, Uma alegoria do Brasil Atualizações do regional na cultura pop da televisão

Cláudio Cardoso de Paiva Universidade Federal da Paraíba

Índice permite uma reflexão crítica e humorada das mitologias que estruturam o imaginário so- 1 Introdução 1 cial, particularmente nas pequenas cidades 2 O bizarro, o grotesco e o popular na do Brasil. televisão 3 Dentre as prestigiadas junto ao 3 Dias Gomes, um novelista dionisiano 5 público e à crítica,“Roque Santeiro” consiste 4 O mito como base da narrativa 6 numa sátira inteligente e bem humorada que 5 Imagens Regionais, Janelas do Mundo 9 se presta a uma interpretação refinada de as- 6 Conclusão: As diversidades culturais: pectos importantes do sincretismo cultural o regional, o massivo e o folkpop 11 brasileiro.1 É uma ficção que apresenta ele- mentos instigantes para uma compreensão da 1 Introdução vida econômica, política e cultural do Bra- sil, entre outros motivos porque expõe, sob Colocamos aqui em discussão a teleno- a forma da paródia, uma“verdade seduzida” vela“Roque Santeiro”, como pretexto para do país, com a qual os indivíduos se identifi- uma interpretação da estesia coletiva do Bra- cam. sil. Ou seja, observando a ficção televisiva A brasileira já foi estudada em seriada, focalizamos a modulação dos afe- seus diversos matizes, seja como crítica ide- tos, sentimentos e sensações que confirmam ológica (Janine Ribeiro, 1999)2, como ex- os laços de sociabilidade entre os indivíduos, portação das imagens do Brasil (Marques pelo viés da estética. Partimos do pressu- posto que a telenovela constitui um produto 1Quando falamos em avaliação crítica nos referi- de comunicação e cultura que, malgrado o mos a alguns dispositivos como o Núcleo de Estudos sobre Telenovela e Ficção Televisiva Seriada, organi- seu caráter ficcional, permite uma contem- zado por Anamaria FADUL, Maria Aparecida BAC- plação e compreensão das imagens do Bra- CEGA e atualmente, sob a gestão de Lourdes MOT- sil. A narrativa de“Roque Santeiro” seduz TER, na ECA/USP, a partir do ano 2000. o público pela maneira como apresenta os 2JANINE RIBEIRO, Renato. “O Brasil pela tele- múltiplos aspectos da imaginação popular e novela” in Revista RUMOS, Os caminhos do Brasil em debate. Ano 1, no 1, Brasília, Dez.98/Jan.99, p. como desmonta as estratégias de poder do- 44-50. minante. É uma telenovela que, sobretudo, 2 Cláudio Cardoso de Paiva de Melo, 1988)3 ou como um tipo de pro- rantes da existência“na casa e na rua”;6 toda- dução do cotidiano (Borelli, 2000).4 Aqui via, ao invés de se orientar a partir de uma examinamos a telenovela“Roque Santeiro”, idéia do“dilema brasileiro”, como o faz Da especificamente, enquanto uma“alegoria” do Matta, Gomes apreende e apresenta a plura- Brasil (Walter Benjamin, 1971).5 Ao invés lidade e a “polifonia de vozes” que conjugam de uma mímese dos traços históricos, sociais a proximidade, a estranheza e afetividade por e políticos das cidadelas do Brasil, Dias Go- meio de uma estética do Brasil, para além mes utiliza a licença poética, para reconstruir dos seus recortes regionais e nacionais.7 os flashes do cotidiano“regional”, apoiando- Trata-se de uma telenovela que faz uma se nas estruturas antropológicas do imaginá- crítica da dimensão opressiva das institui- rio brasileiro (o que inclui os chavões, as ções sociais, políticas e religiosas, mas, so- crenças, a moda, o comportamento, as visões bretudo, consiste numa narrativa em que se de mundo e os estilos de vida). Assim, as fi- projeta o espírito coletivo do brasileiro, com guras da virgem e do lobisomem, das beatas tudo o que isto encerra de amistoso e explo- e das prostitutas, dos repentistas e dos cine- sivo. O mundo imaginário de“Roque San- astas, dos heróis e vilões constituem um tipo teiro”, desta maneira, é fabricado a partir das de alegoria do Brasil, em que estão presen- imagens populares que funcionam como vín- tes os elementos mitológicos, as modulações culos sociais agregando o espírito comuni- das moralidades e da estética que estruturam tário (Maffesoli, 1999).8 As procissões, as o sistema de pensamento, as falas e ações piadas, os comícios, as boates, os cabarés... coletivas, que definem os modos sociais de tudo isso se passa no cotidiano de“Roque competência comunicativa; em suma, alego- Santeiro”, irradiando as imagens da vida diá- ricamente,“Roque Santeiro” traduz o hibri- ria nas cidadezinhas espalhadas pelo Brasil, dismo cultural em que se inscrevem as ima- no litoral ou no interior. Encontramos na fic- gens do país tradicional e as ideologias de ção de“Roque Santeiro” muitos dos signos um Brasil moderno. presentes na descrição das culturas popula- Parodiando o antropólogo Roberto Da res na idade média e no renascimento, por Matta, a narrativa de“Roque Santeiro” ab- François Rabelais (Bakhtin, 1977).9 O vo- sorve e contagia o país dos “carnavais, ma- cabulário da praça pública, as festas popu- landros e heróis”, encenando instantes fulgu- lares, o alto celestial e o baixo corporal, as imagens sublimes e grotescas da vida vivida, 3MARQUES DE MELO, J. As telenovelas da Globo: Produção e Exportação. Summus, 1988. 6Ver a propósito DA MATTA, Roberto. Carnavais, 4 A telenovela como produção do cotidiano pode malandros e heróis. Rio de Janeiro: Zahar, 1983; ver ser entrevista em BORELLI, Silvia Helena Simões. igualmente, DA MATTA, A casa e a rua. Gêneros ficcionais - produção e cotidiano na cultura 7BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dos- popular de massa. São Paulo: Intercom, 1994. toiévsky. S. Paulo: Hucitec, 1981. 5 Sobre o conceito de alegoria, ver o trabalho con- 8MAFFESOLI, M.“A imagem como vínculo so- tundente de Walter BENJAMIN, A origem do drama cial” in MACHADO, J. (org.) Para navegar no século barroco alemão. S. Paulo: Brasiliense, 19 [–].E, tam- XXI. Porto Alegre: Sulina, 1999. bém, Lúcia Helena. Tótens e Tabus da Modernidade, 9BAKHTIN, M. A cultura popular na idade média Símbolo e alegoria em Oswald de Andrade. e no renascimento. O contexto de François Rabelais. S. Paulo: UnB/Hucitec, 1987.

www.bocc.ubi.pt Roque Santeiro, Uma alegoria do Brasil 3 como nas narrativas de Rabelais, compõem, pectos em particular que merecem destaque de modo similar, o repertório de imagens que na ficção de Dias Gomes, ou seja, as formas concedem densidade e ao mesmo tempo, le- de carnavalização, derrisão e subversão das veza à dramaturgia de Dias Gomes. Pode- normas; é importante ainda ressaltar a ma- mos situar o trabalho deste autor num con- neira como a telenovela expõe o bizarro, o texto mais amplo, que abrange várias expe- estranho, o insólito, enfim, tudo aquilo que riências estéticas decisivas no empenho de não se mostra com evidência nas interpreta- traduzir o caráter múltiplo e fragmentado da ções oficiais ou autorizadas do Brasil. alma atômica do país. Na história da cul- tura brasileira encontramos produtos que tra- 2 O bizarro, o grotesco e o duzem uma estética do país, apontando para os seus paradoxos e diversidades, de maneira popular na televisão afirmativa. Neste sentido, relembramos que A popularização dos tipos sociais nas tele- a literatura de Mário de Andrade demarcou novelas da Rede Globo tem sido uma prá- um estilo, com“Macunaíma, o herói sem ne- tica cuidadosa, pois a emissora almeja man- nhum caráter” (escrita em 1928 e adaptada ter o seu padrão de qualidade, e sendo as- para o cinema, com o título de“Macunaíma”, sim, age com cautela, separando de um em 1969, por Joaquim Pedro de Andrade); lado aquilo que considera“chique” e do lado também no cinema, Cacá Diegues elaborou oposto, aquilo que entende como“brega”; uma estética que desvelou o hibridismo cul- deste modo, o mundo“kitsch” forjado pela tural brasileiro, desnudando os seus interi- Rede Globo, refaz os termos de uma divisão ores e intimidades (vide, por exemplo,“Bye estética que, coloca em lados opostos a visão Bye Brasil”, 1979); no campo da produção de mundo e a experiência dos ricos e aque- musical, Jorge Mautner, além Caetano Ve- las dos pobres; aliás, isto é algo que aparece loso e Gilberto Gil, assim como os irmãos concretamente na telenovela“Brega & Chi- Campos na poesia concreta, atualizaram uma que” (Cassiano Gabus Mendes, 1987), além poética reveladora da conexão entre os múl- das telenovelas de , entre ou- tiplos traços do Brasil rural e urbano, arte- tros. sanal e tecnológico, religioso e pagão, pré- A forma e o sentido das telenovelas da industrial e ultramoderno, por meio da tropi- Rede Globo, até os anos 90, tinha se pau- cália. Na estética da mídia eletrônica, pelo tado pela prudência em evitar a difusão de viés das telenovelas, Dias Gomes cumpre uma estética“grotesca”, orientando-se an- este papel e a sua irradiação se faz presente tes por uma estetização mais harmônica, no cotidiano dos indivíduos reais, que gozam equilibrada e apolínea, tendo como referên- de uma experiência estética de qualidade, cia o“bom gosto” das chamadas“classes he- além de se informar por meio de uma leitura gemônicas”. Relembramos que na encena- satírica da cultura brasileira. Destarte, a tele- ção da mídia brasileira sempre houve uma novela se projeta como uma espécie de arte parcela de“circo”, com Chacrinha, Sílvio nobre, pela maneira como captura, atualiza Santos, os Trapalhões ou Jô Soares, mas e recicla os signos em rotação, na existência diária das pessoas. Entretanto, há alguns as- www.bocc.ubi.pt 4 Cláudio Cardoso de Paiva isto tinha um lugar bem definido e o“padrão as telenovelas de qualidade) funciona como Globo de qualidade” era preservado. uma maquinaria gigantesca que absorve o Hoje a Rede Globo tem exibido um es- imaginário popular, incluindo a parte de ira tilo de programação mais popularesco, que e de fascínio das diferentes camadas sociais; se estende nas telenovelas, noticiários e pro- esta é a sua dimensão afirmativa. Há pro- gramas de auditório, revelando um novo tra- dutos na TV, como “O Pagador de Promes- tamento daquilo que parecia bizarro na esté- sas”,“Gabriela, Cravo e Canela”,“O Auto da tica“clean” da televisão, nos anos 70/80; isto Compadecida” ou“Roque Santeiro”, que têm tem sido tratado com rigor por Muniz Sodré, reciclado tudo, conferindo uma nova roupa- servindo de base para estudos consistentes gem à ambiência cultural e como uma usina no campo da comunicação.10 de sonhos (e pesadelos) têm difundido as Observamos que a partir dos anos 90 se imagens de violência e de horror, embala- configura na televisão brasileira uma este- das nos produtos culturais, e deste modo se sia híbrida em que o sublime e o grotesco, aproximam do cotidiano brasileiro, de modo o trágico e o carnavalesco, o massivo e o bem abrangente. No fim das contas, as re- popularesco se imbricam criando uma nova des de televisão trouxeram para o palco as paisagem cultural, o que solicita uma deci- experiências dos segmentos populares com fração. Caberia aqui anotar que, primeira- todos os seus aspectos de vitalismo, eferves- mente, os audiovisuais introduziram no país cência e alegria, sem “deixar de fora” as ima- uma cultura de massa que, se por um lado, gens explosivas. Para o melhor e para o pior, pôde informar as vastas camadas da popu- as “imagens do povo” estão no ar, gerando lação, sem acesso a outras modalidades de formas da ira e do protesto, mas também educação e cultura, por outro lado, corre o de êxtase e identificação; a guerra das ima- risco de reduzir o repertório dos telespecta- gens que se processa na realidade cotidiana dores ao nível de uma reprodução das falas se projeta também nas imagens da televisão. e gestos da mídia, e pode –em muitos casos- Considerando que a Rede Globo ainda de- inibiu o poder de argumentação de segmen- tém uma certa hegemonia no que concerne à tos sociais, sob o efeito de um grande liqui- midiatização brasileira, a emissora demorou dificar ligado na velocidade do mercado (isto para perceber as transformações no campo se torna evidente se pensarmos em progra- da recepção, antes de reformular o estilo da mas como “Domingão do Faustão”,“Linha sua programação: o aumento quantitativo Direta” ou“Chico Anísio”, que contêm niti- das condições de acesso das classes popula- damente traços regressivos porque são mar- res aos aparelhos de TV, a concorrência com cados pelos clichês, estereótipos e procedi- as emissoras marcadas por um estilo mais mentos éticos excludentes). popular e a própria mutação nos valores éti- Entretanto, no que respeita ao mercado cos e sociais são alguns dos elementos que dos bens simbólicos, a TV (e particularmente contribuíram para as mudanças no formato e conteúdo da programação da emissora. O 10MUNIZ SODRÉ. A comunicação do Grotesco. Petrópolis: Vozes, 1980; __ O social irradiado. São fato é que a TV Globo entendeu que teria de Paulo: Cortez, 1992. absorver e difundir as imagens do Brasil, de modo cada vez mais“realista” (sem descar-

www.bocc.ubi.pt Roque Santeiro, Uma alegoria do Brasil 5 tar a parte de devaneio) se quisesse preservar blico. Dentre os escritores e novelistas do a sua parcela no quinhão da publicidade; e Brasil, certamente Dias Gomes, o mais di- enfim, convém assinalar que as tevês pagas onisiano dos autores, representa aquele que roubaram a atenção do público supostamente melhor soube entender como a telenovela é mais exigente, deixando às tevês abertas o similar a uma segunda pele, que se cola ao encargo de entreter e divertir as classes po- cotidiano brasileiro.“Roque Santeiro” é uma pulares. telenovela completa porque arregimenta um Dito isso, é importante relembrar que mui- amplo repertório de signos que diz respeito tos dos“canais pagos” também têm apri- às linguagens das pessoas simples, dos cida- morado a chamada“estética do grotesco”, dãos comuns e também satisfaz as exigências atraindo os telespectadores que se reconhe- dos segmentos orientados por padrões estéti- cem na representação do bizarro; hoje, as pa- cos mais arrojados. O padre, o coronel, o co- rabólicas realizam aquilo que Mattelart de- merciante, o homem da lei, o herói, o vilão, nomina “o carnaval das imagens”, difundido o louco, as beatas, as prostitutas, os aman- imagens, sons e textos que reúnem faixas de tes, os místicos, os miseráveis e os artistas, públicos bem distintas. enfim os arquétipos sociais que estruturam o A representação do popularesco pela TV ecossistema das pequenas cidades estão co- consiste numa empresa arriscada porque via locados em cena, na telenovela“Roque San- de regra se faz de maneira elitista, caricatu- teiro”. É uma ficção seriada que apresenta rada ou populista; tratar dos elementos bi- as lendas e os mitos que povoam o imagi- zarros do social sem cair nas armadilhas nário coletivo; o amor a Deus e o medo do de uma proposta moralista ou escatológica, diabo, a cobiça dos bens materiais e o desejo exige maestria e refinamento. Neste sentido, de eternidade, o êxtase da relação amorosa partimos do pressuposto que a temática do e o ritual carnavalesco da vida cotidiana são estilo popularesco na TV Globo, pode ser re- enfocados aqui, em diversos ângulos, numa visitada, em seu viés naturalista, sem pres- narrativa que marcou a história da ficção te- cindir do“fantástico”, a partir da leitura de levisiva.11 telenovelas consagradas pelo público e pela Realizando a simulação de uma cidade crítica, como é o caso emblemático da ficção real no território brasileiro,“Roque Santeiro” de “Roque Santeiro”. constrói um cotidiano naturalizado (sem es- quecer da poética), traduzindo uma aparên- 3 Dias Gomes, um novelista cia de verdade do Brasil e que é bem pre- cisa na proximidade das angulações econô- dionisiano mica, política e cultural do país. Dias Gomes Muitos autores perceberam que os tipos co- faz rir dos poderes constituídos, mostrando, muns do cotidiano brasileiro são intensos, na materialidade da linguagem e comporta- hiperbólicos e exuberantes, e como na lite- 11Encontramos a interpretação da cultura por meio ratura sensível às expressões populares, tra- de um resgate da base material que confere sentido zem consigo experiências enriquecidas, que às estruturas do cotidiano, no trabalho de Raymond criam fortes elos de identificação com o pú- WILLIAMS. Cf. Cultura. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1992. www.bocc.ubi.pt 6 Cláudio Cardoso de Paiva mento dos personagens as falhas, gafes e der- desse mundo mundo messiânico, mostrando rapagens das autoridades. Nos gestos mais o avesso de uma sociedade orientada por va- intimistas ou nas atividades públicas o coro- lores excludentes e regressivos, com prejuízo nel (Senhorzinho Malta), o comerciante (Zé para a saúde do coletivo. Um aspecto im- das Medalhas), assim como o prefeito Flo- portante, nesta obra de Dias Gomes, diz res- rindo Abelha e o Padre Hipólito exercem o peito à maneira como o autor se esforça para poder de mando, reafirmando a permanên- superar os traços maniqueístas; aqui os vi- cia do sistema“antigo” de dominação patri- lões têm momentos de ternura, assim como arcal nas sociedades tradicionais, em que o os virtuosos podem ser cruéis, os elementos privado e o público se misturam; tudo isto, trágicos se infiltram na ambiência romântica porém, se mostra na telenovela, de forma cô- e a presença do cômico ameniza as situações mica, risível e derrisória, o que implica num de densidade dramática. saber-fazer com poder de desmantelar as es- truturas opressivas do cotidiano, no campo 4 O mito como base da narrativa dos sistemas simbólicos. Não há uma moral da história prescrita pela narrativa de “Ro- Sinopse de "Roque Santeiro": Há dezessete que Santeiro”; geralmente as narrativas regi- anos, na cidade de "Asa Branca", o sacris- onais se fazem a partir de referências ideolo- tão Luis Roque Duarte, chamado de Roque gizadas, representando um mundo em que as Santeiro, pela habilidade em fabricar peque- coisas devem continuar como estão“porque nos santos de pedra, caiu morto tentando de- Deus quer” ou porque os poderosos da ci- fender a população das ameaças do bando dade, assim o querem; este é um terreno do temível "Navalhada"; foi consagrado pela propício para a instalação do messianismo, população que, a partir de então, passou a da idéia de salvação e situada considerá-lo miraculoso; tornou-se mito e a num futuro promissor; isto, aliás, serve para cidade prosperou graças à sua lenda. Entre- a“desconstrução” realizada por Dias Gomes, tanto, Roque, na realidade, não morreu, vol- que aposta num sentido trágico da história tará à cidade e ameaçará por fim à lenda. O marcada pela intuição do presente, desmon- seu retorno trará o pânico para o padre "Hi- tando de saída a visão de mundo dos podero- pólito", o prefeito "Florindo Abelha"e o ne- sos, ligada à ideologia do progresso e desen- gociante "Zé das Medalhas", o principal ex- volvimento sem mediações locais.12 plorador do mito. Contudo, o coronel "Si- Mas a peça“O berço do herói”, adap- nhozinho Malta", o rei da carne verde, está tada para o formato da telenovela “Ro- muito mais preocupado, pois mantém um que Santeiro”, na videoliteratura escrita por caso amoroso com a falsa viúva "Porcina”. Dias Gomes e seus“colaboradores”, assume (Ismael Fernandes, 1982).13 um ar de sátira e debocha sistematicamente Com a expansão do gênero das telenovelas, 12No lado oposto da perspectiva messiânica se en- observamos que algumas peças se tornaram contra o trabalho de Juremir MACHADO, cf.“Ficção memoráveis pelo estilo do autor que as es- e realismo na televisão brasileira” in __ Anjos da Per- 13 dição, Futuro e Presente na cultura brasileira. Porto XAVIER, Ismael. Memória da televisão Brasi- Alegre: Sulina, 1996. leira. S. Paulo Brasiliense, 1982.

www.bocc.ubi.pt Roque Santeiro, Uma alegoria do Brasil 7 creveu. Dias Gomes realizou uma aliança econômica, religiosa e política da cidade de incomum entre o ágil controle da narrativa, a “Asa Branca”. Em torno dos personagens de crítica das instituições políticas e religiosas e “Roque Santeiro” circulam as riquezas ma- a sabedoria para contar estórias que seduzem teriais e imateriais, a partir das quais se es- o gosto popular. Embora advindo da drama- tabelecem as circunstâncias do poder encar- turgia teatral, o autor desenvolveu uma lin- nado pelas figuras do prefeito, do banqueiro, guagem televisual que caracteriza, de modo do padre, do coronel, do professor e do de- marcante, as suas ficções no vídeo. legado. As estruturas de poder são perturba- Em despeito às perseguições da censura, das pelo retorno do personagem de Roque, Dias Gomes sempre articulou um tipo de co- que reaparece como herói, disposto a liber- municação que realizou bem as suas inten- tar os habitantes de “Asa Branca”, que per- ções. A sua obra nos parece particular tam- manecem na pobreza, sendo explorados pe- bém porque atualizou a discussão sobre o ca- los poderosos, enquanto estes últimos se be- ráter múltiplo da ficção televisiva enquanto neficiam das riquezas geradas pela indústria uma nova forma de arte tecnológica, que se do mito de “Roque Santeiro”. Tudo isso re- irradia no contágio do social. percute de modo marcante junto ao imaginá- As telenovelas de Dias Gomes contêm ele- rio popular, principalmente, junto às comu- mentos que nos abrem as portas para uma re- nidades rurais, como mostram diversos estu- flexão das questões éticas, sociais, políticas dos.14 e religiosas, e que inquietam o cotidiano do Outros personagens, como os jornalistas e Brasil. A produção deste autor atraiu a aten- os artistas de cinema que vieram da capital ção dos censores sobre o espírito da obra que para filmar a lendária história de“Roque San- viria perturbar as convenções sociais, numa teiro” fazem o contraponto da telenovela. As época de fechamento ideológico. A impu- imagens cinematográficas, na narrativa, po- reza e o perigo, que se agitam na ficção sen- dem ratificar ou desmontar o mito de“Roque sível de Dias Gomes, afirmam-se nos confins Santeiro”; logo serão vigiadas, controladas, da imagem e som e texto, de tal maneira que manobradas. Este aspecto de dupla configu- as limitações de um olhar apenas técnico não ração do mito (na telenovela e no cinema de pode percebê-los. Entretanto, o modo como ficção) é um recurso interessante, utilizado o autor traduz os aspectos trágicos e entusi- pelo autor que nos alerta para os modos de asmados, o belo e o terrível da vida cotidi- fabricação da aparência da realidade. ana, em toda sua potência, demonstra um tra- Duas vezes nascida, a telenovela“Roque balho que supera as limitações de uma dra- Santeiro” é mítica desde a sua anunciação; maturgia ordinária. interditada pela censura, dez anos antes, foi O caráter dionisíaco da obra de Dias Go- exibida pela Rede Globo, nos anos 80, en- mes se faz perceptível pela maneira como 14PIMENTA, A. C; QUEIROZ, Maria da Glória. o autor apresenta o caos desordenando a ti- ¸SUmanovela rural: o impacto de SRoque´ SanteiroŠ rania dos poderes estabelecidos. A desor- em duas comunidades rurais brasileirasTˇ in MAR- dem surge do retorno de um fantasma, de QUES DE MELO, J. (Org.) Comunicação na Amé- um simulacro de herói, que funciona como rica Latina, Desenvolvimento e Crise. S. Paulo: Papi- mito, regendo os fundamentos da vida social, rus, 1989. www.bocc.ubi.pt 8 Cláudio Cardoso de Paiva volta numa aura de curiosidade e expecta- tico, pois Dias Gomes percebe que a supres- tiva. são do mito implicaria numa“estrutura au- A crítica e a ironia dos valores fazem desta sente” e (tristeza) no imaginário e na exis- telenovela uma ficção importante. O autor tência do coletivo; este é um traço presente apresenta de maneira sensível e inteligente na sua visão dramatúrgica, desde“O Pagador uma alegoria do Brasil, utilizando-se da me- de Promessas”. talinguagem. A introdução do artefato do ci- A ficção de "Roque Santeiro"não reproduz nema na ficção televisiva criou um efeito cu- uma realidade tal qual ela deveria ser, pois rioso; a realização de uma metaficção, no in- ela –de certo modo- já existe. Na alegoria terior da telenovela, consiste numa estratégia proposta por Dias Gomes, alguns traços são astuta que coloca em evidência a questão do mais ampliados, algumas idéias de Brasil são mito, o qual estrutura toda a vida social de colocadas em cena, às avessas e com isso, o Asa Branca, uma referência às mitologias do autor desmonta as certezas que estruturam as Brasil. Os aspectos de salvação e de messi- relações de poder e de mando. Neste sen- anismo, seja pelo viés de uma política neoli- tido, a potência mitológica com todo o seu beral prometendo a felicidade, seja por uma lado maravilhoso e barulhento, de pureza e visão de mundo orientada pelas diretrizes de perigo que se mostram aos olhos do público; um princípio democrático, que –de fato- não a dramaturgia de Gomes não é harmônica, serve para todos, seja pelo viés de uma reli- apolínea, mas dionisíaca, híbrida, misturada gião redentora que promete o reino dos céus, de forma que apreende toda a pluralidade da enfim as mitologias do Brasil, com toda a sua alma do Brasil. O sincretismo religioso, o carga ideológica e conformista são coloca- messianismo, a disputa dos heróis e malan- das em xeque na telenovela. Por outro lado, dros, os traços característicos da face multi- existe uma dialética muito saudável na narra- forme do cotidiano brasileiro são ali apresen- tiva de“Roque Santeiro”, pois as mitologias tados. As decisões importantes para a vida aparecem ali como janelas que arejam o ima- coletiva são tomadas no silêncio da noite, nas ginário popular, resgatando as experiências conversas íntimas, no calor das festas no bor- históricas e simbólicas da comunidade. Por del ou numa partida de jogos de azar; es- exemplo, toda a alegoria do bordel tem um tes pequenos acontecimentos, em sua bana- sentido muito preciso na história da sexua- lidade, que fazem a trama social, são postos lidade das cidades do interior, assim como a nu, na ficção. as procissões, os comícios, os carnavais, que Existem por todas as partes do texto de por sua vez, consistem em dimensões mito- "Roque Santeiro"os elementos para uma in- lógicas que alimentam o cotidiano dos in- terpretação sociológica da vida nacional. A divíduos, assim como a potência imaginal mitologia e a sensualidade, a linguagem e do cinema e da televisão;“Roque Santeiro” o imaginário típicos de uma cidadezinha do cita outras telenovelas, como“Saramandaia”, nordeste, o resíduo das formas religiosas tra- como uma referência em que se mistura o dicionais e a emergência das novas tecno- “mundo real” e o mundo ficcional do Brasil. logias, permitem-nos compreender o caráter Em síntese, o mito não morre, na narrativa híbrido da cultura. de“Roque Santeiro” e isto é muito sintomá- Em recorrência às narrativas populares,

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Gomes coloca em cena o apetite voraz (gas- gão da exuberância e a festa cósmica, uma tronômico e sexual) da viúva“Porcina”, as tradução mais próxima das inquietações da peripécias no hotel e na boate de“Mathilde” cultura. "Roque Santeiro"é importante tam- ou no cabaré da“Rua da Lama”, onde se bém porque ao fim da narrativa, o mito em desenrolam situações pitorescas, mas que torno do qual se estrutura a vida social, per- servem, sobretudo, para distinguir dois re- manece intacto, em toda a sua potência, con- gimes de economia e política também no tradição e exuberância. âmbito das experiências sexuais; podemos ainda apreciar as cantorias do cego repen- 5 Imagens Regionais, Janelas do tista (Arnaud Rodrigues), que rompe o có- digo normativo da língua, numa cidade que Mundo se sustenta às custas da mentira e do mito “Roque Santeiro” representa um marco den- de um morto que está bem vivo, e ainda nos tre as telenovelas com temáticas regionais; “assustamos” com as sombras de um lobi- antes dela tivemos “Irmãos Coragem”, espé- somem que ataca as mulheres na boca da cie de faroeste tupiniquim, que atraiu o pú- noite. Atrás do humor refinado desta ficção blico masculino, “Saramandaia”, uma ficção alegórica, encontramos os traços da apari- com traços das “Metamorfoses”, de Ovídio ção“daimônica” das figuras do destino, das e“Gabriela”, adaptação feliz da obra de Jorge imagens dionisíacas que perturbam o imagi- Amado. Mas se “” inaugu- nário social. rou um estilo de linguagem popular urbana, Utilizando-se de um segredo que cede lu- “Roque Santeiro” atualizou um estilo pop- gar a um mito forjado e a ameaça da sua re- regionalista porque sincretiza elementos do velação por uma trama política ou pela meta- Brasil urbano e do Brasil rural. Na realidade, linguagem do cinema, o autor produziu uma esta ficção seriada traduz um tipo de alegoria alegoria inteligente que leva à reflexão. Mas do Brasil porque, de certo modo, trata-se de é o expediente da desconstrução que se faz um simulacro que se aproxima bastante do presente nesta ficção de maneira bem evi- cotidiano das pequenas cidades do país. Isto dente, desde as imagens de abertura, em que é, mostra, por meio de ângulos ficcionais, de- a câmera desvela um procedimento de in- talhes surpreendentemente próximos do Bra- venção e montagem de uma microcidade “de sil histórico real. E isto serviu como parâme- brinquedo”, que parece se inspirar numa ci- tro para outras telenovelas e minisséries que dade real. vieram posteriormente, como“”,“A É possível se apresentar o microcosmo so- Indomada” ou “O Fim do Mundo”. Na re- cial de uma maneira apolínea ou prometêica, alidade, as telenovelas, cujas temáticas se isto é, reproduzir o "real"de modo harmô- voltam para as regiões do Brasil arcaico, nico, filiado ao mito do progresso e à repe- têm essa característica de captar, ampliar e tição da ordem restabelecida; mas é possí- desconstruir alguns detalhes e dimensões do vel, igualmente, apresentar este microcosmo Brasil histórico, muitas vezes antecipando à maneira dionisíaca, afrodisíaca, excitante- linguagens, costumes e estilos de comporta- mente diabólica, ou seja, liberando as pul- mento. As telenovelas conseguem exprimir sões, o pathos coletivo, o desejo e o fogo pa- www.bocc.ubi.pt 10 Cláudio Cardoso de Paiva a dimensão pop das culturas regionais, re- Edward SAID e outras filiações dos atu- velando até mesmo as maneiras como estas ais estudos culturais.17 Deste modo, as te- regiões convivem com as inovações tecnoló- lenovelas“regionais” assimilam os jargões, gicas, midiáticas ou cibernéticas. Encontra- linguagens e estilos do mundo industriali- mos na projeção das ficções televisivas se- zado, mas tudo isso de modo misturado com riadas as expressões atualizadas da folkco- as manifestações locais, com as expressões municação, isto é, as expressões folkmidiá- mais antigas ou tradicionais. A estesia da ticas. Isto é, ali se inscrevem as formas atu- televisão, neste sentido, traz à tona todo o ais das culturas populares, mas já em suas processo de hibridização das raízes ibéri- versões de culturas híbridas, em suas mo- cas, africanas, orientais, indígenas, mestiças dulações transversais em que o artesanal, o com as formas latinas, européias e ameri- midiático, o publicitário, o industrial, o tec- canizadas que compõem o “cadinho cultu- nológico e o cibernético se fundem, confi- ral” do Brasil. Respaldando o nosso ponto gurando uma nova aparência, que podemos de vista, encontramos argumentações sóli- traduzir como expressões de uma nova cul- das que podem fornecer pistas para compre- tura pop-regional. As telenovelas mostram endermos as novas formações culturais que o que Mattelart denomina de a“revanche das preservam os resíduos e enraizamentos secu- culturas”, ou seja, as culturas regionais, no lares e ao mesmo tempo assimilam as signa- ato de recepção das mensagens da globali- gens urbano-industriais, contaminadas pelas zação cultural, impregnam a construção de imagens e sons das mídias e dos novos re- sentido com os matizes das experiências lo- cursos tecnológicos e informacionais. Serge cais;15 como aponta Mattelart, as massas re- Grunzinsky, Deleuze e Guattari, Baudrillard alizam uma espécie de“carnavalização das e Maffesoli, entre outros, partindo de dife- imagens”, inserindo“distraidamente” os ele- rentes posições epistemológicas, mostrando mentos típicos de sua formação histórica e índices, ao mesmo tempo, regressivos e afir- cultural e assim, todo o sentido da cultura mativos, têm contribuído para entendermos é transformado.16 Mas este expediente já as formas culturais em mutação, que se es- está inscrito na agenda dos movimentos da tendem diferentemente pelos diversos espa- arte de vanguarda, que veio a se traduzir ços e tempo do chamado “capitalismo glo- na rubrica do “pop”; depois da grande divi- bal”.18 Como expressaram alguns teóricos são entre“cultura letrada”,“cultura popular” 17HUYSSEN, A.“After the great divide: moder- e“cultura de massa”, o“pop” aparece como nism, mass culture, pos-modernism”. In: __ Memó- uma expressão que traduz a estesia na so- rias do modernismo. Rio: Ed. UFRJ, 1996. ciedade de massas; é o que podemos de- 18GRUNZINSKY, Serge. La Guerre des Images. preender das leituras de Frederic Jameson, De Colomb à Blade Runner. Paris: Fayard, 1989; DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs, 15MATTELART, Armand.“Mediações e mestiça- Capitalismo e Esquizofrenia. S. Paulo: Ed. 34, 1992; gens: a desforra das culturas”: In: __ Comunicação BAUDRILLARD, J. “Sexo, mídia & lazeres” in __ Mundo, História das Idéias e das Estratégias. Vozes, A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 19__; 1996. MAFFESOLI, M. No tempo das tribos. Rio: Forense 16MATTELART, A e M. O carnaval das imagens, Universitária, 1987; __ No fundo das aparências. Pe- A ficção na TV. Brasiliense, 1980. trópolis: Vozes, 1996.

www.bocc.ubi.pt Roque Santeiro, Uma alegoria do Brasil 11 da comunicação como Mc Luhan, Umberto tre os quais destacamos Luiz Beltrão, Eco, Abraham Moles,19 ou de modo mais pela força como até hoje a sua pers- próximo, como sugerem Muniz Sodré, Dé- pectiva da“folkcomunicação”irradiou-se, cio Pignatari ou Marcondes Filho,20 a in- atualizando-se e engendrando novos en- trodução dos objetos modernos, industriais, foques. Compreendendo o“folk” em seu tecnológicos, engendram novos códigos, lin- caráter mais espontâneo, como projeção guagens, modos de sentir e de fazer, expe- das práticas cotidianas, a sua inserção no riências e visões do mundo; tudo isso pro- contexto da cultura televisual tem funcio- duz novas tribalizações, estesias e semioses nado como uma ampliação e um recorte que se projetam sensivelmente nas formas de aprimorado de algumas arestas da vida arte modernas, como por exemplo, as teleno- social. Relembramos que em “Gabriela”, velas. E, insistimos, muitas vezes as ficções pela primeira vez a sintaxe regional adquiriu materializam experiências, linguagens e prá- uma dimensão global, espalhando pelos ticas que já existiam de modo latente na re- quatro cantos do Brasil uma pronúncia alidade histórica, mas apenas com as lentes das linguagens locais, que se por um lado e câmeras dos audiovisuais se tornaram mais pareceu estereotipada como expressão evidentes. de ingenuidade ou preguiça, por outro, apareceu de maneira amistosa, em sua 6 Conclusão: As diversidades dimensão de cordialidade e generosidade. Aparecerá mais tarde na sátira de“A In- culturais: o regional, o massivo domada”, recheada de anglicismos, como e o folkpop paródia do espírito colonizado, provinciano e também carnavalesco de algumas regiões A representação do regional na cultura do Brasil; a cidadela de“Greenville”, onde de massa forjada pela televisão já foi os habitantes falam com os cacoetes de uma tema de estudo de diversos autores, den- nação colonizada (pelos ingleses, mas numa 19MC LUHAN, M. A Galáxia de Gutemberg. S. clara referência ao assédio da cultura ame- Paulo: Cultrix, 1972; __ Os meios de comunicação ricana); ali, contudo, sendo o fio condutor como expressões do homem. S. Paulo: Cultrix, 1974; da trama baseado no realismo fantástico, o ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. S. Paulo: Perspectiva, 1970; __ Viagem na Irrealidade Cotidi- ato de rir de si mesmo resulta numa estética ana. Rio: Nova Fronteira, 1984; __ O Superhomem inteligente, que se impõe pela qualidade da de massa. S. Paulo: Perspectiva, 1991; MOLES, A. interpretação dos artistas e pelo primor da O Kitsch, A arte da felicidade. S. Paulo: Perspectiva, produção técnica. 1972. Todavia, “Roque Santeiro” (escrita por 20MUNIZ SODRÉ. Máquina de Narciso. Rio de Janeiro: Achiamé, 1984; PIGNATARI, Décio. __ Dias Gomes, mas reescrita também pelos co- Signagem da Televisão. S.Paulo: Brasiliense, 1984; laboradores), assume uma configuração bem __ Letras, Artes e Mídia. Rio: Globo, 1999; MAR- típica do que chamamos de“folkpop”, pois CONDES FILHO, Ciro. MARCONDES FILHO, mistura os signos da cultura popular, com as Ciro (org.) Pensar pulsar - cultura comunicacional, linguagens do cinema, dos seriados america- tecnologias, velocidade. Coletivo do NTC. São Paulo: Edições NTC, 1996. nos e das outras telenovelas. Isto é, os perso- nagens e as ações expressam um mundo com www.bocc.ubi.pt 12 Cláudio Cardoso de Paiva feições rurais, com traços pré-capitalistas e tempo existe o pároco da aldeia, o Padre Hi- pré-industriais, mas dialogam com as figu- pólito, conservador que almeja salvar o reba- ras e os cenários do grande capital interna- nho, mas em contraponto, ali também mora cional; citamos, por exemplo, a passagem o Padre Albano, o chamado“padre verme- da viúva Porcina e do Coronel Senhorzi- lho”, de tendências progressistas, que esti- nho Malta por“Dallas”, ou seja, no ambiente mula os nativos a se organizarem e a en- na conhecida ficção seriada americana; estes frentarem as formas de opressão e explora- momentos da TV brasileira funcionam como ção dos poderosos. Naquele mundo, con- um tipo de carnavalização que estivera pre- vive o lobisomem que assombra as mulhe- sente nas experiências dos “modernistas” e res, nas noites de lua cheia, além do Profes- dos“tropicalistas”. sor Astromar, um intelectual que busca raci- No que concerne ao cinema, “Dona Pom- onalizar o mito que estrutura a cidade e se binha”, a esposa do Prefeito Florindo Abe- organiza politicamente na oposição aos lati- lha, menciona várias vezes o seu medo fundiários. A própria abertura da telenovela das“pessoas que viraram melancias”, numa mistura inteligentemente os ícones do ima- referência ao filme“Os Invasores de Corpos” ginário rural, provinciano e regional, com (EUA, 19[–]); o próprio desfecho, no aero- os ícones do mundo urbano, cosmopolita e porto, onde Porcina () renun- globalizado, com um desfecho interessante, cia ao amor de Duarte (ou seja, do persona- mostrando que tudo aquilo é uma encenação gem de Roque Santeiro, na pele de José Wil- com maquetes de casas, automóveis e perso- ker) para ficar com a segurança do coronel nagens fictícios. Contudo,“Roque Santeiro” (), trata-se de uma paródia (ou é interessante também pela maneira como melhor, um pastiche) do filme“Casablanca”. apresenta o mito como algo inalienável tam- O próprio ato de inserção da metalingua- bém nas culturas modernas, como algo que gem no interior da formação discursiva da te- permanece nas canções, nos usos e costu- lenovela, confere uma dimensão pop a esta mes, nas estruturas da vida cotidiana. ficção televisa; pois, como mencionamos, no interior da telenovela se encontra em cons- trução um filme sobre“A Saga de Roque San- teiro”, na qual os personagens da telenovela intervêm, discutindo o desfecho das situa- ções que eles próprios vivenciaram. Assim, a telenovela demarca um estilo original em que o regional se metamorfoseia numa con- juntura, que entendemos como“folkpop”, em que o artesanal e o industrial, o antigo e o novo se fundem, gerando uma linguagem renovada. A telenovela original tinha um bordel, que não bastou para os colaborado- res“modernos”, que introduziram uma bo- ate para os encontros fortuitos; ao mesmo

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