Entretanto, de forma concreta, o principal responsável pela construção foi o administrador da Laranjeira Mendes & Cia, Heitor Mendes Gonçalves, o qual encampou a instalação do edifício para abrigar o GE (BRAZIL; TREVISAN, 2015, p. 51).

Mais uma vez, observa-se aqui as interferências do poder dos coronéis na relação com a população, atuando no lugar do estado, tendo em vista de que se trata de uma escola pública primária agenciada por uma empresa. Manter essa relação com a população e também com os políticos e governantes parece ter sido primordial para garantir ―a futura renovação dos contratos de arrendamento‖ (BRAZIL; TREVISAN, p. 55). Para tanto, a escola serviu como um dos elementos propulsores dessa força advinda do fenômeno coronelista em Mato Grosso. Isso remete ao entendimento de que o ensino ―passou a ser um dos pontos principais, e a escola ocupou relevante papel social, pois as técnicas de leitura e escrita haviam se tornado

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instrumentos necessários à integração social dos indivíduos‖ (ALVES, 1998, p. 22). Aqui se destaca o fato de que o ideário republicano anunciava um regime de participação política no qual previa ―o mínimo de escolarização comum, para se ter garantia do voto [...] a educação se tornou pauta indispensável nos discursos políticos, e a ideia de escola para todos se proliferou em todo o país, apesar de que na maioria das regiões não se tenha concretizado‖ (ALVES, 1998, p. 22). Conforme a primeira legislação educacional da República em Mato Grosso, a de 1896, expedida pelo Presidente de estado Dr. Antonio Corrêa da Costa, para a organização e funcionamento das escolas na época, definiu-se que as classes seriam ministradas em escolas denominadas elementares e complementares. A legislação delibera que ―haverá escolas elementares em todas as cidades, vilas, freguesias e povoados existentes no estado, e complementares na Capital e cidades principais, devendo ser consideradas tais aquelas de maior desenvolvimento e densidade de população‖ (MATO GROSSSO, REGULAMENTO, 1896, p. 66). Segundo o Artigo 4º do referido regulamento, o ensino elementar é obrigatório para todas as crianças de sete a dez anos de idade. Para isentarem os filhos e tutelados da frequência da escola elementar, deveriam os pais e tutores provar que as crianças recebiam o ensino exigido pelo Regulamento, através dos pais ou de aulas particulares, ou pelo fato dos filhos e tutelados apresentarem moléstia ou defeito físico que os impedisse de frequentar a escola. Esse regulamento aponta que os pais e tutores eram obrigados a comunicar à autoridade competente que os filhos que atingissem a idade prescrita estavam sendo instruídos em casa ou em aula particular, ou comunicar o motivo pelo qual não lhes proporcionavam o ensino elementar. O artigo 6º trata sobre uma multa para quem descumprisse tal procedimento: ―A falta de comunicação ou a inverdade dela, verificada pela autoridade competente, sujeita os pais e tutores a multa de 5$000 a 20$000 réis, e ao dobro na reincidência provada de três em três meses‖ (MATO GROSSO, REGULAMENTO, 1896, p. 66). Em Mato Grosso é possível observar pela legislação educacional a coexistência de três modalidades de ensino: a pública, a particular e a doméstica. A primeira era custeada pelo estado; a segunda, pelas das famílias, e/ou pelos professores, e, no caso da Escola de Itaicí, especificamente, custeada por uma empresa; e a terceira ―distribuída na residência dos alunos por seus pais, ou por professores estipendiados por estes‖ (SÁ; SIQUEIRA, 1998, p. 115).

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O ensino primário particular em Mato Grosso, conforme Siqueira (2009) ganhou expressão na década de 1880, tomando a iniciativa na proposição do ensino misto, do ensino de música e do sistema de internato. Reis (2011) relata que desde longa data há notícias da existência e atuação das escolas particulares no estado de Mato Grosso. A autora apresenta alguns dados observados no relatório de 1859 da Inspetoria Geral, e aponta que no período provincial, essas escolas estavam distribuídas da seguinte forma: em dois municípios e suas respectivas freguesias: 1) Município de Cuiabá – freguesias: Pedro 2º, Santo Antonio, Livramento, Diamantino, Rosário, Poconé, Vila Maria, Mato Grosso; 2) Município de Miranda – freguesia: Albuquerque. Essas escolas funcionaram tendo turmas masculinas em algumas e, outras com turmas femininas, sendo a maior parte delas com turmas masculinas, abrangendo um total de 250 alunos. Pe. Ernesto Camillo Barreto afirma no Relatório da Inspetoria Geral de 1878 que:

É dificílimo, senão impossível, pelo que já em outro lugar expus ter dados exatos não só do número de alunos que frequentam escolas particulares como daqueles que o Regulamento Orgânico denomina domésticas. Como estas últimas gozam de pleníssima liberdade, muitos instrutores, sofismando a Lei, procuram passar seus estabelecimentos particulares por escolas domésticas, a fim de se subtraírem as inspeções e aos poucos e ligeiros ônus que mesma Lei lhes impõe (MATO GROSSO, RELATÓRIO, 1876, p. 6).

Percebe-se que mesmo sem ter como organizar uma estatística mais fidedigna em relação às escolas particulares, o governo incentivava a iniciativa particular, tendo em vista que não dispunha dos elementos necessários para garantir a expansão da instrução pública para todas as crianças em idade escolar no estado. Conforme Paião (2006) havia crescente interesse das autoridades públicas sobre as escolas particulares, posto que estas poderiam auxiliá-las com suas estruturas, corpos docentes e experiências pedagógicas na tarefa de aumentar a malha escolar, tornando-a mais acessível à população. No início da República, os relatórios e mensagens apontam inúmeras reclamações a respeito da falta de informação sobre as escolas particulares. O Relatório de 1897 da Diretoria da Instrução Pública, apresentado por José Estevão Correa para o Presidente do estado de Mato Grosso Antonio Corrêa da costa, mostra o quanto se ignorava sobre a situação da instrução primária no estado no que dizia respeito à ausência de informação das demais escolas existentes. Para as autoridades públicas os responsáveis por essas escolas se negavam 126

a prestar as informações necessárias de seu funcionamento, assim, ficava omisso o número de matriculas, frequência e estatísticas. Conforme informações do relatório de 1897:

Assim, é que com respeito a Escola da Vila de Miranda, denominada ―Cristóvão Colombo‖, cuja estatística é conhecida nesta repartição, tudo o mais se ignora relativamente ao movimento escolar das demais Instituições congêneres espalhadas pelo Território do Estado e incluídas entre elas as próprias Escolas Particulares desta Capital. Nem é infelizmente de hoje que tal sucede. Nos Regulamentos anteriores e notadamente no de 4 de março de 1880, já se sujeitaram as disposições regulamentares do Ensino Público, em tudo quanto se relacionasse com a estatística higiene e moral dos mesmos estabelecimentos. Mas, a verdade é que nada se soube então, como nadas se sabe ainda hoje, a respeito da população escolar do Estado, pelo fato de não serem conhecidas a matrícula e a frequência de tais escolas. Multas se tem decretado contra os Diretores de Colégios e Escolas Particulares, que se mostrarem revés no cumprimento daqueles deveres impostos pelas Leis e Regulamentos, mas são penas essas que só existem nas coleções sem terem tido jamais nenhuma aplicação real e efetiva (MATO GROSSO, RELATÓRIO, 1897, p. 7-8).

Segundo Mensagem do 2º Vice Presidente do estado Coronel Antônio Cesário de Figueiredo à Assembléia Legislativa de 1899:

Em relação aos estabelecimentos de ensino particular existentes no estado, e alguns dos quais está subvencionados pelos cofres públicos; deixando os seus diretores de fornecer à Diretoria da Instrução pública às informações necessárias relativas às frequências, à higiene e a moral, apesar da multa, que por esta lhes é imposta, mas da qual zombam por estarem certos da sua inefetividade (MATO GROSSO, MENSAGEM, 1899, p. 01).

A mensagem de 1901 aponta um discurso citando o exemplo norte americano como uma nação que desenvolve ações mais efetiva em prol da educação naquele país. O Presidente relata sobre uma fala do senhor Honorato Mann a propósito da preocupação dos estadistas norte-americanos de desenvolver por todos os meios a educação nacional. Segunda o discurso de Mann:

O primeiro dever dos nossos magistrados e dos chefes da nossa república é subordinar tudo a esse interesse supremo. Em nossos países e em nossos dias, ninguém é benemérito do título de homem de Estado, se a educação prática do povo não tem o primeiro lugar no seu programa. Pode um homem ser eloquente, conhecer a fundo a história, a diplomacia, a jurisprudência, o que lhe basta alias para pretender a elevada condição de homem de Estado; mas, se suas palavras, seus projetos, seus esforços não forem por toda parte constantemente consagrados à educação do povo, ele não é, não pode ser homem de Estado Americano (MATO GROSSO, MENSAGEM, 1901, p. 89). 127

Nessa mensagem o estadista de Mato Grosso compartilhou o discurso americano e finalizou dizendo que

o único meio de salvar a nova geração brasileira do contágio da lepra moral, que lavra pelo país, é educa-la. Sendo assim, educá-la fisicamente, para se ter homens fortes; moralmente, para se ter homens honestos; intelectualmente, para se ter homens ilustrados. Educá-la convenientemente, para se ter grandes homens (MATO GROSSO, MENSAGEM, 1901, 89).

A mensagem de 1903 apresenta informações referentes à criação de 04 escolas primárias, número de matrículas e frequência, constando que houve uma sensível diminuição em relação aos números de matrícula e frequência no ano anterior. Lamentando a situação, o presidente do estado acreditava que a explicação para isso devia-se a agitação dos espíritos em face dos últimos movimentos e do aparecimento das epidemias de varíola e bubônica. Nas mensagens de 1905 e 1906, dirigida à Assembléia Legislativa pelo Presidente do estado Coronel Antonio Paes de Barros (Totó Paes), discorre-se pouco sobre a instrução pública e mais sobre eleições estaduais e federais. O que foi apontado nas mensagens e relatórios, muitas vezes subsequentes, são informações referentes à precariedade do ensino no estado de Mato Grosso. O que se apresentou nos relatos sobre a situação de falta de informação referente às atividades das escolas particulares também se estende a outras escolas. Tanto no critério de não haver uma boa estatística que pudesse dar um direcionamento mais efetivo às atividades educacionais, como no empenho em investir de forma mais contundente nesta área que se apresentava como uma das mais importantes. Neste cenário, percebe-se que a Escola de Itaicí seguiu numa direção diferenciada como se pode observar a partir dos estudos sobre a escola. Começando pelo estudo da historiografia mato-grossense, autores como Souza (1958), Siqueira (1990), Gonçalves (2011) relatam a existência dessa escola desde os primeiros anos de funcionamento da usina, mas as suas pesquisas não se aprofundaram na organização e na cultura escolar dessa instituição. As informações trazidas por esses autores decorrem de estudos acerca das memórias das usinas de açúcar de Mato Grosso atreladas à sua composição histórica do ponto de vista socioeconômico. De modo mais detalhado, Souza (1958) transcreveu do jornal O Paiz de 1906 a representação dos visitantes sobre o funcionamento da usina Itaicí, e não ignoraram a existência da escola. Segundo o referido jornal:

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[...] Visitamos em primeiro lugar a escola onde o professor ministrava o pão do espírito a mais de 40 meninos filhos dos empregados, notando-se a maior disciplina e ordem entre os alunos. Havia ali também a escola de música que funcionava juntamente com a de primeiras letras. Passamos em seguida a biblioteca, fundada há pouco tempo, dispondo de variada coleção de livros sobre ciências, artes, literatura etc, instituição essa mantida para beneficio não só dos empregados mais graduados como do operário (SOUZA, 1958, p. 8).

A imagem abaixo evidencia alguns traços observados e citados por Souza:

Figura 15 - Professores e Alunos da Escola de Itaicí.

Fonte: Álbum Gráfico de Mato Grosso de 1914.

Observa-se também pelo olhar do fotógrafo que havia a pretensão de passar uma imagem de organização, disciplina e suntuosidade, uma vez que percebe-se o capricho nas vestimentas de todos e todas, em particular representa algo que não era possivelmente habitual para os alunos que eram filhos de operários e trabalhadores braçais, que se pressupõe não ser o vestuário que fazia parte da rotina da escola e dos estudantes. O destaque para a separação dos meninos e das meninas, sendo que a maioria dos meninos encontram-se posicionados no alto e as meninas abaixo dos meninos, demonstrando de certa forma uma posição hierárquica comum para esse modelo de sociedade. Percebe-se que essa imagem é a representação de uma foto oficial, de modo que há uma necessidade de demonstração de poder.

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Siqueira et al (1990), ao informar sobre as instalações existentes na Usina Itaicí, registrou acerca da Casa das máquinas, Casa de Vivenda, armazém, depósitos, serrarias, moinhos e sobre a escola:

A arquitetura de maior porte dentro da usina era, sem dúvida, a Casa das Máquinas [...] local onde era desenvolvida a maior parte do processo produtivo: moendas, balanças, decantadores e caldeiras. Além dessa fábrica, existia uma ―casa grande‖. [...] Ali residia o dono da usina com sua família. Aos camaradas eram reservadas pequenas casas, geralmente germinadas. Além das construções para residência, existiam ainda, dentro das usinas de maior porte, escolas, armazém, depósitos [...], serrarias, moinhos e máquinas de beneficiar arroz (SIQUEIRA, 1990, p. 39).

A pesquisa de Gonçalves (2011) tem como objetivo registrar a partir da memória dos ex-trabalhadores como era a vida nas usinas, as relações de convivência, trabalho, sujeição, como também a escolaridade dos trabalhadores; desta forma, ela cita a existência de escolas nas usinas. ―Tivemos a preocupação de registrarmos o grau de escolaridade dos depoentes, uma vez que havia escolas em três usinas (Conceição, Aricá e Itaicí). Todavia, a escola só surgia integrada ao cotidiano‖ (GONÇALVES, 2011, p. 31). Essa escola fez parte de um contexto marcado pela vida rural, porém, dinamizada pelo ritmo das máquinas, atendendo assim a infância atrelada a uma rotina que envolvia escolarização, trabalho e tensões envolvendo o proprietário da usina, o Cel. Totó Paes, que de personalidade forte, construiu uma cidade em torno da usina, abrigando centenas de funcionários que eram a mola propulsora de seu grande empreendimento – A usina Itaicí. Esse proprietário integrou a escola no projeto da usina. No entanto, depois da sua morte em 1906, ao que tudo indica, parece ter paralisado as atividades da escola. No acervo do Arquivo Público de Mato Grosso há um abaixo assinado dos moradores da comunidade de Melgaço referente ao ano de 1910 solicitando a criação de uma escola na Usina Itaicí:

Ao Ex. Senr. Coronel Pedro Celestino Corrêa da Costa – M, D, Presidente do Estado: os abaixo assinados, representantes de várias classes sociais, todos residentes no distrito de Melgaço, município de Santo Antonio de Rio Abaixo, vêm com todo o acatamento levar ao conhecimento de V. Ex. o fato que passam a expor, e para cuja solução pedem a preciosa atenção de V, Ex. Sendo já crescido o número de meninos que em toda zona da vila de Melgaço e adjacências deixam de frequentar a escola, uns por extrema pobreza dos respectivos pais e educadores, outros pela distância em que residem do distrito, e já existindo na Usina Itaicy uma escola apropriada para nela funcionar uma escola e material destinado ao mesmo fim, os abaixo assinados pedem a V. Ex, que ouvida a autoridade escolar, se digne a ceder à

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criação de uma escola na referida usina do ―Itaicy‖, cuja instalação os signatários desta se comprometem a efetuar a expensas próprias. Compenetrados do interesse que V, Ex. dedica as coisas do ensino, os signatários confiam que o pedido melhoramento mereça a aprovação de V. Ex. a quem apresentam os mais elevados protestos de estima e consideração (MATO GROSSO, 1910, s/p) 27.

Segue abaixo o quadro com o nome de todos os moradores que assinaram a solicitação. Quadro 10 - Lista dos moradores

Francisco Pinto de Oliveira Virgínio Nunes Ferraz Junior Vicente Ferreira de Paula Francisco de Assis Olimpo de Assis Pinto José Maria Nunes de Campos Albuquerque Aparício Silvino Peixoto Joaquim Pinto Guedes Antonio João da Silva Jorge Nunes da Conceição Antonio Fernandes de Mello Sebastião Batista de Assardos Jeronimo Nunes Jorge Reiner Antonio Plinio de Barros Bernardo Antonio de João Lima Oliveira Joaquim Pinto de Oliveira Pedro José Machado Elaborado pela autora. Fontes: APMT, Lata 1910 B – pasta avulsa.

27 Acervo Arquivo Público de Mato Grosso (APMT). Lata de 1910 B, pasta Instrução Pública. 131

Figura 16 - Ata de solicitação da abertura da Escola de Itaicí.

Fonte: APMT, Lata 1910 B – pasta avulsa.

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Porém, o jornal O Commercio de 30 de junho de 1910 trouxe uma nota informando que o a solicitação da criação da escola de ensino primário na Usina Itaicí foi indeferida pelo poder público, tanto por parte do Presidente de estado como pela Diretoria da Instrução Pública. Segundo a nota:

Estamos informando que levada a dita representação à direção da instrução, para informar, o respectivo chefe desse departamento de serviço opinou pelo indeferimento da justa pretensão dos signatários da referida representação, procedimento esse que estranhamos tenha partido de um provecto educar, como folgamos em reconhecer assim o Sr. Major José Estevão Corrêa, tão tão devotado à causa da instrução pública, opinião aliás que vai de encontro ao programa do governo tendente a alargar, desenvolver e propagar o ensino primário (O COMMERCIO, 1910, p. 2).

Figura 17 - Sobre o indeferimento da Escola de Itaicí.

Fonte: Jornal O Commercio, 1910, p. 2. BN.

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O referido indeferimento não foi localizado, mas pressupõe-se que ele pode ter sido ocasionado pelo fato de que o Regulamento da Instrução Pública de 1910 estabelece que as escolas criadas em áreas particulares sejam de responsabilidade dos proprietários. Outro entendimento é de que os fatores políticos também refletiam nas tomadas de decisões, e neste sentido, lembramos que a história da Usina Itaicí foi marcada por intensas disputas de poder, o que acarretava em tensões e conflitos constantes. A história da usina ainda carrega esse legado, dessa forma, não é difícil imaginar o indeferimento como uma atitude de retaliação. A falta de fontes e informações sobre o funcionamento da escola entre 1910 e 1928 nos impede de avançarmos mais. Porém, com base no relato de 1995 do ex-aluno da Escola de Itaicí, o Sr. Luiz Pereira Duarte (1995), sabe-se que ele estudou nessa escola em 1924: ―Em 1924 mudamos para a Usina Itaicí. [...] Itaicí tinha uma boa escola. [...] Fui para a escola‖. Isso indica que ela não ficou paralisada por todo esse período. A partir de 1928 há registro de que a escola funcionou como escola ambulante. Conforme o Decreto 797, de 14 de março de 1928 – fl. 151 e 152, ―Cria-se uma escola ambulante mista de instrução primária no lugar denominado Itaicy, no município de Santo Antônio do Rio Abaixo‖ (MATO GROSSO, DECRETO, 1928). O Presidente do estado de Mato Grosso atendeu a representação dos moradores de Itaicí, no município de Santo Antônio do rio Abaixo [fl.151] sobre a necessidade de ser ali criada uma escola mista dada a existência de muitas crianças em idade escolar, e tendo em vista as informações prestadas a respeito pelas autoridades competentes. Conforme o Art. Único:

O Presidente do Estado de Mato Grosso, atendendo a representação que lhe dirigiram os moradores do Itaicy, no município de Santo Antônio do rio Abaixo sobre a necessidade de ser ali criada uma escola mista dada a existência de muitas crianças em idade escolar, e tendo em vista as informações prestadas a respeito pelas autoridades, competentes. Decreta: Art. Único – Fica criada, nos termos do art. 253, do Decreto regulamentar n.º 759, de 22 de abril de 1927, no lugar denominado Itaicy, município de Santo Antônio do Rio Abaixo, uma escola ambulante mista de instrução primária; revogadas as disposições em contrário. Palácio da Presidência do Estado, em Cuiabá, 14 de março de 1928. Mário Corrêa da Costa (MATO GROSSO, DECRETO, 1928, p. 151).

O livro abaixo informa a relação de escolas criadas em área particular, observa-se que a Escola de Itaicí consta na lista. O documento apresenta também a data de criação de cada escola e o nome dos professores. Outra característica importante informada na referida fonte é um espaço para observações no qual são apontadas algumas situações que as escolas se

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encontravam como: a escola ainda não foi provida, têm móveis, não têm móveis, etc. No entanto, nota-se que não há registros dessas informações sobre a Escola de Itaicí.

Figura 18 - Relação das escolas em área particular.

Fonte: APMT, Caixa 1930 H.

Não foi possível localizar muitos registros referentes às características e funcionamento das escolas ambulantes de Mato Grosso. As pesquisas de autores que trabalham com a história da educação no estado como Alves (1998), Siqueira (2000), Sá (2007), REIS (2011), Silva (2014), entre outros, não mencionam referências sobre esse modelo de escola. Apenas o Regulamento de 1927 que traz no capítulo II das disposições gerais, art. 253 uma única menção – ―Nas zonas de pequenos núcleos de população, poderá o governo criar escolas rurais ambulantes, circunscrevendo-lhes o raio de ação, os pontos de

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localização e o tempo de funcionamento em cada um desses pontos‖ (MATO GROSSO, REGUAMENTO, 1997, s/p). As informações mais específicas das quais se tem conhecimento acerca de escolas ambulantes, parte dos estudos de Souza (2015) que ao tratar sobre a diferenciação espacial das escolas isoladas em São Paulo afirma que:

Em 1904 foi ratificada a classificação das escolas primárias conforme a localização e o uso legal do termo escola isolada. A Lei n. 930, de 13 de agosto, estabelece que o ensino preliminar seria ministrado em escolas ambulantes, em escolas isoladas situadas em bairros ou distritos de paz e na sede de municípios, nos grupos escolares e na escola modelo preliminar anexa à escola normal da Capital. Para a autora o regulamento estabelecido para a execução dessa lei (Decreto n. 1.239, de 30 de setembro de 1904) especificou a compreensão de cada uma dessas escolas. ―Eram consideradas ambulantes as escolas isoladas situadas em bairros vizinhos, servidos por via férrea, que estivessem entre si na distância máxima de 6 Km‖. Desta forma, as aulas nas escolas ambulantes seriam ministradas alternadamente um dia em cada bairro. Por último, ―a autora mostra que o regulamento estabelecia que o ensino nas escolas ambulantes teria a duração de três anos, determinando, assim, uma primeira diferenciação das escolas em razão do tempo de duração do curso primário‖ (SOUZA, 2015, p. 297).

Essa foi a definição de escola ambulante encontrada. Embora seja referente ao estado de São Paulo, ela ajuda a ter um entendimento da organização das escolas nesse modelo de ensino, tendo em vista que São Paulo sempre serviu de referência na elaboração das reformas educacionais no estado de Mato Grosso. Os registros sinalizam que a Escola Ambulante Mista de Itaicí parece ter atuado entre os anos de 1928 até aproximadamente 1933, momento em que aparecem informações referentes à outra denominação de escola primária em Santo Antonio do Rio Abaixo, isto é, Escola Rural Mista. Foram criadas ao todo 06 escolas ambulantes no município de Santo Antonio do Rio Abaixo, sendo elas:

Quadro 11 - Lista das ambulantes do Município de Santo Antonio do Abaixo

Nº ESCOLA ANO LOCALIDADE 01 Escola primária ambulante mista de Itaicí 1928 Usina Itaicí 02 Escola primária ambulante mista de 1929 Usina Tamandaré Tamandaré 03 Escola primária ambulante mista de Porto 1929 Porto Pintos Pintos 04 Escola primária ambulante mista de 1929 Furado

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Furado 05 Escola primária ambulante mista de Aricá 1931 Usina Aricá 06 Escola primária ambulante mista de 1931 Usina Flexas Flexas Fonte: Ementário de 1890 a 1935. Arquivo Público de Mato Grosso.

Nota-se que foram criadas 04 escolas ambulantes em usinas de açúcar, a Escola de Itaicí foi a primeira escola ambulante criada no município. Como já foi dito, infelizmente não identificamos informações específicas sobre o funcionamento desse modelo de escola em Mato Grosso, nem mesmo da Escola Itaicí, porém, houve um esforço em não ignorar as poucas fontes existentes, que a nosso ver, são importantes para o conhecimento, análise e apreensão dos elementos que compõem a historicidade das instituições de ensino. Alguns desses elementos localizados foram: a identificação de dois professores. Com base em atestados de trabalho28 e solicitação de material escolar foi possível identificar o nome de dois professores que atuaram na escola ambulante mista de Itaicí, são eles: Maria Pereira de Souza e José Fabelino de Souza Filho, como se pode observar nas figuras abaixo:

28 Foram localizados atestados referentes ao período de agosto a outubro de 1930. 137

Figura 19 - Atestado de trabalho

Fonte: APMT, Caixa de 1930, pasta provas escolares.

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Figura 20 - Solicitação de material escolar

Fonte: APMT, Caixa 1931 12 C. 139

Figura 21 - Lista de material escolar da Escola Ambulante mista de Itaicí de 1931.

Fonte: APMT, Caixa 1931 12 C. 140

Além da identificação dos professores, o atestado traz outro elemento importante, ou seja, o fato de que a escola funciona em um prédio de propriedade particular, acentuando que mesmo a escola estando sob a gestão do estado havia participação dos proprietários da usina no agenciamento da instituição escolar, mostrando também poder. Em relação à solicitação de materiais, observa-se uma lista restrita de aquisição de materiais para fins de documentar a vida escolar, observa-se assim que não foi solicitado nesse momento nenhum material para fins didáticos, pedagógicos ou equipamentos. Diferentemente da solicitação do professor da Escola Mista Ambulante da Usina Tamandaré.

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Figura 22 - Lista de materiais da Escola Mista Ambulante de Tamandaré.

Fonte: APMT, Caixa, 1930 H.

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Também há registro de uma solicitação de Licença para tratamento de saúde da professora interina Maria Pereira de Souza da Escola Ambulante de Itaicí com a data de 28 de setembro de 1930. Nela consta: A abaixo assinada, professora interina da escola ambulante mixta da povoação de Itaicí, no município de Sant Antonio do Rio Abaixo, achando-se doente e por isso, impossibilitada de continuar no exercício do seu cargo, vem respeitosamente pedir a V. excia. Se digne de conceder dois meses de licença, para seu tratamento, deixando de apresentar atestado médico por não existir facultativo nesta localidade (MATO GROSSO, SECRETARIA DA PRESIDENCIA, REQUERIMENTO, APMT, CAIXA 1930 H).

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Figura 23 - Solicitação de Licença para tratamento de saúde.

Fonte: APMT, Caixa 1930 H. 144

Não se sabe ao certo se a solicitação foi atendida, todavia, a partir de 1931 o professor José Fabelino de Souza Filho assume as aulas em substituição à professora Maria Pereira de Souza, que mais tarde passa a lecionar como professora efetiva do grupo escolar Leônidas de Matos.

Figura 24 - Resumo geral de ponto.

Fonte: APMT, Caixa 1938.

A falta de elementos importantes para maior compreensão da escola, tais como: livro de matrículas, relação dos livros utilizados, registros de algum tipo de punição, cadernos de alunos e/ou professores, provas, enfim, qualquer outro tipo de material capaz de indicar maiores informações sobre a organização da escola e da cultura escolar, impediu-nos de aprofundar no universo dessa escola, pois certamente esses vestígios ajudam a elucidar parte da história da educação de Mato Grosso. Diante dessa conjuntura, nota-se que a escola se destacou no contexto da história da educação de Mato Grosso por oferecer escolarização para infância rural, com prédio próprio para o funcionamento da escola, atendendo uma média de 40 crianças, o que era bastante significativo para uma época na qual a expansão escolar acontecia a passos lentos, e, ainda, 145

por oferecer um currículo que ia além do estabelecido nas normativas, ou seja, a instituição proporcionou aulas de música, biblioteca e formação de uma banda para os alunos e trabalhadores (as). Por outro lado, o fato de ter acesso à escolarização não dispensou as crianças do ritmo de trabalho na usina. Com autorização de seus pais, praticamente toda a infância foi vinculada á rotina de trabalho e á escolar, porque não sabemos ainda em quais condições foi reservado para as crianças o tempo de brincar.

3.2 Aspectos da Cultura escolar

Pode-se dizer que a escola de Itaicí era única, tinha sua própria identidade, a sua história e a sua cultura escolar. A escola apresentava características modernas, oportunidades e esperança para uma população empobrecida e muitas vezes subordinada aos interesses dos patrões. O lugar que a escola primária ocupou na usina e na vida daquela infância foi muito relevante, tendo em vista as circunstâncias pelas quais esse público escolar e a comunidade eram submetidos. Ter acesso ao curso primário era uma oportunidade para que as crianças se apropriassem dos processos de leitura e escrita, essenciais para a vida. Mesmo num contexto complexo, a escola teve seu lugar. Porque produziu valores, hábitos, costumes, e estes uma vez produzidos e apropriados sinalizavam novos caminhos, novas possibilidades. As culturas fabricadas no contexto da Usina Itaicí através da escola de ensino primário e de música têm a ver com os modos de pensar, agir, ou melhor, com modos de ver e ler o mundo, com os modos de ser, de conviver socialmente. Mas o legado que a função social da escola proporcionou na vida de uma comunidade vai além do ato de pensar, ser, ter, ou agir; ele sugere sonhar, mesmo que os dias parecessem tempestuosos. A Escola de Itaicí é permeada de representações configuradas por um lugar, um espaço, uma cena (CERTEAU, 2002). Deste modo, entende-se que o lugar trata-se da representação de uma instituição voltada para o ensino primário. A escola por sua vez é o espaço projetado, arquitetado e operacionalizado para a ação educativa, na qual foram-se constituindo as cenas que delinearam a cultura escolar, como pode ser observado a partir da estrutura da escola, da sua arquitetura, de seus objetos, das aulas, do currículo escolar, bem como, a partir das pessoas envolvidas nesse processo de fabricação de identidades que marcaram as formas da educação

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do passado. Assim, a escola ocupa o lugar legítimo para educação das crianças, tomando grande parte dos tempos da vida de meninos e meninas. O estudo da cultura escolar dá visibilidade às mudanças e permanências presentes nos modelos de escola, nas reformas educacionais, na atuação de professores e alunos, nos modos de ensinar e aprender. Para Gallego (2015):

Ao debruçar sobre a questão O que a escola faz pelos/com os sujeitos que passam tantos anos nessa instituição?, é notável, no âmbito da sua organização temporal, como os tempos individuais, dos alunos e dos professores, especialmente, vão se esquadrinhando por uma arquitetura minuciosa de tempos, ritmos e rituais à qual os estudantes e os professores devem aderir para permanecer no interior da escola, ainda que isso não se faça sem resistências, burlas e discordâncias (GALLEGO, 2015, p. 253).

Detendo atenção sobre a questão do espaço, especificamente da escola e de sua estrutura física e arquitetônica, percebe-se que estes se configuram como elementos da cultura material escolar a partir de um anseio de intervenção na apropriação de uma linguagem estética e um sentido de funcionalidade, sem deixar de considerar o aspecto simbólico, disciplinar e de controle, características das escolas da primeira república. Segundo Barros (2004), a História da Cultura Material é a modalidade que estuda os objetos em sua interação com os aspectos da vida humana, desdobrando-se por domínios históricos que vão do estudo dos utensílios, alimentação, vestuário, moradia e das condições materiais do trabalho humano. Para o autor (2004), a noção que atravessa este campo é a da matéria ou do objeto, que pode ser tanto o de tipo durável, como no caso dos monumentos e dos utensílios, como do tipo perecível, como no caso dos alimentos. Contudo, este campo deve examinar não o objeto material tomado em si mesmo, mas os seus usos, as suas apropriações sociais, as técnicas, a sua importância econômica e a sua necessidade social e cultural. E ainda destaca que:

Desta forma, o historiador da cultura material não estará atento apenas aos tecidos e objetos da indumentária, mas também aos modos de vestir, às oscilações da moda, às suas variações conforme os grupos sociais, às demarcações políticas que por vezes se colam a uma determinada roupa que os indivíduos de certas minorias podem ser obrigados a utilizar em sociedades que aproximam os critérios da ―diferença‖ e da ―desigualdade‖ (BARROS, 2004, p, 30).

Ao admitir que a arquitetura seja um elemento importante na constituição da cultura escolar, segue-se no entendimento de que: 147

A arquitetura trabalha com criação de espaço e, por consequência, com a interface ambiente construído-homem. A fim de atender às diversas necessidades humanas que são, de forma geral, morar, ter acesso à saúde, educação, lazer e trabalho, uma série de espaços foram criados, com elementos e organização específicos, variáveis de acordo com a proposta de uso. Além da variação pelo uso, histórica e geograficamente esses espaços também têm seus aspectos modificados como reflexo das mudanças de pensamento, interação e estilo de vida de cada época e local (SOUZA, 2018, p. 56).

Para Cunha:

O espaço, portanto, é um território de subjetividades múltiplas, no qual o homem elabora conteúdos conscientes e inconscientes, de acordo com as características específicas de determinado universo ambiental. O cotidiano do processo de elaboração do espaço aparece como uma constante troca entre o homem e o meio ambiente, engendrando um redimensionamento de variáveis culturais, econômicas, físicas, psicológicas e sociais que permitirão a apuração do sentido desse espaço. A natureza do espaço é nomeada de inúmeras maneiras. Cada lugar está associado a um determinado tipo de experiência humana, quando sentimentos e pensamentos respondem por um lugar e o qualificam. Assim sendo, um lugar transmite uma imagem para o usuário em função da experiência humana acerca desse lugar. De fato, os espaços podem ser alegres, felizes, tristes, angustiantes, altivos, enfadonhos, opressores, temerosos, duvidosos, sofridos, enfim, uma multiplicidade de qualificações decorrentes de uma multiplicidade de qualidades e produções humanas (CUNHA, 2009, p. 34-35).

Este autor se dedicou á pesquisa sobre a arquitetura escolar, tendo como objeto de estudo a Escola Normal e Escola Modelo ―Palácio da Instrução de Cuiabá‖. Ele destaca que:

O prédio do Grupo Escolar, Palácio da Instrução em Cuiabá, proporcionou a quem utilizou seus espaços internos uma série de sentimentos, registros e experiências, modelando o seu caráter e seu modo de ver o cotidiano. O próprio edifício em sua concepção física-arquitetônica trousse como primeira preocupação republicana o aspecto da suntuosidade e da monumentabilidade em relação a cidade, isso ficou impresso na percepção dos habitantes, o que com certeza desvirtuou o papel principal que deveria ser a educação para um maior numero de alunos possível, sem exclusão, logo contrariando os objetivos primeiro do espaço escolar como o conteúdo humano a ele relacionado (CUNHA, 2009, p. 35).

O projeto do ―Palácio da Instrução‖, em Cuiabá, atendeu rigorosamente no aspecto social, à organização capitalista de escola, já que a questão republicana prioritária não era prover de ensino um grande número de alunos (embora o discurso fosse de educação popular), mas sim, levar o conhecimento a alguns poucos privilegiados, mantendo-os entre as paredes das salas de aulas, submetidos ao olhar vigilante do professor o tempo necessário para terem seu caráter domado e seu comportamento 148

convenientemente formado, até que fossem transformados em cidadãos e trabalhadores educados, de bom caráter e lhes fossem atribuídas qualidades servis, mostrando-se preparados para ocupar cargos de mando e no mercado de trabalho que surgia. No que diz respeito à concepção espacial do prédio, esta acompanhou os conceitos de Berthan, escritor, jurista e utilitarista inglês que escreveu e propôs, em 1787, ―O Panóptico‖ (The Panoptico), segundo o qual os edifícios dessa natureza se fundamentariam no princípio da inspeção central, da vigilância integral e generalizada, 60 sendo idealizado objetivamente para ser uma prisão. A perspectiva panóptica foi codificada e apropriada em 1875 por Banard, autor do manual ―School Architect‖, que pregava a distribuição dos espaços de forma detalhada, estanque e rígida, com vistas ao estabelecimento do controle absoluto sobre os alunos e professores (CUNHA, 2009, p. 36)

Cunha (2009) entende que a organização do espaço escolar conforme esse modelo pedagógico intencionava o controle, a coerção, a subordinação e a disciplina discente, determinando as classes e horários, implantação da sala do diretor geralmente no centro do edifício, assim como fixar o mobiliário no chão, tudo isso como indicativo, segundo ele, de um planejamento arquitetônico inovador em que o controle do espaço determinou um lugar para cada indivíduo, estabelecendo a submissão dos corpos e a fiscalização dos menores movimentos. Nessa perspectiva, segue-se em direção do contexto da Escola de Itaicí, dando visibilidade aos aspectos da cultura material a partir da arquitetura da escola, especificamente, sobre a imponente fachada, conforme a imagem abaixo evidencia:

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Figura 25 - A Escola de Itaicí.

Fonte: Acervo da Secretaria Municipal de Cultura de Santo Antonio de Leverger.

O destaque da imagem está na fachada da escola. A palavra ESCOLA ganhou notória visibilidade. Isso sugere pensar que o prédio foi construído para esse mesmo fim, ou seja, a escolarização das crianças. Ao que indica, o espaço foi projetado e destinado ao funcionamento de uma instituição escolar, algo inusitado para época. Segundo Felgueiras (2005) ―Se as ideias e teorias pedagógicas podem ser conhecidas através de escritos, às rotinas do quotidiano escolar e das vivências da condição de criança, de aluno e a de professor terão de ser investigadas através das memórias e materiais a elas associados‖ (FELGUEIRAS, 2005, p. 92). A escola Itaicí tinha uma localização privilegiada e, por sinal, estratégica. Ela foi instalada numa área destinada ao setor comercial, distribuído em casas geminadas, onde funcionavam além da escola, a farmácia, a padaria e o mercado. A escola ficava na esquina e os cômodos grandes abrigavam a sala de aula e o curso de música, onde também ficavam os instrumentos musicais. Outro fator relevante, que a imagem não mostre, é que a escola ficava próxima a casa do proprietário, com visão privilegiada, o que permite pressupor o olhar panóptico, sugerindo uma condição de controle.

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A imagem abaixo ilustra o espaço demarcado pela escola, sendo visualizada da primeira casa da direita para esquerda, onde se encontrava um grupo se pessoas, possivelmente trabalhadores da usina, o professor de música e os alunos. Os outros domicílios geminados foram destinados ao setor comercial.

Figura 26 - A Escola de Itaicí e o setor comercial

Fonte: Acervo da Secretaria Municipal de Cultura de Santo Antonio de Leverger.

Outro fator também que chama a atenção de certa forma é a monumentalidade da arquitetura da Escola de Itaicí, como já detectado no estudo de Cunha (2009) sobre a Escola Normal e Modelo de Cuiabá, o qual chama a atenção pela estrutura da fachada e os detalhes de ―estilo neoclássico‖ (CUNHA, 2009, p. 74), Nesse sentido, percebe-se, segundo Arruda (2010), que no início da República, a arquitetura do Brasil era pensada na direção do uso do edifício projetado para personalizar o governante. Esse processo de personalização da arquitetura encontrava no edifício público um aliado poderoso, pois a arquitetura de qualidade apresentava-se como um elemento de prestígio político ao governo e, dessa forma, deveria conter algumas características essenciais, como localização, visibilidade, escala de monumentalidade e principalmente o vocabulário empregado no estilo utilizado.

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Nota-se que a Usina Itaicí (fabrica), as casas dos funcionários, a área comercial, a capela, a escola, de certa forma, projetava essa personalização afirmada por Arruda (2010). Uma vez que é observado no espaço da Usina Itaicí os critérios presente na intencionalidade de projeção do proprietário, que neste caso foi um elemento importante de projeção tanto empresarial como política. Arruda (2010) também destaca sobre a questão do estilo arquitetônico que predominou no início da república no Brasil e segue na direção apontada por Cunha (2009) e discutido anteriormente. Dessa forma Arruda (2010) discorre:

O estilo arquitetônico em voga no início da república caminhava pelo neoclassicismo francês, que se instalou no Rio de Janeiro a partir de 1808 e pelo ecletismo de viés italiano, que chegou a São Paulo pelas mãos dos construtores e fachadistas migrantes e esses estilos espalharam-se pelas diversas cidades brasileiras com uma enorme velocidade (ARRUDA, 2010, p. 111).

Pode-se dizer que a escola também acompanhou as mudanças estruturais e arquitetônicas realizadas nos prédios públicos nos primórdios da república. Mas o destaque foi para a construção dos grupos escolares. As escolas isoladas, principalmente as rurais, não tiveram a mesma ressonância, com algumas exceções como a Escola de Itaicí, que devido ao seu contexto foi agenciada com uma estrutura diferenciada. Quase não há registros sobre a Escola de Itaicí vista por dentro. Ou estes ainda não foram localizados. Porém, as imagens indicam que a escola era um cômodo grande, talvez dividido em dois cômodos para abrigar a escola primária e escola de música. O que se sabe é que a escola atendeu as duas funções no mesmo prédio. A escola construiu uma cultura voltada com base no compromisso e a finalidade de alfabetizar. Porém, as práticas fabricadas no contexto da referida escola, projetaram além do ensino de leitura, escrita e aritmética, outras práticas como aulas de música e alfaiataria. Percebe-se assim a produção de uma cultura escolar como objeto histórico, compreendida como:

...um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas, finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização (JULIA, 2001, p. 10).

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Essa cultura escolar que se manifestou também por meio das aulas de música fazia parte do currículo da Escola de Itaicí evidenciado na prática, que se constituiu em um diferencial em relação ao currículo padrão para o ensino primário da época. Segundo o parágrafo Único do Regulamento da Instrução Pública de 1896, as disciplinas estabelecidas para o ensino primário eram: leitura de impressos e manuscritos; elementos de Gramática portuguesa e composição em prosa; elementos de Aritmética; caligrafia e escrita; noções de Geografia; noções de História do Brasil; trabalhos de agulhas e de prendas domésticas. Podemos notar que não há aula de música no currículo escolar oficial. No Regulamento de 1910 em seu art. 4° consta que as disciplinas a serem ofertadas para o ensino primário eram: leitura, escrita, cálculo aritmético sobre números inteiros e frações, língua materna, geografia do Brasil, deveres cívicos e morais, trabalhos manuais apropriados à idade e ao sexo dos alunos; e para o secundário além das disciplinas do primário, somam-se ainda: gramática elementar da língua portuguesa, leitura de prosa e verso, escrita sob ditado, caligrafia, aritmética até regra de três, sistema legal de pesos e medidas, morfologia geográfica, desenho a mão livre, moral prática e educação cívica, geografia geral e história do Brasil, cosmografia, noções de ciências físicas, químicas e naturais, e leitura de música e canto. Percebe-se que nesse Regulamento de 1910 aparece a disciplina de música e canto, no entanto ela fazia parte do currículo do ensino secundário e não do ensino primário. Percebemos assim que a Escola de Itaicí ofertou as aulas de música no ensino primário, para as crianças, mesmo sem esta ser uma exigência prevista na legislação. No regulamento de 1927 - art. 6º estabelece-se que a escola rural tem por fim ministrar a instrução primária rudimentar; seu curso é de dois anos e o programa constará de leitura, escrita, as quatro operações sobre números inteiros, noções de História Pátria, Corografia do Brasil e especialmente de Mato Grosso e noções de Higiene. Mas uma vez as aulas de música ficaram de fora do currículo para o ensino primário, o que evidencia a importância dessa atividade no contexto da usina Itaicí, sendo que esta foi criada nos primeiros anos da república e permaneceu até aproximadamente o final da década de 1920, mantendo a formação de uma banda de música. As aulas de música eram ministradas na escola de música que na prática foi inserida na rotina da escola primária, estabelecendo uma relação entre prática social e prática escolar. A escola de música funcionava no prédio da escola primária. Foi uma atividade que ocorria concomitante com as aulas regulares e, por sua vez, representava uma atividade inovadora

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para época em termos de currículo para alunos de escola rural, que mesmo sem constar no currículo oficial ocorreu enquanto prática e cultura escolar. A implantação da escola de música foi tão importante que o proprietário criou uma banda de música composta por operários da usina e pelos alunos da escola. A imagem abaixo é da escola de música. Nessa imagem é possível observar o ambiente dessa escola, a variedade de instrumentos de sopro, os alunos, os professores, os livros, as vestimentas, e uma observação mais minuciosa pode ser feita, considerando que aparentemente os alunos de maioria branca estão posicionados do lado esquerdo, e os alunos negros se posicionam do lado direito, pressupondo uma espécie de segregação. Neste caso não seria algo que pudesse causar espanto por se tratar de uma sociedade hierarquizada. Salvo engano, a imagem vem evidenciar que embora todos tivessem acesso à aula, à escola, à música; no campo social e cultural, o tratamento era desigual.

Figura 27 - Aula de música.

Fonte: Secretaria Municipal de Cultura de Santo Antonio de Leverger, s/d.

Historicamente, a formação dessa banda de música consta desde os primórdios da usina, quando ainda se encontrava sob o comando do Cel. Totó Paes. Segundo Souza (1958), o Jornal O Paiz de 1906 relatou a existência da banda quando uma equipe do referido jornal

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visitou a Usina Itaicí. O Jornal Correio do estado 29 , um órgão do partido Republicano, também noticiou sobre a banda de Itaicí, cuja publicação de um artigo intitulado Santo Antonio em festa destaca ―As corretas bandas de música dos menores da usina do Itaicy e da Força Pública do estado abrilhantando sobre modo todas as solenidades‖ (CORREIO DO ESTADO, 1925, p. 2). Os menores de que trata a notícia do jornal eram as crianças da usina na condição de alunos da escola. A banda era conhecida como a banda dos menores de Itaicí.

Figura 28 - A banda de música de Itaicí.

Fonte: Álbum Gráphico de Mato Grosso, 1914, p. 279.

O ex-aluno da escola, o Sr. Luiz Pereira Duarte30, deixou para a família um relato sobre a sua trajetória de vida que sem dúvida representa um testemunho do passado no qual há uma interpretação de si e do mundo no qual estava inserido. Ele nos permitiu adentrar na povoação de Chacororé, na Igrejinha dedicada a Nossa Senhora das Dores, na sua casa que ficava a beira do carvoal, na sua escola. Foi possível ouvir as valsas e os tangos nas festas de santo, enfim, ele nos conduziu a um encontro com as suas memórias de modo que elas provocaram em nós experiências positivas com os seus sentimentos, suas paixões e suas emoções. Seu testemunho vem das lembranças do passado e das dimensões experienciais da memória pautada na sua trajetória de vida, todavia, com foco na realização de um sonho, a sua formação em música. As suas lembranças tem a ver com o que Ecléa Bosi discute em Memórias de velhos ao se relata que

29 Jornal Correio do Estado, Ano III, Cuiabá, de 05 de dezembro de 1925, nº 231, publicação semanal. 30 DUARTE, Luiz Pereira. Relato. E o sonho realizou. Datilografado. Santo Antonio de Leverger, 06 de Outubro de 1995, p. 1-3. 155

―(...) neste momento de velhice social resta-lhe, no entanto, uma função própria: a de lembrar. A de ser a memória da família, do grupo, da instituição, da sociedade‖ (BOSI, 1994, p. 63). A autora (BOSI, 1994) chama a atenção para o momento da velhice, para o fato de que este tem uma função própria que é a de lembrar. Essas lembranças, por sua vez, remetem às experiências da vida familiar e atravessam esse universo adentrando nas memórias que são sociais. Compartilhando das ideias de Bosi (1994), nota-se que é bem isso que percebemos nas memórias do Sr. Luiz Duarte, memórias de um ―velho‖ que se preocupou em preservar a sua história escrevendo no ano de 1995 um texto datilografado em três páginas devidamente assinado por ele. A sua narrativa segue na direção de seus sentimentos e suas emoções ao tratar das memórias, iniciando com as lembranças da sua infância, as quais nos fazem voltar no tempo, no ano de 1916 quando ele veio ao mundo numa família composta por oito filhos. Ele nasceu na povoação de Chacororé que fica próxima a cidade de Barão de Melgaço em Mato Grosso, e que antes pertencia ao município de Santo Antonio do Rio Abaixo, lugar em que morou boa parte do seu tempo se dedicando à música e sustentando a família através dela. As suas primeiras lembranças se iniciam a partir da escolha do seu nome, uma vez que que no dia 6 de outubro de 1916 foi chamado de Bruno, porém os pais alteraram para o nome de Luiz Pereira em memória de seu avô materno. Ele lembra que naquela época a povoação já tinha uma igrejinha dedicada a Nossa Senhora das Dores situada na encosta do morro com frente para o rio, e contou ainda que ele foi batizado neste local pelo Padre João Xavier que vinha de Santo Antonio de canoa. Em seguida, esse testemunho da história reporta as memórias da sua casa e das festas de santo, dizendo que:

Nossa casa ficava na beira do Carvoal, bem atrás da rua, mas além ficava a Baía do Recreio e o Tijucal no caminho que subia para o Acorizal. [...] Uma das grandes atrações de Melgaço era a festa de Nossa Senhora das Dores, quando vinha o Padre de Santo Antonio e a Banda de Música de Cuiabá (TESTEMUNHO, DUARTE, 1995, p. 2).

Essa representação também nos faz pensar no seu modo de vida, a convivência em uma comunidade rural, em meio à fumaça da produção de carvão, povoação que possivelmente muitas vezes se via desprovida de recursos básicos, algo comum naquele contexto. Contudo em sua memória optou por eleger apenas as boas lembranças. Essa

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observação se faz presente em praticamente todo o texto. Por exemplo, quando ele trata da iluminação da festa, relata que: Desde o páteo da igrejinha em toda a extensão da rua, forma fila de postezinho de taquara de um metro de altura com um espaço de dois metro um do outro, duas laterais com uma avenida entre as laterais, nos postes era colocado um copo feito de uma laranja azeda sem os gomos, e dentro dela um pavio de algodão embebido em azeite e ateia fogo para clarear a noite. Durante a iluminação a Banda de Música executava valsa, tango, maxixe, mazurca e a polca, que era o ritmo daquele tempo (TESTEMUNHO, DUARTE, 1995, p. 2).

Seu testemunho reflete a memória:

[...] do homem que já viveu sua vida. Ao lembrar o passado ele não está descansado, por um instante, das lidas cotidianas, não está se entregando fugitivamente às delícias do sonho: ele está se ocupando conscientemente e atentamente do próprio passado, da substância mesma da sua vida (BOSI, 1994, p. 60).

Contudo, não se pode ignorar que a evocação das lembranças do passado, partindo daquilo que se tem enquanto essência desse passado, é (re)significada e reconstruída pelo fato das memórias recorrerem às representações com base nos acontecimentos mais recentes para tecer uma leitura ou releitura do passado. Nesse sentido, observa-se na continuidade da sua narrativa que as memórias afetivas o acompanham a todo o momento. Ao abordar sobre a vida na Usina Itaicí, lugar onde morou por cinco anos, e que foi onde realmente teve o seu encontro com a música, ele usa de muito sentimento e paixão ao relatar sobre empresa que também era uma comunidade, registrando da seguinte forma:

Em 1924 mudamos para a Usina Itaicí, que fica rio acima de Melgaço, uma distância considerável, subindo o rio: - Rancharia, Piuva, Sangradouro- Grande, Croará, Varadouro, Santa Maria, Tamandaré, e mais duas volta do rio e ... eis Itaicí. Como é atraente Itaicí, com um amontoado natural de pedras que quase atravessa o rio, e subindo uma rampa toda gramada, o grande prédio onde funciona a fabricação de açúcar, ao lado a imponente chaminé, a expelir rolos de fumaça para o alto, e o vapor a estourar das caldeiras, e as grandes moendas a prensar a cana donde jorra o precioso caldo que vai para os grandes tachos para ser transformado em melaço (TESTEMUNHO, DUARTE, 1995, p. 2).

No ponto de vista do Sr. Luiz Duarte ―Itaicí tinha uma boa escola, uma banda de música composta de jovem, era um lugar alegre, e eu me sentia feliz‖ (TESTEMUNHO,

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DUARTE, 1995, p. 2). Nota-se que as suas pontuações têm muito de sentimento afetivo e demonstra uma interação com o lugar. A sua representação sobre a Escola de Itaicí está associada ao acesso à escola, á lembrança do mestre e suas múltiplas funções, ao ingresso na banda de música e á formação de ofícios. Segundo seu relato ―fui para a escola e conheci o Mestre João M. da Fonseca que exercia três funções: Ensinava leitura, música e alfaiate‖ (TESTEMUNHO, DUARTE, 1995, p. 2). Ainda relata que logo se ingressou na banda de música, onde tocava prato, mas começou a estudar instrumento de sopro sendo interrompido pela morte do seu professor e mestre. O senhor Luiz Duarte acrescentou que com a morte de João Marinho a banda de música decaiu, e mesmo que outros mestres chegassem, estes não conseguiram reerguê-la, e a banda de Itaicí deixou de existir. Mas o aluno que aprendeu tocar instrumentos musicais na escola Itaicí se tornou um grande músico. Foi a sua profissão. Entrou para história do município como um grande instrumentista. Desta maneira, encontramos pistas31 da escolarização das crianças da Usina Itaicí cuja finalidade era instruir, mas também educar. Nessas circunstâncias, as crianças usufruíram de um currículo diferenciado, uma vez que não era comum aula de música como prática escolar no início do período republicano, principalmente em escolas localizadas em área rural. Além das aulas de música, as crianças puderam participar da formação de uma banda juntamente com os operários da usina, que permitiu uma integração deles com a música, a vida comunitária e muito além, pois essa integração ultrapassou o espaço da escola e da usina. Essa foi uma das poucas atividades que por alguns momentos distanciavam os sujeitos de um cotidiano fabricado para o trabalho.

31 Cf. GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas e sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 152.

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CAPÍTULO IV

A DIMENSÃO EDUCATIVA DA USINA ITAICÍ PARA ALÉM DA ESCOLA

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4.1 A educação (re)inventada

Quando fazemos novas indagações a respeito do passado, sobre quais ações evidenciaram-se e quais os modos de pensar numa determinada época, direcionamos nossa atenção para a história cultural. As perguntas exigem uma nova postura, novos objetos de estudos e novos desafios. Aqui se propõe revisitar um cenário carregado de uma herança cultural produzida através do modelo das sociedades coronelísticas, cujas memórias remetem a um passado ora hostil, ora acolhedor e oportuno. Diante disso, o presente capítulo abordará sobre a educação de natureza não escolar no espaço da Usina Itaicí, analisando como ela foi configurada no cotidiano, possibilitando a formação de hábitos, costumes e comportamentos construídos culturalmente. Deste modo, percebe-se a educação voltada para os trabalhadores da usina e para as suas famílias a partir: a) Do espaço – que demarcava a paisagem, a circulação das pessoas e o seu caráter simbólico, b) Da convivência – considerando que a educação voltava-se para uma formação visando a transmissão de valores, hábitos e condutas com base em princípios hierárquicos construídos no cotidiano e na relação com os grupos; e c) Do trabalho – de modo que a educação envolvia a adequação ao ritmo das máquinas, inserindo uma rotina de horários, tarefas nos canaviais (plantação e colheita), na produção de açúcar e aguardente, bem como observa-se também a utilização de coação e violência em caso de transgressões às regras da usina, evidenciadas na forma de punições e algumas resistências. A nossa intenção aqui é ampliar o olhar demonstrando outras possibilidades de construções narrativas na área da historiografia da educação para além dos processos escolares, buscando (re)significar os espaços, os saberes e as formas pelas quais instruímos e educamos historicamente, dentro e fora da escola. A educação abordada aqui confere a modalidade de educação não escolar, remetendo às representações e apropriações adquiridas de forma diversificada, num ambiente em que toda a arquitetura da Usina foi forjada para fornecer uma educação intencional, institucionalizada, ideologicamente construída, cujo assujeitamento favorecia a manutenção dos trabalhadores cativos. A educação observada por esse ângulo é desafiadora porque se realiza muitas vezes de forma imperceptível, principalmente aos olhares dos que consideram que a educação se dá pelos processos de escolarização. Nesse sentido, o entendimento de educação será concebido de forma ampla, abarcando as práticas culturais construídas no ambiente de uma sociedade hierarquizada inserida no contexto de uma usina de produção de açúcar, envolvendo 160

cumprimento de regras, disciplinamento e penalidades, visando á formação e adequação dos trabalhadores (as) para o trabalho, como também, para o modo de vida na usina.

4.1.1 O espaço

O espaço enfocado nesta pesquisa é o da Usina Itaicí que se apresenta num universo que foi projetado, elaborado, executado, a fim de tornar presente uma tradição referente ao modo de produção industrial do açúcar, desvelando um espaço produtor de culturas imbuídas de tensões e conflitos. Todavia, o projeto e a construção da usina não refletiam apenas a finalidade econômica de um representante da elite mato-grossense. A Usina Itaicí, a nosso ver, foi também um espaço com características pedagógicas. Certeau (1994), ao tratar sobre relatos de espaços no livro A invenção do cotidiano, iniciou com uma citação de Pierre Janet: ―o que criou a humanidade foi a narração‖ (JANET, 1928, p. 261 apud CERTEAU, 1994, p. 199). A nossa apreensão segue no sentido de que Certeau (1994) ao explicar questões sobre espaço e lugar utilizou como objeto os relatos, que representam narrativas. Ele utilizou uma metáfora referente à rede de transportes coletivos 32 na qual ele compara os relatos aos transportes coletivos para dizer que da mesma forma que o transporte serve para levar as pessoas para o trabalho, voltar para a casa, de ônibus ou de trem, ―os relatos poderiam igualmente ter esse belo nome: todo dia, eles atravessam e organizam lugares; eles os selecionam e os reúnem num só conjunto; deles fazem frases e itinerários. São percursos de espaços‖ (CERTEAU, 1994, p. 199). A proposição de Certeau (1994) nos ajuda a adentrar no espaço da usina e tentar explicar através da dimensão educativa um lugar que nos é apresentado por meio de relatos localizados nas obras memorialísticas, nos testemunhos, nos jornais e por que não dizer nas fotografias, uma vez que para nós elas também discursam a partir do olhar de quem as vê e as observa. Apropriando das incursões de Certeau (1994) seguimos em direção rumo às estruturas e as ações. Esse direcionamento permite analisar a organização do espaço, suas demarcações e as representações simbólicas construídas naquele núcleo populacional.

32 Certeau destaca que na Atenas contemporânea os transportes coletivos são chamados de metaphorai ou ―metáfora‖ e compara-os com os relatos (CERTEAU, 1994, p. 199). 161

Olhar para o espaço como um elemento educativo é partir do entendimento de que ―o espaço é um lugar praticado‖33. Esse entendimento tem a ver com o que Certeau diz que o espaço é existencial e a existência é espacial. Desta forma:

Essa experiência é relação com o mundo; no sonho e na percepção, e por assim dizer anterior a diferenciação, ela exprime ―a mesma estrutura essencial do nosso ser como ser situado em relação com um meio‖ – um ser situado por um desejo, indissociável de uma ―direção da existência‖ e plantado num espaço de uma paisagem. Deste ponto de vista, ―existem tantos espaços quantos experiências espaciais distintas‖ (CERTEAU, 1994, p. 202).

Num exame das práticas do dia a dia da usina que articulam essas experiências, podemos remeter á duas espécies de determinações: uma, por objetos (as ruas, as casas, a fábrica, o mobiliário, a vila, etc), e outra, por operações (setorização, demarcações, delimitações, simbologias, etc.). O espaço se torna educativo na medida em que adentramos no universo da sua espacialidade, apreendemos a sua composição ou até mesmo a transformamos, ou quando partilhamos ou não de seus elementos constitutivos e das experiências vivenciadas. Fazendo uma analogia entre espaço da usina e espaço da cidade, partilhamos das ideias de Faria Filho (1998) discorrendo sobre a cidade de Belo Horizonte/MG quando ele nos chama a atenção para:

[...] a sua monumentalidade, sua aparência, sua forma de distribuir e controlar - tudo isso deveria servir de elemento educativo, principalmente para as populações pobres e trabalhadoras. Como pedagogias, em que o espetáculo se transformava em experiência de aprendizagem, a cidade se apresentava como o palco e a cena (FARIA FILHO; 1998, p.143).

Nessa direção buscamos demonstrar a relação entre educação e espaço considerando as representações da Usina Itaicí no contexto de Mato Grosso, para que se possam conhecer os olhares plurais sobre o nosso objeto e locus de pesquisa. A partir disso, nosso esforço se concentrará nas maneiras como o espaço da usina foi delineando ações, representações e apropriações. Nesta perspectiva, a Usina Itaicí se apresenta através de representações e começamos pelo Jornal O Pharol de 16 de outubro de 1909 que diz: ―Para mitigar-nos as amarguras que a

33 Cf. Certeau (1994, p. 202). 162

ausência nos tem causado, veio especialmente do Itaici à metrópole mato-grossense...‖ (O PHAROL, 1909, p. 02). A notícia do jornal mato-grossense O pharol nos reporta a uma das representações construídas sobre a Usina Itaicí como – A metrópole mato-grossense. O entendimento que a Usina Itaicí tinha como característica a dimensão de cidade era fator comum. Mas pensar essa espacialidade34 significa voltar o olhar para os aspectos culturais que cada sociedade produz através das intencionalidades, das experiências e da construção de identidades. A realidade pensada e vivida sob o ponto de vista das representações gira em torno dos significados construídos pelo homem, pois é partir dessa leitura que o historiador cultural se inspira, podendo apreender sobre o modo de vida e as formas de pensar de uma sociedade. A História Cultural serve-se de marcas, signos, símbolos e representações para realizar uma leitura de uma dada época e sociedade. Segundo Roger Chartier (1990) a representação é a maneira como os esquemas intelectuais criam representações que conferem um sentido ao mundo e que possibilitam decifrarmos como historicamente os homens expressaram a si próprios e o mundo, pois as representações são matrizes de conduta e constituintes de práticas de uma sociedade. Desta forma, o autor também reforça a não existência de uma neutralidade nas representações, mostrando que as mesmas devem ser tomadas como construções históricas surgidas por relações de lutas, disputas e conflitos. Dessa maneira, ―as representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam‖ (CHARTIER, 1990, p. 17). Nesse sentido, o universo da Usina Itaicí sugere elementos de contrastes, disputas, conflitos e certas vaidades, ou seja, sugere uma luta de representações. Essas representações podem ser observadas pelo menos por duas vertentes, ou seja, a representação da Usina Itaicí enquanto A metrópole mato-grossense, a qual aponta uma versão mais otimista e positiva acerca de seu funcionamento, e outra, considerada pelo ponto de vista mais negativo, aponta como esse espaço se configurou na ocorrência de ações autoritárias, violentas e punitivas. A representação da Usina Itaicí enquanto metrópole foi construída em torno da estrutura montada pelo seu primeiro proprietário – Cel. Antonio Paes de Barros. Este, por sua vez, aproveitando a herança recebida de seu pai adquiriu as terras de Itaicí às margens do Rio

34 Utilizamos o termo ―espacialidade‖ com base em Certeau (1994, p. 202) – o termo representa um ―estudo onde o espaço é composto por práticas que se realizam por meio de operações que orientam, circunstanciam e temporalizam os lugares, ou seja, o espaço é um lugar praticado‖. Deste modo, entendemos que a espacialidade, ou seja, a área em estudo representa o conjunto das ações humanas, suas vivências e práticas cotidianas. 163

Cuiabá numa região de usinas de açúcar, e ―já tinha a intenção de montar a melhor e a mais moderna usina de açúcar e aguardente de Mato Grosso‖ (SILVA, 1997, p. 19). Em 1º de setembro de 1897 foi inaugurado o empreendimento industrial do Cel. Totó Paes. O investimento foi aplicado através de um financiamento sob o custo de aproximadamente 450:000$000 35 (Quatrocentos e cinquenta contos de réis). O Jornal O Republicano de 1897 publicou sobre a inauguração da Usina Itaicy:

[...] no dia 22 do corrente inaugurou-se o novo engenho da Usina Itaicy, à margem direita do rio Cuyabá, estabelecimento de propriedade do nosso prestimoso amigo o Sr. Coronel Antonio Paes de Barros. [...] pelas 9 horas da manhã teve logar a festa de inauguração, perante um crescido número de assistentes pertencentes a nossa melhor sociedade, fazendo sobressahir um grande número de gentis senhoras, que com os seus loilets davão real valor a festa. [...] A banda de música do Arsenal de Guerra fazia-se ouvir com enthusiasmo. [...] A hora indicada o Rvmº Padre Solari procedeu a benção do novo estabelecimento. [...] O ilustre Dr. Otto Franke, engenheiro contratante da referida usina, pediu a palavra e com expressões de enthusiasmo, saudou esse grande motor da indústria que, sob os auspícios do distinto proprietário, acabava de levantar o felicitou ao ilustre Vice-Presidente do Estado pelo facto de ter sido na sua administração que teve logar esse faustoso acontecimento (O REPUBLICANO, 1897, p. 2).

Conforme o referido jornal, a inauguração foi em clima festivo e contou a presença de muitas autoridades políticas e seus familiares, e de autoridades religiosas, porém, não se mencionou a participação das pessoas da comunidade e dos empregados. A inauguração foi marcada pela oratória, pelo banquete oferecido pelo proprietário aos seus convidados, pela apresentação da banda de música do Arsenal de Guerra, e também, com efeito surpresa, foi inaugurada a luz elétrica na usina:

[...] sob a influência dos raios da luz elétrica, que culminava todo aquelle viveiro de festivas criaturas, parecião verdadeiras nymphas. Que esplêndido efeito produziu a luz elétrica. Que espetaculosa e verdadeira surpresa da inauguração da luz elétrica em Itaicy (O REPUBLICANO, 1897, p. 2).

Contando com uma infraestrutura imponente e inovadora para época, a Usina Itaicí foi considerada a mais moderna entre as empresas do gênero no estado, uma vez que o seu proprietário inovou adquirindo equipamentos importados da Europa. O Jornal O Republicano de 03 de março de 1898 publicou um artigo acerca da organização do estado de Mato Grosso

35 SILVA, Paulo P. C., 1997, p. 19-20. 164

sob o ponto de vista econômico. Entre outras empresas, o destaque para a Usina Itaicí foi feito da seguinte forma:

As machinas a vapor, de fabrico de assucar e aguardente, não obstante a esmagadora baixa do cambio, vão sendo introduzidas, rivalizando a usina de assucar do Itaicy com as mais importantes da União, quer quanto ao seu aperfeiçoamento, quer quanto à capacidade de produção; já conseguimos despertar a atenção dos capitais estrangeiros para exploração de várias indústrias (O REPUBLICANO, 1898, p. 1).

O Cel. Totó Paes não criou somente a fábrica em si, ele executou um projeto maior, no qual planejou uma variedade de espaços destinados ―aos diversos ramos de serviços, a base de uma administração liberal, da ordem e da disciplina‖ (O PAÍS, 1906, s/p apud SOUZA36, 1958, p. 10). O projeto executado contou com a construção da fábrica, moradias individuais para 90 empregados, acomodações coletivas capazes de alojar mais de 150 empregados. Foram também construídos mercado, padaria, farmácia, capela, escola, serraria e marcenaria, armazém, biblioteca, e ainda foi instalada uma rede ferroviária, onde os vagões puxados a burro percorriam todo o canavial, transportando os empregados e as canas cortadas até os depósitos, essa rede férrea era chamada Decauville. E como se não bastasse, o empresário mandou cunhar moeda própria denominada tarefa, trata-se de um vale metálico produzido em Buenos Aires – Argentina, nos valores correspondentes a 2, 1 e ½ tarefa de cana. Estas, eram aceitas e circulavam em Cuiabá e nas localidades adjacentes à Usina Itaicí. Foi implantada também a luz elétrica na Usina37. A moeda, por sua vez, também teve um efeito social muito forte, à medida que se apropriavam dela, criava-se também uma dependência maior ao lugar e ao acesso à moeda, submetendo às pessoas cada vez mais àquele universo. Assim, os empregados se viam praticamente obrigados a consumirem na usina, gerando endividamento na maioria das vezes; sem falar do caráter simbólico que isso representava, ou seja, ―sujeição‖ às regras e as leis do coronel. A nosso ver, a inserção do uso de uma moeda própria na usina também teve um efeito educativo no sentido de ter produzido hábitos de consumo exclusivamente na usina, porém isso gerou certa dependência ao lugar e as relações constituídas através desse recurso.

36 O referido autor trata-se da pessoa de Antonio Fernandes de Souza, que registrou em sua obra memorialística as memórias da Usina Itaicy, utilizando de documentos, relatos e também da sua experiência enquanto alguém que trabalhou diretamente na usina com o chefe e amigo Totó Paes. 37 Cf. SILVA, 1997, p. 20-21. 165

Todos esses fatores em conjunto fizeram com que a Usina Itaicí fosse vista como sinônimo de modernidade. Ela foi considerada modelo, não só pelos indicadores industriais, como também pelas atividades inseridas naquele contexto. ―Realmente, uma usina modelo, não só pelos padrões técnicos industriais adotados, mas também, pelos equipamentos e serviços sociais lá implantados, bem demonstrando a visão pioneira, avançada, sensível e a bem dizer, altamente civilizada de seu proprietário‖ (SILVA, 1997, p. 21).

O pioneiro foi Antonio Paes de Barros. [...] visitou, na Argentina, as grandes importadoras, assim como modernas usinas montadas naquele país. Entusiasmado com o que viu, Paes de Barros encomendou, da firma Otto Franke, a importação de máquinas a vapor e outros equipamentos modernos capazes de transformar seu antigo engenho em moderna usina açucareira. [...] equipou o estabelecimento, também com construções que pudessem garantir uma efetiva e constante mão-de-obra. Para isso, mandou edificar, além da sede da usina – residência da família do proprietário -, casas para os empregados mais graduados, dos guardas livros e do gerente, casas para empregados sem graduação, padaria, escola, farmácia, barracão comercial, onde eram vendidas as mercadorias de que os funcionários necessitavam, tais como roupas, remédios, bebidas, cigarros etc. Assim, a fazenda era autossuficiente (SIQUEIRA, 2009, p. 45).

Todo o investimento numa estrutura moderna, com aquisição de equipamentos com tecnologia avançada para época, geração de emprego, com oferta de setores de serviço, luz elétrica, moeda própria, tudo num só lugar, pode ser entendido, por um lado, como indicativo de fruto do trabalho de uma pessoa com espírito fortemente empreendedor, audaz, destemido, o qual encontrou na indústria do açúcar uma forma de construir seu patrimônio, como também, foi um meio encontrado para garantir autossuficiência tendo em vista que a usina estava localizada no interior do município de Rio Abaixo, portanto, distante da sede da Vila e da capital, fato este que imprime a necessidade de criar condições para atender as suas demandas. Contudo, nota-se também que foi um canal encontrado capaz de integrar o Cel. Totó Paes na política mato-grossense. Por conseguinte, em 15 de agosto de 1903, o coronel tomou posse no cargo de Presidente do estado de Mato Grosso após uma disputada campanha eleitoral. Segundo Estevão de Mendonça, ao escrever Datas mato-grossenses em 1919, ―é ainda cedo para se pronunciar sobre o Cel. Antonio Paes de Barros, como administrador; entretanto, do mais ligeiro exame de seu governo, se colhe desapaixonadamente esta verdade: foi um dos nossos mais inteligentes administradores‖ (MENDONÇA, 1919, s/p apud SILVA, 1997, p. 23).

166

Sua gestão ocorreu num dos momentos mais tumultuados da história da Primeira República em Mato Grosso, em que os grupos políticos locais competiam para preencher os espaços novos devido à destituição do Império. Era um momento de transição e de muita instabilidade. E foi perante esse cenário que sucedeu a morte do Coronel Antonio Paes de Barros em 1906, em plena gestão governamental. Sua morte é um tema polêmico na historia de Mato Grosso. Com a morte do Cel. Totó Paes, os reflexos foram sentidos tanto na parte política quanto na administração da usina. Quem assumiu a propriedade e o empreendimento foi a firma Almeida & Cia, credora da herança. A firma Almeida & Cia foi uma empresa de importação, exportação e bancária fundada em 1870 em Cuiabá. Essa firma possuía muitos empreendimentos dos quais se destacaram em especial, nas áreas de agropecuária e industrial. Nesse contexto, a Cervejaria Cuiabana e a Usina Itaicí também se destacavam nesse complexo empresarial38. O Dr. Alberto Novis e a usineira Antonieta de Almeida Novis – sua esposa, donos da firma Almeida & Cia, foram os novos proprietários da Usina Itaicí após a morte de Totó Paes. A gestão da usina por essa família não alterou a organização do espaço, do trabalho e das relações de convivência. Aparentemente, percebe-se uma redução de práticas autoritárias e violentas por volta da década de 30 do século XX, momento em que se acentuou o combate às políticas oligárquicas no estado. De todo modo, a Usina Itaicí ganhou notoriedade desde a sua implantação em 1897. O nome do Cel. Tóto Paes, por ter sido o primeiro proprietário e criador do projeto que foi a Itaicí tornou-se conhecido no estado, no país e no exterior. Isso fez com que a imponência da usina ultrapassasse as fronteiras da produção tornando-se um ícone de Mato Grosso juntamente com seu proprietário, demonstrando que mais do que produtiva ela teve um caráter simbólico e histórico. No entanto, essa notoriedade parece ter ocultado algumas práticas de caráter mais negativo sobre a usina, como a utilização de coação e punições severas contra os trabalhadores ―transgressores‖. O padre Jacomo Vicenzi com base numa visita realizada por ele nas usinas de açúcar do Rio Abaixo em 1918, a qual proporcionou a publicação de um livro, afirma que ocorriam fugas de operários, e em caso de captura, eles eram presos ou mortos. Disse ainda:

38 Cf. o artigo intitulado ―Comerciante: atividade que acompanha a evolução da humanidade‖ escrito por Pedro Nadaf, na época, era Secretário de Indústria, Comércio, Minas e Energia e presidente do sistema Fecomércio/Sesc/Senac – MT. Disponível em www.gazetadigital.com.br. Acessado em 05 de junho de 2016. 167

Si o desventurado é preso, levam-no para a usina onde, [...] sofre um castigo de vinte, trinta ou quarenta dias, com trabalhos forçados, de dia, e suportando, durante a noite, o suplicio do tronco, encerrado dentro de um quarto, para que, com menos facilidade, se ouçam seus gemidos (VICENZI, s/d, p. 137).

Existem outros registros de violência apontados nos jornais mato-grossenses. O Jornal a Luz de 22 de agosto de 192439 , apresentava uma reportagem que tinha como manchete Município de Santo Antonio do Rio Abaixo, assinada por Agrícola P. B.40 e que trata sobre maus tratos e escravidão nas usinas de açúcar:

Rio Abaixo, onde passei os mais belos dias de ezistencia, meus dez primeiros anos, minha infância!... Sim, é lá nesse rico espaço de Mato Grosso que se passa a mais bárbara das escravidões. É lá que o camarada labuta mais de 12 horas no dia, comendo pouco, ganhando quase nada, comprando tudo por uma exorbitância e tendo ainda por paga, o tronco, o pau, a palmatória. (A LUZ, 1924, p. 1).

O Sr. Agrícola Paes de Barros aponta um lado menos otimista da história das usinas de Mato Grosso, relatando sobre as atrocidades cometidas em favor do enriquecimento dos usineiros a qualquer custo. São palavras que denunciam práticas de castigos, torturas, maus tratos e violência. O jornal A plebe de 1927 publicou um artigo de quase uma página referente a um depoimento feito por Manoel Nunes, um paulista de 40 anos, o qual foi trabalhar numa usina de açúcar. O artigo não apresenta o nome da usina, porém, esta é uma característica comum nos relatos, uma vez que nestes quase sempre não aparece o nome das usinas, pois o medo era um sentimento constante. Esse trabalhador relatou sobre o martírio pelo qual estava passando. Ele começa o artigo dizendo que foi trabalhar numa determinada usina no Rio Abaixo, na qual trabalhou por muito tempo e ressalta que o tratamento foi razoável porque ele comia e bebia, mas não via a cor do dinheiro. Ele relata que certa vez, no Governo de Costa Marques (1911-1915), houve uma briga, o patrão armou força e mandou atacar uma força da polícia, ele não quis participar e fugiu para a mata. Diante da fuga, foi posta uma escolta com ordem para mata-lo. Diz ele que foi encontrado e recebido com descarga de balas, o que acabou

39Jornal A Luz, de 22 de agosto de 1924, Cuiabá, nº 300, publicação semanal. 40 Agrícola Paes de Barros, falecido em 1969, era um médico humanista e atendia de graça a população carente de Mato Grosso. Além disso, fundou vários jornais em Cuiabá - A Luz, O Fifó, A Plebe e Brasil Oeste. 168

arrancando o seu dedo médio e quebrando o anelar da mão esquerda. Depois disso, ele ressalta que o deixaram num quarto, sem remédio, até que cicatrizasse o ferimento, e acrescenta que perdeu o dedo médio e outro dedo ficou paralítico. As representações da usina indicam que ela traz consigo novas relações e papéis. Ela diversifica a produção e o consumo e amplia o status. Os tachos de cobre foram substituídos pelas turbinas. O senhor de engenho pelo coronel do açúcar. A mão de obra escrava pelo ―trabalho livre‖, ao menos era o que se pressupunha. Na usina havia escola, ambulatórios, linhas férreas, energia elétrica, que somados a outros elementos representavam a mudança no modo vida do menino de engenho41 agora situado num contexto alterado pelo universo da Usina42 e pelo ritmo das máquinas. Porém, as usinas do Rio Abaixo, inclusive a Itaicí, ao mesmo tempo em que propiciavam uma produção em larga escala, refletindo no crescimento de Mato Grosso, abrigando os funcionários, garantindo trabalho para uma população empobrecida, ofertando escolarização, entre outros, faziam isso em prol de vantagens e enriquecimento. A oferta de tais condições não representou melhoria significativa no bem estar social das pessoas daquela comunidade. A modernização se encontrava mais proeminente na aquisição dos equipamentos modernos, na estrutura física da usina, no empreendimento em si, na lucratividade, mas as práticas de convivência na vida social e no trabalho eram arcaicas. Nota-se que predominava a manutenção de uma sociedade desigual e hierárquica. A educação observada a partir da espacialidade nos faz pensar na fabricação da estrutura dos ambientes da usina, visualizando-a tanto no plano físico quanto no seu aspecto simbólico e das experiências. Deste modo, voltamos o olhar para a configuração da Usina Itaicí.

41 Inspirado na obra de José Lins do Rego que narra a história de Carlos Melo, mais conhecido como Carlinhos, um menino que morava no engenho e presenciava as desigualdades sociais entre os senhores de engenho e os seus empregados. 42 Inspirado na obra Usina de José Lins do Rêgo, este romance descreve a vida nos engenhos de cana de açúcar e nos canaviais do nordeste. Na segunda parte do livro, há o desenvolvimento do enredo na usina, quando os acontecimentos envolvem o Engenho Santa Rosa, antiga propriedade do Coronel José Paulino, após a fuga de Carlos Melo em decorrência da incapacidade de administrá-lo, deixando, assim, seu patrimônio para parentes. O Engenho Santa Rosa se transforma na Usina Bom Jesus 169

Figura 29 - Vista aérea da Usina Itaicí.

Fonte: Site de jornalismo Zucaratto43

Essa imagem permite visualizar a composição do espaço da Usina Itaicí, a considerar a visão estratégica do proprietário em setorizar os ambientes. Essa setorização também tem um caráter educativo por criar estruturalmente e simbolicamente delimitações e limitações que refletiam na construção de representações e condutas. Sendo assim, percebe-se que a ―divisão do espaço permitia uma prática panóptica a partir de um lugar de onde a vista transforma as forças estranhas em objetos que se podem observar e medir, controlar e, portanto, incluir na sua visão‖ (CERTEAU, 1994, p. 100), embora, como também salienta Certeau (1994), a visão panóptica é ilusória, pois não é possível ver tudo, controlar tudo, o sentimento de que o controle é possível permite criar determinadas estruturas para esse fim. Diante disso, observa-se na imagem que à direita está o setor produtivo, onde foi construída a fábrica ao lado da enorme chaminé, e mais ao fundo o depósito. Do lado esquerdo, encontra-se o setor das casas principais, bem em frente ao rio, ou seja, onde ficavam os alojamentos dos funcionários de confiança (encarregados) e, sobretudo,

43Ver em Site de jornalismo Zucaratto, disponível em: http://www.zuccaratto.jor.br/blogs/turismo-e-cia/fit- pantanal-2016-dragagem-de-trecho-do-rio-cuiaba-pode-gerar-projeto-de-turismo/. Acessado em julho. 2017. 170

a casa do Coronel, estas se concentravam ao lado os canaviais. Mais ao fundo, o espaço foi direcionado ao setor de serviços e à vila dos trabalhadores. Com destaque para a construção da escola primária, que ocupou um lugar privilegiado, situada numa localização de esquina, com acesso ao setor de serviço e ficava próxima à casa do coronel. Um detalhe a ser observado é que a casa do coronel foi posicionada de forma que se podia ter uma visão de vários os ângulos da usina. Ao lado, avista-se a fábrica de onde pelos fundos, podia-se observar os outros setores. Porém, isso não significou controle de todas as práticas, tensões e conflitos ocorridos na usina. Em relação ao ambiente localizado ao centro da imagem, trata-se de uma construção recente, que foi destinada para ser o museu da usina, porém não se encontra em funcionamento. Projetada com uma arquitetura imponente para época, a usina chama a atenção pelos traçados europeus assemelhando-se ao estilo Inglês, bem como pela estrutura das maquinarias e equipamentos importados adquiridos para garantir a produção em larga escala. A chaminé também não passou despercebida devido a sua proeminência, uma vez que fora criada medindo 51 metros de altura, o que ocasionava admiração, sensibilidade esta também extensiva à usina.

Figura 30 - Fachada da Usina Itaicí.

Fonte: Site João Bosco Paes de Barros44

44 Disponível em: http://joaoboscopaesdebarros.blogspot.com.br/ Acessado em junho. 2016. 171

O jornal O Paiz de 1906, mencionado no trabalho de Souza (1958) traz informações sobre o que a equipe viu e sentiu ao conhecer a Usina Itaicí em pleno funcionamento, transcrevendo da seguinte forma:

À chegada fomos impressionados por um rumor confuso proveniente de sons diversos que indicavam um centro de trabalho em febril atividade. Eram pesados vagões que rodavam sobre os trilhos, transportando para os grandes depósitos o açúcar saído das turbinas; eram marteladas cadenciadas do ferreiro, ao longe, sobre a bigorna e a dos carpinteiros que trabalhavam à sombra de grandes árvores; eram ruídos secos das polias e correias transmitindo a força do vapor às engrenagens da serraria, das máquinas de beneficiamento de arroz, tudo movido a um só tempo e por um mesmo propulsor; eram apitos, sirenes e sons diversos que se misturavam às vozes dos operários (O PAIZ, 1906, s/p apud SOUZA, 1958, p. 7-8).

As imagens e os sons produzidos na usina e internalizados pelos visitantes podem ser associados à ideia de grandeza, suntuosidade. Afinal, talvez não seja insensato interpretar que a Usina Itaicí foi construída mediante tal intencionalidade. Ela não foi pensada para ser pequena ou só mais uma entre as demais. Ela representava a mesma imponência do seu proprietário: ―[...] Sr. Coronel Antonio Paes de Barros, poderosa influência política no distrito de Melgaço e progressista industrial matto-grossense‖ (O REPUBLICANO, 1898, p. 1). Todavia, os sons de apitos e sirenes são códigos relativos à dinâmica de trabalho e indicam uma relação de aprendizagem uma vez que era necessário o entendimento desses códigos para execução ou interrupção de alguma atividade ou qualquer outro movimento nesse sentido. A representação referente à grandiosidade da usina pode também ser observada nas imagens abaixo, uma vez que a primeira mostra o interior da usina, especificamente, a casa das máquinas, possibilitando visualizar a extensão do ambiente, os andares, bem como parte dos equipamentos entre alguns dos funcionários encarregados, que diz respeito aos funcionários de confiança. A imagem seguinte, mais recente, mostra o mesmo espaço entre outras ferramentas, porém, condicionada pela ação do tempo. Todavia, as condições das intemperes ainda não foram capazes de apagar o registro dessa memória, pois se encontra tão imponente como outrora.

172

Figura 31 - Casa de máquinas da Usina Itaicí.

Fonte: Site João Bosco Paes de Barros45

Figura 32 - Equipamentos da Usina Itaicí.

Fonte: Site de jornalismo Zucaratto46

―Visto à distância, destaca-se o majestoso vulto do importante edifício de dois andares com grandes janelas rasgadas amplamente na face principal e no flanco esquerdo do edifício sendo a fachada voltada para o rio‖ (O PAIZ, 1906, s/p apud SOUZA, 1958, p. 8). A fábrica

45 Disponível em: http://joaoboscopaesdebarros.blogspot.com.br/. Acessado em junho. 2016. 46 Imagem recente do interior da usina, aproximadamente entre os anos de 2015 e 2016. Disponível em: http://www.zuccaratto.jor.br/blogs/turismo-e-cia/fit-pantanal-2016-dragagem-de-trecho-do-rio-cuiaba-pode- gerar-projeto-de-turismo/. Acessado em setembro. 2017. 173

certamente foi um dos ambientes mais monumentais que o proprietário construiu. E precisava ser — no sentido de que esta foi projetada para ocupar a frente da usina, de modo que é a primeira a ser vista. Desta forma, estava num lugar estratégico, num ponto que ela não passava despercebida, de forma que até mesmo os que só passavam pelo rio avistavam a metrópole mato-grossense. No entanto, outros ambientes também foram pensados de forma estratégica. A impressão que temos é a de que nada foi despretensioso, porque o proprietário tinha a necessidade de obter uma situação de controle, algo muito comum na época. Desta forma, as relações desiguais marcam e demarcam profundamente a fábrica. Nessa situação, percebe-se que ―patrões não são simplesmente patrões, [...] mas são proprietários das casas onde residem os operários, assim como toda rede de serviços‖. (CIAVATTA, 2007, p. 118). A composição do espaço físico reflete a configuração do modelo de sociedade hierárquica na qual a Usina Itaicí fazia parte. A setorização não parece ter se efetivado somente por questão de organização. É mais do que isso. Ela cria delimitações que circunscrevem a que lugar se pertence dentro dessa hierarquia social. As delimitações, de forma direta ou indireta, posicionam as pessoas naquela sociedade, uma vez que conferem a cada um seu lugar e sua função, isso reflete na criação de hábitos e valores que são agentes de condutas, que neste caso parece direcionar para um tratamento desigual. A pesquisa de Gino Buzato47 que trata sobre a cidade e sua educabilidade no período do Estado Novo converge no sentido de que apresenta aspectos da educação mostrando as formas pelas quais a cidade se torna um elemento educativo.

Pode-se considerar então, que todos os projetos modernizadores das cidades abordadas neste estudo, também foram acompanhados de intenções educativas por parte dos governantes referentes à formação de uma nova cultura de hábitos e costumes por parte da população citadina, que expressassem o sentido de atualidade da gestão política enquanto representação de progresso e desenvolvimento, enfim, de modernidade. Essas intenções encontram-se expressas na literatura trabalhada neste estudo, pelos conceitos: ―civilizador‖, ―formação de uma nova sensibilidade‖, ―reeducação dos sentidos‖, ―nova conduta‖, ―civilidade‖, ―educabilidade‖, ―reforma do povo‖, ―novas práticas sociais‖, entre outros (BUZATO, 2015, p. 13).

47 A pesquisa de Gino Buzato foi realizada no Programa de Pós-graduação da Universidade federal de Mato Grosso no Grupo de Pesquisa História da Educação e memória/UFMT, sendo a primeira a tratar de educação em espaço não escolarizado nesse universo de pesquisa. 174

A educação sugere um ensinamento com base em intencionalidades. A educação não é neutra. Ela se constrói a partir de um contexto que envolvem objetivos e direcionamentos. Diante desta lógica, verifica-se que os proprietários da Usina Itaicí se organizaram de modo a criar um projeto que preparasse as pessoas para a vida naquela sociedade. Assim, os espaços passam a desempenhar uma função educativa que se manifesta no estilo da Usina Itaicí. Isto é, percebe-se que nesse espaço se promove uma educação voltada para o trabalho, para a disciplina e para a manutenção da ordem por se tratar de um núcleo populacional. Nesse sentido, o grande desafio era criar estratégias para uma harmonização que via de regra fosse incorporada de valores, costumes e práticas próprios da sociedade coronelista e que fosse capaz de dinamizar o trabalho e a produção. Este propósito é evidenciado por Souza (1958):

Devo, porém, desvendar alguns aspectos e episódios que refletem o ambiente de confiança, harmonia e cordialidade criado pela afabilidade do trato, bom humor e tolerância que caracterizavam o Cel. Antonio Paes de Barros e que de certo modo amenizava, ali, os rigores que a disciplina impunha naturalmente (SOUZA, 1958, p. 11).

Ao que tudo indica, na direção de Faria Filho:

[...] à cidade como projeto pedagógico era dada tanta atenção e depositada tanta confiança nas suas possibilidades para desempenhar a árdua tarefa de transformar "súditos em cidadãos", desocupados em trabalhadores, "bárbaros em civilizados" [...] (1998, p. 143).

Compreende-se que na definição desse espaço, busca-se projetar também uma educação que pretende efetivar uma homogeneização na construção dos costumes e tradições coronelísticas, utilizando-se de mecanismos que evidenciem e controlem as diferenças. De modo que não podemos ignorar a dimensão espacial na forma que a Usina Itaicí se impunha, pois, seguindo a explicação de Frago (1995) sobre a dimensão espacial ―[...] como a dimensão temporal ou a comunicativo-linguística, ela é um traço que toma parte de sua natureza mesma. Não é que a condicione e que seja condicionada por ela, mas sim que é parte integrante da mesma; é educação‖ (FRAGO, 1995, p. 69). No seu conjunto, o espaço educativo materializado no universo da Usina Itaicí produziu e foi produto de uma nova cultura, como bem disse Faria Filho (1998) em relação ao espaço dos grupos escolares de Minas Gerais: ―em seu movimento de constituição, foi o palco

175

e a cena de apropriações diversas, produzindo e incorporando múltiplos significados para um mesmo lugar projetado pela arquitetura escolar‖ (1998, p. 157). Portanto, a Usina Itaicí pode ser compreendida através da dimensão educativa pelo fato de se ter produzido nesse locus ensinamentos práticos, de cunho pedagógico, como de costumes e disciplina. Assim, observa-se que a aprendizagem podia se realizar nos espaços de convivências, de trabalho ou da vida cultural.

4.2 As convivências

A relação de convivência entre os patrões e trabalhadores e as famílias inseridas no contexto das usinas de açúcar do Rio Abaixo foi marcada por momentos de sociabilidades e de hostilidades. Eram comuns atitudes de obediência ao patrão (coronel) e às regras estabelecidas por ele, porém, percebe-se que às vezes as regras eram quebradas gerando alguns conflitos entre patrão e empregados, bem como Gilberto Freyre observou ao fazer o prefácio do livro de Lenine Póvoas: ―a atenção a cotidianos de vivência industrial, no caso, predominantemente rústico‖ (FREYRE, 2010 Apud PÓVOAS, 2010, p. 11) tem a ver com lançar mão de um modo de vida moderno, mas ainda atrelado às práticas arcaicas. As relações construídas no ambiente da Usina Itaicí, como nas outras usinas de açúcar do Rio Abaixo, parecem ter começado a partir do momento em que homens, mulheres e crianças eram arregimentados para o trabalho na usina. Essa relação era delineada numa rede de relações que envolviam o coronel do açúcar, delegados de polícia, políticos, juiz de direito e a própria sociedade constituída. Conforme uma das narrativas, esse recrutamento se dava a duras penas:

[...] os trabalhadores das usinas eram arregimentados entre gente humilde presa pela política e trocada pelo delegado de Polícia por sacas de açúcar... Deus permita que triunfe logo a legalidade para podermos extinguir essa nova escravidão no Rio Abaixo (MENDONÇA, 1973, p. 137).

Segundo um relato de jornal, contraventores eram encaminhados para uma das usinas de açúcar do Rio Abaixo sob deliberação do delegado de polícia. Consta que um homem acusado de ter cometido um roubo de uma espingarda e mais uns contos de réis estava pra ser enviado para as usinas de Santo Antonio do Rio Abaixo, a saber: ―Uma vez, pouco tempo, pegaram o Chico Roxo pra manda pro Rio Abaixo, o Chico correu na minha casa e falou: ora

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seu B. A (delegado), eu tenho mulher e fios e agora querem me manda pra Maravilha ou Itaicy‖ (A LUZ, 1924, p. 2). Outro exemplo é a nota sobre a ação de um Juiz de direito que foi publicada no jornal A Reação: ―Quanto ao Sr. Juiz de Direito, apenas lamentamos se haja entregue a faina da corrupção que em nosso Estado vem tudo avassalando: saúde, caráter, finanças, direito e justiça‖ (A REAÇÃO, 1928, p. 1). Nota-se que existia uma espécie de conivência da força policial com os coronéis pelo fato que nesse contexto esta se via constantemente ameaçada, porque não tinham condições de revidar em se tratando de uma autoridade constituída. Segundo Schroeder (2008), a polícia tinha conhecimento da existência dos grupos armados, conheciam os responsáveis pelos bandos e tinha clareza que era uma atividade ilegal, mas devido a força desproporcional da polícia frente a dos coronéis, a única coisa que a ela poderia fazer no seu entendimento era aconselhar o responsável em dissolver os grupos, uma vez que a polícia não tinha estrutura suficiente para reprimir estas práticas ilegais. As relações eram construídas conforme os grupos sociais existentes no ambiente da usina, ou seja, para os operários que trabalhavam diretamente na casa das máquinas e aos agregados havia um tratamento diferenciado em relação aos camaradas, isto é, os que faziam os trabalhos mais pesados, geralmente nos canaviais e nos trabalhos domésticos. Os funcionários agregados mais graduados como o Encarregado Geral, o Guarda livros, entre outros, tinham uma relação muito próxima com o coronel e por este motivo eram sempre convidados para estar presente a mesa com o proprietário e sua família para o café da manhã e demais refeições, e, os outros funcionários também de sua confiança eram servidos nas dependências da usina com o café e pão, além da aguardente que era distribuída como estímulo para o trabalho. Como podemos observar abaixo:

A todos era servida uma dose de aguardente (pinga) fabricada na própria casa, para dar maior estímulo para o trabalho... Mais tarde, para os funcionários mais graduados e operários da fábrica era servido café com pão. [...] Na sede, que geralmente era a Casa Grande, onde residia o proprietário com sua família, era servido o almoço. Mesa tradicionalmente farta. Ali tomavam assento o dono da usina com seus familiares e seus funcionários mais graduados, como o Encarregado Geral, etc. (PÓVOAS, 2010, p. 45).

No entendimento de Póvoas (2010) esse era um momento importante porque além de demonstrar uma relação que envolve laços de confiança, respeito e fidelidade, ―era, inclusive,

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a hora em que conversavam ou debatiam certos problemas e algumas ordens eram transmitidas‖ (Ibden, p, 45). Percebe-se que havia uma interação construída por meio de partilha, laços de amizade, fidelidade, como também em momentos de hostilidade quando esses laços de confiança eram estremecidos ou rompidos. O testemunho da senhora Maria de Arruda Muller mostra a vida do usineiro do Rio Abaixo sob o ponto de vista da depoente, a qual afirma:

Eu posso te dar uma ideia a você como era a vida do usineiro. Eu sou filha de usineiro (Usina das Flexas). Falam muito que os usineiros maltratavam os empregados, os trabalhadores. Dizem que mesmo depois da abolição da escravatura, os trabalhadores ainda viviam em regime de escravidão. Naquele tempo, não havia meios para trazer os filhos de escravos para Cuiabá. Mas havia aqueles que se apegavam aos senhores, e mesmo livres, não queriam abandoná-los. Criavam laços de amizade muito fortes [...] (NEVES, 2001, p. 243).

Na Usina Itaicí, a família do proprietário geralmente passavam temporadas mais longas na cidade, morando em palacetes, pela necessidade de conforto e da manutenção dos filhos nas escolas de nível secundário, grau de escolaridade que não era oferecido na usina. Estes desfrutavam de um padrão de vida elevado (PÁVOAS, 2010). Sendo assim, a família do patrão passava pouco tempo na usina e a relação de convivência com os outros grupos sociais era menor. Entende-se que o coronel era quem permanecia mais tempo na usina e a ele era conferido o princípio de manutenção da harmonia e da ordem em prol da moral e da produtividade. Como se pode notar no relato de Souza: ―empenhado na direção de seu estabelecimento industrial, tinha o Cel. Antonio Paes de Barros sua residência habitual na própria usina onde vivia‖ (SOUZA, 1958, p. 11). Já os trabalhadores, ao menos os casados, residiam com suas mulheres nas casas que lhes eram destinadas na própria usina. Os solteiros se acomodavam nas repúblicas. Havia os que somente iam para trabalhar e depois retornavam aos seus lares. ―A vida sexual para os solteiros era mais difícil, porque meretrizes, nas usinas, raramente apareciam‖ (PÓVOAS, 2010, p. 46). ―Era sempre o coronel que definia os hábitos que esse ambiente gerava e a mentalidade que formava, influindo no seu caráter e na sua personalidade‖ (Ibden, 2010, p. 50). O jornal A Luz de 05 de setembro de 1924 traz uma notícia referente ao tema Patrões e empregados. Diz respeito à forma como os patrões devem formar um bom empregado. No nível das representações, segundo o jornal:

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A primeira qualidade de um bom patrão é não se imaginar essencialmente diferente dos que o servem. A diferença é de condição; às vezes, de instrução e educação. A condição social inferior pode deixar o indivíduo sem instrução, sem educação, o que não impede de ter bons sentimentos. É um ser humano em grau socialmente inferior, mas no caminho do progresso, se bem servir. Servir é a obrigação do empregado. Pagar-lhe o serviço e trata-lo com paciência é o dever do patrão. Não há castas. A humanidade é uma só. A escravidão foi uma monstruosidade que desapareceu (A LUZ, 1924, n. 4, p. 1).

Nessa perspectiva, entende-se que a representação da relação patrões e empregados do ponto de vista da imprensa católica, embora faça uma tentativa de se aproximar de uma linguagem mais igualitária e afetiva, apresenta um entendimento de que os empregados são membros inferiores da sociedade, seja pela condição, pela instrução ou educação. O discurso apresenta uma representação contraditória uma vez que ressalta não haver castas, que a humanidade é uma só, ao mesmo tempo em que se argumenta que a condição social inferior dos empregados não os impedem de ter bons sentimentos. Dentro dos limites de sua propriedade a palavra do patrão era lei. Era ele quem ditava as normas, trançava os limites, os direitos, julgava e punia. ―Era amparado apenas no respeito que a sua autoridade infundia‖ (PÓVOAS, 2010, p. 21), uma vez que a figura do patrão/coronel era a que estabelecia as regras. Ele atuava entre os interesses da usina, senão os seus próprios, e nos interesses dos trabalhadores desde que não fosse a sua revelia. Algumas das formas pelas quais tal aprendizado se dava era através da prática do clientelismo que envolvia ações paternalistas. Deste modo, o patrão oferecia moradia, espaço para construir um roçado, escola, atendimento médico, acesso a bens de consumo, entre outros, tudo em troca de respeito e fidelidade, obediência no trabalho, como também na política. Isso se dava à base da disciplina (sistema impositivo e de controle). Os membros do jornal O Paiz que visitaram a Usina Itaicí em 1906 observaram que:

É sobre maneira notável o cunho superior e inteligente orientação habilmente imprimidos à direção geral e aos diversos ramos do serviço em uma das usinas mais centrais da América do Sul, onde se vê, à par de uma administração altamente liberal, a ordem, a disciplina e a dedicação ao seu proprietário por parte do pessoal (O PAIZ, 1906, apud SOUZA, 1958, p. 10).

A prática clientelística podia ser uma forma de equilibrar as forças impositivas provenientes dos patrões, além de estabelecer simbolicamente que havia uma dependência 179

entre patrões e empregados, embora note-se que isso se apresentava de forma que o patrão ocupava necessariamente o lugar de provedor. Contudo, percebe-se que ambos ocupavam papel prioritário e relevante nesse contexto histórico, mesmo que muitas vezes o trabalhador apareça nas narrativas como um elemento subalterno. O uso de ações paternalistas, característica marcante do clientelismo, contrabalanceava com as práticas impositivas mais afetivas, com o laser, com a abertura para manifestações culturais, como o exemplo abaixo:

Era habitual a realização de retretas aos domingos e quintas-feiras à noite, pela banda de música de menores que, sob a direção do maestro Francisco Ferreira Mendes, executava não só músicas regionais como trechos de autores clássicos. Essas retretas eram assistidas pelos operários que se agrupavam no pátio e o próprio Cel. Antonio Paes de Barros a elas comparecia invariavelmente, com pessoas de sua família, amigos e empregados mãos categorizados. Entre os números musicais mais apreciados destacava-se, pela singularidade, o trecho denominado Eco da floresta, para cuja execução era previamente colocado, à certa distância e oculto entre as árvores marginais do rio, um pistonista que repetia o solo do pistonista da banda, como se fosse eco do mesmo (SOUZA, 1958, p. 11-12).

Aos domingos e nas datas cívicas a banda executava a alvorada e em seguida percorria as ruas principais tocando dobrados marciais e despertando festivamente nos moradores48. Outras manifestações culturais eram direcionadas apenas para a família e amigos íntimos, deixando de fora outros grupos sociais.

Por vezes, a monotonia das noites era quebrada por espetáculo original e de tom poético, quando o Cel. Antonio Paes de Barros promovia passeios fluviais, em noite de luar, fazendo-se transportar em embarcações adequadas, com pessoas de sua família, seus íntimos e conjunto musical, em visita aos amigos dos estabelecimentos mais próximos. Tais visitas eram retribuídas em ocasiões propícias, quase sempre rematadas por agradáveis bailes. Relembro com saudade o magnifico sarau realizado no vasto salão da residência, animado por excelente conjunto musical, ao qual compareceram distintas famílias das localidades vizinhas (SOUZA, 1958, p. 12).

Sobre o assunto, o cônego Jacomo Vicenci observou que:

Aos sábados, depois das seis horas da tarde, é facultado um festim que consiste em batuque e maxixe de homens e mulheres: uma verdadeira orgia despejada. Em tais ocasiões, há sempre brigas, ferimentos e mortes. Entretanto, os armazéns das usinas estão sempre abertos com todo o pessoal ao balcão para vender aguardente ao preço de mil réis a garrafa! Alguém,

48 Cf. Souza, 1958, p. 12. 180

com conhecimento de causa, asseverou-me que o dominador de Mato Grosso e seu pior escravizador é o Parati (possivelmente o coronel). E tem razão! Muitos desses infelizes com grande satisfação dos seus senhores gastam em aguardente, num sábado, o que ganharam durante toda a semana. Reparemos bem na ingenuidade requintada contida no que estou escrevendo. Uma garrafa de aguardente, que talvez custe ao proprietário dois a três vinténs, é vendida ao pobre operário em troca de dezoito horas de suores e sofrimentos impelindo-o para o vicio da embriaguez, para melhor o poder dominar! (VICENCI, s/d, 137-138).

Percebe-se que nesses momentos havia socialização do conhecimento como forma cultural através da música e das danças. Ocorriam transmissões de saberes que iam desde a música clássica, das retretas até os batuques e o maxixe. Mostra-se também um momento de interação que envolvia troca de saberes, hábitos e comportamentos. Isso demonstra um certo avanço no que diz respeito às questões culturais, uma vez que as manifestações representadas pelo batuque e o maxixe eram reprimidas historicamente, como podemos observar:

Com relação à música, a repressão senhorial, aconteceu pela proibição do batuque, folguedo imperante no interior das camadas pobres e especialmente praticado pelo segmento escravo. [...] homens livres e pobres e até indígenas utilizavam do espaço urbano – preferencialmente as imediações das fontes d‘água – para se reunirem em diversão. [...] Luís de Albuquerque publicou um bando em que ―com graves penas, se proibia os ‗batuques‘ e ajuntamentos de escravos como fontes fonte de discórdias e perturbações públicas‖ (DOURADO, 2014, p. 165).

A autora também enfatiza que segundo Freyre (1978)49 o rigor foi despropositado. Houve falta de compreensão do que fossem os tais batuques. Mas se nota-se que pelo fato de que nessas diversões movidas à música, dança e bebidas, os excessos geravam conflitos e violência, como foi lembrado pelo Padre Vicenci (s/d), situação indesejada pelas elites. Outro fator a se considerar é o de que até mesmo nos momentos que sugerem mais sociabilidades e afetos, os trabalhadores ainda assim eram explorados. Os momentos de descontração não eram organizados sem que os armazéns estivessem abertos para que os trabalhares continuassem contraindo dívidas, ou, por outro lado, como relatou o padre Vicenci ―impelindo-o para embriagues, deste modo, tornava-se presa fácil do patrão e ao que tudo indica, facilitava também sua sede por dominação‖ (VICENCI, s/d, p. 138). No campo religioso, Souza (1958) se refere à visita de um sacerdote católico em missão – o padre salesiano José Solari. Diz o autor que o padre foi recebido com toda a consideração. Ele foi convidado para se senta a mesa como hóspede de honra da família do

49 Freyre (1978, p. 156-157) apud Dourado (2014, p. 165). 181

Cel. Totó Paes. Como de costume entre os religiosos, este fez a oração antes da refeição que foi ouvida com atenção e respeito pelos presentes. O sacerdote permaneceu no estabelecimento durante alguns dias realizando muitos batizados, casamentos e outros atos religiosos que tinham início com a celebração da missa e eram assistidos pelo pessoal da Usina e da circunvizinhança. Esse episódio foi rememorado por Souza (1958) para dizer que apesar do proprietário da usina ser um maçom, ele respeitou a prática do missionário católico e suas obrigações de eclesiástico. Sobre isso relatou:

A maçonaria tem por princípio o Supremo Arquiteto do Universo, que é Deus sob a égide da fraternidade, sendo o seu lema a liberdade de crença e de opinião e os costumes para combater o erro e o obscurantismo e praticar o Bem e a Benevolência. A doutrina cristã, ou cristianismo, pregada por Jesus Cristo, o meigo Rabi da Galileia – que instruía o povo com seu verbo inspirado no Amor e no Perdão, conforme se lê no Evangelho, e ensinava às multidões que dele se acercavam para ouvir a sua palavra de fé e esperança: Amai-vos uns aos outros tanto quanto lhes disse: Ide a todas as coisas e ao próximo como a vós mesmos. [...] O fato aqui narrado, exemplificando a possibilidade do exercício harmonioso dos dois princípios – o mação e o religioso cristão, põe em evidencia o espirito liberal do mação (SOUZA, 1958, p. 13).

Verifica-se que uma das práticas culturais presentes na usina era a devoção aos princípios do catolicismo. Na usina foi construída uma capela onde eram realizadas as missas, batizados, os casamentos. A capela era utilizada por todos, tanto pelos moradores da usina como pelos moradores das comunidades mais próximas. Inclusive era comum o coronel/patrão ser padrinho dos filhos dos trabalhadores como parte da prática de apadrinhamento, demostrando uma relação mais próxima com o objetivo de criar os laços afetivos, seguidos dos laços de fidelidade. O fato do patrão adotar práticas de boa convivência com a igreja católica era um procedimento necessário para transmitir por um lado uma boa impressão, e por outro o entendimento de que a fé cristã também refletia como um elemento educativo nas relações de convivência, cuja função como se pensava, era ensinar o amor ao próximo, a esperança e a fé. Isso pressupunha talvez poder lidar com pessoas mais receptivas, afáveis, solícitas, e menos rebeldes. Em que pese à formalidade das práticas, as apropriações realizadas com base nas representações que mais lhes interessavam resultaram na proposição de valores, hábitos e comportamentos diferentes. Desse processo, aponta-se uma educação movida por interesses e

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experiências de grupo, ao agirem como filtros culturais produziram bricolagens permitindo retirar de diversas representações aqueles elementos que melhor atendiam seus objetivos (CERTEAU, 1994). A nosso ver, isso serviu tanto para os proprietários como para os trabalhadores. No cotidiano da usina, a nosso ver, o sentido de educação se fundamenta a partir de valores e princípios liberais e positivistas. Conforme Hilsdorf (2003), a absorção das ideias positivistas na sociedade brasileira deveu-se não apenas por sua proposta progressista com base na ciência, mas também nas concepções de organização social que assinalam com clareza a diferença entre os grandes homens e os sujeitos que precisam ser orientados. Desta maneira, compreende-se que o estudo da educação produzida no universo da Usina Itaicí busca análises possíveis acerca da complexidade das relações que marcaram esse sistema. Essas relações são ao mesmo tempo fabril e sociocultural, envolvem tanto relações de trabalho quanto as relações além da fábrica, em um fluxo e jogo de relações que envolve a usina, o espaço doméstico, o setor comercial, social, cultural, etc. Assim, a usina vista a partir desse complexo pode ser compreendida como uma forma particular de organização ao modo capitalista, funcional, lucrativa para o patronato industrial, mas também produtora de traços culturais presentes nas experiências de vida dos protagonistas (proprietários, trabalhadores, famílias, crianças). As relações foram construídas com base no processo disciplinar, considerando a priorie a distribuição das pessoas nessa espacialidade que era feita com a intenção de regular o tempo, o espaço, as práticas e os atores sociais.

4.3 Trabalho, Educação, Punições e Resistências

4.3.1 A cultura do trabalho

Os olhares para a história cultural nem sempre se preocuparam com os modos de ver, pensar e agir de todos os grupos sociais. Por muito tempo o que se viu foram reflexões acerca de histórias elitizadas, dando atenção apenas para os sujeitos da elite, seus feitos e os materiais que produziram historicamente.

Negligenciava-se o fato de que toda a vida cotidiana está inquestionavelmente mergulhada no mundo da cultura. Ao existir, qualquer indivíduo já está automaticamente produzindo cultura, sem que para isto seja preciso ser um artista, um intelectual, ou um artesão. A própria linguagem, e as práticas discursivas que constituem a substância da vida social, embasam 183

esta noção mais ampla de Cultura. ―Comunicar‖ é produzir Cultura, e de saída isto já implica na duplicidade reconhecida entre Cultura Oral e Cultura Escrita (sem falar que o ser humano também se comunica através dos gestos, do corpo, e da sua maneira de estar no mundo social, isto é, do seu ‗modo de vida‘) (BARROS, 2005, p. 3).

Com respaldo nos estudos de Chartier (1990) e Certeau (1994) e dos elementos que esses autores utilizam a partir de reflexões das diversas fases da Escola dos Annales, a história cultural ganhou um olhar plural, diversificado e multifacetado. Os estudos não se depreendem mais em uma só cultura, mas nas culturas fabricadas por meio dos atores sociais, sem distinção. Com isso, várias temáticas ocuparam espaço relevante nos estudos de história e das ciências sociais como um todo. Homens, mulheres, crianças, indígenas, pobres, ricos, objetos, espaços e lugares variados entraram em cena. Esses públicos, por sua vez, vêm manifestando angústias, lutas, tensões, conflitos, movimentos, como também alegrias, desejos, esperança e sentimentos que delineiam suas história de vida e a história social e cultural. Neste sentido, observa-se que as noções de cultura constituídas no universo de abrangência da História Cultural, segundo Barros (2005), um estudioso dos conceitos da história cultural com base em Chartier (1990) e Certeau (1994), ―são as de linguagem (ou comunicação), representações, e de práticas (práticas culturais, realizadas por seres humanos em relação uns com os outros e na sua relação com o mundo)‖ (BARROS, 2005, p. 3). Os meios através dos quais estes se produzem também desvelam elementos importantes na observação da trajetória histórica das sociedades, como as práticas e os processos, as visões de mundo, sistemas de valores, sistemas normativos, os modos de vida relacionados aos vários grupos sociais, as concepções relativas aos vários grupos sociais, as ideias disseminadas através de correntes e movimentos de diversos tipos (BARROS, 2005). Estes movimentos permitem olhar para as práticas culturais comuns como os modos como, em uma dada sociedade, os homens falam e se calam, comem e bebem, sentam-se e andam, conversam ou discutem, solidarizam-se ou hostilizam-se, morrem ou adoecem, tratam seus loucos ou recebem os estrangeiros. As representações para Chartier (1990), inserem-se em um campo de concorrências e de competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e de dominação. Estas lutas imprimem inúmeras apropriações de acordo com os interesses sociais, imposições e resistências políticas, motivações e necessidades que por si só são conflituosas, consigo e com o mundo. O modelo cultural de Chartier (1990) passa pela noção de poder, de modo que o

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poder se desvela nas ideologias, na simbologia, nas representações e nas práticas, configurado nos modos de ver e fazer de cada sociedade. Segundo Chartier (1990), a apropriação procura compreender as práticas que constroem o mundo como representação. Nesse ponto de vista, percebe-se que a História Cultural defendida por ele está atenta às influências entre práticas e representações, e a apropriação presente nos desdobramentos políticos, sociais, econômicos e culturais. A História Cultural entendida a partir dessa perspectiva permite olhar para os mais variados aspectos das culturas produzidas, de modo que aqui se optou em dar maior visibilidade à cultura do trabalho e às formas como essa cultura foi fabricada, uma vez que o trabalho faz parte de uma das necessidades humanas e historicamente aparece a partir do desenvolvimento de pequenas ferramentas de pedra, em que as sociedades primitivas começam a buscar meios para sua sobrevivência. Palenzuela corrobora para os estudos acerca da cultura do trabalho. Para o autor:

Las culturas del trabajo, em su doble dimension material e ideática tienen su origen y su àmbito de reproducción em los processos de trabajo. Es decir, que los saberes técnicos, las habilidades y percepciones y tempo del trabajo. Los indivíduos que, desde sus respctivas posiciones em las relaciones sociales de roduccíon, participan regularmente em determinados processos de trabajo formando um bloque sócio-tecnológico, construyen e interiorizan valores como la solidariedd, la cooperacion e la competência y elaboran significaciones sobre la propia actividad y su pertencia a um universo laboral determinado (PALENZUELA, 2014, p. 69).

Diante disso, se faz necessário verificar as ideologias, as internalidades das atividades laborais, as intencionalidades, cujas estratégias implicam na formação econômica, social, educacional, e inspiram produção de culturas. Com base em Thompson (1987), observa-se que a sua análise acerca da experiência humana auxilia nas reflexões sobre a própria vida humana e suas relações. Refletir sobre as experiências, o trabalho e a educação significa, portanto, pensar sobre essas práticas sociais e culturais como dimensões históricas indissociáveis. Para apreensão das práticas sociais há uma relação direta entre pensamento e realidade, uma vez que a experiência surge no ator social com base no que se pensa, e como resultado produz representações pautadas ao que acontece tanto do ponto de vista individual como coletivo, que envolve os atores sociais e a sua relação com mundo (THOMPSON, 1981).

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As reflexões sobre a experiência histórica desvelada por Thompson a partir das análises referentes à formação da classe operária inglesa revelam o caráter exploratório de uma temática voltada para cultura popular, de pessoas comuns, que são protagonistas da história. Sua análise dá ênfase ao modo de vida característico dos trabalhadores que estão ligados ao modo de produção e aos valores partilhados. Nota-se um estado voltado para as experiências cotidianas.

Se detemos a história num determinado ponto, não há classes, mas simplesmente uma multidão de indivíduos com um amontoado de experiências. Mas se examinarmos esses homens durante um período adequado de mudanças sociais, observaremos padrões em suas relações, suas ideias e instituições (THOMPSON, 1987, p. 11).

Isso se refere à experiência humana, uma vez que:

Pela experiência os homens se tornam sujeitos, experimentam situações e relações produtivas como necessidades e interesses, como antagonismos. Eles tratam essa experiência em sua consciência e cultura e não apenas a introjetam. Ela não tem um caráter só acumulativo. Ela é fundamentalmente qualitativa (THOMPSON, 1981, p. 188).

A experiência humana de que Thompson (1981) trata passa pelo interesse de investigar o trabalho. Nesse sentido, percebe-se que trabalhar tem a ver com uma atividade que tem um propósito, podendo ter como finalidade a produção de bens materiais que supram as necessidades de sobrevivência como moradia, alimentação e segurança, ou necessidades culturais, como a arte, lazer, educação, etc. Atualmente, o trabalho está associado à busca de uma expressão pessoal e posição social. Busca-se por um trabalho perfeito que seja bem remunerado, reconhecido, estimulante. É muito comum a ideia de que para se alcançar a realização ou a felicidade, é necessário trabalhar com prazer, fazendo-se o que gosta. Mas nem sempre foi assim. Em sua raiz, o termo trabalho é associado à dor e sofrimento. No entendimento de Edgar de Decca (2004) até a época moderna, o trabalho foi sinônimo de penalização e de cansaços. É a partir desde ponto que pretendemos tratar, tendo em vista que uma das problemáticas mais relevantes na história do trabalho no Brasil atualmente refere-se ao processo de transição do trabalho escravo para o trabalho livre. Isso tem a ver com a formação do mercado de trabalho assalariado que está relacionado com o desenvolvimento do

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capitalismo no país. Schroeder (2008) afirma que o trabalho assalariado é ―o regime de trabalho que mais se ajusta aos objetivos do sistema capitalista e a economia de mercado, que é aumentar a produtividade e consequentemente o lucro do capitalista‖ (SCHROEDER, 2008, 71). Historicamente, o capitalismo foi marcado pela apropriação privada dos meios e bens de produção. O processo produtivo passou então a ser organizado com o objetivo da geração de lucros. O mercado de trabalho assalariado teve como base uma mão de obra caracterizada por pessoas que foram inseridas no processo de expropriação, cujos trabalhadores (as) despossuídos (as) dos meios de sobrevivência, sem alternativa, serviram de mão-de-obra no mercado de trabalho. Mas refletir sobre a mão de obra assalariada no Brasil é lembrar que ela esteve por muito tempo associada ao trabalho análogo ao escravo, como foi o caso de Mato Grosso. Ocorreram muitos casos em que os trabalhadores (as) ―livres‖ e assalariados (as) viviam em regime de semiescravidão, uma vez que os seus rendimentos eram submetidos a uma espécie de escravidão por dívidas, ocasionando no aprisionamento do salário pelos patrões, como também seu próprio aprisionamento, considerando que os mesmos eram impedidos de se desvincularem da empresa enquanto as dívidas não fossem saldadas, gerando por certo uma liberdade controlada. Schroeder (2008) ressalta que o Brasil foi o último país da América Latina a abolir a escravidão o que ocorreu somente no final do século XIX. Para ele, a escravidão era a forma mais degradante da existência, pois os escravos eram tratados como coisas, homens sem vontade, não podiam escolher suas moradias, onde ou quando trabalhar, e eram sujeitos às brutalidades de um controle violento sobre o seu trabalho. Após a abolição da escravidão, as relações de trabalho que foram estabelecidas estavam ligadas ao poder dos coronéis, sustentadas na violência do regime coronelístico e no paternalismo, este último caracterizado pelas práticas clientelísticas que serviam como meio de arregimentar os trabalhadores (as) e garantir a oferta de mão de obra para os diferentes trabalhos. Na sociedade industrial, os patrões buscavam disciplinar os trabalhadores, por meio do discurso do tempo útil e da crítica a ociosidade. Os discursos eram direcionados para a valorização do trabalho, e deste modo foi criado um sistema de controle e disciplinarização dentro do sistema de fábrica. As mudanças que ocorreram na Revolução Industrial identifica na sociedade transformações mais amplas do que apenas o surgimento da fábrica e o uso das

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máquinas na produção, com destaque para as alterações na relação de trabalho (DE DECCA, 2004). Segundo Schroeder (2008), desde a metade do século XIX em Mato Grosso, já havia um discurso que condenava a ociosidade e que valorizava o trabalho, e que via como função do poder público, através das leis, reprimir a vadiagem e recompensar ―as pessoas industriosas e laboriosas‖:

Ainda que o amor do trabalho se recomenda por si mesmo e pelas inapreciáveis vantagens que delle tudo resultão aos indivíduos e a sociedade, não será contudo supérfluo, e nem inútil, que as leis e os legisladores empreguem o seu zelo e autoridade em inspira lo e persuadi lo aos povos, já prometendo e distribuindo com discrição adequados prêmios e recompensas ás pessoas industriosas e laboriosas, já castigando com justa severidade a inerte ociosidade dos preguiçosos (ECHO CUIABANO, 1840, s/p, apud, SCHROEDER, 2008, p. 86).

O autor também destaca que estes discursos sobre a vadiagem e a valorização do trabalho buscavam a sua justificação em argumentos que pesavam os aspectos morais e religiosos. Para ele, o trabalho por sua vez refletia a índole das pessoas, as pessoas que não trabalhavam estariam propensas a cometer crimes ou se entregarem ao vício, mais um motivo para que as autoridades se preocupassem em incentivar o trabalho e reprimir a vadiagem.

O trabalho é o espelho onde se refletem a índole laboriosa e a actividade das nações. Um povo trabalhador é necessariamente feliz. É pelo trabalho que se desconhece a miséria (...) é o melhor antídoto contra a hipocondria e até mesmo contra o crime, enquanto que a inércia é sempre prejudicial e funesta em seus efeitos. (...) é a parte integrante da vida humana para que possa ser amena, alegre, venturosa (O REPUBLICANO, 1896, s/p, apud Schroeder, 2008, P. 87).

As crianças também aparecem como alvos de ações do governo, sinalizando que desde cedo elas deveriam ser preparadas para o trabalho. Os filhos de trabalhadores deveriam ter acesso à educação, mas uma educação que através da prática lhes oferecesse uma profissão. A opção mais procurada pelas famílias pobres era a profissionalização de seus filhos no Arsenal de Guerra e no Arsenal da marinha onde existiam as Companhias de Aprendizes e Artífices, que aceitavam crianças comprovadamente pobres, jovens libertos e descendentes de escravos (SCHROEDER, 2008).

A escola aparece nesses discursos como uma instituição disciplinadora, que deveria preparar as pessoas para o mercado de trabalho em dois sentidos. 188

Num aspecto por que ensinava conhecimentos e desenvolvia certas habilidades que poderiam ser instrumentalizadas numa profissão ou funções a serem desenvolvidas. Em outro sentido por que a escola introduzia a pessoa num regime disciplinar que se assemelhava ao regime do trabalho assalariado, ou seja, o cumprimento do horário, a realização de tarefas pré- determinadas, a obediência aos superiores (SCHROEDER, 2008, p. 89).

As Companhias de Aprendizes Artífices recrutavam meninos pobres com objetivo de transformá-los em operários, mestres e contramestres das oficinas dos Arsenais da Marinha. As Companhias de Aprendizes Marinheiros, envolvendo crianças e adolescentes (10-17 anos), buscavam a formação de marinheiros para os navios. Os aprendizes submetiam-se a uma dura jornada que começava às 5 horas da manhã e encerrava-se às 10 horas da noite. José Carlos Barreiro lembra que as duas companhias de aprendizes subordinavam os alunos a uma disciplina regular e uniforme e dotavam os alunos das características de asseio e subordinação (MELO, 2009):

Tal educação, oferecida a bordo de navios, deveria permitir aos meninos o menor tempo possível de permanência em terra para que se desviassem das distrações e se libertassem do domínio dos vícios e das paixões. Em meados do século [19], um Comandante Geral da Marinha do Rio, ao solicitar a criação de mais uma Companhia de Aprendizes Marinheiros, apresenta bons resultados ao Ministro da Marinha, quanto à transformação de meninos abandonados em bons marinheiros (BARREIRO, 2005, p. 6 apud MELO, 2009, p. 115).

Como no Arsenal da Marinha de Mato Grosso, por exemplo, as instituições militares do Império, ao desenvolverem uma política de recrutamento de menores, assumiam a responsabilidade de inserir essa mão de obra no mercado produtivo.

Pode-se sugerir, para o caso de menores livres, que a política de recrutamento desafoga a pressão de braços ociosos em lares pobres; para o caso dos menores libertos, representou uma oportunidade de inseri-los no mundo do trabalho livre remunerado, facilitando-lhes a transição de um mercado marcado pela herança escravocrata para uma outra relação de trabalho (SOUZA, 1958, 35 apud MELO, 2009, p. 117).

Nessa perspectiva, Crudo (2005) explica que o ensino de ofícios agenciado pelos militares, estaria articulado a uma política de mão de obra livre, capaz de substituir a mão de obra escrava, com a intenção de atender as necessidades de uma economia emergente. No contexto da segunda metade do século XIX em Mato Grosso, deu-se início ao desenvolvimento da indústria açucareira, como já é de conhecimento, de modo que estas

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foram se instalando às margens do rio Cuiabá, e em cujas as condições de trabalho eram degradantes e análogas à condição de escravidão. Diante dessa realidade, o trabalhador (a) não tinha um rendimento que de certa forma o (a) protegesse dos abusos dos coronéis, pecuarista e empresários. Portanto, a população estava a mercê do poder dos grandes coronéis, que usavam da violência de grupos de homens armados que se colocavam a seu serviço, ou mesmo da força da polícia para impor o seu domínio sobre os trabalhadores (as) (SCHROEDER, 2008). ―Nós pobre, sem nada pra vive, calava com as mortes, trabalhava, não tinha voz naquele silencio que defendesse nós. Delegado de polícia nem pensa, era afilhado ou coroné e nós trabalhava quieto, comia quieto, morria quieto‖ (ALEIXO, 1995, p. 165). Neste testemunho percebe-se a indignação do trabalhador Bento Rafael, diante de uma realidade que não tinha a quem recorrer. Bento Rafael relata conforme as suas representações como era o dia a dia dos trabalhadores (as) nas usinas:

A usina deu trabalho, deu vida pro pobre que não tinha comida. Ai o homem virava inté bicho, só fazia gemê e chorá, pra comê tinha que inté suá sangue. Tinha coroné que ajudava a gente, arguns era mardito, ruim mandava batê e mata tudo aqueles que não queria fica na usina pra trabalha (ALEIXO, 1995 p.164).

Nota-se que o coronel tinha o poder sobre a vida de cada empregado, e este estava condenado à servidão. Deste modo, observa-se que decorreram mais de dois séculos para que o trabalhador fosse reconhecido como aquele que constrói a riqueza do Estado. Mas vale lembrar que o testemunho de um trabalhador de uma usina de açúcar é importante na apreensão da história e da memória do trabalho, dos trabalhadores (as) e das relações de trabalho constituídas, como foi o caso da Usina Itaicí, onde centenas de trabalhadores estavam inseridos num contexto no qual predominavam representações e práticas de uma liberdade controlada, mediada por atitudes que desencadeavam um sentimento de subordinação, disciplinamento e coerção.

4.3.2 Vestígios da formação para o trabalho

A cultura do açúcar envolvia a condição de empoderamento do usineiro, e para garantir o poder, privilégios, controle e a ordem foi necessário fabricar um ambiente propício

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para este fim, que a nosso ver significou criar estratégias baseadas na condição de assujeitamento por parte dos trabalhadores (as) e das famílias. Os indícios da preparação dos trabalhadores para a convivência na usina e para o trabalho estão evidenciados nos afazeres cotidiano50. O dia a dia dos trabalhadores da usina foi marcado pelo ordenamento do espaço, do tempo e das pessoas, criando um ambiente de trabalho controlado. Esse regime de controle foi uma característica que se destacou na:

[...] instauração de uma nova ordem que buscava, através de transformações econômicas e tecnológicas, dotar a região de potencial responsável pela supremacia da indústria açucareira sobre as demais atividades econômicas. [...] A usina surge, à época, como a principal formadora e disciplinadora da mão de obra. Ela representou a força de dominação e poder. Com seu aparato tecnológico, conseguiu dar nova feição à economia local (ALEIXO, 1995, p. 169).

Os sinos, os gestos, a fragmentação do tempo, o espaço, as regras, as aulas na escola cotidianamente repetidas possibilitam a apropriação de valores, hábitos, posturas e condutas requeridas, como também dota de eficiência a presença reguladora do patrão. Esse conjunto de representações e práticas indicava o ordenamento espaço-temporal que refletia o controle das atividades, mas, sobretudo, a luta contra o ócio, a vadiagem, a criminalidade e o analfabetismo, uma vez que o combate a estas atividades negadoras do progresso requeria habilidade no processo de instruir e educar os trabalhadores (as), combinando esse entendimento à valorização do trabalho com a disciplina. Sinalizada por um espaço e tempo prescritos, a formação dos trabalhadores (as) e das famílias era ocupada nos afazeres cotidianos. Aprendiam a trabalhar, exercendo o trabalho. Não havia formação especializada. Ocupavam-se dos ofícios que aprendiam na lida nos canaviais, no manuseio das máquinas, no ritmo das fornalhas, por meio das experiências que trocavam com os demais trabalhadores (as). Todavia, essa aprendizagem se dava sob as deliberações e regulações do patrão. Siqueira (2009, p. 46) afirma que ―a maioria dos trabalhadores braçais era analfabeta‖, com isso não queremos dizer que esse possa ter sido o motivo de não haver uma formação especializada, de modo algum, mas se trata de uma informação relevante para a compreensão do contexto social e educacional. Geralmente a oferta de cursos técnicos envolvia acesso ao conhecimento escolarizado, de modo que a ausência de formação escolar dificultava a implantação de tal procedimento.

50 Cf. (CERTEAU, 1994) O cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia ou que nos cabe em partilha. 191

Mas compreendemos que esse é apenas um dos fatores. A ausência de uma formação mais específica para esse público era algo distante da realidade. Na própria usina, os proprietários deram atenção à escolarização das crianças, mas não olharam para os adultos sem escolarização. Mesmo assim, pode-se observar que os trabalhadores foram se apropriando de conhecimentos necessários para lidar com a terra, com a lavoura, com a produção do açúcar, enfim, com as tarefas delegadas no universo da usina.

Figura 33 - Trabalhadores da Usina Itaicí na lavoura de cana.

Fonte: Acervo da Secretaria Municipal de Santo Antonio de Leverger, s/d.

A foto acima foi feita durante a passagem dos fotográficos Francisco Solano Salcedo (Paraguaio) e Miguel Perez (Espanhol) na Usina Itaicí na primeira metade da década de 1910 a serviço do Governo de estado de Mato Grosso para a elaboração de um álbum gráfico que foi produzido na Alemanha e publicado no ano de 1914, com o objetivo de ser utilizado como ―guia de investimentos [...], como portadora de um inventário que contém a descrição dos aspectos físicos dessa porção do território nacional e de elementos relacionados ao passado local‖ (FRANCO, 2015, p. 13).

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Observa-se na imagem uma das representações sobre a produção do açúcar no estado, na qual é possível perceber os trabalhadores na lavoura de cana, possivelmente capatazes montados nos cavalos, administradores da usina, como também o cenário que envolve a grandeza dos canaviais, e não podemos ignorar o objeto símbolo de modernidade - pesados vagões que rodavam sobre os trilhos à tração animal o Decauville. Temos diante dos olhos um retrato convencional na representação dos fotógrafos estrangeiros. Nos vagões se encontram, provavelmente, os administradores da usina e seus funcionários mais graduados, algumas crianças que podiam ser seus filhos ou parentes (pois as vestimentas dos adultos e das crianças não os associam aos trabalhadores). Verifica-se também o destaque para a cana de açúcar, onde algumas pessoas aparecem com elas na mão em direção elevada evidenciando a relevância da cultura canavieira para o estado. Era por olhar na maior parte do tempo para esse idealismo e convicção que os usineiros propunham intencionalmente um modelo de educação que a tomava por instância efetivadora. Ocorre que os agentes dessa instituição não levavam em consideração alguns detalhes relativos às condições das pessoas inseridas nesse contexto, detalhes que são observáveis quando são trazidas para o primeiro plano as peculiaridades de cada grupo social na sua condição de trabalho e de trabalhador. Detalhes que, em princípio, como a imagem consegue-se identificar, são os fatores hierárquicos que se encontram presentes, os administradores entre outros funcionários de sua confiança apresentam-se centralizados ou ao lado e no alto, seja através dos vagões símbolo de modernidade e prosperidade, ou em cima dos cavalos representando autoridade e controle, todavia, os trabalhadores encontram-se embaixo, provavelmente numa representação que evidencia a característica de hierarquia e poder da sociedade da época. O fator hierárquico é uma característica advinda das relações sociais construídas desde o período da colonização no Brasil, fundamentado na diferenciação entre grupos sociais com base nas questões raciais, econômicas e culturais. Observa-se que essa característica influencia na formação da mão de obra desde a formação do Brasil e ainda predomina na Primeira República. A diferença no tratamento entre os grupos sociais acaba direcionando cada um em um lugar de pertencimento, ou seja, os negros, livres e pobres geralmente ocupavam funções subalternas, com baixos salários e sem margem para ascensão social. Os brancos, empresários, fazendeiros, políticos, diferentemente, possuíam melhores condições financeiras e condições de mobilidade social. Estes últimos representavam uma pequena parcela da população mato-grossense.

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Nessa perspectiva, vimos que após a abolição da escravidão criou-se um problema de mão de obra. Havia a preocupação da elite em como fazer com que os trabalhadores livres submetessem a disciplina do trabalho assalariado ao invés de garantir por si mesmo a sua sobrevivência, ou seja, de forma mais autônoma. A solução era uma questão complexa. Segundo Schroeder (2008), para submeter os trabalhadores livres nesse modelo de trabalho criava-se relações sociais de produção que estabelecia o domínio de quem detinha os bens de capital sobre os que detinham a força de trabalho. Essa relação prejudicava o desenvolvimento de atividades autônomas pelos trabalhadores livres, condicionando-os a incorporar-se no processo produtivo. Para o autor, os trabalhadores livres eram:

[...] todas as pessoas que eram pobres e que portanto deveriam trabalhar para garantir a sua sobrevivência. Chamamos estes trabalhadores de livres para diferencia-los dos escravos, entretanto não podemos esquecer que muitos destes compartilhavam semelhantes condições de vida e exploração dos cativos (SCHROEDER, 2008, p. 49).

É importante ressaltar que segundo o autor, ao definir este grupo como trabalhadores não significa dizer que estes eram, necessariamente, empregados de alguém ou mesmo que estes tinham uma consciência de pertencimento a uma mesma categoria social. Sendo Assim, existia uma variedade de situações. No caso dos trabalhadores livres, estes se diferenciavam na relação com o mercado de trabalho, pois parte deste grupo era formade por pessoas que estavam inteiramente inseridas nesse contexto, por viverem sob a dependência direta de algum grande proprietário, como empregados assalariados ou trabalhando na terra dos grandes fazendeiros. E essa relação foi bastante comum no estado e nas usinas de açúcar. Conforme Siqueira (2009), esse foi o caso dos trabalhadores das usinas de açúcar de Mato Grosso, em que muitos usineiros, com raras exceções, submetiam-nos ao seu domínio e vontade. Deste modo, as relações de trabalho que se constituíram em Mato Grosso após o período de escravidão estavam diretamente ligadas ao poder dos coronéis, apoiados em práticas clientelísticas que serviam como meio de arregimentar trabalhadores e garantir a regularidade da oferta de mão-de-obra para as diferentes frentes de trabalho e para os grandes proprietários (SCHROEDER, 2008). Tanto que o jornal O Commercio de 20 de março de 1910 leva uma nota referente à oferta de trabalho na Usina Itaicí: ―TRABALHADORES – precisa-se de trabalhadores na USINA ITAICY, com casa e meza‖ (O COMMERCIO, 1910, p. 1).

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Desta forma, como era essa rotina de trabalho e como ela foi produzindo cultura? A concepção de trabalho no Brasil no período da Primeira República ainda tinha como referência o trabalho escravo existente no país por quase 400 anos. Deste modo, após a oficialização da libertação dos escravos pela Lei Aurea, os proprietários de terra ainda continuaram a conceber as relações de trabalho como escravagistas (SIQUEIRA, 2009), isto é, as relações de trabalho que se constituíram nas usinas de açúcar do estado não se diferenciaram muito do trabalho escravo, apresentando características de trabalho compulsório, o que geralmente é caracterizado como um sistema de semiescravidão ou escravidão por dívida. O trabalho no contexto da Usina Itaicí tem uma espacialidade própria definida nos limites da fábrica e de todo aquele núcleo populacional em situação de confinamento. Então, nota-se que essa espacialidade é representada por uma rotina de trabalho intensa, principalmente no período das grandes safras. Esta envolve saberes e experiências para lidar com a produção de açúcar, sem falar do regime de controle, começando pela apropriação da rotina de trabalho organizada conforme o cronograma abaixo:

Tabela 2 - Rotina dos trabalhadores nas usinas de açúcar do Rio Abaixo

4:00 hs Badalavam os sinos: despertar. Quebra-torto (café da manhã reforçado). 5:00 hs Início dos trabalhos 9:00 hs Café com pão – servido a todos os trabalhadores no local de trabalho. 11:00 hs Almoço. 13:00 hs Recomeçavam os trabalhos 20:00 hs Término dos trabalhos – período de plantio e entressafra. 23:00 hs Término dos trabalhos por ocasião das safras. Elaborado pela pesquisadora. Fonte: Siqueira et al, 1990, p. 38-39.

O jornal O mato Grosso de 07 de abril de 1912 traz uma publicação intitulada ITAICY que trata sobre o modo de vida nessa usina e sua rotina de trabalho. Verifica-se que de modo parecido com a rotina apresentada por Siqueira (1990), o autor do artigo denominado Paulo, ao que tudo indica, visitou a usina e aproveitou para descrever o que viu e sentiu. Primeiramente ele expõe o seu ponto de vista sobre a usina Itaicí dizendo que esta usina não é propriamente um sítio, ela corresponde a um povoado. Ressalta que ela possuía uma escola em que o número de alunos matriculados, moradores os sítios e os

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estabelecimentos açucareiros, excedem a 50 pessoas, possuindo também grande número de casas próprias ao abrigo confortável dos trabalhadores. Em seguida, ele relata a seu modo o que presenciou na rotina de trabalho na Usina Itaicí:

De manhã, apenas os primeiros raios do sol anunciam o amanhecer, da cama ouve o visitante, após o badalar da sineta, o apontador, em alta voz, fazer a chamada dos empregados. A proporção que respondem, recebem, cada qual, o seu pão, e de enxada ao ombro, desfilam para os serviços que lhes são determinados pelo encarregado, um bom conhecedor, pela longa prática, dos segredos da vida agrícola. O sol já vae alto; o meio dia se avizinha; badala de novo a sineta e os trabalhadores afluem para receber a refeição, prodigamente distribuída. Na feição de todos transparece a alegria natural a volta do trabalho que nobilita e esparge a felicidade no lar, remanso sagrado da vida. A tarde cahe. O silencio, a monotonia chegam; não vencem; porém, o visitante se deleita ouvindo os trechos suaves da música que se faz ouvir e que apezar de ser feita pelos pequenos que ali vão se instruir, nada deixa a desejar. As avançadas horas da noite obrigam-no a procurar o leito, Dorme. De manhã nova chamada e o dia principia portador de novas fainas e surpresas. (O MATO GROSSO, 1912, p. 2).

Bem diferente dessa versão, encontramos o testemunho de Ignotus (codinome) publicado no jornal A Luz de 04 de outubro de 1924. Esse cidadão presenciou o cotidiano das usinas de açúcar do Rio Abaixo e passou a relatar através de cartas encaminhadas para o editor do referido jornal, José A. Bouret Filho, conhecido como Zelito, as suas impressões acerca do funcionamento das usinas, principalmente sobre o trabalho. O artigo apresenta uma narrativa de uma testemunha ―aterrada, acabrunhada e penalizada como não se podes imaginar‖ (A LUZ, 1924, n.4, p. 4) – e usa a seguinte expressão: ―a usina é um inferno, os operários são domados, e, os patrões são os satanazes terríveis e desalmados‖ (A LUZ, 1924, n. 4, p. 2). Vimos que no primeiro parágrafo essa testemunha já dá o tom da sua narrativa que não tem nada de visão romantizada. A saber:

Às 4 horas da manhã as badaladas sinistras de um sino arrancam do sono dos operários para chamá-los ao trabalho; faz-se a chamada... infeliz de quem não responder; manda-se logo uma escolta atrás e uma vez alcançado a distribuição das penas conforme o código draconiaco da usina. Uns dias de tronco ou de solitária, diminuição da comida já infame que recebem todos e agravação da dívida pelas supostas custas que ocasionaram [...] Durante todo o dia vêm-se os operários atrelados como alimaria ao trabalho mais penoso, sempre tendo os capatazes ao lado com injurias e ameaças de novas súplicas [ilegível] (A LUZ, 1924, n. 4, p. 2).

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Tanto o artigo de Paulo como o de Ignotus, bem como os apontamentos de Siqueira (1990) e Schroeder (2008), apresentam indícios da rotina de trabalho na usina. Reforçam as evidências do cronograma das atividades desenvolvidas no dia a dia, com destaque aos horários e aos ofícios. Mas é curioso notar como as representações se diferenciam ao relatarem sobre esse cotidiano dos trabalhadores. Isso de certa forma demonstra que o ponto de vista sobre a Usina Itaicí e o modelo de trabalho desenvolvido variava dependendo de que lugar cada ator falava. Não é difícil observar nas fontes que havia versões positivas e negativas. Em meio a essas representações, os trabalhadores da usina seguiam uma rotina que envolvia o conhecimento sobre plantação da cana-de-açúcar, dos tipos de cana, da forma de produção em nível industrial, envolvia conhecer também o posto de cada ator social, sua função e as regras estabelecidas. O testemunho do Sr. Antonio Isidoro da Silva, trabalhador das usinas Conceição, Maravilha, Aricá, Ressaca e Itaicí relata como ocorria todo o processo da produção do açúcar, desde a preparação da terra até a comercialização. Esse senhor era um trabalhador braçal que realizava tarefas como carpir e cortar cana; mas relata que depois aprendeu a trabalhar com a máquina. Segundo o seu testemunho, o processo da industrialização do açúcar e a rotina dos trabalhadores, entre outras curiosidades, se davam da seguinte forma:

 Preparação da terra: primeiro tinha que carpir, destocar e, varrer pra poder fazer balizamento, fazer a cova num espaço de quatro palmos uma da outra;  Plantar: plantava na cova de dois palmos e 20 cm.  Variedades da cana: tinha a cana cristalina, java, cambatória e peroji. A caiana quase não tinha;  Colheita: A primeira colheita ocorria entre os meses de março e abril, depois de um ano a colheita era feita em maio. Nesse momento, os trabalhadores faziam a limpeza das estradas e assentavam os trilhos para colocar os vagões.  Ferramentas: eram utilizados machados, foices, enxadas, o arado.  Tarefas: cada tarefa era contabilizada a partir de 60 feixes de 30 paus de cana; os trabalhadores deixavam as enfeixadas, depois vinham seis homens para encher os vagões. Eram seis vagões. Depois disso, passava para a balança e em seguida eram encaminhados para a moenda. Havia quatro homens para jogar as canas na esteira.

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 O encarregado: o encarregado era quem tomava conta do trabalhador, fiscalizava;  A industrialização do açúcar: as máquinas funcionavam a vapor. Eram três caldeiras na Usina Itaicí e duas caldeiras na Usina Conceição. Havia fornalha a lenha, e dois homens ficavam embaixo para carregar as caldeiras, tinha também dois homens em cima para empurrar o bagaço e um para puxar o couro da boca da fornalha. Eram três cilindros atravessados. Havia defecadeira (taxo) e vaporadeira. Então, fervia-se o caldo da cana, depois ia para defecadeira; em seguida era coado a garapa, esquentava, descia para a vaporadeira, fervia e ia a vaco para fazer o cristal do açúcar. Depois de feito o melaço, descia para o embaixo para fazer o açúcar. Tinha um homem responsável para cavar, para pôr no vagonete e para ir em cima de uma bica e para a turbina. Da turbina ia para o depósito e depois eram ensacadas para a comercialização. Ele ressalta que na Usina Itaicí tinha um batedor automático para secar o açúcar.  Produto: do melaço fabrica o açúcar, do açúcar o melado totó para ir temperado com água para fazer o álcool. O melaço era fervido para fazer o garapão que ia para o alambique e assim era transformar em álcool. O teor de álcool era de 42/43 até de 44%.  Comercialização: ensacava e ia para Cuiabá. O transporte era feito no batelão (transporte fluvial) para atravessar de um lado para o outro (rio), depois o produto seguia de caminhão para um depósito na capital e depois era feita a distribuição;  Canada: a canada era quando tinha o garrafão. Esse garrafão era chamado de uma canada;  Praga: Tinha a broca, ruía e matava a cana, mas não era muito. Tinha o capim que quando ia plantar já ruía a cana também, antes de nascer.  O tempo de duração de cada plantação: demorava algum tempo, às vezes fazia de cinco a seis cortes de cana, ai morria, tinha que replantar. Às vezes ficava fininha. Infere-se que nos espaços de trabalho da Usina Itaicí se fazia presente a circulação de saberes e práticas referentes aos procedimentos de produção da cana e de seus derivados. Tratava-se de lugares compreendidos enquanto espaços que exerciam uma função pedagógica, tendo em vista que não eram todos os trabalhadores que detinham o conhecimento do ofício que exerciam, mas foram se apropriando do processo no dia a dia. Este espaço se configurava como propício ao desenvolvimento de ações educativas não escolarizadas, uma vez que as técnicas eram apropriadas com base em trocas, representações e ensinamentos adquiridos na relação com o outro e pela construção de signos próprios daquele período histórico, como se

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pode observar no entendimento do fenômeno coronelístico e das práticas clientelística, pelas quais se percebe que por convenção, construíam signos que representavam ou substituíam outro. Os signos correspondem à influência recebida por algo ou alguém. A nosso ver, os coronéis imprimiam com força maior essa influência. Por exemplo, a autoridade do coronel, seu poder de mando e controle, a relação de subserviência dos trabalhadores, é uma espécie de signo impresso no período coronelístico. Segundo Deleuze (2003, p. 21) ―nunca se sabe como uma pessoa aprende; mas, de qualquer forma que aprenda, é sempre por intermédio de signos‖, assim é possível observar o movimento dos grupos de trabalhadores na realização das tarefas, no contato com os outros, desempenhando vários ofícios, permitindo que mesmo na rotina intensa de trabalho houvesse momentos de aprendizagens, permitindo que práticas educativas fossem desenvolvidas quando não era possível uma intervenção formal. Nesse mesmo ponto de vista, cabe ressaltar que as várias atividades produtivas e de serviço permitiram aos trabalhadores demonstrar suas habilidades e trocar conhecimentos, mesmo em território considerado muitas vezes hostil. A hostilidade estava ligada a ações de punição e violência praticadas pelos patrões/coronéis e fazia parte do cotidiano desses trabalhadores como ação coercitiva e reguladora do controle do tempo e do espaço. A descrição abaixa é elucidativa ao que não se pode ignorar:

[...] centenas de criaturas derramaram e estão derramando sangue e lagrimas. Veni, vivi et lagrymas effadi. Fui, vi e derramei lágrimas. Se o teu coração tão sensível às dores do próximo me tivesse acompanhado, tu terias derramado uma lágrima. Bárbaros!51 (A LUZ, 1924, p. 2). Como te disse na minha última [carta], fugi daquele inferno horroroso, estava porém indeciso e não sabia que rumo ia [ilegível]52. (A LUZ, 1924, p. 2).

Sangue e lágrimas são expressões que simbolizam dor, terror, tortura se observadas dentro dessa interlocução... Vistas a partir dessa perspectiva, essas duas palavras apontam indícios de punições nas usinas de açúcar do Rio Abaixo. Como também a expressão fuga sinaliza resistência.

51 O jornal A Luz de 04 de outubro de 1924 publicou a 1ª carta de um cidadão de codinome Ignotus. Este relata em suas cartas o seu ponto de vista acerca das atrocidades cometidas nas usinas de açúcar de Mato Grosso, especificamente, as do Rio Abaixo onde havia maior concentração de usinas açucareiras. Este recorte trata-se da sua passagem pela Usina Conceição e as informações são referentes ao que presenciou lá. 52 O jornal a Luz de 05 de setembro de 1924 publicou a terceira carta de cidadão Ignotus. Nesta carta ele continua relatando sobre a sua saga pelas usinas de açúcar, não deixa claro de qual se trata, pois as suas cartas demonstram que ele passa por várias usinas, em algumas ele identifica a usina outras não. 199

A nossa observação se anuncia dentro do contexto da Primeira República em Mato Grosso, no qual imperava os princípios coronelistas. Somente analisando desse lugar podemos aprofundar nessa questão. É insuficiente saber que os patrões/coronéis se apropriaram das práticas de punições como forma de lidar com os trabalhadores da usina. É preciso saber o que faziam com elas ou, para usar mais uma vez a expressão de Certeau (2002) saber o que fabricavam. O proprietário representado por sua instituição (a usina), conforme visto anteriormente, era a instância de deliberação das práticas punitivas, pois eram vistos como representantes de uma instituição histórica que tinha suas próprias deliberações. O que não refletia da mesma forma com os trabalhadores, por estes não possuírem poder de voz, repetindo o testemunho do ex-trabalhador da usina – Bento Rafael: ―não tinha voz naquele silenço que defendesse nós‖ (ALEIXO, 1995, p. 278). Nesta perspectiva precisamos fazer algumas escolhas. Optamos por investigar as práticas punitivas que apareceram de forma mais frequente nas representações observadas nas obras memorialísticas e nos relatos de maus tratos, e também nas representações de resistências notadas nas notícias de fugas presentes nos jornais mato-grossenses. Generoso Ponce Filho relata sobre o que se passava na Usina Itaicí sobre as práticas de castigos e punições, e a sua representação apresenta-se da seguinte maneira:

O senhor do Pindaival, a celebérrima fazenda, que como o Itaicy, possui o tranco e toda a coleção de instrumentos de suplício desse Torquemada do sertão. Itaicy é então o centro irradiador daquelas bárbaras expedições punitivas. A célebre Usina do Cel. Antonio Paes não produz a época, apenas açúcar e aguardente. Saem dela ordens truculentas, mercenários e bandidos. ...vem-lhe da Usina, dos hábitos medievais da sua Usina, onde sempre foi senhor de baraço e cutelo (PONCE FILHO, 1952 apud SILVA, 1997, p. 15- 16).

Os elementos trazidos por Ponce Filho – tronco e instrumentos de suplício, expedições punitivas, hábitos medievais, senhor de baraço e cutelo – são indicativos que as práticas punitivas e castigos eram realizados na Usina Itaicí. Mesmo que Ponce Filho relatasse com sentimentos que envolvem o lugar de seu pai, adversário político e crítico ferrenho de Totó Paes, parece ilustrar práticas que não eram comuns somente na Usina Itaicí, mas em todas as usinas de açúcar do Rio Abaixo, como já demonstrado pela historiografia regional. Está certo que a fala de um adversário político de Totó Paes possa ser bastante suspeita, contudo, é fato

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que essas práticas foram comuns e a ênfase dada por Ponce Filho às barbáries ocorridas em Itaicí tem a ver com as inúmeras intrigas entre Generoso Ponce (pai) e o Cel Totó Paes. Mas outras pessoas também fizeram apontamentos que seguem nessa direção, o padre Vicenci afirma que ―as usinas têm grandes armamentos e munições, e por isso os governos, politiqueiros e comodistas, sentem-se impotentes para reprimir-lhes os excessos‖ (VICENCI, s/d, p. 138). No jornal A Luz de 04/10/1924, o mesmo citado anteriormente, Ignotus descreve como algumas punições eram aplicadas:

O homem para eles é um bruto e pensam que podem à beneplácito decidir sobre a vida e a morte do coitado. Entrei no calabouço onde estiveram dois presos, um deitado no chão com as pernas presas [ilegível], verdadeira pocilga onde os carrapatos e outras fedentinas os companheiros inseparáveis destes miseráveis. O segundo de pé com o pescoço preso entre duas madeiras, mais erguido como Christo na cruz, não para remir o gênero humano, mas tão somente simples victima de vingança para servir de joguete por causas fúteis nas mãos de tyrampetes sem alma (A LUZ, 1924, p. 3).

Ignotus continua seu relato dizendo que concorda com o autor do artigo ―Município de Santo Antonio do Rio Abaixo‖, o qual destaca que os filhos dos camaradas nascem devendo e desde meninos experimentam a influência do álcool. Mas Ignotus salienta – ―eu acrescentei, nascem escravos, morrem escravos sem experimentar uma hora as auras deliciosas da liberdade, nascem com uma alma racional e pode-se dizer que vivem e morrem irracionais‖ (A LUZ, 1924, p. 3). Ignotus parenta profundamente incomodado com a situação dos trabalhadores das usinas de açúcar. Ele demonstra-se indignado com as práticas de castigos e torturas, quando não com as questões de morte. As suas cartas são ricas em elementos que sinalizam uma vida sofrida e temorosa. Mas no Jornal A Luz de 22 de agosto de 1924, o Sr. Agrícola Paes de Barros aponta elementos de resistência. O fato de identificarmos sinais de reação contra essas práticas mostra o outro lado, isto é, que as pessoas não eram de todo modo passivas a esse tipo de situação e, mesmo que elas não tivessem liberdade para demonstrar no cotidiano as suas forças reacionárias, as que conseguiam se expressar de alguma forma traziam esperança, e significava muito porque representava a voz de um grupo. Do mesmo modo Certeau (1994) se refere à formalidade das práticas mostrando que elas ―colocam em jogo [...] uma maneira de pensar investida numa maneira de agir‖ (CERTEAU, 1994, p. 42). Sobre as maneiras de agir observa-se a partir do seguinte relato:

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Hoje, o espirito de revolta vem chegando sobre eles, já conhecem alguma cousa sobre o direito das gentes e por isso, em blocos, bandos, em sinal de protesto, como os pretos escravos, outrora para os ―Palmares‖ vão em demanda para à Palestina, a terra prometida, o nosso Araguaia ou a Chapada; preferem a mata à Capital, julgam-se mais seguros lá, aqui dizem eles, poderão ir a cadeia e ser ainda espancados, como o Tobias o foi. Andam só a noite para fugirem às emboscadas; são perseguidos por escoltas como se esses homens que fogem ao cativeiro fossem feras ou animais bravios (A LUZ, 1924, p. 1).

O padre Vicenci observou como era administrado o caso de fuga, ele afirma que ―Quando um camarada foge, o patrão o manda perseguir por dois ou três companheiros. Estes nada percebem pelo trabalho, mas si o fugitivo for preso, é debitado para com a usina em 20$000 mil réis diários (ou mais) por cada dia perdido de cada um seus perseguidores‖ (VICENCI, s/d, p. 137). Da mesma forma Corrêa Filho (1945) destaca que

caso o tentassem, em fuga desesperada, lá estaria a guarda façanha, pronta a seguir-lhes o rastro e capturá-los de novo e leva-los ao castigo a que fossem condenados, pela tentativa de se furtarem à corveia derreante, nos citos em que lhes era exigida pelo feitor, a tarefa costumeira‖ (CORR~EA FILHO, 1945, p. 33).

Os movimentos de resistência não aparecem com frequência, mas os indícios de fuga sinalizam que parte dos trabalhadores não aceitava as condições de trabalho e de vida na usina. As fugas demonstram resistência às deliberações dos proprietários e a não sujeição às regras impostas. Nesse contexto, percebe-se que os proprietários da Usina Itaicí agiam como instâncias mediadoras na formação e adequação dos trabalhadores ao modelo de sociedade coronelística e ao trabalho em nível industrial, para o qual se dirigiam representações sociais para então efetivá-las. Entende-se que a Usina Itaicí também era uma instituição histórica que exerceu uma função pedagógica. A forma para compreender esse ponto de vista em termos histórico e educacional, e evitando generalizações, foi nos determos na redução da escala de análise no universo da Usina Itaicí, demarcando como se dava a educação construída no dia a dia. É preciso considerar nesse processo de representações, apropriações e experiências o lugar social ocupado pelos proprietários e pelos trabalhadores. Os proprietários falam do lugar de uma rede oligárquica, uma elite agrária e política, a qual utilizava de um poder legitimado para formar e adequar os trabalhadores à sociedade coronelística. De outro lado, homens, 202

mulheres e crianças – trabalhadores livres e pobres - apropriavam-se de práticas que configuravam uma nova forma de trabalho, com horários definidos, tarefas específicas e cumprimento às regras da usina, uma instituição de controle. Todo o movimento que envolveu trocas de saberes, experiências, práticas, por meio de representações e apropriações, foi construído na relação entre os trabalhadores, proprietários e as famílias. Mesmo em um contexto em que a democracia legitimada ainda se encontrava mais como uma ideia do que uma realidade, onde o coronelismo predominava enquanto instância política e social, nos interessa observar como a educação se fazia presente, tanto a educação de natureza escolar quanto de natureza não escolar. O resultado foi explorar um pouco mais o campo de análise na área da História da Educação, trazendo para o debate elementos do cotidiano, instituições e dos atores sociais.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta tese, Usina Itaicí: História, Trabalho e Educação, procurou-se refletir sobre a história da Usina Itaicí com ênfase nos diferentes modelos de educação vivenciados por trabalhadores (as) da indústria do açúcar no estado de Mato Grosso no período da Primeira República, abarcando os processos educativos de natureza escolar e não escolar no cotidiano de homens, mulheres e crianças inseridos no contexto produzido pelo fenômeno do coronelismo em Mato Grosso. O processo do qual tratamos se expressa nos espaços da Usina Itaicí, compreendendo a educação no espaço da escola e nos ambientes de convivência e trabalho, instâncias estas que permitiam a produção de cultura e de identidades próprias do modelo de sociedades coronelísticas. Este estudo aborda os aspectos da história da educação no período republicano em Mato Grosso, tendo como foco a escolarização das crianças e a educação para além da escola numa escala reduzida ao da Usina Itaicí, porém, não menos importante que os estudos realizados em escala maior. Fica o registro do grande desafio que foi enveredar por um tema ainda pouco explorado e de certa forma ousado na tentativa de pensar numa narrativa da educação que ultrapassasse os limites da escola. Todavia, foi possível encontrar análises importantes acerca da usina na historiografia de Mato Grosso que nos serviu de ponta pé inicial para adentrar no universo da usina sob a ótica da educação. Deste modo, a opção foi a de investigar como a educação se dava no espaço da Usina Itaicí por meio das categorias espaço, trabalho e escolarização, bem como a de apreender as estratégias lançadas pelos proprietários na formação e adequação dos trabalhadores no ritmo de vida da usina. Nesse núcleo populacional, que em situação de confinamento, desenvolveram-se experiências educacionais por diferentes agentes: proprietários, trabalhadores braçais, lavradores, maquinistas, capatazes, professores, músicos, familiares, etc. Desse conjunto, foi possível examinar por meio de representações e apropriações os processos educativos escolarizados e os construídos culturalmente através do cotidiano, mediante as experiências dos atores históricos, do seu modo de ver e fazer, de suas práticas, representadas pelos aprendizados escolares e pelas trocas no âmbito cultural de costumes, hábitos, condutas e de técnicas.

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Entrar no cotidiano, no saber e nas experiências desses grupos e nesse espaço específico foi possível pela abordagem da história cultural, a qual nos atentou para a observação dos detalhes, de pormenores, dos aspectos do dia a dia, como as práticas políticas, o modo de vida na usina, a rotina de trabalho e a escolarização das crianças. Assim, foi possível adentrar na trama da vida social e cultural desses atores históricos. Desta forma, procurou-se descortinar as relações cotidianas na intenção de elucidar os diferentes atores e seus saberes e experiências educativas. Nesse sentido, retoma-se a questão central a que esta pesquisa procurou responder: quais as estratégias utilizadas pelos proprietários da usina para formar e adequar os trabalhadores ao modo de vida da sociedade coronelística? De modo geral, pudemos confirmar que, a nosso ver, as estratégias utilizadas para formação e adequação dos trabalhadores (as) e as famílias ao modo de vida na sociedade coronelística envolvia: 1) criar um espaço de confinamento; 2) criar as próprias regras; 3) arregimentar os trabalhadores (as) por meio de práticas clientelísticas; 4) ofertar escolarização para as crianças visando um direcionamento segundo os ensejos dos proprietários da usina; 5) forjar o sentimento de liberdade num espaço de controle. A educabilidade das crianças revisitada nesta tese operou-se em torna da educação escolar, especificamente no contexto da Escola de Itaicí, uma instituição que conduziu o processo de alfabetização além de implantar aulas de música no currículo escolar. O acesso à escolarização possibilitava acesso à cultura letrada, no sentido das crianças apreenderem os processos de leitura, escrita, as operações matemáticas, o ensino de música, ferramentas necessárias e primordiais nos moldes republicanos e incorporados pelos proprietários da usina, que não intencionavam somente isso, à nosso ver, a escola nasceu com objetivos determinados por um projeto civilizador. A educabilidade de natureza não escolar pôde ser observada com base no que Aleixo (1995) constatou no contexto da primeira república em Mato Grosso, principalmente em se tratando do cenário das usinas de açúcar e ambiente de trabalho - ―a educação pela força, obrigatória, sem que o indivíduo interferisse no seu destino, de moralização pelo trabalho, através da proposta do enclausuramento nos corpos policiais‖ (ALEIXO, 1995, p. 222). E mais:

Ao ser conduzido à educação pela força, o homem foi levado a obedecer às normas, regulamentos, e se submeteu ao poder da hierarquia superior. Acabou por se tornar um elemento ―útil‖ à sociedade, incorporando as propostas da força moralizadora pelo trabalho. [....] Então, a educação se 205

configurou como um elemento de controle, agindo como instrumento disciplinador e, ao mesmo tempo, transformando-o em educando útil ao capital (ALEIXO, 1995, p. 223).

O controle do tempo e do espaço fazia parte das medidas de disciplinamento. Esse controle demarcava o limite entre a condição de empregador e empregado e as hierarquias no geral, pois nenhum espaço é neutro, nem naquele sistema e nem atualmente. Cada lugar tem suas normas de ocupação. Mais que um lugar, indicava-se também um tempo, dividido entre as horas de trabalho e horas de lazer, todos controlados, uma vez que este controle reprimia o ócio, a vadiagem, favorecendo melhor eficiência do uso do tempo para o trabalho. Além do controle do tempo e do espaço, as formas pelas quais se davam a apreensão dos afazeres também é outro elemento importante. Nesse sentido, constatou-se que os trabalhadores, na maioria analfabetos, executavam as suas tarefas por meio das trocas de experiências que estabeleciam entre eles, mas sob o comando dos proprietários e de seus funcionários de confiança. Com isso, a educação se materializou por meio da relação desses atores no espaço da usina, das relações de convivência e da relação de trabalho, pelos objetos produzidos e pelas técnicas aplicadas, sem deixar de fora os usos e costumes, experiências e práticas de sociabilidades e principalmente as de controle. Os castigos, o tronco, os espaços de tortura, bem como, as práticas clientelísticas e a escola, eram formas de submeter esses trabalhadores (as) ao poder dos proprietários. Eram formas de mostrar empoderamento e superioridade. No universo da usina foram desenvolvidas atividades com o caráter de instruir e educar a população para a vida na usina e para o mundo do trabalho. Tais ensinamentos aconteciam na escola, nos canaviais, na fábrica, nos ambientes sociais, em momentos de laser e recreação e nas relações sociais. No geral, a pesquisa sobre a Usina Itaicí apontou como esse núcleo industrial se estabeleceu em meio ao contexto histórico do país e do estado de Mato Grosso. É interessante perceber esse movimento histórico. Nota-se o predomínio da produção do açúcar que permitiu um expressivo crescimento econômico do estado e de vários usineiros que inclusive se mantiveram no poder por décadas. E também, os proprietários da usina não perderam a oportunidade de fazer seu patrimônio crescer, administrando um complexo industrial imponente e considerado moderno para os padrões da época, mantendo em seu domínio um contingente de trabalhadores que lhes eram fiéis.

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Este entendimento é feito a respeito do domínio que os proprietários da usina tinham sobre todos os espaços (sociais, culturais, políticos, educacionais e no trabalho) presentes no núcleo industrial, desde os processos de produção até os processos de socialização dos seus trabalhadores (as). Todavia, a concepção de educação no ambiente da Usina Itaicí estava relacionada ao disciplinamento, difusão de uma ideologia hierarquizada, formação e continuidade para o trabalho, forjando um pensamento voltado na obediência à ordem hierárquica da usina, que foram concebidos no sentido de dar continuidade a um projeto de desenvolvimento e crescimento econômico e político da referida empresa. Este estudo, por sua vez, nos conduziu por uma trilha que possibilitou novas leituras de histórias até então adormecidas, preenchendo lacunas na história da educação, e certamente levantando elementos provocativos para novas investigações, que tendo como inspiração as contribuições de Maria da Glória Gohn (2006), nos leva a indagar principalmente no campo da educação não escolar: Onde se educa? Quem são os educadores? Qual a finalidade? Como se educa? Em qual contexto? O que fabricam? Enfim, Penso que a conclusão de uma tese segue na direção apontada por Loriga (2012) que diz quando o historiador volta do passado não é mais o mesmo, ele mudou suas possibilidades de pensar. Desta forma, finalizamos esta pesquisa dizendo que apesar das lacunas ainda existentes, este estudo chega ao fim com o entendimento de que fomos conduzidos pela certeza contida na citação de Michel de Certeau (1994) presente na introdução desta tese, que é o olhar que faz a história. Agora a narrativa segue a espera de novas leituras, olhares e interpretações.

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FONTES

Ementário 215

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Recenseamento

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Regulamentos

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Relatórios

MATO GROSSO. Direção Geral da Instrução Pública. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Manoel Paes de Oliveira, Secretário de Estado dos Negócios do Interior Justiça e Fazenda, pelo Major José Estevão Corrêa, Diretor Geral da Instrução Pública do Estado de Mato Grosso. Cuiabá, 1876. APMT.

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______. ______. Presidente de Estado. Relatório de 1920. Apresenta relatório Assembléia Legislativa. Cuiabá, 07 de setembro de 1920. APMT.

Decreto

MATO GROSSO. Estado. Governo. Decreto nº 797, de 14 de março de 1928, fl. 151-152. Cria uma Escola Ambulante e Mista na povoação de Itaicí no município de Santo Antonio do Rio Abaixo.

Correspondências

216

SANTO ANTONIO DO RIO ABAIXO. Ofício. De Virgíneo Nunes Ferraz, Manoel da Silva Fontes, Miguel Angelo de Oliveira Pinto e Luiz da Costa Ribeiro Fontes para os coronéis Joaquim C. Peixoto de Azevedo, Antonio Manoel Moreira e Dr. João da Costa Marques referente a conflitos no município. Santo Antonio do Rio Abaixo. 1924. APMT – Lata 1916 A.

SANTO ANTONIO DO RIO ABAIXO. Ofício enviado da Escola Ambulante Mista de Itaicí. Solicitação de material escolar. 1931. APMT – Caixa 1931 12 C.

SANTO ANTONIO DO RIO ABAIXO. Comunidade de Melgaço. Ata. Solicitação de criação da Escola de Itaicí. 1910. APMT – Lata 1910 B.

SANTO ANTONIO DO RIO ABAIXO. Ofício enviado da Inspetoria escolar de Melgaço. Atestado de trabalho referente ao mês de setembro da professora Maria Pereira. 1930. APMT – Lata 1916/provas escolares.

Jornais

O COMMERCIO. Órgão Particular (Amarílio Alves de Almeida) Cuiabá, 1910-1911. Acervo BN/APMT/NEDHIR.

A CRUZ. Jornal da Liga Católica, Cuiabá, 1932. Acervo da BN/APMT/NEDHIR.

A LUZ. Órgão Particular. Cuiabá, 1924-1942. Acervo BN/APMT/NEDHIR .

A REACÇÃO. Órgão da Liga Mato-grossense de Livre Pensadores. Cuiabá, 1926-1928. Acervo BN/NDIHR/ACBM.

O MATTO-GROSSO. Cuiabá, 1917-1930-1932. Acervo NDIHR/BN.

O ESTADO DE MATO GROSSO. Órgão Independente. Cuiabá, 1958. Acervo BN.

REPUBLICANO. Órgão do Partido Republicano Conservador. Cuiabá, 1897 e 1899. Acervo NDIHR/ ACBM/ BN.

O CORREIO DO ESTADO. Órgão do partido republicano de Mato Grosso. Cuiabá, 1925. Acervo NDIHR/BN/APMT.

O PHAROL. Particular e literário. Cuiabá, 1909. Acervo NDIHR/BN/APMT.

A PLEBE. Cuiabá, 1927. Acervo NDIHR/BN/APMT.

Testemunhos

SANTO ANTONIO DE LEVERGER. Testemunho. 1995. Relato escrito. Sr. Luiz Pereira Duarte. Acervo de família.

Catalogo de depoimentos orais: história de vida. (orgs.) Eliane Oliveira Morgado; Nileide Souza Dourado. Cuiabá – MT. Série: História de vida (2018, no prelo).

217

ANEXOS

Figura 34- Foto mais recente da Usina Itaicí

Fonte: www.rdnonline.com.br

218

Figura 35 - A farmácia

Fonte: http://www.zuccaratto.jor.br/blogs/turismo-e-cia/fit-pantanal-2016-dragagem-de-trecho-do-rio-cuiaba- pode-gerar-projeto-de-turismo

219

Figura 36 - A Capela da Usina Itaicí

Fonte: http://www.zuccaratto.jor.br/blogs/turismo-e-cia/fit-pantanal-2016-dragagem-de-trecho-do-rio-cuiaba- pode-gerar-projeto-de-turismo

220

Figura 37 - Relato do Sr. Luiz Pereira Duarte – Ex-aluno da Escola de Itaicí

221

222

Fonte:

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APÊNDICE TRANSCRIÇÃO

ARQUIVO PÚBLICO DE MATO GROSSO FUNDO: SECRETARIA DE INSTRUÇÃO PÚBLICA SÉRIE: ABAIXO ASSINADO LOCAL: ISINA ITAICÍ DATA: 1910 LOCALIZAÇÃO DO DOCUMENTO: LATA DE 1910 B, PASTA DA INSTRUÇÃO PÚBLICA

Exc. Sr. Coronel Pedro Celestino Corrêa da Costa

Os abaixo assinados, representantes de várias classes sociais, todos residentes no distrito de Melgaço, município de Santo Antonio do Rio Abaixo, vêm com todo o acatamento levar ao conhecimento de V. Ex. o fato que passam a expor, e para cuja solução pedem a preciosa atenção de V. Ex.. Sendo já crescido o número de meninos que em toda a zona da Vila de Melgaço e adjacências deixam de frequentar escola, uns por extrema pobreza dos respectivos pais e educadores, outros pela distância em que residem do distrito, e já existindo na Usina do Itaicy uma escola com prédio apropriado para nele funcionar uma escola e material destinado ao mesmo fim, os abaixo-assinados pedem a V. Ex. que ouvida a autoridade escolar, se digne a ceder a criação de uma escola na referida usina do Itaicy, cuja instalação os signatários desta se comprometem a efetuar a expensas próprias. Compenetrados do interesse que V. Ex. dedica às coisas do ensino, os signatários confiam que o pedido de melhoramento da V. Ex. a quem apresentam os mais elevados protestos de estima e consideração.

Dr. Aberto Novis Neves Francisco Pinto de Oliveira Francisco de Assis Albuquerque Apparicio Silvino Peixoto Jorge Nunes da Conceição Jeronimo Nunes 224

Joaquim Pinto de Oliveira Virginio Nunes Ferraz Junior Olimpio de Assis Pinto Miguel Angelo de Oliveira Pinto Joaquim Pinto Guedes Antonio Fernandes de Mello Jorge Reiner Antonio Plinio de Barros João Lima Pedro José Machado Vicente Ferreira de Paula José Maria Nunes de Campos Antonio João da silva Sebastião Barros Frederico de Assis João Batista de Assardos

Tamandaré, 5 de junho de 1910.

225