A identidade nacional na crônica esportiva de Nelson Rodrigues

FRANCISCA ISLANDIA CARDOSO DA SILVA *

Resumo A construção dialógica da identidade nacional brasileira ocorreu através da associação entre elementos da cultura popular ao peculiar jeito brasileiro de ser. Este artigo objetiva verificar de que forma o jornalista Nelson Rodrigues contribuiu para o reforço do mito de uma identidade nacional solidificada no futebol. Para tal intento, fez-se uma análise de crônicas publicadas no livro “À sombra das chuteiras imortais”, cujas narrativas refletem o desejo de afirmação da identidade nacional e da autenticidade cultural e a tensão entre os ideais civilizatórios. A crônica de Nelson Rodrigues identifica o “complexo de vira- latas” como empecilho para que o brasileiro se torne um homem genial. Palavras-chave: Brasil; Futebol; Literatura.

National identity in chronic sports of Nelson Rodrigues Abstract The dialogic construction of Brazilian national identity occurred through the combination between elements of popular culture to peculiar Brazilian way of being. This article aims to verify how the journalist Nelson Rodrigues contributed to the reinforcement of the myth of national identity solidified in football. For this purpose, an analysis was made of chronicles published in the book "À sombra das chuteiras imortais" whose narratives reflect the belief of affirmation of national identity and of cultural authenticity, and the tension between the ideals of civilization. The chronic of Nelson Rodrigues identifies the "complex of mutts" as a hindrance for the Brazilian to become a genial man. Key words: ; Football; Literature.

* FRANCISCA ISLANDIA CARDOSO DA SILVA é Mestra em Comunicação pela Universidade Federal do Piauí (UFPI).

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Introdução O futebol deveria Mudanças no Brasil trazer os ideais na década de 30 civilizatórios da exigiram uma ruptura época: a tonificação de músculos junto ao com as teorias espirit. de corps , a existentes até então pedagogia da sobre a identidade racionalização e o nacional, pois para ideal do autocontrole constituir-se como (ELIAS; DUNNING, nação, uma 1985). Tal foi o comunidade precisa interesse em alcançar uma transformar esse consciência de Nelson Rodrigues (1912 -1980) identidade e de esporte em elemento distinção quanto ao Outro – a de identificação nacional que o processo alteridade. Intelectuais como Gilberto terminou por converter-se em política Freyre, Caio Prado Júnior e Sérgio de Estado no governo Vargas e pode ser Buarque de Holanda criticaram o detectada até hoje (MICELI, 1979, comportamento do brasileiro que VIANNA, 2012). buscava imitar o europeu e elaboraram teses a respeito da identidade brasileira As equipes latino-americanas pautada na mestiçagem, ginga e disputavam torneios internacionais criatividade; elementos identitários que, vislumbrando uma possibilidade de, em mais tarde, viriam a ser disseminados alguma esfera, serem superiores visto através do futebol (ORTIZ, 1994). que em campos como economia ou educação eram escassas as chances de Ao fim do século XIX, o futebol chega sucesso quando comparadas às nações ao Brasil e transforma-se em prática europeias (ANTUNES, 2004). O campo habitual entre a elite, servindo como do futebol seria ideal para que o elemento de diferenciação. Entretanto, brasileiro extrapolasse suas em virtude de sua simplicidade material potencialidades para outros planos e e de regras e de um processo de passasse a se ver como pertencente a introdução e adaptação, essa uma nação. Com a popularização desse exclusividade não perdurou e o futebol esporte não restam dúvidas, então, sobre foi apropriado pelos outros setores a aptidão do brasileiro em ligar um sociais, tornando-se um importante elemento estrangeiro à sua cultura, a referencial de repercussão social. Esse ponto deste ser visto como um dos esporte passou a ser visto como espaço grandes valores de sua nacionalidade. de sintetização da cultura nacional, isto é, local de encontro e intercomunicação O Brasil como país do futebol não é um entre tradições culturais que distinguiam dado natural, mas uma construção o Brasil dos outros países. A discursiva fruto, inclusive, de miscigenação mais cedo percebida intelectuais de prestígio que atrelaram como um estorvo ao desenvolvimento durante décadas o futebol a ideais de nacional e causa de vergonha, verteu-se identidade nacional. Dentre tais em lugar de asseveração da intelectuais, destaca-se Nelson singularidade brasileira (FREYRE, Rodrigues, dramaturgo e representante 2004). da literatura esportiva brasileira.

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Nascido em em 1912, Nelson identidade nacional. Tendo isso em Falcão Rodrigues, filho do jornalista vista, o objetivo deste artigo é Mário Rodrigues e de Maria Esther estabelecer um diálogo com as Falcão, teve de mudar-se, em 1916, para intenções de Nelson Rodrigues de ver o o – em decorrência do futebol como espelho dos dilemas da posicionamento político do pai – o que sociedade e sua possível contribuição marcou sua obra, afinal, segundo Castro do futebol para a construção da nação. (1992, p. 21): Para tal intento, fez-se uma análise de crônicas publicadas no livro “À sombra [...] as vizinhas eram mesmo gordas das chuteiras imortais”, cujas narrativas e patuscas. Tinham bustos opulentíssimos, braços repetitivas refletem os desejos de espetaculares e colares de brotoejas. afirmação da identidade nacional, a Passavam o dia nas janelas, tensão entre os ideais civilizatórios e de fiscalizando os moradores da rua e afirmação da autenticidade cultural. suspirando exclamações como ‘Deus é grande!’ e ‘Nada como um A estética das narrativas literárias de dia depois do outro!’. Seus maridos Nelson Rodrigues eram magros, asmáticos, espectrais Stuart Hall (2006) aponta a literatura e, à noitinha, postavam-se nas soleiras com seus pijamas de como um dos elementos significantes alamares e chinelos, esperando o nas discussões sobre identidade garoto cujo pregão já se ouvia nacional: desde a Maxwell: ‘Eu sou um pobre [...] há a narrativa de nação, tal jornaleiro/ Que não tenho como é contada e recontada nas paradeiro/ Vivo sempre a sofrer’. E histórias e nas literaturas nacionais, puxava um fôlego extra para gritar: na mídia e na cultura popular. Essas Olha ‘A Noite’! Era também uma fornecem uma série de estórias, vizinhança de solteironas imagens, panoramas, cenários, ressentidas, de adúlteras eventos históricos, símbolos e voluptuosas e, não se sabe por que, rituais nacionais que simbolizam ou de muitas viúvas – machadianas, só representam as experiências que com gazes enroladas nas partilhadas, as perdas, os triunfos e canelas, por causa das varizes. os desastres que dão sentido à Entusiasta do futebol, quando nação. Como membros de tal adolescente Nelson se apresentava ‘comunidade imaginada’, nos constantemente deprimido e abrigava-se vemos, no olho de nossa mente, lendo ou escrevendo. como compartilhando dessa narrativa. Ela dá significado e Enchia resmas de papel com o que, importância à nossa monótona olhado de esguelha, pareciam ser existência, conectando nossas vidas crônicas. Não se sabe ao certo o que cotidianas com um destino nacional eram, porque Nelson não mostrava que preexiste entre nós e continua uma linha a ninguém. Nem a existindo após nossa morte (HALL, Roberto, seu primeiro irmão em 2006, p. 52). admiração. (CASTRO, 1992, p. 41) Mesmo que o escritor não estabeleça A conexão entre literatura e esporte um compromisso com as vias de fato, o permite discutir temas essenciais para a contexto sócio-histórico é interpretado e construção da sociedade moderna: se manifesta em sua obra como um política, gênero, comportamento, elemento da estrutura do texto. Esta consumo, entre outros, inclusive a ideia é corroborada por Candido (2006),

118 o qual afirma que a obra literária constantemente de hipérboles, adjetivos dialoga diretamente com as influências e um aspecto místico para não deixar sofridas pelo escritor. dúvidas sobre as suas verdades. Nelson não diz que a derrota do Brasil para o Assim, a obra literária manifesta a Uruguai na Copa de 1950 foi medonha, ideologia de determinado grupo a ele diz que ela foi a Hiroshima respeito de um fato/fenômeno brasileira. Em suma, Nelson imprimia específico. Nas crônicas esportivas de em sua narrativa Nelson Rodrigues, especificamente, manifesta-se a concepção do autor em [...] a marca do narrador, como a que o futebol é configurado como mão do oleiro na argila do vaso. Os símbolo da identidade nacional narradores gostam de começar sua brasileira. história com uma descrição das circunstâncias em que foram As três características principais das informados dos fatos que vão crônicas de Nelson Rodrigues são a contar a seguir, a menos que obsessão, o exagero e a aversão à prefiram atribuir essa história a uma unanimidade, o que enquadra o cronista experiência autobiográfica [...]. Assim, seus vestígios estão na proposta de Candido (2006) sobre a presentes de muitas maneiras nas autonomia do autor, que envolve coisas narradas, seja na qualidade questões artísticas e pessoais de quem as viveu, seja na qualidade determinantes de posição social e de quem as relata (BENJAMIN, peculiaridades na escrita. 1987, p. 205). Nas décadas de 1930 e 1940 percebia-se Nelson utilizava metáforas como uma uma disposição das obras brasileiras à forma de transferência do sentido da imitação dos modelos europeus, mas palavra, não na sua forma denotativa, Nelson desejava observar o cotidiano mas na relação que se torna possível urbano do Brasil. Nota-se uma estabelecer através do efeito de tendência à teatralização em suas multiplicidade de sentidos. Outra crônicas esportivas onde a característica que se enquadra ao dramaticidade, o drama e a estética narrador benjaminiano, é a dimensão fazem das partidas mais simples, funcional da crônica rodrigueana, que epopeias. Nelson se julgava um transpõe o objetivo de noticiar eventos e defensor da cultura popular e criticava procura oferecer conselhos aos seus intelectuais, estudantes, a esquerda e leitores através do seu discurso todos os que determinavam o futebol (BENJAMIN, 1987). como o ópio do povo (ANTUNES, 2004). Segundo ele: “o intelectual Para isto, Nelson utiliza-se de uma brasileiro que ignora o futebol é um criação imagética, através da exposição alienado de babar na gravata” de posicionamentos metafóricos que (RODRIGUES, 1993, p. 152). acabam potencializando o sentido, quebrando a linearidade do texto, Segundo Benjamin (1987), o cronista criando novas apreensões visuais e encontra-se livre do encargo da sintáticas, através de imagens explicação verificável, o que justifica a totalmente inusitadas. O cronista fazia despreocupação de Nelson em uma espécie de conclamação aos seus transmitir o fato em si, que só teria leitores, e a partir daí mantinha uma importância se estivesse de acordo com discussão convincente, mostrando suas posições. O autor utilizava-se intimidade e fé no nestes . No caso

119 específico do espetáculo posicionamento otimista de futebolístico, estas imagens Nelson quanto ao futebol não tem um planejamento atraia tanto os que prévio, pois dependem do pactuavam quanto os que que acontece no desenrolar não pactuavam com ele. do jogo para a sua Assim, ele mantinha uma construção emotiva, quantidade expressiva de estabelecendo-se como leitores, o que garantia seu epopeias que levavam o emprego. futebol a uma dimensão de Para Nelson, o futebol teria eternidade. o potencial de reinventar A relação entre esporte e tradições, de incitar a identidade nacional nas renúncia do “complexo de crônicas rodrigueanas vira-latas” – produto da No livro de crônicas “À coação histórica – e edificar sombra das chuteiras o sentido de patriotismo tão imortais”, Nelson Rodrigues explica imprescindível ao Brasil. Por isso que o brasileiro padece de um grande imprensa, para alcançar a vitória, a mal, a carência de convicção no próprio torcida e todos os envolvidos com o valor e recusa de sua identidade, pondo- esporte deveriam aprimorar suas se constantemente em postura de qualidades, ter consciência dos seus inferioridade quanto ao estrangeiro, defeitos e apoiar/reforçar o papel de especialmente os europeus. Ele proferiu representação da seleção nacional e a comentários ácidos aos colegas de grandeza do seu futebol. imprensa que favoreciam a divulgação Os fracassos da seleção nacional não de imagens humilhantes do brasileiro. seriam decorrentes apenas da falta de organização técnica e tática da equipe, O brasileiro gosta muito de ignorar mas principalmente, da recusa da as próprias virtudes e exaltar as narrativa do futebol brasileiro e da próprias deficiências, numa inversão do chamado ufanismo. busca e valorização de narrativas Sim, amigos: – somos uns Narcisos importadas, do futebol europeu. Tais às avessas, que cospem na própria atitudes ratificam a posição de imagem (RODRIGUES, 1993, p. inferioridade – denominado pelo 35). cronista como “complexo de vira-latas” – que corroía a possibilidade de O discurso rodrigueano é repleto de notabilidade da seleção nacional. A valores revelados através da paixão, do defesa aos jogadores fez com que as individualismo, da ginga e outras crônicas de Nelson adquirissem um tom qualidades que o cronista considera profético. representativas do brasileiro. Com o intuito de acentuar essa brasilidade, a Por que perdemos, na Suíça, para a obra de Nelson destina espaço Hungria? Examinem a fotografia de um e outro time entrando em privilegiado ao futebol ao considerar a campo. Enquanto os húngaros destreza e a criatividade brasileira como erguem o rosto, olham duro, um dos recursos que apontam um empinam o peito, nós baixamos a caminho para a construção de uma cabeça e quase babamos de identidade nacional diferenciadora de humildade. Esse flagrante, por si só, outras nações. Além disso, o polêmico antecipa e elucida a derrota. Com

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Pelé no time, e outros como ele, e individualiza. Segundo Nelson, um ninguém irá para a Suécia com a dos pontos de diferenciação do Brasil alma dos vira-latas. Os outros é que em comparação ao estrangeiro é a tremerão diante de nós. mestiçagem, característica da qual o (RODRIGUES, 1993, p. 51) brasileiro deve se orgulhar. A O “complexo de vira-latas” seria compreensão da mistura como o jeito de somente abandonado pelo brasileiro nos ser brasileiro conquista as massas momentos de sucesso. No entanto, também por meio do futebol. Nelson Rodrigues relata em “À sombra das chuteiras imortais” situações de A pura, a santa verdade é a vitória em que a reação dos torcedores seguinte: – qualquer jogador era contrária à considerada normal. brasileiro, quando se desamarra de suas inibições e se põe em estado Segundo o cronista, a vitória brasileira de graça, é algo único em matéria sobre a seleção paraguaia em jogo de fantasia, de improvisação, de preparatório para a Copa do Mundo de invenção. Em suma: – temos dons 1958 em excesso. E só uma coisa nos Em qualquer outro país, uma vitória atrapalha e, por vezes, invalida as assim límpida e líquida do escrete nossas qualidades. Quero aludir ao nacional teria provocado uma justa que eu poderia chamar de euforia. Aqui, não. Aqui, a primeira ‘complexo de vira-latas’. Estou a providência do torcedor foi imaginar o espanto do leitor: – ‘O humilhar, desmoralizar o triunfo, que vem a ser isso?’ Eu explico. retirar-lhe todo o dramatismo e toda a importância. Atribuía-se a vitória Por ‘complexo de vira-latas’ não a um mérito nosso, mas a um entendo eu a inferioridade em que o fracasso paraguaio. Os guaranis brasileiro se coloca, passavam a ser pernas-de-pau natos voluntariamente, em face do resto e hereditários. Dir-se-ia que, por do mundo. Isso em todos os setores uma prodigiosa inversão de valores, e, sobretudo, no futebol. Em sofremos com a vitória e nos Wembley, por que perdemos? exaltamos com a derrota. Porque, diante do quadro inglês, louro e sardento, a equipe brasileira [...] ganiu de humildade. Jamais foi tão evidente e, eu diria mesmo, Há uma relação nítida e taxativa espetacular o nosso vira-latismo. entre a torcida e a seleção. Um Na já citada vergonha de 50, péssimo torcedor corresponde a um éramos superiores aos adversários. péssimo jogador. De resto, convém Além disso, levávamos a vantagem notar o seguinte: – o escrete do empate. Pois bem: — e brasileiro implica todos nós e cada perdemos da maneira mais abjeta. um de nós. Afinal, ele traduz uma Por um motivo muito simples: — projeção de nossos defeitos e de porque Obdulio nos tratou a nossas qualidades. Em 50, houve pontapés, como se vira-latas mais que o revês de onze sujeitos, fôssemos. houve o fracasso do homem brasileiro (RODRIGUES, 1993, p. Eu vos digo: – o problema do 58). escrete não é mais de futebol, nem Nesse trecho entende-se que a partida de técnica, nem de tática. de futebol, mais do que uma competição Absolutamente. É um problema de esportiva, denuncia o confronto de fé em si mesmo (RODRIGUES, culturas e identidades, marca diferenças 1993, p. 62).

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A percepção de Nelson Rodrigues sobre a bola, e dribla um adversário, é os jogadores de futebol aproximava-os como quem enxota, quem escorraça de personagens teatrais. O jogador não um plebeu ignaro e piolhento. era compreendido de forma absoluta (RODRIGUES, 1993, p. 49) como inocente ou culpado, tinha que ter É perceptível no excerto acima o algo de honesto e algo de canalha, é isso exagero em torno da relação entre Pelé e que lhe concedia humanidade. Aliás, a sociedade brasileira, a qual seria teria para o cronista, esse perfil também era o capacidade para obter excelente da torcida, dos árbitros e de todos os desempenho nas mais variadas componentes do esporte. Ou seja, o atividades (econômica, política, cronista não só traçava as características esportiva, entre outras) à medida em indispensáveis ao atleta, como também que reconhecesse seu potencial. confirmava a necessidade em se impor a superioridade do país. Nelson Rodrigues enxergava em Pelé a característica necessária à sociedade Escrita alguns meses antes da Copa de brasileira como um todo, a convicção de 58, a crônica “A realeza de Pelé” mostra sua supremacia. Pelé era capaz de o referido jogador como construir jogadas geniais porque intrinsecamente envolvido no projeto de confiava no seu potencial, era perspicaz construção da identidade nacional. e não se importava com a opinião Nelson descobriu no garoto Pelé as alheia. qualidades que fariam dele o grande "rei" do futebol brasileiro. Não apenas o Quero crer que a sua maior virtude virtuosismo técnico e a criatividade é, justamente, a imodéstia absoluta. Põe-se por cima de tudo e de todos. lúdica que caracterizam o estilo E acaba intimidando a própria bola, futebolístico brasileiro, mas, que vem aos seus pés com uma principalmente, a bravura, a virilidade, a lambida docilidade de cadelinha. autoconfiança e a autoestima. Hoje, até uma cambaxirra sabe que Qualidades que possibilitavam a Pelé é imprescindível na formação superação do “complexo de vira-latas” e de qualquer escrete. Na Suécia, ele que, por isso, haveriam de levar o não tremerá de ninguém. Há de escrete à vitória. olhar os húngaros, os ingleses, os russos de alto a baixo. Não se Pois bem: - verdadeiro garoto, o inferiorizará diante de ninguém. E é meu personagem anda em campo dessa atitude viril e mesmo com uma dessas autoridades insolente que precisamos. irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um (RODRIGUES, 1993, p. 50) rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope. Racialmente Na crônica “Morrendo ao pé do rádio”, perfeito, do seu peito parecem Nelson Rodrigues (1993) relata que no pender mantos invisíveis. Em suma: jogo contra o País de Gales (1 a 0 para o - ponham-no em qualquer rancho e Brasil), o “garoto de cor”, Pelé, a sua majestade dinástica há de confirmou suas previsões ao decidir a ofuscar toda a corte ao derredor. partida com um gol que despertou nos brasileiros uma euforia brutal, num O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. lance descrito como "um desses E Pelé leva sobre os demais momentos em que cada um de nós deixa jogadores uma vantagem de ter vergonha e passa a ter orgulho de considerável: - a de se sentir rei, da sua condição nacional" (p. 68). Por sua cabeça aos pés. Quando ele apanha bravura, "dignidade racial"

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(RODRIGUES, 1993, p. 70), com status de herói por dar visibilidade autoconfiança, certeza e otimismo, Pelé ao Brasil através do futebol-arte. tornou-se um símbolo da superação dos complexos que impossibilitavam ao O cronista mostra que a autoconfiança é brasileiro o exercício pleno de suas um fator decisivo para as partidas. Se potencialidades e encorajá-lo à luta pela Garrincha – mesmo com pernas tortas e vitória. As qualidades de Pelé servem uma difícil história de vida – não tivesse ao cronista como prova das virtudes do confiado que podia driblar todo o time homem brasileiro, como símbolo da russo, o Brasil talvez tivesse sofrido identidade brasileira. durante o jogo. Deste modo, Nelson edifica um herói fortemente ligado às suas origens e que não teme os russos. Em “Descoberta de Garrincha”, Nelson No trecho que segue, percebe-se bem relata partida da Copa do Mundo de esse aspecto: 1958 entre Brasil e Rússia, a qual era apontada como uma das favoritas ao Só um Garrincha poderia fazer isso. título mundial. O intento do cronista é Porque Garrincha não acredita em exibir a graça de ser brasileiro e tornar o ninguém e só acredita em si futebol mais que uma disputa, mas uma mesmo. Se tivesse jogado contra a Inglaterra, ele não teria dado a forma de arte. Nesse jogo, Garrincha, o menor pelota para a rainha Vitória, protagonista da narrativa, estava em o Lord Nelson e a tradição naval do estado de graça. Bastava ao Brasil o adversário. Absolutamente. Para empate, mas o placar final foi 2 x 0 para ele, Pau Grande, que é a terra onde a seleção brasileira. Nelson Rodrigues nasceu, vale mais do que toda a exalta a simplicidade de Garrincha que, Comunidade Britânica. Com esse antes de ser um jogador, é um homem estado de alma, plantou-se na sua humilde de uma pequena cidade mineira ponta para enfrentar os russos. e que nos primeiros três minutos de (RODRIGUES, 1993, p. 65). jogo “disparou pelo campo adversário, Através de hipérboles, o cronista gera como um tiro. Foi driblando um, imagens com o intuito de oferecer ao driblando outro e consta inclusive que, leitor a sua leitura da realidade: um na sua penetração fantástica, driblou até prazeroso espetáculo aos olhos de quem as barbas de Rasputin” (RODRIGUES, assistia à partida. Nelson faz da partida 1993, p. 64). uma epopeia e diz que “realmente, jamais se viu, num jogo de tamanha Para Nelson, Garrincha suplantou o responsabilidade, um time, ou melhor, time russo e, até mesmo, o líder político um jogador começar a partida com um daquele país. Dessa forma, Nelson baile. Repito: baile, sim, baile!” transcende o campo do esporte aludindo (RODRIGUES, 1993, p. 64). Em outro questões políticas e conduz o leitor a trecho, o cronista diz que “quando, no pensar que naquele momento o poderio segundo tempo, Garrincha resolveu russo cairia aos pés dos jogadores de caprichar no baile, foi um carnaval uma nação subdesenvolvida, pois se sublime. A coisa virou show de Grande estava mostrando a uma potência Otelo” (RODRIGUES, 1993, p. 65). europeia que o futebol racional era falho Sobre a reação do público que via a e a graça e leveza da ginga, do drible e partida na Suécia, Nelson diz que estes do talento individual era a medida do soltavam uma “gargalhada cósmica” sucesso. Com metáforas e adjetivos, o cada vez que Garrincha dava um drible. cronista constrói um jogador infalível e Os russos, que tinham a “inocência dos

123 passarinhos”, ficavam com uma “raiva milagre do escrete. Fora as obtusa” com os dribles sofridos esquerdas, que acham o futebol o (RODRIGUES, 1993, p. 65). ópio do povo, fora as esquerdas, dizia eu, todos os outros brasileiros Para Nelson assim como a percepção de se juntam em torno da seleção. É, seleção passa por bons atletas, a ideia de então, um pretexto, uma razão de nação passa por grandes sujeitos. A autoestima. E cada vitória saída para a nação se encontraria em seu compensa o povo de velhas próprio interior, não na submissão ao frustrações, jamais cicatrizadas que se tornara comum para outros (RODRIGUES, 1993, p. 206). países. Para o cronista homem brasileiro A identidade nacional disposta por tinha peculiaridades que só a ele Nelson Rodrigues reúne recursos pertenciam. Pelé e Garrincha, juntos, negativos e positivos. Dentre os sintetizariam o homem brasileiro: negativos, destaca-se a instabilidade racialmente avançado e ao mesmo emocional, a insegurança e a baixa tempo moleque e viril, cordial e cínico, autoestima manifestadas no “complexo fantasioso e criativo, malandro e de vira-latas”. Já os recursos positivos eficiente, objetivo e transgressor, fruto figuram pela sagacidade, agilidade, de nossa construção cultural. Eram virilidade e molecagem. Todos esses heróis com os quais o povo poderia se elementos estão presentes, segundo identificar. Segundo Fátima Antunes Nelson, no futebol brasileiro. (2004, p. 210), “mesmo sem pretensão de formular teorias sobre o assunto, Considerações finais Nelson construiu uma interpretação da Não existe uma identidade nacional brasilidade pelo futebol”. homogênea e estável, quanto mais se Com a proximidade da Copa do Mundo considerando que a formação cultural de 62, Nelson granjeava ligar a nação brasileira é marcada fortemente por um brasileira ao futebol em suas crônicas. caráter eclético e sincrético. Mantendo Para ele, a nação se uniria e os triunfos forte compromisso com a estética estimulariam a edificação da pátria em textual, “À sombra das chuteiras chuteiras passando o brasileiro a ser imortais” permite um olhar matizado, exposto como um homem genial, complexo e privilegiado sobre a questão abarrotado de qualidades. O cronista da construção da identidade nacional disse quando da vitória brasileira sobre utilizando-se do futebol como elemento os espanhóis na Copa de 1962: catalisador para tal. As crônicas de “Amigos, era ali ou nunca. Setenta e Nelson Rodrigues, não tinham como cinco milhões de brasileiros precisavam objetivo apenas renovar as tradições do mais do gol que todo o Nordeste de esporte, mas principalmente cultivar água e pão” (RODRIGUES, 1993, p. uma imagem de um país vitorioso que 100). conseguiu vencer o trauma do fracasso. Dessa forma, vê-se que o jogo de Tendo em vista que a identidade é futebol, mais do que uma disputa demarcada pela diferença, para o esportiva, também manifesta o brasileiro a característica distintiva é a confronto de culturas e identidades. mestiçagem. E, para Nelson Rodrigues, Há um momento, todavia, em que esta deveria ser enaltecida. Em suas todos se lembram do Brasil, em que narrativas, o cronista transitava pelo 90 milhões de brasileiros ideal do homem cordial, mas, apenas descobrem o Brasil. Aí está o para criticar a submissão do brasileiro,

124 definida na figura do “complexo de Referências vira-latas”. O mulato era a ANTUNES, Fátima M. R. F. “Com brasileiro representação de uma brasilidade não há quem possa!” : futebol e identidade determinada pela criatividade, nacional em José Lins do Rego, Mário Filho e vivacidade, malandragem, superação, Nelson Rodrigues. São Paulo: Editora Unesp, 2004. ginga e alegria, elementos que perceptíveis ao longo de uma partida de BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e futebol. política : ensaios sobre literatura e história cultural. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. Apesar do imenso repertório de temas (Coleção Obras Escolhidas, vol. 1) do cotidiano, obsessivamente, Nelson CANDIDO, A. Literatura e Sociedade . 3. ed. Rodrigues transformou o futebol em Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006. enredo teatral. Os jogadores de futebol CASTRO, Ruy. Anjo pornográfico : a vida de encarados por Nelson Rodrigues como Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia das heróis de um povo que sempre Letras, 1992. valorizou os elementos de festa e ELIAS, N.; DUNNING, E. A busca da ludicidade, que de certa forma também excitação . Lisboa: Didel, 1985. foram fator de resistência, no sentido de FREYRE, G. Sobrados e mucambos : permitir a ressignificação de injunções decadência do patriarcado rural e que não necessariamente faziam parte desenvolvimento do urbano. 15. ed. Rio de de uma formação cultural nativa. Janeiro: Global, 2004. (Introdução à história da Através de símbolos como Pelé e sociedade patriarcal no Brasil; v. 2) Garrincha, Nelson mostrou que os HALL, S. A identidade cultural na pós- brasileiros devem se aceitar como são e modernidade . 10. ed. Rio de Janeiro: DP & A Editora, 2006. que se forem determinados, acreditando no seu potencial, nada impedirá o MICELI, Sergio. Intelectuais e classe dirigente sucesso da nação. no Brasil (1920-1945) . São Paulo: Fundação Calouste Gulbenkian, 1979. O exagero textual e a teatralidade ORTIZ, R. Cultura Brasileira e Identidade aproximam as crônicas esportivas Nacional . 5ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. rodrigueanas das obras de ficção e RODRIGUES, Nelson. À sombra das tornam o futebol mais importante do chuteiras imortais : crônicas de futebol. São que os problemas sociais – como a seca Paulo: Companhia das Letras, 1993. no Nordeste brasileiro e a ditadura SEVCENKO, Nicolau. Literatura como militar – em um período em que o missão : tensões sociais e criação cultural na esporte não era reconhecido como um Primeira República. 2. ed. São Paulo: assunto digno de ser tratado com Companhia das Letras, 2003. seriedade e, por isso, deveria ser VIANNA, Hermano. O mistério do samba . 2. ignorado. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

Recebido em 2015-06-18 Publicado em 2016-02-14

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