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Uma Madona n’outras Madonas: feminilidade e sensualidade na poética Sironeana

Soraia Cristina Cardoso Lelis*

Quando pinta, sua em tecnicólor e do seu teto escorre óleo que sobrou da Capela Sixtina. Mas quando começou a pintar saía sangue. O que não foi nada – o pior foi quando descobriu que a arte é uma forma imortal de hemofilia.1

Observação e experimentação: - foi assim que Siron Franco2 (Goiás Velho-Brasil, 1947) - artista internacional, pintor do Brasil, deu início à sua carreira como artista plástico. Atualmente tem presença sólida nos acervos e museus mais importantes da Europa, das Américas e do Brasil, sendo considerado e respeitado como um dos artistas plásticos mais atuantes e mais importantes no cenário cultural brasileiro, com mais de 150 exposições nacionais e internacionais. Naturalmente estudioso e um sedento observador do cotidiano que o cerca, tem um trabalho fervoroso dedicado à pintura e ao desenvolvimento de uma técnica muito particular, fato conquistado com extrema disciplina, levando-o a ocupar a posição de protagonista no cenário artístico brasileiro. Sua arte é muito ligada à terra, à vida, à nação, a seu dia a dia, a dores, sucessos, mazelas, ao que se passa dentro e ao lado dele: - um artista peculiar ligado às questões do seu tempo. Sua arte gesta as mais polêmicas temáticas sociais com o objetivo de questionar, denunciar e levar o espectador à reflexão, travando uma luta diária para despertar o sensível adormecido no coração da humanidade: Os artistas, na

* Graduada em Educação Artística e Pedagogia, Especialista em Educação, Psicopedagogia e Ensino de Artes Visuais, Mestre em Artes e professora de Arte da Escola de Educação Básica da UFU – ESEBA.

1 Millôr Fernandes in “Exposição de Pinturas: São Paulo - Rio - Paris”. Best Editora, São Paulo – Montesanti Galleria: 10/11/1987; Rio de Janeiro - Montesanti Galleria: 03/12/1987; Paris – Galerie 1900 – 2000: 20/01/1988.

2 Gessiron Alves Franco, nasceu em Goiás Velho (GO) em 1947 e aos 13 anos ganhava a vida em Goiânia, retratando pessoas ricas e copiando quadros do espanhol El Greco (1541 – 1614) para as igrejas, sendo a sua primeira obra, uma reprodução da “Última Ceia” de Leonardo da Vinci. O artista freqüentava um estúdio ao ar livre que pertencia a D.J.Oliveira e Cleber Gouvêa, dois artistas locais com os quais estudava pintura. Em 1960 torna-se aluno – ouvinte da Escola de Belas Artes da Universidade Católica de Goiânia. Aos 20 anos retrata a mulher do governador de Goiás, abrindo caminhos para Brasília, onde tornou-se pintor oficial de figuras da alta sociedade brasileira. Faz sua primeira exposição individual em 1968, expondo também em São Paulo, o começo de uma grande série de exposições no Brasil e no exterior. Entre 1969 e 1971, freqüenta os ateliês de Bernardo Cid e Walter Levy, em São Paulo. A partir de então, a carreira de Siron ascendeu, transgredindo a pintura. Autor de instalações, esculturas, painéis e monumentos, sempre remetendo-se à questão preservacionista, a denúncia da violência, objetivando com sua poética, a conscientização da sociedade.

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contemporaneidade, demonstram claramente, a interligação entre arte e vida, ciência, preocupações filosóficas e estéticas, ou seja, fazer arte, pensar arte, questionar arte, viver arte de forma singular.3 Transitar pelas obras de Siron Franco, permite uma grande incursão pelo universo feminino onde despontam suas Madonas, Mulheres, Marias, Santas Marias. Um universo em que contrastam sensualidade, gestualidade, sutilezas, santidade... num hibridismo que envolve a mulher com sua força e fraqueza, verdade e mito, desvelando a sacralidade e o profanismo nas questões que a cercam – no passado e na contemporaneidade. Tendo, porém, a MADONA de 1980 como referência - um óleo sobre tela medindo 50 cm x 40 cm, acervo particular de uma colecionadora uberlandense e uma das obras da série Madonas, exaustivamente trabalhada em Goiânia - GO no final da década de 70 e início de 80, passa-se então, a uma análise de tal obra, fomentando um diálogo desta com outras de suas madonas, bem como outras mulheres retratadas por Siron, caminhando para outros artistas que também permeiam suas obras com o perfil feminino.

Fig 01 (detalhe)

As imagens têm poder de fala, pois são formas e estruturas de pessoas, que se indagam,, se afirmam, se negam. As formas expressam e refletem nossos pensamentos e nossas maneiras de ser e de acreditar em determinados valores, pois somos modalizados e modalizantes pelas manifestações visuais.4

3 FRANGE, Lucimar Bello Pereira. Por que se esconde a violeta? São Paulo: Annablume, 1995, p..234 a 257.

4 FRANGE, Lucimar Bello Pereira. Leituras de obras de arte em discussão. In: “A compreensão e o prazer da arte”, p. 8-12, s/d.

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Na obra em questão, a figura humana é o centro e o grande enfoque do artista que cria um jogo ambíguo de fundo-objeto, moldando eventualmente a cabeça ou envolvendo-a. Nos signos que emprega, não há espaço para aceitação e comodismo e sim, um forte questionamento visual. Nesta Madona de Siron, uma obra figurativa, a imagem incorpora um conteúdo, de modo que se torna uma só realidade, um todo, uma unicidade. A figura feminina realça-se sobre o fundo negro, numa forma que significa organização, ordenação, estrutura. O espaço da tela mantém a divisão figura-fundo, concentrando-se na figura. Assim, a área que tem a função de fundo não só parece recuar em nossa percepção, como também recebe menos atenção. A ênfase nos olhos, circundados/delimitados sistematicamente, marca toda a produção plástica do artista na década de 80, como podemos observar nesta obra. Siron desenha o olho com um risco branco ou linhas que o delineiam, contrastando com o sombreamento das pálpebras superiores. Além do risco branco que ilumina o olhar, o autor circunda de forma fechada e colorida todo o olho direito e contorna o esquerdo com uma linha aberta que nasce ascendentemente na lateral do nariz e desce para o queixo. Abrindo o gesto do pincel, circunda-o e ascende a face direita para concluir o contorno do rosto na forma de seta. Sabe-se que, o contraste de claro e escuro pode existir independente de um foco de luz, pois A luz articula uma vibração no espaço. Quanto mais intenso o contraste, mais visível é o efeito da vibração. Embora em cada contraste, os componente claro e escuro apareçam intimamente interligados – pois só reunidos tornam-se expressivos e não perdem seu caráter individual, nem tampouco (o que talvez seja mais importante) seu significado original.5

Assim, a incidência maior de luminosidade nesta obra está na região mais clara, na pele do rosto um tanto pálida (nas bochechas e no queixo), limitados por uma linha curva de cor ocre, contrastando com o véu vermelho bem delineado e com o fundo escuro. A linha curva e aberta evoca, na Madona de Siron, uma ambiência e é portadora de um movimento direcional que contorna a cabeça, sinalizando um fechamento possibilitado pela cor. Sabe-se portanto, que no contexto colorístico, por mais que se antecipe o efeito da cor, sua presença sensorial constitui um fenômeno imprevisto e inteiramente intraduzível.6 Essas linhas delimitam uma área e com isso definem a presença de um novo elemento visual, com novas possibilidades e novo caráter imagético – a superfície. As linhas nos dão a

5 OSTROWER, Fayga Perla. Universos da Arte. Rio de Janeiro: Campus, 1986, p. 236.

6 Op. Cit., p. 225. 4

superfície do quadro dividido em figura e fundo, altura e largura, áreas de cor, volume e profundidade. As superfícies fechadas são reguladas pelas margens e as abertas, freadas na faixa dos contornos, regulam-se pela articulação da área interior. Há uma certa sensualidade escondida no olhar, traduzida pela cor. Siron parece não fazer uso de cor pura, trazendo um equilíbrio entre cores quentes e frias que passam pelo vermelho do véu ou manto e seguem pelo dourado, amarelo, ocre, indicando-nos proximidade, densidade, opacidade ou materialidade. As cores frias do marfin ao bege da pele, incorporam uma transparência, podendo retratar distância, abertura, imaterialidade. O preto utilizado no fundo realça ainda mais esse rosto sereno e por isso mesmo, belo. Contudo, o nariz afunilado, delicado, traçado diagonalmente e os lábios finos e rosados trazem características particulares desse artista, como podemos perceber nas outras obras da série Madonas, poetizadas e retratadas aqui como um substrato de rara beleza. Nesse olhar, rosto/face, outras personagens se corporificam, trocam de figurino e caracterizam as Madonas de Siron com suas sutilezas e olhares em véus que permutam entre o preto, o vermelho e o branco, mantendo-se o contraste figura-fundo, tons claros e escuros que se contrapõem.

Fig 02 (detalhe) Fig 03 (detalhe) Fig 04 (detalhe) Fig 05 (detalhe) Fig 06 (detalhe)

As obras de Siron aqui contempladas fornece-nos um arcabouço gráfico e as referências anatômicas expressas nas suas madonas. Algo de sagrado se nos mostra, desvelando uma santidade ou virtuosidade no tecido que envolve a cabeça em uma espécie de manto que acoberta a feminilidade do pescoço e tronco, variando apenas no contraste das cores branco, preto e vermelho que abrigam rostos/retratos muito semelhantes. Em uma das madonas (Fig 04) vê-se claramente a mão espalmada, um dos signos recorrentes na poética do artista, presentificados em muitas de suas obras, como se pode verificar a seguir, não com tanta ênfase, mas veladas na parte inferior das telas (Fig 07 e fragmento, Fig 08 e fragmento 2). 5

Fig 07 Fragmento Fig 08 Fragmento 1 Fragmento 2

O olho circundado em uma forma fechada na madona sironeana é também recorrente e marco incisivo em outras pinturas de Siron (Fig 08 e fragmento 1) e na literatura pictórica, encontra-se também sígnica nesta obra de Otto Dix7 (Fig 09 e fragmento), na qual retrata uma jornalista excêntrica e de aparência severa, com os componentes essenciais de uma mulher da sociedade de Berlin, não faltando ao contexto, a cadeira, a mesa de café com tampo de mármore, cigarros e um drink da moda à época, o Spritzer. As cores vibrantes trazem a sensação de tensão e suspense e a sensualidade é dada pelo elemento da meia que escorrega pela perna da jornalista. O retrato é um exemplo da corrente chamada Neue Sachlichkeit - “Novo Objetivismo”.

Fig 09 Detalhe

Todavia, Siron Franco transita sua iconografia com elementos em negro e veladuras em ocres e beges, por símbolos que ele adota à exaustão, como a mão espalmada (Fig 07 e 08), a seta (Fig 11 e 12), os grafismos, as peles (Fig 10), o espiral (Fig 11), os olhos circundados/marcados, o detalhe do acessório na cabeça (Fig 10), como uma marca digital denunciadora, criando um mundo pictórico próprio, onde suas telas e propostas estéticas são imediatamente identificadas como “sironeanas”, na palavra do poeta e crítico de arte . E esse fato nos é revelado não só pela sua temática e sim pela qualidade de sua

7 Pintor e ilustrador alemão (1891-1969), perseguido durante a ditadura nazista, com obras conhecidas como "arte degenerada". Entre 1919 e 1926, sua melhor fase, integrou a corrente da Nova Objetividade, sofrendo influência das principais correntes da pintura, do impressionismo ao expressionismo. Lecionou de 1927 a 1933 na Academia de Belas Artes de Dresden.

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pintura, pelo uso dos planos, da cor, pelo equilíbrio e estruturação formal, tendo sempre presente um ideal de beleza sugerido pelo próprio artista em seus temas, sua vida, suas musas. Dessa maneira, seus trabalhos desvelam telas que se revestem de força em sua contemporaneidade, com um cunho particular e uma grande e ousada forma de investigação do seu repertório poético, o que o consagra também como um exímio pesquisador. As obras trazidas para um diálogo iconográfico, sintetizam e descrevem os conteúdos intrínsecos à produção de Siron, seja como Arte Indignada, Arte Denúncia ou Arte Expressão, nas quais o artista se compraz com os descasos, as diferenças, as injustiças sociais e dialoga cada vez mais com um público oprimido, sedento de verdade. Percebe-se, nessas obras, o destaque à área dos olhos, como se Siron quisesse abri-los frente o universo e, ao mesmo tempo, linhas envolvem , circundam ou extrapolam a boca, no sentido de não se fazer calar, como se a pessoa apresentada trouxesse um recado, uma súplica, uma explicação ou um grito de desabafo (Fig 8). Linhas e formas se esvaem da cabeça para o mundo (Fig 9), ou a cabeça que se transforma em milhares de olhos abertos para a situação do homem contemporâneo (Fig 10). Grandes adereços envolvem a mente, o cérebro, talvez uma alusão ou tentativa de dizer ao mundo que arte é conhecimento, arte é cognição e não apenas sentimento, expressão, liberdade de criação. A arte passa pela corporeidade plena do ser humano, despertando e aguçando os seus sentidos. Nas palavras de , O trabalho da arte passa pela mente, pelos olhos, pela garganta, pelas mãos; e pensa e recorda e sente e observa e escuta e fala e experimenta e não recusa nenhum momento essencial do processo poético.8 Siron trabalha com um grande leque de cores e sabe harmonizá-las no suporte, de modo que se mesclam, se fundem e dialogam entre si pelo viés da imagens ou personagens/objetos destacados na obra. Habitando outros contextos da linguagem pictórica de Siron Franco, percebe-se a constância da linha que origina no olho e ascende em direção a outras partes do rosto, bem como a seta - signos presentes na obra-referência desse ensaio crítico (Fig 01), aqui abarcadas em uma amostragem imagética:

Fig 10 (detalhe) Fig 11 (detalhe) Fig 12 (detalhe) Fig 13 (detalhe) Fig 14 (detalhe)

8 BOSI, Alfredo. Reflexões sobre a arte. São Paulo: Ática, 1985, p. 71. 7

Elementos que se mesclam, se permutam e se fundem no repertório desse artista considerado o número 1 do Brasil9 , pela força e maturidade da sua criação pictórica. Siron tem um mundo fantástico próprio e consegue explodi-lo no pincel, trazendo imagens que dão ao leitor sensações/visões dúbias, como a obra, “Cobra” (Fig 13), que permite enxergar do lado direito da tela, o contorno de um busto, ora um retrato frontal, ora perfilado, num jogo inteligente de cores e formas imagéticas. Resgatando-se, pois, a figura da mulher na história da pintura, Madonas Mães Marias, percebe-se no poetizar de outros artistas de diferentes contextos e épocas, imagens que trazem a presença maternal, mulher mãe- zelosa, muitas vezes retratadas como a Virgem Maria que traz o Menino Jesus em seu colo, com características muito próximas, como se pode confirmar nas obras eleitas nesse percurso de análise poética:

Fig 15 (detalhe) Fig 16 (detalhe) Fig 17 (detalhe) Fig 18 (detalhe) Fig 19 (detalhe)

As obras desvelam, bem como na madona de Siron (Fig 01), perfis de Rainhas Mulheres Madonas, sempre marcadas pela figura angelical, pela sacralidade revestida da santidade da virgem – a mãe que concebe e cuida com seus atributos de mulher, desvelada/transfigurada em um contexto poético no qual é assim concebida:

Ave Maria mãe de Jesus, mãe de quem o segue, mãe de quem tem fé! Ave Maria menina santa, namorada e noiva de São José. Ave Maria lá de Belém, lá de Nazaré, lá de Jerusalém! Ave Maria de trezentos nomes, de tantos lugares. Amém…10

9 , diretor do MASP, 1980. X Bienal Internacional de São Paulo.

10 Pe Zezinho. Santa Maria da Graça. CD Quando a gente encontra Deus. Manaus: Ed. Paulinas – COMEP. 8

A percepção de Fouquet11 se nos apresenta com uma imagem aparentemente de uma Rainha dos Céus e do seu filho (Fig 15) - Agnès Sorel, amante de Carlos VII da França e também adorada por Chevalier, primeiro patrão de Fouquet. O quadro pode ter sido uma encomenda em sua memória, já que fora executado no ano em que Agnès faleceu. A obra é também uma influência dos artistas nórdicos com Jan van Eyck12, por sua argura aos detalhes como a riqueza da coroa em ourivesaria e pelas diferentes texturas da veste, do manto e do véu transparente. Se observarmos, porém, a Madona do pescoço longo, de Parmigianino13 (Fig 17), constatamos que tal pintura não se insere nos cânones dos seus antecessores. Iniciado em 1532, este quadro pintado após passar algum tempo em Roma onde estudou obras de artistas como Rafael, revela uma preocupação de conferir à figura da Virgem Maria uma aparência graciosa e elegante, representando-a com o pescoço longo e esguio. Alongou deste modo, as proporções do corpo humano. As figuras quase que se vêem através de um espelho deformador. Lochner14 também apresenta com sua técnica sutil, graça e misticismo, a doçura do rosto da Virgem e as cores puras das túnicas, sugerindo o espaço no qual a Virgem está entronizada – o jardim de rosas em caramanchão, símbolo tradicional de sua pureza (Fig. 16).

11 Jean Fouquet (1429 -1480). Suas figuras parecem ter sido modeladas; usa a luz de uma forma muito semelhante à de Piero della Francesca. Se, por um lado, demonstra a sua influência italiana nas figuras calmas e esculturais que pinta num espaço real, por outro, pinta de um modo diferente dos italianos (demonstra um interesse pela contextura e pela superfície das coisas, filiado na tradição setentrional de Jan Van Eyck).

12 Jan Van Eyck (1390-1441) com o intuito de espelhar a realidade em todos os seus pormenores aperfeiçoou a sua técnica: foi ele o inventor da pintura a óleo. Ao contrário da têmpera (que devido à utilização do ovo secava muito depressa), a nova fórmula permitia-lhe realizar transições suaves, trabalhar mais lentamente e com maior exatidão. A arte de Van Eyck atingiu talvez o seu maior trunfo na pintura de retratos.

13 Parmigianino (Parma, 1503-1540), infundiu à composição mais vibração e movimento. Essa tendência é geralmente chamada de Maneirismo, devido à sua utilização consciente e à tentativa de reformular as proporções eqilibradas da Renascença. Geralmente utilizava composições com poucas figuras, mais do que cenas de multidão, como que para enfatizar a graça de seus personagens.

14 O pintor Stefan Lochner (1410 - 1451), trabalhou em Colónia em meados do século XV e era uma espécie de Fra Angelico setentrional. Descrito como o último artista gótico, foi também diretor da Escola de Colônia.

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As Madonas de Rafael15, entretanto, estão entre as mais encantadoras do Renascimento. Sua suavidade e graça derivam de uma tradição fiorentina do século XV, que substitui as imagens duras e hieráticas da arte bizantina por uma representação mais terna da relação entre mãe e filho. O pintassilgo é o símbolo da Paixão de Cristo: segundo a lenda, ao retirar um espinho do rosto de Jesus respingou uma gota de sangue em sua cabeça (Fig 18). Em sua outra Madona (Fig 19), sobre um fundo escuro, Rafael criou uma das mais simples e memoráveis imagens do gênero . O modo como Rafael pintou a Virgem Maria foi adaptado pelas gerações seguintes, tal como acontecera com a concepção de Miguel Ângelo face ao Deus-Pai. Uma pintura como a "Madona do Grão Duque" (Fig 19) pode ser considerada um clássico, no sentido em que serviu de modelo de perfeição a muitas gerações subseqüentes. Porém, se a compararmos com outras representações do mesmo tema chegamos à conclusão que todas elas pretenderam alcançar a simplicidade atingida por Rafael. Outrossim, a virtuosidade das Madonas Virgem Maria Sacras Marias, irradia beleza e a sua pureza transita pelos altares dos templos em forma de oratórios – uma reverência à sua magnitude, destacadas em caráter contemplativo no gesto criador de grandes artistas/pintores. São concepções que transgridem o pincel para além da palheta cromática dos autores – uma exaltação à feminilidade e à santidade de Maria, modelo de mulher e mãe, Madonas... tão expressivas quanto a obra sironeana em análise (Fig 01), porém, acompanhadas do Menino e de anjos - todas retratadas de corpo inteiro, à exceção da primeira (Fig 20).

Fig 20 (detalhe) Fig 21 (detalhe) Fig 22 (detalhe) Fig 23 (detalhe) Fig 24 (detalhe) Fig 25 (detalhe)

15 Rafael Santi ou Sanzio (1483-1520) era admirado pelos seus contemporâneos pela pura beleza das suas figuras. Abandonou a reprodução fiel da natureza que tinha sido a ambição de tantos artistas do Quattrocento. Usou deliberadamente um tipo de beleza regular, deixando de idealizar o modelo. O seu nome não deve ser associado apenas às belas Madonas ou a figuras idealizadas do mundo clássico.

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Na Madona de Della Robbia16(Fig 20), a intensidade do azul é realçada pela justaposição com um esmalte branco puro. Relevos como esse não são classificados nem como pintura nem como escultura – mas estão entre as duas categorias. A modelagem sutil e as linhas claras dessa escultura não poderiam ser alcançadas sem um profundo conhecimento do desenho – a base da pintura e da escultura. Duccio17 em sua Madona encomendada em 1285 (Fig 21), uma peça fundamental à sua carreira, traz um retábulo que mostra a Virgem sentada no trono com o menino Jesus, cercada por anjos ajoelhados que a olhavam com devoção, expressa a linha com formas alongadas e pela orla dourada da roupa da virgem. As túnicas dos anjos exibem a habilidade do artista na aplicação da cor. Esta obra foi pintada para a Igreja de Santa Maria Nova, de Florença. O Mestre de Moulins18 (Fig 22), com sua técnica refinada, destaca a luminosa opulência das pedras preciosas da coroa e os traços alongados da Virgem são de um maravilhoso lirismo, trazendo a figura feminina elengantemente vestida com ricos brocados de veludo vermelho e azuis. A Virgem e o Menino rodeados de anjos são banhados por uma luz mística e atrás deles há um fundo visionário e uma luz crescente colocada aos seus pés. Os talentos de gravador de Schongauer19 podem ser vistos também na pintura, como em sua “Madona do jardim de rosas” (Fig 23), nas dobras da roupa da Virgem que são divididos em planos de luz e sombra em diferentes tons. Na obra, mãe e menino dirigem o

16 Luca Della Robbia (Florença, 1400 – 1492), preocupava-se com a representação do espaço tridimensional no plano. Um misto de sensualidade e pureza marca a maior parte da sua obra, constituída por baixos-relevos, medalhões e frisos com madonas, profetas, santos e sobretudo crianças de expressão serena e alegre. Dedicou-se à terracota policrômica e esmaltada, considerada a parte mais representativa de sua obra, principalmente as Madonas.

17 Duccio di Buoninsegna (Siena, 1255 – 1918), exímio narrador da arte na pintura sobre madeira, foi precursor do estilo renascentista, havendo levado ao apogeu a arte medieval italiana de tradição bizantina. Seus trabalhos, de caráter religioso se destacam pela sensibilidade do desenho, a habilidade da composição, a qualidade decorativa, similar à dos mosaicos.

18 Um dos grandes pimtores franceses do século XV, seu nome é derivado de sua principal obra, um trípdico na Catedral de Moulins. Sabe-se pouco sobre ele, não se conhecendo nem mesmo o seu nome verdadeiro, o que deu origem a várias teorias a respeito da sua identidade. Alguns especialistas acham que pode ter sido pintor da corte do rei francês Carlos VIII.

19 Martin Schongauer (1453 -1491) foi um dos gravadores mais célebres do século XV que viveu na região do Alto Reno (Alsácia). Foi muito influenciado pela arte flamenga. 11

olhar para focos distintos, embora a Virgem embale o filho no colo e este envolva seu pescoço com os braços. A obra seguinte, outra madona de Rafael (Fig 24), é considerada por muitos críticos, como a pintura mais original do artista sobre o tema da Virgem com o Menino. Este célebre altar tem sido reproduzido incansavelmente através dos tempos, tendo sido esta imagem criada para a Igreja de São Sisto em Piacenza. Traz à direita a figura de Santa Bárbara e à esquerda São Sisto e entre eles, a imagem celestial da Virgem com o menino. Noutra perspectiva, a imagem universal da Virgem Maria é retratada irreverentemente como uma figura inflada e balofa, no estilo singular de Bottero20 que criou uma impressão da enormidade monumental da Virgem em contraste com os elementos minúsculos que emergem das nuvens ao fundo – recurso comumente usado pelo artista em suas obras. A serpente na base da tela é extremamente comprida, uma forma de alargar a sua dimensão. O autor, contudo, não deixa de expressar a feminilidade e a sensualidade presentes na Madona de Siron (Fig 01), bem como o instinto materno dos demais artistas que retrataram a Virgem. Para tornar a leitura dessas imagens ainda mais contemplativa, quer-se povoar o universo semiótico do leitor para adentrar numa esfera ressignificadora, desvelando seus mistérios, suas dualidades em olhares e escutas sensíveis para um mundo de significados, significadores e significantes, como nos excertos das canções que elevam Maria à categoria suprema. “Ave Maria, mãe abençoada, virgem imaculada, és, Santa semente do amor, Maria mãe de Deus, é cheia de graça, santo é o fruto do teu ventre Jesus. Ave Maria, Ave Maria, Maria que concedeu o amor em Cristo Nosso Senhor, madre generosa, rogai por nós, os pecadores, mãe querida. Amém, amém”! 21

“Ave Maria, cheia de graça/Ave Maria, o Senhor é convosco/Ave Maria, bendito sois vós entre as mulheres/Ave Maria, bendito é o fruto do teu ventre/Ave Maria, que Deus escolheu para ser a mãe de Jesus./Santa Maria que o tínheis nos braços/Santa Maria que estáveis fiel junto à cruz/Santa Maria que abrigai os nossos cansaços/Santa Maria que estais lá no céu junto ao Cristo Jesus…/Ave Maria!Ave Maria!Santa Maria”!22

20 Maior artista colombiano cujas obras caracterizam-se pela sim,plicidade de formas e esplêndida aplicação de cores. Mora em Paris desde 1971, onde continua a pintar e a esculpir. Seu trabalho recente inclui uma série de esculturas monumentais de nus femininos, que foram expostos ao longo do Champs-Elysées.

21 Simone Telésforo. Ave Maria. CD Simone Telésforo. São Paulo: NH Assessoria Fonográfica Ltda, Studio Color Company.

22 Pe Zezinho. Ave, Santa Maria. CD Canções que a fé escreveu. Botucatu-SP: Ed. Paulinas – COMEP.

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“Mãe do céu morena/Senhora da América Latina/De olhar e caridade tão divina/De cor igual à cor de tantas raças/Virgem tão serena/Senhora destes povos tão sofridos/Patrona dos pequenos e oprimidos/Derrama sobre nós as tuas graças”…23

Porém, para os primitivos ou para o homem de todas as sociedades pré-modernas, a sacralização da mulher muitas vezes tem conotação de poder, à realidade por excelência do sagrado. Após estas análises e reflexões, percebe-se, pois, a necessidade de um diálogo com Durkheim24 , refletindo sobre os traços numerosos e diversos, geralmente incompatíveis e díspares: o sagrado (madonas) e o profano, especialmente nas figuras femininas às quais remete a arte de Siron. Caberia também, para além das composições musicais destacadas nas linhas anteriores no que se refere ao sagrado - repertório sacro25 e gospel26 na perspectiva de leitura das Madonas de Siron e das Virgens Marias de outros mestres da pintura, incursionar pela Música Popular Brasileira27, em canções que evocam e reverenciam a mulher, no que há de profano, ou seja, nos elementos que fazem parte do mundo natural, porque a oposição sagrado / profano traduz-se muitas vezes pela contradição real / irreal ou pseudo-real. O mundo profano na sua totalidade – o Cosmos totalmente des-sacralizado, é uma descoberta recente no espírito humano, porque o homem moderno des-sacralizou o seu mundo e assumiu uma existência profana, de diminuição do poder. Assim, “no sagrado tradicional existe uma sacralização de um ‘centro organizador’ exterior (Deus, Cosmos, Natureza, Sociedade...) o

23 Pe Zezinho. Mãe do Céu Morena. CD Os melhores momentos. Botucatu-SP: Ed. Paulinas – COMEP.

24 David Émile Durkheim (França, 1858 – 1917), sociólogo, teórico da sociologia clássica, é considerado um dos pais da Sociologia. Com a Teoria Social do Conhecimento, representa o Socialismo Positivista surgido na França na década de 1890. Foi também um dos primeiros cientistas que estudou o suicídio.

25 Sacro – Sagrado, digno de respeito e veneração, para o qual sugere-se ouvir tais canções para a construção de uma sensibilidade mais apurada e um diálogo “olhar e escuta corpóreos”: Ave Maria Caccini /Mercúrio; Sancta Maria Mascagni, arr Mercúrio; Ave Maria Bach/Gounod; ou Ave Maria Schuberty, orch Weingartner.

26 Gospel – espiritual, de caráter religioso.A mesma sugestão para: Nossa Senhora, Roberto Carlos; Ave Maria, Adriana; \Nossa Senhora, Adriana; Ave Maria no morro, ; Lá no altar de Aparecida, Pe. Zezinho; ou Senhora e rainha, Pe. Zezinho.

27 Para abastecimento interior, mesclando as mulheres trazidas pelos artistas em suas obras, com composições musicais brasileiras que abordam a temática feminina em seus versos, como:Maria, Maria – ; Linda – ; Mulheres de Atenas – ; Mulheres – ; Lindeza – Caetano Veloso; Morena dos olhos d’agua – Chico Buarque; A Rita – Chico Buarque; Por causa de você – Jorge Bem; Mulher e daí – Gonzaguinha; Luiza - Tom Jobim e ; Garota de Ipanema - Tom Jobim e Vinicius de Moraes; Madalena - Elis Regina; Gabriela – Beatriz, CD Globo Collection II; Terezinha - Zizi Possi; Princesa - Jorge Bem Jor; Menina - Netinho; Marina - ; A dama do sucesso - Osvaldo Montenegro; dentre outras.

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qual será o centro de uma circunferência sobre a qual se alinham os ‘eus’ individuais que reverenciam o centro e que estão distanciados sacrificialmente em relação a ele.”28 Contudo, “a oposição radical entre o sagrado e o profano parece ter dado lugar a uma conexão contemporânea de sociedade como um tecido, onde se entrelaçam elementos divinos e humanos, sem que os limites estejam nitidamente marcados.” 29 Tanto no plano espiritual como no mundo natural, o sagrado e o profano se hibridizam e se personificam, materializando-se em seres humanos com ambições, frustrações, imparcialidades, impasses, angústias, dúvidas, vôos e sobrevôos. As Madonas Mulheres Marias de Siron Franco são permeadas tanto por sobriedade quanto por extravagâncias e não deixam de trazer a auréola, circular ou reta, traço tão recorrente no profano com identidade no sagrado, onde as Marias - Santas Virgens Marias se cobrem com véu, o que, na modernidade ou contemporaneidade se transfigura em turbantes ou chapéus, como se pode ratificar nas obras presentificadas aqui (Figs. 26 a 34), que nos remetem à Madona de Siron – obra em análise.

Fig 26 (detalhe) Fig 27 (detalhe) Fig 28 (detalhe) Fig 29 (detalhe) Fig 30 (detalhe)

28 ANES, José Manuel. O sagrado com centro organizador: uma perspectiva transdisciplinar Conferência de encerramento do Colóquio Internacional do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa. www.triplov.com/coloquio_05/anes.html

29GONTIJO, MiguelProfanas Escrituras. Santo Antônio do Monte, 1949. www.teleartes.uai.com.br/miguell.html

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Fig 31 (detalhe) Fig 32 (detalhe) Fig 33 (detalhe) Fig 34 (detalhe)

Em outras obras, as Madonas Mulheres Marias surgem com extrema sensualidade, vestidas ou não. São traços, épocas e contextos diferentes, mas a feminilidade e a sensualidade sironeana para sua Madona (Fig 01) se mantém nessas mulheres de tantos autores. Mondigliani30, Bellini31, Munch32 e Moreau33, respectivamente nas obras/imagens das figuras de nº 35, 36, 37 e 38, dão prioridade ao tema pictórico do modelo feminino nu, sensualizado e erotizado, que, em contraste com as obras anteriores, não objetivava, certamente, a intenção de criar um objeto de devoção religiosa. As linhas alongadas e sinuosas dão qualidade ao caráter escultural e coloca-nos diante de um ideal secular de beleza, uma sensualidade misteriosa que nos atrai para a vibrante pintura da Madona (Fig 37), representada numa pose de abandono e exala uma sexualidade desafiante, mesmo considerando-se o sentido de tragédia trazida pela palidez epidérmica, quanto pelos seus cabelos e olhos escuros. Porém, em “Galatéia” (Fig 38), as miríades multicoloridas de flores aquáticas e a suavidade da execução ao retratar a sensualidade feminina, conferem à pintura uma característica mágica e onírica, representando elementos mitológicos, como o estranho monstro de três olhos que a observa.

30 Amedeo Mondigliani (Itália), pintor e escultor, tinha um ritmo de vida exaustivo. Desenvolveu um estilo individual e restrito de pintura e não se ligou intimamente a nenhum movimento, embora tenha sido influenciado pelo Cubismo, pela escultura africana e pela obra de Paul Cézanne. Morreu tuberculoso aos 34 anos.

31 Giovanni Bellini (Veneza, 1431 -1516), contribuiu muito para popularizar a técnica de pintura a óleo, cabendo a ele o crédito de ter transformado Veneza num importante centro da Renascença. Fez parte da geração de artistas cujos discípulos e seguidores foram os mestres famosos do Cinquecento. Foi mestre de Giorgione (1478-1510) e Ticiano (1485-1576).

32 Artista Norueguês (1863 – 1944), fundador do estilo conhecido como Expressionismo, no qual distorções emocionais e cores exageradas são utilizadas para atingir o máximo da expressividade.

33 Gustave Moreau (1863 – 1944), pintor francês, associado ao movimento simbolista, cujos pintores se afastavam do naturalismo objetivo dos impressionistas, preferindo buscar inspiração numa síntese de fontes literárias ou mitológicas. Fez também inúmeras aquarelas muito apreciadas por seus contemporâneos.

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Fig 35 (detalhe) Fig 36 (detalhe) Fig 37 (detalhe) Fig 38 (detalhe)

Fig 39 (detalhe) Fig 40 (detalhe) Fig 41(detalhe) Fig 42 (detalhe)

As obras apresentadas nas figuras de nº 39, 40, 41 e 42, respectivamente retratadas por Denis Maurice34, Guirlandaio35, Leonardo da Vinci36 e Jawlensky37 trazem formas de representação feminina, seja na imagem das três mulheres esguias que desvelam a verticalidade da composição nas dobras dos seus vestidos ou nos troncos das árvores (Fig 39), bem como na imagem perfilada – convenção utilizada na pintura de retratos da Renascença florentina, traduzida em serenidade, beleza e elegância (Fig 40), ou no trabalho bastante conhecido de Da Vinci, a "Mona Lisa", um retrato de uma dama florentina chamada Lisa, datado de 1502, obra famosa em todo o mundo por seu sorriso enigmático e por ser uma das poucas pinturas do estimado mestre da Renascença, ou ainda, no retrato forte e expressivo

34 Denis Maurice (1879 – 1943) era membro dos Nabis, o grupo de pimtores que se associavam ao uso expressivo da cor e do ritmo de Paul Gauguin. Aos vinte anos, fez a seguinte afirmação: “Lembremos que uma pintura – antes de ser um cavalo de guerra, uma mulher nua ou um episódio – é essencialmente uma superfície plana com cores reunidas numa certa ordem”. Esta maneira de ver a arte acabou levando-o à abstração.

35Domenico Ghirlandajo (1449-94) é considerado um dos mais cotados mestres do final do Quattrocento florentino, pois sabia como "contar alegremente" a história sagrada. Além de produzir retratos, era exímio pintor de afrescos. Foi especialmente apreciado pela utilização naturalista de detalhes e por sua habilidade em captar a vida e o estilo do seu tempo.

36 Leonardo da Vinci (1452-1519), famoso mestre e músico. Recebeu conhecimentos sobre a óptica da perspectiva e o uso das cores. Conheceu o corpo humano a partir da dissecação dos mesmos. Construiu maquetas com novos efeitos para representações teatrais e cortejos.

37 Alexei von Jawlensky (Rússia, 1864 – 1941), combinava elementos do Fauvismo, como os contornos e cores fortes, com os da arte camponesa e o misticismo dos ícones religiosos russos.

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com contornos nítidos, cores intensas e chocantes evocando sensualidade, embora seu rosto sugira distanciamento sexual (Fig 42). Pode-se dialogar, contudo, com essas obras, buscando recebê-las no cruzamento de referências visuais e musicais, mergulhando em contextos distintos, porém, coincidentes em relação à abordagem ou eixo temático:

“Ela tem pura sedução/Chega e ganha todos os sentidos/Sem querer ela tem o dom/ Um encanto que tanto me agrada/Sabe bem dosar o mel/E pra me adoçar é só uma pitada de atenção/O toque de mão/Basta um gesto e eu esqueço o resto/Tudo o que ela toca vira ouro/É alquimia, início de paixão/Tem a inocência, mas tem a sensação/Na mistura, a essência do prazer/Uma censura, nada a esconder”.38

Nesta perspectiva, percebe-se no decorrer desse ensaio crítico, que as obras que reverenciam as Madonas Mulheres Mães Marias, submetem o leitor a um redimensionamento do olhar, pois exprimem situações, intenções e manifestações autorais provenientes da bagagem cultural do artista. Entende-se que as suas vivências têm cunho particular e ímpar ao exprimirem seus valores, pensamentos e emoções. Daí, o nascimento desta proposição de mergulho nos saberes pictorais para adentrar a arte como um retorno ao seu entorno, exercendo autor e leitor os papéis que lhe são devidos para o exercício pleno de saborear a liberdade de criação e o direito de expressão. Desta forma, teceu-se considerações aos fatores visuais, às formas que prescindem dos conteúdos e dos temas abordados e anunciados não só na poética de Siron Franco, que abriga um conteúdo semântico próprio e independente, como também, a outros repertórios plásticos. Imaginação, sensibilidade, prazer e entusiasmo se interpenetram no desabrochar de um estilo pictórico com grande afinidade estrutural nas propostas de diálogo público-obra, que revelam em Siron um artista múltiplo. Sociologicamente pensando, nota-se que Siron apresenta em sua narrativa plástica, um estudo da relação de suas atividades artísticas com a esfera social, com o meio no qual se insere, visando deflagrar discussões a nível da situação sócio-cultural do povo brasileiro, infundindo cultura e arte, arte e cultura. A obra de Siron é verdadeiramente artística, pois contextualiza-se à realidade e discute temas relevantes com o apreciador/fruidor, culminando um resultado de experiências, processos e comportamento artístico autêntico e de qualidade.

38 Guilherme Arantes. Ouro. CD 16 sucessos de Guilherme Arantes. Brasil: Columbia, Sony Music.

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A linguagem artística existe de forma requintada e ao mesmo tempo simplória, na combinação dos elementos formais e temáticos de suas telas, as quais exprimem uma certa empatia com o leitor. Acredita-se que esse é o papel do artista : permitir o diálogo no espaço- tempo do artista, da obra, do espectador. Nesta perspectiva,

“A obra de arte parece um objeto especialmente facilitador para o resgate do homem enquanto ser social e cultural, leitor e intérprete, criador e criatura. Não só porque aglutina múltiplas formas de saber, mas principalmente porque uma obra de arte não é apenas objeto de apreciação estética; é fruto de uma experiência desvelada pelo processo de criação do artista e pelo signo da obra. Partilhamos de sua criação quando no momento da leitura somos interpretantes, criando signos-pensamentos, habitando a obra, recriando-a”.39

As obras de Siron Franco, especialmente as que compõem a série “Madonas”, suscitam o olhar, levando-nos à contemplação40, ao olhar poético e sensível, a um olhar não isolado, mas enraizado na corporeidade plena, enquanto sensibilidade, motricidade e apreciação, percurso no qual o artista demonstra amplamente seu trabalho de pintor, desenvolto, muito liberto e coerente com os novos caminhos que elege. Enfim, o exercício de olhar a poética sironeana para ver ou ver para olhar, permitiu conhecer sentindo, sentir conhecendo41 e contemplar, considerar, respeitar, admirar, maravilhar-se e encantar-se com tamanha simplicidade, feminilidade e singeleza dos olhares trazidos pelas Mulheres-Marias, Marias-Mulheres, Santas Marias, Marias Santas, Virgens Marias, Donas Marias, Donas ... Madonas!

39 BUORO, Anamélia Bueno. O olhar em construção: uma experiência de ensino e aprendizagem da arte na escola. São Paulo: Cortez, 1996.

40 NOVAES, Adauto (Org.). O olhar. São Paulo, Companhia das Letras, 1988, p. 74-8.

41 Op. Cit, p.74. 18

LISTA DE FIGURAS

Fig 01 – Siron Franco, 1980. Madona, óleo sobre tela (50cm x 40 cm). Fig 02 - Siron Franco, 1976. Madona, óleo sobre madeira (60cm x 70 cm). Fig 03 – Siron Franco, 1977. Madona, óleo sobre madeira (45cm x 60 cm). Fig 04 - Siron Franco, 1977. Madona, óleo sobre madeira (70cm x 60 cm). Fig 05 – Siron Franco, 1977. Madona. Catálogo exposição “SIRON EXPÕE ARTE SACRA” Miguel Jorge: Goiânia, 17/02/1977. Fig 06- Siron Franco, 1980. Madona, óleo sobre tela (50cm x 40 cm). Fig 07 – Siron Franco, 1978. Retrato Anônimo, óleo sobre tela ( 136 cm x 130 cm) Fig 08 – Siron Franco, s/d. O Homem – Série Situação, óleo sobre tela (s/m) Fig 09 – Otto Dix,1926. Fragmento: Retrato da Jornalista Sylvia von Harden, óleo sobre madeira (120 cm x 88 cm) Musée National d’Art Moderne, Paris. Fig 10 – Siron Franco, 1983. Qualquer semelhança não é mera coincidência, óleo sobre tela (90 cm x 80 cm) Coleção Nei Gonçalves Dias. Fig 11 – Siron Franco, 1983. Sonho da casa própria, óleo sobre tela (100 cm x 100 cm) Fig 12 – Siron Franco, 1984. O iniciado, óleo sobre tela (50 cm x 40 cm) Fig 13 – Siron Franco, 1986-7. Cobra, óleo sobre tela (90 cm x 110 cm) Fig 14 – Siron Franco, Déc. 80. O exercício da censura, óleo sobre tela (155 cm x 135 cm) Fig 15 - Jean Fouquet, 1450. Fragmento:A Virgem e o menino, têmpera sobre madeira (95,5 cm x 86,4 cm) Koninklijk Museaum voor Achone Kunsten, Antuérpia. Fig 16– Stefan Lockner, s 1440. Fragmento: A Virgem com o Menino num caramanchão de rosas, óleo sobre madeira (50,5 cm x 40 cm) Walhaf – Rochartz Museum, Colônia. Fig 17– Parmigianino, c 1532. Fragmento: A Madona do pescoço longo, óleo sobre madeira (219 cm x135 cm) Palazzo Pitti, Florença Fig 18 – Rafael, 1507. Fragmento: Madona com Pintassilgo, óleo sobre tela (107 cm x 76,8 cm) Uffizi, Florença. Fig 19 – Rafael, c1506. Fragmento: Madona do Grão Duque, óleo sobre tela (s/m) Palazzo Pitti, Florença. Fig 20 – Luca Della Robbia, 1475-80. Fragmento: Madona e Menino entre dois anjos, terracota esmaltada (diâm. 100 cm) Museo Nazionale del Bargello, Florença. Fig 21 - Duccio, 1285. Fragmento: A Madona Rucellai, têmpera sobre madeira (450 cm x 290 cm) Galleria Degli Uffizi, Florença. Fig 22 – Mestre de Moulins, c 1500. Fragmento: Coroação da Virgem, óleo sobre madeira (157 cm x 142 cm) Notre Dame, Moulins. Fig 23 – Martin Schongauer, 1473. Fragmento: A Madona do jardim de rosas, óleo sobre madeira (200 cm x 115 cm) Saint Martin, Colmar. Fig 24 – Rafael, c1513. Fragmento: Madona Sistina, óleo sobre tela (2,6 m x 1,96 m) Galleria Gemälde, Dresden. Fig 25 - Fernando Botero, 1972. Fragmento: Nossa Senhora de Cajica, óleo sobre tela (234,4 cm x 181,8 cm) Coleção Particular. Fig 26 – Siron Franco, déc. 70. s/i (Retrato de Dóris), óleo sobre tela (100 cm x 70 cm) Encomenda particular de uma cidadã uberlandense. Fig 27 – Siron Franco, 1982. Trilogia, óleo sobre tela (133 cm x 153cm) Fig 28 – Siron Franco, 1983. Retrato revisitado da rainha, óleo sobre tela (110 cm x 90 cm) Fig 29 – Siron Franco, 1982. Retrato de noiva, óleo sobre tela (180 cm x 170 cm) Fig 30 – Siron Franco, 1982. Mesa branca, óleo sobre tela (155 cm x 135 cm) Fig 31 – Siron Franco, 1983. Amantes tropicais, óleo sobre tela (110 cm x 90 cm) Fig 32 – Siron Franco, 1983. Homenagem a Farnese, óleo sobre tela (80 cm x 90 cm) 19

Fig 33 – Siron Farnco, 1981. Figura, óleo sobre tela (50 cm x 40 cm) Fig 34 – Siron Franco, 1996. O que vi na TV canal 100, óleo sobre tela (60 cm x 70 cm) Fig 35 – Amadeo Mondigliani, 1912. Fragmento: Nu, óleo sobre tela (92 cm x 60 cm) Comtaud Institute Galleries, Londres. Fig 36 – Giovanni Bellini, 1516. Fragmento: Jovem mulher no seu toalete,óleo sobre madeira (62 cm x 79 cm) Kunsthistorisches, Paris. Fig 37 – Edvard Munch, 1894-5. Fragmento: A Madona, óleo sobre tela (91 cm x 71 cm) Najonalgalleriet, Oslo. Fig 38 – Gustave Moreau, 1880. Fragmento: Galatéia, óleo sobre Madeira (85 cm x 67 cm) Coleção Particular. Fig 39 – Denis Maurice, 1897. Fragmento:Retrato de Yvonne Lerolle, óleo sobre tela (166 cm x 78 cm) Musée Departamental du Pieuré, Saint-germany-en-Laye. Fig 40 – Domenico Guirlandaio, 1488. Fragmento: Retrato de Giovana Tornabuoni, têmpera sobre madeira (77 cm x 49 cm) Fundación Coleción Thyssen-Bornemisza, Madri. Fig 41 – Leonardo da Vinci, 1503-6. Fragmento: Monalisa,óleo sobre madeira (77 cm x 53 cm) Musée du Louvre, Paris. Fig 42 – Alexei von Jawlwnsky, 1910. Fragmento: Schoko, óleo sobre Madeira (75 cm x 65 cm) Coleção Particular.

REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO

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