Realidade, 1966-1968
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REALIDADE, 1966-1968 tempo da reportagem na imprensa brasileira J. S. Faro 2 Minhas filhas, Paula e Patrícia Todas as lembranças Rose 3 SUMÁRIO Apresentação 04 Jornalistas, intelectuais e realidade 06 Comunicação e produção cultural: horizontes da práxis jornalística 12 A conjuntura político-cultural: 1966-1968 31 O desafio: um novo jornalismo ou um novo texto? 50 A imprensa e o projeto Realidade 57 Visões da realidade: 1966-1968 90 O eixo da ordem conservadora: visões da família 93 O eixo da ordem familiar: visões da mulher 107 Visões do jovem: a ordem ameaçada? 119 Visões da Igreja e da religião: a unidade partida 129 Visões do Brasil: a política, a economia, a sociedade 146 Visões do mundo 182 Visões do cotidiano: o roteiro da cultura 201 Informação científica, educação e cotidiano 211 Vida urbana: complexidade e violência 223 Mitos 232 Conclusão: visões da imprensa e de si mesma 239 Bibliografia 248 4 APRESENTAÇÃO A revista Realidade é um marco na história do jornalismo brasileiro. Sob qualquer ângulo que possa ser estudada, a publicação da Editora Abril, lançada em 1966 e produzida durante 10 anos consecutivos, representa para os profissionais da imprensa e para os estudiosos da vida cultural brasileira um momento obrigatório de referência, tanto pela abrangência dos temas que reportou como pela forma como o fez. Este livro procura explicar parte das razões que respondem por essa importância, especificamente no período de 1966 a 1968, momento em que se desenham e se consolidam os traços principais da produção da revista e com os quais seu projeto se caracterizou historicamente. A rigor, foi em razão do perfil que Realidade adquiriu nesses três primeiros anos de sua existência que se definiu seu papel no conjunto da produção jornalística nacional. Invariavelmente, quando Realidade é citada como uma experiência excepcional no conjunto da imprensa brasileira, é a esse período que se refere, sem prejuízo de que a revista tenha mantido várias de suas marcas nos anos que se estendem de 1969 a 1976. Mas naqueles três primeiros anos, no entanto, convergiram para o êxito da revista elementos conjunturais que, como se pretende demonstrar, situavam-se fora do campo específico da produção jornalística. Esta é a hipótese central deste trabalho. A revista Realidade é encarada aqui como um modelo de vinculação entre a produção do texto jornalístico e o conjunto das manifestações políticas e culturais vividas no período estudado, no Brasil e no exterior. Isto é, o caráter verticalizado adquirido pelas reportagens de Realidade guardou estreita relação com o discurso transgressor produzido em meados dos anos 60 e que abarcou, em sua formulação, a ordem dos valores burgueses conservadores, a ordem do Estado e a ordem da estrutura social. No desvendamento dessa hipótese, este trabalho opera com um conjunto complexo de variáveis: as relações entre os intelectuais brasileiros e a configuração do Estado autoritário no período posterior a 1964; as relações entre os jornalistas e o movimento de contestação à ordem autoritária gerado por essa intelectualidade; as relações entre os jornalistas e a Indústria Cultural; as relações de identidade entre o sentido da transgressão e o desenvolvimento acelerado da sociedade urbano-industrial brasileira, com a consequente emergência de segmentos modernos que escaparam, em meados dos anos 60, à consolidação da ordem conservadora. Realidade deu vida textual a esse conjunto de problemas. A leitura das reportagens que publicou permite identificar um sentido hegemonicamente revelador na investigação jornalística que conduzia sua produção para além dos limites da linguagem convencional da imprensa: no confronto com a materialidade das questões que seus profissionais abordaram, os recursos discursivos da revista resvalaram para formas literárias e ficcionais de narrativa que ampliaram sua penetração junto ao público leitor, transformando-a numa fonte de conhecimento e de disseminação dos novos padrões culturais da época em que existiu. 5 A revista, portanto, estabeleceu um profundo vínculo com o social, no seu mais amplo sentido. E nem se poderia justificar de outra forma essa espécie de paradigma em que ela se tornou para todos os que analisam a imprensa brasileira, seu desenvolvimento, suas características principais. Esse papel referencial que Realidade adquiriu, no entanto, não se restringe ao interesse acadêmico ou profissional. É mais que isso. Realidade partilhou com seu público os significados de uma época; permitiu que a informação ganhasse uma perspectiva globalizadora e se tornasse, ela própria, uma categoria de análise do cotidiano. Aqueles que imaginavam estar vivendo o amadurecimento político e os desafios existenciais na década de 60 sentiram isso em cada número da revista, inclusive o autor do livro. Certamente por isso, em incontáveis momentos do desenvolvimento deste trabalho, a perspectiva analítica se confunde com o entusiasmo - às vezes entristecido - da memória. É um risco que correm todos que se dispõem a reconstituir o passado recente da vida brasileira. De qualquer forma, o desafio não teria sido enfrentado sem o apoio de um número indeterminado de pessoas, especialmente do Prof. Dr. José Marques de Melo, permanente animador de vários projetos e orientador da tese de doutorado que deu origem a este livro. São Paulo, junho de 1998 6 INTRODUÇÃO JORNALISTAS, INTELECTUAIS E REALIDADE No período posterior a 1964, a imprensa brasileira, em suas manifestações mais sensíveis para a realidade nacional, especificamente sob o gênero jornalístico da reportagem, pautou parte significativa de sua produção em relação ao movimento pelo qual se norteavam as demais manifestações artístico-culturais promovidas no país. É possível identificar um discurso libertário e contestador, comum às produções mais consequentes da cultura brasileira, isto é, àquelas que identificaram no Estado autoritário e nas deformações sociais do modelo econômico modernizador e concentrador da renda (que então se implantava no país) a fonte de sua inspiração poética, dramatúrgica, literária e... jornalística. A rigor, essa fonte de inspiração, que se estendeu por toda a produção cultural, respondeu pela marca "de esquerda" das manifestações artístico-culturais, predominantemente “engajadas” e “militantes”. Esse traço de homogeneidade da vida cultural brasileira, a partir de meados dos anos 60, contudo, não era novo. Era mesmo uma característica estrutural da formação dos intelectuais brasileiros, possível de ser identificada historicamente nas obras e nos movimentos que marcaram sua atividade: momentos da vida artístico-cultural do país em que imperou essa tradição que se formou ao longo da história nacional. Esse realismo - entendido aqui como um fenômeno denunciador das mazelas sociais e políticas do país, e não simplesmente como um estilo literário ou uma corrente estética - é visto, assim, como a marca por excelência da produção cultural brasileira1. O entendimento desse processo, no entanto, remete à questão da formação do intelectual, vista aqui como uma categoria social específica, cuja obra transcende seu lugar de classe e, no caso dos jornalistas, os limites estruturais da Indústria Cultural. Trata-se, evidentemente, de dois problemas que se interpenetram e que remetem, ambos, ao conceito de hegemonia, recorrente nos estudos da Comunicação Social que abrangem o período analisado neste livro. Em primeiro lugar, porque tanto para as questões que envolvem a produção artístico-cultural como para aquelas que dizem respeito à produção jornalística, o problema da democratização do Estado brasileiro surgia como o eixo em torno do qual essa produção era referida. Em segundo lugar, porque, paralelamente à questão institucional, colocava-se para toda a intelectualidade brasileira o processo de concentração dos meios de comunicação que crescia em suas feições de um complexo político-ideológico que reforçava as características do Estado autoritário. 1 Em apoio a essa interpretação, Antonio Cândido define a literatura brasileira como “eminentemente interessada”, numa tradução da permanente preocupação de seus autores com a “construção duma cultura válida no país”. Diz o autor de Literatura e Sociedade: “A literatura do Brasil, como a de outros países latino-americanos, é marcada por esse compromisso com a vida nacional no seu conjunto, circunstância que inexiste nas literaturas dos países de velha cultura” (Formação da Literatura Brasileira, vol I. Belo Horizonte, Editora Itatiaia, 1975. Pág. 18. Grifos nossos). Ver também a antologia organizada por Carlos Nelson Coutinho, Realismo e Anti-Realismo na Literatura Brasileira. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1974. 7 Em outras palavras, o entendimento da formação do intelectual no Brasil e das linhas principais de elaboração de sua produção se dá no âmbito desse duplo limite representado pelo Estado e pela Indústria Cultural, que tanto remete à (re)leitura dos teóricos da Escola de Frankfurt como aos conceitos de Antonio Gramsci. A indagação decorrente disso é aquela que questiona o grau de autonomia do intelectual frente ao aparelho de Estado e frente à Indústria Cultural. De outra forma: o realismo, nos limites em que é referido aqui, somente pode ser identificado como traço hegemônico da produção cultural brasileira em contrapartida ao conceito de cooptação, isto é, como superação das formas concretas ou abstratas de submissão do trabalho intelectual aos interesses do Estado (da sociedade política propriamente) e da Indústria Cultural. E a história da cultura brasileira indica essa dupla