Suplemento literário do Jornal A União

Janeiro - 2020 Ano LXX - Nº 11 R$ 6,00 Exemplar encartado no jornal A União apenas para assinantes. Nas bancas e representantes, R$ 6,00

No centenário do poeta pernambucano, especialistas discutem o legado do autor de ‘Morte e Vida Severina’ A UNIÃO 6editorial

Um ano de centenários Até o final de 2020, va- Decidimos dotado dos “dez mil dedos da mos lembrar de muita gente l i ng uagem”. que, se viva, estaria fazendo abrir o ano Para além da celebração à cem anos neste ano. Por essa poesia de João Cabral, a edi- efeméride, vamos começar e dos centenários ção que você tem em mãos terminar o ano celebrando passeia pela obra de Francisco a literatura: João Cabral de com poesia, Brennand, outro mestre per- Melo Neto em 9 de janeiro e uma poesia nambucano, este da cerâmica , em 10 de vitrificada no Brasil, que nos dezembro. Entre um e outro, nossa, deixou em dezembro de 2019. nomes como o do cineasta E às vésperas do Oscar, a Federico Fellini (20/1) e do nordestina, professora Genilda Azerêdo escritor José Mauro de Vas- nos brinda com uma análi- concelos (23/2), autor de Meu que é bastante se profunda da abordagem Pé de Laranja Lima. social do filme sul-coreano ‘, Somente em julho, serão cara também à texto que é complementado três celebrações: Elizeth Car- com uma seleção, deste edi- doso (16), (20) Paraíba tor, do que a Coréia do Sul e Amália Rodrigues (23). tem nos oferecido de melhor Decidimos abrir o ano dos na sétima arte. centenários com poesia, uma Tudo isso e um tanto mais poesia nossa, nordestina, de crônicas, contos, resenhas que é bastante cara também paraibanos dos mais diver- e os nossos valiosos colunis- à Paraíba. João Cabral de sos, da cantora Cátia de Fran- tas, um material para nutrir Melo Neto, de ‘Morte e vida ça (que narrou esse encontro seu conhecimento, estimular severina’, entre tantos outros para o Correio das Artes na sua criatividade e comparti- clássico, influenciou poetas edição de dezembro) e Sér- lhar sabedoria. de todo Brasil, inclusive da gio de Castro Pinto, que nos terra de Augusto dos Anjos. brinda, nesta edição, com O Editor Pessoalmente, encontrou um relato a respeito do poeta [email protected]

6 índice , 12 @ 16 2 25 D 42 Reportagem cinema Resenha artes visuais Morto em dezembro do Professora analisa o filme Discreto, o poeta José Na nossa última página, ano passado, Francisco 'Parasita', indicado a seis Antonio Gonçalves tem conheça o guerreiro Brennand tem seu legado prêmios no Oscar 2020; seu livro, 'Cavernas, Berserker, criação que avaliado por dois dos mais veja também um guia para Arenitos e Poemas', marca nova fase na notáveis ceramistas da ficar por dentro do cinema esmuiçado pelo escritor carreira do ilustrador Paraíba. sul-coreano. Gledson Sousa. paibano Mike Deodato.

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Para além

João Cabral: não há aspecto da cultura do mito, brasileira que não tenha sido influenciada ou, ao menos, tocada pelo poeta o legado poético de pernambucano Cabral

Linaldo Guedes cultura brasileira, pós-Cabral, que não tenha [email protected] sido influenciada ou, ao menos, tocada por ele. Da música popular ao cinema, das artes plásticas ao teatro. E por aí afora. Ele trou- dia 9 de janeiro de 2020 marcou o centená- xe a cultura popular para a poesia (e para a rio de nascimento de um dos maiores poetas dramaturgia) com um requinte e uma sim- de língua portuguesa. João Cabral de Melo plicidade que até hoje ressoa como novidade Neto nasceu nesta data, em 1920, e ao mor- e encanto singulares”, comenta. O rer, em outubro de 1999, deixou um legado “Cabral é um tão importante”, exalta que influenciou diversas gerações de poetas Amador, “que se, hipoteticamente, a ONU e gerou, também, epígonos. Quando morreu, decretasse que o Brasil teria de eleger apenas especulava-se que era um forte candidato ao dois poetas dentro de sua história geral da Prêmio Nobel de Literatura. Não chegou a poesia, da colônia até a atualidade, um deles, ganhar este prêmio, mas inscreveu seu nome sem dúvida alguma, seria João Cabral”. definitivamente na literatura mundial. Em “Para a minha poesia, desde meu livro de depoimentos ao Correio das Artes, poetas estreia, Barrocidade (2003), João Cabral está paraibanos falam sobre esse legado e sobre a presente como linha de influência e como influência de Cabral em suas poéticas. poeta que homenageio. Depois em Imagens Um dos poetas radicados na Paraíba que & Poemas (a quatro mãos com Roberto Cou- mais assume a influência cabralina em sua ra, 2008) ele reaparece no geometrismo das poética é Amador Ribeiro Neto, autor de li- imagens, do projeto gráfico do “livrobjeto” vros como Barrocidade e Poemail. Para Ama- e nos poemas selecionados. Mais tarde, em dor, a importância de João Cabral para a Ahô-ô-ô-ô-oxe (2015), João Cabral é a grande poesia e para a cultura brasileiras é tão imen- figura norteadora dos experimentalismos surável que torna-se indiscutível. dos poemas visuais-concisos e nordesti- “Praticamente não há aspecto de nossa nos. Por fim, no ano passado lancei Poemail c

| João Pessoa, janeiro de 2020 4 Correio das Artes – A UNIÃO c (2019), livro tripartite cujas cederam. “Prova disso é que epígrafes de cada parte são entre nós, leitores, poetas e todas de Cabral e que abre- ‘Morte e vida severina’ críticos, existe um certo con- -se com um poema dedicado (trecho) senso em torno de um con- ao poeta de “Morte e vida — O meu nome é Severino, ceito ‘cabralino’ de poesia, severina”- revela. como não tenho outro de pia. associado ao rigor formal, Uma das mais gratas me- Como há muitos Severinos, ao racionalismo, à recusa da mórias acadêmicas de Ama- que é santo de romaria, poesia como instrumento de dor foi um curso da pós-gra- deram então de me chamar confissão sentimental ou de duação na USP que assistiu Severino de Maria; autocontemplação narcísica”, com o professor, amigo e como há muitos Severinos completa. grande estudioso e especia- com mães chamadas Maria, “Cabral vacinou gerações lista na obra de João Cabral fiquei sendo o da Maria de poetas contra tais exces- de Melo Neto, João Alexan- do finado Zacarias. sos, nos ensinando a per- dre Barbosa. “Ainda pareço Mas isso ainda diz pouco: ceber o poema como lugar ouvir a voz de João Alexan- há muitos na freguesia, de um olhar específico para dre lendo Cabral e sua dicção por causa de um coronel fora, para o mundo – uma es- singular iluminava o poema que se chamou Zacarias pécie de fenomenologia. João enquanto o lia e a poesia de e que foi o mais antigo Cabral nos legou aquele mes- João Cabral ressurgia inter- senhor desta sesmaria. mo saber que ele atribui ao pretada e aberta como um Como então dizer quem fala toureiro Manoel Rodríguez, cristal. Era um presente à ora a Vossas Senhorias? personagem de um de seus altura da poesia cabralina. Vejamos: é o Severino poemas: o saber “...domar a Sou um leitor e releitor con- da Maria do Zacarias, explosão / com mão serena tínuo de Cabral. Pode me fal- lá da serra da Costela, e contida / sem deixar que tar tudo na vida: amor, feijão limites da Paraíba. se derrame / a flor que traz e pão. Só não quero que me escondida...” (‘Alguns tou- falte, a danada da poesia do Mas isso ainda diz pouco: reiros’). É um poeta singular, João”, brinca. se ao menos mais cinco havia dos maiores da Língua Por- Lau Siqueira, outro poeta com nome de Severino tuguesa”, destaca. radicado na Paraíba, reforça filhos de tantas Marias Já o poeta Bruno Gaudên- a fala de Amador. Para Lau, mulheres de outros tantos, cio observa que todo poe- as comemorações do cente- já finados, Zacarias, ta não é apenas sua poesia, nário de nascimento de João vivendo na mesma serra mas também sua mitologia. Cabral de Melo Neto devem magra e ossuda em que eu vivia. “Cabral é um exemplo dis- representar muito mais uma Somos muitos Severinos so. Criou-se uma áurea den- celebração do futuro que do iguais em tudo na vida: sa em relação a sua vida e passado da poesia brasileira. na mesma cabeça grande poesia. De um sujeito sério, “Talvez esse seja o seu maior que a custo é que se equilibra, insensível, racional, antilí- legado, a sua marca, entende. no mesmo ventre crescido rico, mas isso são apenas al- A poesia brasileira é antes e sobre as mesmas pernas finas, gumas formas de interpretar depois dele. Toda a sua obra e iguais também porque o sangue sua poesia e sua trajetória. ainda precisa ser muito lida e que usamos tem pouca tinta. O exemplo foi a biografia do muito estudada. Sozinho, ele E se somos Severinos José Castello, O Homem Sem é uma escola de poesia. Uma iguais em tudo na vida, Alma. Um poeta não cabe em marca da poesia brasileira no morremos de morte igual, jargões ou clichês”, enfatiza. mundo”, defende. mesma morte severina: De maneira geral, avalia “Acho que poesia João Ca- que é a morte de que se morre Bruno, Cabral é uma figura bral de Melo Neto influenciou de velhice antes dos trinta, que construiu uma poesia e influencia a minha geração de emboscada antes dos vinte, amparada na linguagem, e vai continuar influencian- de fome um pouco por dia com uma preocupação esté- do gerações inteiras, porque (de fraqueza e de doença tica refinada, fruto de expe- João Cabral deve ser lido in- é que a morte Severina riências de deslocamentos definidamente. Ou seja: cem ataca em qualquer idade, espaciais e temporais. Para anos e é apenas o começo”, e até gente não nascida). um leitor exigente de poesia, teoriza, acrescentando que Somos muitos Severinos Cabral é único na literatura ‘Tecendo a manhã’ é seu poe- iguais em tudo e na sina: brasileira. “Um cânone in- ma preferido de Cabral. a de abrandar estas pedras confundível”, frisa. Expedito Ferraz Jr. é outro suando-se muito em cima, “Sobre seu impacto na mi- poeta que se revela discípu- a de tentar despertar nha vida, confesso que no lo de Cabral que é, para ele, terra sempre mais extinta, início dos anos 2000, como um dos poetas que exerce- a de querer arrancar tomei conhecimento de sua ram maior influência direta algum roçado da cinza. poesia, me trouxe uma recep- sobre as gerações que os su- ção não muito positiva. Prefe- c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, janeiro de 2020 | 5 foto: Folhapress c ri de primeira um Drummund. Um . Mas, nes- Entre os especialistas, o ta mesma época, também não conceito “cabralino” de poesia está associado ao rigor formal, me sensibilizou uma Cecília ao racionalismo e à recusa da Meirelles, por exemplo. Só poesia como instrumento de mais recentemente conse- confissão sentimental gui vencer a força negativa da primeira leitura. E isso só deveu-se a uma leitura mais densa da poesia e da tradição modernista não só brasileira, mas europeia e estaduniden- se. Percebi que o Cabral era tão grande como Mallarmé, um Pround, um Valery... que sua poesia, tão ligada a suas raízes pernambucanas, esta- va em mim o tempo todo. Sua poesia edifica”, reconhece.

Sobre Cabral João Cabral de Melo Neto nasceu em Recife, a 9 de janeiro de 1920 e morreu no Rio de Ja- neiro, em 9 de outubro de 1999. Foi poeta e diplomata. Sua obra poética, que vai, segundo al- guns críticos, de uma tendência surrealista até a poesia popu- lar, é caracterizada pelo rigor estético, com poemas avessos a confessionalismos e marca- dos pelo uso de rimas toantes. É considerado o maior poeta de língua portuguesa por escrito- res como Mia Couto. Foi agraciado com vários prêmios literários, entre eles o Prêmio Neustadt, tido como o “Nobel Americano”, sendo o único brasileiro galardoado com tal distinção, e o Prêmio A palavra seda nada tem da superfície luxuosa, falsa, acadêmica, Camões. A atmosfera que te envolve de uma superfície quando Irmão do historiador Eval- atinge tais atmosferas se diz que ela é “como seda”. do Cabral de Mello e primo que transforma muitas coisas do poeta Manuel Bandeira e que te concernem, ou cercam. do sociólogo Gilberto Freyre, Mas em ti, em algum ponto, talvez fora de ti mesma, João Cabral foi amigo do pin- E como as coisas, palavras talvez mesmo no ambiente tor Joan Miró e do poeta Joan impossíveis de poema: que retesas quando chegas, Brossa. Foi casado com Stel- exemplo, a palavra ouro, la Maria Barbosa de Oliveira, e até este poema, seda. com quem teve os filhos Ro- há algo de muscular, de animal, carnal, pantera, drigo, Inez, Luiz, Isabel e João. É certo que tua pessoa de felino, da substância Casou-se em segundas núp- não faz dormir, mas desperta; felina, ou sua maneira, cias, em 1986, com a poetisa nem é sedante, palavra Marly de Oliveira. derivada da de seda. O escritor foi membro da de animal, de animalmente, de cru, de cruel, de crueza, Academia Pernambucana de E é certo que a superfície que sob a palavra gasta Letras (embora não tenha com- de tua pessoa externa, persiste na coisa seda. parecido a nenhuma reunião de tua pele e de tudo como acadêmico, nem mesmo isso que em ti se tateia, a sua posse) e da Academia (Quaderna, 1956-1959) Brasileira de Letras.

| João Pessoa, janeiro de 2020 6 Correio das Artes – A UNIÃO foto: Arquivo pessoal

6 depoimento Sérgio de Castro Pinto (E) e João Cabral (D), e uma dedicatória do poeta pernambucano ao paraibano: embora revolucionário na poesia, jamais abdicou de sua Uma faca só lâmina linhagem ilustre (ou: serventia das idéias fixas) Assim como uma bala enterrada no corpo, fazendo mais espesso um dos lados do morto;

assim como uma bala do chumbo mais pesado, no músculo de um homem pesando-o mais de um lado;

qual bala que tivesse um vivo me- canismo, bala que possuísse um coração ativo

igual ao de um relógio submerso em algum corpo, ao de um relógio vivo e também revoltoso,

relógio que tivesse o gume de uma faca e toda a impiedade de lâmina azulada;

assim como uma faca que sem bolso ou bainha se transformasse em parte de vossa anatomia; Lembranças qual uma faca íntima ou faca de uso interno, habitando num corpo como o próprio esqueleto Sérgio de Castro Pinto de um homem que o tivesse, Especial para o Correio das Artes e sempre, doloroso de homem que se ferisse contra seus próprios ossos.

A onheci a poesia de João Cabral de Melo Neto, através de Marcus Vinícius de Andrade, espécie de Mário de Andra- Seja bala, relógio, ou a lâmina colérica, de do Grupo Sanhauá, assim como um outro Marcus - de é contudo uma ausência sobrenome Tavares - encarnava à perfeição o espírito polê- o que esse homem leva. C mico e irônico de Oswald de Andrade. Mas o que não está Àquela época, só havia chegado a Drummond, Vinícius nele está como bala: tem o ferro do chumbo, de Moraes e Cecília Meireles, esta última com uma dicção mesma fibra compacta. tão musical, tão harmoniosa, que mais parecia uma mão Isso que não está a balançar o berço do adolescente quase menino que eu nele é como um relógio pulsando em sua gaiola, ainda era em inícios dos anos 1960. sem fadiga, sem ócios. Foi justamente naquele período que à poesia musical

Isso que não está de Cecília Meireles se opôs a antilira de Cabral. E se opôs nele está como a ciosa como uma pedra cuja difícil configuração estivesse a exi- presença de uma faca, de qualquer faca nova. gir um longo aprendizado. Tanto que, para apreendê-la melhor, removia-a para dentro dos meus poemas. Mas se Por isso é que o melhor dos símbolos usados principiava aí uma árdua “educação pela pedra”, fazia-o é a lâmina cruel sem amargar a “angústia da influência” de que fala o crí- (melhor se de Pasmado): tico norte-americano Harold Bloom. E tinha pelo menos porque nenhum indica um motivo para tanto: se o primeiro João Cabral não se essa ausência tão ávida como a imagem da faca mostrou imune às influências, por que haveria eu de sê-lo, que só tivesse lâmina, contando menos de dezoito anos de idade? Estava em boa nenhum melhor indica companhia, como de resto todos os da minha geração, pois aquela ausência sôfrega que a imagem de uma faca quase ninguém conseguira escapar incólume à personali- reduzido à sua boca; dade marcante do poeta pernambucano.

que a imagem de uma faca Conheci-o pessoalmente em meados da década de 1960, entregue inteiramente no apartamento do Prof. Tarcísio Burity, onde o entrevista- à fome pelas coisas que nas facas se sente. mos - eu, Jomar Souto e Luiz Augusto Crispim - a respei- to de sua poesia. Na oportunidade, surpreenderam-me as (Uma faca só lâmina / ou: serventia das idéias fixas/, 1955) suas declarações a propósito de “Morte e vida Severina”, segundo ele um poema frustrado, já que não conseguira c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, janeiro de 2020 | 7 c fazer acessível ao grande público a João Cabral de Melo Neto, embora saga do retirante nordestino. revolucionário na poesia, jamais abdi- Quanto às suas entrevistas, repe- cou de sua linhagem ilustre. Daí não tia-as praticamente à exaustão, reto- perder a oportunidade de, quase sem- mando sempre os mesmos temas, as pre, mencionar o seu grau de parentes- mesmas palavras, como o Graciliano co com Gilberto Freyre e com Manuel Ramos do poema de título homônimo, Bandeira, aos quais sempre chamou de de sua autoria: “Falo somente com o primos. Em contrapartida, parecia não que falo:/ com as mesmas vinte pala- reconhecer os muitos poetas de ontem vras/ girando ao redor do sol/ que as e de hoje que mantêm estreitíssimos limpa do que não é faca”. laços de parentesco com a sua poesia. Com efeito, nas muitas entrevistas Na verdade, quando o questiona- que li dele, excetuando-se uma ou ou- vam a propósito de sua influência tra “boutade”, quase nada acrescentou sobre os jovens poetas, saía pela tan- à que nos concedeu no apartamento do gente. A condição de embaixador for- Professor Burity. necia-lhe o pretexto necessário para Mais tarde, em 1972, tive um novo se omitir sobre o assunto: Vivia longe encontro com João Cabral de Melo do Brasil, não tinha acesso aos livros Neto. Desta feita, na Associação Co- aqui publicados, etc. E num misto de mercial de Campina Grande, onde eu recato e de astúcia, silenciava sobre fora proferir, a convite da dramatur- a nova geração de poetas brasileiros. ga Maria de Lourdes Ramalho, uma Inclusive, quando Jomar Morais Sou- palestra sobre a literatura latino-ame- to, ainda por ocasião da entrevista no ricana. Ouviu-me com atenção e, ao apartamento do Prof. Tarcísio Burity, final da palestra, pediu-me o texto. À disse que com “A Bolandeira” desejara tarde, antes de ser submetido a uma render um tributo à dicção cabralina, verdadeira saraivada de perguntas por o poeta pernambucano fingiu não en- alunos da universidade e do segundo contrar semelhanças entre o texto do grau, devolveu-me, qualificando-o paraibano e sua obra. O mesmo disse de “denso”. Como não poderia deixar dos meus poemas de “A Ilha na ostra”. de ser, tal palavra soou-me como um Ao seu modo, quem sabe, talvez qui- elogio. E não só isso: dita por Cabral, sesse nos alertar sobre os muitos poe- pronunciada por Cabral, passou a ad- tas que já haviam se extraviado nos quirir mil e uma conotações. Pena que caminhos que só ele conhecia como a jamais tenha se manifestado a respei- palma da mão e com os “dez mil dedos to dos livros que lhe enviei. Quando da linguagem”. muito, remetia os seus, sempre com João Cabral de Melo Neto jamais in- a mesma dedicatória: “Para Sérgio de censou os jovens poetas. E pelo que eu Castro Pinto, homenagem de João Ca- sei, tampouco escreveu prefácio louva- bral de Melo Neto”. Mas, o que fazer? minheiro sobre o livro de quem quer Era uma das idiossincrasias do homem que seja. Aliás, vai ver que nunca es- João Cabral, cuja natureza mostrava-se creveu sequer um prefácio, no que se antípoda à de Mário de Andrade, este distancia - e muito! - do velho Cassia- um missivista compulsivo, que res- no Ricardo, cuja prodigalidade em elo- pondia a gregos e troianos, aos poetas giar efusivamente quem estreava em federais, estaduais e municipais. livro sempre me pareceu um artifício O último encontro que tive com ele do qual se valia para, de algum modo, ocorreu no Centro de Convenções Re- permanecer lembrado pelos mais no- bouças, São Paulo, em inícios dos anos vos. E nem precisava disso quem, au- 1980. Acompanhava-o a mulher, poeta tor de “Jeremias sem-chorar”, marcara Marly de Oliveira, em cujas mãos - se- profundamente toda uma geração de gundo noticiou a mídia sempre ávida poetas e de leitores, por espetáculos - teria recolhido as No dia 9 de janeiro, completaria suas para, numa atitude quase genu- cem anos de idade o cidadão e poeta flexa de arrependimento pelo seu ag- João Cabral de Melo Neto, severo e nosticismo, receber a “indesejada das vero severino da “geometria civil” e gentes”. da geometria da palavra.I

Sérgio de Castro Pinto nasceu em João Pessoa (1947), onde reside. É poeta, jornalista e pro- fessor de literatura brasileira da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). É, ainda, formado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da UFPB. Além de Longe, daqui, aqui mesmo: a poética de Mário Quintana e A casa e seus arredores (ensaios), publicou vários livros de poesia, entre eles, Gestos lúcidos (1967), A ilha na ostra (1970), Domicílio em trânsito e outros poemas (1983), O cerco da memória (1993) e Zôo imaginário (2005).

| João Pessoa, janeiro de 2020 8 Correio das Artes – A UNIÃO 6 clarisser Analice Pereira [email protected]

A voz do dono e o dono da voz

obra de , em seu conjunto (lite- um modo geral, que basta lembrarmos daque- ratura, música, dramaturgia), apresenta uma las vozes assumidas pelos nomes de Maria, Ca- polifonia bastante interessante, por meio da rolina, Ana, Bárbara, Cecília, Helena, Lily, Lia, qual somos levados a reconhecer vozes femi- Bia, Beatriz, Rita, Januária, Joana (a francesa), A ninas e masculinas inseridas em contextos so- Sílvia, Luísa, Madalena, Angélica, bem como ciais complexos quanto às suas diversidades e daquelas canções que não se apresentam por desigualdades. meio de nomes próprios, mas que tematizam O feminino, por exemplo, é destaque na obra questões eminentemente femininas, a exemplo do cancioneiro carioca. Destaque reconheci- de “O meu guri”, “Atrás da porta”, “Olhos nos do pela crítica especializada e por trabalhos olhos”, dentre outras. acadêmicos, conforme podemos observar nas Já na sua produção literária, Chico tem se diversas teses de doutorado e dissertações de voltado à voz masculina. A configuração de mestrado voltadas para a análise-interpretação tipos sociais decadentes, representativamente desses eu-líricos que evocam suas vozes de dor do universo masculino, parece estar na base e de sofrimento, mas também de superação, de do projeto literário de Chico Buarque, tendo força, de independência, enfim, de empode- em vista que todos os seus romances têm como ramento, podendo protagonistas homens, maduros e/ou velhos ser vistas, inclusive, em processo de declínio, seja existencial, eco- como representati- nômico, profissional. vidades da mulher Estorvo (1991) é protagonizado por um tipo (so- na nossa sociedade. cial e psicológico) que, inominado e alheio a sua foto: divulgação Noutras palavras, própria situação de vida um tanto conturbada, ar- em seu projeto mais ticula em primeira pessoa, de forma quase simul- e s p e c i f i c a m e nt e tânea, nos planos real e imaginário, temas atuais musical, Chico lan- como o da fragmentação social. Benjamim (1995) ça mão de vozes fe- conta, em terceira pessoa, a história de Benjamim mininas, o que lhe Zambraia, um modelo fotográfico de sucesso na rende um lugar de juventude, mas que se encontra no ostracismo, destaque na história principalmente por causa da idade avançada. Seu da música brasilei- tempo de vida é contabilizado pelo dinheiro que ra, ao trazer, para a tem no banco. No meta-romance Budapeste (2003), cena central de suas o personagem-narrador é José Costa, um ghost- canções, figuras do -writter que se propõe a narrar fatos de sua vida feminino. São tantas perturbada. Em Leite Derramado (2009), Eulálio é as canções conheci- o protagonista e também narrador de sua própria das pelo público de história. É um velho supostamente afetado pelo Alzheimer que, num leito de hospital, supõe es- tabelecer interlocução com demais personagens 1 Título de uma canção de Chico Buarque (foto), gravada em 1981, no álbum ‘Almanaque’, em que o eu-lírico se apresenta numa relação erótica-afetiva com por meio de um monólogo que conta a história sua voz, para reivindicar a sua propriedade e a sua vontade, conforme os versos de sua vida desde seus ancestrais até a velhice. iniciais (“Até quem sabe a voz do dono / gostava do dono da voz / casal igual a nós / de entrega e de abandono / de guerra e paz / contras e prós”) e finais (“E O Irmão Alemão (2014) é protagonizado por um disse: Minha voz, se vós não sereis minha / Vós não sereis de mais ninguém”) autor-narrador, Francisco de Hollander, ou Cic- c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, janeiro de 2020 | 9 6 clarisser c cio, que, em meio à sua juventu- tística que compartilha com uma vocabulário, a representação do de marcada pela ditadura militar, das ex-mulheres, Maria Clara, que contexto em questão. No entanto, toma conhecimento da existência também é sua tradutora, revisora a falta de vivência com tal contex- de um irmão alemão, por quem e mãe de seu único filho. Embora to não prejudica a interpretação da busca incessantemente. prestes a ser despejado por falta obra, haja vista que se trata de fic- Todos são protagonistas ho- do pagamento de aluguel, o declí- ção e é como tal que deve ser lida. mens, maduros, supostamente nio econômico não impede Duarte É, portanto, sobre o aspecto pri- de classe média. Com exceção de de morar em um apartamento no mordial da ficcionalidade na obra Benjamim, esses protagonistas são Leblon, um dos bairros mais caros de Chico que se observa um dado seus próprios narradores, ou seja, do Rio. Transita com muita natu- importante para reflexão: a catego- donos de vozes que contam suas ralidade entre o Leblon e o morro ria do narrador, como reinvindica- próprias histórias caracterizadas, do Vidigal, devido ao seu envol- ção de uma questão discutida na ora pela fragmentação, ora pela de- vimento com moradores desta teoria e na crítica literárias e que cadência, ora pelas angústias exis- comunidade. Mantém relação ex- se refere ao “retorno do autor”. tenciais, ora pela crise de criação temporânea com sua segunda ex- Na orelha do livro, Sérgio Ro- artística e, por isso, apresentam-se -mulher, Rosane, casada com um drigues abre espaço para essa dis- como “heróis problemáticos” que, velho rico. Seu filho com Maria cussão quando afirma que “bus- num entendimento lukacsiano, Clara é um adolescente vítima de car alusões autobiográficas nestas constituem aqueles sujeitos em re- bullying na escola por ser “filho de páginas conduz o leitor a um beco lação intrínseca e mútua com um comunistas”. sem saída. Na melhor das hipóte- mundo contingente e cujo destino Ao passo que o romance vai ses, lhe dá a posse de uma chave é individual. mesclando passagens narrativas, que pode abrir uma ou outra por- Em suma, são protagonistas relatos de sonhos do protagonista- ta, mas não todas”. que surgem de chãos-históricos -narrador-escritor, cartas trocadas Em concordância com o que se bastante complexos e, por isso, entre os personagens e fragmen- declara nessa citação, tenhamos apresentam-se, tanto pela própria tos de narrativas que se supõem uma dessas portas como acesso fabulação quanto pelas reflexões, partes do romance que Duarte para uma breve reflexão sobre a como heróis problemáticos e/ou está construindo, vai-se revelando relação entre ficção e realidade em anti-heróis. Tal complexidade se uma galeria de personagens, cujas Essa Gente, observando que veri- revela, no interior das tramas, ações, por vezes um tanto idiotiza- ficar a presença do autor na obra como um lugar de fala que refle- das, representam um modus viven- não significa dizer que estamos te questões sobre masculinidade; di de um contexto político-social conferindo ao narrador aspectos uma masculinidade marcada por que marca os últimos anos da so- que são próprios da vida pessoal fragilidades, desencantos, declí- ciedade brasileira. do autor. O contrário, também, nios, contrapondo-se, em alguma Não por acaso, os capítulos são não se faz absoluto, ou seja, ter o medida, às vozes femininas da introduzidos por datas que, ex- narrador como figura meramente obra musical do artista. cetuando uma ou outra de 2016 e inventada e que, em nada, se apro- Em seu mais recente romance, 2017, envolvem o período que vai xima do seu autor. Chico Buarque recorre a essa voz de novembro de 2018 a setembro Assim sendo, a relação entre masculina mais uma vez e, assim, de 2019. A apresentação de temas autor e narrador pode ser analisa- confirma esse aspecto de um pro- como homofobia, misoginia, terra- da em seu caráter dialético, no se- jeto literário mais amplo que vem planismo, comércio de armas em guinte sentido: observando como desenvolvendo. Como o próprio oposição ao de livros, protestos especulativa a procura de traços título já anuncia, Essa Gente (Com- pelo país, sentimento monárquico, do autor no narrador, que pode panhia das Letras, 2019) é sobre comunismo, racismo, camisa da até não contribuir para a inter- um determinado povo, no espaço seleção brasileira etc. se dá de for- pretação da obra, mas que instiga e tempo urgente do aqui e agora. ma que o leitor, a par de um certo o entendimento do fenômeno do É sobre o povo brasileiro, mais léxico destacado nesse período re- “retorno do autor”, como uma dis- especificamente residente na cida- presentado no romance, reconhe- cussão mais ampla no campo das de do Rio de Janeiro, apresentado ce um teor satírico provindo da teorias. Discussão essa que envol- com um tipo de humor ácido, que voz desse narrador-protagonista. ve questões relativas às categori- provoca mais reflexão do que riso. A forma labiríntica dada à nar- zações de biografia, autobiografia, A forma fragmentada do livro, ração resguarda a apresentação “escritas de si”, por exemplo, uma um tanto labiríntica, diz muito do desse universo lexical ao campo vez que se observa uma relevância seu protagonista: Duarte, um es- da sugestão. Ou seja, o fato de não da figura do autor, no sentido de critor em decadência. Acumulan- se dar pela revelação direta afeta, corroborar com a possibilidade de do uma história de sucesso, com o sobremaneira, a recepção leitora, acessar uma realidade social pela best-seller O Eunuco do Paço Real, de forma que o leitor que viven- ficção. Duarte vive, no tempo narrado no ciou o fatídico ano de 2019 certa- Essa conjugação autor-narrador romance, uma crise de criação ar- mente identificará, no uso desse desempenha uma função muito c

| João Pessoa, janeiro de 2020 10 Correio das Artes – A UNIÃO 6 clarisser

no romance, mas, e sobretudo, pela figura do narrador que aqui assume uma voz narrativa em pri- meira pessoa, justamente como

fotos: divulgação um aspecto formal que se traduz em conteúdo. É a perspectiva narrativa des- sa primeira pessoa, apresentando um personagem em seu processo de decadência, que predomina no romance. E isso representa um ponto crucial de análise-interpre- tação, afinal se a narração se dá por uma voz masculina, de um escritor em período de declínio profissional, pessoal e econômico, o que se passa no romance terá o peso e a medida dessa voz, o juízo a partir desse olhar, da mesma for- c importante, podendo interessar ma que tem a figura feminina nas não apenas ao campo literário, canções de Chico. mas também a outras áreas do co- Noutras palavras, a voz de nhecimento como a antropologia, Duarte é, e não é, a voz do próprio a filosofia, a história, os estudos Chico Buarque. Esse caráter am- culturais. bivalente exige do leitor um cer- Retomar a discussão implemen- to traquejo ao transitar pela obra tada por José Saramago sobre a re- desse artista, pois, em alguma lação autor-narrador na edição de medida, veremos nela o que nos número 17 da revista Cult (1998) é muito familiar. Ainda assim, é auxilia nessa reflexão pois, ao tra- preciso que não caiamos na tenta- tar da figura do narrador, o autor ção de observar na ficção, apenas, português diz o seguinte: “O ro- um retrato da realidade, mesmo mance é uma máscara que escon- que vejamos bastante possível que de e, ao mesmo tempo, revela os ‘Essa Gente’: mais recente aconteça de as gerações futuras traços do romancista. [...] o autor romance de Chico Buarque encontrarem, nos romances de está no livro todo, mesmo quando se situa entre 2018 e 2019 agora, material rico para a com- o livro não consiga ser todo o au- e aprenta temas como preensão de um período histórico tor. [...] O que o autor vai narrando terraplanismo, comércio de armas em oposição ao de conturbado e de dolorosa dificul- nos seus livros é, tão-somente, a livros e protestos pelo país dade de compreensão. sua história pessoal. Não o relato Enquanto essas gerações não da sua vida, não a sua biografia, chegam, deleitemo-nos com a obra quantas vezes anódina, quantas Ao privilegiar a voz masculina deste que, com certeza, é um artis- vezes desinteressante, mas uma em seus romances, Chico Buar- ta brasileiro imenso. Vencedor do outra, a secreta, a profunda, a la- que pode estar oferecendo uma Camões em 2019, um dos mais im- biríntica, aquela que com seu pró- chave de leitura interessante para portantes prêmios de literatura em prio nome dificilmente ousaria uma reflexão mais ampla sobre o língua portuguesa, Chico Buar- ou saberia contar. Talvez porque que vem significando, para a - li que se destaca como autoridade o que há de grande em cada ser teratura, esse “retorno do autor”, nos assuntos que traz para o cerne humano seja demasiado grande essa possibilidade de o autor estar de sua obra, por meio de uma po- para caber nas palavras com que “no livro todo, mesmo quando o lifonia que parece constituir uma ele a si mesmo se define e nas su- livro não consiga ser todo o au- das bases do seu projeto artístico. cessivas figuras de si mesmo que tor”, conforme afirma Saramago. Ao conceder a palavra às diversas povoam um passado que não é Em Essa Gente, esse tipo de leitura vozes (a feminina na música e a apenas seu, e por isso lhe escapará é possível não apenas pelos fatos masculina na literatura) Chico se sempre que tentar isolá-lo e isolar- narrados, pelas falas e sentimen- mantém dono de vozes que muito -se nele. Talvez, também, porque tos dos personagens, pelos tempo falam por nós: a sua gente, a nossa aquilo em que somos mesquinhos e espaço narrativos representados gente, essa gente.I e pequenos é a tal ponto comum que nada de novo poderia ensinar Analice Pereira é professora de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira do a esse outro ser pequeno e grande Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba (IFPB). Escreve que é o leitor”. sobre literatura e, vez ou outra, aventura-se pela ficção. Mora em João Pessoa (PB).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, janeiro de 2020 | 11 6 artes visuais olhapress F eresa Maia/ O legado foto: T de , o pai da cerâmica vitrificada no Brasil

Cairé Andrade [email protected]

arte, em qualquer que seja a sua vertente, tem como necessária a resistência para se manter viva com uma resposta à sociedade em relação ao momento em que estiver inserida. Em 2020, o cinema, a literatura e o A teatro, por exemplo, encontram-se em um momento delicado de afirmação como forma de sobrevivência. Dentro desse contexto político-histórico, as artes per- deram um nome tão grandioso quanto as suas obras: o artista plástico Francisco Brennand faleceu no últi- mo dia 19 dezembro, aos 92 anos, em Recife (PE). O pernambucano deixa um legado imensurável de pinturas e esculturas, estas principalmente em cerâ- mica vitrificada, processo de quando o material é es- maltado e queimado em altas temperaturas (em torno de 1200 oC), resultando em peças com acabamentos singulares e em dimensões totêmicas, intimidando o tempo com sua firmeza e força. Brennand foi uma referência em relação a essa vertente. Suas obras em As obras em cerâmica cerâmica totêmica vitrificada passeiam entre temas sagrados e eróticos e podem ser visitadas no Parque totêmica vitrificada das Esculturas, no Marco Zero, e na Oficina Cerâmica Francisco Brennand (onde funcionava a fábrica de ce- de Francisco râmica da família), na Várzea - ambos localizados na capital pernambucana. Brennand passeiam Para uma conversa acerca do artista pioneiro na cerâmica vitrificada no Brasil, visitei os ateliês de dois entre temas sagrados paraibanos que também são referências nessa verten- te da arte: Chico Ferreira e Miguel dos Santos. Ao chegar no ateliê do artista plástico Miguel dos e eróticos e podem Santos, ainda próximo ao portão, uma das primeiras coisas que ele me revelou foi sobre uma mensagem ser visitadas no de texto que havia acabado de escrever destinada à Maria Gorette, com quem Francisco Brennand viveu Parque das Esculturas por mais de 20 anos. O texto dizia “a morte não existe: por isso é triste”. e na Oficina Cerâmica Amigo da família desde os anos 1970, Miguel fre- quentou a casa de Ricardo Brennand (pai de Francis- Francisco Brennand.

| João Pessoa, janeiro de 2020 12 Correio das Artes – A UNIÃO Francisco Brennand morreu em 19 de dezembro do ano passado, deixando um legado imensurável de pinturas e esculturas

co), o “velho Ricardo”, e cultivou dos dois artistas e, segundo Mi- do. “Já manifestei isso várias ve- uma relação de amizade movida guel, “material com o qual você zes”, ressalta. “Os intelectuais, pelos ciúmes de Francisco que, sente uma intimidade maior por ou qualquer outra pessoa que apesar dessa relação conturba- ser da origem da terra onde você souber de outro, me avise, por- da em relação à amizade do pai pisa, a terra que lhe gerou”. que eu não conheço”. e Miguel, sentia admiração pelo “É como desenhar no chão. Miguel passou a frequentar a trabalho do ceramista, e este sen- Nenhum outro material te dá li- casa dos Brennand ainda na dé- timento, por sua vez, era recípro- berdade maior do que desenhar cada de 1960. Em 1969, fez sua co. no chão. Inclusive, o próprio primeira exposição no Rio de Ja- Em uma das inúmeras conver- Francisco confessava que a li- neiro, viagem que já lhe mostra- sas entre os dois que, segundo berdade que ele sentia no papel, ria a resistência com a qual teria Miguel, se referiam sempre às ele não sentia na tela. Por ser um de lidar: “Viajei de semileito da artes e às técnicas de produzir produto já consagrado, um su- (companhia de ônibus) Itapemi- arte, Francisco Brennand teria porte para a pintura, existe um rim apenas com a passagem de dito: “Nós somos penetras no compromisso histórico de criar ida. Ou seja, se não vendesse, ofício (tribal e feminino) das ce- uma obra”, lembra Miguel. não retornava para casa”. ramistas”, vista, portanto, como Para o paraibano, Francisco Ao chegar em Recife, de volta, uma forma primitiva de produ- Brennand é, seguido de Gaudí, o visitou o Engenho São Francisco zir. O barro seria a matéria prima artista mais importante do mun- onde, coincidentemente, estava c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, janeiro de 2020 | 13 c o velho Ricardo, que se tornou, nas palavras de Miguel, seu grande amigo. Naquela ocasião, f o t o aconteceu um fato importante s r o b na vida do artista paraibano, re- e r t o velado da seguinte maneira: “Eu g u e peguei uma cerâmica pequeni- d e ninha e uma caixinha de slides. s O oleiro foi chamar Francisco e, quando ele veio, apressou os passos, não me deu nem um bom dia, apenas pegou a peça das minhas mãos e saiu. Quando ele voltou, meio trêmulo com a peça na mão, olhou para mim e disse: -Eu estou em frente ao maior ceramista do Brasil. E eu res- pondi: -Eu também. A relação era assim, de uma imensa admi- ração mútua”. “Ele viu coisas que eu até desconfiava, mas não tinha certeza, como a semelhança en- tre minha pintura e a de Piero Della Francesca que, a olho nu, não são nada parecidos, mas ele sentiu, de alguma forma, na Miguel dos Santos é próximo da estrutura das pinturas. Essa é família Brennand desde os anos 1970: a marca de um grande artista”, amizade movida pelos ciúmes de Francisco e pela admiração mútua afirmou o paraibano, que es- queceu uma caixinha com seus slides no Engenho. Miguel dos Santos prossegue: “Após essa visita, eu retornei ao com a família toda preparando o paraibano, “uma relação de Rio de Janeiro para outra expo- uma festa para ele, mataram um muito respeito e admiração”. sição e visualizei a capa de uma boi e tudo, mas ele veio passar “Várias vezes eu fui ao Recife revista, com uma Eva que eu ha- um dia comigo. O assunto do en- comprar material e ficava uma via vendido para Paris. Logo, eu contro? Francisco. tarde inteira, cerca de duas a três pensei: O que essa obra está fa- A relação entre Miguel e Fran- horas, admirando um painel dele zendo aqui, se eu não dei o con- cisco sempre foi, como descreve antes de retornar para casa”. sentimento?. Quando reparei, era um artigo de João Câmara com o título: ‘Francisco Bren- nand: a Lúcida Aventura’. Era um plágio de uma obra minha. Mas eu fiquei muito feliz, por- “A crítica tinha o olho atravessado que nunca entendi aquilo como plágio e, sim, como uma home- por Brennand ter nascido rico” nagem”, revela. Miguel segue a história con- O paraibano Chico Ferreira pai da cerâmica totêmica vitrifi- tando sobre o afeto entre ele e não teve tanta proximidade com cada, e completa afirmando não Ricardo Brennand, o pai. “Ele se a família Brennand, nem com o conhecer outro artista que tenha afeiçoou pelo meu trabalho de ceramista com quem compar- cerâmicas nessa vertente antes uma forma tal que, às vésperas tilha o nome inicial, mas conta do pernambucano. de completar 80 anos, me ligou que se conheceram pessoalmen- “Ele fez o passo inicial para no fim da tarde perguntando: te em uma palestra ministrada essa cerâmica no Brasil. Já exis- -Meu filho, se você fosse comple- em 1989, como parte do Work- tia a cerâmica vitrificada, de tar 80 anos amanhã, o que você shop Brasil-Alemanha, em João descendência asiática, mas Bren- faria? e eu respondi que gostaria Pessoa, que reunia artistas dos nand foi o pioneiro em relação à de passar ao lado de quem eu dois países. cerâmica vitrificada totêmica, e amo. Ele retrucou: -Pois não diga Para Chico, Brennand não é deixou uma das fundações mais mais nada. Nos meus 80 anos, eu uma referência direta para as importantes do mundo. Estive gostaria de passar com você. Isso suas obras, mas o considerado o em algumas fundações fora do c

| João Pessoa, janeiro de 2020 14 Correio das Artes – A UNIÃO das esculturas. Demonstra muita admiração pelas obras que co- nheceu pessoalmente e se sente extremamente gratificado por alguém ver, na sua obra, uma referência a Francisco Brennand. Mesmo assim, alerta para um certo cuidado que se deve ter ao identificar traços de um artista em outro. Para Chico Ferreira, “a identidade que faz referência às Chico Ferreira: “Francisco minhas obras e às de Brennand Brennand deixou é a mesma que existe entre José uma das fundações Saramago e Augusto dos Anjos. mais importantes Ambos utilizam a literatura para do mundo” se expressar”.

Ariano Suassuna Referência mundial na área, Francisco Brennand se tornou um dos artistas plásticos mais importantes da virada do sécu- lo. Em um vídeo postado pelo canal NE10 no YouTube, Bren- nand relata um juramento pro- posto por , que estudou com o ceramista ainda na escola. “Um dia depois da morte de Aloísio Magalhães (de- c Brasil e nunca vi algo nem pró- signer gráfico recifense), Aria- ximo à dimensão e ao volume no veio aqui com (o poeta) José de obras que ele deixou. Gaudí, Laurenio de Melo, se sentou à Miró, Antoni Tàpies, Picasso... esta mesa aqui (aponta para a todos têm muitas obras, mas não Um dia depois da mesa) e de repente se levantou. na dimensão e nem no volume Ele disse: -Eu venho aqui sole- das de Brennand. Ele vivia aqui- nemente fazer com que vocês lo”, lembra Chico Ferreira. morte de Aloísio jurem que jamais vão morrer. Por vir de uma família com É um juramento que vocês têm alto poder aquisitivo em Per- Magalhães, Ariano que fazer, que jamais vão aceitar nambuco, segundo Chico Fer- a morte. Ficamos olhando ali, reira, Brennand foi alvo de uma Suassuna reuniu embasbacados, e o juramento já posição conservadora da crítica estava feito”. brasileira. “A crítica, antigamen- Francisco Brennand Sobre a morte, Brennand não te, tinha o olho meio atravessado conseguiu sustentar seu jura- por Brennand ter nascido rico, e José Laurenio de mento (até porque não há jura- por acreditar que artista tem que mento que se sustente), mas as ser pobre. Mas não é bem assim. Melo e disse: -Eu obras seguem, sejam os painéis, A arte existe sem fundamentação os totens, os objetos, as ilustra- econômica”. A cerâmica, ainda venho aqui fazer com ções. Atravessando o tempo de acordo com o artista, era vista com sua firmeza e força e reafir- como uma arte de gente pobre, que vocês jurem que mando sua imortalidade, como que utilizava potes e panelas de estado de arte concedido apenas origem do barro, e Brennand es- jamais vão morrer! aos grandes artistas. I timulou, com seu trabalho, uma releitura cultural para esta ver- tente artística, trazendo nobreza ao material, ideia que permanece até hoje. Chico Ferreira reconhece a referência de Brennand em re- lação ao processo de esmaltação da sua cerâmica, mas não, ne- Cairé Andrade é jornalista. Atualmente, é repórter do 2° Caderno do cessariamente, às formas finais jornal A União. Mora em João Pessoa (PB)

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, janeiro de 2020 | 15 6 cinema Os parasitasfotos: divulgação da festa no jardim onsiderado por muitos como o filme do ano, Parasita (2019), filme Genilda Azerêdo C do diretor sul-coreano Especial para o Correio das Artes Bong Joon-ho, ganhador da Pal- ma de Ouro em Cannes e com seis indicações ao Oscar, nos es- timula a refletir sobre diversas questões. Talvez a mais aparente seja a desigualdade social e os efeitos nefastos do chamado “ca- pitalismo selvagem”, com suas consequências: fome, pobreza, desemprego, subemprego, doen- ças, falta de saneamento básico, falência de políticas públicas que promovam o acesso à educação, à saúde e a uma vida digna. A nós, brasileiros, em que pesem as diferenças geográficas e cultu- rais, o filme fala muito de perto. No nosso dia-a-dia, usamos o termo parasita para referir aque- le que vive às custas do outro, aproveitando-se de seus recur- por dois aspectos: a configuração da arquitetura da elite), fazendo sos e, às vezes, causando-lhe da- espacial, que divide inicialmen- surgir sentidos ligados à macro- nos. No filme, o significado de te a cidade em parte alta (classe política entre Coreia do Sul e Co- parasita possui nuances que vão abastada, endinheirada) e parte reia do Norte – o porão, portanto, do privado ao mais amplamente baixa e subterrânea (classe baixa). constituindo-se refúgio e abrigo político, fazendo-nos pensar, em Quando ocorre a chuva torrencial para os habitantes da casa, em um extremo, no sujeito que vive e acontecem os alagamentos, é a eventuais situações de guerra en- no porão da casa dos Park, sendo parte baixa que é engolida pelas tre os dois países. alimentado às escondidas pela águas, que saem arrastando lixo, O porão da casa dos Park tam- governanta; na própria família esgoto e destruindo tudo. Na vol- bém é responsável por materia- que se infiltra na casa dos ricos, ta para casa, debaixo de chuva, lizar uma subnarrativa (ou uma passando a usufruir de seus es- os membros da família Kim são narrativa engendrada) que em- paços e privilégios; e, em outro flagrados em espaços de descida presta ao filme uma atmosfera de extremo, no próprio sistema ca- muito íngreme, que realmente suspense e horror. Trata-se tam- pitalista, que, de modo vampires- dão a devida dimensão de quão bém de uma camada narrativa co, nutre-se da força de trabalho baixo eles moram. Eventualmen- que amplia a função e caracteri- dos mais pobres, muitas vezes te, porém, a narrativa problema- zação da governanta, antes vista escravizando-os, arrancando- tiza esse binarismo inicial (parte de modo meramente caricatural, -lhes a energia, explorando seu alta = ricos; parte baixa = pobres), sem densidade ou subjetividade tempo e oferecendo-lhes quase ao mostrar o porão como com- como sujeito. Quando ela retorna nada em troca. partimento da mansão dos Park à casa para alimentar seu mari- O filme chama muito a atenção (e, por implicação metonímica, do, o “parasita” que mora no po- c

| João Pessoa, janeiro de 2020 16 Correio das Artes – A UNIÃO O patriarca dos Kim vê o mundo a partir da pequena janela de onde a família mora, no mesmo nível da rua: filme chama atenção pela configuração espacial que divide a cidade em parte alta, a classe rica, e parte baixa, classe pobre

ver, mas também o fato de que o mundo da aparência tem se tor- nado cada vez mais passível de ser tomado como verdadeiro. Com efeito, o filme oferece uma crítica corrosiva ao modo como, no mundo contemporâ- neo, as relações (sejam profissio- nais, sejam pessoais) são media- das por mentiras, falsificações e representações. Este dado é tão significativo que em vários mo- mentos da narrativa, os persona- gens de fato ensaiam – como em uma performance – situações que eventualmente passarão como verdadeiras. Lembremos, por exemplo, do prévio ensaio com roteiro, do senhor Kim, antes da entrevista à vaga de motorista da casa. Lembremos também das c rão, cria-se uma duplicidade com cia mostra a discrepância entre a manipulações construídas para a história da família de infiltra- relevância da internet e de celu- fazer a senhora Park acreditar dos: uma família anterior (a da lares no mundo contemporâneo que a governanta estava com tu- governanta) já se infiltrara antes. (sem diferença de classe social) berculose. A comédia atinge um Este dado também amplifica os e a falta de dinheiro dos mais clímax quando o motorista der- sentidos atrelados ao espaço do pobres para pagar pelo serviço. rama ketchup sobre o lenço que porão. Ao final do filme, o porão Além disso, em momento-chave a governanta usara, oferecendo serve de esconderijo para o pai- do filme, quando a governanta a evidência necessária (sangue) -assassino. descobre a farsa da família Kim e para a confirmação da doença. O filme também chama mui- faz um vídeo para denunciá-los, Outra sequência eloquente – to a atenção pelo modo como o botão “enviar” é comparado inclusive porque se repete – diz se apropria dos efeitos do códi- a um botão com poder de dis- respeito ao bêbado que vem fazer go Morse, da internet, rede wi- parar um míssil. O pai e o casal xixi à janela da casa-porão dos -fi, What’s App, Google e afins. de irmãos conseguem se passar Kim. O bêbado, em um primeiro Observemos que a primeira por profissionais qualificados momento, alarga o espectro de sequência do filme mostra um (que entendem, por exemplo, de “parasitas” do filme. A eventual personagem (“Kevin”) em sua arte, terapia e psicologia infantil) ação de jogar água no bêbado de- tentativa de descobrir as senhas graças às informações que con- monstra que “parasitas” também de redes wi-fi disponíveis no en- sultam no Google. Estes exem- tentam se livrar de “parasitas”. torno. Apesar do caráter cômico plos servem para denunciar não E como tudo pode virar espetá- da situação – ressaltemos o olhar apenas o conhecimento superfi- culo, a sequência é não apenas irônico da narrativa –, a sequên- cial que a internet pode promo- filmada com o celular, mas mos- c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, janeiro de 2020 | 17 ‘Parasita’ oferece c trada em câmera lenta, de modo as flechas e a barraca devem ser uma crítica corrosiva ao modo como, no a ressaltar efeitos de enquadra- confiáveis – afinal, foram enco- mundo contemporâneo, mento e fotografia. mendadas de lá. Ironicamente, as relações são Ainda relacionado ao campo este dado de consumo contrasta mediadas por mentiras, semântico “parasita”, é interes- com o comportamento mais pri- falsificações e representações sante perceber como a questão do mitivo da criança, que admira os cheiro serve de divisor de águas índios americanos, inclusive si- entre ricos e pobres. É a criança mulando suas vestimentas, seus da casa quem primeiro percebe gestos e seu comportamento de o cheiro caracterizador da famí- vida ao ar livre. (2) A realização lia Kim. Em um diálogo do casal da festa no jardim, depois da en- Park, quando o senhor Kim se xurrada que destruiu as casas encontra escondido debaixo do dos mais pobres, deixando mi- sofá, há uma tentativa de defini- lhares desabrigados, reflete ou- segurança pode atrair mais de ção do seu estranho cheiro: chei- tra crítica. Na verdade, a festa no 500 candidatos com graduação. ro de velho, cheiro de rabanete jardim constitui evidência incon- Trata-se de exemplos que refe- estragado ou cheiro de pano sujo. teste de que a chuva torrencial rem questões globais, vivencia- O cheiro também volta com rele- só deixou rastros de destruição das por outros países (a exemplo vância durante a festa no jardim; para os mais pobres, não afetan- do Brasil), como desemprego, su- na verdade, podemos até conjec- do em nada a vida daqueles abri- bemprego, falta de planejamen- turar que o senhor Kim mata o gados em mansões. (A propósito, to dos espaços urbanos, falta de senhor Park como vingança pela lembramos do conto de Kathe- moradias, distribuição injusta de constatação deste em relação ao rine Mansfield, “The garden renda. seu (mau) cheiro. A propósito, a party”/”A festa no jardim”, que Parasita aborda essas ques- cena da dedetização no início do constrói significados a partir de tões sem maniqueísmos, sem filme, quando os Park se deixam contrastes entre ricos e pobres, separar moços e bandidos, cha- banhar pela borrifada de veneno, morte e vida, beleza e feiúra, mando a atenção para espaços e dá bem a medida de como eles se tristeza e celebração). Não é à toa comportamentos cada vez mais equivalem – figurativamente – a que o filme mostra, em edição globalizados, em um mundo insetos-parasitas que precisam paralela, imagens dos desabri- atravessado por fotos e vídeos ser exterminados. gados pela chuva e alagamentos em celulares, por falsificações e Quanto à crítica cultural e so- em contraste com as ações para a representações que se multipli- cial mais ampla que Parasita ofe- preparação da festa no jardim. (3) cam, denotando valores huma- rece, podemos mencionar alguns Outro exemplo: em determinado nos apodrecidos. Em Parasita, é exemplos: (1) a referência aos momento do filme, o senhor Kim difícil apontar quem é apenas Estados Unidos como o país dos faz o registro de que na Coreia vítima ou algoz, quem é sugado, sonhos, admirado por muitos, do Sul a oferta de uma vaga para quem suga quem. I encontra-se presente em diver- sos momentos, sobretudo quan- do a senhora Park menciona que Genilda Azerêdo é Professora Titular da UFPB e Pesquisadora PQ2 do CNPq.

| João Pessoa, janeiro de 2020 18 Correio das Artes – A UNIÃO O Cinema Sul-Coreano está em alta esmo que saia de mãos abanando do Os- car 2020, Parasita já é um vencedor. O filme de Bong Joon-ho amealhou seis in- dicações na principal premiação do Os- M car (entre elas Melhor Filme Estrangeiro, Melhor Filme, Melhor Direção e Melhor Roteiro Ori- ginal), um feito histórico para o cinema sul-coreano, que vive seu melhor momento. E vai chegar ao famoso Tapete Vermelho do Dolby Theater, em Los Angeles (EUA), no dia 9 de fevereiro, com mais de 100 prêmios na bagagem, incluindo a prestigiadíssima Palma de Ouro no festival de Can- nes e o Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro. Nascido em Daegu e com 50 anos de idade, Bong Joon-ho já tinha uma notável filmografia quando lan- çou Parasita, seu oitavo longa-metragem. Formado em Sociologia, ele desconstrói o cinema de gênero, bastante em voga tanto em Hollywood, quanto em segmentos do cinema asiático, com um olhar apura- do para questões sociais, como a adaptação da HQ Expresso do Amanhã (2013).

Confira três filmes para conhecer o cinema de Bong Joon-ho Expresso do Amanhã (2013) Primeira produção ocidental de Bong Joon-ho, Expresso do Amanhã é uma ficção científica baseada em uma história em quadrinhos. Es- trelado pelo norte-americano Ch- ris Evans, o filme se passa em um futuro glacial, no qual os sobre- viventes vivem em um perpétuo trem em movimento: os mais ri- cos, ocupam os primeiros e luxuo- O Hospedeiro (2006) sos vagões. Os mais pobres ficam Ok ja (2017) Mistura de filme de mons- empoleirados nos últimos vagões. Produção exclusiva do Net- tro com drama familiar, Até quando surge um líder dis- flix, foi o filme com as piores ação, thriller político - e até posto a acabar com essa diferença. críticas da carreira de Bong, comédia - O Hospedeiro foi Onde ver: Amazon Prime, Goo- mas ganhou uma vitrine um grande trampolim para gle Filmes (locação e venda), que o cineasta nunca teve a projeção internacional de DVD e blu-ray. no Ocidente, levando-o a se Bong Joon-Ho. Prestigiado tornar um dos campeões de em Cannes e eleito como um audiência da plataforma de dos cinco melhores filmes streaming em 2017, quando da década 2000-2009 pela foi lançado. A Okja do títu- revista francesa Cahiers du lo é uma super-porca criada Cinéma, narra a história de por uma empresa com a fi- uma família que mora à bei- nalidade de ser abatida para ra do rio Han, quando um acabar com a fome no mun- monstro emerge da água e do. Mas sua dona, a jovem captura uma criança. Onde Mija, fará de tudo para salvar ver: Netflix. o animal. Onde ver: Netflix.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, janeiro de 2020 | 19 Cinco ótimos filmes da recente safra do cinema sul-coreano

OldBoy (2003) Invasão do Zumbi A Criada (2016) Na Coreia dos anos 1930, Após ser sequestrado e (2016) mantido em cativeiro por uma jovem vai trabalhar Pai e filha tentam so- para uma herdeira nipô- 15 anos, Oh Dae-Su se li- breviver em meio a uma berta disposto a encontrar nica que leva a vida iso- epidemia zumbi em um seus sequestradores em lada do mundo ao lado trem em movimento, cinco dias. Segundo filme de seu tio autoritário. da Trilogia da Vingança e que parte de Seul em di- Mas a jovem guarda um o filme que catapultou o reção a Busan. Dirigido segredo que irá colocá-la diretor Park Chan-wook. por Yeon Sang-Ho, dis- em confronto com sua Disponível nas platafor- ponível nas plataformas patroa. Também dirigi- mas de streaming (locação de streaming (locação e do por Chan-wook Park. Disponível em DVD. e venda) e em DVD. venda) e em DVD.

Em Chamas (2018) Eu Vi o Diabo (2010) Jong-su é um rapaz suburba- Agente especial vê sua vida no que topa tomar conta do se tornar um caos quando apartamento de uma vizinha sua esposa é raptada por enquanto ela viaja ao exterior. um serial killer. Magis- Quando ela volta, apresenta tralmente dirigido por Jee- um sujeito misterioso e rico que -woon Kim, filme de ação tem um hobby secreto. Dirigi- é lembrado por seus planos do por Chang-dong Lee, está sequências, muito sangue e disponível nas plataformas de violência. Não foi lançado streaming (locação e venda). em home-vídeo no Brasil.

| João Pessoa, janeiro de 2020 20 Correio das Artes – A UNIÃO 6 conto

ilustração: tônio

O duelo

Jesuíno André Especial para o Correio das Artes

ois homens numa mesa. Dois experientes, vivi- dos e sagazes no exercício de viver. Ambos na mesma faixa etária, estabelecidos profissionalmente, experimentados nas rela- D ções formais, com filhos crescidos, e solteiros por opção voluntariosa. Dois homens sentados lado a lado. Algo em comum: conquistadores. Cada a um ao seu estilo, mas a mesma origem de conduta. Os perfis são gêmeos: galegos de rosto sério, fa- c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, janeiro de 2020 | 21 c las poucas, olhares de ra- O outro já tinha percebido. O pina, sempre bem alinhados, jogo não era num tabuleiro, vistosos e dispostos. mas a maquinação das peças Era uma festa, comemora- eram as mesmas artimanhas. va-se um desses raros oitenta Aquele recebeu na mão es- anos lúcidos de um amigo em querda, por baixo da mesa, um comum. O boteco era o cená- pedaço de papel com números. rio simples e familiar, onde Tratou de colocar no bolso. aninhava todos os sortilégios A morena sabia da cobiça. diante da significante cele- Estava calejada. Em seus cós bração. Foram apresentados. dois filhos pequenos e uma Observaram-se. Conheciam- atração por bandidos – o pri- -se em pretéritos inexistentes. meiro morto aos vinte anos e Não havia a necessidade de o segundo preso por tráfico estudo. -, morava sozinha e nenhum Era uma bela e jovem more- atrevimento lhe circundava. na. Estava numa mesa vizinha, Aos trinta a vida lhe marcava muitos convidados circulavam com ferro e fogo, mas a sua voz entre as atenções. Estatura me- ainda era doce e a simpatia ini- diana, pernas roliças, cintura gualável. fina, busto compacto, sem gor- – Mas rapaz, você é besti- duras e com um riso bonito. O nha. Pegou o telefone da moça. cabelo longo estava preso em Um perigo, né?... rabo de cavalo; carregava ta- O outro deu um riso amare- tuagens exuberantes expostas lo. A jogada foi pesada. na carne protegida por pou- – Você acha que ia passar ca roupa. Uma tentação, em em branco? suma. – Claro que não. Nem se faz necessário ima- A bebida é social. São ex- ginar o que se passava na ca- perts ao se envolverem com o beça dos conquistadores. Eram vinho. Nunca caiam nessa ar- originais em seus particulares madilha vulgar. modus operandi. Mestres de O calor sufocava, o álcool uma mesma escola. fazia efeito e o barulho au- O campo era único e as ar- mentava. Festejava-se com a mas parecidas. O embate ha- permissão do inconcebível. via sido desde que pisaram e Um levantou-se e foi ao ba- perscrutaram o ambiente. O nheiro. O outro, aproveitan- ilustração: tônio tempo era algo precioso que do, revidou, foi em direção ao não se perdia. Era o mais va- pecado. lioso dos aliados. Tomaram as Falou ao pé do ouvido da posições. moça. Anotou a resposta nas – Tá vendo ai?! – um iniciou teclas do celular. apontando o queixo – Essa – Ela disse que faz faxina, boazuda é uma fria. É mulher arruma a casa e sabe passar de traficante! roupa. Olharam-se friamente. – É, eu sei. Ela também me – E é?... – o outro parcimo- disse. nioso cerrou os olhos. – Será confiável? Entre goles e conversas – É o que veremos... fiadas, as tramas entrelaça- Selaram o empate com um ram-se. aperto de mão. Um sujeito conhecido do Soubesse depois que os outro foi chamado discreta- dois sofreram as primeiras mente. Entre cochichos, foi in- derrotas. timado para tarefa super dis- Ela não entraria numa fria; creta. O campo sensorial dos fez apenas botar lenha na fo- conquistadores é algo enigmá- gueira dos desejos e das vai- tico. São poucos os capazes. dades. I

Jesuino André de Oliveira nasceu no interior da e mora em João Pessoa (PB) desde os anos 1980. É redator-publicitário, produtor cultural e editor do podcast MeuSons. Publica suas crônicas nas redes sociais: Instagram: @jesuinoaoliveira; Twitter: @jesuinoandre.

| João Pessoa, janeiro de 2020 22 Correio das Artes – A UNIÃO dson Matos E 6 festas semióticas Amador Ribeiro Neto [email protected]

Irresistivelmente gostosa

osana Piccolo é poeta paulistana inquieta, pro- em Filosofia pela USP e em Jorna- vocativa e inovadora. lismo pela Cásper Líbero. Além Nunca havia lido um livro seu, até que de Bocas de Lobo (2015), publicou me caiu nas mãos Bocas de Lobo (Patuá), num Ruelas Profanas (1999), Meio-Fio R desses envios gentis do Eduardo Lacerda. (2003), Sopro de Vitrines (2010), De cara, ela escancara o mundo dos usuários Refrão da Fuligem (2013) e O Pão crack, os vaga-lumes vagando, no cenário de (2018). Todos de poesia. Alla Prima devastação urbana de uma tristíssima São Paulo, cidade tomada como tema do livro. E (2019, Patuá) é seu mais recente me ganhou de cheio. livro. Rosana Piccolo (São Paulo, 1955) é formada Depois de lido o livro recebi- do, saí atrás dos demais. Por isso digo: Rosana Piccolo é poeta de fotos: divulgação uma obra de leitura imprescin- dível, apaixonante, inquietante- mente gostosa e arrebatadora. Ela não se cansa de reinventar- -se. E de nos cutucar em nossos sentimentos e criações. Criações de arte, de poesia, de Rosana Piccolo e a capa do seu vida. novo livro (abaixo): Alla Prima é uma antologia do autora é poeta de que a própria poeta considera o uma obra de leitura mais representativo de usa pro- imprescindível, apaixonante, dução. Além de poemas inéditos. inquietantemente Tudo reunido indistintamente. gostosa e Misturado. Quem não conhece arrebatadora a obra de Rosana não distingue o inédito do publicado. Não faz mal. Critério único: qualidade poética. Poesia em sincronia. Poesia em sintonia. Poesia em harmonia. O resto que se exploda. Rosana Piccolo quer mais galá- xias e estrelas em redes infinitas de gozos sígnicos. Corpos em có- pulas. Num primeiro momento, como no primeiro sexo, o leitor pode perder o chão. Não por desorien- tação. Mas por encanto imenso. c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, janeiro de 2020 | 23 6 festas semióticas c A perda do referencial por Este auto-encontro entre o que cada poema é sempre lido como imersão total nele. A perda de si sente perceber e o que percebe o primeiro, o inicial, o único. por adentrar-se absoluto no ou- ser, desenha uma dinâmica que, Mesmo que já lido, é como se pela tro. E o alter. É a poesia. ah!, susta-lhe a respiração – ora primeira vez, tal seu grau de in- Esta entrega, por um instan- em fôlego curto, ora sem fôlego ventividade. Mesmo que você o te, é o “inestante”. algum. conheça, lê-lo é partir do grau Dura um quanto imensurá- Magia medra o devaneio. Mas zero da leitura. E isso o faz obra vel. também a certeza. prima, isso o faz ser como o pri- Tempo. Tempo. Tempo. Um Quem sabe o que é poesia, meiro, daí o título desta antologia senhor tão bonito quanto a cara quem penetra seus mistérios e que já nasce admirável. do Bernardo, meu filho. materialidades, seus meandros e Lê-se Rosana Piccolo e sente-se Eu vivencio esta belezura geometrias, quem penetra suas inspirado. Com vontade de fazer pura pureza. reentrâncias e saliências, convive poesia – se você já é poeta ou com Puro azul celeste celestial. com sua essência, sua rarefação e vontade de ser. Ou se você está Você vive esta belezura pura concreção, seu gole de absinto e lendo o Correio das Artes, isto já pureza. porção de alfenim. é um sinal de que você lê livros Puro azul celeste celestial. com muitas coisas escritas, con- Sem saber. Sem sabermos. “Diário do dia” sidera a arte e os artistas impor- Imersos nela. O dia chega aos trancos, nas pre- tantes e etc. e tantas coisas óbvias Total. É a poesia da Rosana sas da serra elétrica. mais... Piccolo. A seda azul do papel Com negra gordura vela o semáfo- Voltando. O leitor sente-se ins- que envolve a maçã. ro, britadeiras latejam no chão difícil. pirado ao ler Rosana Piccolo, tal Detém-se no arranha-céu. como desejava o querido Valéry, “Cerimônia do chá” E empilha suas dentaduras de pra- para quem o poeta não tinha de Em uma dessas vitrines, dubia- ta. se sentir inspirado. Isso não dizia mente iluminadas pela hora mágica, Chega estridente. E vocifera, e ma- muito para fazer boa poesia. Sen- pode ser visto o tatame. chuca a manhã de tímpanos frágeis. tir é pouco. É preciso dominar O braseiro rivaliza o pôr do sol. Na chaminé desabafa, mistura gel e a arte da linguagem da palavra Fumega o incenso, fumega sem fim. fumaça – penacho de pressa nos cafés para fazer poesia. Se sentir bas- A caligrafia da chuva já foi remo- expressos. tasse, os bares estarias lotados de vida. O dia saliva nas filas. No come- excelentes poetas. E não é bem Rente à parede, nasce o ikebana douro do meio-dia e meia, onde a assim. Mas esta é conversa para da nova estação. carne esfria; e se requenta em banho- outro CEP 20.000. Possível ver os convidados, três -maria. Rosana Piccolo faz poesia à ou quatro. E desaba. E pisoteia letreiros, es- flor da pele & à flor da mente. O E o gestual do anfitrião – lá fora quinas desencantadas. intelecto premiado pela sensibili- assoviam sacis,arrepio no crânio E se enrodilha nas placas como fio dade de formas que informam e das cerejeiras. O vaso, a cumbuca, embaraçado. E se estica, e se esgarça seduzem. Ideias em parceria com utensílios de nome poético foram meu coração aos soluços. os sentimentos. Inventividade e retirados do recinto, de entrada tão Enfim o rapto da noite – ascende emoção. Por isso vale a repetir, pequena que o samurai aí se agacha, em bicicletas e pombos recolhidos – leitor: eis uma poesia inovadora espadas do lado de fora. na praça dos meu lagos, onde enterro e irresistivelmente gostosa de ser O chá é vulcão adormecido: por o céu no chão. lida – melhor: irresistivelmente um tremor derrama o perigo, e quei- gostosa de ser devorada.I ma, e dói, e não é? Há também a es- Às galáxias destas sensações e tampa dos quimonos, cuja flor é tão maravilhamentos vêm somar-se perfeita que a natureza não soube a estupefação e o encanto dos que imitar. são tomados pelo amor. 1. Amor à linguagem da poe- A poesia de Rosana Piccolo sia, antes de tudo. tem a força mágica de lançar o 2. Amor à vida, acima de tudo. leitor no vaivém intergaláctico A coreografia dos signos em das mais inusitadas combina- dança desenha, passo a passo, ções de: 1) sentidos; 2 sensa- passo sim, passo não, o compasso ções); 3) músicas; 4) formas; 5) & o descompasso das: (a) ideias; ideias; 6) gozos; 7) complete (b) sons; (c) imagens. você mesmo... g tudo em close g tudo em Amador Ribeiro Neto é poeta, O leitor estanca para, passo uníssono g tudo em foco g tudo crítico de literatura e professor da seguinte, emergir-se em alum- uno & múltiplo & plural. Universidade Federal da Paraíba. bramento. PORQUE em Rosana Piccolo, Mora em João Pessoa (PB)

| João Pessoa, janeiro de 2020 24 Correio das Artes – A UNIÃO 6 resenha

técnicas de metalúrgicos e ferrei- ros com vistas à outra realidade, ou seja, usavam-nas como ferra- mentas. Do Minério Porque ainda que imbuído de uma metafísica em que trans- parece uma nítida influência da ao Sangue: gnose, com a cosmovisão de um mundo dual – terra/céu, corpo/ A Poesia de José Antonio Gonçalves em alma, alto/baixo -, as metáforas e Cavernas, Arenitos e Poemas imagens de José Antonio partem de uma realidade que desperta, no poeta, angústia e estranha- mento. Mas a realidade está ali, e a poesia é seu espelho inverti- Gledson Sousa Especial para o Correio das Artes do, é o lado da câmara escura por onde a luz se projeta e a realida- de é o reflexo que se deposita em seu interior. Heidegger dizia que “Do arte é uma esfinge que não se deixa decifrar; em pri- ponto de vista ontológico-exis- meiro lugar, porque seus enigmas não possuem res- têncial, o não-sentir-se-em-casa postas ou possuem-nas demais; em segundo lugar, deve ser concebido como o fenô- porque suas linguagens não se encerram num único meno mais originário”.1 Sendo A horizonte, o que torna difícil a redução ipsis literis de assim, o estranhamento pressen- qualquer sentença, seja na poesia, na pintura, ou qual- tido por José Antonio possui esse quer outra arte. Arte é sobretudo invenção, e invenção matiz de experiência originária, é recriar-se em meio à gestação. primeva, do poeta em confronto Penso nisso tudo ao ler Cavernas, Arenitos e Poemas permanente com o mundo. (EdLab, 2018), do discreto poeta José Antonio Gon- Nos poemas de José Antonio çalves. Digo-o discreto porque José Antonio corre à Gonçalves há uma meditação so- margem dos movimentos, grupos e correntes, e ainda bre o tempo, a vida, o corpo. que em seu último livro haja uma aproximação da lin- A vida é metaforizada, todo guagem surrealista, ousaria dizer, de seu jogo de ima- acontecimento transforma-se em gens e metáforas, tais como Breton assimilou de Pierre símbolo, em algo mais que não se Reverdy, José Antonio parece-me fazer isso à maneira encerra em si mesmo, apontando dos alquimistas, que se apropriavam da linguagem e sempre para um lugar outro, um além, um aquém, um agora. Fotos: divulgaçao Discreto - Autor de Mas vida e corpo não são idên- ‘Cavernas, Arenitos ticos: há um vapor gnóstico que e Poemas’, José emana das separações presentes Antonio Gonçalves no texto: aqui/além, corpo/alma, corre à margem dos movimentos, grupos puro/impuro. O corpo é identi- e correntes ficado a uma prisão e o amor é a ascese capaz e reconciliar as duas instâncias pelo processo de queda na matéria (“a luz do amor / fere fundo / por todo lado // a chama /

“Parece se tratar de um único poema”, do candelabro / é o punhal / arremes- comentou um jovem poeta ao ler este li- Foto: Andrea Vieira vro. Apesar de independentes, os cinquen- José Antonio Gonçalves ta e quatro poemas formam uma unidade que abriga a síntese das poéticas de diversos Ouço a vida passar o seu silêncio. Nada vejo a não sado / pelo sonhador // a qualquer autores, escolhidos para estudo na oficina ser um frágil latido de cães. Também assombram os de criação tão bem coordenada por Clau- passos silenciosos dos cavalos selvagens. A aceleração dio Willer. A seleção incluiu: Baudelaire, dos motores do avião anuncia um pacto com algum CAVERNAS José A. Gonçalves José Rimbaud, Lautréamont, Herberto Hel- demônio. Reuniões preparatórias perto do céu. momento / vai acertar o alvo o dispa- der, Clarice Lispector, Otávio Paz, Lorca e Encontro liberdade ao perceber as sombras assimétricas ARENITOS E tantos outros, sem esquecer Breton e seus das grades da minha prisão impressas no cimento. companheiros. Todos eles pontificam a c josé antonio gonçalves importância da escrita automática, do po- ro do condor”, p. 79). ÁGUA VIVA POEMAS nasceu em Mogi Mirim, SP, der do inconsciente e dos sonhos, da liber- em 1941. Reside atualmente dade e da leitura silenciosa ou em voz alta em São Paulo. Formado em - características presentes nesta obra. Direito pela PUC, dedica- se à literatura há mais de a veia que se rompe vinte anos. Já publicou dois a explosão derradeira do mel livros de poesia: O amor nos (a valsa...) sertões: fragmentos (2010) e Eu que não creio, mas rezo a vida frágil que resta (uma seta...) contrito (2017). O presente ISBN 978-85-66423-42-6 trabalho, com poemas ela ainda ignora as bombas escritos a partir de 2016, seu olhar está enfeitiçado pela neve revela influência marcante 9 788566 423426 (enterro...) de autores surrealistas e seus

CARVERNAS, ARENITOS E POEMAS E ARENITOS CARVERNAS, o pinheiro verde queima precursores. igual aos gravetos secos atados ao corpo da feiticeira (POEMA1 VISUAL) somente continua AGA vivo MBEN, Giorgio. O Uso dos Corpos – Homo Sacer IV, 2. COLEÇÃO VOZES CONTEMPORÂNEAS o eco das palavras (O JARDIM)São Paulo: Editora Boitempo, 2018, p. 65

Pedras, Arenitos_jose antonio_CAPA.indd 1 07/06/18 13:56 A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, janeiro de 2020 | 25 c No texto gnóstico “A Reali- poeta dedicou um poema ao instante A grandeza do dade dos Governantes”, há uma (“Água Viva”, p. 15), onde num belo frase que diz: “(...) pois a partir do poema em prosa, o poeta medita poético está território invisível o território visí- sobre o tempo (“O instante é o tempo vel foi criado”2. A poesia de José imobilizado cada vez que a roda do carro em nos fazer Antonio parece querer recuperar veloz toca a estrada. A vida só é percebida essa fonte da realidade material, com intensidade quando em contato com esquecer que partindo da matéria mesmo para o movimento.”). um além apontado em experiên- Mas onde aparece também a refe- é poético e cias de transcendência que são rência ao corpo como uma prisão e a verdadeiras narrativas à clef. Não própria realidade material como uma nos remeter há a transcendência em si como experiência sufocante: “Encontro liber- a coisa kantiana, porque uma dade ao perceber as sombras assimétricas transcendência que se deixa cap- das grades da minha prisão impressas no diretamente à turar pela palavra já deixou de cimento” – a sombra do corpo em mo- sê-la, mas também porque José vimento (observação minha). “Preso vida, em sua Antonio não abre mão do con- no mundo, eu sou o outro em silêncio. trole de si, o consciente do poeta Luto para sair do emparedamento” – ao confusa plenitude está presente o tempo todo, ele ler isso, não pude esquecer essa pas- não se deixa arrebatar pela expe- sagem gnóstica: “Existe um véu entre o riência, mantêm-na sob controle. mundo de cima e os reinos que estão em- Penso nos poemas “Um Poema baixo, e sombra veio a existir sob o véu; Subdividido (p. 39) e “O Tran- e essa sombra se tornou matéria”3. Véus se” (p. 87) que parecem relatar e paredes a impedirem a experiência que passa e que torna a ex- experiências pelas quais o poeta do real, o real como fundamento e es- periência pretérita, incom- passou em busca do divino, do sência e não aparência. pleta, mesmo a experiência transcendente. É curioso pensar que um pensa- amorosa, quando ela não O título diz Cavernas, Areni- mento mineral esteja na base da orga- consegue romper a casca do tos e Poemas, uma conjunção que nização do livro, em sua arquitetura tempo em direção à eterni- separa. Poemas vêm depois. Do poética. Mas quase como um con- dade. ponto de vista simbólico, caver- traponto à arquitetura poética, a lin- Não diria que a poesia de nas representam o que esconde guagem se reveste de símbolos orgâ- José Antonio Gonçalves tra- e também a própria mente. Lem- nicos: sangue, água, carótida (assim duz uma totalidade poético- bremo-nos do mito da caverna mesmo, em linguagem médica), boca, -amorosa. Poucos poetas o platônico e a caverna é o lugar carne, peito, feridas, seios, cicatrizes... fazem: Lorca, Saint-John onde se manifesta uma aparên- São muitas as palavras que trazem à Perse, René Char, Pessoa? cia da realidade, aparência esta arquitetura mineral uma face orgâni- Talvez. O que ele nos apre- que é incompleta, mas que é real: ca, e essa fusão, ou sedimentação, é senta é uma realidade frag- as sombras projetadas na caver- também a fusão dos diferentes pla- mentada que a poesia tenta na, tal como nos relata o mito, nos, antes inconciliáveis, agora fusio- unificar, numa sintaxe de es- são reais, mas reais como som- nados pela experiência poética. tranhamento e dor que nos bras e não como o todo da reali- Essa fusão não se dá sem dor; se o leva além pelos mais estra- dade que os habitantes da caver- estranhamento é a base de seu con- nhos caminhos, do minério na imaginam perceber. fronto com o mundo, a angústia pa- à dor, como só a boa poesia Arenito é um tipo de rocha se- rece irremediável, mesmo quando a consegue fazer. dimentar, ou seja, formada pela transcendência parece abrir as por- A grandeza do poético junção de um ou mais elementos tas, como no poema “Hermetismo”: está em nos fazer esquecer através da compactação. Então que é poético e nos remeter teríamos cavernas e material se- dualidade diretamente à vida, em sua dimentar, textos que se acumu- eu estou em você confusa plenitude. Se essa laram e se fundiram ao longo do você não está em mim plenitude é percebida pela tempo? É possível, como também angústia, faz parte de nossa é possível que sejam as próprias estímulos redobrados natureza ainda dividida; a experiências do poeta que se as musas adormecem poesia a redime no indiví- fundiram num instante único, duas felicidades cansadas e perdidas duo, mas é necessário que abrindo-o para outras dimen- causas e efeitos em desordem as fraturas históricas sejam sões da existência. solidão ao lado do outro cicatrizadas para que acabe Há que se lembrar de que o maternidade e traumatismo a cisão do humano. I ponto final da escada

O tempo, esse guardião impla- Gledson Sousa é escritor, 2 LAYTON, Bentley. As Escrituras Gnósticas. cável, parece vigiar toda poesia, e autor de Fantasmas (Ed. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 82 há um sentimento de perda, de dor, Jaguatirica) e crítico de 3 Idem, p. 88. que corresponde à medida do tempo literatura.

| João Pessoa, janeiro de 2020 26 Correio das Artes – A UNIÃO 6 conto

Nada como um dia depois do outro

Luiz Augusto Paiva Especial para o Correio das Artes Voltaste, estás bem, estou contente Mas me encontraste muito diferente Vou te falar de todo coração Eu não te darei carinho nem afeto Mas pra te abrigar podes ocupar meu teto Pra te alimentar, podes comer meu pão.

Lupicínio Rodrigues

cho que foi a viuvez que deixou minha agasalho. Se o tempo mudar você pode pe- mãe com um pé atrás em quaisquer aven- gar uma pneumonia, recomendava sempre turas que eu pudesse sonhar na vida. Não que eu saía à noite com medo que eu ficas- estou falando de escalar montanhas, sair se doente dos pulmões. Fez o maior alarido A de mochila nas costas pelo mundo afora quando comprei meu primeiro carro, um ou outras coisas assim. Ela fazia restrições fusquinha, já de terceira mão ou talvez de às situações mais simples do mundo. Fica- outras mais, só porque vieram com ele vin- va toda cismada quando me via sair sem te e quatro prestações. Você parece que não c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, janeiro de 2020 | 27 modavam. Eu reclamava vez ou outra. O dia que eu partir dessa vida, aí sim, você vai dar valor. Dizia coisas desse tipo quando percebia que suas reclamações me incomodavam. .Mas hoje eu entendo, ela tinha muito medo de me perder. Já de Seu Camilo, meu pai, pouco me lembro, apenas de suas tardes de domingo, sempre deitado folheando um jornal e com o rádio ligado escutando futebol. Guardei naquela minha caixinha de lembranças, poucas coisas desse homem , mas ainda tenho aqui comigo seu apreço pelo Vasco da Gama Não puxei a ele quanto a essa paixão. Não sou ligado em futebol. Só em Co- pas do Mundo, mas aí também, quem não é?. Meu pai era chofer de praça e morreu numa corrida que fez no seu Austin para San- ta Luzia. O carro bateu em um outro que vinha em sentido con- trário, capotou, caiu na ribancei- ra e pegou fogo.Não me lembro disso, minha mãe que vez ou ou- tra tornava ao assunto: deixou a gente com uma mão na frente e outra atrás, tive que fazer das tri- pas o coração, mas acabou dando certo, você está aí um homenzar- rão todo bonito, está até na hora de casar, tomar responsabilidade na vida. Dona Alzira era assim comigo, não perdia a oportuni- dade para dizer como fora difícil me criar, dar carinho, estudos, me fazer homem de bem. Eu era um troféu que conquistara no c pensa no futuro, ela disse quan- mãe. Mais valem dois pássaros complicado jogo da vida e fazia do mostrei aquela preciosidade na mão do que um voando, di- questão de alardear isso. Quan- na cor azul turquesa, com motor zia ela nas poucas vezes em que tas vezes eu a vi de papo com tinindo e lataria que nunca havia aventei a possibilidade de tentar Dona Leonor, dizendo, do orgu- levado massa em oficina de fu- outra colocação. Acho que por lho de ter um filho como eu e que nilaria. Uma lindeza! E olha só, isso mesmo fui me acostuman- queria muito um neto para pe- eu já tinha vinte e quatro anos do. E olhem só, já são quase vinte gar no colo. As vezes sinto falta e fazia seis que trabalhava com e cinco anos. Recebi as merecidas do choro de menino, reclamava carteira assinada. Desde que me promoções; fora isso, minha vida para nossa vizinha. formei em contabilidade na Aca- aqui parece estacionada no tem- Não tinha planos de me casar. demia de Comércio, finquei pé po, a mesma escrivaninha nesse Minha vida estava muito boa da- aqui no escritório “Damaceno um quarto de século, tudo do quele jeito: comida, casa, roupa & Irmãos”, meu único emprego. mesmo jeitinho, só a minha Re- lavada e passada. De segunda Tenho orgulho dele. Tudo aqui é mington perdeu seu lugar para à sexta no trabalho, das oito às por minha conta. Só não sou só- um computador; no resto, tudo cinco da tarde e uma horinha só cio, mas me tratam como fosse. absolutamente igual, sempre. para o almoço. Depois que termi- E ainda reforço o orçamento em Mas enfim, minha mãe sem- nei meu curso noturno de gra- casa na época das declarações do pre esteve muito presente, pois duação em Ciências Contábeis, Imposto de Renda. Nunca procu- quando meu pai faleceu, eu filho recebi minhas promoções e ou- rei outras coisas na vida, outras único, tinha só sete anos. Desde tras incumbências, muitas vezes oportunidades, melhores salá- então aquele apego todo, cuida- levei trabalho para casa, coisa rios. Talvez influência de minha dos que muitas vezes me inco- que não fazia quando era apenas c

| João Pessoa, janeiro de 2020 28 Correio das Artes – A UNIÃO c técnico em contabilidade.. Sem- bem ali do lado esquerdo do meu A barraca do Espanhol ali na pre fui homem de responsabili- peito. Oi, sou a Maria do Carmo, calçadinha da praia tem cerve- dade, muito respeito pelo anel de vim preencher a vaga, do Seu... ja à melhor temperatura, tripi- contador que sempre carreguei Demorou um tiquinho para eu nha crocante e outros petiscos no dedo. Essa pedra de rubislite perceber que era comigo, mas me da melhor qualidade. Então ela está aqui para guiar minha con- recompus e terminei o raciocínio disse que sim, mas dispensava duta de contabilista. O trabalho, dela: Nicanor. Isso, estava me a tripinha, podia ser outra coisa as obrigações, sempre em primei- esquecendo, continuou ela, ar- qualquer, menos tripinha. Então ro lugar. Fim de semana, já que riscando um leve sorriso. Finda eu disse tudo bem, a gente pede ninguém é de ferro, para mim as apresentações, o coração em outra coisa. Pode se uma cioba? praia era o melhor que existia. Pé polvorosa, fui tratando encarar Ela perguntou. Eu pensei, logo o na areia, água do mar, nada igual minha Olivetti e ir ajeitando mi- peixe mais caro, mas tudo bem, para encher a gente de boas ener- nha papelada. Tinha muita coisa ia valer o investimento. gias. Cervejinha com os amigos, atrasada para por em dia. Saí para o almoço num pé e caranguejo no coco, lá na palho- Voltando à nova funcionária, voltei noutro. Mal deu tempo de ça do Chicó. Tinha coisa melhor? qualquer dúvida que ela tivesse almoçar. Ajeitei a melhor beca Naquelas horas até que rolava era só me procurar, recomendara e avisei Dona Alzira para que uma paquerinha aqui outra ali e Seu Damaceno, o dono da firma. não me esperasse para o jantar. quando Deus ajudava a gente ia Sabe tudo esse rapaz, garantiu No trabalho as horas preguiço- para os finalmente. Quando Ele meu patrão e por essas e por ou- sas, teimavam em não empurrar ajudava, claro. tras é que eu tinha a desculpa os ponteiros modorrentos com Era assim que ia levando a de perguntar a ela se estava pre- a velocidade que eles deviam vida. Nada de grandes emoções. cisando de alguma coisa. Logo circular no entorno daquela cir- Até que um dia ela pareceu. Eu vieram as primeiras demandas, cunferência numerada pregada recebera quinze dias de licença coisa pouca, um cálculo aqui, bem à minha frente, no lugar para tirar pedras da vesícula. uma guia para preencher depois mais visível do escritório. Tentei Cirurgia de pouca complexida- e assim fomos indo. Numa tarde, manter a compostura, minha al- de, mas o protocolo exigia duas sem mais e nem menos, ela me tivez costumeira de funcionário semanas de repouso até tirar disse, eu não sei o que seria de exemplar. Consegui às duras pe- os pontos. Voltei recuperado, o mim sem você. Isso dito, fiquei nas, mas consegui. Vez ou outra repouso me fizera bem. Só na até pensando que aquilo podia eu e Do Carmo trocávamos olha- cama, lendo uma coisinha, ven- estar um pouco além das coisas res. Trocávamos? Como chamar do televisão e todo aquele cuida- de contabilidades. Falou isso e aquilo de troca? Cada vez que se do de Dona Alzira. Chá de boldo me cravou aquele olhar de lince cruzavam eu esticava meu dé- para ajudar na digestão e outras para despertar meus arrepios. bito, sempre achava que ficava mezinhas de minha mãe me fi- Não bastasse essa declaração, devendo alguma coisa quando zeram novinho em folha. Quan- acionou com movimento dos pés aquelas duas esmeraldas inocu- do cheguei ao escritório, numa as rodinhas de sua cadeira até lavam-me sua peçonha para fra- segunda-feira, haviam contrata- que ficasse suficientemente pró- quejar minhas pernas e coração. do uma moça para preencher a xima para segurar minha mão e Cinco da tarde eu estava todo vaga do Seu Nicanor que acaba- dizer: não tenho como pagar toda prosa, com tudo organizado ra de se aposentar. Uma moça? essa ajuda. Eu disse que não se sobre a escrivaninha e aquela Não! Aquilo era uma deusa. De- preocupasse e precisando.... Falei bagunça toda dentro de mim. via ter pouca coisa além de um olhando aqueles olhos, aquela Podemos ir? Perguntei para Do metro e setenta, cabelos negros, boca, aqueles braços desnudos Carmo. Claro que sim querido, cacheados, pele puxando um à mostra...Como eram bonitos ela respondeu. Querido? Esse pouquinho para o mulato, cor de os braços de Do Carmo, pois era “querido” só fez aumentar meu jambo, como dizem. Corpo, que assim que a chamava desde seu entusiasmo. Saímos direto para corpo! Tudo nas medidas. Rosto primeiro dia. Foi ela quem pe- o estacionamento. Notei que ela delicado, boca, nariz, queixo, etc, diu, pode me chamar de Do Car- não se encantou com meu fus- etc...tudo numa divina harmonia mo e então dispensei o Maria do quinha azul turquesa, mas en- e para completar essa suprema nome dela. Aquela minha exul- trou no possante sem reclamar. obra, duas esmeraldas reluzentes tação durou alguns segundos, Onde você quer ir? Perguntei. para incendiar a alma de quem logo ela deu ré na cadeira e an- Podemos primeiro tomar um ousasse cruzar com aquele olhar tes de retomar os trabalhos deu sorvete e depois dar um giro ali de tigresa. Ah, esse olhar! Vene- uma piscadela com aquele olhar na calçadinha da praia, ela disse. no de mamba negra, inoculou, de gata angorá, só para maltratar “Dar um giro” eu sabia o que era, tchau! Esquece, não tem remé- minhas ansiedades. Mulher bo- mas não estava acostumado com dio. A mesa de Seu Nicanor era nita é assim, sabe e gosta de açoi- essas falas. Achava meio vulgar, bem ao lado da minha e agora tar nossas inquietudes. mas desconsiderei e disse que tinha uma nova ocupante. Foi Numa sexta-feira criei cora- gostava de sorvete de coco. Do esse alumbramento que tive ao gem e perguntei se depois do coco queimado mais ainda. Ela chegar, quando aqueles olhos expediente ela não gostaria de disse que gostava do de manga- injetaram a peçonha poderosa tomar qualquer coisa comigo. ba e fomos para a Buon Gelato c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, janeiro de 2020 | 29 c que era a melhor sorveteria na compostura, ou pelo menos ten- que seria melhor você vir morar rua da praia. Tomei minha taça távamos. Vez ou outra me olha- com a agente Do Carmo, espaço bem aos pouquinhos como que va com aquele olhar de Capitu, não falta e você ajeita seu quar- quisesse eternizar aqueles mo- abria ligeiramente a boca e me to, não acha melhor meu filho? mentos. Do Carmo pediu o dela mostrava a pontinha da língua Nem acreditei na propositura, com duas bolas, mas dispensou a como que se não quisesse coisa mas Do Carmo ainda argumen- taça e pediu na casquinha e cada alguma, toda dissimulada, como tou que não queria incomodar e vez que colocava aquele cone não estivesse nem me vendo. Era depois as pessoas falam, não é na boca me olhava daquele jeito uma danada nessas artimanhas. mesmo Dona Alzira? Minha mãe que Hedy Lamarr olhava Victor E assim fomos levando, até um disse ainda que ninguém tinha Mature no filme Sansão e Dalila. dia entre lençóis, quando a lua nada com nossas vidas, pois éra- Senti que queria me dizer algo. nem tinha se levantado direito mos nós quem pagávamos nos- Certamente havia alguma coisa eu disse que queria que ela co- sas contas. Dois dias depois Do que gostava mais do que sorve- nhecesse minha mãe. Dona Al- Carmo deitou comigo em cama te de mangaba. Mas prudente zira andava preocupada comigo, novinha de jacarandá, comprada como sempre fui, resolvi esticar com minhas ausências, com mi- ali na Rua da Areia, bem reforça- a corda e me fiz de desentendi- nha perda de peso, com minhas da que era para sustentar nossas do. Onde você quer ir agora? Per- olheiras. Vai gostar de você, Do estrepolias naquelas brincadei- guntei tentando disfarçar minha Carmo, eu falei. Então Do Car- ras de fazer menino. ansiedade. Vamos dar uma volta mo, como uma diva de cinema, Casamento nos papéis, fi- na calçadinha, pode ser? Respon- levantou-se enrolada nos lençóis camos adiando e vivíamos em di, claro que sim e fomos. e sem eu menos esperar... Por que muita harmonia, os três. Minha Começamos falando do escri- não agora, meu amor? Ponha sua mãe não dava pitacos na vida do tório. Ela disse que estava muito roupa e vamos. Fomos. casal e fazia tudo para nos agra- entusiasmada, que me agradecia Dona Alzira se encantou. dar, dos temperos à arrumação muito e outras coisas, até que Quem não se encantava com Do da casa. Deixa que ajudo, Do perguntou: você não vai segurar Carmo? Aproveitei aquela ben- Carmo se propunha, mas Dona a minha mão? Nem precisei to- querença e saí para ir à padaria Alzira fazia questão de dar con- mar atitude, pois ela tomou a ini- buscar algumas coisas, pois es- ta de tudo. Só a vi triste naquele ciativa, puxou pela minha mão, távamos desprevenidos para re- final de tarde quando Do Carmo olhou nos meus olhos e inoculou ceber visitas e deixei as duas em chegou com uns exames que o veneno de mil cascavéis. Vamos conversa animada. Do Carmo diagnosticavam sua impossibi- ali no Espanhol tomar um chope. contou para minha mãe que era lidade de engravidar. Também Ela propôs de forma muito im- de Jacareí, no interior de São Pau- entristeci, mas pensei em num perativa. Fomos. Sentamos bem lo, os pais morreram quando era mais para frente a gente adotar pertinho um do outro, lado a novinha, foi criada por tia, ela e o um menino ou dois, já que Deus lado. Quando chamou o garçom, irmão que hoje mora em Boa Vis- quis assim... encostou-se em mim e colocou a ta. Resolveu vir para cá e morar Vivemos um ano todinho de mão sobre minhas pernas. Na- com uma prima por parte de pai, muito chamego. Das Dores pa- queles tempos eu não era como casada com dois meninos e um recia cada dia mais bonita. Bo- hoje, meio estropiado de saúde. no buxo. Marido é caminhonei- nita e provocante com aquele Estava em forma e nem preciso ro, quase nunca está por lá, mas é corpo de manequim e aqueles contar como meu organismo rea- gente de bom coração. Sabe como olhos cheios de dengo e veneno. giu à mão de Do Carmo me to- é, não é Dona Alzira? Morar na Não perdia a oportunidade de cando de forma tão insinuante. casa dos outros não é fácil. Não é me atentar, mordiscar meu pes- Mas me contive. Tomei um cho- mesmo, minha filha, minha mãe coço quando eu tirava a sesta pe, depois outro, mais um quan- concordou. na rede da varanda ou invadir o do, depois de tanta conversa para Quando cheguei, parecia que banheiro quando eu estava sob boi dormir, ousei perguntar se se conheciam há anos, tão ani- o chuveiro. Entrava ali toda agente estava namorando. Então mada estava a prosa das duas. vestida e molhados, fazíamos ela indagou: o que é que você Fizemos um lanche e na sequên- nossas travessuras. Minha mãe acha? Eu não achava nem que cia Das Dores se encarregou de fazia de desentendida, fingia sim nem que não. Foi quando por o pó no coador e coar o café, que não ouvia os uivos daquela aquela mão destemida percorreu bem forte como eu apreciava. loba no cio que roubava minhas caminhos inimagináveis. Aper- Foi quando minha mãe revelou energias. Quando à tarde joga- tou minhas intimidades. A cioba saber o que estava acontecendo va baralho com Dona Leonor é ficou para outro dia. entre mim e Do Carmo, aquela que Dona Alzira fazia algumas Nem preciso dizer como foi intimidade toda, deixou às claras alegações de nossas safade- aquela noite, nem muitas outras que não era nenhuma bocó, mas zas. Tem horas que penso que que se seguiram. A cada encon- que fazia gosto que a estreiteza minha casa virou um cabaré. tro, Do Carmo me exauria, cada desse certo, pois tinha gostado Mas melhor assim, já que eles pouquinho dela arrancava quase da minha namorada. Então fez a se gostam...Dona Leonor ria, de tudo de mim. No escritório nada proposta que nunca imaginaria espanto e acho também que de dessas coisas, mantínhamos a que Dona Alzira fizesse. Acho inveja, já que Seu Navarro, ma- c

| João Pessoa, janeiro de 2020 30 Correio das Artes – A UNIÃO c rido dela, parecia não dar mais trabalhava na mesma sala que ela dissesse alguma coisa, senti no coro, pelo menos parecia. ela, numa tarde lá na hora do ca- que aquela história de amor que Quando faço esse relato já dá fezinho me chamou em um can- eu julgara para sempre, estava ali para imaginar que alguma coisa to e disse que era para eu abrir revelando sua brevidade, estava não ia dar certo. E não deu. Era o olho. Sabe aquele cliente novo, extinta. Então ela me disse: essa muita felicidade para um homem dono do posto de gasolina? Eu não é a vida que eu quero para só. Bem, quando fomos morar sabia. Então, vem aqui sempre, mim. Não me leve a mal, mas juntos, comunicamos ao Seu Da- e quando vem é só conversa com não nasci para andar de fusca, maceno nosso compromisso. Ele Do Carmo. Agradeci e não sei Vou passar a vida morando em disse que já desconfiava do flerte, como não saí dali para a sala dela. casinha de bairro? Trabalhando nos abençoou, mas determinou Mas como dizia Seu Damaceno, como uma burra de carga? Não que iríamos trabalhar em salas a gente não pode misturar traba- posso reclamar de você, tudo foi diferentes. Marido e mulher, lho com coisas do coração, então bom enquanto durou. Você é um namorado e namorada, noivo e eu me contive e esperei a hora bom homem, mas não pode me noiva, trabalhando juntos, um ao de irmos para casa. No caminho dar a vida que eu quero. Ama- lado do outro, não dá certo. Todo perguntei o que estava aconte- nhã vou embora. Por favor, sem mundo sabe que não dá, disse cendo e que história era aquela conversa quando chegarmos, ele. Das Dores foi para um escri- de ficar papeando com um clien- não quero magoar Dona Alzira. tório anexo e ficou encarregada te além do necessário? Foi quan- Calei-me e só Deus sabe o que de prospectar novos clientes. A do Do Carmo me olhou de um passou pela minha cabeça, mas firma queria fazer contabilidade jeito que eu nunca tinha visto. resolvi não estragar a vida que de empresas grandes, dar um Nada daquela ternura, nem um ainda me restava. A minha e de salto à frente, nem que precisasse pouquinho daquele doce veneno minha mãe. Foi a última conver- contratar mais gente e foi quan- que ela tinha no olhar, agora era sa que tivemos. Deixei Do Carmo do fiquei também encarregado indiferença naquele verde que em casa e fui lá na Casa da Pól- dos recursos humanos. Tanto saiu do tom de esmeralda para o vora, ver o por do sol no rio Sa- eu, como minha mulher, ganha- de musgo. Antes mesmo de que nhauá. Aquele sol se escondendo c mos elogios nos meses que se seguiram. Só elogios porque Seu Damaceno era o maior unha-de- -vaca que já se viu; então, ficamos ouvindo louvores do patrão, mas acréscimo ao valor escrito no contracheque, nada. Foi por esses tempos que senti Do Carmo mais fria comigo, di- ria indiferente até. Quando eu a chamava para o chamego: vem pra cá “Zóio-de-gato”, ela vinha meio ressabiada, parecia até sem vontade de fazer nossas traquini- ces. De uma feita, a gente lá, e já nos finalmentes quando ela me veio com a história que já estava na hora de trocarmos de carro. Por que trocar? Eu tinha muita estima naquele fusquinha. Aca- bei dizendo que sim, mas aquele pedido cortou o meu entusiasmo e não concluí o que me propu- sera fazer ali entre lençóis e tra- vesseiros. Daí em diante só frieza. Quan- do eu me achegava, ela vinha dizendo que estava com enxa- queca, virava de lado e depois fingia que estava dormindo. Uns dois meses assim. Até com minha mãe conversava pouco, só o necessário. Dona Alzira até me perguntou se estava havendo alguma coisa. Eu disse que não, mas lá dentro de mim eu sabia que sim. Foi quando que

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, janeiro de 2020 | 31 c como uma bola de fogo, era como por o pé ali. Deu-me uma abraço bem velhinho e gostava de me que se com ele fosse junto o sen- e me mandou aproveitar aqueles ver por lá. Gosto desse sujeito tido de minha vida. Amanhã ele dez dias de recesso. como fosse meu filho, ele dizia iria surgir vigoroso lá na Ponta Esta minha história com Do me apontando para os outros.. do Seixas mas não sei se traria Carmo. Foi muita dor, mas pas- Para me locomover contava com ele a minha vontade de vi- sou. Não quis mais saber dela. com Ricardinho que era bom de ver. Então chorei todas as lágri- Nenhuma notícia, nadinha. Apa- volante e eu já não tinha essas mas que podia chorar. guei aquela mandiguenta de vontades de pilotar nossa camio- Do Carmo foi embora naque- minha vida. Coisa de um ano nete. Tarde de quarta-feira passa- la noite. Só esperou minha mãe depois, conheci Celeste. Discre- da, ele foi me buscar na empresa. dormir e deu no pé com duas ta na beleza e em todo seu jeito Quando entrei no carro ele dis- malas só. Senti que naquela ba- de ser. Não posso dizer que foi se que Celeste havia contratado gagem não cabia nem um pou- amor, mas algo muito parecido, uma empregada que se dispunha quinho da nossa história. Para sem aqueles arroubos, mas com dormir no serviço, ou melhor, no ela o que vivemos ficava para muita ternura e respeito. Minha local de trabalho. A senhora, já se trás. Senti que eu era uma página mãe gostou de Celeste e fez gos- acomodara na edícula nos fun- virada na vida dela, nada mais. to que casássemos. Logo depois dos do quintal e segundo meu No outro dia, Seu Damaceno, que nasceu Ricardinho, minha filho era uma senhora simpática me chamou para um particular. mãe nos deixou. Foi em paz e parecia muito disposta; ainda Disse que entendia a situação e quando seu coração fraquejou, completou que assim todos nós que eu merecia um tempinho de tão feliz que estava de ver a fa- poderíamos trabalhar um pouco descanso. Vai viajar com Dona mília crescendo. Depois vieram menos. Concordei e já que assim Alzira, disse ele. Entregou-me Alicinha e por fim Camilinho. Celeste queria, assim ia ser. um envelope dizendo que aquilo Ricardinho está terminando En- Quando chegamos, Celeste pe- era um presente e não ia ser des- genharia, solteiríssimo. Alicinha diu para eu ir com ela falar com contado no salário. Disse mais de namoro firme começando Di- Dona Maria e acertar os proven- ainda, que o pessoal da firma reito. Já Camilo, o caçula, sempre tos de nossa secretária. Fomos estava solidário comigo e aque- de recuperação no colégio ainda eu e Celeste. Ao chegar à edícu- la desmiolada que não ousasse não sabe o quer da vida, mas é la aquele susto, aqueles mesmos um menino bom, o xodó de Ce- olhos verdes que me causara leste. É um danado esse menino, tanto padecimento. Celeste foi vive trancado no banheiro fazen- perguntado como era mesmo o do uso de uma literatura muito nome dela. Maria do Carmo, ela suspeita que ele faz questão de respondeu. Pois bem, Dona Ma- esconder. ria, vai acertando o salário com Ainda moro na mesma casa. meu marido enquanto chamo as Quando me casei com Celeste, crianças (ainda chamava nossos peguei o Fundo de Garantia e fiz filhos, de crianças) para a senho- aquela reforma, até piscina colo- ra conhecer, Assim que saiu, Do quei. Ficou uma lindeza, parece Carmo me pediu para que não a até casa de condomínio. Éramos dispensasse e ainda argumentou os cinco naquela luta para deixar que não tinha mais ninguém a nossa residência um primor. Ce- quem recorrer. O que fiz não tem leste (o tempo se esquecera dela) perdão, mas deixa eu ficar, vou continuava com aquela beleza respeitar você, quer dizer, o se- recatada, sóbria, mas reclamava nhor, implorou. Aqueles olhos já querendo por alguém casa para não mais me seduziam. Foi quan- ajudar no serviço, alegando que do esclareci que ela não merecia, agora que eu me aposentara era mas ponderei que toda criatura de hora de pisarmos no freio e apro- Deus tem direito a um teto para se veitarmos um pouco da vida. abrigar e um pão para comer, até Mesmo já recebendo meus bene- você Do Carmo; aliás, Dona Ma- fícios das previdências do gover- ria. Pode ficar, foi o que eu disse no e de uma aposentadoria pri- encerrando aquela entrevista. Ao vada que não descuidei de pagar, me retirar, senti o que poderia se eu continuava dando expediente chamar de alívio, eu finalmente lá firma. Seu Damaceno estava virara aquela página. I

Luiz Augusto Paiva é bacharel em matemática, professor, escritor. Tem livros publicados de contos e de crônicas. Publica toda quarta-feira na coluna “Crônica em destaque” do Jornal A União. Atualmente é presidente da União Brasileira de escritores – UBE – PB. Colabora com consultoria para autores de livros didáticos de matemática da Editora Ática e Editora do Brasil. Natural de Campos do Jordão, reside em João Pessoa.

| João Pessoa, janeiro de 2020 32 Correio das Artes – A UNIÃO 6 convivência crítica Hildeberto Barbosa Filho [email protected]

Um dicionário amoroso

icionário é obra de referência e existe nas mais varia- Houvesse uma distribuição das espécies. A referencialidade e a metalinguagem classificatória, diria que o dicio- constituem as funções básicas do acervo vocabular nário propõe três campos temá- D e expressivo que normalmente comporta. Linguísti- ticos no âmbito de sua organiza- cos, científicos, estéticos, literários, filosóficos, -dou ção metodológica: as personas, as trinários, jurídicos, teológicos, enfim, servindo a paisagens e os conceitos. qualquer tipologia, o dicionário está aí como a lin- A escolha é totalmente arbi- guagem e a vida. Sempre a fertilizar os imponderá- trária, muito embora não seja veis campos do conhecimento, na medida em que, e aleatória, uma vez que a Amé- dentro da lógica específica dos verbetes sistematiza- rica-Latina, como referência de dos, elabora-se a construção dos conceitos e exem- fundo e alicerce unitário dos plifica-se a riqueza estilística dos diversos idiomas, tópicos pessoais selecionados, ou se sinaliza, ainda, para conteúdos imprevistos no ecoa, aqui e ali, no núcleo signi- corpo da realidade cultural. ficativo de cada verbete. Por ou- Provavelmente, nessa última categoria, caiba o Di- tro lado, é importante ressaltar a cionário Amoroso da América-Latina, de Mario Vargas não convencionalismo com que Llosa, edição brasileira da Ediouro, de 2006, com capa se constroem determinados tópi- e projeto gráfico de Victor Burton, tradução de Wladir cos, curiosamente fundados em Dupont e Hortensia Lencastre. vivências memoráveis do autor, Por que? passagens de sua experiência Ora, porque se trata de um dicionário em tudo idios- jornalística, sobretudo em Paris sincrático, permeado pelas marcas subjetivas do autor, onde viveu grande parte de sua no caso o escritor peruano, senhor de uma escrita ro- vida, ou mesmo no aproveita- manesca das mais exuberantes entre seus pares, na mento pouco usual de recortes narrativa latino-americana dos anos 60 do século 20. de sua própria ficção ou de seu E óbvio: enquanto escritor, mesmo em se tratando de ensaísmo crítico e teórico. Consi- obra didática e informativa, atinente, portanto, à per- derado este traço de composição tinência dos conteúdos, salta aos olhos a presença viva discursiva, a obra assume perfei- do estilo fluente, elegante e artístico que caracteriza o tamente o critério da ruptura dos seu discurso literário. Dir-se-ia, aqui, que o adjetivo gêneros literários, argutamente “amoroso” do título, ao mesmo tempo em que marca acentuado por Haroldo de Cam- uma tonalidade especial do olhar do dicionarista sobre pos em estudo decisivo. as coisas do continente, suas referências particulares, Nas personas, em meio a no- modelos e experiências culturais e telúricas, toca tam- mes como Jorge Luís Borges, Julio bém a epiderme e o nervo agudos da palavra, em seus Cortázar, Lezama Lima, Crabera torneios fonéticos, sintáticos e semânticos. Infante, Gabriel García Márquez, c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, janeiro de 2020 | 33 6 convivência crítica c Pablo Neruda, Alejo Carpen- como, por exemplo, “Humor”, ao afirmar, bem ao seu modo, lú- tier, Carlos Fuentes, Ruben Da- “Indianismo”, “Jogo”, “Litera- cido e provocante: río, , Che Guevara t u r a”, “ Ro m a n c e ”, “ Te l u r i s m o ”, Crítica literária, biografia, jor- e Fidel Castro, só para citar os “Utopia”, por outro, chama a nalismo, pedagogia, ficção, crô- verbetes mais completos, apare- atenção do leitor para seus pro- nica e poesia se mesclam nessa cem os brasileiros , cedimentos de criação ficcional, obra - nesse Dicionário Amoroso Guimarães Rosa, Rubem Fon- numa espécie de “desnudamen- da América-Latina - que é, ao mes- seca e Euclides da Cunha. Para to do processo”, ou de autorre- mo tempo, artística e científica, cada um, Vargas Llosa articula flexão ficcional, típicos da prosa fecunda nos assuntos e motivos um perfil exemplar, onde os tra- romanesca da modernidade. apresentados, discutidos, e, não ços fortes da personalidade se No verbete “Humor” (p. 183- raro, cheia de poeticidade, se nos associam às virtualidades lite- 185), faz uma confissão e nos diz ativermos aos elementos mate- rárias de suas respectivas obras, como e por que escreveu Pan- riais, imagéticos e rítmicos que sem descurar, não obstante, e taleão e as Visitadoras, narrativa enformam a organização da lin- em nenhum momento, de uma baseada numa história ouvida guagem.I saudável empatia interpretativa na selva peruana, inclusive afir- conjugada a uma visão crítica, mando que rompera com o pre- responsável, ao fim, por um jul- conceito absurdo vindo de Sartre, gamento justo de cada obra e de no sentido de que “uma literatura cada autor. séria não podia ser uma literatu- No que concerne às paisa- ra risonha”. De outra parte, em gens, muitos verbetes nos tra- “Literatura” (p. 213-217), convoca zem uma lição saborosa de aspectos essenciais da recepção, antropologia, urbanismo, arqui- tetura e história da arte, a exem- {...} A literatura nada diz aos seres humanos felizes com sua plo do que ocorre com “Amazô- própria sorte, àqueles que estão satisfeitos com sua existência. A nia”, “Brasil”, “Rio de Janeiro”, literatura é o alimento de espíritos indóceis e propagadora de “Havana”, “Peru”, “Paris”, “Qui - inconformismo, um refúgio para quem tem de mais ou de menos to”, “Medellín”, “Chile” e “Bolí- na vida, para não ser infeliz, para não se sentir incompleto, sem via”, entre outros. realizar suas aspirações. O senso de observação, o olhar intuitivo, a imaginação e a Vargas Llosa: sensibilidade, convergindo com dicionário idiossincrático, o apuro e a beleza da lingua- permeado gem, tendem a captar aspectos pelas marcas geográficos, plásticos e míticos subjetivas do que fogem ao didatismo das autor pretensas definições objetivas. fotos: reprodução internet Só para dar um exemplo: se ao verbetizar “Sertão” (p. 319-320), Vargas Llosa transcreve literal- mente um trecho descritivo do romance A guerra do fim do mun- do, quando, noutro passo, se re-

{...} Sobre os indígenas cai a imensa, indescritível vegetação amazônica: uma abóbada verde cheia de ruídos misteriosos, borboletas de cores inverossímeis, formigas grandes como um cigarro, troncos atrozes, trepadeiras, insetos e uma sombra eterna: o sol não é suficientemente poderoso para atravessar a selva.

porta à “Selva” (p. 313-316), con- clui assim sua apreciação: Em face dos conceitos, re- vela-se o ensaísta, o crítico, o Hildeberto Barbosa Filho (HBF) é poeta e crítico literário. Mestre e doutor intérprete, numa espécie de em Literatura Brasileira, professor titular aposentado da UFPB – Universidade práxis literária e filosófica que, Federal da Paraíba e membro da APL – Academia Paraibana de Letras. Autor de se remete, por um lado, para os inúmeras obras no campo da poesia, da crítica, da crônica e do ensaio, dentre as interstícios teóricos de múlti- quais se destacam: Nem morrer é remédio: Poesia reunida; Arrecifes e lajedos: Breve itinerário da poesia na Paraíba; Literatura: as fontes de prazer; Os livros: a plas categorizações cognitivas, única viagem, e Valeu a pena.

| João Pessoa, janeiro de 2020 34 Correio das Artes – A UNIÃO 6 cantinho do conto Rinaldo de Fernandes [email protected] Quem imuniza o meu filho?

m senhor entrou com o filho deficiente mental numa pa- daria. O menino engrolava a língua e apontava para tudo quanto era gôndola, como se estivesse excitado com as fo- U tos nas embalagens – com o mel que escorria dos pacotes de biscoitos, com as vacas que se derramavam das caixas de leite. Dois adolescentes, numa mesa lanchando, come- çaram a rir do menino. Tentavam, cobrindo a boca com a vou para (e não estava precisan- borda da camisa, mas não conseguiam controlar os risos. do) alcançar uma caixa de aveia. Um deles ria tanto que batia com o bico do tênis no pé da Se curvou para ocultar o rosto mesa, quase virando-a. O outro largou os livros no chão molhado. Porque não pensava no num de seus abalos de corpo inteiro. O senhor, ouvindo agora do filho, com ele, pai, ali o baque dos livros no piso, notou o riso dos adolescen- bem perto. Pensava no futuro do tes. E segurou firme no braço do filho, passou-lhe a mão menino, depois que já estivesse nos cabelos e o trouxe para perto do ombro, como que o morto – quem iria acolher o seu abrigando da zombaria. Os adolescentes não conseguiam Rafael? Quem iria, acomodando- se conter, e um já até se dirigia para o caixa para ver se re- -o em palavras que abrandam, freava a euforia. O senhor aí deixou escapar uma lágrima, repousam, fazer apagar a tinta mas não quis expor o choro, nem para o filho nem para suja do riso alheio? Quem iria os adolescentes, que agora já iam deixando a padaria, um imunizar a sua criança contra o empurrando o outro, sempre aos risos. O senhor se cur- mundo? I

Rinaldo de Fernandes é escritor, crítico de literatura e professor da Universidade Federal da Paraíba. Mora em João Pessoa (PB).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, janeiro de 2020 | 35 6 ao rés da página Tiago Germano [email protected]

Os heróis de dupla face

m agosto do ano passado, meses depois de um massacre numa escola de Suzano, em São Paulo, um professor de Educação Física conseguiu evitar uma tragédia da mesma natureza na escola em que trabalhava em Charqueadas, no Rio Grande do Sul, rendendo E um adolescente que entrara no prédio portando uma machadinha e atacando os estudantes. No noticiário matinal, o professor era parabenizado pelos repórteres que pediam que ele descrevesse para as câmeras o seu “ato de heroísmo” perante o agressor, um c

| João Pessoa, janeiro de 2020 36 Correio das Artes – A UNIÃO 6 ao rés da página c ex-aluno da escola com um perfil de que seus problemas tinham psicológico que a mídia se apres- sido resolvidos, mas em pouco sou em associar a algum trans- tempo aquilo que era solução torno de ordem psiquiátrica. tornou-se um novo problema, Nem todo mundo fez a relação porque a cabra agora era uma entre as duas notícias, mas fazia outra boca que a família teria menos de vinte e quatro horas que alimentar. O homem volta que, longe dali, na ponte Rio-Ni- então à prefeitura e pede nova terói, o sequestrador de um ôni- ajuda do prefeito. O que o pre- bus era abatido por um sniper e o feito faz? Aceita ficar novamen- governador Wilson Witzel (PSC- te com a cabra. O homem volta -RJ) descia de um helicóptero no para casa de novo satisfeito, local da ação, comemorando o ciente de que o prefeito resol- feito como um gol do Flamengo vera o seu problema mais uma na final de um campeonato, em vez. pleno Maracanã. “Comemorei a Atribuir heroísmo ao profes- vida”, disse Witzel posteriormen- sor que salva a escola de um te, numa coletiva de imprensa. massacre – parabenizando- Para além da violência espeta- -o, antes mesmo de ponderar cularizada, permeando duas nar- ou lamentar o ocorrido – é um rativas de heroísmo numa época impulso humano ao qual a mí- em que, não raro, escolas, heli- dia, com notória falta de senso cópteros e snipers passam a divi- e responsabilidade, vem se en- dir as mesmas manchetes, ambos tregando de forma no mínimo os episódios se ligam por um ra- inconsequente, coroando even- ciocínio enviesado, cada vez mais tos cada vez menos atípicos com frequentes não apenas no palco uma narrativa quase mítica, em da mídia, mas nos bastidores de que um homem comum conver- nossa vida privada: o de que a te-se em salvador, nos livrando virtude está não no bem, mas no do mal. Este verniz bíblico do menor dos males. É inegável que, cotidiano de nosso país – por nos dois casos, reações violentas princípio já violento, e cada vez foram necessárias para evitar um mais brutal – não apenas está desfecho mais desastroso (como nos impedindo de entender o o que ocorreu no já citado massa- mal, mas nos impelindo a criá- cre de Suzano ou no famigerado -lo, no pretexto de combatê-lo. sequestro do ônibus 174, no ano Quem tem a lógica mais 2000). O que é questionável é: de- doente: um jovem que entra vem tais reações ser associadas a numa escola armado, prestes a atos heroicos e, como tal, come- cometer um massacre julgando moradas? se vingar de seus abusadores, Trata-se de uma questão mo- ou um governante que se rego- ral recorrente e que, numa outra zija de uma execução pública, proporção, o mundo está prestes julgando “celebrar a vida” a a enfrentar diante da crescente bordo do mesmo helicóptero de tensão entre EUA e Irã. Pode-se, onde dispara rajadas de metra- com o pretexto de salvar um país, lhadora contra escolas e tendas destruir-se um país? O dilema de oração? está presente em quase todas as homem cuja família estava pas- Onde está a virtude de uma guerras, e geralmente é resolvido sando fome e que foi buscar aju- nação cujos heróis não usam ca- com uma resposta que não ela- da junto ao prefeito da cidade. A pas, deixando que quem as vis- bora este impasse a contento – e solução encontrada pelo prefeito ta agora sejam os seus vilões? O o que é pior: vale-se justamente foi simples: presenteou o homem Brasil é uma Gotham City reple- dele para justificar a resolução de com uma cabra. O homem voltou ta de Coringas, inclusive com outros impasses que não existi- para casa muito satisfeito, ciente alguns vestidos de Batman.I riam caso aquele primeiro dilema fosse resolvido de outra forma. A respeito deste problema filo- Tiago Germano é escritor, autor do romance “A Mulher Faminta” (Moinhos, 2018) sófico, é muito ilustrativa a ane- e do livro de crônicas “Demônios Domésticos” (Le Chien, 2017), indicado ao dota que conta a história de um Prêmio Jabuti. Mora em João Pessoa.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, janeiro de 2020 | 37 POE Josafá de Orós Anotações acerca do intangível Iii E as árvores? “Esta penumbra é lenta e não doi; As suas notas esparsas, as pausas Flui por um manso declive Os trinados como ecos E se parece à eternidade” As cortiças aladas do vinho, seus estômatos abreviados Jorge Luis Borges O mobiliário sem memória, os vernizes As baratas nas gavetas I A escrivaninha de Poe Tinha uma ideia fixa Um corvo, uma gralha, um escaravelho De que era um sonho muito breve Uma nota sustenida abrindo o mundo. Num sono desmembrado no tempo. As árvores vivas, quase nuas Ideia branda e de leite Suas anáguas transparentes Detalhada a fina erosão Seus sexos de pólen Boca de diamantado cinzel. Estão voando. Os baobás, irmãos do infinito! Escultura de Giorgi De mármore branco e fineza Os silvos das folhas, Ouro alvo, puro ouro Roçando estômatos e fímbrias Crestada hora Inscrevem-se no sexo Recepção e alumbramento E sobre pedras inertes Nas abas de nuvens Com os seus silêncios contidos Que balem em grandes rebanhos voando. Velhos anjos invioláveis.

Ii Iv Pensamentos que se escoram em coxas mule- Da terra, a mãe tas O húmus profícuo Pregos trespassados nos membros A força doida das sementes Segurando palavras Grávidas que se contorcem Armadilhas nos sons e silêncios E abrem os olhos no terral Decepando as asas e o voar. Sob troncos podres e cogumelos.

No brilho dos olhos, às lágrimas v Bolhas de água, capsulas Nos sinuosos rios Toscas cavernas com imagens Choro a diversão dos peixes Tristes gotas de sal. O cardume das areias sob as sombras Rios estreitos, filamentos As espadas laranjas da luz, os seixos Suicidas presos ao fel O fundo das horas A amargura no palato de cinza Os grânulos do mistério. E a poeira fina dos rostos.

Rios deitados em cursos aventuram-se vI Nas somas caudalosas, os suores Nas pálpebras, Rumores de infindos oceanos. O involuntário movimento A ode eterna do que jamais se repete Por dentro dos olhos O pêndulo que vai, o pêndulo que vem Quais os viandantes na penumbra? É pêndulo de escuro, é pêndulo de luz Os labirintos de Borges? É olho que abre, é olho que fecha Quase cegos, se descobrem iluminados. Bigorna com limalha viva Sob o martelo feroz de Vulcano São quantos cegos tateando as paisagens? Oficina de forja de sopro frio As finas alças de fogo Fina lingueta de fogo As sedentas línguas Enfileiradas esculturas de fumaça Queimando as mãos. Parindo os sonhos do mundo.

| João Pessoa, janeiro de 2020 38 Correio das Artes – A UNIÃO SIA Josafá de Orós

viI xI Sonhar é ter as asas nos pés Magma doida e doída de vulcão E nos calcanhares, o mais impulsivo coração. Esporas finas do tempo, Te peço, Sangue, sangue Para os meus sonhos de trapo e de prata No pulsar imenso do tempo Espalhem sobre meu sono O desespero da vida, de fina cera e utopia Cantos de terna hibernação Sob causticante sol e no denso mel Com antigos percalços, com rastros que falham e Cravadas plumas, falam Penas suicidas de Ícaro E sob espada de afiado e brilhante gume Os seus olhos perdidos Rasguem comigo os céus O despencar dos sujeitos De Hermes (o fértil, guia das almas dos mortos) O espatifar das carnes e dos ossos. Céus que se perdem para cima Céus que se perdem para baixo O desejo pleno, é desejo de imagem frágil de vidro E sob címbalos e oboés Efêmero, volátil Lancem seus gracejos misteriosos No descanso frio externo do peito E levem-me ao mergulho E no vento bravio, lambendo os mamilos Salto sem fim no vazio de imberbe azul, liso Eriçando homens que sonham sonhos. Tocando franjas de nuvens gigantes Algodões alvos ou de cinza com seus efêmeros viiI monstros, os seus nadas Vestindo trovão medonho Imensos rebanhos tangidos pelos ventos. As nuvens Gargalham nos céus x E são mares invertidos No vazio Com as chuvas. Catem pra mim nos primeiros ninhos X Nas barbas alvas de Bachelard Os relâmpagos com seus martelos de fogo Os ovos alados das poéticas e dos sonhos. Lapidam nos céus informes Os dentes de faísca Josafá de orós Que se mostram 15/05/2017 / 21/05/2017 Oh! Velhos dragões desenhados.

Josafá de Orós nasceu em Orós (CE), em 1965, e reside em Campina Grande (PB), onde desenvolve ações nos campos da cultura e das artes. É sociólogo formado pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Artista plástico, participou de mostras coletivas e individuais no Brasil e em outros países, entre eles, Cuba, França, Portugal e Espanha. Poeta, foi laureado com o Primeiro Lugar da Flibo 2010, classificado no Festival Tataguassu de poesia. Tem publicado em diversas coletâneas em nível nacional. Sua mais recente participação foi na antologia Homenagem ao Centenário de Nascimento do Escritor Jorge Amado, lançado na Bienal Internacional de Livros de São Paulo – 2012. Obteve O titulo de Embaixador da Palavra do Museo de La Palabra de Madrid, em 2017.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, janeiro de 2020 | 39 6 conto ônio lustração: T I

Palavras desenganadas

Lizziane Negromonte Azevedo Especial para o Correio das Artes

a seção H do dicionário começou uma confusão me- donha, sem mais nem menos, tirando o sossego das palavras em repouso, que se juntaram em assem- bleia, convocadas pelos gritos desesperados da Hipo- N tenusa. – Eu vou morreeeer.....! Ai meu Senhor das Pala- vras Desenganadas, valei-me, eu ainda tenho tanta coisa pela frente! – Que tumulto é essa aqui Hipotenusa? Que con- versa é essa? Tá ficando doida? – Obséquio, Obésquio, você não vê, meu velho ami- c

| João Pessoa, janeiro de 2020 40 Correio das Artes – A UNIÃO c go. Estamos desaparecendo! E ser a consequência de um susto, só você não se deu conta disso. de um tombo da língua. Quero O Trema já foi banido, ninguém continuar maravilhosamente mais o viu. Até do dicionário já na ativa. foi expulso. Um pária sem mo- – Essa Hipotenusa só quer rada. Apagado. Extinto. Sem ser melhor do que os outros. Te falar nas palavras caducas do enxerga! Esse tipo de gente que dicionário, comedoras de poei- o Obséquio falou é gente rara, ra. Eu não quero ser esquecida, não se acha em toda esquina não quero cair na desgraça do não. desuso! Não mesmo! Ah... sem – Quiprocó, não venha colo- falar que, não fosse pouco o de- car lenha na fogueira não. Você sastre, ainda passaram a usar não tem mais idade pra isso, uns estrangeirismos, uns Sales aliás, não temos. Você se diz pra lá, uns Kids pra cá. É um um cara resolvido, mas já se la- salve-se quem puder! mentou do mesmo jeito que eu – Calma, Hipotenusa! Que o sei. Criador dos Substantivos tenha Com a cara fechada, roxo de misericórdia do Trema. Era um raiva e sem dizer uma palavra, cara legal, gente boa. Mas não Quiprocó afastou-se, resmun- é assim também não, mulher. gando que “aquilo não tinha Um caso como o dele é um em cabimento, um homem da ida- um milhão. E, que eu saiba, de dele levando repreensão em ninguém deixou de estudar o públ ico”. Teorema de Pitágoras. Ou seja, – É verdade, Obséquio, que você não vai ser esquecida nem essas pessoas que resgatam tão cedo. Vai estar na boca de palavras são raras? Perguntou muito jovenzinho por muuuui- Hipotenusa, prendendo o choro to tempo. Agora eu, eu sim, nos lábios apertados. teria do que me lamentar. Pre- – Sim, é verdade, Hipotenu- so no dicionário. Um “caduco” sa. Mas eles existem. Você pre- comedor de poeira, como você cisa crer nisso. Com eles nunca mesmo disse. Saio da boca de caímos no esquecimento. Sabe um ou outro, na maioria uns o Janota? Foi desenterrado um velhotes, no susto. Eles trope- dia desses, depois de décadas çam em mim sem querer. Me de esquecimento, e virou es- cospem na cara dos outros, de trela de um conto famosíssimo, repente. Quem os ouve até se premiado e tudo. É por isso que assusta, às vezes confundem- eu digo, Hipotenusa, no dicio- -me com um palavrão. Logo eu, nário estamos bem guardados. um lorde, confundido com uma Nele podemos ser resgatados! classe tão, tão, tão suja! Veja só, – E como é o nome dessa gen- nunca pensei passar por isso. te, então, Obséquio? Uma palavra tão elegante, “Ob- – Escritores. séquio”, ser esquecida assim, Em silêncio, cada palavra vol- trocada por um simplório “Por tou ao seu lugar no dicionário. favor” mal-ajambrado, sem ne- Ansiosas pelo seu resgate.E nhum glamour. Mas eu tenho esperança! Tem gente por aí que faz faxina nas palavras, sabia, Hipotenusa? Tiram a poeira, lustram, nos deixam brilhando como na primeira vez que saí- mos da boca de alguém. – E quem é essa gente, meu amigo? Me diga logo, quero me apresentar, mostrar minhas ha- bilidades antes que eu suma. Me desculpe, mas não quero

Lizziane Negromonte Azevedo Advogada, escritora e monteirense de coração [email protected]

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, janeiro de 2020 | 41 c eodato lustração: Mike D I

Mike Deodato Foto: André Cananéa Beserker é um guerreiro medieval que, após sangrentas batalhas, dá de cara com um portal e, ao atravessá-lo, vem parar nos dias de hoje. Recepcionado por um morador de rua, surge, desse encontro, uma sólida amizade pautada por perdas e luto. Em linhas gerais, esse é o enredo de Beserker Unbound, primeira história em quadrinhos lançada pelo pa- raibano Mike Deodato após o fim do contrato dele com a Marvel. O desenho que ilustra esta página é do guerreiro e regis- tra o traço atual do desenhista nascido em Campina Grande em 23 de maio de 1963 sob o nome de Deodato Taumaturgo Borges Filho, filho do jornalista, radialista e ilustrador Deo- dato Borges, criador da seminal HQ paraibana As Aventuras do Flama. Portanto, não foi por acaso que Deodato Filho deu seus primeiros passos no universo da arte sequencial ainda na adolescência, quando lançou seu primeiro quadrinho, O Ninja. No início dos anos 1990, o ilustrador paraibano começou a desenhar para o mercado norte- -americano, onde permanece inserido até hoje como um dos grandes nomes do universo dos super-herois, fama que ganhou a partir do seu notável trabalho com a Marvel, casa que o abrigou por aproximadamente 25 anos. Em nova fase, iniciada em meados de 2019, Milke Deodato trilha o caminho autoral, lançan- do títulos independentes com roteiristas igualmente renomados (Beserker Unbound tem roteiro do canadense Jeff Lemire) e outros com a recém-criada editora norte-americana AWA, previs- tos para sair a partir de 2020.

| João Pessoa, janeiro de 2020 42 Correio das Artes – A UNIÃO 126