Coisas da roça: a música sertaneja no cinema brasileiro

Marcia Carvalho∗

Índice raca e Ratinho, Tonico e Tinoco e outros. Com o sucesso de Cascatinha e Inhana, com 1 Na estrada e na roça, uma história cai- “Índia” de 1952, abre-se caminho para novas pira de um cinema sertanejo 2 duplas e artistas conquistarem não somente 2 No rodeio e na cidade, onde o sertão é o rádio e o cinema, mas também a televi- o Texas 6 são, tendo a frente cantores que se dedicaram 3 A voz esganiçada: do caipira ao brega 7 à carreira solo, como Inezita Barroso e Sér- 4 Bibliografia 8 gio Reis. Poucas duplas se conservaram fies às características do gênero, sendo muitas vezes denominados como representantes da O termo música sertaneja designa um gê- música caipira ou de raiz. Entretanto, muitas nero surgido da moda de viola rural, nos anos novas duplas sofreram fortes influências es- de 1920, que até hoje conserva a tradição do trangeiras, principalmente da música coun- canto com duas vozes, a segunda delas uma try norte-americana, cujas características dos terça acima da principal, que é chamada pri- instrumentos eletrônicos, como a guitarra, e meira voz. Este gênero foi popularizado por até mesmo os elementos visuais, de indu- duplas como Alvarenga e Ranchinho, Jara- mentárias e de comportamento e costumes ∗Radialista formada pela Universidade Estadual passaram a predominar no gênero agora cha- Paulista (UNESP), mestre em Ciências da Comuni- mado de moderna música sertaneja, ou ainda cação pela Universidade de São Paulo (ECA-USP), música sertaneja urbana ou pop. Esta trans- e doutoranda em Multimeios, no Instituto de Ar- formação se iniciou nos anos 70 com Leo tes da Universidade Estadual de Campinas (IA- UNICAMP), com uma pesquisa sobre a canção popu- Canhoto e Robertinho, sendo consolidada lar no cinema brasileiro, sob orientação do Prof. Dr. nos anos 80 com Chitãozinho e Xororó, Zezé Claudiney Carrasco. Professora universitária e dire- de Camargo e Luciano, Leandro e Leonardo, tora de um programa de TV do Canal Universitário e vozes individuais como Roberta Miranda. de São Paulo. A música sertaneja de raiz é composta Contato: [email protected] Este artigo foi apresentado em forma de comunicação por modas, toadas, cateretês, chulas, embo- no Núcleo de Pesquisa de Comunicação Audiovisual, ladas e batuques, com o uso de violas caipi- do XXX Congresso Brasileiro de Ciências da Comu- ras e acordeons para evocar a paisagem bu- nicação (INTERCOM), realizado em Santos, em 29 cólica do campo, da vida e da gente sim- de agosto a 02 de setembro de 2007. 2 Marcia Carvalho ples do interior, particularmente na região impacto e na impressão que o fato cultural centro e sudeste brasileiro. Segundo Ro- provoca, alimentando a posição ideologica- mildo Sant’Anna: “a moda caipira de raízes mente conveniente à ordem sistêmica atual e sua qualidade estável são o sorriso primor- de que as relações sociais e a posição ocu- dial da região centro-sul e sudeste do país” pada no organograma do sistema é mero pro- (SANT’ANNA, 2000, p. 239). No entanto, duto do modo como individualmente tomam- de maneira mais ampla, o termo também in- se decisões, apoiado exclusivamente na idéia de sorte, esperteza, destino, etc... Afinal, o clui o baião, o xaxado e outras músicas pro- gosto é produto da composição do repertório duzidas nas regiões norte e nordeste do Bra- e esse também é reflexo do modo como cada sil, onde efetivamente há sertão, e que têm segmento social participa da organização do em comum a característica de não serem cul- modo de produção capitalista” (JOSE, 2002, tura das cidades grandes. p. 131). Desde o começo do século XX, temos mú- sica urbana produzida com sotaque interio- Nesse sentido, para uma melhor compre- rano, que criaram os gêneros como samba ensão e definição do que é música sertaneja sertanejo ou valsa sertaneja. No entanto, a e quais são as suas diferentes vertentes vale transformação da música sertaneja fabricada também lembrar as palavras de um dos mais na cidade tomou o rumo dos temas urba- importantes historiadores da música brasi- nos, perdendo os seus vínculos com a temá- leira, José Ramos Tinhorão: “a música cai- tica caipira, e passou a compor músicas mais pira é manteiga, e a sertaneja é margarina” dramáticas e negativas, com poucas brechas (Baccarin, 2000, p. 100). para o humor, e com a predileção por temas relacionados a perdições, traições e adulté- rios. 1 Na estrada e na roça, uma Em contrapartida, podemos nos pergun- história caipira de um cinema tar se esta discussão não irá cair nas garras sertanejo do juízo de gosto como critério de avaliação da música sertaneja e de suas vertentes. Se- Um dos primeiros usos da música sertaneja gundo Carmen Lucia José: no cinema brasileiro foi no primeiro longa- metragem sonorizado no Brasil: Acabaram- “A discussão sobre o gosto deve ocupar vá- se os otários (1929) de Luís de Barros, em rios dos espaços culturais e educacionais da que Roque Ricciardi, o Paraguassu (ou Pa- sociedade brasileira, discussão essa viabili- raguaçu), cantou o samba sertanejo “Triste zada pelas diversas noções de estética e pe- Caboclo”. A estória deste primeiro filme so- las várias correntes teóricas de comunicação noro brasileiro, segundo Carlos Roberto de e informação, tanto do ponto de vista diacrô- Souza (1981, p. 39), assemelha-se à nossa nico como sincrônico. Só assim será pos- primeira comédia: Nhô Anastácio chegou de sível desmontar a superficialidade do argu- viagem, em que o matuto Arrudinha (Ge- mento ‘Eu gosto e gosto não se discute’ pois, nésio Arruda) chega à cidade e acaba com- atrás dessa posição, existe a crença da de- prando um bonde. cisão pessoal confirmada. Essa crença não se fundamenta no conhecimento e sim no

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Antes deste filme, o italiano Paulo Bene- de caipira paulista” (VIANY, 1959, p. 115- detti produziu no Brasil vários curtas falados 116). Neste filme, Luís de Barros utiliza um e cantados acompanhados por discos, sendo sistema próprio de sincronismo entre o pro- responsável pela primeira tentativa de sono- jetor e os discos em que gravava os diálogos. rização pelo sistema Vitafone (ou Vitaphone, Em seguida, podemos citar os filmes com conjugação de disco gravado com imagens) temática sertaneja: Sertão em festa (1931) no curta-metragem Bentevi (1927), curiosa- e Fazendo fita (1935) de Vittorio Capel- mente com a participação do cantor paulista laro, com a dupla Alvarenga e Ranchinho Paraguassu. Benedetti realizou uma série de (pseudônimos do mineiro Murilo Alvarenga curtas-metragens musicais com músicos po- e do paulista Diésis dos Anjos Gaia). Esta pulares. O Bando de Tangarás gravou qua- dupla, famosa pela música e pelos diálogos tro músicas, dublando seus próprios discos cômicos no cinema, participou de vinte fil- para a câmera na busca de sincronia das ima- mes, entre eles destacam-se Tereré não re- gens com as músicas pré-gravadas. Almi- solve (1938), Samba em Berlim (1943) e rante, , João de Barro e os demais Pif-paf (1945), de Luís de Barros, e Aba- integrantes apareciam vestidos de sertanejos caxi Azul (1944),de Wallace Downey e Ruy para cantar as emboladas “Galo garnizé” e Costa. “Bole bole”, o lundu “Vamos falá do norte”, Com a popularização do sistema sonoro e o cateretê “Anedotas” (TINHORÃO, 1972, no Brasil, inaugura-se a trajetória da produ- p. 251 e AUGUSTO, 1989, p. 78). ção de musicais, preferencialmente carnava- Também Humberto Mauro colocou em lescos promovidos pela Cinédia e pela Atlân- destaque o caipira nos curtas-metragens que tida. O filme desbravador deste percurso produziu para o Instituto Nacional de Ci- é Coisas nossas (1931) do norte-americano nema Educativo (INCE), órgão criado em Wallace Downey, produzido em São Paulo, 1936 por Edgar Roquette Pinto. Mauro fil- que aposta na popularidade de Paraguassu, mou entre 1936 e 1964 vários pequenos fil- Batista Júnior, Jararaca e Ratinho (pseudôni- mes sobre canções populares brasileiras re- mos do alagoano José Luiz Rodrigues Cala- colhidas por Villa Lobos e Mário de An- zans e do paraibano Severino Rangel de Car- drade, entre eles a série de seis filmes intitu- valho), e outros astros e estrelas da radiofo- lada Brasilianas, com os filmes Chuá-chuá e nia na época. Casinha Pequenina (1945), Azulão e Pinhal A famosa dupla sertaneja de músicas cô- (1948), Aboio e cantigas (1954), Cantos de micas Jararaca e Ratinho participou de vá- trabalho (1955), Manhã na roça (1956); ou rios filmes, entre eles Voz do Carnaval ainda, Carros de bois e A velha a fiar (1964). (1933) de Humberto Mauro e Adhemar Gon- Mas foi Luís de Barros que deu conti- zaga; Berlim na Batucada (1944) de Luís nuidade à produção de filmes falados, como de Barros; Romance proibido (1938-1944) e em O babão (1930), paródia do sucesso Loucos por música (1945-1949), de Adhe- norte-americano Amor pagão (The pagan), mar Gonzaga; e foram protagonistas de No no qual, segundo Alex Viany, Genésio Ar- trampolim da vida (1946). Sem o seu par- ruda parodiava Ramón Novarro, o galã do ceiro, Jararaca atuou em Salário mínimo musical americano, “de cuecas, com sotaque (1969-1970), de Adhemar Gonzaga, e tam- www.bocc.ubi.pt 4 Marcia Carvalho bém em programas humorísticos na televi- dução/ distribuição/ exibição e também de são. aceitação de público para um filme brasi- Neste panorama historiográfico, é impos- leiro. A divulgação em massa da estereoti- sível não citar os filmes de Amácio Maz- pia de Mazzaropi vai de Sai da Frente (1952) zaropi, que estreou na Rádio Tupi de São e Candinho (1954) dirigidos por Abílio Pe- Paulo, no final dos anos 40, com um pro- reira de Almeida; Chico fumaça (1958) de grama de conversa com os caipiras da cidade Víctor Lima; Jeca Tatu (1959) de Milton grande. O sucesso no rádio o impulsionou Amaral; Tristezas do Jeca (1961) dirigido para a televisão, praticamente inaugurando a pelo próprio Amácio Mazzaropi; Casinha Tv Tupi de São Paulo, em 1950, com o pro- pequenina (1963) de Glauco Mirko Laurelli; grama Rancho Alegre. Convidado para fazer O puritano da rua Augusta (1965) e Jeca filmes na Vera Cruz, Mazzaropi entra defi- e a freira (1968) com direção de Amácio nitivamente para a história do cinema brasi- Mazzaropi; Uma pistola para Djeca (1969) leiro, particularmente com o filme Jeca Tatu de Ary Fernandes; até O Jeca macumbeiro (1959), uma adaptação de Monteiro Lobato, (1974), Jeca contra o Capeta (1975), Je- com direção de Milton Amaral. Nele, Maz- cão... um fofoqueiro no céu (1976), Jeca e zaropi incorpora a sua caricatura histriônica seu filho preto (1978), e Jeca e a Égua Mi- de caipira, cristalizando o esteriótipo e os cli- lagrosa (1980) com direção de Pio Zamuner, chês do homem do campo ou do interior pau- entre outros. lista como indolente, simples, conformado e Talvez devido a esta façanha comercial, astucioso. Entretanto, é importante lembrar Luiz Alberto Pereira tenha homenageado a presença no filme Tristeza do Jeca (1961), Mazzaropi no filme Tapete Vermelho (2005), dirigido pelo próprio Mazzaropi, da toada- em que o ator imita paulista: “Tristezas do Jeca”, criada por An- as suas pernas espaçadas e o seu vocabulário, gelino de Oliveira, uma das canções mais im- bem acompanhado pela música do caipira le- portantes do cancioneiro sertanejo; e a parti- trado Renato Teixeira.1 cipação do compositor e acordeonista Mário Outro sucesso bastante lembrado é o filme Zan, que também participou dos filmes Da O cangaceiro (1952) dirigido por Lima Bar- terra nasce o ódio (1954) de Antoninho Hos- reto, épico no qual podemos notar no famoso sri e Casinha pequenina (1963) de Glauco plano geral do deslocamento de cangacei- Mirko Laurelli. Ou ainda, é impossível não ros a canção “Muié Rendêra” ou a canção lembrar que a sua composição “Chalana” foi “Saudade meu bem saudade” de Zé do Norte tema principal da novela Pantanal, da Rede 1 Também com os mesmos parâmetros de precon- Manchete de televisão nos anos 90, junto aos ceito e de clichê de caipira como sinônimo de pé des- sucessos de Almir Sater. calço, molambento e destituído, não se pode esquecer Com carisma inexplicável, esta fusão en- a versão mirim de Jeca Tatu cristalizada no persona- tre Jeca e Mazzaropi se desenvolve em mui- gem Chico Bento, de Maurício de Souza, criado em 1963 para as tiras de jornais, gibis e almanaques da tas aventuras em inúmeros filmes, todos se- Mônica e do Cebolinha (Editora Abril), e almanaque guidores do mesmo esquema de enredo sen- e gibi Chico Bento (Editora Globo), que circulam até timentalista e alienado, se tornando até hoje, os dias de hoje. um dos maiores marcos do trabalho de pro-

www.bocc.ubi.pt Coisas da roça 5 no meio dos vários mecanismos americani- tornou-se o primeiro artista sertanejo a to- zados adotados no filme. Ou ainda, é preciso car em uma emissora FM (Baccarin, 2000, apontar a presença de “Beijinho doce” na tri- p. 130), emplacou as suas músicas sertanejas lha musical do filme Aviso aos navegantes de sucesso nos filmes O menino da porteira (1951), dirigido por Watson Macedo. (1976) e Mágoa de boiadeiro (1977) de Jere- Também a dupla caipira Tonico e Tinoco mias Moreira Filho; e O filho adotivo (1984) (os paulistas João Salvador Perez e José de Deni Cavalcanti. Além de ter estendido a Perez) esteve presente no cinema brasileiro sua atuação para as telenovelas e como apre- atravessando várias décadas de produção. sentador de televisão. Estes filmes citados Entre os filmes destacam-se Luar do sertão anteriormente também contaram com a par- (1949), primeiro filme brasileiro do italiano ticipação do cantor e humorista Zé Coqueiro Mário Civelli; Lá no meu sertão (1962) e (Walter Raimundo). Obrigado a matar (1964) de Eduardo Llo- Outras músicas sertanejas de sucesso ins- rente; A marca da ferradura (1970) e Os piraram filmes, como Pára, Pedro (1969) de três justiceiros (1970-1972) de Nelson Tei- Pereira Dias, baseado na música de sucesso xeira Mendes; Luar do sertão (1971) de Os- de José Mendes; Cabocla Tereza (1980) de valdo Oliveira, que também dirigiu a comé- Sebastião Pereira, baseado na toada de Raul dia rural musical Sertão em festa (1970), Torres e João Pacífico; ou Fuscão preto com Tião Carreiro & Pardinho, e No rancho (1983) com direção de Jeremias Moreira Fi- fundo (1971), terceiro filme do diretor com lho, baseada na canção brega homônima de os cômicos Simplício e Nhá Barbina, e com Atílio Versuti e Jeca Mineiro. a participação de, ainda meninos, Chitãozi- Um pouco distante do cinema sertanejo, nho e Xororó; O menino jornaleiro (1980- devemos lembrar que a cantora Inezita Bar- 1982); e A Marvada Carne (1985) de André roso e o contador de histórias e cantor Ro- Klotzel. lando Boldrim também atuaram no cinema. É curioso lembrar que André Klotzel foi Boldrim participou de Doramundo (1976) de assistente de direção de Nelson Pereira dos João Batista de Andrade, e Ele, o boto (1986) Santos em A estrada da vida (1980), filme de Walter Lima Jr. Já Inezita Barroso atuou que conta a história da dupla sertaneja Mili- em Ângela (1951) dirigido por Tom Payne e onário e José Rico, que comentaremos mais Abílio Pereira de Almeida; É proibido bei- adiante. A marvada carne, uma comédia ins- jar (1953) de Ugo Lombardi; Destino em pirada nos costumes da roça, é o seu longa- apuros (1953) de Ernesto Remani; O craque metragem de estréia. Trata-se de uma adap- (1953) de José Carlos Burle; é protagonista tação de uma peça de Carlos Alberto Soffre- em Mulher de verdade (1954) de Alberto Ca- dini, com uma volta ao estilo do filme rural valcanti; e canta “Estatuto de gafieira”, de por meio de personagens e diálogos cômicos Billy Blanco, no filme Carnaval em lá maior que buscam construir a ingenuidade e a sa- (1954) de Adhemar Gonzaga. Para eterni- piência dos moradores do campo, com trilha zar o tom bem humorado das músicas caipi- musical de Rogério Duprat e Passoca (Marco ras, Inezita gravou em 1953 a famosa e mar- Antônio Vilalba). cante moda de viola “N’a moda da pinga” O paulistano Sérgio Reis, que em 1972 (de Ochélsis Aguiar Laureano, Raul Torres, www.bocc.ubi.pt 6 Marcia Carvalho com estrofes de e também esta música sertaneja tornou-se música de reivindicada por Mariano, Nono Basílio), re- fundo para o circuito de festas e bebedeiras gistrando o vocabular de tom jocoso e ca- dos “agroboys” ou novos ricos do interior, rismático da cantora. Atualmente, Inezita e que vivem no faroeste da riqueza vinda da Boldrim dedicam-se às suas carreiras de re- monocultura da cana-de-açúcar e dos gran- sistência e divulgação da cultura caipira na des negócios agropecuários. Este caipira de televisão. Eles comandam os mais represen- butique, expressão de José Ramos Tinhorão tativos programas televisuais que abrem es- (1991, p. 5), são os fãs e patrocinadores de paço para a música caipira, os seus costumes jogos eqüestres – Festas de Rodeios e Festas e histórias que são Viola, minha viola e Sr. de Peões-boiadeiros, militantes de uma polí- Brasil, ambos veiculados pela Tv Cultura de tica agrária conservadora e modista. São Paulo. Segundo Waldenyr Caldas (1987), o pú- blico desta música vive no meio urbano- 2 No rodeio e na cidade, onde o industrial, são os consumidores de baixa renda que moram na periferia das grandes ci- sertão é o Texas dades e os novos ricos do interior. De serta- Um exemplo bastante contundente da proli- neja mesmo, sobrou apenas o nome. Dado feração da música sertaneja nos grandes cen- que, esta música atingiu os grandes veícu- tros urbanos, determinando uma transforma- los de comunicação e tornou-se parte de um ção neste gênero musical, é a história da du- comportamento massificado de consumo. pla Milionário e José Rico retratada no ci- Um dos filmes que pegou carona na po- nema em Estrada da vida (1980) de Nelson pularidade das festas de rodeio, que segundo Pereira dos Santos. Além da sonoridade pop, o barretense apresentador Cuiabano, é “ca- a dupla escolhida é representativa dos novos valo, poeira, cerveja, mulher e desquite na rumos tomados pela música sertaneja nos segunda-feira” (NEPOMUCENO, 1999, p. anos 70, tanto no figurino como na temática e 221), é Buena sorte (1998) de Tânia La- instrumentação das canções inspiradas pelas marca. Este filme, rodado na região agro- imagens do cowboy norte-americano. Esta pecuária de Uberaba e Barretos, e que in- dupla sertaneja também participou do filme clui cenas da Festa do Peão de Boiadeiro de Sonhei com você (1988) de Ney Sant’anna. Barretos, tira o chapéu para a cultura coun- Para Zuza Homem de Mello, a música ser- try e o gênero western de cinema. O filme é taneja perdeu o seu vínculo com o campo: falado em português e inglês, possui perso- “É totalmente oportunista, forçando a barra nagens americanos, danças e roupas típicas para abandonar sua origem. O único ponto do Texas. Na trilha sonora, a música origi- de identificação com o universo rural são os nal namora o estilo country em temas como temas de boi e peão, mantidos por causa dos “Country etílico”, “Tema do Texas” e “Tema rodeios que atraem grande público” (NEPO- do Zorro”. Mas também não se esquece de MUCENO, 1999, p. 216). eleger onze músicas sertanejas bem conhe- Sem humor ou expressão autêntica da ora- cidas e respeitadas, entre elas “Rio de lágri- lidade de quem vive e trabalha com a terra, mas” de Lourival dos Santos, Tião Carreiro e Piraci; “Disco voador” de Palmeira; e “Luar

www.bocc.ubi.pt Coisas da roça 7 do sertão” de Catulo da Paixão Cearense, na 3 A voz esganiçada: do caipira voz de Vicente Celestino. ao brega Outra aposta de sucesso do cinema serta- nejo cafona é à fuga de Zezé di Camargo e A viola não é mais o coração da música bra- Luciano das festas de Reis com violas, re- sileira. Nem o pandeiro, nem o violão. A zas e danças características de Goiás, onde música brasileira se rendeu à guitarra e aos foram criados, para a cidade grande de São sons elétricos tão distantes do universo do Paulo retratada em 2 Filhos de Francisco caipira, que parece quase não existir mais (2005), primeiro longa-metragem dirigido através do cinema. O artista sertanejo atual por Breno Silveira. O filme baseado na vida quer ser country, o caipira americano, mas dos cantores de “É o amor” (Mirosmar José nunca descendente dos matutos de sua terra, di Camargo e seu irmão Welson David Ca- com seus versos, seus causos, sua viola e margo), contou com a astuta ajuda de Ca- suas histórias da roça. Isto talvez aconteça etano Veloso para selecionar junto aos su- por vergonha do perfil ridicularizado de Jeca cessos da dupla algumas modinhas caipiras, Tatu, traçado por Monteiro Lobato, concreti- que ganharam nova roupagem para acompa- zado no cinema por Mazzaropi. nhar as eficientes cenas de infância da du- Daí o conflito “caipira X sertanejo”, com pla, entre elas “Tristeza(s) do Jeca” de An- a oposição da autenticidade do caipira com a gelino de Oliveira, com a bela interpretação sua fusão com o chamado “brega”, que criou de e Maria Bethânea; “Ca- os rótulos “breganojo”, do radialista Moraes lix Bento”, do folclore mineiro com arranjo Sarmento (MUGNAINI JR, 2001, p. 61), ou de Tavinho Moura, interpretado por Ney Ma- “sertanojo” de , roqueira vegetari- togrosso; e “Luar do Sertão” de Catulo da ana e alinhada com o pensamento da socie- Paixão Cearense, infelizmente nas vozes de dade protetora dos animais. Entretanto, não Chitãozinho e Xororó e Zezé di Camargo e se trata de uma discussão de gosto. A des- Luciano. caracterização do gênero sertanejo não está No filme, o tom da malandragem do Jeca somente na recepção ou nos arranjos instru- ficou por conta da teimosia de Francisco mentais e no figurino, mas também no reper- (interpretado por Ângelo Antônio) que cria tório criado sem qualquer preocupação com sua indústria de jabá para impulsionar a car- a qualidade melódica ou de elaboração das reira dos filhos. Assim, o filme universa- letras. liza a transformação da música caipira em Além disso, segundo Antônio Cândido música sertaneja urbana, com seus temas de (2001) e Walter de Souza (2005), o caipira amor romântico não correspondidos, adulté- se move entre territórios por desbravar dife- rio, traição e frustração, com todo o senti- rentes paisagens, sem conseguir criar raízes mentalismo e romantismo eficazmente pop. em lugar algum. Muitas vezes, ao se trans- ferir para as grandes cidades permanece na periferia, nos limites, produzindo e consu- mindo uma música que flutua entre o fol- clórico e o massivo. Nesse sentido, entre o vaivém da ficção e da realidade, o que resta www.bocc.ubi.pt 8 Marcia Carvalho do velho canto caipira, de sua viola e de seu NEPOMUCENO, Rosa. Música Caipira: da humor misturado a sua tristeza estranha, é o roça ao rodeio. São Paulo: 34, 1999. dueto de vozes esganiçado, agora utilizado para cantar música romântica brega. Assim, PIPER, Rudolf. Filmusical Brasileiro e de tempos em tempos, podemos ver e ouvir a Chanchada. São Paulo: Global, 1975. música caipira que resiste enquanto a música RAMOS, Fernão.(org.) História do cinema sertaneja, com inflexão passional na melodia brasileiro. São Paulo: Art Editora, e na letra, fatura muito dinheiro ao assegu- 1990. rar o seu espaço no rádio, na televisão, no rodeio, e também nas telas do cinema. RIBEIRO, José Hamilton. Música Caipira: as 270 maiores modas de todos os tem- 4 Bibliografia pos. São Paulo: Globo, 2006. BACCARIN, Biaggio (org.). Enciclopédia SANT’ANNA, Romildo. A moda é viola – da música brasileira: Sertaneja. São Ensaio do cantar caipira. São Paulo: Paulo: Publifolha, 2000. Arte & Ciência, 2000.

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