A busca pela identidade: o cinema humanista de

REIS, Flávio Barbara (graduando em História)1 Universidade Federal de Ouro Preto

Resumo: O objetivo deste trabalho é fazer uma estudo acerca da identidade cinematográfica de Walter Salles. Primeiramente passa-se por uma revisão bibliográfica da fase intitulada Retomada do Cinema Brasileiro. Posteriormente um breve resumo de quem é o cineasta Walter Salles e por fim será apresentada uma pequena análise de seus principais longa metragens, onde percebe-se que há uma constante busca pela identidade dos personagens, que é uma característica marcante na sua filmografia. Dentro dessa filmografia será comentado acerca das características visuais de seu cinema e serão apresentadas também suas maiores influências e referências a grandes cineastas e filmes do cinema mundial. Os filmes a serem comentados serão "Terra Estrangeira" (1995), "Central do Brasil" (1998), "O Primeiro Dia" (1998), Abril Despedaçado (2002) e "Diários de Motocicleta" (2005), principais trabalhos na carreira do diretor.

Palavras chaves: Mídia Audiovisual. Cinema. Retomada do Cinema Brasileiro. Walter Salles.

Introdução

"Se alguém por mim perguntar diga que eu só vou voltar quando eu me encontrar." Candeia

Walter Salles Júnior, possui uma filmografia constante no mercado nacional e internacional, e nos seus longas temas comuns são encontrados, como a busca pela identidade e, de acordo com Mariana Mol Gonçalves (2008), o cinema do cineasta brasileiro "interessa investigar o homem e suas relações"2. A autora coloca que cinema de Salles possui um caráter humanista, ou seja, ela acredita que em seus filmes os seres humanos possuem uma postura de vida democrática e que eles tem o poder de dar

1 Trabalho apresentado no GT de História da Mídia Audiovisual e Visual, integrante do 9º Encontro Nacional de História da Mídia, 2013. 2 GONÇALVES, 2008. p. 11. sentido e forma às suas próprias vidas trazendo a característica de um cinema universal a Salles. Mas antes de fazermos uma pequena análise dos filmes do diretor, faz-se necessária uma pequena contextualização do lugar que seu cinema se encaixa e quem, de fato, é o autor deles.

A Retomada do Cinema Brasileiro

Após o golpe de 1964, os governos militares reconheceram a importância dos meios de comunicação de massa em sua capacidade difundir ideias. O governo então cria meios de incentivo a essas mídias visando uma forma de controle da população, bombardeando-a com informações e produtos que possibilitam a criação de uma comoção coletiva. Com a criação do Instituto Nacional de Cinema (INC), em 1966, e da EMBRAFILME, em 1969, a produção cinematográfica brasileira sofre um boom, mas a maior parte das obras, devido à censura, era composta de pornochanchadas ou de filmes pornográficos. Não havia muito espaço para trabalhos que representassem de forma crítica o cenário sócio-político então vigente.3 Com o término do Regime Militar e a eleição para presidente por voto direto de Fernando Collor de Melo, o país quase paralisou suas políticas culturais de cinema, segundo dados apresentados pela autora Maria do Rosário Caetano (2007). Uma das primeiras medidas do seu governo foi fechar a Embrafilme, produtora e distribuidora estatal, o Conselho Nacional de Cinema (Concine), órgão gestor do cinema brasileiro fundado em 1976, e a Fundação de Cinema Brasileiro. Nesse período, a produção de longas foi reduzida a praticamente zero, permanecendo apenas os documentários graças à possibilidade oferecida por alguns canais restritos de TV davam a seus produtores. Os curtas-metragens, apesar da falta de incentivo resistiram aos obstáculos do governo Collor. Com o impeachment deste último em 1992, o país vive a chamada Retomada do Cinema Brasileiro. Com a entrada na presidência de Fernando Henrique Cardoso e os incentivos ao audiovisual, as produções cresceram consideravelmente entre o início da década de 1980 e os anos 2000. Para a autora Lúcia Nagib (2002) não houve uma retomada do cinema e sim um boom criativo em meados de 1990, resultado de um país que estava acumulando traumas políticos, da ditadura até a catástrofe que foi o governo

3 ORTIZ, 2006, passim. Collor. O estopim dessa chamada retomada foi o filme Carlota Joaquina - A Princesa do Brasil (1994), de e logo após, em 1995, Walter Salles lança "Terra Estrangeira", considerado um marco do que seria a volta do cinema brasileiro.4 Caetano divide a retomada em duas fases. A primeira é onde aparecem os filmes que são adaptações literárias e os que possuem um conteúdo histórico, representando uma realidade já acontecida. A impressão deixada é que esses filmes apostam na inserção do cinema nacional no mercado internacional, pois em sua maioria são filmes com algum personagem estrangeiro e em partes falados em outra língua. Um próprio exemplo, é filme Carlota Joaquina - A Princesa do Brasil, que é praticamente todo falado em outra língua. Para compreendermos esse contato com o estrangeiro a autora coloca três películas que julga ser de grande importância: Como Nascem Os Anjos (Murilo Salles, 1996), Baile Perfumado (Paulo Caldas e Lírio Ferreira, 1997) e Amélia (Ana Carolina, 2000). Com a desvalorização do Real no governo de Fernando Henrique Cardoso, os cineastas se sentem obrigados a se voltar para produções de baixo custo e passam a se preocupar com os problemas sociais do Brasil, como exclusão social, violência urbana, racismo e sistema penitenciário. Os filmes são influenciados pelo manifesto Dogma 955 de Lars Von Trier e Thomas Vinterberg, e também pelo cineasta Glauber Rocha6. Então, a marca desse segundo momento é o aprofundamento na tentativa de captação de um Brasil real, ou seja, elevar um sentimento de busca por uma identidade nacional. A redescoberta do país por alguns cineastas rende um aumento na produção cinematográfica e isto poderia significar até uma retomada da abordagem a respeito da pátria, uma vez que os filmes da retomada trazem questões relativas às raízes brasileiras. Assim como o Cinema Novo7, os filmes desse período buscam uma identidade nacional, "mas não apresentam uma proposta política concreta, não há uma preocupação de movimento"8. Uma comparação com o Cinema Novo faz-se necessária pois a retomada e, principalmente, o cinema de Salles utilizam da mesma temática, justamente a preocupação coma identidade nacional. O fim da retomada do cinema brasileiro ocorre com o filme Cidade de Deus (2003) de , pois

4 GONÇALVES, 2008, p. 37-47. 5 Manifesto que se propõe a fazer um cinema democrático e contra filmes de grande produções. 6 foi um dos mais importantes cineastas brasileiros e principal líder do movimento "Cinema Novo". 7 Movimento cinematográfico brasileiro que visa mostrar um Brasil que poucos conhecem, recheado de conflitos políticos e sociais. Para saber mais: CARVALHO, Maria do Socorro. Cinema Novo Brasileiro. IN: Mascarello, Fernando. História do Cinema Mundial. Campinas, SP: Papirus, 2006. 8 GONÇALVES, op. cit., p. 44. sintetiza os elementos desse movimento e inaugura outro tipo de estética e relação com o mercado.

Walter Salles, cineasta brasileiro

Walter Salles Júnior é um cineasta carioca e seu nome passou a ter um destaque enorme na história do cinema brasileiro a partir da década de 1990. Salles possui um cinema influenciado por diretores como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e Michelangelo Antonioni9. Começou a produzir na década de 1980 curtas-metragens e documentários e, em 1991, fez o seu primeiro filme, A Grande Arte (1991), baseado na obra de Rubem Fonseca. Segundo as pesquisas de Gonçalves, o longa foi um fracasso de público e crítica. Em 1995, com uma equipe menor e mais íntima com o projeto, Salles juntamente com Daniela Thomas dirigem Terra Estrangeira (1995)10. Já o seu terceiro longa, Central do Brasil (1998)11, foi um grande sucesso de público e crítica e projetou o cinema brasileiro para fora do país. Foi indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro e de melhor atriz, colocando como a primeira atriz latino- americana a ser indicada a maior premiação do cinema mundial. Em 2001 Salles apresenta Abril Despedaçado12, um filme que se passa no nordeste dos anos 1910 e mais uma vez o diretor é lançado internacionalmente e passa a ser considerado um dos mais influentes cineastas brasileiros. Com o reconhecimento internacional, Salles é convidado a filmar Diários de Motocicleta (2004) que narra as viagens de Ernesto "Che" Guevara e seu amigo Alberto Granado pela América Latina antes de Che se tornar um revolucionário conhecido. Após essa produção, que conta com a colaboração de vários países, o diretor parte para a produção internacional do remake do terror japonês Água Negra13 (2005) e de um curta-

9 GONÇALVES, 2008. passim. 10 O filme conta a história de Paco, que vê sua vida desmoronada com a morte da mãe e as medidas econômicas do governo Collor. Ele parte então, como um contrabandista de pedras preciosas, para Portugal procurando conforto em uma terra estrangeira. 11 Dora é uma mulher que escreve cartas para analfabetos na Central do Brasil e uma de suas clientes morre tragicamente deixando um menino sozinho, Josué, que sonha em encontrar o pai. Dora acaba cuidando de Josué e embarca em uma jornada ao nordeste, para levar o menino em busca de seu pai. 12 Um jovem tem que vingar a morte de seu irmão, num lugar onde a disputa de famílias por terras é constante. Assim que ele realizar essa tarefa, na próxima lua cheia ele também será perseguido e morto. 13 Incursão do cineasta no cinema Hollywoodiano, conta a história de uma mãe que após mudar com sua metragem para o filme Paris, te amo (2006) que é uma reunião de vários curtas que mostram a visão de diferentes diretores sobre a cidade luz. Salles retorna as produções brasileiras e faz o seu Linha de Passe14 (2008) novamente em colaboração com Daniela Thomas. O seu mais recente filme é a adaptação do livro de Jack Kerouac, On The Road, que recebeu o título nacional de Na Estrada (2012), e teve sua estreia em Cannes com uma recepção um pouco fria da crítica, recebendo "aplausos modestos"15.

O Cinema de Walter Salles

Em seu primeiro longa de grande relevância, Terra Estrangeira, Walter Salles e sua parceira, Daniela Thomas, voltam a 1990 quando Fernando Collor de Melo é eleito a presidente da república do Brasil e toma medidas econômicas conhecidas como o Plano Collor. Nesse contexto, Paco e Alex são dois jovem exilados, órfãos de uma país, a procura de sua identidade que fora perdida. Já no começo do filme os diretores imprimem um caráter documental ao adicionar cenas reais da ministra Zélia Cardoso de Mello, característica que pode ser encontrada em seu próximo filme, Central do Brasil. A influência do cinema de Michelangelo Antonioni16 pode ser percebida a medida que a geografia mistura-se aos personagens e os transformam. As paisagens então, neste e nos outros filmes do diretor, são tratadas como um personagem. De acordo com Gonçalves, "o vazio fala mais alto e a figura humana é reduzida a proporções pequenas"17. Como defende Miriam de Souza Rossini (2005), em Terra Estrangeira e em Central do Brasil há uma forte busca pela identidade brasileira. Em Terra, o brasileiro parte em busca de algo que ele não encontra em sua própria terra e vai buscar em outro país, mesmo que tenha que se marginalizar por isso. De acordo a autora "pode-se compreender a terra estrangeira de que fala o título do filme como sendo: a) o solo pátrio, o Brasil, já que é sobre o brasão do país que aparece este título e nenhum dos

filha para um apartamento, se vê assombrada por uma água negra que escorre na parede de seu quarto. É a refilmagem de um terror japonês "Dark Water - Água Negra" de Hideo Nakata, 2002. 14 Quatro irmão que são criados por uma mãe solteira, Cleuza, que está grávida do quinto filho e não sabe quem é o pai. Cada um desses meninos tem sonhos diferentes e precisam lutar na esperança de um futuro melhor. 15 ALMEIDA, Carlos Helí de. On the Road tem recepção tímida em Cannes. Veja. Cannes, 23 de maio de 2012. Seção Cinema. Disponível em: . Acesso em: 07 maio 2013. 16 Cineasta italiano e difusor do movimento neorrealista. Entre os seus trabalhos mais importantes se destacam A Aventura (1960), O Deserto Vermelho (1964) e Blowup - Depois daquele beijo (1966). 17 GONÇALVES, 2008, p.63. personagens da narrativa se identifica totalmente com o país; b) Portugal, para onde viaja Paco, e onde já vivem outros estrangeiros (brasileiros, africanos); ou c) o mundo como um todo, o mundo globalizado sem fronteiras,onde as marcas dos produtos mundializados dão um certo ar de familiaridade, masque no fundo é vivido como se estivesse esvaziado de significados culturais locais."18 Walter Salles e o diretor de fotografia optaram por realizar Terra Estrangeira em preto e branco e essa escolha foi inspirada pelo fotógrafo Robert Frank19 que acredita que o preto e o branco são as cores da esperança e da desesperança, sentimentos que se contradizem e movem os personagens no filme. A escolha dessas cores reforça o caráter documental que o filme possui e essa dualidade esperança/desesperança são refletidas na eleição de Collor (a esperança de um país que acaba de sair da ditadura e a desesperança ao ver um governo irregular) e no amadurecimento forçado dos personagens, outro tema que está presente na filmografia de Salles. Os filmes são influenciados pelo neorrealismo italiano20, que misturam cenas reais com ficcionais imprimindo um caráter semi documental ao seu cinema, e também possui planos longos, tentando respeitar a real duração dos eventos. Em Central do Brasil, percebe-se no início da película que há pessoas dando depoimentos de experiências reais para Dora, personagem de Fernanda Montenegro, que escreve cartas para analfabetos. Ao contrário de Terra Estrangeira, neste filme os personagens adentram ao país e não escapam dele. Rossini acredita que Central do Brasil é a aproximação da terra estrangeira, é a volta para casa, a redescoberta de um Brasil que fora retratado na década de 1960 com o Cinema Novo. A busca pela identidade novamente está presente no filme, agora com Josué, um menino que tem a esperança de conhecer a sua identidade quando encontrar seu pai. Esse mesmo menino traz Dora, uma mulher amarga e desiludida, de volta a vida e a coloca novamente na condição de ser humano solidário e dotado de sentimentos. Os sentimentos de Dora e Josué se alteram a todo o tempo: quando estão juntos querem se separar e quando estão separados querem estar juntos; até que é encontrado um ponto de equilíbrio em que a

18 ROSSINI, 2005, p.100 19 Fotógrafo suíço que fez carreira nos Estados Unidos, na famosa Beat Generation. Suas fotografias não eram tradicionais e mostravam realidades como racismo, desigualdades sociais e econômicas. 20 Movimento cinematográfico que acontece na Itália ao final da Segunda Guerra Mundial que visa transpor elementos da realidade para a ficção, aproximando-se em certos pontos do documentário, sendo que seus maiores expoentes foram os cineastas Roberto Rosselini, Vittorio De Sica e Luchino Visconti. Para saber mais: FABRIS, Mariarosaria. "Neorrealismo Italiano". IN: Mascarello, Fernando. "História do Cinema Mundial" (org.). Campinas, SP. Papirus, 2006. jornada da mulher desencantada e a do menino que fora amadurecido precocemente seja completa. Josué encontra o novo em um Brasil rural e interno e ao fim desta jornada, nesse Brasil central, laços são refeitos e a identidade é recuperada. Rossini ressalta que apesar do tempo que separa Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964, Glauber Rocha) de Central do Brasil, os rostos que vemos nos dois filmes são os mesmos, o dos nordestinos que não perdem a esperança nunca, apesar de estarem cansados, sofridos e envelhecidos.

Central do Brasil e Terra Estrangeira: personagens diminuídos em relação ao cenário, influência do neorrealismo italiano

O longa traz uma referência também a Terra Em Transe (1967) de Glauber Rocha, quando Dora entra em transe, é ressaltado o poder que o desconhecido tem de alterar vidas e para o autor Luiz Zanin Oricchio representa uma "maneira eficaz de revelar a dissociação da consciência ocorrida no contato com um mundo radicalmente estranho"21. Na parte inicial do filme, na cidade do Rio de Janeiro, as cenas são mais secas e violentas e quando os personagens começam a viajar os planos do filme vão se tornando mais longos e contemplativos e a montagem torna o filme mais calmo e claro. "Quando os personagens descobrem uma segunda chance, o espectador percebe melhor a profundidade de campo das imagens, os sons se tornam mais puros e as cores aparecem com mais destaque" 22. Reparemos que no início da película Dora só vê o que está a sua frente, em closes e com fundo embaçado e a partir do momento em que começam a viajar o filme vai ganhando profundidade de campo, vai se tornando mais limpo, a fotografia dá espaço a tons mais quentes como o azul do céu, o amarelo das velas e o verde das árvores. Essa mistura de profundidade de paisagem juntamente com o personagem é outra influência do cinema de Antonioni. Em uma referência a Nelson

21 ORICCHIO apud GONÇALVES, 2008, p. 83. 22 GONÇALVES, 2008, p. 98. Pereira dos Santos23 o filme quer colocar um rosto real, comum, como o de milhares de brasileiros que estão todos os dias batalhando por seus sonhos. Já em 1998, Walter Salles realiza O Primeiro Dia (1998) a convite de uma rede de televisão francesa. Inicialmente seria um capítulo especial para ser exibido somente para a TV, mas posteriormente Salles acrescenta cenas e transforma em um longa metragem sobre a cisão de dois mundos distintos que coexistem no Brasil, a favela e o asfalto. Esse tema proposto a Salles contraiu uma qualidade praticamente documental e foi isso que mais chamou a atenção do diretor ao projeto. Seu ideia é inspirada no "apartheid social" da cidade que foi mostrado pelo jornalista Zuenir Ventura em seu livro Cidade Partida. "O primeiro dia tenta ecoar os conceitos que eles [Jurandir Freire Costa e Zuenir Ventura] desenvolvem sobre a incapacidade dos brasileiros de lidar com a ideia do outro e a cisão social que resulta desse estado das coisas"24. O filme possui rimas visuais, com corredores, e procuram mostrar o quanto os personagens são próximos e distantes ao mesmo tempo um do outro. Com isso, mais uma vez Salles traz a necessidade de ver o outro.

O Primeiro Dia e a cisão de dois mundos distintos: o asfalto e a favela.

Com Abril Despedaçado Salles retoma ao Cinema Novo e faz referências como na cena da negociação de rapadura que mostra a exploração do trabalhador diante do opressor. Neste filme, Salles opta por dar atenção a uma linguagem mais visual, com poucos diálogos e mais uma vez ele traz uma referência a geografia de Antonioni: os personagens são áridos como o clima do sertão. A iluminação também é essencial tanto quanto um personagem, ela faz parte da história. O autor Marcos Strecker (2010)

23 Cineasta brasileiro e um dos precursores do Cinema Novo. Seu filme mais expressivo é Vidas Secas (1963), baseado no livro de Graciliano Ramos, e recebeu vários prêmios chegando a ser considerado obra-prima. 24 GONÇALVES, 2008, p. 107 ressalta que "na longa tradição de representação visual dessa geografia, fora utilizadas luzes dramáticas e violentas. Há uma explosão de luz, o sol a pino acachapante invade o enquadramento sem sombras nem filtros. Não se admitem o meio tom, a sutileza, a nuance. A superexposição e o alto contraste lembram as xilogravuras utilizadas na literatura de cordel."25 Percebe-se os contrastes fortes entre o ocre e o azul do céu na cena que Tonho, protagonista, está no balanço. Há novamente um diálogo com Cinema Novo, dessa vez com o filme Deus e o Diabo na Terra do Sol: o seco do sertão que caminha para o litoral, onde acontece a conclusão do filme.

Abril Despedaçado e o contraste entre o seco do serão e o azul do céu.

A questão da busca pela identidade retorna em seu filme Diários de Motocicleta. Neste road movie, o jovem Ernesto "Che" Guevara de la Serna, diferente do revolucionário conhecido, parte em uma viagem pela América latina, ao lado de seu amigo Alberto Granado, em busca de si mesmo, em busca da sua identidade. Strecker diz que a película "compõe um retrato da América Latina. É um filme de buscas, de encontros e partidas, de descoberta do mundo"26. Ao lado de Central do Brasil, Diários é o seu filme mais completo, pois, "nos dois, expressa um ideal coletivo, mergulha nas raízes de sociedades em formação, imperfeitas, buscando sua identidade e afirmação"27. Salles filma toda a jornada do encontro do jovem Guevara consigo mesmo, do menino que ao escolher ser um médico acabaria se transformando em um revolucionário nato. O filme sofreu algumas críticas de público28 pois evita o debate ideológico e parte mais para a jornada interior de seu personagem, o que gerou críticas como "acrítico" e "despolitizado". Mas somente do ponto de vista técnico, o filme recebeu elogios ao redor do mundo, sendo sua obra mais

25 STRECKER, 2010, p. 112-113 26 Ibidem, p. 78 27 Ibidem, p. 84 28 Ibidem, p. 88. madura, até então. Foi tão elogiado que Francis Ford Coppola29 convidou Walter Salles para filmar a adaptação do livro "On the road" de Jack Kerouac.30

Considerações finais

O cinema de Salles, como explicitado ao longo desse trabalho, foi influenciado por diretores e correntes cinematográficas, que contribuíram, não deixando, porém, que o cineasta perdesse seu próprio estilo de filmagem. O amalgamento dessas várias influências resultaram em uma própria autoria, um cinema com a sua cara. Seus filmes são muito próximos a realidade e há um certo tom documental em todos eles, até mesmo na história do terror japonês em que os personagens são muito reais. Salles tem uma cinematografia importante no cinema nacional e quando se fala em retomada do cinema brasileiro é indispensável citar o seu nome. Portanto, os trabalhos desse cineasta são constantes e focam principalmente na questão da busca pela identidade, ou seja, uma representação feita para si mesmo e para o outro criando redes de solidariedade, sejam essa identidades próprias ou a identidade de um país, de um coletivo. Essas são questões bastantes pertinentes de serem tratadas visto o período conturbado em que começa a filmar, de um país e de um povo que precisa repensar a sua identidade.

29 Premiado cineasta norte americano. Sua obra mais relevante e que o levou a conhecimento mundial foi O Poderoso Chefão. É também produtor e roteirista e vencedor do Oscar de melhor diretor e três de melhor roteiro. 30 STRECKER, 2010, p.78-88. FICHAS TÉCNICAS

Abril Despedaçado, 2002 Diários de Motocicleta, 2004 Direção: Walter Salles Direção: Walter Salles Roteiro: Walter Salles, Sérgio Machado, Karim Roteiro: José Rivera Aïnouz (Baseado no livro Abril Despedaçado, Direção de fotografia: Eric Gautier de Ismail Kadaré) Montagem: Daniel Rezende Direção de fotografia: Walter Carvalho Supervisão artística: Jean-Claude Brisson Som: Felix Andrew, François Groult, Waldir Música: Gustavo Santaolalla Xavier, François Musy Desenho de produção: Carlos Conti Figurinos: Cao Albuquerque Figurino: Beatriz di Benedetto, Marisa Urruti Direção de arte: Cassio Amarante Produção: Michael Nozik, Edgard Tenembaum, Montagem: Isabelle Rathery Karen Tenkhoff Música: Antônio Pinto Produção executiva: Robert Redford, Paul Direção de produção: Marcelo Torres Webster, Rebecca Yeldham Produção: Arthur Cohn Coprodução: Daniel Burman, Diego Dubcovsky Produtores associados: Jean Labadie, Carole Direção de elenco: Walter Rippel Scotta Elenco: Gael Garcia Bernal (Che), Rodrigo de Produção executiva: Maurício Andrade Ramos, la Serna (Alberto Granado), Mía Maestro Lillian Birnbaum (Chichina) Elenco: Rodrigo Santoro (Tonho), José Dumont (Pai), Rita Assemany (Mãe). Ravi Ramos O Primeiro Dia, 1999 Lacerda (Pacu), Luiz Carlos Vasconcelos Direção: Walter Salles e Daniela Thomas (Salustiano), Flávia Marco Antônio (Clara), Roteiro: Walter Salles, Daniela Thomas, João Othon Bastos (participação especial) Emanuel Carneiro, José de Carvalho Fotografia: Walter Carvalho Montagem: Felipe Lacerda, Isabelle Rathery Central do Brasil, 1998 Música: Antonio Pinto, Eduardo Bid, Naná Direção: Walter Salles Vasconcelos Roteiro: João Emanuel Carneiro, Marcos Elenco: Fernanda Torres (Maria), Luis Carlos Bernstein Vasconcelos (João), Direção de fotografia: Walter Carvalho (Francisco), (Vovô), José Montagem: Isabelle Rathery, Felipe Lacerda Dumont (Policial), Tonico Pereira (Carcereiro), Som: Jean-Claude Brisson Nelson Dantas (Farmacêutico), Música: Antonio Pinto, Jaques Morelenbaum (Pedro) Figurino: Cristina Camargo Direção de arte: Cassio Amarante, Carla Caffé Terra Estrangeira, 1995 Produção: Elisa Tolomelli Direção: Walter Salles e Daniela Thomas Direção de produção: Marcelo Torres, Afonso Roteiro: Daniela Thomas, Walter Salles e Coaracy Marcos Bernstein Coordenação de produção: Beto Bruno Direção de fotografia: Walter Carvalho Produção: Arthur Cohn Direção de arte: Daniela Thomas Elenco: Fernanda Montenegro (Dora), Vinícius Música: José Miguel Wisnik de Oliveira (Josué), Marília Pêra (Irene), Sôia Figurino: Cristina Camargo Lira (Ana), Othon Bastos (César), Otávio Montagem: Walter Salles e Felipe Lacerda Augusto (Pedrão), Stela Freitas (Yolanda), Produção executiva: Flávio Tambellini Matheus Nachtergaele (Isaías), Caio Junqueira Elenco: Fernanda Torres (Alex), Fernando (Moisés) Alves Pinto (Paco), Luís Melo (Igor), (Manuela), Alexandre Borges (Miguel), João Lagarto (Pedro), Tchéky Karyo (participação especial)

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Filmes ABRIL despedaçado. Direção: Walter Salles. Brasil, Rio de Janeiro, 2002 (Imagem Filmes). CENTRAL do Brasil. Direção: Walter Salles. Brasil, Rio de Janeiro, 2005 (Videofilmes). DIÁRIOS de Motocicleta. Direção: Walter Salles. Argentina, Brasil, Chile, Peru, Inglaterra, EUA, 2004 (Buena Vista Home Entertainment). PRIMEIRO dia, O. Direção: Walter Salles e Daniela Thomas. Edição de colecionador. Brasil, Rio de Janeiro, 2002 (Versátil Home Vídeo). TERRA Estrangeira. Direção: Walter Salles e Daniela Thomas. DVD comemorativo 10 anos de lançamento. Brasil, Rio de Janeiro, 2005 (Videofilmes).