BRUNA GRASIELA DA SILVA RONDINELLI
MARTINS PENA, O COMEDIÓGRAFO DO TEATRO DE SÃO PEDRO DE ALCÂNTARA: UMA LEITURA DE O JUDAS EM SÁBADO DE ALELUIA, OS IRMÃOS DAS ALMAS E O NOVIÇO
CAMPINAS, 2012
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM
BRUNA GRASIELA DA SILVA RONDINELLI
MARTINS PENA, O COMEDIÓGRAFO DO TEATRO DE SÃO PEDRO DE ALCÂNTARA: UMA LEITURA DE O JUDAS EM SÁBADO DE ALELUIA, OS IRMÃOS DAS ALMAS E O NOVIÇO
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Orna Messer Levin
Dissertação de mestrado apresentada ao instituto de estudos da linguagem da universidade estadual de campinas para obtenção do título de mestra em teoria e história literária, na área de história e historiografia literária.
CAMPINAS, 2012
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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA POR CRISLLENE QUEIROZ CUSTODIO – CRB8/8624 - BIBLIOTECA DO INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM - UNICAMP
Rondinelli, Bruna Grasiela da Silva, 1985- R668m Martins Pena, o comediógrafo do Teatro de São Pedro de Alcântara: uma leitura de O judas em sábado de aleluia, Os irmãos das almas e O noviço / Bruna Grasiela da Silva Rondinelli. -- Campinas, SP : [s.n.], 2012.
Orientador: Orna Messer Levin. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem.
1. Pena, Martins, 1815-1848 - Crítica e interpretação. 2. Teatro João Caetano (Rio de Janeiro, RJ). 3. Teatro brasileiro (Comédia). 4. Cultura - História. 5. Imprensa. I. Levin, Orna Messer, 1960-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Título.
Informações para Biblioteca Digital
Título em inglês: Martins Pena, the comediograph of the São Pedro de Alcântara Theater: a reading of O judas em sábado de aleluia, Os irmãos das almas and O noviço. Palavras-chave em inglês: Pena, Martins, 1815-1848 - Criticism and interpretation João Caetano Theater (Rio de Janeiro, RJ) Brazilian drama (Comedy) Culture - History Press Área de concentração: História e Historiografia Literária. Titulação: Mestra em Teoria e História Literária. Banca examinadora: Orna Messer Levin [Orientador] Elizabeth Ferreira Cardoso Ribeiro Azevedo André Luís Gomes Data da defesa: 04-12-2012. Programa de Pós-Graduação: Teoria e História Literária.
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Para Neusa e Duilio, por acreditarem em meus sonhos.
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AGRADECIMENTOS
Concluído este trabalho, resta-me agora agradecer a todos que o tornaram possível e contribuíram para o seu melhor desenvolvimento. Primeiramente, agradeço à Prof.ª Dr.ª Orna Messer Levin pela excelente orientação, por acreditar nesta pesquisa, pelas leituras atentas de meus escritos e por contribuir para transformar o Mestrado em um passo importante em minha caminhada profissional e pessoal. Agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) pela concessão da Bolsa Regular de Mestrado, que me permitiu dedicar tempo integral à pesquisa, e da Bolsa de Estágio de Pesquisa no Exterior (BEPE), que financiou a minha estadia na França, entre abril e junho de 2012, possibilitando-me consultar obras e documentos nas bibliotecas e arquivos de Paris, e obter o texto do melodrama Fabio le Novice (1841), de Charles Lafont e Noël Parfait. Ao Prof. Dr. Jean-Claude Yon, do Centre d'Histoire Culturelle des Sociétés Contemporaines (CHCSC), da Université de Versailles Saint-Quentin-en-Yvelines (UVSQ), por ter orientado o meu projeto de estágio de pesquisa, "Martins Pena e o Melodrama Romântico Francês" (BEPE/FAPESP), durante a minha estadia na França. Sou imensamente grata pela extensa bibliografia que o Prof. Yon me forneceu sobre o teatro francês do século XIX. Ao Prof. Dr. Jean-Yves Mollier (CHCSC/UVSQ) por ter se prontificado a esclarecer as minhas dúvidas sobre o dramaturgo Noël Parfait. À Prof.ª Dr.ª Anaïs Fléchet (CHCSC/UVSQ), pelas dicas de sobrevivência em Paris. À Claude Chauvineau, diretora da Bibliothèque des Études Théâtrales – Gaston Baty (Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3), que atendeu à minha solicitação de reprodução do melodrama Fabio le Novice. Ao Prof. Dr. Jefferson Cano (IEL/UNICAMP), pelo debate enriquecedor durante a banca de qualificação desta dissertação.
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Aos professores titulares da banca, Prof.ª Dr.ª Elizabeth Ferreira Cardoso Ribeiro Azevedo (ECA/USP) e Prof. Dr. André Luís Gomes (UnB), por lerem e debaterem o meu trabalho. E às professoras suplentes, Prof.ª Dr.ª Vilma Sant'Anna Arêas (IEL/UNICAMP) e Prof.ª Dr.ª Larissa de Oliveira Neves Catalão (IA/UNICAMP). Aos membros do projeto temático "A Circulação Transatlântica dos Impressos: a globalização da cultura no século XIX" (FAPESP), em especial à Prof.ª Dr.ª Márcia Azevedo de Abreu, que conhece a minha trajetória acadêmica de perto e sempre contribuiu com valiosas sugestões. Aos funcionários do Arquivo Edgard Leuenroth (AEL/IFCH/UNICAMP), sempre solícitos e atenciosos no atendimento aos pesquisadores. Não poderia deixar de mencionar a grande amiga Danielle Crepaldi Carvalho, a quem sou eternamente grata por, há seis anos, ter acreditado em meu potencial de realizar pesquisas nos periódicos oitocentistas. Foi aí que tudo começou... Por fim, agradeço ao apoio de meus familiares, sempre orgulhosos de meu trabalho. Especialmente ao Duilio, por compreender as extensas horas dedicadas à pesquisa, por ouvir e debater, com paciência, as minhas ideias sobre o teatro, e, simplesmente, por estar ao meu lado, sempre.
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"Le théâtre est un point d'optique. Tout ce qui existe dans le monde, dans l'histoire, dans la vie, dans l'homme, tout doit et peut s'y réfléchir, mais sous la baguette magique de l'art".
Victor Hugo, Prefácio de Cromwell, 1827.
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RESUMO
Este estudo reconstitui as condições em que foram representadas as peças de Martins Pena (1815-1848) no Teatro de São Pedro de Alcântara, entre os anos de 1838 e 1855, a partir de informações recolhidas nos anúncios de espetáculos, crônicas teatrais e cartas de espectadores publicadas pela imprensa fluminense oitocentista. A contextualização dos espetáculos – levantamento de dados acerca da mise en scène, do repertório, dos programas e artistas atuantes – iluminou assuntos e propôs respostas possíveis a questionamentos sobre a produção dramática de Martins Pena, tais como as motivações para a composição de suas comédias e as condições em que estas foram recebidas pela crítica e público. Martins Pena escreveu um total de 22 peças cômicas; destas, 18 estrearam entre outubro de 1838 e dezembro de 1846 no São Pedro de Alcântara, em sua grande maioria nos programas de espetáculos beneficentes em favor de atores, dentre os quais Estela Sezefreda (1810-1874), esposa de João Caetano (1808-1863), e os portugueses Manoel Soares (?-1859) e Ludovina Soares (1802-1868). O Judas em Sábado de Aleluia, Os Irmãos das Almas e O Noviço foram as suas comédias mais encenadas durante as décadas de 1840 e 1850. Essas peças, tecidas por recursos farsescos, dialogam com a estética do melodrama francês, adaptam discussões trazidas pelos periódicos do Rio de Janeiro e satirizam as ordens religiosas, a polícia, as leis civis e criminais do Império. A reconstrução do contexto de criação das obras de Martins Pena nos permite concluir que o comediógrafo foi influente na constituição dos benefícios teatrais oferecidos pelos artistas do São Pedro de Alcântara, espectador dos programas desse teatro, leitor e censor de seu repertório, e um autor que, além da busca de divertimento, tinha uma mensagem social para transmitir à plateia.
Palavras chave: Martins Pena; Teatro de São Pedro de Alcântara; Comédia; História Cultural; Imprensa.
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ABSTRACT
This study reconstitute the conditions in which Martins Pena (1815-1848) plays were represented at the São Pedro de Alcântara Theater, during the years 1838 to 1855, using information gathered from spectacles' announcements, theatrical chronicles and letters from spectators published in the fluminense press of the eighteenth century. The contextualization of the exhibitions – data acquisition about the mise en scène, the repertory, the programs and the acting artists – illuminated issues and proposed possible answers to questions about the Martins Pena's dramatic production, such as the motivations to compose his comedies and how was the public and critic reception. Martins Pena wrote 22 comic plays; 18 of these were first time staged between October of 1838 and December of 1846 at the São Pedro de Alcântara Theater, mostly during the programs of the spectacles in benefit of actors, as Estela Sezefreda (1810-1874), wife of João Caetano (1808-1863) and the portuguese Manoel Soares (?-1859) and Ludovina Soares (1802- 1868). O Judas em Sábado de Aleluia, Os Irmãos das Almas and O Noviço were his most staged comedies during the decades of 1840 and 1850. These plays, woven with farcical means, dialogue with the french melodramas' esthetic, adapt discussions present in the Rio de Janeiro daily journals and satirize the religious orders, the police, the civil and criminal laws of the Empire. The reconstruction of the Martins Pena's creation context allowed us to conclude that the comediograph had influence on the organization of theatrical programs in benefit of actors at São Pedro de Alcântara Theater, were spectator of these programs, reader and censor of their repertory, and an author who searched not only to give entertainment to the audience, but also to transmit a social message.
Keywords: Martins Pena; São Pedro de Alcântara Theater; Comedy; Cultural History; Press.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO - UM ESTUDO DAS REPRESENTAÇÕES TEATRAIS DAS COMÉDIAS DE MARTINS PENA ...... 01
CAPÍTULO 1 - MARTINS PENA, O TEATRO DE SÃO PEDRO DE ALCÂNTARA E A IMPRENSA: CAMINHOS QUE SE CRUZAM ...... 11 1 A Trajetória do Teatro de São Pedro de Alcântara ...... 11 1.1 De Real Teatro de São João a Teatro de São Pedro de Alcântara: história, repertório e companhias teatrais ...... 12 1.2 O Ator João Caetano e os Diletantes ...... 19 1.3 Os Espetáculos do Teatro de São Pedro de Alcântara: a plateia, os bilhetes e os cambistas ...... 23 2 Um Comediógrafo Brasileiro no Teatro de São Pedro de Alcântara ...... 29 2.1 O Juiz de Paz da Roça e A Família e A Festa da Roça: o início ...... 30 2.2 O Judas em Sábado de Aleluia e Os Irmãos das Almas: uma fase de transição ... 42 2.3 O Auge das Estreias de Martins Pena (1845-1846) ...... 45 2.4 Na Trilha do Melodrama: enredo histórico, cenários europeus e personagens nobres ...... 61 2.5 Martins Pena se Despede do Teatro de São Pedro de Alcântara ...... 63 2.6 Para Além do Palco: as comédias de Martins Pena na tipografia de Paula Brito . 66 3 As Reprises das Comédias de Martins Pena e o Novo Panorama Teatral na Corte (1850-1855) ...... 69
CAPÍTULO 2 - A FESTA RELIGIOSA, A POLÍCIA E AS LEIS CIVIS EM O JUDAS EM SÁBADO DE ALELUIA ...... 81 1 Os Temas, o Enredo e as Personagens ...... 81 2 O Teatro de São Pedro de Alcântara e a Quaresma ...... 89 2.1 As Comédias de Martins Pena e as Festas Religiosas ...... 94
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3 A Autoridade Policial e os Direitos Civis ...... 95 3.1 O Autoritarismo Policial: a corrupção e o abuso de poder ...... 96 3.2 O Direito de Liberdade ...... 98
CAPÍTULO 3 - AS IRMANDADES RELIGIOSAS E A MAÇONARIA EM OS IRMÃOS DAS ALMAS: UMA BUSCA DOS DIREITOS DOS HOMENS ...... 103 1 Os Temas, o Enredo e as Personagens ...... 103 2 O Dia de Finados: religiosidade e festividade ...... 108 3 As Irmandades Religiosas, a Maçonaria e os Direitos dos Homens ...... 111
CAPÍTULO 4 - O IMPACTO DO MELODRAMA EM O NOVIÇO: PARÓDIA E SÁTIRA ...... 121 1 Os Temas, o Enredo e as Personagens ...... 121 2 Martins Pena e o Melodrama Romântico Francês ...... 126 2.1 Fabio le Novice: a peça, a mise en scène e a recepção em Paris ...... 128 2.2 O Noviço e Fabio le Novice: uma leitura ...... 132 3 A Sátira em O Noviço: o convento, o patronato e as leis criminais ...... 137
CONSIDERAÇÕES FINAIS - MARTINS PENA E SUAS COMÉDIAS: UMA MENSAGEM À PLATEIA ...... 143
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...... 147
ANEXOS ...... 159 Um Episódio de 1831 ...... 161 Contos e Crônicas de Martins Pena no Correio das Modas ...... 167 Representações de Martins Pena em Números ...... 189 Preços dos Bilhetes dos Espetáculos Teatrais no Rio de Janeiro (1840-1855) ...... 191 A Festa e A Família da Roça (Comédia original) ...... 193 As Estreias de Martins Pena em Espetáculos Beneficentes ...... 199
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Anúncios das Encenações de Uma Mulher Feia ...... 201 Sequenciamento de Cenas de O Judas em Sábado de Aleluia ...... 205 Sequenciamento de Cenas de Os Irmãos das Almas ...... 209 Sequenciamento de Cenas de O Noviço ...... 213 Anúncio da Estreia de Fabio o Noviço ou A Independência de Milão ...... 219 Fabio le Novice ...... 221
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INTRODUÇÃO
UM ESTUDO DAS REPRESENTAÇÕES TEATRAIS DAS COMÉDIAS DE MARTINS PENA
Hoje podemos dizer com segurança que as comédias e farsas estão longe da simplicidade.1
Luís Carlos Martins Pena nasceu no Rio de Janeiro a 05 de novembro de 1815. Além dos estudos na Escola de Comércio, teve aulas de línguas estrangeiras com professores particulares e cursou literatura, pintura, música e canto na Academia Imperial de Belas Artes. Após os estudos, atuou, simultaneamente, como funcionário público, dramaturgo e cronista teatral. Em setembro de 1838, Martins Pena foi nomeado amanuense da Mesa do Consulado da Corte; em abril de 1843, tornou-se amanuense da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros; e, em outubro de 1847, adido de primeira classe à Legação Brasileira em Londres. A nomeação foi divulgada pela Gazeta Oficial do Império e reproduzida pelo Diário do Rio de Janeiro: "Lê-se na Gazeta Oficial: 'O Sr. Luís Carlos Martins Pena, amanuense da secretaria de estado dos negócios estrangeiros, foi nomeado adido de 1ª classe da legação imperial em Londres'".2 No mesmo mês, o autor embarcou para Londres, deixando a filha, Julieta Pena, nascida de sua relação com uma atriz, aos cuidados de familiares. Em 1848, tentou retornar ao país, devido à tuberculose pulmonar que contraíra. Com a saúde já debilitada, faleceu em Lisboa, a caminho do Brasil, em 07 de dezembro de 1848.3
1 ARÊAS, Vilma. "Relendo Martins Pena". In: PENA, Martins. Martins Pena: comédias (1833-1844); (1844- 1845); (1845-1847). Edições preparadas por Vilma Arêas. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. X. 2 Diário do Rio de Janeiro, 04 de outubro de 1847. 3 As informações biográficas foram consultadas nas biografias: VEIGA, Luís Francisco. "Luís Carlos Martins Pena: o criador da comédia nacional". In: Dionysos, Rio de Janeiro, MEC, Serviço Nacional de Teatro, n. 01, ano I, p. 57-68, Out./1949 (publicada, inicialmente, na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
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No jornalismo literário, Martins Pena publicou no periódico Gabinete de Leitura, em 08 de abril de 1838, o conto histórico "Um Episódio de 1831".4 Entre os meses de janeiro e abril de 1839, redigiu para o Correio das Modas – um jornal de modas e literatura, de inspiração francesa e direcionado a um público feminino –, os contos de temas amorosos "A Sorte Grande" e "O Poder da Música", e as crônicas cômicas "Minhas Aventuras numa Viagem nos Ônibus" e "Uma Viagem na Barca de Vapor".5 Nestas, o narrador relata, em primeira pessoa, as experiências engraçadas vividas como usuário dos meios de transporte público da cidade do Rio de Janeiro. Em suas primeiras narrativas publicadas pela imprensa, Martins Pena já adotava um estilo literário particular que dava voz à fala popular e, de modo bem humorado, satirizava a vida cotidiana na Corte em suas relações sociais mais diversas; procedimento que, anos mais tarde, garantiria o sucesso de suas comédias nos palcos fluminenses. Martins Pena foi também crítico teatral. Entre setembro de 1846 e outubro de 1847, publicou seus folhetins semanais no Jornal do Commercio. Estes tratavam dos espetáculos da Corte, principalmente dos líricos, com análises da mise en scène, da atuação dos artistas, do repertório e das políticas teatrais. Os folhetins são de grande valia para a compreensão da dramaturgia do autor, pois revelam "alguém profundamente conhecedor do palco, crítico competente e com uma postura artística e política bastante clara, em certos aspectos avançada para a época".6 Para o teatro, Martins Pena compôs um total de 27 peças, sendo 18 comédias de um ato e quatro de três, somadas a cinco dramas históricos. Do conjunto de sua obra dramática, 19 peças – 18 comédias e o drama Vitiza ou O Nero de Espanha – estrearam entre outubro de 1838 e dezembro de 1846 no Teatro de São Pedro de Alcântara,7 a
vol. XL, segunda parte, 1877, p. 375-407); MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. Martins Pena e Sua Época. 2. ed. São Paulo: LISA, 1972; HELIODORA, Bárbara. Martins Pena: uma introdução. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2000. 4 Ver o anexo "Um Episódio de 1831", que traz o texto integral publicado no Gabinete de Leitura. 5 Ver o anexo "Contos e Crônicas de Martins Pena no Correio das Modas", que apresenta os textos que o autor publicou nesse periódico. 6 ARÊAS, Vilma Sant'Anna. Na Tapera de Santa Cruz: uma leitura de Martins Pena. São Paulo: Martins Fontes, 1987, p. 01. 7 O Teatro de São Pedro de Alcântara manteve essa denominação até 1923, quando foi renomeado Teatro João Caetano. A edificação datada do século XIX foi demolida em 1928 e, em seu lugar, construída uma nova sala de espetáculos, existente até hoje ao lado da Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro, com o mesmo nome.
2 principal casa de espetáculos do Rio de Janeiro na época. Sua produção cômica divide-se em três fases de estreias: a primeira, entre 1838 e 1840, quando foram representadas as comédias roceiras O Juiz de Paz da Roça e A Família e A Festa da Roça; o período de início da abordagem do ambiente urbano, em 1844, quando subiram ao palco O Judas em Sábado de Aleluia e Os Irmãos das Almas; e a fase mais prolífica de encenações, ao longo de 1845 e 1846, quando foram criadas 14 comédias, dentre elas O Noviço. Os textos cômicos de Martins Pena possuem uma fortuna crítica consolidada, que culminou na canonização do autor, na história literária, como o precursor da comédia nacional de costumes. Desde o final do século XIX e início do XX, Sílvio Romero e José Veríssimo reconheceram o valor documental das comédias e o sucesso que estas obtiveram diante de um público que se via reconhecido nos palcos.8 Os estudos críticos subsequentes destacaram Martins Pena como o primeiro comediógrafo brasileiro que, com maestria, soube observar tipos sociais (escravos domésticos, comerciantes, irmandades religiosas, funcionários públicos de baixo escalão), costumes (festas religiosas, danças populares) e aspectos político-econômicos (tráfico de escravos, contrabandos, circulação de dinheiro falso) referentes à vida cotidiana na capital do Império.9 Nesse sentido, as comédias revelam "um pendor quase jornalístico pelos fatos do dia, assinalando em chave cômica o que ia sucedendo de novo na atividade brasileira cotidiana, com destaque especial para a cidade do Rio de Janeiro".10 Em seu estudo pioneiro da produção dramática de Martins Pena, Vilma Arêas defende que o comediógrafo articula no jogo cênico os recursos, temas e personagens da tradição cômica clássica, do entremez português, da comédia francesa, da ópera lírica e do
8 ROMERO, Sílvio. "Martins Pena". In: BARRETO, Luiz Antonio (Org.). Autores Brasileiros. Rio de Janeiro; Aracajú, SE: Imago, 2002, p. 339-414; VERÍSSIMO, José. "Martins Pena e o teatro brasileiro". In: Estudos de Literatura Brasileira: 1ª série. São Paulo: Edusp, 1976, p. 115-126. 9 Foram consultadas as histórias literárias: AMORA, Antonio Soares. "Martins Pena". In: A Literatura Brasileira: o Romantismo. Vol. II. 4. ed. São Paulo: Cultrix, 1973, p. 309-330; CANDIDO, Antonio. "Martins Pena". In: Presença da Literatura Brasileira: das origens ao Romantismo. Vol. I. 7. ed. São Paulo: DIFEL, 1976, p. 220-221; CARVALHO, Ronald. "O teatro". In: Pequena História da Literatura Brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: F. Briguiet, 1922, p. 285. E os estudos de história teatral: FARIA, João Roberto. Ideias Teatrais: o século XIX no Brasil. São Paulo: Perspectiva: FAPESP, 2001, p. 82-83; MAGALDI, Sábato. Panorama do Teatro Brasileiro. 5. ed. São Paulo: Global, 2001, p. 42; SOUSA, João Galante de. O Teatro no Brasil. Vol. I. Rio de Janeiro: MEC: INL, 1960, p. 171-175. 10 PRADO, Décio de Almeida. História Concisa do Teatro Brasileiro: 1570-1908. São Paulo: Edusp, 1999, p. 57.
3 melodrama – que constituem as ações cômicas e produzem o riso –, completando-o "com a série sociológica, com a construção de modelos penetrantes da realidade nacional"11 – que contextualizam os enredos das peças. Essa série sociológica não se resumiria em um retrato da sociedade imperial, com seus costumes e vícios, como propuseram Sílvio Romero e José Veríssimo. Significa "uma tomada de consciência de um momento da história de nosso país, que recém adquiria uma limitada independência, e uma tentativa de pensar criticamente nossa cultura, com as restrições que o contexto impunha ao trabalho intelectual".12 Se a historiografia literária e teatral sempre privilegiou o estudo descritivo dos temas sociológicos presentes nas peças de Martins Pena, tal perspectiva deixou lacunas quanto à recepção crítica e às condições de representações desses textos teatrais nos palcos oitocentistas; contexto que, obviamente, interferiu em seus processos de criação. A partir da abordagem da história cultural dos espetáculos, pretendemos iluminar assuntos e propor respostas possíveis a questionamentos sobre a produção cômica de Martins Pena, tais como as motivações para a composição das peças, as condições em que estas foram representadas e recebidas pela crítica e público, e qual o papel desempenhado pelo comediógrafo na atividade teatral da capital do Império. Para tanto, torna-se necessária a contextualização do repertório, das políticas administrativas e estéticas concernentes ao universo dos espetáculos no Rio de Janeiro, durante as primeiras décadas do século XIX. Adotamos o pressuposto de que o teatro, uma atividade do campo socioeconômico e cultural, é o resultado de um trabalho conjunto, que inclui, além do escritor e seu texto literário, os praticantes de teatro (diretor e ator, por exemplo) e os espectadores, constituindo o campo da representação teatral:
Escrever para o teatro não é escrever para a prática econômica da livraria, é escrever para uma prática socioeconômica que é a da cena, e que supõe um lugar cênico, atores, público, despesas no início, estruturas materiais cujas exigências se revertem para a escritura.13
11 ARÊAS, 1987, p. 133. 12 Ibid., p. 264. 13 UBERSFELD, Anne. Para Ler o Teatro. Tradução José Simões. São Paulo: Perspectiva, 2010, p. 67.
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Martins Pena foi um homem de teatro (dramaturgo, crítico, censor e espectador), não apenas conhecedor do jogo cênico e da tradição dramática, mas também uma figura atuante na atividade teatral fluminense, em sua política administrativa e na constituição dos espetáculos. O comediógrafo abordou temas garimpados no repertório exibido pelo São Pedro de Alcântara, casa de espetáculos onde as suas peças estrearam e foram frequentemente reprisadas. Do mesmo modo, foi observador e crítico dos divertimentos populares, introduzindo, em suas comédias, celebrações religiosas tradicionais na capital do Império. Tendo em vista tais considerações, propomos uma leitura da obra cômica de Martins Pena advinda dessa relação estreita que o autor manteve com a cultura de divertimentos teatrais, mais especificamente com os artistas, os programas e o repertório do São Pedro de Alcântara. A imprensa oitocentista foi um importante guia no acompanhamento da trajetória da atividade teatral e dos divertimentos populares oferecidos pela capital do Império. No século XIX, os jornais divulgavam anúncios de espetáculos, crônicas e artigos críticos dos programas exibidos, comentários espontâneos de espectadores e comunicados de atores. Além dos periódicos Gazeta do Rio de Janeiro (1808-1822), Diário do Rio de Janeiro (1827-1855) e Jornal do Commercio (1838-1855), também foram consultados diversos jornais literários e teatrais – alguns efêmeros –, que ilustram o ambiente cultural da Corte, apresentando crônicas que narram os espetáculos oferecidos pelos teatros, notícias sobre atores, músicos e bailarinos, matérias sobre literatura, música e festas religiosas. Foram lidos os seguintes periódicos: A Aurora (1851), A Caricatura (1851), A Rabequinha (1851), Coruja Teatral (1840-1841), O Álbum Semanal (1851-1853), O Artista (1849), O Beija-Flor (1850), O Bodoque Mágico (1851), O Clarim dos Theatros (1851), O Corsário (1851), O Corsário Vermelho (1851), O Estandarte (1851), O Gosto (1843), O Guasca na Corte (1851), O Jornal das Senhoras (1852-1855), O Martinho (1851), O Montanista (1851) e O Orsatista (1851). O contato com a imprensa fluminense da primeira metade do século XIX, além de oferecer elementos que nos ajudaram na caracterização do repertório, dos programas e das políticas do São Pedro de Alcântara, nos fez pensar em Martins Pena não somente como um homem de teatro. O comediógrafo parece ter sido um atento leitor de jornais
5 cotidianos, a exemplo do Jornal do Commercio e do Diário do Rio de Janeiro. Antenado com as discussões políticas, econômicas e culturais do dia-a-dia na cidade do Rio de Janeiro, levou para as suas comédias, em forma de denúncia social, discussões de interesse público que ocupavam as páginas dos periódicos, com temas que trilhavam pelo sucesso das récitas de óperas italianas, o métier da medicina, a produção e circulação de dinheiro falso, e a maçonaria. Somamos ao homem de teatro e leitor assíduo de jornais, a faceta de um leitor- revisor de textos teatrais. Diante dessa hipótese, lançamos um novo olhar sobre o trabalho que Martins Pena desenvolveu, entre 1843 e 1846, como segundo secretário e censor do Conservatório Dramático Brasileiro, que lhe permitiu entrar em contato com o texto de peças de diferentes gêneros – melodramas, comédias e vaudevilles –, integrantes do repertório dos teatros da Corte. Essa leitura contínua pode tê-lo auxiliado em seu estudo da arte dramática e no desenvolvimento da composição e do jogo cênico de suas comédias. Assim, vislumbramos uma nova perspectiva acerca da atuação de Martins Pena no Conservatório Dramático: não a de um "censor censurado", como o quis seu biógrafo Magalhães Júnior,14 mas a de um leitor de textos teatrais de diferentes gêneros e diversos autores estrangeiros. Esta dissertação, organizada em quatro capítulos, pretende reconstituir as condições das representações teatrais (estreias e reprises) das peças de Martins Pena na primeira metade do século XIX, e propor uma leitura das comédias que foram mais encenadas no período. O primeiro capítulo, "Martins Pena, o Teatro de São Pedro de Alcântara e a Imprensa: caminhos que se cruzam", sustenta a hipótese de que o autor manteve contato direto com esse teatro e sua companhia dramática; relação que se refletiu no processo criativo e nas representações de suas peças. A fim de verificar os elementos motivadores da composição de sua obra dramática e a recepção ante a crítica e a plateia, restabelecemos historicamente o contexto teatral em que as peças foram representadas no palco do São
14 MAGALHÃES JÚNIOR, 1972, p. 100-112.
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Pedro de Alcântara, entre 1838 e 1855.15 A reconstituição dos espetáculos levou em consideração a configuração dos programas, o repertório, os acompanhamentos musicais, os dançados, os artistas atuantes e a composição social do público que frequentava o São Pedro de Alcântara. As informações foram obtidas em anúncios de espetáculos, crônicas teatrais e comunicados de espectadores e atores, publicados pelos periódicos cotidianos e literários. Essa investida na imprensa oitocentista nos permitiu configurar o espaço que a obra de Martins Pena ocupou no Rio de Janeiro, por meio do olhar de suas próprias testemunhas, isto é, o público, os artistas e os cronistas de teatro. A proposta de pesquisa da obra do autor, considerando-se o contexto histórico-cultural em que esta foi produzida e recebida, contribui não apenas para a compreensão da realização pessoal de Martins Pena como comediógrafo, mas também para o desvelamento de uma fase da arte teatral na Corte brasileira, com seus pressupostos literários, artísticos e político-econômicos. A reconstituição das estreias e a verificação da recepção crítica e de público respaldaram a nossa leitura da obra dramática de Martins Pena, conjuntamente aos estudos dos textos (composição formal e cômica)16 e das referências a elementos sociais da capital do Império. Elegemos as comédias O Judas em Sábado de Aleluia, Os Irmãos das Almas e O Noviço para serem analisadas, já que estas estão entre as produções de Martins Pena mais encenadas nos principais teatros da Corte.17 O Judas em Sábado de Aleluia e Os Irmãos das Almas iniciam uma fase de transição da escrita dramática do autor, marcando o momento em que este passa a ambientar as suas peças no cenário urbano. O auge foi em 1845, quando Martins Pena redigiu e encenou a maior parte de sua obra, incluindo O Noviço, sua peça mais exibida nos teatros fluminenses do período.
15 A periodização adotada para este estudo leva em consideração, como início, o ano de estreia da primeira composição de Martins Pena, O Juiz de Paz da Roça, em 1838, e como término, o ano de criação do Teatro Ginásio Dramático, em 1855, quando a comédia realista começou a ser representada na cena teatral fluminense. 16 Para o estudo dos recursos de construção da comicidade, nos baseamos nos elementos cômicos conceituados por Vladímir Propp. (PROPP, Vladímir. Comicidade e Riso. Tradução Aurora Fornoni Bernardini & Homero Freitas de Andrade. São Paulo: Ática, 1992). Consultamos também a obra O Riso, de Henri Bergson. (BERGSON, Henri. O Riso: ensaio sobre a significação da comicidade. Tradução Ivone Castilho Benedetti. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007). 17 Ver o anexo "Representações de Martins Pena em Números", que apresenta uma tabela com a quantidade estimada de exibições das peças de Martins Pena, nos principais teatros da Corte, entre 1838 e 1860.
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O Judas em Sábado de Aleluia, Os Irmãos das Almas e O Noviço apresentam, em comum, temáticas religiosas, evidenciadas pelos seus títulos: a Festa do Sábado de Aleluia e o ritual de malhação do Judas; as procissões de irmandades religiosas que arrecadavam esmolas a favor de santos; e as doutrinas vivenciadas pelos noviços nos conventos. Como veremos nas análises dessas comédias, o tema religioso relaciona-se ao objetivo principal de Martins Pena de transmitir uma mensagem de conteúdo político e social à plateia. Mensagem que construiu por meio da adaptação de debates presentes na imprensa fluminense da época, pela sátira religiosa e política, e pela recriação de temas e personagens do repertório francês encenado no palco do São Pedro de Alcântara. O segundo capítulo, "A Festa Religiosa, a Polícia e as Leis Civis em O Judas em Sábado de Aleluia", estuda, primeiramente, os elementos textuais e cômicos da peça. Em seguida, discute a presença da festa do Sábado de Aleluia como pano de fundo do enredo. Por fim, se dedica à análise do conteúdo social de O Judas em Sábado de Aleluia, que, por meio da sátira política, denuncia a ação corrupta e o abuso de autoridade cometidos por membros da Guarda Nacional, e o desrespeito das leis civis do Império, instituídas pelo Artigo 179 da Constituição de 1824. O terceiro capítulo, "As Irmandades Religiosas e a Maçonaria em Os Irmãos das Almas: uma busca dos direitos dos homens", examina a composição formal da peça, a presença dos recursos cômicos e sua temática de conteúdo social, que satiriza as irmandades religiosas e a maçonaria na capital do Império. Contemporaneamente à comédia Os Irmãos das Almas, os preceitos da maçonaria eram debatidos pelos cronistas da imprensa diária e pela peça Os Dois Francos-Maçons, tradução da obra francesa Les Deux Francs-Maçons (1808), de Pelletier-Volméranges, representada no palco do São Pedro de Alcântara. Assim, defendemos que, utilizando o registro farsesco, Martins Pena reinterpreta o tema da maçonaria, conhecido por sua plateia, e lhe confere novos significados, recriando-o no contexto do Rio de Janeiro. O quarto capítulo, "O Impacto do Melodrama em O Noviço: paródia e sátira", analisa os elementos dramáticos, os recursos cômicos e a temática social da peça, que satiriza a autoridade desempenhada pela Igreja, instituição tradicional no Rio de Janeiro, e o patronato, sustentado pelo Estado Imperial. O capítulo discute também o
8 impacto do melodrama francês, amplamente encenado no palco do São Pedro de Alcântara, na composição de O Noviço, que parodia elementos do melodrama romântico Fabio le Novice (1841), de Charles Lafont e Noël Parfait. Em Na Tapera de Santa Cruz, Vilma Arêas destacou que a pintura de "um quadro geral do teatro no Brasil sob a perspectiva do espetáculo, condições de encenações, tipos de público, espetáculos populares, etc.", por meio de "um levantamento sistemático do material enterrado nos jornais, revistas ou ficção"18 do século XIX, possibilitaria apreciações adequadamente enquadradas da obra de um dramaturgo oitocentista. É essa abordagem que norteou este estudo da produção cômica de Martins Pena, o São Pedro de Alcântara, seu repertório, artistas e ideias teatrais. Isso nos permitiu lançar novos olhares sobre aquele que é considerado, pela historiografia literária, o criador da comédia nacional de costumes, partindo de uma proposta que o coloca em diálogo direto com a atividade teatral praticada no Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX, "em uma época em que o povo pede teatro, e é todo teatro".19
18 ARÊAS, 1987, p. 263. 19 A Reforma, 10 de janeiro de 1852.
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CAPÍTULO 1
MARTINS PENA, O TEATRO DE SÃO PEDRO DE ALCÂNTARA E A IMPRENSA: CAMINHOS QUE SE CRUZAM
ANINHA: – Mas então o que é que há lá tão bonito? JOSÉ: – Eu te digo. Há três teatros, e um deles maior que o engenho do capitão-mor. ANINHA: – Oh, como é grande!1
1 A Trajetória do Teatro de São Pedro de Alcântara
Quando Martins Pena surgiu na cena teatral da capital do Império, em 1838, o Teatro de São Pedro de Alcântara figurava entre os principais centros de entretenimento dos habitantes fluminenses, juntamente com os pequenos e médios teatros particulares, e com as igrejas, que abrigavam festas religiosas populares em seus contornos. Ao longo da primeira metade do século XIX, o São Pedro de Alcântara, cuja história é marcada por frequentes incêndios, reconstruções e alterações em sua denominação, ocupou espaço de destaque na Corte brasileira. Criado por ordem do Estado, foi em seu palco que, a partir da década de 1830, o ator João Caetano dos Santos (1808- 1863) representou os grandes sucessos do repertório neoclássico e romântico europeu; sua plateia assistiu às peças dos primeiros dramaturgos brasileiros – as tragédias de Gonçalves de Magalhães e as comédias de Martins Pena –; companhias dramáticas francesas, espanholas, inglesas e italianas ali aportaram para longas temporadas de sucessos. Desde a sua criação, o São Pedro de Alcântara manteve um caráter oficial e monarquista, visível em suas denominações, nos programas de seus espetáculos – que incluíam o hino nacional e os elogios dramáticos em homenagem à Família Imperial –, e
1 PENA, Martins. "O Juiz de Paz da Roça". In: Teatro de Martins Pena: comédias. Vol. I. Edição crítica por Darcy Damasceno. Rio de Janeiro: MEC: INL, 1956, p. 30.
11 em seu repertório, repleto de dramas históricos e melodramas alusivos às realezas europeias. Muito mais que um espaço privilegiado de entretenimento e reunião social,2 o teatro desempenhava também um importante papel político de legitimação do Estado Monárquico brasileiro. Antes de tratarmos do período áureo do São Pedro de Alcântara, quando Martins Pena estreou as suas comédias, entre a Regência e os primeiros anos do reinado de D. Pedro II, voltemos ao início, ao momento de sua criação na Corte de D. João VI.
1.1 De Real Teatro de São João a Teatro de São Pedro de Alcântara: história, repertório e companhias teatrais
Em 1808, D. João VI aportou no Rio de Janeiro, trazendo consigo a Corte portuguesa, que acrescentava 20 mil novos habitantes na cidade que, até então, contava com 60 mil.3 Aos poucos, a Família Real e sua Corte investiram em infraestruturas que buscaram organizar e moldar, na cidade tropical, uma capital de Império à europeia. Entre os assuntos em pauta na agenda modernizadora do Estado, estava uma revisão na política cultural, principalmente no que se referia ao divertimento público oferecido pelos teatros.4 Na época, havia uma casa de espetáculos no Rio de Janeiro: o teatro de Manuel Luís. No entanto, devido ao pequeno porte e aos parcos recursos de que dispunha, esse teatro não atendia à demanda de uma cidade que se tornara a sede do Império português. Por isso, em decreto de 28 de maio de 1810, D. João VI reconheceu a necessidade da construção de um teatro de grandes dimensões, que oferecesse entretenimento à Corte portuguesa que ali se instalara, de modo semelhante aos espetáculos teatrais oferecidos pelo Real Teatro de São Carlos, em Lisboa:
2 Segundo Ubiratan Machado, o público frequentava o São Pedro de Alcântara por razões variadas: pelo entretenimento e evasão, pelo puro diletantismo e moda, ou, ainda, pela afirmação de sua classe social. (Cf. MACHADO, Ubiratan. A Vida Literária no Brasil Durante o Romantismo. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2001, p. 283). 3 Cf. SCHWARCZ, Lilia Moritz. As Barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 35-36. 4 Cf. CAFEZEIRO, Edwaldo & GADELHA, Carmem. História do Teatro Brasileiro: um percurso de Anchieta a Nelson Rodrigues. Rio de Janeiro: Editora UFRJ: EDUERJ: FUNARTE, 1996, p. 112-113.
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DECRETO de 28 de maio de 1810 Permite que se erija um teatro nesta Capital. Fazendo-se absolutamente necessário nesta capital que se erija um teatro decente, e proporcionado à população, e ao maior grau de elevação e grandeza em que hoje se acha pela minha residência nela, e pela concorrência de estrangeiros e de outras pessoas que vêm das extensas províncias de todos os meus Estados, fui servido encarregar o Doutor Paulo Fernandes Viana, do meu Conselho e Intendente Geral da Polícia, do cuidado e diligência de promover todos os meios para ele se erigir.5
Um terreno em frente à Igreja da Lampadosa foi escolhido como o local que acolheria o teatro protegido pelo Rei português, e denominado, em sua homenagem, Real Teatro de São João. O financiamento não foi exclusivamente estatal; uma parte dos custos foi assumida pelo empresário Fernando José de Almeida, que cedeu o terreno e, por isso, tornou-se o proprietário do teatro até 1829, ano de sua morte.6 Em 1811, objetivando arrecadar fundos para a finalização da obra, o Estado autorizou uma loteria,7 dentre as que estavam previstas no decreto de 1810.8 Esta seria a primeira das inúmeras loterias que, a partir de então, tornar-se-iam a principal subvenção estatal ao teatro, destinando-lhe 12% dos prêmios pagos pelos jogos.9 Inicialmente, o teatro estava autorizado a ofertar loterias mensais. Contudo, durante o Segundo Reinado, as subvenções diminuíram: o governo passou a conceder ao São Pedro de Alcântara apenas quatro loterias anuais, totalizando uma renda de três contos e 600 mil réis mensais.10 Em 1813, com o teatro edificado, só faltavam artistas para nele representar. A companhia dramática portuguesa de Mariana Torres foi contratada para se apresentar, exclusivamente, no teatro recém-construído.11 O espetáculo de inauguração do Real Teatro
5 "Decreto de 28 de maio de 1810". In: Coleção das Leis do Brasil de 1810. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1891, p. 112. 6 Cf. SOUSA, 1960, vol. I, p. 139. 7 "Participamos ao público que, para continuação do Real Teatro de S. João, que se está edificando nesta cidade e Corte do Rio de Janeiro, foi o Príncipe Regente nosso Senhor servido, a representação do Intendente Geral da Polícia, conceder uma loteria". (Gazeta do Rio de Janeiro, 09 de março de 1811). 8 "(...) depois que entrar a trabalhar, para seu maior aceio, e mais perfeita conservação, se lhe permitirão seis loterias, segundo o plano que eu houver de aprovar, a benefício do mesmo teatro". ("Decreto de 28 de maio de 1810". In: Coleção das Leis do Brasil de 1810, 1891, p. 112). 9 A informação sobre o porcentual de lucro obtido pelo teatro, a partir das loterias que concedia, foi localizada em artigo publicado pela Gazeta do Rio de Janeiro a 11 de maio de 1816. 10 Informação veiculada pelo Jornal do Commercio, em 12 de setembro de 1850. 11 Os seguintes artistas integravam essa companhia dramática: Maria Amália da Silva, Estela Joaquina de Morais Paiva, Maria Cândida de Souza, Victor Porfírio de Borja, Antônio José Pedro, José Evangelista da Costa e Domingos Botelho. (Cf. CAFEZEIRO & GADELHA, 1996, p. 115).
13 de São João, que contou com a presença do Imperador D. João VI e de sua família, ocorreu a 12 de outubro de 1813, com muita pompa. O programa, composto especialmente para a noite de gala, apresentou o drama lírico O Juramento dos Numes, do português Gastão Fausto da Câmara Coutinho (1772-1852), como nos narra uma crônica publicada pela Gazeta do Rio de Janeiro:
Terça-Feira 12 do corrente, dia felicíssimo por ser o natalício do sereníssimo senhor D. Pedro de Alcântara, Príncipe da Beira, se fez a primeira representação no Real Teatro de S. João, a qual S. A. R. foi servido honrar com a sua real presença e a sua augusta família. Este teatro, situado em um dos lados da bela praça desta Corte, traçado com muito gosto e construído com a magnificência ostentava naquela noite uma pomposa perspectiva, não só pela presença já mencionada de S. A. R., e pelo imenso e luzido concurso de nobreza, e das outras classes mais distintas, mas também pelo aparato de formosas decorações, e pela pompa do cenário. Começou o espetáculo por um drama lírico, que tem por título O Juramento dos Numes composto por D. Gastão Fausto da Câmara Coutinho, e alusivo à comédia, que se devia seguir. Este drama era adornado com muitas peças de música de composição de Bernardo José de Souza e Queirós, mestre e compositor do mesmo teatro, e com danças engraçadas nos seus intervalos. Seguiu-se a aparatosa peça intitulada Combate do Vimeiro. A iluminação exterior do teatro, ordenada com esquisito gosto, realçava o esplendor do espetáculo. Ela representava as letras J. P. R. alusivas ao augusto nome do Príncipe Regente nosso senhor, cuja mão liberal protege as artes como fontes perenes da riqueza e da civilização das nações.12
D. João VI e sua família compareciam com frequência ao teatro, especialmente em dias festivos, como no espetáculo em comemoração ao casamento de D. Pedro de Alcântara com Carolina Josefa Leopoldina, Arquiduquesa austríaca, em agosto de 1817. A presença do governante supremo em récitas no teatro perdurou ao longo do século XIX, incluindo o reinado de D. Pedro I e, principalmente, o de D. Pedro II. A partir do Segundo Reinado, as datas comemoradas em espetáculos de gala no teatro foram ampliadas: além dos nascimentos, casamentos e aniversários de membros da Família Imperial, dias religiosos e históricos, como o do Ano-Bom (01 de janeiro) e o da Independência, passaram a integrar a agenda. Os programas desses espetáculos especiais recebiam grande atenção da direção do teatro, que privilegiava o repertório lírico. Durante a semana comemorativa à coroação de D. Pedro II, foi oferecido, a 19 de julho de 1841, um espetáculo repleto de
12 Gazeta do Rio de Janeiro, 16 de outubro de 1813.
14 pompa, descrito por um privilegiado espectador, em correspondência enviada ao Diário do Rio de Janeiro:13
O teatro de S. Pedro de Alcântara, na noite de 19 do corrente, oferecia à vista a mais encantadora, a pompa e a magnificência com que estava preparado, o brilho que lhe dava as inumeráveis famílias ricamente adornadas que estavam nos camarotes, tudo contribuiu para o tornar digno de receber a augusta personagem que o honrou! Foi com o 1º ato da ópera A Italiana em Argel, e com o novo baile O Amigo Fiel, que a direção festejou o majestoso ato da sagração e coroação de S. M. I. Não cabe à nossa mesquinha pena descrever a alegria e entusiasmo que se divisava no grande número de espectadores que aí concorreram e que esperavam com ansiedade o momento de verem o seu anjo salvador, o guarda de suas leis, o defensor de seus direitos! Apenas as músicas marciais anunciaram a chegada de S. M. I. e de suas augustas irmãs, divisou-se no semblante de todos o prazer e o desejo de verem e saudarem o monarca americano! Logo que S. M. I. e suas augustas irmãs apareceram na Imperial tribuna, romperam os vivas de todos os lados, seguindo-se diversas poesias, que foram recitadas de diferentes camarotes, todas em louvor e glória ao chefe do Império de Santa Cruz!14
De sua inauguração até o final da década de 1820, o repertório do Real Teatro era composto por peças portuguesas, trazidas pela companhia de Mariana Torres, e por óperas clássicas italianas, como A Vestal (La Vestale, 1810) e A Caçada de Henrique IV (La Caccia di Enrico IV, 1809), de Vincenzo Pucitta (1778-1861), e La Cenerentola (1817), de Gioachino Rossini (1792-1868).15 Os programas se constituíam por uma peça principal, que poderia ser uma comédia – no repertório constava Dever e Natureza, do comediógrafo português Antônio Xavier Ferreira de Azevedo (1784-1814) –, ou uma tragédia neoclássica – Nova Castro (1788), de João Batista Gomes Júnior (?-1803), foi muito encenada –, ou uma ópera lírica. Entre os atos da peça principal era apresentado um
13 Os espectadores cariocas enviavam cartas aos redatores dos periódicos, nas quais emitiam opiniões espontâneas sobre diversas questões envolvendo a atividade teatral, como a administração das casas de espetáculos, o preço dos bilhetes, a atuação dos artistas e o repertório exibido pelos programas. As cartas não eram assinadas com o nome verdadeiro dos remetentes. Estes preferiam o anonimato, anotando apenas as iniciais do nome ou criando pseudônimos, tais como "Um verdadeiro fluminense", "O respeitador do mérito" e "O diletante". 14 Diário do Rio de Janeiro, 28 de julho de 1841. 15 As traduções de tais óperas eram comercializadas pela loja da Gazeta, que vendia por 800 réis cada exemplar, como nos indica o anúncio publicado pela Gazeta do Rio de Janeiro a 11 de outubro de 1820: "A Vestal, tragédia que está em cena no Real Teatro de S. João, se acha impressa em português, e se vende na loja da Gazeta por 800 réis".
15 entremez,16 um dançado ou uma pantomima, desempenhados pela companhia de baile dirigida por Lourenço Lacombe, que tinha Auguste Toussaint como primeiro dançarino. Os bailados eram musicados por Marcos Portugal (1762-1830), o músico-compositor do teatro. Em 25 de março de 1824, o teatro sofreu o primeiro incêndio devastador, o que levou o Estado Imperial a interferir ainda mais em sua administração e na organização dos espetáculos. D. João VI, em alvará de 10 de maio de 1808, havia criado a Intendência Geral de Polícia, que tinha como atribuição, dentre outras, a de fiscalizar os espetáculos teatrais. Após o incêndio, Francisco Alberto Teixeira de Aragão – Intendente Geral de Polícia da Corte entre 1824 e 1827 – regulamentou a inspeção do teatro no edital interventivo de 29 de novembro de 1824, que traçava deveres institucionais e normas de conduta a serem adotados, obrigatoriamente, pelo diretor do teatro e espectadores. O conjunto de 19 normas elencadas no documento demonstrava a necessidade de medidas de segurança e da presença de autoridade policial durante os espetáculos:
Faço saber que sendo conveniente ao bem público estabelecer e regular as medidas de segurança e polícia que devem observar-se em todos os teatros que nesta capital se instituírem, para evitar deste modo as desordens e irregularidades que privam os povos da utilidade que este divertimento deve produzir-lhes quando é bem ordenado; e imitando nesta parte as providências que as nações mais civilizadas da Europa tem adotado, ordeno que no teatro se executem os seguintes artigos (...).17
Os artigos exigiam que o Real Teatro, e todos os que futuramente fossem construídos na capital do Império, se munissem dos equipamentos necessários ao combate de incêndio e que iniciassem os espetáculos, pontualmente, no horário anunciado ao público. Aos espectadores, era proibida a entrada na plateia portando armas, bengalas e chapéus de chuva, assim como, proibia-se qualquer barulho que atrapalhasse a
16 De origem ibérica, o entremez (do espanhol entremés) trata-se de uma peça teatral breve, com personagens populares, tom gracioso e, por vezes, musicada, encenada entre os atos de uma peça maior. Sobre a entrada dos entremezes nos palcos brasileiros, consultamos LEVIN, Orna Messer. "A rota dos entremezes: entre Portugal e Brasil". In: ArtCultura (UFU), vol. 7, p. 09-20, 2006; LEVIN, Orna Messer. "O entremez nos palcos e folhetos". In: ABREU, Márcia & SCHAPOCHNIK, Nelson (Orgs.). Cultura Letrada no Brasil: objetos e práticas. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2005, p. 413-420. 17 Diário do Rio de Janeiro, 01 de dezembro de 1824.
1 representação das peças. Ademais, os espetáculos seriam vigiados por um oficial de polícia, que deveria ser obedecido por todos:
Haverá na plateia um Oficial da Intendência Geral da Polícia, que se fará conhecer, quando for necessário, por uma medalha com a inscrição POLÍCIA DO TEATRO. Toda pessoa, sem exceção, deve obedecer provisoriamente ao Oficial de Polícia; e por isso, quando este intimar a alguém que saia da plateia, o deve imediatamente fazer, apresentando-se ao Ministro Inspetor a expor-lhe as circunstâncias e razões do acontecimento sobre o que o dito Ministro dará providências.18
Algumas medidas do edital, que vigorou por longo período nos teatros da Corte, foram regulamentadas pelas leis do Império. O Capítulo I da lei nº 261 de 03 de dezembro de 1841, que reformava o Código do Processo Criminal, reorganizou as atividades incumbidas à polícia da Corte. Dentre as competências da instituição policial, estava a inspeção dos teatros:
Art. 4º. Aos Chefes de Polícia em toda a Província e na Corte, e aos seus Delegados nos respectivos Distritos, compete: (...) § 6º Inspecionar os teatros e espetáculos públicos, fiscalizando a execução de seus respectivos Regimentos, e podendo delegar esta inspeção, no caso de impossibilidade de a exercerem por si mesmos, na forma dos respectivos Regulamentos, às Autoridades Judiciárias, ou Administrativas dos lugares.19
A autoridade policial vistoriava os teatros para impedir desordens e agrupamentos políticos contrários à ordem monárquica. Martins Pena via com maus olhos a presença da polícia no teatro; acreditava que tal procedimento eliminava a elegância e a civilidade pretendida pelos espetáculos teatrais, provocando situações constrangedoras aos espectadores. O autor comentou o assunto, por diversas vezes, em seus folhetins no Jornal do Commercio, nos quais criticava, com frequência, o comportamento inapropriado dos pedestres – representantes do baixo escalão da polícia civil –, responsáveis por impedir agitações nos teatros, além de policiar ruas e capturar escravos fugidos:
18 Diário do Rio de Janeiro, 01 de dezembro de 1824. 19 "Lei nº 261 de 03 de dezembro de 1841 - Reformando o Código do Processo Criminal". In: Coleção das Leis do Império do Brasil de 1841. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1842, p. 101-102.
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Os pedestres e todos os perdigueiros policiais escolhem o caminho mais curto, e como não é sempre este o que tomam os criminosos, segue-se que desta vez ainda se desencontram; mas como os agentes policiais hão de por força agarrar, porque é seu ofício, os ditos pedestres engalfinharam-se a um pobre e inocente homem que tranquilo descia do seu camarote, e o levaram à presença do juiz que, conhecendo o engano, o mandou soltar.20
Após a reconstrução do edifício, destruído pelas chamas do incêndio de 1824, o teatro foi reinaugurado a 04 de abril de 1826, como Imperial Teatro de São Pedro de Alcântara, em homenagem a D. Pedro I. O teatro se manteve fechado em abril de 1831, devido às agitações políticas decorrentes do retorno do Imperador a Portugal. Reabriu em 03 de maio do mesmo ano, rebatizado como Teatro Constitucional Fluminense. Nessa fase, apresentava-se em seu palco uma companhia dramática lisboeta que aportara no Rio de Janeiro em julho de 1829, trazendo artistas como a trágica e primeira dama Ludovina Soares da Costa,21 seu irmão, o ator cômico Manoel Soares (?-1859), e ainda, José Joaquim de Barros (?-1844) e Gertrudes Angélica da Cunha.22 Integravam o repertório dessa companhia os elogios dramáticos, que vangloriavam o regime monárquico e a situação política brasileira, como O Memorável Dia Sete de Abril no Campo da Honra ou A Nova Regeneração do Brasil, e os entremezes portugueses, a exemplo de A Parteira Anatômica, de Antônio Xavier, e O Chapéu Pardo. Além da companhia dramática e do corpo de baile, uma companhia lírica italiana representava óperas clássicas no palco do Constitucional. A partir de 1834, uma nova fase se iniciou no Constitucional. João Caetano assumiu o comando da companhia dramática do teatro – composta por artistas portugueses e brasileiros –, e passou a introduzir o repertório romântico europeu, constituído, principalmente, por dramas históricos e melodramas franceses, portugueses e espanhóis, tais como Catarina Howard (Catherine Howard, 1834), de Alexandre Dumas Pai (1802- 1870), Os Sete Infantes de Lara (Les Sept Infants de Lara, 1836), de Félicien Mallefille
20 PENA apud SOUZA, Silvia Cristina Martins. As Noites do Ginásio: teatro e tensões culturais na Corte (1832-1868). Campinas, SP: Editora da UNICAMP: CECULT, 2002, p. 164-165. 21 Ludovina Soares da Costa (1802-1868) acumulou grandes glórias no teatro brasileiro da primeira metade do século XIX. No palco do São Pedro de Alcântara, onde permaneceu por vários anos, encantou a plateia carioca e construiu sólida carreira como protagonista de tragédias e dramas históricos, sempre ao lado de João Caetano. 22 Gertrudes Angélica da Cunha (1794-1850), além de atriz, foi também autora de peças: compôs a tragédia Norma e as farsas A Mudança de Sexo ou Quanto Podem As Boas Maneiras, O Noivo do Algarve ou Astúcias de Dois Ladinos e A Atriz, todas encenadas no São Pedro de Alcântara. (Cf. SOUSA, vol. II, 1960, p. 202).
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(1813-18 8 , Um Auto de Gil Vicente (1838 , de Almeida Garrett (1799-1854), e A Conjuração de Veneza (La Conjuración de Venecia, 1830), de Francisco Martínez de la Rosa (1789-1862).23 Esse repertório marca não somente a trajetória artística de João Caetano nos palcos do Rio de Janeiro, mas também uma etapa de representações no principal teatro da Corte que, em julho de 1837, foi nomeado, definitivamente, Teatro de São Pedro de Alcântara.
1.2 O Ator João Caetano e os Diletantes
O período áureo dos espetáculos no São Pedro de Alcântara teve início com a chegada de João Caetano na supervisão da companhia dramática do teatro, em 1834. A boa fase adentrou a década de 1840, quando Luiz Manuel Álvares de Azevedo e José Antônio Tomás Romeiro foram os diretores da casa de espetáculos.24 Em 1851, João Caetano retornou como administrador e primeiro ator da companhia dramática, mantendo-se no São Pedro de Alcântara até a sua morte, em 1863. Ao longo desses 12 anos, o ator-empresário revigorou os espetáculos e os programas, representando peças europeias inéditas, como Os Nossos Íntimos (Nos Intimes, 1861), do francês Victorien Sardou (1831-1908), e obras de autores brasileiros, a exemplo de O Fantasma Branco (1851), Cobé (1859) e Amor e Pátria (1859), de Joaquim Manuel de Macedo, e de outros dramaturgos, atualmente desconhecidos e não canonizados. A trajetória de João Caetano, desde os primeiros anos do decênio de 1830 até 1863, se confunde com a própria história do teatro no Rio de Janeiro. Em 02 de dezembro de 1832, ele estreou profissionalmente no Teatro Niteroiense25 com uma companhia
23 Sobre o repertório romântico encenado por João Caetano no Constitucional Fluminense, futuro São Pedro de Alcântara, e em outros teatros cariocas, consultamos a biografia do ator, redigida por Décio de Almeida Prado. (PRADO, Décio de Almeida. João Caetano: o ator, o empresário, o repertório. São Paulo: Perspectiva: Edusp, 1972, p. 35-52). 24 Na época, o diretor de teatro exercia múltiplas tarefas: ele era o responsável pela seleção do repertório a ser encenado, submetia as peças à censura do Conservatório Dramático Brasileiro, fiscalizava as receitas dos espetáculos e os preços dos bilhetes. 25 O Teatro Niteroiense, edificado em Niterói no ano de 1827, foi reformado na década de 1840 por iniciativa de João Caetano que, como recompensa, obteve o direito de usufruí-lo por 12 anos. A reinauguração ocorreu
19 dramática composta integralmente por artistas brasileiros. Fato considerado primordial para a consolidação do teatro nacional, pelo menos em relação aos artistas, já que, até então, duas companhias dramáticas inteiras haviam sido importadas de Portugal. O público carioca honrava os trabalhos artísticos de João Caetano, devido à sua iniciativa pioneira que contribuíra para o desenvolvimento do teatro brasileiro:
Era justamente nesse tempo em que a populosa cidade do Rio de Janeiro, para ter espetáculos dramáticos, mandava engajar artistas, que (salvos as honrosas exceções) eram pessoas inábeis e grande parte daqueles que no teatro de Lisboa não passavam de puxadores de vistas, iluminadores etc. (...) Sim, hoje, 02 de dezembro de 1852, fazem 20 anos que nasceu a nossa companhia dramática nacional, festejando nesse dia o 7º aniversário natalício de S. M. o Imperador, o Sr. D. Pedro II, em um pequeno teatro na Vila Real da Praia Grande (hoje cidade de Niterói) no mesmo local em que está edificado o Teatro de Santa Tereza. Um jovem brasileiro sem literatura, sem vastos conhecimentos, entendeu que o querer era poder, pondo-se à testa da revolução dramática do seu país como agente principal na sua realização começou a obra da reforma, e nós sabemos quanto de então para cá tem havido de saliente, de harmônico e de progressivo, estendendo este jovem os benefícios dessa revolução até às nossas províncias, por onde hoje se acham disseminados imensos de seus discípulos.26
Dois anos após a estreia profissional, João Caetano se instalou no São Pedro de Alcântara e organizou uma nova companhia dramática, incluindo os artistas brasileiros que já o acompanhavam e alguns portugueses que ali permaneceram e não se transferiram para o Teatro da Praia de D. Manuel, futuro Teatro de São Januário.27 A Companhia Nacional, como foi chamada, encenava um repertório neoclássico e romântico, de origem ibérica e francesa. Além do repertório estrangeiro, João Caetano abriu espaço para as peças de dramaturgos brasileiros: foi sob a sua direção que estrearam as tragédias Antônio José ou O
a 02 de dezembro de 1842 e o teatro passou a ser denominado Teatro de Santa Tereza, em homenagem à noiva de D. Pedro II, a princesa Tereza Cristina Maria de Bourbon. (Cf. HESSEL, Lothar & RAEDERS, Georges. O Teatro no Brasil sob Dom Pedro II. Porto Alegre: Ed. da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1979, p. 285-286). 26 Diário do Rio de Janeiro, 02 de dezembro de 1852. 27 Em 1833, a companhia dramática de Ludovina Soares erigiu, com apoio governamental, o Teatro da Praia de D. Manuel. No ano seguinte, muitos artistas portugueses, que se apresentavam no Constitucional Fluminense, se transferiram para o novo teatro. Quatro anos depois, a casa de espetáculos se transformou no Teatro de São Januário, em homenagem à princesa Januária Maria, filha de D. Pedro I. Na década de 1840, o teatro esteve sob a direção de João Caetano que, além de diretor, também atuava na companhia dramática. (Cf. HESSEL & RAEDERS, op. cit., p. 279).
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Poeta e A Inquisição (1838) e Olgiato (1839), de Gonçalves de Magalhães, e as comédias O Juiz de Paz da Roça (1838) e A Família e A Festa da Roça (1840), de Martins Pena. Segundo Décio de Almeida Prado, a técnica de representação de João Caetano era embasada na escola do melodrama, caracterizada pela intensa comunicação com o público e por efeitos emocionais:
A escola do melodrama teve grande importância na formação de João Caetano, explicando as suas qualidades, a fácil e intensa comunicação com o público, e também os seus defeitos, a tendência para o exagero, a busca do patético a qualquer custo. Era uma representação extrovertida, solta, explicitada, de intenções marcadas, de gestos largos, de efusões emocionais, de arroubos oratórios, sem preocupação com a elegância ou com a pureza estilística, romântica na medida em que a espontaneidade e a autenticidade do sentimento contavam mais do que os requintes da técnica.28
Com sua técnica de atuação, que lhe permitiu eternizar no palco os protagonistas de melodramas e dramas românticos, João Caetano acumulou glórias e encantou os diletantes, que enviavam inúmeras correspondências à imprensa, declarando grande admiração pelo ator. Em 1852, um diletante publicou no periódico Diário do Rio de Janeiro um poema dedicado a João Caetano:
Soneto improvisado no Teatro de São Januário, no dia 20 do corrente, e dedicado ao Sr. João Caetano dos Santos.
Se um nome não tivesses conquistado Que não teme o poder do tempo insano, Este dia bastara (eu não me engano) Para dar-te valor, tornar-te amado.
No Kean tu fizeste admirado; Em Otelo sondaste divo arcano; Mas hoje com poder além de humano Te mostras um artista consumado.
Ah! Não temas, não temas zoilo infame Que busca marear teu brilhantismo, Embora, qual possesso, irado clame.
28 PRADO, 1972, p. 116. Sobre as técnicas interpretativas adotadas por João Caetano, consultamos também a obra João Caetano e A Arte do Ator, de Décio de Almeida Prado. (PRADO, Décio de Almeida. João Caetano e A Arte do Ator. São Paulo: Ática, 1984).
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Despreza as pretensões do pedantismo; Um nobre, um santo orgulho hoje te inflame, Que és rei da cena, e causas fanatismo. Por J. A. C.29
João Caetano também era apreciado pelos críticos teatrais que escreviam folhetins veiculados pela imprensa. Ao destacar os méritos do ator, os cronistas não deixavam de desaprovar a sua postura cênica, tida como exagerada:
Eis o nosso predileto ator! É o melhor que temos tido e, talvez, tão cedo não tenhamos outro igual. Tudo que nele admiramos é natureza! Sua figura é esbelta, seu pisar, elegante, seus acionados, tão magníficos como o som de sua voz cadente e forte; veste-se sempre bem e à caráter; em certos papéis interessa-se tanto, que toca a meta do sublime; entretanto, exagera algumas vezes o caráter das personagens que tem a imitar, cometendo assim um grave erro.30
As manifestações públicas de espectadores e críticos não se limitavam aos temas acerca da atuação de João Caetano nos palcos; fora deles, o ator protagonizou diversas intrigas, polêmicas e competições teatrais, que dividiram, na imprensa, seus simpatizantes e oponentes. A sua demissão do São Pedro de Alcântara, em janeiro de 1841, motivada devido aos desentendimentos com Luiz Manuel Álvares de Azevedo, o diretor do teatro, foi o estopim para uma longa contenda nas páginas dos periódicos da Corte: vários artigos de cronistas e correspondências de espectadores trataram da questão.31 A crônica "Trovoada Teatral" narra o tumulto provocado pelos simpatizantes de João Caetano, durante o espetáculo ocorrido a 24 de janeiro de 1841, no São Pedro de Alcântara. Na ocasião, o ator Germano Francisco de Oliveira havia sido escalado para desempenhar o papel principal – que sempre fora de João Caetano – no drama romântico Os Dois Renegados (1839), do português José da Silva Mendes Leal (1820-1886):
(...) rebentou a estrepitosa trovoada – Fora o ator Germano! Venha o ator João Caetano que está em casa pronto para representar! Foram os altos gritos ouvidos por espaço de meia hora no meio da mais violenta pateada. (...) a pateada
29 Diário do Rio de Janeiro, 22 de junho de 1852. 30 O Bodoque Mágico, 10 de maio de 1851. 31 A imprensa não era apenas um meio de divulgação e crítica teatral, mas também um espaço privilegiado de contendas. Os espectadores e, até mesmo os próprios artistas, emitiam suas opiniões e travavam extensas discussões, em cartas publicadas pelos periódicos.
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continua cada vez mais viva, os foras se reproduzem e as moedas de 40 rs. chovem em abundância sobre o tablado onde se acharam mudos e quedos os infelizes e inculpados atores. (...) o alarido continuou, a desordem progrediu. Ordenaram então as autoridades que descesse o pano e se desse por findo o espetáculo (...). Frustrados assim os seus mais caros desejos, que eram de fazer vir à cena o Talma do Rocio, os admiradores deste gênio entenderam dever vingar-se por qualquer modo: pagou então o pobre lustre as custas, quebrando-lhe uns poucos vidros; as cadeiras sofreram também estrago; os candeeiros dos corredores igualmente mereceram a pública atenção (...).32
Após a "trovoada" no teatro, os simpatizantes de João Caetano organizaram um abaixo-assinado pedindo a sua readmissão pelo São Pedro de Alcântara. Mas de nada adiantou. Juntamente com alguns artistas que o seguiram, o "Talma do Rocio" formou uma nova companhia dramática que passou a se apresentar no Teatro de São Francisco.33 Na segunda metade do decênio de 1840, o ator acumulou a direção do Teatro de São Januário e do Teatro de Santa Tereza. Retornaria ao São Pedro de Alcântara somente em 1851.
1.3 Os Espetáculos do Teatro de São Pedro de Alcântara: a plateia, os bilhetes e os cambistas
Os espetáculos no São Pedro de Alcântara se iniciavam em torno das 19h30 ou 20h00, estendendo-se até a meia-noite. As sextas, sábados e domingos eram os dias típicos de espetáculos, mas também havia representações ao longo da semana, em dias alternados. O teatro oferecia, aproximadamente, 10 programas mensais. Essa quantidade quase duplicava quando uma companhia lírica italiana era contratada. Esta revezava as encenações, igualmente, com a companhia dramática permanente do São Pedro de Alcântara.
32 Diário do Rio de Janeiro, 03 de fevereiro de 1841. 33 O francês Jean Victor Chabry inaugurou, em 1832, o Teatro de São Francisco, localizado na Rua São Francisco de Paula. Na década de 1840, João Caetano reformou o teatro e o revitalizou na cena teatral da Corte, oferecendo espetáculos semanais. Em 1851, o ator Florindo Joaquim da Silva ali organizou uma nova companhia dramática, com atores demitidos do São Pedro de Alcântara. Sua companhia se apresentou até outubro de 1852. Depois, em 1855, o teatro transformou-se no Ginásio Dramático e permaneceu, até 1861, sob a direção de Joaquim Heliodoro Gomes dos Santos. (Cf. HESSEL & RAEDERS, 1979, p. 279).
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O teatro almejava ser o centro do bom entretenimento na Corte. Por isso, em outubro de 1838, os administradores fecharam as suas portas para reformas de ampliação e decoração. A quantidade de camarotes foi aumentada, e uma seção com cadeiras, instalada. Após as melhorias, o São Pedro de Alcântara passou a oferecer 23 camarotes de primeira ordem, 22 de segunda, 26 de terceira, 30 de quarta, 235 cadeiras e 130 lugares na plateia.34 A reabertura ocorreu a 07 de setembro de 1839, quando o teatro já estava em mãos de particulares, dividido em inúmeras ações vendidas a acionistas cariocas, dentre eles o próprio João Caetano, que investia cada vez mais em sua carreira empresarial. No dia anterior à reinauguração, um cronista publicou suas impressões da sala, cuja decoração era digna das grandes casas de espetáculos europeias:
O teto é admirável de composição, de formas e colorido. As musas em torno do lustre, entregando-se à todos as suas graças e atrativos, formam um variado círculo, à cuja organização e composição presidiu apurado talento. Em torno delas, os bustos dos principais poetas dramáticos e dos mais insignes músicos (...). O pano da base do teatro, assemelhando-se ao dos principais teatros de Paris, é belo e próprio.35
Os espectadores do São Pedro de Alcântara representavam a diversidade da sociedade fluminense do período. O público era constituído por trabalhadores livres (profissionais liberais, assalariados do comércio, funcionários públicos de baixo escalão), pela aristocracia refinada (literatos, diletantes, políticos, famílias com títulos de nobreza e do convívio próximo de D. Pedro II) e, até mesmo, pela própria Família Imperial. O preço variado dos bilhetes, devido aos diferentes tipos de acomodações, possibilitava que os diversos grupos sociais assistissem às récitas, constituindo, assim, uma plateia de composição social heterogênea. Em 1840, estes eram os valores dos bilhetes para um espetáculo no São Pedro de Alcântara: um assento na plateia custava 640 réis; cadeira, um mil réis; camarote de primeira ou terceira ordem, 2.400 réis; e camarote de segunda ordem, 3.200 réis.36 Os preços não permaneceram congelados. Em março de 1845, o diretor Luiz Manuel Álvares
34 Informação obtida em correspondência de um espectador publicada pelo Jornal do Commercio, em 12 de setembro de 1850. 35 Diário do Rio de Janeiro, 06 de setembro de 1839. 36 Valores informados em anúncio teatral veiculado pelo Diário do Rio de Janeiro a 05 de outubro de 1840.
24 de Azevedo aumentou os valores dos bilhetes, usando como justificativa os gastos expressivos com a companhia lírica italiana de Augusta Candiani, que começara a se apresentar no teatro em janeiro de 1844. O reajuste se destinou aos bilhetes de todos os espetáculos oferecidos pelo teatro, tanto os líricos quanto os dramáticos. As vendas de assinaturas, que incluíam 50 espetáculos, recebiam um desconto que variava entre 10% e 20% do valor total, dependendo do tipo de camarote comprado.37 Os preços se mantiveram inalterados até o início de 1851, quando João Caetano assumiu a administração do São Pedro de Alcântara. Nessa época, os valores das cadeiras e da plateia continuaram os mesmos, porém os dos camarotes tiveram um pequeno aumento.38 Comparando as tarifas do São Pedro de Alcântara com as que eram praticadas pelos outros teatros da Corte, percebemos uma diferença apenas nos preços dos camarotes. No Teatro de São Francisco e no Teatro de São Januário, duas importantes salas de espetáculos do Rio de Janeiro, os valores das cadeiras e da plateia geral eram os mesmos cobrados pelo São Pedro de Alcântara: dois mil e um mil réis, respectivamente. Uma pequena variação se dava nos preços dos camarotes, ligeiramente mais baratos no São Francisco e no São Januário. O mesmo pode ser verificado com os valores praticados pelo Teatro Ginásio Dramático, quando este surgiu em abril de 1855: os bilhetes das cadeiras e da plateia custavam dois mil e um mil réis, e os preços dos camarotes também eram inferiores aos do São Pedro de Alcântara.39 No Teatro Provisório, que posteriormente foi renomeado Teatro Lírico Fluminense, onde as companhias italianas passaram a se apresentar a partir de 1852, os bilhetes das cadeiras e da plateia geral custavam, respectivamente, os mesmos dois mil e um mil réis.40 Os valores dos camarotes eram iguais aos do São Pedro de Alcântara, com algumas variações, dependendo da importância do
37 Informação presente no comunicado de Luiz Manuel Álvares de Azevedo, publicado pelo Diário do Rio de Janeiro a 14 de março de 1845. 38 Informação obtida na cláusula sétima do contrato firmado entre João Caetano e o Estado, divulgado na íntegra pelo Jornal do Commercio a 20 de janeiro de 1851. 39 Valores presentes em anúncio teatral veiculado pelo Jornal do Commercio a 08 de abril de 1855. 40 Os bilhetes dos espetáculos circenses também custavam um e dois mil réis, valores praticados, por exemplo, pelo Circo Americano, localizado na Rua da Ajuda.
25 espetáculo: em récitas de gala ou em que estrearia uma nova ópera, os preços eram mais elevados.41 Temos uma dimensão dos valores mencionados, quando os comparamos, por exemplo, com os preços de produtos alimentícios. A arroba42 da carne seca custava 2.800 réis; a de toucinho, 3.200; a do açúcar refinado, quatro mil; a do café, 3.700; a saca43 de arroz, seis mil réis.44 Assim, um bilhete de plateia equivalia a 10 Kg de arroz ou a 5 Kg de carne seca. Dois bilhetes de cadeira valiam o mesmo que, aproximadamente, 15 kg de açúcar refinado. Um bilhete do camarote de quarta ordem do São Pedro de Alcântara, que custava quatro mil réis em 1851, ultrapassava em 300 réis o valor de, quase, 15 Kg de café. Os bilhetes da plateia e das cadeiras, com preços mais baixos que os dos camarotes, poderiam ser adquiridos pelos assalariados do comércio, trabalhadores livres e pequenos funcionários públicos. Conscientes de que precisavam dessa parcela do público, os teatros não alteravam os valores dos bilhetes mais populares. Tal medida garantia que as famílias de baixa renda os frequentassem, pelo menos uma vez por mês, possibilitando as "enchentes" (termo utilizado na época para traduzir "casa cheia") nos espetáculos oferecidos. Porém, nem todos eram bem-vindos ao São Pedro de Alcântara. Os espectadores monarquistas e tradicionalistas se irritavam com a presença dos criados de D. Pedro II, que se sentavam ao lado do Imperador na tribuna. A irritação com os criados chegou a tal ponto que motivou uma advertência publicada pelo Diário do Rio de Janeiro:
Aos Criados de S. M. I. Roga-se aos criados de S. M. I. que tem de ir hoje ao Teatro de São Pedro de Alcântara, acompanhar seu Augusto Amo, tenham a bondade de se não sentarem na tribuna, como costumam fazer, por ser tal procedimento contrário à etiqueta e ao bom senso. Os criados não se sentam em presença dos amos. No tempo do Sr. D. Pedro I nenhum dos criados ousava preterir estas regras de decência e de respeito.45
41 Ver o anexo "Preços dos Bilhetes dos Espetáculos Teatrais no Rio de Janeiro (1840-1855)", que traz uma tabela com os valores dos bilhetes praticados pelos principais teatros da Corte. 42 Uma arroba equivale a 14,69 Kg. 43 A saca equivale a 60 Kg. 44 Valores consultados na seção "Parte Comercial - Pauta Semanal", veiculada pelo Diário do Rio de Janeiro a 18 de novembro de 1850. 45 Diário do Rio de Janeiro, 07 de setembro de 1840.
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A presença de escravos ou libertos também incomodava alguns espectadores, os quais acreditavam que o teatro não era o lugar de servos. O folhetinista de O Guasca na Corte narra, inconformado, um episódio no São Pedro de Alcântara, em que um espectador negro foi hostilizado por membros da plateia:
Existia em um camarote da 4ª ordem um indivíduo de cor preta, com outras pessoas de outras cores, etc., eis que da plateia surdiram gritos de fora, etc., para o dito camarote, que obrigaram o tal indivíduo a retirar-se. Inda repetimos, achamos mui reprovado semelhante proceder dos ditos espectadores... Pois em um país constitucional como o nosso, onde todos são iguais perante a lei, e por consequência com os mesmos direitos, não poderão ir ao teatro os homens de cor preta?46
Esses trechos, recolhidos na imprensa, são indicativos da separação das ordens sociais no interior do São Pedro de Alcântara, o que pode ser comprovado também pelos valores variados dos bilhetes, entre um e 12 mil réis. Na plateia geral e nas cadeiras, se acomodavam os indivíduos de baixa renda, e nos camarotes, as famílias mais abastadas e refinadas. A cada um competia ter a consciência de seu devido lugar. É o que constatamos em uma carta publicada pelo Diário do Rio de Janeiro, na qual seu autor, um frequentador do camarote do São Pedro de Alcântara, roga a João Caetano que suprima os assentos da plateia próximos aos camarotes, para que o público da "parte de baixo" não encarasse as famílias reunidas nos camarotes de primeira ordem:
Teatro de S. Pedro de Alcântara. Com toda a generosidade confirmaremos os elogios que fez o Sr. Progressista na sua publicação do Diário de 07 do corrente, tanto ao Sr. João Caetano, como ao Sr. Sobral; só falta que este rogue àquele para que mande tirar os assentos da plateia que estão próximos aos camarotes, para que se possa por aí transitar livremente; então jactaremos dos melhoramentos para o cômodo público, substituindo aos ditos assentos com aumento de cadeiras, não prejudicará a casa, e evitará que os imprudentes trepados encarem as famílias que se acharem na primeira ordem. O Justo.47
No romance A Moreninha (1844), de Macedo, quando Augusto lê a divertida carta do jovem estudante Fabrício, em que este narra ao amigo sua ida ao São Pedro de Alcântara para "entabular um namoro romântico", ilustra-se perfeitamente o ar aristocrático
46 O Guasca na Corte, 26 de junho de 1851. 47 Diário do Rio de Janeiro, 13 de outubro de 1852.
27 dos camarotes.48 Como lhe interessava uma bela moça pertencente a uma família de condição social elevada, que frequentasse o teatro "quatro vezes no mês", Fabrício nem cogita acomodar-se na plateia; ele se dirige à parte superior, isto é, aos camarotes, para ali encontrar sua parceira romântica ideal:
Mas, enfim, maldita curiosidade de rapaz!... Eu quis experimentar o amor platônico, e dirigindo-me certa noite ao teatro São Pedro de Alcântara, disse entre mim: esta noite hei de entabular um namoro romântico (...). Nessa noite fui para a superior; eu ia entabular um namoro romântico; não podia ser de outro modo. Para ser tudo à romântica consegui entrar antes de todos; fui o primeiro a sentar-me quando ainda o lustre monstro não estava aceso; (...) vi se irem enchendo os camarotes; finalmente eu, que tinha estado no vácuo, achei-me no mundo; o teatro estava cheio. (...) concluí que para portar-me romanticamente, deveria namorar alguma moça que estivesse na quarta ordem.49
Os bilhetes para todos os tipos de assentos (plateia, cadeiras e camarotes) eram vendidos na bilheteria do São Pedro de Alcântara. Os espectadores que não se antecipavam à compra, ficavam à mercê dos cambistas que, na época, agiam na Praça Tiradentes, e esgotavam rapidamente os bilhetes, revendendo-os a preços abusivos. O Estado e a polícia da Corte não conseguiam impedir tal atividade e nem se esforçavam para adotar medidas eficientes de combate. Na imprensa, os críticos teatrais condenavam a ação dos cambistas, a exemplo do cronista de O Bodoque Mágico:
Judas são esses malditos cambistas teatrais que ferram de unha o pobre povo, e atravessam um dos mais inocentes divertimentos públicos, privando a certas classes da sociedade desta honesta e útil distração; por isso, que nem todos podem dar cinco e dez mil réis por um bilhete de cadeira, e três e quatro por um de geral; não falando dos camarotes, cujas comissões sobem até às nuvens.50
Em correspondência veiculada pelo O Montanista, o espectador "O admirador dos teatros" narra um episódio em que os cambistas esgotaram, em poucas horas, os bilhetes de um programa especial em comemoração ao aniversário da Imperatriz:
48 Andrea Marzano usa a mesma carta do romance para demonstrar que o teatro era um espaço elegante de "flerte aristocrático". (MARZANO, Andrea. Cidade em Cena: o ator Vasques, o teatro e o Rio de Janeiro (1839-1892). Rio de Janeiro: Folha Seca: FAPERJ, 2008, p. 45-46). 49 MACEDO, Joaquim Manuel de. A Moreninha. São Paulo: Ática, 1995, p. 21-22, (grifos meus). 50 O Bodoque Mágico, 19 de abril de 1851.
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Senhores que entendem das obrigações de administrações teatrais! Porque será, que no dia do espetáculo pelo aniversário natalício de nossa Imperatriz, se achavam tantas pessoas queixosas por não haverem à venda no teatro às dez horas da manhã desse dia, bilhetes de camarotes, e para poderem outras pessoas, em grande número, obterem plateias, precisavam empurrarem e atropelarem-se uns aos outros; sendo o resultado dessa logração ao respeitável público, os cambistas do teatro serem bem aquinhoados na partilha, e rirem-se dos que não tiveram bilhetes... Por que será? – As administrações dos teatros devem muito ao respeitável público, que de boa fé esperam a observância das leis teatrais, para evitar-se o – porque será que os cambistas não deixam o saguão do teatro? O Admirador dos Teatros.51
Em uma versão manuscrita da comédia O Judas em Sábado de Aleluia, Faustino afirma que não pudera comparecer a um espetáculo no teatro por causa da ação dos cambistas, que esgotaram os bilhetes colocados à venda. Martins Pena mostra preocupação com os problemas que envolviam a atividade teatral de sua época e não hesita em colocá-los em cena, sem abandonar o seu costumeiro humor:
FAUSTINO: – E finalmente, se não fui ao teatro no dia em que lá estiveste, foi por não achar um só bilhete. Os cambistas tinham comprado todos. Mas tranquiliza-te, que também já lhes declarei guerra. Ontem comprei dois meirinhos e ao sair daqui comprarei um cento para darem com toda essa súcia na cadeia, com suas mulheres, seus filhos e seus escravos.52
2 Um Comediógrafo Brasileiro no Teatro de São Pedro de Alcântara
Martins Pena iniciou sua carreira dramática quando o São Pedro de Alcântara ocupava posição de destaque na cena teatral da Corte, constituindo-se como o centro do entretenimento, onde os habitantes do Rio de Janeiro assistiam ao repertório neoclássico e romântico europeu, às peças de autores nacionais, aos artistas portugueses, italianos e brasileiros. É em meio a esse panorama que o autor construiu sua trajetória no palco do São Pedro de Alcântara, estreando 19 peças entre 1838 e 1846, as quais, seja pelas temáticas, seja pelas cenas ou personagens, dialogam com o contexto cultural do teatro.
51 O Montanista, 19 de março de 1851. 52 PENA, vol. I, 1956, p. 156-157.
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Entre os oito anos em que contribuiu como dramaturgo dessa casa de espetáculos, destacamos três fases de representações de suas obras: o début, de 1838 a 1840, caracterizado pelas criações das comédias roceiras; a fase de transição às inúmeras estreias, em 1844, com as peças O Judas em Sábado de Aleluia e Os Irmãos das Almas; e o momento mais prolífico, entre 1845 e 1846, quando estreou a maior parte de suas peças cômicas em um ato, a primeira comédia em três atos, O Noviço, e o primeiro e único drama encenado, Vitiza ou O Nero de Espanha.
2.1 O Juiz de Paz da Roça e A Família e A Festa da Roça: o início
A primeira comédia de Martins Pena, O Juiz de Paz da Roça, estreou a 04 de outubro de 1838, como parte do programa teatral em benefício da atriz Estela Sezefreda,53 integrante da companhia dramática do São Pedro de Alcântara, dirigida por seu esposo, o ator João Caetano. O anúncio referente à estreia traz informações detalhadas sobre a programação do espetáculo, que exibiu como peça principal o drama espanhol A Conjuração de Veneza:
Teatro S. Pedro de Alcântara. Estela Sezefreda faz benefício quinta-feira, 04 de outubro do corrente ano, com o novo drama romântico, em 3 atos, denominado Conjuração de Veneza. Esta composição, de um gênero novo, não deixará de agradar, e o título dá uma ideia do quanto deve ser interessante, porque ele se acha gravado nas páginas da história italiana. Respectivamente a cenário e vestuário, será segundo a época. A nova farsa O Juiz da Roça, que termina por uma tocata e dança própria do lugar, porá fim ao espetáculo. A beneficiada tendo de se retirar da cena, no dia 15 de outubro do corrente, em consequência do teatro ter de fechar-se, espera que um público tão ilustrado, quanto generoso, a proteja pela última vez. Os bilhetes acham-se na casa da sua residência, Rua dos Ciganos n. 42.54
53 Estela Sezefreda (1810-1874), artista brasileira, começou sua carreira teatral, em meados da década de 1820, como bailarina do corpo de dança de Auguste Toussaint, no Real Teatro de São João. Nos anos de 1833 a 1855, atuou nas companhias dramáticas dirigidas por João Caetano, protagonizando dramas e comédias. Assim a descreve um artigo dedicado aos artistas dos teatros da Corte, publicado pelo periódico literário e teatral O Bodoque Mágico a 10 de maio de 1851: "pisa bem e veste-se com gosto; o som de sua voz é melodioso, e seria perfeitíssimo se não tivesse o defeito de assobiar muito nos ss (talvez por donaire antes que por hábito), é boa atriz e tem desempenhado certos papéis em que se lhe não pode dar rivais". 54 Jornal do Commercio, 02 de outubro de 1838.
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A comédia foi divulgada anonimamente pela imprensa; prática comum nos anúncios de peças cômicas em um ato, as quais, quase sempre, não tinham sua autoria indicada. Estas, a exemplo de O Juiz de Paz da Roça, ocupavam um espaço raramente modificável dentro do programa teatral, encerrando os espetáculos após a exibição da peça principal, cujos atos eram entremeados com apresentações musicais e dançados. O anúncio de estreia faz referência à última cena da comédia de Martins Pena, em que há a exibição de uma "tocata e dança própria do lugar",55 denominada no enredo o "Fado da Tirana":
TOCADOR (Cantando) Ganinha, minha senhora, Da maior veneração; Passarinho foi-se embora Me deixou penas na mão.
TODOS Se me dás que comê, Se me dás que bebê, Se me pagas as casas, Vou morar com você. (Dançam)
TOCADOR (Cantando) Em cima daquele morro Há um pé de ananás; Não há homem neste mundo Como o nosso juiz de paz.56
A comédia foi novamente representada no dia 10 de outubro de 1838, finalizando o espetáculo em benefício da atriz Isabel Ricciolini57 e de sua filha, a bailarina Clara Ricciolini, que teve como peça principal a tragédia Ackmet e Rakima.58 Cinco dias depois, João Caetano ofereceu um benefício em que foi encenado o melodrama Os Dois
55 Jornal do Commercio, 02 de outubro de 1838. 56 PENA, 1956, vol. I, p. 44-45. 57 Isabel Rubio Ricciolini (1790-1850), artista portuguesa, veio ao Rio de Janeiro em 1817, juntamente com seu esposo, o barítono italiano Gaetano Ricciolini (1778-1850), para integrar a companhia lírica do Real Teatro de São João. Ambos os artistas pertenceram à companhia dramática do São Pedro de Alcântara e atuaram em inúmeros espetáculos entre as décadas de 1830 e 1840. 58 Adaptação portuguesa de Antônio Xavier da peça espanhola Acmet, el Magnánimo, cuja autoria é desconhecida. (Cf. HESSEL & RAEDERS, 1979, p. 37).
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Francos-Maçons (Les Deux Francs-Maçons ou Les Coups du Hasard, 1808), de Benoît Pelletier-Volméranges, seguido de O Juiz de Paz da Roça, tida nos anúncios como "a bem aceita farsa".59 Este foi o último espetáculo do ano promovido pelo São Pedro de Alcântara, que fecharia para reformas. Dias após o benefício, João Caetano publicou um comunicado na imprensa, agradecendo ao público que comparecera ao espetáculo:
João Caetano dos Santos desejoso de dar um testemunho público de sua gratidão às pessoas que o honraram, muito além do seu merecimento, vem por intermédio de sua folha agradecer os obséquios que recebeu no dia 15 do corrente, por ocasião do seu benefício. (...) 'Não tenho expressões para testemunhar a minha gratidão ao respeitável público desta capital, que tanto me tem animado com seus aplausos e proteção: é esta uma dívida que nunca poderei pagar, mas cuja lembrança ficará sempre gravada na minha ideia.'60
A seguinte representação da comédia roceira ocorreu a 25 de novembro de 1838, no Teatro Niteroiense, desempenhada pela companhia dramática de João Caetano, que estava se apresentando em Niterói devido ao fechamento temporário do São Pedro de Alcântara.61 O repertório do espetáculo foi integralmente constituído por peças de autores brasileiros: além da comédia de Martins Pena, foi encenada a tragédia Antônio José ou O Poeta e A Inquisição, de Gonçalves de Magalhães. O aparecimento de dramaturgos brasileiros não passou despercebido pelo público. Se o Estado e os literatos buscavam impulsionar a produção de peças nacionais, como forma de tornar o campo teatral uma expressão legitimadora da cultura da recente nação, tal iniciativa era abraçada pela plateia que frequentava os espetáculos e acolhia bem as peças escritas por brasileiros. Na seção Revista Dramática do Jornal do Commercio, o crítico, assinado por "A.", atribui à sociedade da Corte um papel fundamental no desenvolvimento da arte dramática. "A." afirma que a proteção do público às obras literárias de autores fluminenses contribuiria para o aparecimento de novos dramaturgos e atores:
59 Jornal do Commercio, 13 e 15 de outubro de 1838 e Diário do Rio de Janeiro, 15 de outubro de 1838. 60 Jornal do Commercio, 22 de outubro de 1838. 61 O Juiz de Paz da Roça voltou ao São Pedro de Alcântara a 06 de agosto de 1840, em espetáculo que exibiu, como peça principal, o melodrama Catarina Howard, de Alexandre Dumas.
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A nova importância que o público deu ao teatro, fez aparecer algumas peças de composição nacional. Se é verdade que a arte dramática civiliza as nações, é preciso também reconhecer que as disposições prévias do público influem muito para a aparição de bons autores e atores. (...) O gosto geral, o espírito de crítica literária, o movimento intelectual da sociedade favorecem muito as direções e o esforço do talento.62
O Juiz de Paz da Roça pode ter inspirado composições de outros autores brasileiros contemporâneos a Martins Pena, como as comédias O Juiz de Paz Abdicando, de Joaquim José Teixeira,63 encenada no São Pedro de Alcântara a 13 de outubro de 1840, e O Novo Juiz de Paz na Roça (1853), de autoria desconhecida. Em sua comédia, Martins Pena delineia um painel da vida de uma família roceira dos arredores da Corte e satiriza a Justiça Imperial, apresentando um Juiz de Paz corrupto e descomprometido com suas atividades, que se resumem a casos corriqueiros envolvendo brigas entre vizinhos e familiares. O comportamento do Juiz é satirizado em cenas e diálogos que o expõem ao ridículo:
JUIZ: – Vamo-nos preparando para dar audiência. (Arranja os papéis) O escrivão já tarda; sem dúvida está na venda do Manuel do Coqueiro... O último recruta que se fez já vai me fazendo peso. Nada, não gosto de presos em casa. Podem fugir, e depois dizem que o Juiz recebeu algum presente. (Batem à porta) Quem é? Pode entrar. (Entra um preto com um cacho de bananas e uma carta, que entrega ao Juiz. Juiz lendo a carta) 'Ilmo. Sr. – Muito me alegro de dizer a V. Sa. que a minha ao fazer desta é boa, e que a mesma desejo para V. Sa. pelos circunlóquios com que lhe venero.' (Deixando de ler) Circunlóquios... Que nome em breve! O que quererá ele dizer? Continuemos. (Lendo) 'Tomo a liberdade de mandar a V. Sa. um cacho de bananas-maçãs para V. Sa. comer com a sua boca e dar também a comer à Sra. Juíza e aos Srs. Juizinhos. V. Sa. há de reparar na insignificância do presente; porém, Ilmo. Sr., as reformas da Constituição permitem a cada um fazer o que quiser, e mesmo fazer presentes; era, mandando assim as ditas
62 Jornal do Commercio, 30 de outubro de 1838. 63 Joaquim José Teixeira (1811-1885) foi deputado, advogado, poeta, romancista, dramaturgo e tradutor. (Cf. SOUSA, 1960, vol. II, p. 539-540). Apesar de o anúncio teatral lhe conferir a autoria da peça, Teixeira publicou um comunicado na imprensa informando que o texto encenado modificara, profundamente, a sua composição: "Rogo ao Sr. Victor Porfírio de Borja que não continue a apresentar-me como autor de obras alheias, pois que não gosto de cobrir-me senão com vestes minhas. É certo que eu me lembro de haver escrito para S. S. a seu pedido uma farsa com o título Um Juiz de Paz Abdicando; mas também me cumpre confessar que não reconheci minha obra em aquela que com o mesmo título foi representada em noite de 13 do corrente. Algumas cenas desta em verdade parecem-se com aquelas que saíram da minha pena, porém nego que seu todo fosse escrito por mim, pois nele achei faltas de cenas, figuras estranhas, entradas e saídas incompetentes, ditos estúpidos e, sobretudo, um final que eu me envergonharia uma vez de compor. E aproveito esta ocasião para declarar mui formalmente que nunca mais hei de escrever para os nossos teatros públicos, por isso que alguns dos Srs. atores são verdadeiros dramático-coveiros. Joaquim José Teixeira". (Diário do Rio de Janeiro, 15 de outubro de 1840).
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bananas, que diz minha Teresa Ova serem muito boas. No mais, receba as ordens de quem é seu venerador e tem a honra de ser – Manuel André de Sapiruruca.' – Bom, tenho bananas para a sobremesa. Ó pai, leva estas bananas para dentro e entrega à senhora. Toma lá um vintém para teu tabaco. (Sai o negro) O certo é que é bem bom ser Juiz de Paz cá pela roça. De vez em quando temos nossos presentes de galinhas, bananas, ovos, etc., etc.64
O modo, nada cortês, com o qual o comediógrafo deu vida ao Juiz de Paz, desnudando suas corrupções e vícios, não agradou ao censor André Pereira Lima, do Conservatório Dramático Brasileiro.65 Em maio de 1844, o censor reprovou a representação da comédia no São Pedro de Alcântara, por acreditar que a peça feria a credibilidade das instituições brasileiras:
O Juiz de Paz da Roça é uma farsa escrita em baixo cômico, destituída de tudo quanto se pode desejar quer para o entretenimento do espírito quer para o melhoramento dos costumes. Ofende infinitamente as instituições do país, choca a dignidade delas e por isso a considero em circunstância de não ser representada. Rio de Janeiro, 19 de maio de 1844. André Pereira Lima.66
Dois dias após a reprovação, Joaquim Norberto de Sousa e Silva (1820-1891), o segundo censor da comédia, aprovou-a para ser representada. O impasse foi resolvido pelo presidente do Conservatório Dramático, o português Diogo Soares da Silva de Bivar (1785- 1865), que, em 22 de maio de 1844, autorizou a peça para subir ao palco do São Pedro de Alcântara.
64 PENA, 1956, vol. I, p. 34-35. 65 Em maio de 1843 foi criado o Conservatório Dramático Brasileiro, uma instituição governamental que objetivava promover os estudos dramáticos, impulsionar a produção dos dramaturgos brasileiros e garantir a qualidade da cena teatral, por meio da análise prévia das obras que seriam encenadas nos teatros da Corte. Essas análises buscavam zelar pela moralidade nos palcos, proibindo a presença de quaisquer "assuntos e expressões menos conformes com o decoro, os costumes e as atenções que em todas as ocasiões se devem guardar, maiormente naquelas em que a Imperial Família honrar com a sua presença o espetáculo". (Aviso de 10 de novembro de 1843). Contudo, o órgão atuava como um instrumento oficial que controlava os divertimentos públicos e censurava aqueles considerados inconvenientes, isto é, que ferissem a ordem monárquica e os bons costumes. Nas avaliações realizadas pelos censores, as peças poderiam ser totalmente aprovadas, reprovadas ou advertidas com indicações de modificações no texto. Segundo dados da própria instituição, em 1850 foram submetidas 169 peças para julgamento, sendo 97 licenciadas, 15 reprovadas e 43 encaminhadas para modificações. (Dados divulgados pelo Conservatório no Diário do Rio de Janeiro, em 09 de julho de 1851). Isso demonstra a interferência do Conservatório no trabalho criativo dos dramaturgos. 66 "Martins Pena e a censura: extratos de pareceres de censura: notas várias", Biblioteca Nacional, Coleção Darcy Damasceno, I - 26, 02, 75.
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Tal fato foi comentado pelo cronista do folhetim Revista Teatral, que mostrou- se indignado com os critérios de censura adotados pelo Conservatório Dramático. O crítico revela a implicância da instituição censora com as comédias O Juiz de Paz da Roça e Bertrand e Raton (Bertrand et Raton ou L'Art de Conspirer, 1833), de Eugène Scribe (1791-1861):
Porém, meu Deus, que faz aí o Conservatório Dramático: sua sábia comissão, ou quem quer que lá figure, que tanto cortou na comédia Bertrand e Raton por ofensiva à monarquia e à moral, que proibiu O Juiz de Paz da Roça, por ofensiva às nossas autoridades territoriais; mas que licenciou A Festa da Roça que é bem moral, que não ofende nosso culto etc. etc., que faz, dizemos nós, que não interpõe sua sabença, sua profunda erudição na correção desses dramas que lá lhe levam para levar o selo? Talvez não seja de sua alçada. Sendo assim esperamos que um dia haja quem nos governe e que esmerilhe bem esse negócio de traduções para rejeitar as que forem ruins e buscar assim quem saiba o que é traduzir bem e com gosto.67
Após O Juiz de Paz da Roça, Martins Pena estreou uma nova comédia roceira: A Família e A Festa da Roça. A segunda comédia do autor se passa na casa de um pequeno fazendeiro rústico que se dedica aos trabalhos em sua lavoura. Duas temáticas principais são abordadas pelo enredo da peça: o tema amoroso, envolvendo dois jovens enamorados, Quitéria e Juca, e a contraposição entre a vida tradicional no campo e a organização social na capital do Império, o centro dos divertimentos públicos, da moda e do bem viver. A comédia estreou a 01 de setembro de 1840, em espetáculo beneficente a Estela Sezefreda. Novamente, João Caetano e sua esposa, a atriz beneficiada, incluíram uma peça inédita de Martins Pena em um programa teatral. Tal informação nos faz crer que os dois artistas mantinham contato com o novato comediógrafo. O anúncio da estreia de A Família e A Festa da Roça menciona que o autor desta comédia é o mesmo de O Juiz de Paz da Roça, recuperando, assim, a boa recepção pelos espectadores e convidando-os para uma noite de entretenimento que lhes agradaria:
Teatro de S. Pedro de Alcântara. O benefício de Estela Sezefreda, anunciado para o dia 29 do corrente, fica por justos motivos transferido para terça-feira 1º de setembro. Subirá à cena o drama em 4 atos, Joana de Flandres, nova tradução cingida ao original francês, composição dos Srs. Fontan e Herbin. (...) A Família
67 Diário do Rio de Janeiro, 16 de julho de 1844.
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e A Festa da Roça, comédia em um ato, composta ultimamente pelo mesmo autor do Juiz de Paz da Roça, finalizará o espetáculo. Estela Sezefreda será grata às pessoas que se dignarem obsequiá-la. Os bilhetes acham-se à venda na Praça da Constituição n. 89.68
O espetáculo foi comentado em uma crônica publicada pelo Jornal do Commercio em 05 de setembro de 1840, na qual o crítico, anônimo, avalia a trama da peça, seu autor e a mise en scène.69 O enredo da comédia é considerado inverossímil, principalmente devido à suposta falha na caracterização dos tipos roceiros e do escravo. A verossimilhança de uma peça teatral é entendida pelo cronista como adequação ao espaço- real referenciado. Nesse caso, Martins Pena não teria representado veridicamente o modo de vida socioeconômica de uma família roceira dos arredores da Corte. Preocupado com a verossimilhança, o cronista se esquece que um dos recursos da farsa é, exatamente, compor caricaturas, que produzem o humor por meio do exagero e da não realidade.
O enredo da comédia é fraco, com alguma dose de inverossimilhança. Domingos João, ou coisa que o valha, tem uma filha um pouco simplória, mas muito garrida para uma roceira (...). Não apareceu ele [Antônio do Pau-d'Alho] de pés no chão e botas penduradas em um pau? Não fazia gestos despropositados? Não contava a seu modo o que vira na Corte? Não há dúvida, mas não basta trazer os pés descalços e as botas penduradas para caracterizar o roceiro, e um roceiro de serra acima. Esse tal senhor, cujo nome nos não lembra [Antônio do Pau-d'Alho], possuía um sítio e quarenta escravos, e desafiamos a que nos mostrem um roceiro de serra acima gozando de tal abastança, que venha à cidade fazer destacamentos, e caminhe, pé descalço, até o seu sítio. (...) Demais, o nosso fazendeiro é mais um senhor feudal que um roceiro ordinário, e Domingos João não pode, nem pelas suas maneiras, nem pela rapidez com que revoga sua palavra, mudando de genro com tanta facilidade, ser colocado naquela classe. (...) Se foi jocosa a entrada do moleque, posto mal caracterizado por vir de calças, não deixou de ser estranhável a corrida que lhe deram, e o não aparecimento de imensa negraria, quando Quitéria teve seus faniquitos. Na cidade, sim, corre-se com as crias para não escutarem o que se diz; mas na roça! Não é possível. O moleque é um ente
68 Diário do Rio de Janeiro, 28 de agosto de 1840. 69 Embora ainda não produzissem uma crítica teatral sistemática, os folhetinistas divulgavam suas impressões e opiniões sobre as peças encenadas nos teatros da capital do Império, em crônicas veiculadas pelos periódicos diários e literários. Os cronistas apresentavam o programa do espetáculo; resumiam o enredo da peça principal e, esporadicamente, o da farsa, avaliando as obras a partir de alguns critérios, tais como a verossimilhança, o desenvolvimento da trama, a constituição das personagens e cenas, e se agradou ou não a plateia; em seguida, analisavam a tradução – quando a peça era originalmente em língua estrangeira –; e por fim, discorriam sobre a mise en scène, destacando o desempenho dos atores, a qualidade artística dos cenários e a adequação dos figurinos. Sobre os atores, de modo geral, os críticos verificavam a conformidade das atuações com os sentimentos das personagens.
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necessário, indispensável, que se acha em casa do fazendeiro em todos os cantos; é como o ar que se encontra em toda a parte, como o sol que tudo vê e observa.70
O cronista detecta certos equívocos na representação cênica de A Família e A Festa da Roça, principalmente na atuação de Manoel Soares, ator que desempenhou o papel do lavrador Domingos João. Para o crítico, a adequação e a conformidade com os indivíduos sociais reais, aos quais a peça fazia referência, garantiriam a performance natural dos artistas que representavam tais personagens no palco:
Os nossos roceiros de serra acima, que cumpre não confundir com os de serra abaixo, tem outro modo de falar; seu dialeto é antes espevitado, como o falar à mineira, do que descansado e com tantos hiatos. Suas maneiras, se pecam, é, por algum tanto acanhadas e contrafeitas, que não por abrutalhadas. O Sr. Manoel Soares representou mais como um campônio de Portugal do que como um roceiro do Brasil.71
Apesar dos erros na caracterização dos tipos roceiros, o folhetinista afirma que o comediógrafo mostrou originalidade e certa fidelidade aos costumes típicos da roça, o que garantiu que a peça fosse bem recebida e agradasse ao público, tanto que "excitou longa hilaridade e obteve repetidos aplausos".72 Considerando que o principal objetivo do autor ao compor a comédia teria sido esboçar certos costumes do povo da roça, o cronista acredita que tal atitude era positiva, pois, segundo ele, os dramaturgos brasileiros da época ignoravam elementos da história e da sociedade nacional. Nesse sentido, em um discurso nacionalista que entrevê no escritor a função, por meio do teatro, de legitimar a nação e a cultura brasileira, o cronista deposita grandes esperanças na carreira teatral de Martins Pena – ainda no anonimato –, o qual, sendo integrante de uma nova geração de escritores que despontava no campo literário, poderia ser um dos responsáveis por resgatar aspectos históricos e socioculturais, revelando ao público os tesouros da recém-criada nação "que parecem bradar por quem os roube ao esquecimento em que jazem sepultados".73
70 Jornal do Commercio, 05 de setembro de 1840. O anexo "A Festa e A Família da Roça (Comédia original)" traz o texto integral da crônica. 71 Idem. 72 Idem. 73 Idem.
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A Família e A Festa da Roça encerrou outros espetáculos no ano de 1840. Foram três exibições no São Pedro de Alcântara: a 08 de setembro, após a apresentação do melodrama Joana de Flandres (Jeanne de Flandre, 1835), de Victor Herbin e Louis-Marie Fontan; a 19 de setembro – espetáculo que contou com a presença, na tribuna, da Família Imperial –, depois da exibição da comédia em dois atos A Lua de Mel ou A Correção Singular, em que estreou a atriz Maria Amália da Silva, recém-chegada de Lisboa; e no programa de 06 de outubro, em benefício da atriz Maria Cândida de Souza, que teve como peça principal a comédia Casanova no Forte de Santo André (Casanova au Fort Saint- André, 1836), de Charles Varin (1798-1869), Étienne Arago (1802-1892) e Desvergers, seguida da apresentação de uma ária, cantada por Margarida Lemos, e de uma fantasia do compositor português Antônio Luis Miró (1815-1853), mestre do Real Teatro de São Carlos, em Lisboa. Nos anúncios desses espetáculos, a comédia de Martins Pena é considerada a "bem aceita"74 e "muito aplaudida farsa".75 Em julho de 1844, a peça finalizou um espetáculo em benefício da atriz Ludovina Soares, em que estreou, como título principal do programa, a comédia A Filha de Fígaro. Esta havia sido submetida por Martins Pena, em 20 de maio, à avaliação censória do Conservatório Dramático.76 Nos anúncios que antecederam ao benefício, Abel ou O Retrato Respeitado era a peça anunciada para o encerramento do espetáculo. Porém, um dia antes da apresentação, para agradar a alguns espectadores e diletantes de sua amizade, Ludovina Soares optou por A Família e A Festa da Roça. A mudança na escolha da obra que finalizaria o programa nos revela que a comédia de Martins Pena fazia parte do gosto do público e que o autor mantinha contato direto com a companhia dramática do São Pedro de Alcântara, cujos atores escolhiam suas farsas para o encerramento de espetáculos beneficentes.77
74 Jornal do Commercio, 06 de outubro de 1840. 75 Diário do Rio de Janeiro, 22 de setembro de 1840. 76 Informação obtida no documento: "Encaminhamento do 2º secretário do Conservatório Dramático Brasileiro de pedido para exame censório da peça A Filha de Fígaro, para ser encenada no Teatro São Pedro d'Alcântara", Biblioteca Nacional, Coleção Conservatório Dramático Brasileiro, I - 08, 01, 53. 77 A Família e A Festa da Roça retornou ao palco do São Pedro de Alcântara a 20 de maio de 1845, em espetáculo beneficente ao ator português Antônio José Pedro, que teve como peça principal a comédia A Mulher Vingativa.
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Teatro de S. Pedro de Alcântara. Terça-Feira, 09 de julho de 1844, benefício da primeira atriz Ludovina Soares da Costa. Subirá à cena em primeira representação a interessante comédia em 5 atos: A Filha de Fígaro ou A República Francesa. Terminará o espetáculo com a muito jocosa farsa: A Família e A Festa da Roça. N. B. – A beneficiada, querendo satisfazer os desejos de algumas pessoas de sua amizade, preferiu a Festa da Roça ao drama de um ato já anunciado. O mais divertimento será anunciado pelos cartazes. Os Srs. que se quiserem prevenir de bilhetes, hajam de dirigir-se à casa da beneficiada, Rua do Cano n. 72, 1º andar.78
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As primeiras composições dramáticas de Martins Pena – O Juiz de Paz da Roça e A Família e A Festa da Roça – estrearam, e foram frequentemente encenadas, no encerramento de espetáculos beneficentes a atores do São Pedro de Alcântara, em programas teatrais que apresentaram, como peça principal, dramas românticos, melodramas e comédias de autores portugueses, espanhóis e franceses. Com as peças cômicas roceiras, Martins Pena representou e satirizou cenários, personagens e costumes da sociedade de sua época, temas inexistentes, até então, no palco do São Pedro de Alcântara. Nestas obras, destaca-se o diálogo que o comediógrafo estabeleceu com o seu momento cultural, objetivando representar a vida rústica na roça, concebida como o lugar mantenedor de tradições, em contraposição ao progresso da Corte, o espaço dos grandes divertimentos públicos, a exemplo dos espetáculos no teatro. Entre as décadas de 1830 e 1840, a capital do Império passava por um processo de modernização, motivada pela política do Estado que pretendia conferir uma imagem de progresso à recém-criada nação. A cidade se transformara em um centro irradiador de decisões políticas, regras de etiqueta, modas literárias, hábitos no vestuário, no gestual e na linguagem.79 As medidas visando à civilidade social se refletiam nas manifestações culturais, incluindo os espetáculos oferecidos pelo São Pedro de Alcântara. Nas duas primeiras peças de Martins Pena, a cidade é idealizada pelos roceiros e associada às imagens de civilidade, liberdade e alegria. O tema do rústico que conhece a
78 Diário do Rio de Janeiro, 08 de julho de 1844. 79 Cf. SCHWARCZ, 2010, p. 155.
39 capital e fica admirado com o progresso, um dos mais antigos do teatro,80 é empregado pelo autor em ambas as comédias. Estas apresentam uma personagem caipira – José da Fonseca em O Juiz de Paz da Roça e Antônio do Pau-d'Alho em A Família e A Festa da Roça – que passa um tempo na Corte e se maravilha com o que lá vivencia. José da Fonseca descreve a Aninha, sua amada, os cosmoramas que invadiam as ruas, as performances equestres nas arenas, os espetáculos dramáticos e as apresentações mágicas no São Pedro de Alcântara, teatro "maior que o engenho do capitão-mor". A moçoila, que não conhece a capital, se encanta com os divertimentos e a grandeza da cidade:
JOSÉ: – Eu te digo. Há três teatros, e um deles maior que o engenho do capitão- mor. ANINHA: – Oh, como é grande! JOSÉ: – Representa-se todas as noites. Pois uma mágica... Oh, isto é coisa grande! (...) Uma árvore se vira em uma barraca; paus viram-se em cobras, e um homem vira-se em macaco. (...) Pois o curro dos cavalinhos! Isto é que é coisa grande! Há uns cavalos tão bem ensinados, que dançam, fazem mesuras, saltam, falam, etc. Porém o que mais me espantou foi ver um homem andar em pé em cima do cavalo. (...) Além disto há outros muitos divertimentos. Na Rua do Ouvidor há um cosmorama, na Rua de São Francisco de Paula outro, e no Largo uma casa onde se veem muitos bichos cheios, muitas conchas, cabritos com duas cabeças, porcos com cinco pernas, etc. (...) ANINHA (só): – Como é bonita a Corte! Lá é que a gente se pode divertir, e não aqui, onde não se ouve senão os sapos e as intanhas cantarem. Teatros, mágicos, cavalos que dançam, cabeças com dois cabritos, macaco major... Quanta coisa! Quero ir para a Corte!81
Em A Família e A Festa da Roça, Antônio do Pau-d'Alho, após quatro meses de trabalho na Guarda Nacional, retorna à roça repleto de novidades extraordinárias acerca do que vira em sua estadia na Corte. A personagem se encanta com o progresso da cidade, visualizado, principalmente, em seus divertimentos públicos nos teatros, como os espetáculos de mágica, que maravilham os olhos do ingênuo sertanejo:
ANTÔNIO DO PAU-D'ALHO: – (...) a cidade está muito adiantada. Eu estive quatro meses destacado e posso dizer alguma coisa, porque quando não estava de guarda, passeava. Vá vendo quantas coisas boas. (...) Veja. Há um teatro aonde
80 Cf. ARÊAS, 1987, p. 116. 81 PENA, 1956, vol. I, p. 30-31.
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vai este homem, que é muito bonito, porque tem umas mesas bordadas de prata, luzes amarelas, vermelhas e de todas as cores. Chega ele, como ia dizendo, a este teatro, chama um homem, este vai para onde ele está, e trepando em cima de uma mesa, fica assim. (Ajoelha-se) E depois, o mata-gente, levantando a espada, corta-lhe a cabeça e o homem cai assim. (Deita-se de bruços) Faça agora de conta que eu não tenho cabeça, e que ela anda na mão do sujeitinho para ser mostrada a quem quer ver.82
Martins Pena aborda a cultura de divertimentos de sua época, para representar, de forma satírica e com humor, o progresso e a civilidade da Corte. O comediógrafo leva ao palco do São Pedro de Alcântara os espetáculos que estavam em cartaz nos teatros e nas ruas da cidade, que convidavam os espectadores para longas horas de entretenimento. Os divertimentos públicos, mencionados pelo autor nas duas comédias roceiras, como os cosmoramas e os espetáculos de mágica, eram anunciados diariamente nas páginas dos periódicos cariocas:
Cosmorama e teatrinho Rua da Vala. Sete magníficas vistas no Cosmorama, e três superiores danças no teatrinho, formam o divertimento deste espetáculo, e no fim das danças se verá fazer o equilíbrio da roda de sege sobre a testa, feita por um sertanejo, vestido e armado ao uso do sertão; sairá de entre os bastidores dançando, fazendo o equilíbrio e executando dificultosas atitudes que farão admirar, sem perder sua grande firmeza.83
FRANCÊS Domingo, 04 do corrente, Mr. Leroux, físico-mor prestidigitador de S. M. o Rei dos franceses, dará lugar à sua vigésima quinta representação, se o tempo o permitir. Primeira Parte – Física experimental. À pedido geral será repetida a linda recreação da máquina aeroestática. Segunda Parte – Prestidigitação. O relógio e o pão – a lira do gênio de Aladim – o maravilhoso nascimento instantâneo das flores. Terceira Parte – A cena da decapitação. Quarta Parte – Jogos hidráulicos, ornados de fogos de cores. Quinta Parte – Fogos diamantinos, tudo será novo. Os bilhetes acham-se à venda no Teatro Francês, lado de São Francisco de Paula, e na Rua do Ouvidor n. 60.84
O diálogo que o comediógrafo estabelece com o universo de divertimentos, os quais ocupavam os teatros, as ruas e os arredores das igrejas, não se configura apenas como uma fotografia descritiva e inerte do Brasil de sua época. Por meio das duas peças roceiras, e de outras em que o autor representa as festividades religiosas populares da Corte, como
82 PENA, 1956, vol. I, p. 79-80. 83 Diário do Rio de Janeiro, 14 de janeiro de 1837. 84 Diário do Rio de Janeiro, 03 de agosto de 1839.
41 em O Judas em Sábado de Aleluia e Os Irmãos das Almas, ou os espetáculos líricos no São Pedro de Alcântara, em O Diletante, "tomamos conhecimento dos espetáculos que divertiam seus habitantes (a ópera, o teatro de bonecos das praças, os ofícios religiosos), e assistimos a uma reposição das relações sociais que os governam".85
2.2 O Judas em Sábado de Aleluia e Os Irmãos das Almas: uma fase de transição
Martins Pena não estreou nenhuma peça entre 1841 e 1843, afastando-se, momentaneamente, do teatro. Em 1844, retornou aos palcos com duas comédias, O Judas em Sábado de Aleluia e Os Irmãos das Almas, que dialogam com a cultura popular e religiosa da Corte: a primeira representa as festividades do Sábado de Aleluia, e a segunda, as irmandades religiosas, o Dia de Finados e a Festa dos Ossos. Assim como as suas primeiras composições, essas peças estrearam no encerramento de espetáculos dedicados ao benefício de atores do São Pedro de Alcântara. Apesar do anonimato, comum aos autores de pequenas peças cômicas, as obras de Martins Pena eram anunciadas na imprensa juntamente com a referência às outras comédias que o autor já havia escrito, recuperando, assim, a boa aceitação pelo público e convidando-o para prestigiar as novas composições. A peça O Judas em Sábado de Aleluia foi encenada, pela primeira vez, a 17 de setembro de 1844, no espetáculo em benefício do ator Manoel Soares, que teve como obra principal a comédia Os Casados em Segredo. Cinco dias depois, foi representada em um programa que exibiu a tragédia Nova Castro, do português João Batista Gomes Júnior. As outras representações ocorreram a 09 de abril de 1845, no benefício da dançarina Irene York, em que foi encenado o drama O Amor de um Padre ou A Inquisição em Roma, de Louis Antoine Burgain,86 seguido de um dueto da ópera A Colomella e de um bailado; a 25 de julho de 1845, após o drama Fernando Teles; a 03 de agosto do mesmo ano,
85 ARÊAS, 1987, p. 223. 86 Louis Antoine Burgain (1812-1877), também conhecido como Luís Antônio, nasceu na França e veio ainda jovem ao Brasil. Foi poeta, dramaturgo e membro do Conservatório Dramático Brasileiro. Compôs inúmeras peças, dentre as quais se destacam os dramas Glória e Infortúnio ou A Morte de Camões, A Última Assembleia dos Condes Livres e Pedro Sem, Que Já Teve e Agora Não Tem. (Cf. SOUSA, 1960, vol. II, p. 139-140).
42 arrematando o programa que exibiu O Homem da Máscara Negra (1840), drama de Mendes Leal, cujos atos foram entremeados com as apresentações de um dueto lírico e da dança A Caxuxa; a 29 de janeiro de 1846, no espetáculo em benefício do ator Francisco de Paula Dias, em que foi encenado o melodrama O Marinheiro de São Tropez (La Dame de Saint-Tropez, 1844), de Auguste Anicet-Bourgeois (1806-1870) e Adolphe Dennery (1811- 1899), seguido do dançado A Polca;87 e a 27 de janeiro de 1847, em benefício do ator José Candido da Silva. Os Irmãos das Almas estreou a 19 de novembro de 1844, no encerramento do espetáculo beneficente ao ator José Candido da Silva. O programa exibiu o drama O Amor de um Padre ou A Inquisição em Roma, de Burgain, seguido de um número musical desempenhado pelo compositor e rabequista português Fernando de Sá Noronha88 e da comédia O Judas em Sábado de Aleluia:89
Teatro de S. Pedro de Alcântara. Terça-Feira, 19 de novembro de 1844, benefício do ator José Candido da Silva. Depois que a orquestra houver executado A Batalha de Almoster, representar-se-á o aparatoso drama em 4 atos, intitulado O Amor de um Padre ou A Inquisição em Roma. (...) No fim da peça o Sr. Noronha, por obséquio ao beneficiado, executará na sua rabeca umas lindas variações de sua composição. Seguir-se-á a muito aplaudida comédia em 1 ato: O Judas em Sábado de Aleluia. Terminará o espetáculo com a linda e nova comédia em 1 ato, intitulada Os Irmãos das Almas, composição do autor do – Juiz de Paz da Roça, Festa da Roça e Judas – peças que todas gozam do favor público. A cena passa- se no Rio de Janeiro, no ano de 1844, em Dia de Finados. Tal é o divertimento que o beneficiado oferece ao respeitável público, com a bem fundada esperança de obter ainda uma vez a sua valiosa proteção. Os bilhetes de camarotes e plateias acham-se à venda em casa do beneficiado, no Largo da Carioca n. 5.90
A peça Os Irmãos das Almas foi representada, novamente, em 15 de dezembro de 1844, encerrando o espetáculo que exibiu a comédia A Filha de Fígaro. Em 1845,
87 O mesmo programa foi reprisado em 08 de fevereiro de 1846. 88 Fernando de Sá Noronha veio ao Rio de Janeiro, em meados da década de 1840, para trabalhar como compositor e músico do São Pedro de Alcântara. Em 1848, partiu em viagem para se apresentar na Europa e Estados Unidos. Retornou ao São Pedro de Alcântara em junho de 1851, como regente de orquestra. (Informações presentes em uma pequena biografia, publicada pelo periódico A Aurora em 22 de junho de 1851). São de sua composição inúmeras valsas, cançonetas, modinhas e lundus, como o Romance Sem Palavras, Lundu das Moças, Souvenir, Schottische e Romance, cujas partituras foram publicadas pelo Jornal das Senhoras, entre 1852 e 1855. 89 O mesmo programa foi reapresentado em 24 de novembro de 1844, porém sem a peça Os Irmãos das Almas. 90 Diário do Rio de Janeiro, 19 de novembro de 1844.
43 obteve as seguintes representações: a 06 de abril, após a comédia A Mão de Ferro ou As Educandas de S. Ciro (Les Demoiselles de Saint-Cyr, 1843), de Alexandre Dumas Pai, que foi entremeada com um terceto e o dançado Os Boleiros; a 27 de abril, em um programa que apresentou a farsa O Novo Criado de Dois Amos, o baile trágico Mahomed ou O Falso Profeta e Os Dois ou O Inglês Maquinista; a 27 de julho, após o drama Fernando Teles; e a 01 de novembro, em um programa que exibiu o drama Edite ou A Viúva de Southampton e os coros da ópera La Prigioni di Edimburgo (1838), de Federico Ricci (1809-1877). Em 1846, foi encenada a 17 de fevereiro, em benefício da viúva e dos filhos do finado ator português José Joaquim de Barros, em um programa que apresentou o drama Fernando Teles e uma ária da ópera Nabucodonosor (1842), de Giuseppe Verdi (1813-1901). No ano seguinte, finalizou o benefício do ator João José do Amaral a 12 de novembro, após a exibição do drama D. Afonso III (1840), do português Henrique Guilherme de Sousa. Em 1848, encerrou dois programas: a 17 de setembro, após o drama O Marinheiro de São Tropez, seguido de exibições musicais e de dançados; e a 14 de dezembro, em benefício das obras de construção da Igreja Nossa Senhora da Lampadosa, espetáculo que exibiu o melodrama O Sineiro de São Paulo (Le Sonneur de Saint-Paul, 1838), de Joseph Bouchardy (1810-1870). Os nomes dos atores da companhia dramática do São Pedro de Alcântara citados na primeira edição de Os Irmãos das Almas, publicada na década de 1840 por Francisco de Paula Brito (1809-1861), devem ser, muito provavelmente, os artistas que atuaram nas representações que mencionamos anteriormente. Assim, nessas encenações, as personagens foram desempenhadas pelos seguintes atores: Mariana – Gertrudes Angélica da Cunha; Eufrásia – Maria Amália da Silva; Luísa – Gabriela da Cunha de Vecchy; Jorge – Luis Antônio Monteiro; Tibúrcio – Manoel Soares; Sousa – José Joaquim Pimentel; e Felisberto – Pedro Joaquim da Silva.91
91 Os nomes dos atores e as personagens que representaram foram consultados em PENA, Martins. Os Irmãos das Almas. Série Teatro Brasileiro. Rio de Janeiro: Tipografia Imparcial de F. de Paula Brito, [184?].
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2.3 O Auge das Estreias de Martins Pena (1845-1846)
Ao longo de 1845 e 1846, Martins Pena estreou 14 comédias no São Pedro de Alcântara, sendo 11 em um ato – Os Dois ou O Inglês Maquinista, O Diletante, O Namorador ou A Noite de São João, Os Três Médicos, O Cigano, O Caixeiro da Taverna, Quem Casa, Quer Casa, Os Ciúmes de um Pedestre, Os Meirinhos, As Desgraças de uma Criança e O Segredo de Estado –,92 e três maiores – O Noviço, As Casadas Solteiras e A Barriga de Meu Tio.93 Após Os Irmãos das Almas, foi encenada, pela primeira vez, em 28 de janeiro de 1845, Os Dois ou O Inglês Maquinista, peça na qual o autor expõe o tráfico ilegal de escravos africanos. O anúncio de estreia contextualiza o enredo da comédia, que tem como referente real a cidade do Rio de Janeiro durante a Noite de Reis do ano de 1844. A menção a essa festividade do Império é extremamente significativa, já que a peça estreou em janeiro, mesmo mês em que se homenageiam os Reis Magos e, tendo em vista que a plateia do teatro se constituía por indivíduos de uma sociedade, majoritariamente, católica e de raízes culturais portuguesas, Os Dois ou O Inglês Maquinista era um convite ao público, que veria no palco a representação de uma ordem sociocultural da qual integrava e de elementos simbólicos que compartilhava.
Teatro de S. Pedro de Alcântara. Terça-Feira, 28 de janeiro de 1845, em benefício do ator Francisco de Paula Dias. Subirá à cena o aparatoso drama em 5 atos intitulado A Última Assembleia dos Condes Livres. Findo o drama terá lugar a muito aplaudida cena mímica O Parricida. Rematará o espetáculo a primeira representação da graciosa comédia em um ato, intitulada Os Dois, composição do acreditado autor do Juiz de Paz da Roça, Festa da Roça, Judas e Irmão das Almas. A cena é passada no Rio de Janeiro, em 1844, em Noite de Reis. Os bilhetes vendem-se na Rua da Alfândega n. 207, casa do beneficiado, e no teatro.94
92 Das comédias em um ato escritas pelo autor, Um Sertanejo na Corte, O Jogo de Prendas e a Comédia sem Título são as únicas que não foram representadas. 93 Martins Pena compôs quatro comédias em três atos. Destas, apenas O Usurário, cujo protagonista é um avarento clássico da farsa, não foi representada. 94 Jornal do Commercio, 27 de janeiro de 1845.
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Ainda em 1845, a comédia foi reapresentada em inúmeros espetáculos: a 22 de abril, finalizando o benefício da atriz Gertrudes Angélica da Cunha, após a encenação da comédia O Médico Raimundo ou A Família de Villar Henriques;95 a 27 de abril, em um programa que apresentou a farsa O Novo Criado de Dois Amos, o baile trágico Mahomed ou O Falso Profeta e Os Irmãos das Almas; a 22 de maio, encerrando um espetáculo variado, no qual houve a exibição da comédia O Braço Misterioso, seguida pelas apresentações de um dueto da ópera Lucrezia Borgia (1833), de Gaetano Donizetti (1797- 1848), da tonadilha espanhola96 O Poeta e O Músico (El Músico y El Poeta), do espanhol Ramón Carnicer (1789-1855), e do baile Mahomed ou O Falso Profeta; a 01 de junho, em um programa variado que incluiu as farsas Os Irmãos das Almas e O Capitão Sem o Ser,97 um dueto da ópera lírica A Colomella e a dança Os Boleiros; a 15 de junho, após a exibição do drama O Homem da Máscara Negra; a 19 de junho, rematando um espetáculo lírico em que foi exibida, pela companhia italiana, a ópera Clara de Rossemberg (Chiara di Rosembergh, 1834), de Luigi Ricci (1805-1859); a 20 de julho, em um espetáculo variado que apresentou o vaudeville Uma Rapaziada98 e a comédia em um ato O Aventureiro das Espanhas, seguida de exibições do dueto da ópera A Colomella e da tonadilha O Poeta e O
95 Em 07 de abril de 1845, Martins Pena incumbiu-se da tarefa de avaliar e emitir um parecer censório da comédia O Médico Raimundo ou A Família de Villar Henriques. A peça foi por ele aprovada para a encenação no São Pedro de Alcântara. (Consultamos o documento "Designação censória do 2º secretário do Conservatório Dramático Brasileiro ao mesmo, para examinar a peça O Médico Raymundo, a ser encenada no Teatro São Pedro d'Alcântara", Biblioteca Nacional, Coleção Conservatório Dramático Brasileiro, I - 08, 02, 76). 96 A tonadilha é um gênero de comédia musical satírica, de curta duração, que foi muito popular na Espanha do século XVIII. "En nuestro teatro del siglo XVIII, la jácara, el entremés y el sainete, concluían frecuentemente con un número cantado que no era ciertamente – como nos indica Subirá –, el único en estas obras. Esta pieza final fue gradualmente aumentando, a la vez que se desentendía del asunto principal, terminando por desligarse del sainete. Por lo tanto, de apéndice de un intermedio teatral, parcialmente cantado y hablado, se transforma en independiente composición literario-musical, aceptando la música en su totalidad, al menos durante la segunda etapa – de juventud [entre 1758-1770] – de su desarrollo histórico". (VARELA DE VEGA, Juan Bautista. "Origen y desarrollo histórico de la tonadilla escénica". In: Revista de Folklore, Valladolid, Caja España, Fundación Joaquín Díaz, n. 13, tomo 02a, p. 26, 1982). 97 No Conservatório Dramático, Martins Pena foi o responsável por designar, em 02 de maio de 1845, um censor para avaliar a peça O Capitão Sem o Ser. (Consultamos a "Designação censória do 2º secretário do Conservatório Dramático Brasileiro ao censor Ernesto Pires Camargo, para examinar a peça O Capitão Sem o Ser, a ser encenada no Teatro São Pedro d'Alcântara", Biblioteca Nacional, Coleção Conservatório Dramático Brasileiro, I - 08, 02, 80). 98 O vaudeville foi enviado a Martins Pena em 18 de abril de 1845, para este emitir seu parecer censório. A peça foi por ele aprovada para representação no São Pedro de Alcântara. (Informação obtida no documento "Designação para Martins Penna examinar o vaudeville Uma Rapaziada, a ser representada no Teatro São Pedro d'Alcântara", Biblioteca Nacional, Coleção Conservatório Dramático Brasileiro, I - 08, 22, 80).
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Músico; a 31 de julho, na abertura do benefício da dançarina Francisca Farina, que teve em seu programa os dançados A Polca e A Caxuxa, a representação de Os Irmãos das Almas e números musicais que incluíram uma ária da ópera O Barbeiro de Sevilha (Il Barbieri di Siviglia, 1816), de Rossini, e duetos das óperas O Pirata (Il Pirata, 1827) e Os Puritanos (I Puritani, 1835), ambas de Vincenzo Bellini (1801-1835). Segundo Vilma Arêas, Martins Pena nutria especial encantamento pelo Barbeiro de Sevilha, tanto que o teria motivado a inserir elementos dessa ópera-bufa em O Judas em Sábado de Aleluia e n'As Desgraças de uma Criança.99 Seu gosto pelo Barbeiro de Sevilha pode ser também justificado pela inclusão de árias dessa composição lírica, e de outras óperas cômicas de Rossini, em programas teatrais que exibiam as suas peças. Nesse caso, podemos admitir que Martins Pena exercia certa influência na composição dos programas em que suas comédias eram representadas. O Diletante, peça na qual satiriza os muitos diletantes da Corte que travavam incansáveis contendas na imprensa em defesa das divas líricas italianas, foi a sua seguinte estreia. A comédia, que traz referências às encenações da ópera Norma (1831), de Bellini, no São Pedro de Alcântara, recebeu duas representações nesse teatro: a 25 de fevereiro e a 02 de março de 1845. A estreia foi em benefício da atriz Gabriela da Cunha de Vecchy,100 espetáculo que teve como peça principal o drama trágico Norma, uma adaptação, em versos, feita pela atriz Gertrudes Angélica da Cunha, mãe da beneficiada, do libreto da ópera homônima de Bellini. A releitura incluía personagens e adornava o enredo com novos coros compostos por João Victor Ribas, músico-regente da orquestra do teatro. Um dia antes do espetáculo, o Jornal do Commercio publicou uma nota, assinada por "O Artista", que comenta o programa escolhido pela atriz. Sobre a estreia da comédia de Martins Pena, destaca a dedicação do autor em compor comédias populares que
99 Cf. ARÊAS, 1987, p. 242. 100 A atriz portuguesa Gabriela da Cunha de Vecchy (1821-1882) integrou a companhia dramática do São Pedro de Alcântara até 1855, quando se transferiu para a companhia de Joaquim Heliodoro, no Teatro Ginásio Dramático. Gabriela de Vecchy se destacava por sua beleza nos palcos, como aponta o artigo publicado em O Bodoque Mágico a 10 de maio de 1851: "É delicada e também bonita; compreende os papéis de que se incumbe, traja bem e à caráter, pisa com bastante graça, a sua voz é na verdade fraca, o que é pena, pois que se não fora isso seria muito melhor atriz; esforça-se sobremaneira para agradar ao público, merecendo por isso todos os elogios e contemplações".
47 levavam ao palco os "vícios" da sociedade brasileira, o que agradava à plateia do São Pedro de Alcântara:
Uma nova comédia O Diletante subirá também à cena nessa noite. O Diletante depois da Norma! Magnífica lembrança. O público tem reconhecido com aplauso todas as composições do autor do Juiz de Paz da Roça; e faz justiça aos esforços por ele empregados para introduzir nos nossos teatros a comédia popular brasileira. Este gênero de composição agrada sempre ao povo, que vê distintamente no tablado os vícios e ridículos da sociedade, no meio da qual vive, e que passam para ele desapercebidos no lidar de sua vida agitada; mas o poeta cômico apodera-se desses vícios e ridículos e, impiedoso, os expõe à hilaridade pública, e assim os estigmatiza. Avante! O campo é largo, e a colheita imensa. Ridendo castigat mores. Damos os parabéns à Sra. D. Gabriela pela escolha do espetáculo. O Artista.101
A comédia, divulgada no anúncio de estreia como "tragi-farsa"102 – provavelmente, devido à morte da personagem José Antônio na última cena –, foi encomendada pela beneficiada, que organizou um programa em homenagem à Norma, a ópera mais representada no São Pedro de Alcântara, em 1845, pela companhia lírica italiana da soprano Augusta Candiani. Esta desempenhava o papel de Norma, ao passo que a mezzo-soprano Margarida Deperini, o de Adalgisa.103 As duas divas arrancavam suspiros e elogios dos diletantes cariocas que, extasiados com suas vozes, estendiam até a imprensa suas contendas em defesa das intérpretes.104 Em O Diletante, José Antônio, amante de óperas, revela a presença marcante de Norma no cotidiano do Rio de Janeiro. A ópera, que estreara no São Pedro de Alcântara a 17 de janeiro de 1844 e, desde então, integrava as récitas semanais, era também o assunto nas rodas de conversa e cantada por todos nas ruas da cidade:
JOSÉ ANTÔNIO: – Hoje havemos de cantar alguns pedaços da Norma. (Lendo uma música) Qual cor tradiste... Há de ser este dueto. Que música? (Põe à parte)
101 Jornal do Commercio, 24 de fevereiro de 1845. 102 Jornal do Commercio, 08 de fevereiro de 1845. 103 A companhia lírica italiana, contratada em janeiro de 1844, era constituída, além da soprano Augusta Candiani e da mezzo-soprano Margarida Deperini, pelos baixos Archangelo Fiorito e Francisco Massiani, os tenores Angelo Graziani e Giuseppe Deperini, e o bufo cômico Giuseppe Galetti. Em 1845, Clara Delmastro foi agregada à companhia. 104 Luís Antônio Giron reconstitui a disputa em torno das cantoras líricas, travada na imprensa pelos diletantes e críticos teatrais, ao longo das décadas de 1840 e 1850. (GIRON, Luís Antônio. Minoridade Crítica: a ópera e o teatro nos folhetins da Corte (1826-1861). São Paulo: Edusp; Rio de Janeiro: Ediouro, 2004, p. 119-206).
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O pior é não termos um tenor... Arremediarei. (Lendo outra música) Nel cor più non mi sento... Xi, que isto é velho que é o diabo! (Joga para o lado e procura de novo) Não acho a cavatina. Josefina? Ó Josefina, vem cá. (...) Que fizeste da Casta Diva? JOSEFINA: – Está sobre o piano. (...) Se é para eu cantar, não procuro. Já não posso aturá-la. É maçada! JOSÉ ANTÔNIO: – Que dizes, bárbara? A Casta Diva maçada? Esta sublime produção do sublimíssimo gênio? JOSEFINA: – Será sublimíssima, mas como há algum tempo para cá que eu a tenho ouvido todos os dias cantada, guinchada, miada, assobiada e estropiada por essas ruas e casas, já não a posso suportar. Todos cantam a Casta Diva – é epidemia! JOSÉ ANTÔNIO: – E o mais é que tens razão! Ouve-se daqui: (canta a Casta Diva com voz fanhosa). Ouve-se dali: (canta com voz muito fina). Mais adiante um moleque: (assobia-a). Estragam-na! Assassinam-na! Mas tu cantas bem. (...) JOSÉ ANTÔNIO (só): – É uma louquinha; mas tem bom coração. Por isso quero que encontre um marido que a faça feliz como merece. O amigo Marcelo é homem rico, honesto e bom, ainda que rústico. Coitado, nunca saiu de S. Paulo! É a primeira vez que vem à Corte; anda espantadiço. Só uma coisa desgosta-me nele: o não gostar da música. Levei-o ontem ao teatro para ouvir Norma e dormiu a sono solto durante toda a representação. Dormir, quando se canta a Norma! Isto só faz um paulista dos sertões! Dormir, quando se pode ouvir esse canto incomparável do Cisne da Itália! Infeliz mancebo! Bellini inimitável, rei das almas sensíveis, portento de harmonia, morreste, e tão pouco nos deixaste! Morreste... A terra te seja... Melodiosa!105
Em março de 1845, durante o período da quaresma, Martins Pena estreou O Namorador ou A Noite de São João, comédia cujas ações se desenvolvem durante uma festividade popular de raiz católica, a Festa de São João Batista. A peça fora anunciada para o encerramento do espetáculo beneficente em favor do ator Germano Francisco de Oliveira, a ocorrer no dia 04 de março de 1845;106 no entanto, com o cancelamento da apresentação, devido ao adoecimento da atriz Ludovina Soares,107 a estreia deu-se a 13 de março, em um programa que exibiu, como peça principal, a tragédia Fayel (1770), do francês François-
105 PENA, 1956, vol. I, p. 215-216. 106 "Teatro de S. Pedro de Alcântara. Terça-Feira, 04 de março de 1845. Em benefício do artista dramático Germano Francisco de Oliveira, representar-se-á a muito acreditada tragédia em 5 atos: Fayel. Terminando o espetáculo com a nova comédia em um ato, escrita pelo hábil autor do Juiz de Paz da Roça, Judas em Sábado de Aleluia, Irmãos das Almas, Os Dois e O Diletante, que tem por título: A Noite de S. João. A cena passa-se no Rio de Janeiro em uma chácara; e além de sua distribuição, finaliza com um pequeno mas lindo fogo de artifício. O beneficiado espera merecer a proteção do público, a quem se confessa agradecido. Os bilhetes acham-se à venda em casa do beneficiado, Rua do Núncio n. 12, loja". (Jornal do Commercio, 01 de março de 1845). 107 "Teatro de S. Pedro de Alcântara. Em consequência de se achar incomodada a primeira atriz Ludovina Soares da Costa, não pode ter lugar hoje, 04 de março, o benefício do ator Germano Francisco de Oliveira, que se acha anunciado, o qual fica transferido para quinta-feira, 13 do corrente". (Diário do Rio de Janeiro, 04 de março de 1845).
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Thomas-Marie de Baculard d'Arnaud (1718-1805). Martins Pena, um mês antes, em 02 de fevereiro de 1845, como segundo secretário do Conservatório Dramático, designara a si próprio para a avaliação censória de Fayel, aprovando a peça para representação no São Pedro de Alcântara.108 O Namorador ou A Noite de São João teve apenas mais uma exibição, a 18 de janeiro de 1846, finalizando o programa em que foi encenado o drama Luis de Camões, de Burgain. Os Três Médicos foi a seguinte estreia do comediógrafo. A peça, que satiriza a medicina dos alopatas, hidropatas e homeopatas, estreou a 03 de junho de 1845, no espetáculo em benefício da atriz Ludovina Soares, após a exibição do drama português O Homem da Máscara Negra. A temática em torno da homeopatia havia sido encenada no palco do São Pedro de Alcântara em espetáculo de 18 de maio de 1843, quando estreou o vaudeville A Homeopatia (L'Homéopathie, 1836), de Narcisse Fournier (1809-1880) e Edmond de Biéville (1814-1880). Martins Pena reconstruiu o tema, conhecido por sua plateia, a partir da sátira das teorias medicinais e das propagandas de serviços médicos e de remédios veiculadas pelas páginas do Jornal do Commercio. A personagem Cautério, um médico adepto da medicina tradicional, comenta sobre as matérias trazidas pelo periódico fluminense, que divulgavam, por exemplo, as técnicas medicinais extravagantes dos homeopatas, os quais seriam, a seu ver, "charlatães":
CAUTÉRIO (levantando-se): – E essa súcia de inovadores, magnetizadores, hidropatas e homeopatas com que lutamos todos os dias? (Tira um Jornal do Comércio da algibeira) Aqui estão nestas colunas as mais nojentas diatribes, os mais asquerosos insultos que esses charlatães cospem em nossa face. LINO: – Nunca gostei destas descomposturas...109
Em Os Dois ou O Inglês Maquinista, Felício, um jovem funcionário público que lia, assiduamente, o Jornal do Commercio, se sente incomodado com os inconvenientes classificados de remédios milagrosos, que tanto invadiam as páginas do periódico:
108 Informação obtida no documento "Designação censória do 2º secretário do Conservatório Dramático Brasileiro ao próprio, para examinar a peça Fauyel, a ser encenada no Teatro de São Pedro d'Alcântara", Biblioteca Nacional, Coleção Conservatório Dramático Brasileiro, I - 08, 02, 66. 109 PENA, 1956, vol. I, p. 248.
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FELÍCIO (largando o Jornal sobre a mesa com impaciência): – Irra, já aborrece! CLEMÊNCIA: – O que é? FELÍCIO: – Todas as vezes que pego neste jornal, a primeira coisa que vejo é: "Chapas medicinais e Unguento Durand." Que embirração! NEGREIRO: – Oh, oh, oh! CLEMÊNCIA: – Tens razão, eu mesmo já fiz este reparo. NEGREIRO: – As pílulas vegetais não ficam atrás, oh, oh, oh!110
Após Os Três Médicos, a comédia O Cigano, que expõe o enriquecimento ilícito de Simão, vendedor de produtos contrabandeados, estreou a 15 de julho de 1845, em benefício do ator Florindo Joaquim da Silva.111 O programa apresentou o drama Ângelo, Tirano de Pádua, entremeado por um terceto lírico cantado por York, Farina e Henriqueta Pessina. O reprise da peça ocorreu dois dias depois, a 17 de julho, com o mesmo programa. O Noviço, primeira comédia de Martins Pena em três atos, estreou a 10 de agosto de 1845, como parte principal do programa teatral:
Teatro de S. Pedro de Alcântara. Companhia Dramática. Domingo, 10 de agosto de 1845. 47ª Récita da assinatura. 1ª Representação da comédia original em 3 atos O Noviço pelo autor do Juiz de Paz da Roça, Os Dois, Os Irmãos das Almas e de outros. A cena passa-se no Rio de Janeiro, em 1845. No fim da comédia a cantora Candiani executará, acompanhada de coros, a brilhante ária da ópera Nabucodonosor. Terminará o espetáculo com o novo drama em 1 ato, traduzido do original francês, e entremeado de música, intitulado O Complacente ou O Vestuário de Palhaço, em qual cantarão os atores Manoel Soares, Monteiro, José Candido e Caqueirada, e as atrizes Gertrudes, Maria Amália e Clotilde. Os bilhetes vendem-se no escritório do teatro. Principiará às 7 horas e meia.112
A comédia voltou a ser encenada em três espetáculos no ano de 1845: a 17 de agosto, em um programa finalizado pela estreia da pequena peça cômica A Mania de Representar; a 25 de setembro, em benefício do ator João José do Amaral, espetáculo que incluiu, nos entreatos de O Noviço, duetos das óperas La Cenerentola e L'Italiana in Algeri (1813), de Rossini, cantados por Augusta Candiani, José Candido, Francisco Massiani e
110 PENA, 1956, vol. I, p. 97-98. 111 O ator brasileiro Florindo Joaquim da Silva (1814-1893) trabalhou na companhia dramática do São Pedro de Alcântara até o final da década de 1840. Em 1851, organizou, no Teatro de São Francisco, uma pequena empresa teatral. Sobre sua atuação, assim nos informa O Bodoque Mágico de 10 de maio de 1851: "É um dos nossos melhores atores. Tem muita queda para papéis trágicos e abnegação para os ternos e amorosos; tem conhecimento da cena; sua voz é mui forte e sonora, sua figura é comportável; verdade é que tem alguns defeitos mímicos nos transportes, porém, a prática e seus bem conhecidos esforços hão de emendá-los". 112 Jornal do Commercio, 09 de agosto de 1845.
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Eckerlin, e no encerramento, a farsa O Recrutamento na Aldeia; a 09 de novembro, em um programa que recheou seus entreatos com a exibição de uma ária de Roberto Devereux (1837) e um dueto de O Elixir de Amor (L'Elisir d'Amore, 1832), óperas de Donizetti, e concluído pela farsa dançada As Três Polcas. Em 1846, a peça O Noviço foi representada a 03 de junho, em caridade à Imperial Sociedade Amante da Instrução, instituição que acolhia e educava crianças órfãs. No programa, os intervalos da comédia foram recheados com árias e duetos de óperas italianas.113 No ano seguinte, foi reprisada a 07 de agosto, em benefício da Irmandade de Nossa Senhora do Socorro da Capela de São Cristóvão, em um programa repleto de números musicais – cantados por membros da companhia lírica italiana –, e encerrado pela comédia Quem Casa, Quer Casa. O ator Manoel Soares organizou um benefício a 18 de novembro de 1845, incluindo em seu programa duas comédias inéditas de Martins Pena: Bolingbroch e Comp. ou As Casadas Solteiras114 e O Caixeiro da Taverna.
113 "Teatro de S. Pedro de Alcântara. Quarta-Feira, 03 de junho de 1846. Terá lugar o benefício concedido à comissão de caridade da Imperial Sociedade Amante da Instrução, em favor dos alunos órfãos e pobres socorridos e educados pela mesma Imperial Sociedade e ilustrado povo fluminense. A companhia dramática, depois da orquestra executar a ouverture da Batalha de Almoster, representará o belo drama, em 3 atos, intitulado O Noviço, composição do Sr. Pena, e que tem sempre merecido os aplausos do público. Nos intervalos, a Sra. D. Augusta Candiani cantará a ária do Barbeiro de Sevilha; os Srs. Massiani e Eckerlin cantarão o dueto das Pistolas; e o Sr. Carlos Wynen tocará lindas variações na rabeca; a Sra. Candiani e este Sr. prestam-se por sua reconhecida bondade e obséquio. Terminará o espetáculo com a jocosa e sempre aplaudida farsa O Recrutamento na Aldeia. A comissão de caridade da Imperial Sociedade Amante da Instrução, sempre reconhecida à bondade e filantropia do público, espera ter mais esta ocasião para renovar os seus protestos de estima e de agradecimento. O resto dos bilhetes acham-se à venda no escritório do teatro". (Diário do Rio de Janeiro, 03 de junho de 1846). 114 As Casadas Solteiras é uma imitação de Martins Pena, com adaptações dos cenários e modificações no enredo, da peça francesa Les Trois Dimanches (1838), dos irmãos Cogniard e de Jules Cordier. (Cf. ARÊAS, 1987, p. 203). Na atividade teatral fluminense da época, eram comuns as imitações de peças francesas. Uma imitação não era uma pura tradução; muito era acrescentado, suprimido ou modificado do enredo original, a exemplo das adaptações pelas quais passou o melodrama francês A Graça de Deus (La Grâce de Dieu ou La Nouvelle Fanchon, 1841), de Adolphe Dennery, em montagem realizada pelo Teatro de São Francisco, em fevereiro de 1845. Seus versos foram trocados por uma tradução em "vulgar" e as canções, substituídas por composições de Noronha: "A Graça de Deus é por ventura um dos dramas do repertório francês que muito tem agradado, sempre que se representa em qualquer teatro, com muita concorrência e aplausos (...). O Sr. João Caetano dos Santos, querendo descansar das tragédias, fez-lo traduzir em vulgar, e a entregou ao Sr. Noronha para a ornar de música, pois que, além daquela com que se representa no Teatro Francês, quis mais, e aquela a achou mesquinha para as situações. (...) O Sr. Noronha nada conservou da música antiga; e, ou porque assim o quisesse o tradutor, ou este de combinação com o compósito, o certo é que ela tem muito mais música, e toda em situações admiravelmente adequada". (Jornal do Commercio, 11 de fevereiro de 1845).
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Teatro de S. Pedro de Alcântara. Récita a benefício do ator Manoel Soares. Terça-Feira, 18 de novembro de 1845. Primeira representação da comédia em 3 atos Bolingbroch e Comp. ou As Casadas Solteiras. Imitação por L. C. M. Pena. O 1º ato passa-se em Paquetá – A festa de S. Roque. O 2º ato, na Bahia – A fugida. O 3º ato, na corte – Vingança e reparação. Depois da comédia, a Sra. D. Gabriela da Cunha de Vecchy e o Sr. José Candido da Silva, em obséquio ao beneficiado, cantarão uma engraçada Tirana Espanhola. Os mais intervalos serão anunciados pelos cartazes. Dará fim ao espetáculo a comédia em um ato O Caixeiro da Taverna, pelo mesmo autor. O beneficiado, escolhendo um espetáculo todo de composição de um autor nacional, que tantos aplausos tem merecido do ilustrado público desta capital em suas diversas produções, julgou granjear a aprovação do mesmo público, e de seus amigos, de quem espera proteção. N. B. Os bilhetes acham-se à disposição do público na casa do beneficiado, Rua do Piolho n. 85.115
As duas peças foram novamente exibidas a 23 de novembro, cinco dias depois da estreia. Nos intervalos de As Casadas Solteiras, os cantores líricos Angelo Graziani, Augusta Candiani e Francisco Massiani interpretaram duetos das óperas O Barbeiro de Sevilha e A Colomella. O Caixeiro da Taverna retornou ao palco do São Pedro de Alcântara em mais três exibições, que ocorreram a 30 de novembro de 1845, em um espetáculo que apresentou o drama A Justiça de Deus; a 25 de janeiro de 1846, após o drama Luis de Camões, de Burgain; e a 06 de dezembro de 1846, finalizando o programa que teve como peça principal a comédia As Memórias do Diabo. Em O Caixeiro da Taverna, Martins Pena coloca em foco os caixeiros, funcionários de estabelecimentos comerciais, responsáveis pelos pagamentos e cobranças. Na peça, o caixeiro Manoel administra com mãos de ferro a taverna da viúva Angélica, cobrando os clientes devedores, até mesmo, em anúncios publicados no Jornal do Commercio. Novamente, o comediógrafo leva a imprensa ao palco teatral, expondo à plateia as várias funções que os periódicos desempenhavam na vida urbana: além de instrumentos que se destinavam à informação político-econômica dos fluminenses, também eram facilitadores de práticas comerciais, fontes de entretenimento e divulgadores de manifestações culturais. Martins Pena era, sem sombras de dúvida, um leitor assíduo do Jornal do Commercio. Sabiamente, retirava de suas páginas, nos anúncios e artigos, questões para serem representadas e satirizadas nas comédias, que abordavam no palco do
115 Jornal do Commercio, 12 de novembro de 1845.
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São Pedro de Alcântara uma galeria de personagens, costumes e comportamentos reconhecíveis pelos espectadores. A primeira edição de O Caixeiro da Taverna, publicada na década de 1840, traz os nomes dos atores da companhia dramática do São Pedro de Alcântara que desempenharam os papéis dessa comédia. Assim, os seguintes artistas podem ter atuado nas representações que mencionamos anteriormente: Manoel, caixeiro – Manoel Soares; Angélica – Gertrudes Angélica da Cunha; Deolinda – Maria Amália da Silva Monteiro; Francisco – Luis Antônio Monteiro; Quintino – Pedro Joaquim da Silva; Antonio – Joaquim Monteiro Ramos.116 Como a comédia foi encomendada por Manoel Soares, o artista beneficiado, Martins Pena pode ter feito uma brincadeira ou homenagem ao nomear os protagonistas da peça com os nomes próprios dos atores que os desempenharam: Manoel e Angélica. A comédia-provérbio Quem Casa, Quer Casa, que trata com muito humor dos conflitos de convivência entre os membros de uma família, estreou a 05 de dezembro de 1845, no encerramento do espetáculo beneficente ao ator José Candido da Silva, que teve como peça principal o drama francês A Chave Falsa ou O Filho Ladrão, seguido da exibição de um dueto da burleta O Sapateiro e do dançado A Polca. A comédia foi reapresentada em 07 e 14 de dezembro de 1845 e em 01 de janeiro de 1846 – espetáculo de gala em comemoração ao Ano-Bom –, com o mesmo programa da estreia, variando apenas o repertório musical. Posteriormente, teve uma exibição a 21 de maio de 1846, após o drama francês O Ambicioso Político; a 07 de agosto de 1847, em benefício da Irmandade de Nossa Senhora do Socorro, finalizando a encenação de O Noviço; e a 26 de outubro de 1848, em benefício do ator João José do Amaral, em um programa que apresentou o drama Inês ou A Queda de um Ministro, seguido de apresentações líricas. Em Quem Casa, Quer Casa, Martins Pena dialoga novamente com os espetáculos do São Pedro de Alcântara. Depois de levar ao palco do teatro cenas cômicas e personagens que faziam referências aos espetáculos mágicos, em O Juiz de Paz da Roça e A Família e A Festa da Roça, e às óperas românticas italianas, em O Diletante, agora, o
116 Os nomes dos atores e as personagens que representaram foram consultados em PENA, Martins. O Caixeiro da Taverna. Série Teatro Brasileiro. Rio de Janeiro: Tipografia Imparcial de F. de Paula Brito, [184?].
54 comediógrafo se volta aos rabequistas, os quais, desde 1844, se apresentavam no São Pedro de Alcântara, como o português Fernando de Sá Noronha. Em sua comédia, o autor dá vida a Eduardo, um rabequista amador que se espelha nos músicos que se exibiam no teatro e sonha em se tornar um célebre compositor, aplaudido por toda a Europa. Porém, Eduardo não logra sucessos, nada consegue compor de original em sua rabeca, apenas desafinados acordes e um modo inusitado de tocá-la:
EDUARDO: – Ah, desde a noite em que pela primeira vez ouvi no Teatro de S. Pedro de Alcântara os seus harmoniosos, fantásticos, salpicados e repinicados sons, senti-me outro. Conheci que tinha vindo ao mundo para artista rabequista. Comprei uma rabeca – esta que aqui vês. Disse-me o belchior que a vendeu, que foi de Paganini. Estudei, estudei... Estudo, estudo... (...) Até agora esses aprendizes de rabeca desde Saëns até Paganini, coitados, têm inventado somente modificações do modo primitivo: arco para aqui ou para ali... Eu, não, inventei um modo novo, estupendo e desusado: eles tocam rabeca com o arco, e eu toco a rabeca no arco – eis a minha descoberta! (Toma o arco na mão esquerda, pondo-o na posição da rabeca; pega nesta com a direita e a corre sobre o arco) É esta a invenção que há de cobrir-me de glória e nomeada e levar meu nome à imortalidade... Ditoso Eduardo! Grande homem! Insigne artista!117
A seguinte composição de Martins Pena, Os Ciúmes de um Pedestre, foi impedida de estrear no São Pedro de Alcântara, em espetáculo a 29 de janeiro de 1846, devido à censura do Conservatório Dramático.118 O anúncio do programa comunicou aos espectadores, dois dias antes da exibição, a escolha de O Judas em Sábado de Aleluia para ser representada em seu lugar:
Teatro de S. Pedro de Alcântara. Quinta-Feira, 29 de janeiro de 1846. Em benefício do ator Francisco de Paula Dias, terá lugar o seguinte espetáculo: depois de uma escolhida sinfonia, abrir-se-á a cena para a primeira representação do excelente drama em 5 atos: O Marinheiro de Saint-Tropez ou O Envenenamento. Denominação dos atos: 1º – O credor e o consórcio; 2º – A estalagem e o encontro; 3º – A intriga; 4º – O envenenamento; 5º – O crime em flagrante. Logo que termine a representação do drama, os atores José Candido da Silva, Gabriela da Cunha Vecchy, Germano Francisco de Oliveira e Maria
117 PENA, 1956, vol. I, p. 478-479. 118 A partir da Resolução Imperial de 28 de agosto de 1845, o Conservatório Dramático passou a desempenhar uma censura ainda mais ferrenha. O impedimento de representação tornava-se obrigatório "quando as obras censuradas pecarem contra a veneração à nossa Santa Religião, contra o respeito devido aos Poderes Políticos da Nação e às Autoridades constituídas, e contra a guarda da moral e da decência pública". Essa resolução vinha transcrita no formulário entregue aos censores do Conservatório Dramático, para estes emitirem seus pareceres sobre as obras dramáticas avaliadas.
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Amália Monteiro, por especial obséquio, dançarão a engraçada e aplaudida Polca. Seguindo-se, para terminar o espetáculo, a representação da comédia em 1 ato: O Judas em Sábado de Aleluia. Não podendo dar-se a outra que foi anunciada, em consequência de ter sido proibida pela autoridade policial do teatro. Os bilhetes vendem-se em casa do beneficiado, Rua da Alfândega n. 207.119
Os dois censores do Conservatório que analisaram Os Ciúmes de um Pedestre, Luiz Honório Vieira Souto e André Pereira Lima, acreditavam que a peça parodiava a tragédia Otelo, colocando João Caetano, o grande intérprete dessa personagem nos palcos, em situação embaraçosa diante de seu público. Os censores justificaram a reprovação, afirmando também que a comédia de Martins Pena fazia alusões diretas a eventos reais ocorridos na Corte e noticiados pela imprensa, como a deportação de um português que fora pego no telhado de uma casa tentando invadi-la para capturar uma moça de família, e o caso judicial de um proprietário de escravos que jogara ao mar, enrolado em um saco, um escravo de sua posse que morrera.120 Pelo excesso de verossimilhança, imoralidades e por ridicularizar a atuação cênica de João Caetano em Otelo, a peça foi reprovada por duas vezes. Martins Pena, em carta ao amigo e primeiro secretário do Conservatório Dramático, José Rufino Rodrigues de Vasconcelos, lamenta a censura da comédia, e com o humor costumeiro em suas peças, critica a insustentável justificativa dada pelos censores:
Amo. Rufino Seruí, 05 de janeiro de 1846. Muito boas festas, e a toda a tua família. Aí te reenvio a comédia o Pedestre, com as emendas pedidas pela censura. Deus me dê paciência com a censura! Muito custa a ganhar a vida honradamente... Melhor é roubar os cofres da Nação, para isso não há censura. À vista temos que conversar sobre a destanhatória censura desta coitada! Julgo que está com catarata na inteligência, pois viu um ataque a João Caetano, onde não havia senão uma simples paródia do Otelo; paródia que se permitem em toda a parte do mundo... É verdade que estas partes de mundo estão mais civilizadas, ou a literatura não está enleiada... Tinha muito que dizer mas não estou para isso... Logo que o Bivar tiver licenciado a comédia peço-te encarecidamente que a remetas pelo correio a Paulo Dias [ator Francisco de Paula Dias, da companhia
119 Diário do Rio de Janeiro, 27 de janeiro de 1846. 120 Cf. SOUZA, 2002, p. 161-163.
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dramática do São Pedro de Alcântara], que deve estar aflitíssimo... Sem paciência com esta encomenda.121
Após modificações no texto, sugeridas pelo Conservatório, a comédia, renomeada O Terrível Capitão do Mato, foi submetida por Martins Pena, pela terceira vez, ao órgão censor. Com a aprovação, em 30 de março de 1846, a peça estreou a 05 de julho do mesmo ano, em um espetáculo que exibiu como peça principal o drama O Roubo do Diamante ou A Filha do Proscrito. A segunda exibição ocorreu 14 dias depois, a 19 de julho, finalizando o programa que representou o drama Dinheiro, Glória e Mulheres. Nessas apresentações, o ator Luis Antônio Monteiro desempenhou o papel do Capitão do Mato. A comédia Os Meirinhos estreou no encerramento do espetáculo beneficente em favor da atriz Grata Nicolini,122 que exibiu a comédia O Amigo Grandet, árias de óperas e um dançado. O espetáculo, que deveria ocorrer a 10 de fevereiro de 1846,123 foi adiado para o dia 14 do mesmo mês. Com certa frequência, os espetáculos teatrais eram cancelados, por causa do mau tempo, do adoecimento de artistas, ou devido ao atraso no preparo das peças (ensaios dos atores, confecção dos cenários e figurinos). A comédia foi reapresentada no dia seguinte, a 15 de fevereiro, finalizando o programa que teve como peça principal o drama O Marinheiro de São Tropez. As Desgraças de uma Criança124 foi somente encenada em sua estreia, a 10 de maio de 1846. O programa apresentou como título principal o drama A Carteira ou As Duas Famílias. O protagonista da comédia de Martins Pena foi confiado ao ator Victor
121 "Carta a José Rufino Rodrigues de Vasconcelos sobre a censura de Os Ciúmes de um Pedestre", Biblioteca Nacional, Coleção Martins Pena, I - 06, 27, 14, nº 01. 122 A atriz portuguesa Grata Nicolini, que se apresentara em teatros do Porto e de Lisboa, debutou no São Pedro de Alcântara a 10 de março de 1844. (Informação obtida em anúncio publicado pelo Diário do Rio de Janeiro a 09 de março de 1844). 123 "Teatro de S. Pedro de Alcântara. Terça-Feira, 10 de fevereiro de 1846. Benefício da atriz Grata Nicolini. Depois de executada a ouverture da ópera Guilherme Tell, terá lugar a primeira representação da comédia em 3 atos O Amigo Grandet ou Guerra às Namoradeiras. Seguir-se-á pelo Sr. Massiani, a interessante ária com coros, da ópera As Prisões D'Edimburgo. Depois da qual, os Srs. José Candido da Silva, Luis Antônio Monteiro e as Sras. Gabriela Augusta da Cunha e Clotilde Benedita dançarão a sempre aplaudida Polca. Rematará o espetáculo com a primeira representação da comédia em 1 ato, pelo Sr. L. C. M. Pena, intitulada Os Meirinhos. N. B. – Os bilhetes podem ser procurados em casa da beneficiada, Rua do Piolho n. 18, 2º andar". (Diário do Rio de Janeiro, 09 de fevereiro de 1846). 124 A comédia foi anunciada pelo Jornal do Commercio, em 09 de maio de 1846, como As Desgraças de uma Criancinha.
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Porfírio de Borja, que retornava à companhia dramática do São Pedro de Alcântara, depois de se ausentar por um curto período, quando integrou a companhia de outro teatro fluminense. Martins Pena redigiu a comédia O Segredo de Estado, imitação de uma peça estrangeira, para ser representada em benefício da atriz Ludovina Soares, a 29 de julho de 1846. A obra cômica é atualmente desconhecida, pois nunca foi publicada e nem seu manuscrito encontrado. Ludovina Soares se esforçara para promover um programa que agradasse ao público; para tanto, incluiu um melodrama inédito, Maria Joana ou A Mulher do Povo (Marie-Jeanne ou La Femme du Peuple, 1845), de Adolphe Dennery e Mallian.125 A seguinte e última exibição de O Segredo de Estado foi a 02 de agosto de 1846, com o mesmo programa teatral.
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As peças de Martins Pena estrearam, e foram frequentemente reprisadas, em espetáculos dedicados ao benefício de atores da companhia dramática do São Pedro de Alcântara, tais como Ludovina Soares, Manoel Soares, José Candido da Silva e Francisco de Paula Dias.126 Isso demonstra a estreita relação que o autor mantinha com os artistas do teatro, que lhe encomendavam peças cômicas para compor os programas beneficentes. Então, concluímos que suas comédias agradavam a plateia, socialmente heterogênea, do São Pedro de Alcântara, pois, em espetáculos beneficentes, os atores procuravam encenar obras que fossem apreciadas pelos espectadores, para assim atraí-los ao teatro e garantir uma boa receita com a venda dos bilhetes.
125 "Teatro de S. Pedro de Alcântara. Quarta-Feira, 29 de julho de 1846. Benefício da primeira atriz Ludovina Soares da Costa. Haverá o espetáculo seguinte: uma escolhida sinfonia servirá de prelúdio à primeira representação do drama em 5 atos e 6 quadros Maria Joana ou A Mulher do Povo, original francês, por M. M. Dennery e Mallian. Denominação dos atos: 1º – Os dois casamentos; 2º – O roubo; 3º – Ela está louca; 4º – A doida com juízo; 5º – O médico desmascarado. Os entreatos serão preenchidos com agradáveis overturas e terminará o espetáculo a 1ª representação do drama em 1 ato O Segredo de Estado. Imitação pelo Sr. L. C. M. Pena. A beneficiada sempre cuidadosa em merecer a atenção do público desta corte jamais deixará de empenhar todas as suas forças para bem agradar-lhe. Os bilhetes acham-se à venda em casa da beneficiada, Rua do Cano, n. 72". (Diário do Rio de Janeiro, 29 de julho de 1846). 126 O anexo "As Estreias de Martins Pena em Espetáculos Beneficentes" traz uma tabela que identifica os espetáculos beneficentes em que estrearam as comédias de Martins Pena.
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Além dos benefícios, suas comédias foram representadas em espetáculos comuns e em programas de gala, a exemplo de Quem Casa, Quer Casa, encenada a 01 de janeiro de 1846 em comemoração ao Ano-Bom – festividade oficial do Império –, e Os Dois ou O Inglês Maquinista, exibida a 19 de junho de 1845 no encerramento de um programa que teve como peça principal uma ópera lírica italiana. As obras cômicas de Martins Pena se inseriam no modelo de programa teatral típico apresentado pela companhia dramática do São Pedro de Alcântara. O espetáculo iniciava-se com a ouverture de uma ópera, desempenhada pela orquestra do teatro: geralmente, prelúdios de La Gazza Ladra (1817), Guillaume Tell (1829), La Cenerentola e L'Italiana in Algeri, óperas de Rossini; e de A Batalha de Almoster, uma sinfonia portuguesa. Em seguida, exibia-se a peça principal em três ou cinco atos, que poderia ser uma comédia, um drama histórico, um melodrama ou uma tragédia. O repertório era constituído, principalmente, por obras portuguesas, espanholas e francesas; no entanto, desde o final da década de 1830, o São Pedro de Alcântara já encenava peças escritas por autores brasileiros, como as tragédias Antônio José ou O Poeta e A Inquisição e Olgiato, de Gonçalves de Magalhães, os dramas do franco-brasileiro Louis Antoine Burgain e as comédias em três atos de Martins Pena. Os entreatos das peças principais eram recheados com coros, árias, duetos e tercetos de óperas clássicas e românticas, cantados pelos artistas italianos Augusta Candiani, Clara Delmastro, Angelo Graziani e Francisco Massiani. Com muita frequência, também eram desempenhadas tonadilhas espanholas, dançados e pantomimas. Às vezes, esses números musicais e de dança, apresentados como intermezzo, subiam ao palco após o final da peça principal, a depender da extensão dos atos e quadros desta. Por fim, a representação de uma farsa encerrava a noite de entretenimento. É esse espaço, o das pequenas peças cômicas, que Martins Pena passou a ocupar a partir da estreia de O Juiz de Paz da Roça, levando ao palco do São Pedro de Alcântara o cotidiano sociocultural de sua própria plateia, por ele satirizada. O diálogo que travou com a cultura de divertimentos públicos – espetáculos teatrais e comemorações de dias santos –, somado ao fato de que a grande maioria de suas comédias foram encomendadas por atores, demonstram o caráter circunstancial de suas obras cômicas,
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"escritas para serem imediatamente representadas – e de fato o foram, com grande sucesso, como o provam os comentários nos jornais e as representações".127 Martins Pena não era apenas o comediógrafo do São Pedro de Alcântara, que redigia comédias sob encomenda dos atores, mas também um participante crítico das decisões tomadas pela diretoria e companhia dramática dessa casa de espetáculos. Em carta ao amigo José Rufino, opina sobre a escolha da atriz Grata Nicolini para representar um papel no lugar da célebre Ludovina Soares:
E a "noite de Castillo?" É uma sina esta nossa! Tanto trabalhamos para tanto nos desgastarmos. Não será sofrível darem o papel da Ludovina a Grata? Lá falaremos no domingo que pretendo estar na cidade. Há quinze dias que estou fora da cidade e não sei o que se passa lá pelo teatro. É preciso pôr-me em dia para podermos falar. Até lá.128
Ao que tudo indica, o autor também exercia certa influência na organização dos programas que exibiam as suas comédias, escolhendo as óperas que seriam cantadas nos intervalos das peças principais. Não nos esqueçamos que Martins Pena tinha formação musical e conhecia muito bem o repertório lírico italiano, como ficou evidente em seus folhetins do Jornal do Commercio. Nos programas que encenavam O Noviço, os entreatos da comédia eram recheados com exibições líricas, especialmente duetos e árias de óperas de Rossini, compositor muito exibido no São Pedro de Alcântara, e cujas obras, como O Barbeiro de Sevilha, eram apreciadas pelo comediógrafo. Ademais, Martins Pena encaminhava ao Conservatório Dramático, para análise censória, peças a serem encenadas no São Pedro de Alcântara, tais como A Filha de Fígaro, Fayel, O Velho Perseguido e diversas farsas.129 O autor seria o tradutor dessas obras que submetia à censura? Sobre isso, nada podemos afirmar com total certeza, mesmo sabendo que não seria algo impossível, tendo em vista que o comediógrafo era proficiente em francês e trabalhara, anos antes, como tradutor no periódico Gabinete de Leitura. Sabemos
127 ARÊAS, 1987, p. 142. 128 "Carta a José Rufino Rodrigues de Vasconcelos sobre a censura de Os Ciúmes de um Pedestre", Biblioteca Nacional, Coleção Martins Pena, I - 06, 27, 14, nº 01. 129 Dentre as farsas que Martins Pena encaminhou à censura do Conservatório Dramático, citamos: O Tolo, Astúcias de Sanguizarra, A Banda Vermelha e O Cirurgião Ana Tonico, os Ladrões e Defuntos Vivos. (Os títulos foram consultados na Coleção Conservatório Dramático Brasileiro, depositada na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro).