MEMÓRIA E IDENTIDADE NEGRA NA OBRA DE GILBERTO GIL1

Samuel Sousa Silva2 Maria Aparecida Silva de Sousa3

Resumo: O presente trabalho pretende discutir sobre parte da obra do compositor de Música Popular Brasileira , na qual os temas da memória e da identidade negra no Brasil são direta e indiretamente abordados. A pesquisa, ainda em andamento, busca refletir sobre a trajetória e produção musical de um dos mais importantes compositores do país com ênfase na sua contribuição artística acerca das questões que envolvem a problemática do negro e da preservação da sua memória e identidade. Palavras-chaves: Gilberto Gil. Identidade Negra. Memória. Música Popular Brasileira.

1. Introdução

Nas décadas de 1960 e 1970 a expressão MPB (Música Popular Brasileira) passou a ser cada vez mais utilizada para designar um conjunto específico de gêneros musicais brasileiros, que primava por uma qualidade estética (melódica e de letra) ao gosto da classe média, que, ora se tornava grande parte do público consumidor de música popular, em um contexto em que a indústria fonográfica estava em ascensão (NAPOLITANO 2007 ). A , gênero musical inaugurado em 1959, constituiu-se como uma revolução que ao mesmo tempo fez do Brasil conhecido internacionalmente por sua produção musical e abriu novas perspectivas estéticas e de abordagens temáticas para a canção brasileira. (BRITO, 1978). Sob a influência desse novo gênero musical, surgiram outras formas para a canção brasileira. Foi ocaso da canção de protesto e/ou das canções do movimento tropicalistas. A bossa nova foi

1 Este artigo se baseia no texto da dissertação de mestrado, ainda em andamento, intitulado Memória e Identidade Negra na Obra de Gilberto Gil , pelo Programa de Pós-Graduação em Memória: Educação e Sociedade, da Universidade Estadual do Sudoeste da - UESB

2 Autoria. Mestrando em Memória: Educação e Sociedade pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB

3 Coautoria. Professora Doutora em História Social pela Universidade Federal de Minas Gerais UFMG, docente do PPG Memória: Educação e Sociedade, da Universidade Estadual do sudoeste da Bahia – UESB

tomada, nas palavras de , como uma “linha evolutiva” da música brasileira. (CAMPOS, 1978) Era um momento histórico de efervescência cultural no Brasil, mas também de repressão, com a Ditadura Militar (1964-985). Nessa época, a Indústria Cultural se estabelecia no país, em um processo relativamente tardio, se comparado às nações desenvolvidas. O rádio e a televisão estavam se expandindo, e através desses suportes de memórias, parte da população entrava em contato de forma mais direta com a cultura norte-americana, como por exemplo, com o rock’ in roll. (DIAS, 2000). Foi nesse período que a MPB repensou a identidade do Brasil. Com efeito, o novo tipo midiático aberto pela televisão, combinada com a expansão da indústria fonográfica que também se expandia, permitiu o surgimento dos grandes festivais de música popular e fez com que artistas, compositores e jornalistas promovessem debates públicos acerca dos novos rumos da canção brasileira e como esse gênero deveria ideologicamente reconfigurar uma nova identidade (NAPOLITANO, 2007; NERCOLINI, 2016.). Surgiram, então, novos temas, novos olhares sobre a nação em face do contexto mundial. Eles consistiram tanto na reflexão sobre questões sociais e raciais existentes no bojo dessa sociedade, quanto nas propostas de dar maior liberdade a canção, inserindo nela recursos de metalinguagens, ritmos e instrumentos estrangeiros, letras de cunhos políticos e filosóficos etc. (VOLCATO, 2015) O cantor e compositor baiano Gilberto Gil surgiu no cenário musical brasileiro nesse período de efervescência cultural. Ele foi dentre os chamados tropicalistas aquele que mais se empenhou em abordar o tema da negritude no Brasil, tocando em questões como o racismo, a mestiçagem, a religiosidade negra, a diáspora negra, as condições de vidas dos negros nas periferais urbanas. (ZAPPA, 2013; LOPES, 2012). A sua dedicação à causa da negritude, embora não seja o único tema do conjunto da sua obra, é relevante, uma vez que a sua música – reconhecidamente uma expressão de grande valor artístico e intelectual – obteve ampla circulação entre os diferentes estratos de classes sociais e se tornou um importante veículo de expressão das causas da negritude brasileira. O intuito deste artigo será, assim, demonstrar como o tema da memória e identidade negra estão presentes em algumas canções compostas por Gilberto Gil com ênfase na relevância dessas questões para o debate acerca da negritude e do racismo na sociedade brasileira em tempos outros e na atualidade.

2. Gilberto Gil, porta-voz de um povo? No ano de 1983, o já consagrado cantor e compositor Gilberto Gil, em parceria com Waly Salomão, escrevia a canção Quilombo, o Eldorado Negro, a pedido de , como parte da trilha sonora de um filme homônimo. Nela, os autores recorrem ao mito de um passado glorioso dos quilombos para apresenta-los como uma utopia possível de ser experimentada novamente:

Existiu/Um eldorado negro no Brasil /Existiu/Como o clarão que o sol da liberdade produziu/Refletiu/A luz da divindade, o fogo santo de Olorum/Reviveu /A utopia um por todos e todos por um (...)/Quilombo/Que todos tiveram de tombar amando e lutando /Quilombo/Que todos nós ainda hoje desejamos tanto //(..) /Viveu, lutou, tombou, morreu, de novo ressurgiu /Ressurgiu /Pavão de tantas cores, carnaval do sonho meu/Renasceu/Quilombo, agora, sim, você e eu / Quilombo (...) (RENNÓ, 2000, p.274)

Nessa letra estão presentes alguns elementos que dão contorno a identidade de um povo: suas memórias histórias, valores e experiências na comunidade afetiva. Identidade tem sua raiz etimológica no idem, o sentimento de pertencimento em comum (BRADINI, 2015). No caso em tela, trata-se a identidade do povo negro do Brasil que a canção reclama para que seja reconstituída sobre uma tradição que supostamente se perdeu, mas que tem capacidade de renascer simbolicamente na memória do povo negro. O tema das africanidades no Brasil é uma presença na obra de Gilberto Gil, desde quando passou a ser conhecido nacionalmente como um cantor e compositor em meados da década de 1960. A identidade negra que buscou evocar em sua produção musical tem se apresentado em seus variados aspectos. De acordo Kiwlza Fideles dos Santos (2014) é possível analisar a temática na negritude na obra de Gilberto Gil a partir de três eixos:

a africanidade celebrativa tanto mitológica quanto histórica, [...] a mestiçagem, que em alguns momentos pode aparecer como valorização da cultura afro-brasileira, em outros como vetor de negritude, enquanto discurso de afirmação e negação de branquitude ou crítica ao branqueamento; e os diálogos com a negritude pop moderna transnacional, que estão dispostos nos novos espaços de negritude, onde classe e raça determinam modos de pertença, é também a partir desses diálogos que se compartilha o orgulho negro, tanto no que diz respeito à afirmação através da beleza e da cultura negra. (SANTOS, 2014, p.154)

Essa divisão em eixos temáticos é relevante, na medida em que sistematiza e ordena a obra de Gilberto Gil como suportes de muitas memórias constituintes das identidades negras do Brasil e permite demonstrar as variedades das frentes de combate que Gilberto Gil se posiciona, no âmbito da questão da negritude. Entretanto, há de se colocar que um texto que pretenda debruçar-se sobre apenas um tema da composição de Gilberto Gil manifesta-se dificultoso, uma vez que nesse autor questões distintas a todo tempo se atravessam. É o caso, por exemplo, da canção Domingo no Parque, cuja letra não faz referência direta a identidade negra, mas o arranjo musical da introdução remete às rodas de capoeira (JORNAL CORREIO BRASILIENSE 09/06/2013) dança/luta típica dos afrodescendentes brasileiros e um dos principais bens simbólicos da cultura negra baiana. Outra referência constante é o homem do campo, do sertanejo. Sobre essa presença é sempre necessário lembrar que as primeiras produções musicais de Gilberto Gil tiveram forte influência da sua formação como sanfoneiro e que a sua primeira identidade foi de sertanejo. Não poderia ser diferente, pois o artista, embora tenha nascido em Salvador, nos primeiros dias de vida foi levado pelos pais para pequena cidade de Ituaçu, no sertão da Bahia, onde passou toda a infância. Filho de um médico, José Gil Moreira e de uma professora primária, Claudina Passos, Gilberto Gil teve na infância, em seu lar, a companhia da sua irmã,Gildina (um ano mais nova que ele) e da sua tia avó, Lídia, que lhe ensinou a ler e a escrever e introduziu-o no gosto pela leitura. Na infância, portanto, ele gozou de boas condições de vida, por conta de seu pertencimento a elite econômica da cidade e pelo fato de, conforme seus depoimentos, Ituaçu ser uma “cidade de classe média, que não conhecia a riqueza extrema nem a pobreza extrema” (ZAPPA, 2013, p. 15). As suas lembranças do mundo da música dessa época são da presença músicos de rua com os seus pífanos, flautas e instrumentos de percussão que tocavam quase defronte a sua casa as músicas de Bach, Beethoven, Jakson do Pandeiro, e , que ele ouvia na vitrola e no rádio. Tudo isso lhe influenciou para iniciar-se como instrumentista, primeiramente de sanfona e, em seguida de violão. (GÓES, 1982; ZAPPA, 2013; CALADO, 2008) Assim, canções como Lamento Sertanejo, Refazenda, Procissão e Coragem para Suportar, dentre outras, são algumas que remetem a estas primeiras vivências de Gilberto Gil. Mas há de se ressalvar que toda a produção de uma pessoa, artista ou não, é perpassada por uma ideologia, (VOLCATO, 2015), de forma que a simples declaração desse autor que a sua

canção se inspira nas suas experiências de infância deve ser analisada levando essa questão em consideração. De acordo com , por exemplo, a composição brasileira de meados dos anos de 1960 e 1970 ainda era atravessada pelo ideal de “saudades do interior”, “saudades do sertão”. (CAMPOS. 1978, pp.142-143). É possível, nessa perspectiva, que a referência ao sertão faça parte do programa da MPB em reconfigurar a identidade brasileira. E identidade não escapa à ideologia. Outra consideração acerca da relação entre a vivência e a produção de Gilberto Gil é que muito embora ele afirme que na infância e na adolescência não sofreu muitos preconceitos por conta de ser negro, (VELLOSO, 2002; ZAPPA 2014) a questão da negritude passou a ser um tema importante em sua obra, na medida em que ele foi se tornando um cantor e compositor de prestígio nacional. Assim, quando de 1967, nos preâmbulos daquilo que seria chamado de Tropicália, segundo Caetano Veloso (1997), era Gilberto Gil o mais entusiasmado em demonstrar através da música popular brasileira a questão das suas variedades éticas e desigualdades sociais. Eis o que escreveu Caetano Veloso: Ele [Gilberto Gil] falava da violência, da miséria e da força da inventividade artística: (...) A visão dos miseráveis do Nordeste, a mordaça da ditadura [...] Ele dizia que nós não devíamos seguir na defensiva nem ignorar o caráter de indústria do negócio em que tínhamos nos metido.. (VELOSO, 1997, p.131)

3. A música de Gilberto Gil: suportes de memórias dos afrodescendentes De acordo com Maurice Halbwachs a memória – tomada aqui como imaginação, pensamento e lembrança –, é um fenômeno social (ou coletivo). Os indivíduos agem e apreendem através das relações com as coisas que lhe cercam e também com os outros indivíduos, principalmente quando estes se inserem numa comunidade afetiva. (HALBWACHS, 1990, p. 33) Por isso, muitos pensamentos, sensações, desejos etc. que nos parecem originalmente emanados da nossa individualidade, em são gestados a partir da nossa relação com a memória do grupo (HALBWACHS, 1990, p. 36). Essa concepção também permite definir identidade sob um olhar distinto da primeira conceituação feita nesse texto. Segundo Pollak (1992), cuja obra transita de maneira crítica no campo da memória, a base de toda identidade é a memória dos indivíduos em coletividade. Ela é “a imagem que uma pessoa adquire ao longo da vida referente a ela própria, a imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si própria, para acreditar na sua própria

representação, mas também para ser percebida da maneira como quer ser percebida pelos outros” (POLLAK, 1992, p. 05). Coloquemos essa concepção do campo da memória sobre o crivo da História, no que diz respeito a identidade dos afrodescendentes do Brasil. O processo de lutas pela preservação das memórias e identidades dos negros do Brasil iniciou com as suas forçadas viagens transatlânticas da África para a então colônia portuguesa na América para a escravização, e mantêm-se como condição contínua, mesmo após a Independência do Brasil em 1822 e a Abolição da Escravatura de 1888. Durante o período que se estende entre o ano da Independência, até meados do século XX, o próprio Estado nacional brasileiro, em diversos momentos, lançou mão de uma ordem jurídica que primava pela inferioridade dos negros e o racismo permeou as relações em sociedade, como um todo. ((PRUDENTE, 1988; SKIDMORE, 2001) O esquecimento, o avesso da lembrança, se dá pelo desapego do indivíduo ao grupo. Alguns autores ampliaram essa concepção e demonstraram que o esquecimento pode ser algo deliberado por uma elite que detém o poder, com o fito de mantê-lo (HALBWACHS, 1990; LE GOFF, 1990; POLLAK 1992). De maneira que na escravidão, ele se deu sistematicamente e de maneira estrutural. Esse esquecimento operou-se pelos seguintes meios: a) Do apagamento de memórias – quando as memórias já não podem mais serem reconstruídas – na maior parte por conta do genocídio negro ocorrido na História; b) Silenciamento, quando uma força externa impede que o indivíduo ou grupo se manifeste suas lembranças, seu pensamento. (POLLAK, 1992) A História dos negros do Brasil é atravessada por esse processo. A escravidão em si silenciou línguas, manifestações culturais e expressão religiosa, dentre outras coisas, seguida por uma política de Estado que lançou mão de uma ordem jurídica racista e segregacionista (PRUDENTE, 1989). Aliado a isso, o discurso científico no Brasil, sobre a questão da negritude, dos séculos XIX e início do século XX tinha a finalidade de convencer a sociedade que os negros eram biologicamente inferiores aos brancos, sendo uma “raça” doente. A antropologia criminal, do século XIX caracterizava o negro como uma “classe perigosa” que o Estado deveria se preocupar em extinguir, quer pela eugenia, quer pela mestiçagem. (SCHWARCZ, 2002); c) O silêncio. Deduzido do pensamento de Pollak, como um esquecimento volitivo. Contudo, a rigor, nesses termos, o silêncio pode inexistir, pois é mais provável que quem o pratica, seja na condição de oprimido, seja de opressor, o faz

não por motivações individuais, mas por receio, do impacto que o não dito possa ter em seu meio afetivo. Mesmo assim é possível denunciar o silêncio sobre a questão da negritude no Brasil, numa outra perspectiva, do ponto de vista das elites que tem vontade desse silêncio. Essa última forma de esquecimento, nos remete àquilo que Halbwachs chamou de quadros sociais de memórias, que grosso modo, são os lugares e a comunidade afetiva nos quais os indivíduos constituem as suas memórias e identidades e que permite consolidar a característica marcante nos processos de constituição de memória: a sensação de continuidade. Eles, dessa forma, consolidam a memória coletiva, definindo o que os indivíduos devem deve lembrar ou esquecer (NAMER. 1999. pp. 370-371). Ocorre, entretanto, que o processo de apreensão da memória, também se dá pelas “memórias dos outros”, ou “memórias por tabela. Como disse Pollak. (1992), são lembranças de uma comunidade afetiva de coisas experimentadas por outros (os mais velhos, os pais, etc) e que o indivíduo toma como se fosse suas. Pollak desdobra assim, o conceito de quadros sociais, demonstrando que por conta da possibilidade, no bojo de cada grupo, pode ocorrer o enquadramento de memória, ou seja o ato de alguém (ou um grupo, instituição, classe etc) inculcar as suas memórias sobre os outros, ao ponto de acreditarem que elas são suas. Temos aqui uma percepção que coaduna com o sentido de ideologia definida como [...] um conjunto lógico sistemático e coerente de representações (ideias e valores) e de normas (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros de uma sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer (CHAUÍ, 2001, p.117).

Do ponto de vista histórico, com a virada culturalista na historiografia brasileira, o elemento negro foi convocado por Gilberto Freyre como parte da identidade nacional, ainda que numa condição hierárquica inferior ao elemento branco. Essa face da historiografia se relaciona com a vontade do Estado á época que entre 1937-1945 buscou construir uma memória nacional no qual a cultura negra fizesse parte da identidade brasileira, principalmente através da música popular, mais especificamente do (VIANNA, 1997). Não se trata de uma passagem histórica de redenção do Estado em face de negação de cidadania aos pretos e mestiços, fomentando enfim a isonomia, mas em última instância tem haver com o projeto de miscigenação brasileira para que o elemento negro se diluísse com o tempo. Nesse aspecto, a negação de identidade negra se deu (e em certo sentido se dá) de

forma sistemática, pois desconstituída pelo translado e escravização, constituiu-se, a) de forma inautêntica pelos meios da memória do Estado nacional e da classe dominante em suas ideologias em relegar ao negro um papel secundário na sociedade e b) e pelas próprias experiências dos seus indivíduos, quase sempre de pertencimento aos espaços periféricos das cidades, como vilas e favelas; quase sempre ocupando os postos mais baixo do mercado de trabalho ou a sua total exclusão e em consequência a marginalidade (FERNANDES, 1972; GUIMARÃES, 2002). Apesar disso, essa identidade negra, como toda identidade é capaz de produzir bens simbólicos, elementos culturais. É capaz de evocar a celebração do sentimento de pertencimento a determinada comunidade afetiva (e mesmo o pertencimento ao Estado nacional, ainda que não de maneira plena), sendo também uma das formas de resistências dos povos negros do Brasil e formas de sua própria manutenção. Se ao longo da História, houve a repressão do Estado, João José Reis e Eduardo Silva (1989) demonstraram que também houve momentos de negociações e conflitos, ou seja, lutas pelos direitos á cidadania, como por exemplo, o direito de manifestação religiosa do candomblé. Sergio Guimarães (2002) por sua vez traça, um panorama no qual demonstra que concomitantemente às lutas dos negros brasileiros pela cidadania, melhoria de vida e ingresso no mercado de trabalho em condições iguais, houve lutas no campo do pensamento. Intelectuais e militantes políticos se levantaram e propuseram uma nova concepção histórica que incluísse o negro num papel central historiografia do Brasil; a Frente Negra (movimento que se tornou um partido político) e o Teatro Negro se estabeleceram como instituições de lutas pelas afirmações de lutas dentro dos mundos político e artístico (AMORIM, 2011) É nesse segundo agrupamento que parte da obra musical de Gilberto Gil se apresenta como algo pertinente, uma vez que se tornou fonte documental relevante para o entendimento da questão da memória e identidade negra no Brasil, na medida em que permite auferir muitas informações valiosas para o debate acerca desse tema.

4. A Música como suporte de memórias Gilberto Gil, mais que um cantor e compositor que dá voz à causa negra, desenvolveu várias atividades políticas que direta ou indiretamente também se constituem em formas de lutas nesse âmbito, embora não se defina como militante negro, mas como simpatizante da causa. (FIDELES, 2014) assim, por exemplo, esteve a frente da Fundação

Quilombo dos Palmares, foi Ministro da Cultura entre 2002-2008, em vários momentos chamou atenção do mundo para a questão da negritude como uma demanda internacional. (LOPES; 2013; ZAPPA, 2014) Mas optou-se nesse texto em se ater apenas da análise de algumas das suas canções como amostras de suportes de memórias e identidade negra. A primeira canção é denominada Filhos de Gandhi foi composta em 1973: Omolu, Ogum, Oxum, Oxumaré /Todo o pessoal/Manda descer pra ver/Filhos Gandhi//Iansã, Iemanjá, chama Xangô/Oxossi também/Manda descer pra ver/Filhos de Gandhi/Mercador, Cavaleiro de Bagdá/Oh, Filhos de Obá/Manda descer pra ver/Filhos de Gandhi//Senhor do Bonfim, faz um favor pra mim/Chama o pessoal/Manda descer pra ver/Filhos de Gandhi//Oh, meu pai do céu, na terra é carnaval/Chama o pessoal/Manda descer pra ver/Filhos de Gandhi. (RENNÒ, 2000)

Essa canção tem na finalidade de evocação de memória e identidade do povo negro uma dupla importância. Em primeiro lugar, foi composta e gravada por Gilberto Gil no intuito de revitalizar um dos mais tradicionais blocos afro de carnaval de Salvador, Filhos de Gandhi, que no começo da década de 1970 estava em decadência. O próprio autor relata que a primeira coisa que fez foi ingressar no bloco em 1972 e o no ano seguinte compôs a canção. Essas atitudes fizeram com que o bloco saísse do ostracismo, se reafirmando como importante entidade, guardiã da memória do carnaval, da cidade de Salvador e dos adeptos da religião do candomblé. (RENNÓ. 2000 p.146) Além do mais em seu texto há uma clara referencia aos orixás do candomblé, os quais são considerados dentro dessa tradição religiosa como entidades de ligação do homem à sua espiritualidade, a sua memória arquetípica. Fernando Costa (1974) demonstrou que a preservação da religiosidade foi uma importante forma de resistência dos negros. Sob a manutenção das suas crenças e dos seus rituais sagrados, os negros conseguiram preservar as suas identidades, embora totalmente desconfiguradas pelo elemento branco colonizador. È notável que outros blocos afros, Mercador de Bagdá, Cavaleiros de Bagdá e Filhos Obá são citados na canção, numa clara demonstração de que, mais importante que recompor os Filhos de Gandhi é afirmar a memória celebrativa da tradição das festas carnavalescas e da identidade negra. A canção seguinte, Nos Barracos da Cidade, cuja a letra de Gilberto Gil e a música do compositor tem-se s seguintes estrofes:

Nos barracos da cidade/Ninguém mais tem ilusão/No poder da autoridade/De tomar a decisão/E o poder da autoridade, se pode, não faz questão/Mas se faz questão, não/Consegue/Enfrentar o tubarão /Ôôô , ôô/Gente estúpida/Ôôô , ôô/ Gente hipócrita //E o governador promete,/Mas o sistema diz não/Os lucros são muito grandes,/Grandes... ie, ie/E ninguém quer abrir mão, não/Mesmo uma pequena parte/Já seria a solução/Mas a usura dessa gente/Já virou um aleijão/ (...). (RENNÒ, 2000 p. 262)

Nessa, a letra não remete imediatamente a questão da negritude, mas o ritmo dá-lhe a condição de suporte de memória do povo negro, visto que este gênero, nascido na Jamaica – país de etnia negra – foi ali largamente utilizado para fazer denúncias sociais e políticas. Na década de 1970 em diante, o contato de Gilberto Gil com autores como e Jimmy Clif, fê-lo ser um dos principais entusiastas na introdução do reggae no Brasil. (LOPES, 2012) Seguindo a tradição do reggae como forma de protesto, Gilberto Gil incorporou-o a música popular brasileira no bojo da música de protesto brasileira que se iniciara na década de 1960. (TINHORÃO, 1986). Gravado em 1985, Nos Barracos da Cidade já não era um protesto contra a direta opressão do Estado que naquele mesmo ano deixava a sua forma de Ditadura Militar mas centrava-se na crítica das mazelas sociais e na denúncia dos governos inoperantes e demagogos do país. Critica-se dessa forma direta a democracia burguesa que se anunciava e o sistema capitalista de então. A identidade reclamada neste texto se dá pela identificação da população na mesma condição de pobre, favelado e desiludido com o sistema político. Assim, o autor sem utilizar a palavra “negro” elabora um suporte de identidade negra, a saber que a maior parte da população preta e mestiça do Brasil moraram em locais marginalizados, nos quais o Estado em sua função social é ausente. Na canção A mão da Limpeza, composta em 1984, temos a seguinte escrita: O branco inventou que o negro/Quando não suja na entrada/Vai sujar na saída/(...) Que mentira danada, ê//Na verdade a mão escrava/Passava a vida limpando/O que o branco sujava, /(...)/O que o negro pensava, ê//Mesmo depois de abolida a escravidão/Negra é a mão/De quem faz a limpeza/Lavando a roupa encardida, esfregando o chão/Negra é a mão/É a mão da pureza/Negra é a vida consumida ao pé do fogão/Negra é a mão/Nos preparando a mesa/Limpando as manchas do mundo com água e sabão/Negra é a mão/De imaculada nobreza//Na verdade a mão

escrava/Passava a vida limpando/O que o branco sujava, ê/Imagina só/O que o branco sujava, ê/Imagina só/ Eta branco sujão. (RENNÒ, 2000, p. 288)

De forma direta Gilberto Gil reflete sobre as condições de vida e de trabalho dos negros no Brasil, tomando como referência um ditado popular maledicente e racista contra o negro, de acordo com o testemunho do próprio autor. Nessa canção, ele demonstra, ao mesmo tempo, o traquejo na elaboração da letra da canção popular, o conhecimento histórico sobre escravidão e o seu resultado plasmado numa do cotidiano brasileiro que um(a) negro(a) faz o trabalho mais pesado e menos remunerado na sociedade. (GUIMARÃES, 2002) Mas nessa abordagem, o negro não é apresentado como o culpado pela sua situação de inferioridade social. Pelo contrário, através do recurso de trocadilho, a expressão “mão da pureza” remete ao conceito de inocência (“mãos limpas”), ganhando um sentido conotativo, enquanto em outras referências a palavra “mão” está no denotativo e claramente indica a atividade laboral dos negros. A presença da ideologia racista é abordada no início da canção – o branco inventou que o negro quando não suja na entrada/ Vai sujar na saída... – quando ele demonstra que o conceito do negro preguiçoso apregoado no provérbio é uma invenção, ou seja, uma visão falsa da realidade, que caracteriza uma ideologia. (CHAUÌ, 1980) para legitimar uma opressão. O braço/colonizador dessa forma, buscou operar um enquadramento de memória sobre o escravo para que ele se subjetivasse como “sujo” e menor. O branco/burguês herdou esse método. Mas novamente o autor se vale do recurso de linguagem. O intuito é demonstrar que o que houve foi uma inversão da verdade operada por um discurso histórico comprometido com a preservação de uma memória interessante ao Estado nacional, ou seja, uma História- memória. De acordo com Ruy Medeiros, (2015).em certos momentos a História surge como meio de denunciar a História-memória,de forma que essa canção portanto é um desses exemplos, pois desmente uma “memória dos outros”, e evoca uma memória autêntica dos povos negros, cuja história foi silenciada em função de uma constituição identitária irreal por uma sociedade racista.

5. CONSIDERAÇOES FINAIS A pesquisa apresentada neste texto ainda está em fase de andamento, entretanto é possível demonstrar que a música de Gilberto Gil tem servido como forma de evocação de

memórias e identidade, seguindo uma tradição de lutas pela memória que não se limita ao campo da política ou das lutas sociais. Florestan Fernandes(1972) demonstrou que através da poesia, do folclore e do teatro por exemplo, muitas lutas pela memórias se deram ao longo da história do negro no Brasil, citando como um dos exemplos os poemas de Oswaldo Camargo. A hipótese que se levanta aqui é que Gilberto Gil, assim como autores como Clara Nunes e (SANTOS, 2015) pertence a esse tipo de tradição que utilizar a arte como meio de protesto. Todavia, não há de se negar que a evocação da memória no projeto de Gilberto Gil e dos tropicalistas não implica um rompimento total com a ideologia do Estado nacional, mas reclama frente a ele que a identidade negra, até então tolhida ou posta em posição secundária, passa a fazer parte da memória nacional como uma das identidades do Brasil. Hobsbawm e Ranger (1984) lançaram mão da tese de que certas tradições do Estado nacional parecem ser espontâneas ou mais velhas do que realmente são. O fito dessas invenções de tradições é a consolidação da memória do Estado como verdade. Marcos Napolitano (2002) concebe a MPB como uma tradição inventada. O projeto tropicalista, assim como o projeto artístico de Gilberto Gil busca inserir a questão da negritude como um dos elementos centrais da tradição brasileira, o que não lhe retira o poder de constituir-se como suporte de memórias que denuncia o racismo, a exclusão social que os pretos e mestiços do Brasil tem passado ao longo da história da nação.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÀFICAS AMORIM, Alessandro Moura. MNU Representa (1970-2005): Cultura Histórica, Movimento Negro e Ensino de História. João Pessoa. 2001. Dissertação de mestrado disponível em : http://www.cchla.ufpb.br/ppgh/2011_mest_alessandro_amorim.pdf. Acessado em 27.11.2016 ás 15:46 h BRITO, Brasil Rocha. Bossa Nova. in CAMPOS, Augusto de. Balanço da Bossa e Outras Bossas . Perspectiva. São Paulo. 1978 CAMPOS, Augusto. O Passo a Frente de Caetano Veloso e Gilberto Gil. in CAMPOS, Augusto de. Balanço da Bossa e Outras Bossas . Perspectiva. São Paulo. 1978 CHAUÌ, Marilena. Manifestações Ideológicas do Autoritarismo Brasileiro. Autêntica. São Paulo, 2013. ______. O que é Ideologia. Editora Brasiliense. Brasília. 1980 COSTA, Fernando. A Prática do Candomblé no Brasil. Editora Renes. . 1974.

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