Julia Massucheti Tomasi

“SANTINHAS DO ITACORUBI”: HISTÓRIA E MEMÓRIA DAS MILAGREIRAS DO CEMITÉRIO SÃO FRANCISCO DE ASSIS/ITACORUBI, FLORIANÓPOLIS (1980-2016)

Tese submetida ao Programa de Pós- Graduação de História, da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do Grau de Doutora em História. Orientador: Prof. Dr. Artur Cesar Isaia

Florianópolis 2017

Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor através do Programa de Geração Automática da Biblioteca Universitária da UFSC.

Julia Massucheti Tomasi

“SANTINHAS DO ITACORUBI”: HISTÓRIA E MEMÓRIA DAS MILAGREIRAS DO CEMITÉRIO SÃO FRANCISCO DE ASSIS/ITACORUBI, FLORIANÓPOLIS (1980-2016)

Esta Tese foi julgada adequada para obtenção do Título de Doutora em História e aprovada em sua forma final pelo Programa de Pós-graduação em História.

Florianópolis, 16 de Maio de 2017.

______Profa. Dra. Beatriz Gallotti Mamigonian Coordenadora do Curso

Banca Examinadora:

Orientador: ______Prof. Dr. Artur Cesar Isaia PGHST/UFSC Membros:

______Profa. Dra. Maria Teresa Santos Profa. Dra. Marta Borin Cunha PPGH/UFSM PPGH/UDESC

______Profa. Dra. Aline Dias da Silveira Profa. Dra. Cristiana Tramonte PGHST/UFSC PGHST/UFSC

______Prof. Dr. Marcos Fabio Freire Montysuma PGHST/UFSC)

Dedico este trabalho à Vida Machado e às irmãs Rosemary e Jane Koerich, as milagreiras desta pesquisa.

AGRADECIMENTOS

Familiares, amigos, colegas, professores e entrevistados. Sem vocês, nada seria possível. Nenhuma pesquisa seria realizada e nenhuma linha desta tese seria escrita. Agradeço de modo especial a cada um de vocês, que fizeram parte dos meus últimos quatro anos, auxiliando em cada dificuldade, etapas, crescimento e conquistas. Primeiramente, gostaria de agradecer a ela, a melhor entre as melhores. Minha mãe. Há vinte anos, sua dupla função de pai e mãe é incrivelmente cumprida e lindamente “preenchida”. Você fez e faz cada etapa valer a pena. Desde a graduação, quando decidi pesquisar a morte e os mortos, você sempre me apoiou e vibrou por cada conquista. Seja lendo meus trabalhos ou ouvindo minhas inquietações e paixões acadêmicas interditas, você sempre esteve presente. Espero que possamos conquistar sempre mais conhecimento, sorrisos e vibrações unidas. Obrigada por seres sempre a melhor, a mais completa, a mais querida, a mais iluminada e a mais especial. Você é um pai, uma mãe, a melhor amiga e minha sempre confidente. Agradeço a você, pai. Apenas dez anos ao seu lado, mas de lindas e eternas lembranças. Vinte anos já se passaram sem tê-lo, mas saiba que fazes imensa falta nas nossas vidas, nos nossos corações. Meu eterno pai e amigo, você não pôde ser pai de filhos adolescentes, adultos e formados, seu grande sonho. Ou mesmo ser avô. Mas, a mãe tem aproveitado e desfrutado de cada etapa, por vocês dois, “juntos”. Compreender a morte e o morrer se deve a sua falta, a sua ausência, a dor da sua perda. Hoje a compreendo perfeitamente bem e o trauma se foi, ficando apenas as boas memórias e a eterna saudade. E as carregarei para todo o sempre. Obrigada por me guiar todos os dias, em cada passo, em cada etapa! Aos meus irmãos, Nanda e Léo. Nanda, irmã mais velha e mãe atenta, educadora, atenciosa e perspicaz. Tenho imenso orgulho do que és, do que você sempre foi. Apesar de gritares absurdamente, o que me deixa enlouquecida, tenha certeza que eles, os gritos, ajudaram na tese. Siga sempre em frente, com seu coração, com sua determinação. Léo, meu irmão querido, amado, lindo e de dimensões de um ogro. Você me faz lembrar que a vida é doce e leve quando estou ao seu lado. Tenho imenso orgulho de ser sua irmã, a eterna irmã de louça, irmã caçula. Ao Jorge, meu cunhado atleta e atento. Obrigada pela parceria nas corridas. Fizeram-se muito bem nesta linda e agitada etapa da vida. A Jamily, a cunha mais linda e incrível que poderia ganhar. Mais do que uma cunhada, és uma amiga, uma irmã. Que seus caminhos sejam sempre lindos, brilhantes e eternos. Aos nossos pequenos tesouros, Arthur e Liz. Arthur, o sobrinho mais velho e que velho. Cinco anos ao seu lado, de aprendizados, sorrisos, afetos e companheirismo. Que a vida sempre te dê muita luz e sapiência, nosso menino afetuoso e atento. À Liz, nossa pequena menina, simpática e linda. Nossos dias são mais felizes ao seu lado e as linhas desta tese ganharam mais “sorrisos” quando te viam. Linda e atenta, que tenhas sempre muito sucesso e felicidade na sua vida. Ao Thiago, o querido Thi do IEE, da locadora, de Santo Antônio! Após quinze anos, do breve encantamento no ensino médio, nas aulas e corredores do Instituto Estadual de Educação, a vida me surpreendeu te reencontrando. Em um ano, vivemos “dias de luta, dias de glória”. Foram lindas e prazerosas segundas e depois domingos de amizade, companheirismo, cumplicidade, afetos e sorrisos. Santo Antônio de Lisboa, que já era um bairro lindo, se tornou o mais lindo. E com você e por você as notas de um baixo se fizeram mais apaixonantes que as de um violão. Com você, acordar diariamente, sorrir e amar cada detalhe, cada momento, vale mais que tudo: “Às vezes o que eu vejo quase ninguém vê...E eu sei que você sabe quase sem querer...Que eu vejo o mesmo que você.” As duas alegrias e felicidades que o doutorado me proporcionou. Valdirene (a Val), da Paraíba e Carol, da Bahia. Se já amava o nordeste, passei a amar ainda mais. Floripa sente imensa falta de vocês, mas sei que teremos o mundo de oportunidades para viajar e desfrutar. Que nossos caminhos sempre se cruzem, seja através da história, da amizade ou do companheirismo. Sucesso imenso para as duas, além de muito amor, paz e luz intelectual. Agradeço também aos demais colegas do doutorado, com quem pude desfrutar das discussões nas disciplinas e bares no decorrer do ano de 2013, em especial ao Mauro, Daniela, Ricardo, Thiago, Sol, Viviane, Sabrina e Alejandra. Aos amigos que a vida carinhosamente me proporcionou. À Elisiana (Elis), minha eterna amiga, além, é claro, de ser meu guia da morte. Sinto saudades de nossas pesquisas de campo, fotografando e registrando nossos cemitérios, além dos trabalhos laboratoriais, sempre divertidos e instigantes. Você mora no meu coração, eterna amiga e irmã. À Lara, amiga que conheci no mestrado e que se tornou amiga para todo o sempre. Desejo-lhe todo o sucesso e que possamos viajar e beber muito nesta vida. À Beatriz e Karine, as amigas pedagogas que fizeram meus últimos anos bem divertidos. Com vocês, sorri muito e espero continuar ao lado das duas para todo o sempre. Obrigada, meninas! Ao Reges e a Patty, os dois alemães da FAED, da história. Sete anos de formados, sete anos de saudade, sete anos de velhice e de “rugas” da profissão. Espero que a vida nunca nos separe e se encarregue de termos muitos dias de chopp, churros e alegrias do “trio histórico”. Aos professores que foram membros da banca de qualificação: Maria Teresa Santos Cunha e Cristiana Tramonte. Agradeço pelas ótimas contribuições e encaminhamentos. De modo especial à professora Maria Teresa, que sempre acompanhou e colaborou com a minha formação e trajetória acadêmica, participando das bancas da graduação, mestrado e agora doutorado. Muito obrigada pela atenção e carinho de sempre! Agradeço igualmente ao professor Lourival Andrade Júnior, pelas conversas em eventos e meios virtuais, sempre me motivando e encantando com o tema da morte e dos mortos. Saiba que foi você, no ano de 2007, na segunda fase do curso de história, com sua palestra sobre a Cigana Sebinca, que me encantou com o tema e me fez pesquisá-lo incessantemente e apaixonadamente. E ao meu querido orientador Artur, pela confiança, parceria, cumplicidade e aceitação. Espero que possamos trabalhar juntos em muitas outras oportunidades. Agradeço também de modo imensamente especial à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (CAPES) pelos quatro anos de bolsa, possibilitando que esta pesquisa se concretizasse. Agradeço de forma particular às vozes desta pesquisa. Aos entrevistados que deram voz, alma e corpo ao trabalho. Aos coveiros do cemitério do Itacorubi, Enio Vilpert e João Ferreira de Lima, pela atenção e simpatia em cada visita cemiterial e por me concederam seus depoimentos. Aos devotos e familiares das milagreiras: Othilia de Carvalho Cardoso, Rosa Francisca Dionisio, Laura Celma Idalino, Maria Aparecida da Fonseca Luz, Cecília Maria dos Santos Machado, Cely Cortes Galotti Peixoto e Feliciana Santana. Sem vocês, as etapas seriam incertas, falhas e sem significado. Por fim, gostaria de agradecer imensamente aos pais das milagreiras deste trabalho. Ao senhor Antônio Obet Koerich, pai das irmãs Koerich, que me recebeu algumas vezes em seu escritório, me concedendo uma entrevista e abrindo seu arquivo pessoal. E a Nilson Nelson Machado (Duduco), pai da milagreira Vida Machado, que me recebeu carinhosamente em sua casa, colaborando imensamente com a pesquisa através de seu depoimento e das centenas de documentos que me disponibilizou através de seu arquivo pessoal.

Para a história cultural, portanto, a invenção do acontecimento histórico, de qualquer objeto ou sujeito da história, se dá no presente, mesmo quando analisa as várias camadas de discurso que o constituíram ao longo do tempo, pois esta historiografia é atravessada pelos tropos da ironia que traz a participação do discurso do historiador na construção da realidade que narra para o centro da reflexão. (Durval Muniz de Albuquerque Junior, 2007)

A morte, para o homem, está no tecido do seu mundo, de seu ser, de seu espírito, de seu passado, de seu futuro.

(Edgar Morin, 1997)

RESUMO

Este trabalho, intitulado “‘Santinhas do Itacorubi’: história e memória das milagreiras do cemitério São Francisco de Assis/Itacorubi, Florianópolis (1980-2016)” procura analisar e compreender as devoções à Vida Machado e às irmãs Rosemary Furtado Koerich Noceti e Jane Furtado Koerich, as três milagreiras do cemitério do Itacorubi, por meio de fontes orais, escritas e imagéticas. Para tanto, são apresentadas suas histórias de vida, como suas características pessoais, envolvimentos religiosos e relações familiares, além de refletir como ocorreram suas mortes e explorar suas memórias e seu post mortem, salientando-se o espaço devocional de seus túmulos. Uma das principais propostas deste trabalho é analisar a história do culto aos mortos e dos santos canonizados pela Igreja Católica e dos milagreiros dos cemitérios brasileiros, com ênfase nos “santinhos de cemitério” do estado de Santa Catarina. Além disso, o trabalho procurou abordar as histórias de vida e morte das irmãs Koerich, dando-se especial atenção ao acidente aéreo que as vitimou e as mensagens psicografadas enviadas por elas. Do mesmo modo, foram exploradas as histórias de Vida Machado, desde a sua adoção, os longos anos de doença e sua morte, com apenas nove anos de idade. Outro tema fundamental contemplado na pesquisa foi a análise dos túmulos das milagreiras, seus espaços de devoções e oferendas, além das memórias e dos testemunhos dos devotos e familiares que permeiam a devoção das três milagreiras do cemitério do Itacorubi, o que acaba reconhecendo e consequentemente legitimando os poderes de milagreiras por meio destes relatos. São entrevistas, vozes, fotografias, psicografias, jornais e pesquisas de campo nos cemitérios que dão corpo e alma ao trabalho, englobando este trabalho vertentes e aspectos da vida, morte, post-mortem e memória das três “santinhas” do Cemitério do Itacorubi.

Palavras-chave: Milagreiros de cemitério. Morte. Cemitério.

ABSTRACT

This task, entitled "Santinhas do Itacorubi": history and memory about the miracle workers of the São Francisco de Assis / Itacorubi cemetery, Florianópolis (1980-2016)” seeks to analyze and understand devotions to Vida Machado and his sisters Rosemary Furtado Koerich Noceti and Jane Furtado Koerich, three miracle workers of the Itacorubi cemetery, through oral, written and imaginary sources. Therefore, their life stories are presented, such as their personal characteristics, religious involvements and family relationships, as well as think about how their deaths occurred and to explore their memories and their post mortem, pointing out the devotional space of their graves. One of the most important proposals about this work is to analyze the history about the whorship of the dead and canonized by the and the miracle workers of Brazilian cemeteries, emphasizing "cemetery saints" of Santa Catarina state. Besides that, the task tried to approach the life and death stories of the Koerich sisters, getting particular attention to the air crash that victimized them and the psychographical messages sent by them. In the same way, the story of Vida Machado, since his adoption, the long years of disease and his death, with only nine years old were explored. Another contemplated key subject in this research was the analysis of the miracle tombs, their devotional spaces and offerings, besides memories and testimonies of the devotees and their families that permeate the devotion of the three miracle workers of the Itacorubi cemetery, that recognizes and consequently legitimizes her power through these stories. Interviews, voices, photos, psychographies, newspapers and field surveys in the cemeteries are very important to this task, that englobes life aspects, death, post-mortem and memory about the three "saints" of the Itacorubi Cemetery.

Keywords: Cemetery miracle workers. Death. Cemetery.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Imagem 1 – Túmulos das milagreiras Vida Machado e irmãs Koerich. 25 Imagem 2 – Cemitério do Itacorubi no dia de Finados nos anos de 2014 e 2016...... 40 Imagem 3 – Iconografia dos santos brasileiros...... 50 Imagem 4 – Sepultura de Santo Antônio de Sant'Anna Galvão...... 52 Imagem 5 – Cemitério do Itacorubi entre os prédios e avenidas...... 63 Imagem 6 – Cemitério Parque Jardim da Paz de Florianópolis ...... 67 Imagem 7 – Túmulos de crianças milagreiras de cemitério...... 77 Imagem 8 – Prostitutas milagreiras de cemitérios...... 84 Imagem 9 – Túmulos de mulheres milagreiras de cemitérios...... 89 Imagem 10 – Casos de milagreiros de cemitérios...... 99 Imagem 11 – Milagreira Maria Joana dos Santos em São Miguel do Oeste (SC)...... 101 Imagem 12 – Milagreira Vitória Salete Nunes em Chapecó (SC)...... 103 Imagem 13 – Sepultura de Frei Bruno em Joaçaba (SC)...... 106 Imagem 14 – Estátua do Frei Bruno em Joaçaba (SC)...... 108 Imagem 15 – Cemitério Cruz das Almas e sepultura dos Irmãos Canozzi em Lages (SC)...... 110 Imagem 16 – Túmulo de Cigana Sebinca Christo em Lages (SC)...... 112 Imagem 17 – Reportagem sobre os milagreiros de Lages...... 114 Imagem 18 – Placas de ex-votos de milagreiro de Capão Alto (SC). . 115 Imagem 19 – Reportagem sobre adoração a Frei Fulgêncio...... 117 Imagem 20 – Lembrancinhas de morte do milagreiro Padre Agenor e sua lápide no cemitério Municipal de Urussanga (SC)...... 118 Imagem 21 - Fotografia de Jane Furtado Koerich...... 122 Imagem 22 - Fotografia de Rosemary Furtado Koerich Noceti...... 122 Imagem 23 - Lista dos passageiros do Boeing 727 da Transbrasil ..... 129 Imagem 24 - Lista dos passageiros do Boeing 727 da Transbrasil ..... 129 Imagem 25 – Remoção dos corpos do local do acidente...... 130 Imagem 26 – Imagens do acidente publicadas pelo jornal O Estado. . 132 Imagem 27 - Caixões no IML...... 136 Imagem 28 - Caixões no IML...... 136 Imagem 29 – Enterro das irmãs Koerich...... 138 Imagem 30 – Invasão dos populares no local do acidente e saques de objetos...... 141 Imagem 31 – Populares no local do acidente semanas após o desastre...... 143 Imagem 32 – Notas de pesar e convites para missas de sétimo dia publicados no jornal O Estado...... 144 Imagem 33 – As causas do acidente aéreo...... 147 Imagem 34 – Edição comemorativa do Jornal O Estado...... 150 Imagem 35 – Primeira mensagem psicografada de Jane Furtado Koerich...... 152 Imagem 36 – Mensagem de Jane Furtado Koerich publicada no Jornal O Estado...... 154 Imagem 37 – Segunda mensagem psicografada de Jane Furtado Koerich...... 157 Imagem 38 – Capas dos livros “E o Amor Continua”, “Porto de Alegria” e “Vitória da vida”...... 164 Imagem 39 – Feirinha de frutas realizada por Nilson Nelson Machado no ano de 1987...... 167 Imagem 40 – Construção do novo prédio da creche do Duduco no ano de 1998...... 167 Imagem 41 – Crianças em frente à creche do Duduco...... 168 Imagem 42 –Filhos do Duduco no desfile de Sete de Setembro na década de 1990...... 169 Imagem 43 - Vida Machado e suas ligações afetivas (destaque com flecha em vermelho)...... 174 Imagem 44 – Duduco e seus filhos vestidos para a Procissão do Senhor dos Passos, com destaque para a Vida Machado à frente, segurando uma vela...... 176 Imagem 45 – Vida Machado sentada a frente da imagem do Senhor dos Passos ...... 176 Imagem 46 – Festas de aniversário de Vida Machado de dois e oito anos...... 178 Imagem 47 – Dois dos vestidos utilizados por Vida Machado em sua festa de aniversário de quinze anos...... 180 Imagem 48 – Duduco e seus filhos subindo a escadaria do Santuário de Nossa Senhora da Penha, no Rio de Janeiro...... 182 Imagem 49 – Duduco na sepultura de Padre Reus, em São Leopoldo. 182 Imagem 50 – Duduco e seus filhos na sepultura de Odetinha, no Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro...... 184 Imagem 51 – Mapa com o trajeto do cortejo fúnebre de Vida Machado...... 187 Imagem 52 – Fotografias da sepultura de Vida Machado, com destaque para as duas esculturas...... 189 Imagem 54 – Reportagem do Jornal A Notícia destacando o túmulo enfeitado de Vida Machado no ano de 2005...... 192 Imagem 55 – Reportagem do Jornal Diário Catarinense destacando o túmulo enfeitado de Vida Machado no ano de 2006...... 193 Imagem 56 – Antigo cemitério Público durante a construção da Ponte Hercílio Luz...... 197 Imagem 57 – Cemitério São Francisco de Assis...... 200 Imagem 58 – Cemitério São Francisco de Assis durante os dias de Finados...... 204 Imagem 59 – Sepultura das irmãs Koerich no Dia de Finados do ano de 2014...... 207 Imagem 60 – Placas de ex-votos na sepultura das irmãs Koerich...... 211 Imagem 61 – Placas de ex-votos na sepultura de Vida...... 215 Imagem 62 – Oferendas deixadas no túmulo de Vida...... 219 Imagem 63 – Ritos presentes no túmulo de Vida...... 222 Imagem 64 – Bilhetes deixados no túmulo de Vida...... 222 Imagem 66 – Reportagens de jornal sobre a devoção à Vida Machado...... 241 Imagem 67 – Quadros de reportagens sobre Vida...... 244

SUMÁRIO

INTRODUCÃO: ENTRE CEMITÉRIOS, SEPULTURAS, DEVOÇÕES E PLACAS DE EX-VOTOS...... 23 1 DO SANTUÁRIO AO TÚMULO: SANTOS CANONIZADOS E MILAGREIROS DE CEMITÉRIO...... 37 1.1 DEVOÇÃO E PEREGRINAÇÃO: HISTÓRIA DOS SANTOS CANONIZADOS E DOS MILAGREIROS DE CEMITÉRIO...... 37 1.3 MARIA DEGOLADA, ODETINHA E AS 13 ALMAS BENDITAS: OS MILAGREIROS DOS CEMITÉRIOS BRASILEIROS...... 68 1.4 DO OESTE AO LITORAL: OS MILAGREIROS DO ESTADO DE SANTA CATARINA...... 100 2 HISTÓRIAS DE VIDA, MORTE E POST-MORTEM DAS IRMÃS ROSEMARY E JANE KOERICH...... 120 2.1 “ROSEMARY, RONALDO, JANE E SÉRGIO. ASSIM ERA NOSSA FAMÍLIA, NOSSOS FILHOS, NOSSAS VIDAS”: A BREVE HISTÓRIA DE VIDA DAS IRMÃS KOERICH...... 120 2.2 “A TRAGÉDIA QUE ABALOU O ESTADO”: O ACIDENTE DO BOEING 727 DA TRANSBRASIL NO MORRO DA VIRGÍNIA NO DIA 12 DE ABRIL DE 1980...... 126 2.3 “NO PRÓPRIO VOO INTERROMPIDO”: AS MENSAGENS PSICOGRAFADAS DAS IRMÃS KOERICH...... 151 3 “VIDA MACHADO: VIVA PARA DIZER O QUE É A VIDA”: BREVE BIOGRAFIA DA MENINA MILAGREIRA...... 166 3.1 A CRECHE DO DUDUCO...... 166 3.2 DA CRECHE AO HOSPITAL: OS DOIS LARES PARA A “VIDA”...... 169 3.3 UMA DÉCADA DE “VIDA”: ENTRE SONHOS, LUTAS, BUSCAS DE CURA, FESTAS E ESPERANÇA...... 173 4 ESPAÇO DE DEVOÇÕES E OFERENDAS: OS TÚMULOS DAS MILAGREIRAS DO CEMITÉRIO DO ITACORUBI...... 197 4.1 CEMITÉRIO MUNICIPAL SÃO FRANCISCO DE ASSIS: QUASE UM SÉCULO DE HISTÓRIA...... 197 4.2 COM VISITAS AO CEMITÉRIO E PLACAS DE EX-VOTOS: O POST MORTEM DAS IRMÃS KOERICH...... 206 4.3 COM BILHETES, PLACAS E DEVOÇÕES: O CULTO AO TÚMULO DE VIDA MACHADO, A MENINA MILAGREIRA...... 213 5 MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E SILENCIAMENTO...... 225 5.1 DOS ESQUECIMENTOS AO LUTO TRAUMÁTICO: A CULTURA DA MEMÓRIA NO FINAL DO SÉCULO XX E INÍCIO DO XXI...... 225 5.2 MEMÓRIAS DAS MILAGREIRAS DO ITACORUBI: DOS JORNAIS AOS RELATOS...... 241 CONSIDERAÇÕES FINAIS: CONCLUINDO AS LAUDAS ATRAVÉS DAS MILAGREIRAS E SEUS TÚMULOS...... 252 REFERÊNCIAS...... 258

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INTRODUCÃO: ENTRE CEMITÉRIOS, SEPULTURAS, DEVOÇÕES E PLACAS DE EX-VOTOS

Mortos milagrosos são, portanto, mortos públicos, e disso a quantidade e constância das visitas que se sucedem ao longo do dia, e desde as vésperas de Finados, já dão uma pista. O burburinho em torno de seu túmulo aponta para isso: eles são mortos que dizem respeito a todos: aos que lhes se devotam, aos que neles crêem (em seus milagres) sem se comprometer diretamente com algum pedido, aos que lhes prestam culto funerário por piedade cristã, por solidariedade, chamando a si o cuidado do morto, àqueles apenas são curiosos e atraídos pela boa conversa em torno do túmulo e até aos que lhe são antipáticos, hostis.1

Mortes trágicas e brutais, como assassinatos, linchamentos, estupros, acidentes (como os atropelamentos e incidentes automobilísticos e aéreos), suicídios, espancamentos ou doenças que acompanhem a pessoa durante todos os dias de sua vida. Estes são alguns dos tipos de mortes dos milagreiros dos cemitérios brasileiros, os mortos públicos, conforme destaca acima Eliane Tânia Freitas. Tais mortes acabam se tornando uma forma de justificar a crença dos devotos, além de qualificarem as graças alcançadas. Apesar da imensidão que circunda suas mortes, a crueldade e o sofrimento costumam aproximar-lhes. As unidades tumulares onde estão sepultados os restos mortais dos milagreiros são geralmente, os únicos espaços de devoção e peregrinação dos devotos. Sejam em regiões rurais ou urbanas das cidades brasileiras, os devotos visitam as sepulturas e lá fazem seus pedidos, intercessões e deixam seus presentes e oferendas aos milagreiros, como flores, velas, objetos pessoais e alimentos como forma de agradecimentos, além das placas de ex-voto.

1 FREITAS, Eliane Tânia. As Vidas e as Mortes de Jararaca: Narrações de uma Devoção Popular no Nordeste Brasileiro. In: Revista de Estudos da Religião – REVER. v. 3, n. 3, 2007. Disponível em: . Acesso em: 14 set. 2016, p. 8. 24

Visitar o túmulo de Vida Machado e rezar uma “Ave Maria” e um “Anjo da guarda”, acender velas, colocar uma placa de ex-voto como forma de agradecimento por graças alcançadas, deixar sobre o túmulo um bilhete com pedidos e agradecimentos, enfeitar a sepultura com vasos e coroas de flores naturais e artificiais, oferecer doces, como balas, bolachas e pirulitos ou somente conversar e pedir conselhos a menina milagreira do Cemitério Municipal São Francisco de Assis, popularmente conhecido como Cemitério do Itacorubi. Estes são alguns dos inúmeros cultos, rituais e relações que os fiéis estabelecem com as milagreiras do Itacorubi. Intercedidos por pessoas das mais variadas classes sociais e religiões, os devotos estabelecem e sustentam uma relação afetiva e de confiança com seus “santinhos” de cemitério. Neste trabalho, serão estudadas as histórias de vida, morte, post mortem e memória das três milagreiras da cidade de Florianópolis, sepultadas no cemitério do Itacorubi, o cemitério público mais antigo da cidade. Foi inaugurado no ano de 1925 e destaca-se pelas dimensões, sendo o maior de Florianópolis e um dos maiores do estado de Santa Catarina. Falecidas em períodos distintos, as irmãs Rosemary Furtado Koerich Noceti e Jane Furtado Koerich morreram no acidente aéreo do Boeing 727 da Transbrasil no morro da Virgínia, em Florianópolis, no ano de 1980, enquanto que Vida Machado faleceu no ano de 2002, no Hospital Infantil Joana de Gusmão, em Florianópolis, com apenas nove anos de idade, vítima do vírus HIV. Alguns meses após serem enterradas, suas unidades tumulares começaram a ser visitadas e procuradas pelos devotos que lá rezam, agradecem, pedem graças e deixam oferendas e rituais para as suas milagreiras. São pedidos de saúde, econômicos, emprego, amorosos e aprovações escolares, em concursos e vestibulares que levam os fiéis aos túmulos das três milagreiras do Itacorubi, seu único espaço devocional. Suas sepulturas se tornaram locais de encontro dos devotos, sobretudo, nos dias de Finados, além de espaços de ritualização, peregrinação, comoção, práticas e orações. São velas derretidas e queimadas, dezenas de placas de ex-votos, bilhetes expostos, uma imensidão de arranjos de flores naturais e artificiais que dá cor e vida ao túmulo, doces oferendados, muitas vezes abertos ou mastigados pelos próprios devotos, que fazem seus túmulos (Imagem 1) se destacarem entre os milhares existentes no cemitério do Itacorubi. Enfim, são cheiros, olhares, práticas, linguagens e emoções que conectam devotos e milagreiros através de suas sepulturas.

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Imagem 1 – Túmulos das milagreiras Vida Machado e irmãs Koerich.

Fonte: Acervo pessoal da autora, 2012 e 2016.

Resumidamente, como bem ressalta o historiador Lourival Andrade Júnior2, analisar “a religiosidade não-oficial no Brasil é um exercício de desprendimento das racionalidades e um mergulho num

2 ANDRADE JÚNIOR, Lourival. Da barraca ao túmulo: Cigana Sebinca Christo e as construções de uma devoção. 2008. 292 p. Tese (Doutorado em História) - Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2008, p. 102. 26 mundo de imagens, sons, cheiros e devoções marcadas pela emoção e pela entrega.” Procura-se então analisar e compreender através deste trabalho, por meio das fontes orais, escritas e imagéticas, as devoções à Vida Machado e às irmãs Rosemary Furtado Koerich Noceti e Jane Furtado Koerich, as três milagreiras do cemitério do Itacorubi. Para tanto, é importante observar suas histórias de vida, como suas características, envolvimentos religiosos, personalidades e relações familiares, além de refletir como ocorreram suas mortes e explorar suas memórias e seu post mortem, destacando-se o espaço devocional de seus túmulos. Dentre as fontes orais, foram realizadas entrevistas com familiares das três milagreiras, com especial atenção às entrevistas de Nilson Nelson Machado3 (popularmente conhecido na cidade de Florianópolis como Duduco4), pai de Vida Machado e Antônio Obet Koerich5, pai das irmãs Koerich. Também foram realizadas entrevistas com os devotos e pessoas da comunidade que conheceram as milagreiras, além dos coveiros do cemitério do Itacorubi. Igualmente às fontes orais, as escritas foram fundamentais para a pesquisa, por meio dos jornais de circulação estadual, sobretudo, da imprensa florianopolitana. Foi realizado um levantamento e uma seleção da repercussão midiática das milagreiras do Itacorubi nos jornais, com destaque para as matérias veiculadas durante os dias de Finados entre os anos de 1980 e 2016. Nos jornais locais também foram pesquisadas as inúmeras matérias sobre a queda do avião que vitimou as irmãs no dia 12 de abril de 1980. Para tanto, o acervo da Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina (BPESC) foi extremamente importante, sendo realizadas pesquisas em seu arquivo durante os anos de 2013 a 2015. As imagens, por meio dos registros fotográficos, também foram empregadas na pesquisa. Durante as numerosas visitas realizadas ao cemitério do Itacorubi entre os anos de 2012 e 2016 foram registradas centenas de fotografias, sobretudo, nos dias de Finados e aniversários de nascimento e morte das milagreiras, além de dias esporádicos, registrando-se especificidades encontradas em suas sepulturas e nas imediações do cemitério. Tais visitas possibilitaram observar os fiéis e suas devoções, como ritos deixados nos túmulos, orações feitas e

3 MACHADO, Nilson Nelson (Duduco). Entrevista cedida à Julia Massucheti Tomasi, no dia 25 de janeiro de 2016. 4 No decorrer do trabalho será utilizado o apelido “Duduco”. 5 KOERICH, Antônio Obet. Entrevista cedida à Julia Massucheti Tomasi, no dia 25 de fevereiro de 2015. 27

verificar as relações e vínculos criados entre devotos e sua milagreira, através do seu espaço tumular. Do mesmo modo, analisou-se e compilou-se uma variedade de documentos relacionados com as milagreiras encontrados nos arquivos pessoais de seus pais durante a realização das visitas e entrevistas entre os anos de 2015 e 2016. Dentre os diversificados documentos reunidos, destaque para as psicografias originais das irmãs Koerich, de 1980 e 1981, presentes no acervo pessoal de seu pai, Antônio Obet Koerich. Totalizando mais de cem páginas de documentação, tais fontes nunca foram disponibilizadas anteriormente a outra pessoa, como reforça o próprio pai, senhor Antônio, tendo imenso apreço e zelo com tais psicografias. Durante as visitas realizadas à casa de Duduco, pai de Vida Machado, foram coletadas em torno de cem fotografias de sua filha, como imagens de suas festas de aniversários, viagens realizadas com seu pai e irmãos, além de registros de seu dia a dia na creche. Outros documentos presentes no acervo pessoal de Duduco foram objetos pessoais, como vestidos utilizados em sua festa de aniversário e quadros com reportagens jornalísticas sobre as devoções à menina Vida. Como recorte temporal, foi delimitado para a pesquisa o período de 1980 a 2016, sendo 1980 o ano do acidente aéreo da Boeing 727 da Transbrasil, que vitimou as irmãs Koerich. Quanto ao ano de 2016, foi o último a realizarem-se as dezenas de saídas de campo ao cemitério do Itacorubi, pesquisando-se os túmulos das milagreiras Vida Machado, Jane Koerich e Rosemary Koerich. Para registrar tais visitas, foram fotografados os túmulos das milagreiras com rituais e oferendas, conforme imagens apresentadas no decorrer desta pesquisa. Quanto à organização do trabalho, está dividido em cinco capítulos. No primeiro, denominado “Do santuário ao túmulo: santos canonizados e milagreiros de cemitério” são discutidos em quatro subcapítulos as histórias dos santos canonizados pela Igreja Católica e dos milagreiros dos cemitérios brasileiros, com ênfase no estado de Santa Catarina. No item “Devoção e peregrinação: história dos santos canonizados e dos milagreiros de cemitério” apresentam-se as diferenças e aproximações entre os santos oficiais da Igreja Católica e os milagreiros de cemitério, como os longos processos de beatificação e canonização, as relações entre devotos e santos e/ou milagreiros. Também são exploradas as histórias dos santos oficiais no decorrer dos séculos, exemplificando-se alguns casos de santos conhecidos 28 mundialmente, além de serem explorados os casos de beatificações e canonizações no Brasil até o ano de 2016. Em “O culto aos mortos no decorrer da história”, discute-se as transformações do culto aos mortos no transcorrer dos séculos, desde a antiguidade até a contemporaneidade, como as relações com a morte, o morrer e os mortos. São exploradas as várias características da morte e do luto na contemporaneidade, vistos como um tabu, que não devem ser falados ou lembrados. Com o subcapítulo “Maria Degolada, Odetinha e as 13 almas benditas: os milagreiros dos cemitérios brasileiros” são abordados histórias de casos de milagreiros ao redor do Brasil, como os vários milagreiros infantis que morreram em decorrência de doenças, as milagreiras que foram brutalmente assassinadas por homens, como as prostitutas, além dos milagreiros que morreram em confrontos, tragédias ou mesmo doenças. Para tanto, utilizaram-se trabalhos acadêmicos de diversas áreas, como da história, sociologia, psicologia e antropologia. No último subcapítulo, “Do oeste ao litoral: os milagreiros do estado de Santa Catarina” são explorados os casos de milagreiros presentes nos cemitérios das mais diferentes cidades no estado de Santa Catarina, desde a região oeste, passando pela serra até chegar o litoral catarinense. São vários casos de crianças, concentradas na região oeste e na cidade de Lages, na serra catarinense, além de professora, cigana, caixeiro viajante, frei e padres. Para elencar os milagreiros, as reportagens jornalísticas estaduais e as pesquisas acadêmicas foram utilizadas como suporte, além das saídas de campos que realizei na maioria dos cemitérios onde estão sepultados tais milagreiros. No capítulo 2, denominado “Histórias de vida, morte e post- mortem das irmãs Rosemary e Jane Koerich”, disserta-se sobre a história de vida e morte das irmãs Koerich, dando-se especial atenção ao acidente aéreo que as vitimou e as mensagens psicografadas enviadas por elas. No primeiro subcapítulo, intitulado “‘Rosemary, Ronaldo, Jane e Sérgio. Assim era nossa família, nossos filhos, nossas vidas’: a breve história de vida das irmãs Koerich” trata-se da história de vida das irmãs, a partir do relato do pai, Antônio Obet Koerich, destacando-se suas infâncias e adolescências, além das relações de amizade e familiares. Em “‘A tragédia que abalou o estado’: o acidente do Boeing 727 da Transbrasil no morro da Virgínia no dia 12 de abril de 1980”, é abordado o acidente aéreo a partir das inúmeras reportagens jornalísticas que noticiaram a tragédia e entrevistas realizadas com familiares de vítimas. Já no último subcapítulo, “‘No próprio voo interrompido’: as mensagens psicografadas das irmãs Koerich”, são analisadas as seis 29

mensagens psicografadas pelos médiuns Divaldo Pereira Franco e Chico Xavier, em Uberaba (MG), enviadas pelas irmãs entre os anos de 1980 e 1986, todas ofertadas aos pais Ony e Antônio. Nesta parte foram detalhados os conteúdos das psicografias e analisou-se o período em que foram enviadas. Quanto ao capítulo 3, “‘Vida Machado: viva para dizer o que é a vida’: breve biografia da menina milagreira”, que está dividido em três subcapítulos, é explorada a história de Vida Machado, desde a sua adoção até a morte, aos nove anos de idade. Iniciando-se com “Filantropia, adoções, política e carnaval: Duduco e sua creche” é apresentada a vida de seu pai, Duduco, figura conhecida na cidade de Florianópolis, como sua relação filantrópica, carnavalesca e política com a cidade. Fala-se sobre a creche do Duduco, local onde Vida morou seus nove anos. Em “Da creche ao hospital: os dois lares para a ‘Vida’”, são destacadas as inúmeras e longas internações de Vida Machado no Hospital Infantil Joana de Gusmão em decorrência do vírus HIV e suas complicações, tornando-se o quarto do hospital sua segunda casa. Finalizando o capítulo, em “Uma década de ‘Vida’: entre sonhos, lutas, buscas de cura, festas e esperança” são explorados por meio dos relatos de Duduco, os quase dez anos em que a milagreira viveu na creche do Duduco, como suas ligações afetivas, seus estudos, as inúmeras viagens em busca de cura, como as idas aos milagreiros de cemitérios e santos canonizados ao redor do Brasil e as festas em comemoração a seus nove aniversários, com destaque para a festa de quinze anos que Duduco antecipou o pedido da menina, festejando alguns meses antes de morrer. Além disso, também se descreve o dia de sua morte, com os rituais fúnebres, entre eles: velório, cortejo e momento de enterro, como também as motivações para a construção de seu túmulo, com destaque para as duas esculturas suntuosas de Vida. O capítulo 4, “Espaço de devoções e oferendas: os túmulos das milagreiras do cemitério do Itacorubi” tem início com a descrição da história do cemitério, em “Cemitério Municipal São Francisco de Assis: quase um século de história”. Delineia-se sobre sua inauguração, no ano de 1925, com a transferência do antigo cemitério público da cidade, localizado onde hoje está o Parque da Luz, na cabeceira da Ponte Hercílio Luz, além de suas ampliações no decorrer do século, os problemas atuais, como a falta de manutenção e espaço para novas construções tumulares e sepultamentos e a degradação de seus milhares de túmulos. 30

Também são abordados alguns dos dias de maior visitação ao cemitério, sobretudo, os dias de Finados, destacando-se reportagens sobre o assunto. Igualmente, são elencados alguns dos conhecidos ícones da cidade que estão sepultados no Itacorubi, sendo explorados a partir de então as suas milagreiras, iniciando-se com o subcapítulo “Com visitas ao cemitério e placas de ex-votos: o post mortem das irmãs Koerich”. Nele, são tratadas as visitações aos túmulos das irmãs Rosemary e Jane Koerich, como seu pai Antônio, que descreve em seu relato oral como foram as visitas durante os trinta e seis anos de morte. Além disso, são apresentadas e descritas detalhadamente as trinta e três placas de ex-votos encontradas em suas sepulturas. Já no subcapítulo “Com bilhetes, placas e devoções: o culto ao túmulo de Vida Machado, a menina milagreira”, retratam-se as devoções ao túmulo da menina Vida Machado, como as visitas dos devotos nos dias de Finados e das crianças, os rituais e oferendas deixados em sua homenagem no seu túmulo, como as velas, flores e doces. Do mesmo modo, descrevem-se as cinco placas de ex-votos encontradas em sua unidade tumular, além dos bilhetes deixados como forma de pedir e agradecer as graças alcançadas. Neste subcapítulo também são expostas várias fotografias que registram tais práticas entre os anos de 2012 a 2016. Por fim, no capítulo 5, intitulado “Memória, esquecimento e silenciamento”, disserta-se sobre os testemunhos dos devotos e familiares que permeiam a devoção das três milagreiras do cemitério do Itacorubi, o que acaba reconhecendo e consequentemente legitimando os poderes de milagreiras através destes relatos. Em “Dos esquecimentos ao luto traumático: a cultura da memória no final do século XX e início do XXI” discute-se a utilização da memória na pesquisa, além de alguns apontamentos de como a memória vem sendo vivenciada e discorridas nos trabalhos acadêmicos das últimas décadas e das dificuldades e implicações em se utilizar as memórias traumáticas e interditas nas pesquisas acadêmicas. Finalizando o trabalho, com o subcapítulo “Memórias das milagreiras do Itacorubi: dos jornais aos relatos” dissertam-se sobre as memórias e histórias das três milagreiras do cemitério do Itacorubi, sejam elas presentes nas páginas dos jornais catarinenses, nas placas de ex-votos presentes em suas sepulturas, nos relatos dos devotos e familiares e nos acervos pessoais de seus pais. Nota-se a partir de então, a relação deste trabalho com a História do Tempo Presente, que foi idealizada a partir da criação do Instituto de 31

História do Tempo Presente (IHTP), fundado por François Bédarida, em setembro de 19786. Importante ressaltar que a História do Tempo Presente, segundo Rémond7 não é uma história do instante, sendo “preciso denunciar a confusão entre uma história da proximidade e uma história da instantaneidade; trata-se, portanto, de uma história da duração.” A história do tempo presente faz parte de uma história que se modificou nos últimos séculos, como teoriza Reinhart Koselleck8, em especial no final do século XVIII, se tornando uma história [Geschichte] “em si e para si”, "história em geral" ou mesmo uma "história como tal", no lugar das antigas histórias tradicionais [Historie], que eram transmitidas no plural, para então designar as diversas narrativas. Deste modo, como sintetiza Koselleck9, o conceito

coletivo de história [Geschichte], forjado no século XVIII, tem aqui um significado predominante. Por meio desse conceito é possível demonstrar que certos mecanismos e formas de elaboração da experiência só puderam emergir a partir do advento da história [Geschichte] vivenciada como um tempo novo, inédito. Nosso conceito moderno de história [Geschichte] resultou da reflexão iluminista sobre a crescente complexidade da ‘história de fato’ ou da ‘história em si’, na qual os pressupostos e condições da experiência escapam, de forma crescente, a essa mesma experiência.

Essa nova história é levada a pesquisar temas anteriormente incomuns, formulando questões relativas ao gênero, à morte10 e à festa, como salienta Antoine Prost.11 Contribuindo com esta discussão, Roger

6 RÉMOND, René. Algumas questões de alcance geral à guisa de introdução. In: AMADO, Janaína & Ferreira, Marieta (org.). Usos e abusos da história oral. 8ª edição, Rio de Janeiro: FVG, 2006, p. 203. 7 Ibidem, p. 207. 8 KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraposto Ed PUC-Rio, 2006, p. 235. 9 Ibidem, p. 16-17. 10 Conforme o estudo presente neste trabalho, que permeia a temática da morte a partir das milagreiras de cemitério. 11 PROST, Antoine. Doze lições sobre a história. São Paulo: Autêntica, 2009. 32

Chartier12 enfatiza uma grande diferença entre os historiadores modernistas e os historiadores do tempo presente - a história do tempo presente se vincula não somente as pesquisas das almas mortas e dos temas já vividos, mas sim, é “um encontro com seres de carne e osso que são contemporâneos daquele que lhes narra as vidas.” Roger Chartier13 também levanta outra questão que pode ser considerada tanto um problema, como um benefício para os historiadores do tempo presente, que é o recurso inesgotável de documentação em suas mãos. Lembra que apesar dos graves obstáculos que

limitam a comunicação de arquivos públicos, a abundância da produção escrita, sonora, visual e informática acumulada pelas sociedades contemporâneas, bem como a possibilidade que tem o historiador do contemporâneo de produzir ele mesmo o seu arquivo parecem prometer um maná sempre renovado [...] o historiador do tempo presente é contemporâneo de seu objeto e portanto partilha com aqueles cuja história ele narra as mesmas categorias essenciais, as mesmas referências fundamentais.14

Quanto ao papel do historiador do tempo presente, este deve estar atento aos novos temas de pesquisa, as variadas mudanças e os novos documentos presentes em suas mãos, ou seja, como bem salienta René Rémond, o historiador do tempo presente sabe

o quanto sua objetividade é frágil, que seu papel não é o de uma chapa fotográfica que se contenta em observar fatos, ele contribui para construí-los. Uma vez que o historiador do tempo presente se confronta com a atualidade, seu olhar tem um raio relativamente curto: assim ele está mais atento aos detalhes.15

12 CHARTIER, Roger. A visão do historiador modernista. In: AMADO, Janaína & Ferreira, Marieta (org.). Usos e abusos da história oral. 8ª edição, Rio de Janeiro: FVG, 2006, p. 215. 13 Ibidem. 14 CHARTIER, op. cit., p. 215-216. 15 RÉMOND, op. cit., p. 208. 33

Ser contemporâneo de seu objeto de pesquisa e poder produzir seu próprio arquivo são, sem dúvida, dois grandes benefícios, mas também dilemas para o historiador do tempo presente. Isto se deve às dificuldades de este manter um distanciamento crítico quanto ao objeto de pesquisa, além de proceder com rigor e discernimento, o que, segundo o historiador francês François Bédarida16, não significa ser um historiador imparcial no seu posicionamento. Além dos documentos, como bem lembra Durval Muniz de Albuquerque Junior17, nós historiadores não podemos fazer a história sem os meios e ferramentas que “a cultura historiográfica nos proporciona, inclusive os conceitos. Tecer, costurar, bordar, escrever, como qualquer evento humano, por mais comezinho que seja, põe em relação à matéria e a idéia, a concepção inicial e o trabalho, a mão e a cabeça, o projeto e a ação.” Assim, pesquisar as milagreiras do cemitério do Itacorubi, utilizando como documentos relatos orais dos devotos e dos pais das milagreiras, além de fotografias de seus túmulos registradas em inúmeras visitas ao cemitério do Itacorubi se tornou para mim um grande desafio, ao mesmo tempo estimulante e temeroso. Isso se deve, pois a cada visita um novo ritual era observado e registrado, além das dificuldades em se entrevistar pais enlutados, visto que apesar de passados anos do falecimento de suas filhas, o tema da morte é cotidianamente pouco falado, considerado inclusive um tabu entre as pessoas, sobretudo, entre pais enlutados. Porém, é importante ressaltar que a riqueza documental presente nos cemitérios e nos relatos orais foi, sem dúvida, estimulante, apesar das múltiplas dificuldades encontradas no percurso desta pesquisa. Portanto, pesquisar a morte e os mortos através dos túmulos das milagreiras é fazer parte do campo de pesquisa da história do tempo presente, que é por definição uma história

inacabada: uma história em constante movimento, refletindo as comoções que se desenrolam diante de nós e sendo portanto objeto de uma renovação

16 BÉDARIDA, François. Tempo presente e presença da história. In: AMADO, Janaína & Ferreira, Marieta (org.). Usos e abusos da história oral. 8a edição, Rio de Janeiro: FVG, 2006, p. 227. 17 ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Bauro: Edusc, 2007, p. 32. 34

sem fim. Aliás, a história por si mesma não pode terminar. Eis por que devemos afirmar alto e bom som – ao contrário daquela teoria tão em voga que pretende nos convencer de que chegamos a uma era de estabilidade e a um estágio de completa realizações – que a história não tem fim, salvo se houver uma catástrofe cósmica.18

Igualmente, sabe-se que não há história sem documento, independente do documento que o historiador utilize, seja uma fonte oral, virtual, escrita, áudio-visual, imagética ou visual, diversidade esta observada após a explosão e revolução documental, ocorrido entre as décadas de 1960 e 1970, como destaca o historiador francês Jaques Le Goff.19 Nota-se, a partir de então, que o papel do historiador é criticar suas fontes, lembrando-se que o documento é o resultado de uma montagem (consciente ou inconsciente) da história, da época e da sociedade produtora. Cabe assim ao historiador, segundo Le Goff20, desmontar tal montagem sofrida pelo documento/monumento. Conforme delineia o historiador Michel de Certeau21, em história, tudo inicia com os atos de separar, reunir e “transformar em ‘documentos’ certos objetos distribuídos de outra maneira. Esta nova distribuição cultural é o primeiro trabalho. Na realidade, ela consiste em produzir tais documentos, pelo simples fato de recopiar, transcrever ou fotografar estes objetos.” Para findar tal introdução, devem ser enfatizadas as minhas motivações para pesquisar temas ainda tão interditos e quase que esquecidos na historiografia. A morte e o luto são por si só tabus na sociedade contemporânea e no meio acadêmico não seria diferente. Desde a infância, a morte se tornou presente na minha vida. Foi de modo muito sensível, pavorosa e jamais esquecida nos meus dez anos de idade. A morte do meu pai foi, sem dúvida, a motivadora para eu temê- la, conhecê-la de perto, respeitá-la e posteriormente estudá-la e pesquisá-la com apreço e admiração. Por mais de uma década, a morte se traduzia para mim em um tabu, de modo que eu evitava participar de velórios e enterros dos meus entes próximos.

18 BÉDARIDA, op. cit., p. 229. 19 LE GOFF, Jacques. “Documento/Monumento”. In História e Memória. 5a ed. Campinas: Ed. Unicamp, 2003. 20 Ibidem. 21 CERTEAU, Michel de. A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 81. 35

Contudo, depois de “mergulhar” no curso de História, no decorrer da graduação, a morte foi se tornando um assunto cada vez mais instigante e, em seguida, cotidiano. Durante a primeira fase do curso, após uma palestra na disciplina História da América com o professor Lourival de Andrade Júnior, sobre os milagreiros dos cemitérios da cidade de Lages, a morte aflorou de imediato como um possível e real tema de pesquisa. Por consequência, foi com o trabalho de conclusão de curso na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), defendido no ano de 2010, intitulado “Morte à italiana: os ritos funerários no município de Urussanga (SC) no decorrer do século XX”22, que a morte e os mortos suscitaram-me um fascínio, além da minha incessante busca por rituais fúnebres presentes na contemporaneidade. Do mesmo modo, a pesquisa de mestrado resultou na dissertação denominada “‘Eternamente Off-Line’: as práticas do luto na rede social do Orkut no Brasil (2004-2011)”23. Defendida na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), no ano de 2013, esta analisou como em tempos de morte silenciada e interdita, o Orkut, uma rede de sociabilidade de comunicação e relacionamento, tornou-se um ambiente para expressar e compartilhar a dor e o sofrimento de enlutados, através de mensagens textuais (recados, depoimentos e debates em fóruns de discussões) e imagens. O tema da morte foi novamente trabalhado e incansavelmente pesquisado. Importante ressaltar que ambas as pesquisas, tanto o trabalho de conclusão de curso quanto à dissertação, foram lançadas como livros no ano de 201624.

22 TOMASI, Julia Massucheti. Morte à italiana: os ritos funerários no município de Urussanga (SC) no decorrer do século XX. 2010. 120 p. Monografia (Graduação em História) – Centro de Ciências Humanas e da Educação – Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2010. 23 TOMASI, Julia Massucheti. “Eternamente Off-Line”: as práticas do luto na rede social do Orkut no Brasil (2004-2011). 2013. 178 p. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós- Graduação em História (PPGH-UDESC), Florianópolis, 2013. 24 TOMASI, Julia Massucheti. Morte à italiana: os ritos funerários no município de Urussanga (SC) no decorrer do século XX. 1. ed. Saarbrücken: Novas Edições Acadêmicas, 2016. 177p. TOMASI, Julia Massucheti. Eternamente off-line: As práticas do luto na rede social do Orkut no Brasil (2004-2011). 1. ed. Curitiba: Editora Prismas, 2016. 265p. 36

Além disso, entre os anos de 2008 e 2014, participei como estagiária e pesquisadora na área da história de quatro projetos patrimoniais25 coordenados por historiadoras e relacionados com as temáticas dos cemitérios e da morte, como inventários cemiteriais e levantamentos de rituais fúnebres em quatro cidades catarinenses, entre elas: Lages, Antonio Carlos, Blumenau e São Martinho. E quanto à pesquisa de doutorado? Novamente sobre os cemitérios, a morte e o morrer, a tese tinha como projeto inicial pesquisar os rituais fúnebres da cidade de Florianópolis no decorrer do século XX, analisando suas transformações e permanências. Entretanto, depois de alguns anos frequentando o cemitério do Itacorubi e repetidamente visitando as sepulturas das três milagreiras aqui estudadas para observar seus túmulos e fotografar os rituais ali presentes, me fez modificar o tema no transcorrer do percurso. Além da temática sempre ter me instigado e motivado, a confirmação da mudança do tema se deu após realizar as entrevistas com os coveiros do cemitério do Itacorubi, que destacaram em suas falas as riquezas de tais unidades tumulares. Em suma, percebe-se que a morte se tornou passado, presente e futuro da minha trajetória acadêmica no campo historiográfico. Sem dúvida, um fascínio pelo tabu e interdito que me acompanha há dez anos. Foram longos dias fotografando cemitérios e suas sepulturas, além de madrugadas escrevendo sobre os sepultados, túmulos e, atualmente, os milagreiros de cemitérios, minha nova e incessante paixão.

25 Entre eles: Estagiária do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) no projeto "Cemitérios no Caminho: estudo do patrimônio funerário ao longo do Caminho das Tropas (Lages/SC)" entre os anos de 2008 e 2010, financiado pela Secretaria de Estado de Turismo, Cultura e Esporte e coordenado pelas historiadoras Ana Lúcia Herberts e Elisiana Trilha Castro. Pesquisadora no projeto de “Inventariamento Detalhado do Cemitério de Santa Maria - Antonio Carlos (SC)” no ano de 2010, financiado pela Prefeitura Municipal de Antônio Carlos e coordenado pela historiadora Elisiana Trilha Castro. Pesquisadora no projeto "Lugares de antepassados, lugares de história: inventário de cemitérios em Vila Itoupava (Blumenau/SC)", entre os anos de 2010 e 2011, financiado pela Fundação Cultural de Blumenau e coordenado pela historiadora Elisiana Trilha Castro. Por fim, pesquisadora no projeto “Ruhe Sanft: inventário do cemitério dos imigrantes alemães da comunidade de São Martinho Alto e notas sobre os cemitérios antigos do município de São Martinho-SC” entre anos de 2013 e 2014, financiado pela Secretaria de Estado de Turismo, Cultura e Esporte e coordenado pela historiadora Elisiana Trilha Castro. 37

1 DO SANTUÁRIO AO TÚMULO: SANTOS CANONIZADOS E MILAGREIROS DE CEMITÉRIO

1.1 DEVOÇÃO E PEREGRINAÇÃO: HISTÓRIA DOS SANTOS CANONIZADOS E DOS MILAGREIROS DE CEMITÉRIO

Todo santo ou santa, canonizados ou “santificados”, possuem poderes relacionados com sua vida na terra ou que foram adquiridos ao longo de sua “vida transcendente”, construídos pelos devotos.26

Ir ao túmulo de Vida Machado e acender velas, deixar sobre a sepultura um bilhete com pedidos, colocar uma placa de ex-voto como forma de agradecimento por graças alcançadas, enfeitar a sepultura com vasos de flores naturais e artificiais, oferecer doces, como bolachas, balas e pirulitos ou somente conversar e pedir conselhos a menina milagreira do Itacorubi. Estes são muitos dos cultos e das relações que os fiéis estabelecem com seus milagreiros de cemitério, visitando-os conforme suas necessidades e os vínculos criados com seu milagreiro. Intercedidos por pessoas das mais variadas classes sociais e religiões, os devotos estabelecem e sustentam uma relação afetiva e de confiança com seus “santos” de cemitério. Viver na mesma cidade que seu milagreiro, poder visitar e tocar sua sepultura, fazendo os pedidos diretamente a eles, ter conhecimento sobre suas histórias de vida e morte, além de relacionar-se com seus familiares e poder conversar ou mesmo pedir a eles27 são elementos de intimidade que aproximam milagreiro e devoto, ampliando sua fé e crença.

26 ANDRADE JÚNIOR, 2008, op. cit., p. 107. 27 Tal característica é comum no cemitério do Itacorubi, com as milagreiras Vida Machado e irmãs Rosemary e Jane Koerich. Como seus familiares, em especial, pais, frequentam as sepulturas de suas filhas, muitos dos devotos se utilizam desta aproximação para pedirem diretamente aos pais, como se a graça pudesse ser atendida com mais rapidez. 38

Como bem destaca o historiador Lourival Andrade Júnior28, tais características supracitadas, como estar em contato direto com milagreiro, orando e pedindo em seu túmulo, não necessita de “autorização oficial, pois o objeto da devoção está entre eles, é membro da comunidade, sendo muitos deles antigos moradores, e mesmo não o sendo, tornar-se-ão companheiros no dia-a-dia e na cumplicidade em resolver problemas imediatos”. Ainda, segundo Lourival Andrade Júnior29, a afetividade é intensa na religiosidade, como pode ser vista entre os santos canonizados da Igreja Católica, ganhando força na devoção popular, com os “santos” de cemitério, tendo em vista que a intimidade estabelecida entre o devoto e seu milagreiro ou santo canonizado se torna um afeto palpável e concretamente sentido. Assim, poder realizar seus pedidos de forma direta e imediata, agradecendo pessoalmente, sem intermediações, empregando para tal a mesma linguagem que utiliza diariamente, são facilitadores dessas relações entre devoto e milagreiro, conforme reforça Lourival Andrade Júnior:

Estar no mesmo lugar do santo oficial ou do defunto elevado à condição de milagreiro, é para o devoto a consagração de sua fé e de sua ligação com este ser que está além do mundo temporal. Ter o contato com o sagrado em sua forma concreta, visível e palpável confere ao devoto um poder na relação com este sagrado. O pedido é direto e o pagamento pela graça alcançada também. Não há intermediação nem tampouco palavras inteligíveis. Devoto e sagrado utilizam a mesma língua e compreendem, sem regras preestabelecidas, cada detalhe desta comunhão entre o mundo dos vivos e dos mortos. Quanto mais próximo da realidade social e cultural do devoto o santo ou milagreiro se encontra, mais direta é esta comunhão. Falar com quem entende a realidade na qual o devoto se encontra, encurta os caminhos para se chegar ao que se deseja: alcançar a graça e pagar por isso.30

28 ANDRADE JÚNIOR, 2008, op. cit., p. 95 29 Ibidem, p. 97. 30 Ibidem. 39

Tais afetividades e proximidades são destacadas inclusive pelos próprios devotos, como é o caso dos fiéis da milagreira Vida Machado. De acordo com a entrevistada Maria Aparecida da Fonseca Luz31, durante os longos anos de conversa e amizades criadas com outros devotos32, percebeu que a fé de muitos é acentuada por ter conhecido a milagreira e seu pai, Duduco, ou apenas por estar em frente ao túmulo, podendo tocar seu túmulo e sua escultura, como destaca: “Tem muita gente que vai, tanto velha, como jovens e crianças. Tem uma senhora que diz que conheceu ela e por isso tem muita fé na menina. E vai lá e se ajoelha, beija sua escultura e até leva as balas para ela.” 33 Outra característica importante de se mencionar é a forma como as graças alcançadas é propagada entre os fiéis, além do reconhecimento e legitimidade que dão ao seu milagreiro de cemitério. Por não serem santos canonizados, ou seja, não terem eventos religiosos para festejá- los ou publicidade midiática para este fim, ainda assim são procurados, lembrados e invocados por centenas de fiéis. Amparada por estes fiéis que a devoção aos milagreiros é perpassada, tendo em vista que suas graças alcançadas são transmitidas através da oralidade, entre os relacionamentos sociais, como os laços de amizade e familiares, passadas de geração a geração. Um exemplo disso são as inúmeras pessoas que pedem às irmãs Koerich ou a Vida Machado. Durante as entrevistas, muitos dos devotos das três milagreiras aqui estudadas enfatizaram que as conheceram através de amigos e familiares, que falaram sobre o seu poder de cura e breve “resposta” aos pedidos feitos. Tal dependência da transmissão e reconhecimento dos poderes através dos devotos é pontuada por Lourival Andrade Júnior, que lembra que para ser

santo ou santa [oficiais] é preciso seguir os passos estabelecidos pelas leis da Santa Sé: Venerável, Beato e Santo. Já o “milagreiro ou milagreira” dependem única e exclusivamente dos devotos para assim serem reconhecidos e seus poderes justificados. A relação de pertencimento entre o

31 LUZ, Maria Aparecida da Fonseca. Entrevista cedida à Julia Massucheti Tomasi, no dia 22 de fevereiro de 2016. 32 Maria Aparecida é natural da cidade de Florianópolis e frequentadora assídua do cemitério do Itacorubi, sendo que o túmulo de seu marido fica ao lado da sepultura de Vida Machado. 33 LUZ, op. cit. 40

milagreiro e seu devoto é expresso em sua dedicação em divulgar seus poderes e demarcar o território devocional de forma a não deixar dúvidas de seus poderes: o túmulo se torna o altar não oficial da devoção e da demonstração dos agradecimentos.34

Para tanto, o Dia de Finados se torna fundamental, tendo em vista que é a data de maior visitação aos túmulos dos milagreiros de cemitérios e dia de reencontrar antigos amigos e parentes. Entre 2012 e 2016, os cinco anos que realizei a pesquisa no cemitério São Francisco de Assis (Itacorubi), com especial atenção ao Dia de Finados (Imagem 2), com a minha presença em todos eles, observei vários casos de devotos expondo suas graças alcançadas aos demais presentes. Também se verificou que algumas pessoas que passavam em frente às unidades tumulares das irmãs Koerich e/ou da Vida Machado, por curiosidade, paravam para conversar e assim passavam a conhecer suas histórias por meio dos relatos dos fiéis presentes.

Imagem 2 – Cemitério do Itacorubi no dia de Finados nos anos de 2014 e 2016.

34 ANDRADE JÚNIOR, Lourival. Túmulos e milagreiros: o caso da cigana Sebinca Christo. Relegens Thréskeia estudos e pesquisa em religião. v. 01, n. 01, 2012, p. 84. 41

Fonte: Acervo pessoal da autora, 2016.

Assim, o cemitério, através dos túmulos dos milagreiros, se torna um lugar devocional de conversas e trocas de experiências entre os devotos, além de ser um espaço de ritualizar, criar novas amizades, contar sobre as graças alcançadas e anteriormente nunca confessadas, além de criar outras devoções e estabelecer através das conversas novos admiradores dos “santos” de cemitérios e futuros fiéis. No entanto, apesar da aceitação entre as pessoas que frequentam seus túmulos e da sua grande devoção, muitos indivíduos que passam por suas sepulturas recusam-se a fazer pedidos e a crer, negando que possam realizar milagres, tendo em vista que está no universo não- 42 oficial, isto é, não é um santo canonizado pela Igreja Católica Apostólica Romana. O termo “canonizado” está vinculado ao mundo da religiosidade oficial, representado pela Igreja Católica, caracterizado por pessoas que foram canonizadas, ou seja, reconhecidas como santas pela Igreja. O processo da canonização pode ser longo, durando em alguns casos algumas décadas ou mesmo séculos. São três etapas de processo para uma pessoa ser canonizada, passando pela veneração, beatificação e por fim, canonização. O primeiro passo é a investigação da vida do futuro santo, isto é, do servo de Deus, como as causas da sua morte e se houve martírio, nos casos específicos dos mártires. Ao final desta etapa, o indivíduo se torna um venerável e o segundo processo pode ser iniciado. A segunda fase caracteriza-se pela beatificação do servo de Deus, conforme será exemplificado a seguir, com alguns casos brasileiros. Para esta etapa ser concretizada, faz-se necessária a comprovação de ao menos um milagre feito pelo beato, com exceção dos mártires35, que não precisam ter milagres comprovados. Por fim, a terceira e última etapa do processo é a canonização. Para isto, é fundamental a comprovação de outro milagre, mas agora ocorrido após o processo de beatificação. Alguns casos atuais de canonização e/ou beatificação, ocorridos no estado de Santa Catarina nas últimas décadas merecem destaque, como o de Santa Paulina, anteriormente conhecida como Madre Paulina. Conforme será explorado a seguir, neste mesmo subcapítulo, Madre Paulina foi beatificada no ano de 1991, na cidade de Florianópolis, pelo papa João Paulo II e canonizada no ano de 2002, na Praça de São Pedro, no Vaticano, passando a se chamar Santa Paulina do Coração Agonizante de .36 Outro caso de Santa Catarina e que merece destaque é o da menina Albertina Berkenbrock. Assassinada no ano de 1931, com apenas 12 anos, era natural da cidade de Imaruí, localizada no sul do

35 Os mártires são as pessoas que morrem por sua fé religiosa, como os casos dos padres, irmãs e demais religiosos. 36 Para saber mais, ver: OURIQUES, Helton. A santa do turismo: o mercado da fé em Nova Trento – SC. In: Textos de Economia, Florianópolis, v. 9, n. 2, p. 78-90, jan. 2006. Disponível em: . Acesso em: 11 set. 2016. doi:http://dx.doi.org/10.5007/6105. 43

estado. De acordo com Osvaldo Della Giustina37, que escreveu um romance sobre a vida de Albertina, a menina foi assassinada em virtude de sua pureza e religiosidade. Albertina Berkenbrock teve o processo de beatificação iniciado no ano de 1952, sendo beatificada somente depois de meio século, no dia 20 de outubro de 2007, na Catedral Diocesana de Tubarão.38 Ainda não foi canonizada, mas o processo de reconhecimento de seus milagres está em andamento no Vaticano. Lourival Andrade Júnior, em sua pesquisa sobre a milagreira de cemitério Cigana Sebinca Christo, da cidade de Lages, na serra catarinense, delineia a diferença entre canonização e santificação, definindo cada um dos termos, conforme propõe: “‘canonização’ está relacionada ao mundo oficial, enquanto a ‘santificação’ é referendada pelo universo não-oficial [...] ‘canonização’ pertence à Igreja Católica, enquanto a ‘santificação’ pertence ao povo, aos devotos, ao mundo dos crentes.”39 Para este trabalho, será utilizada tal definição, sendo que as três milagreiras aqui estudadas não estão em processo de veneração, beatificação ou canonização, pertencentes apenas aos devotos e ao “universo do devocionário laico”, com fiéis que vão até suas sepulturas pedir e agradecer as graças alcançadas. Assim, para referir-se a elas, serão utilizados no decorrer do trabalho os conceitos de Lourival Andrade Júnior de “santas/santinhas de cemitério” e “milagreiras de cemitério”. Sobre o culto aos santos oficiais, isto é, os santos canonizados, este se constitui como um “meio de transmitir o sentido da fé cristã. Presente desde o cristianismo, as pessoas contam e recontam a história dos santos. Eles têm sido homenageados em ícones, pinturas e estátuas.”40 Solange Ramos de Andrade salienta que no catolicismo, o

37 GIUSTINA, Osvaldo Della. A menina dos Anjos. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2001. 38 ANDRADE, Solange Ramos de. A religiosidade católica e a santidade do mártir. In: Projeto História. Revista do Programa de Estudos Pós- Graduados de História, v. 37, jun. 2010. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2016. 39 ANDRADE JÚNIOR, 2008, op. cit., p. 103. 40ANDRADE, Solange Ramos de. O culto aos santos: a religiosidade católica e suas hibridações. In: MARIN, Roberto Jérri (Org.). Religiões e Identidades. Dourador: Editora UFGD, 2012, p. 189-190 44 culto aos santos, tanto os “oficiais” como “oficiosos” (em processo de beatificação e canonização) são a maior expressão de religiosidade:

O culto aos santos está presente desde a constituição da hierarquia cristã e sua conseqüente necessidade em firmar valores morais usando modelos exemplares que traduziriam sua visão de mundo. O destaque a um determinado modelo de santidade é histórico e revela uma série de manifestações, gestos e palavras, traduzindo representações coletivas integradas por crenças e práticas coletivas, conectando o indivíduo a um determinado grupo, o que nos fornece elementos para a compreensão dos modelos de santidade atuais.41

No decorrer da história cristã, muitos dos santos que foram canonizados também eram anteriormente cultuados em seus túmulos, tornando-se suas sepulturas locais de peregrinação dos devotos, que lá rezavam e agradeciam. Após reconhecimento da Igreja, eram construídos santuários para acolher seus restos mortais e conferir um grau de institucionalização dos santos padroeiros da região. Os primeiros santos cultuados na cristandade eram os “mártires, e os cultos a eles dirigidos tiveram origem espontânea. O mártir era aquele que deu a vida como testemunho de sua adesão à fé cristã. Antes do final do primeiro século da cristandade, o termo santo era reservado somente ao mártir.”42 Além disso, para ser santo, o indivíduo tinha que morrer de forma sacrifical, violenta, abrupta e trágica, como assassinatos ou moléstias. Era, de certo modo, um meio de morrer como morreu Jesus Cristo. Como bem destaca Edgar Morin43, o elemento principal da salvação é o martírio, como foi o sacrifício de Jesus Cristo: “o fundamento mágico da salvação é o sacrifício de ‘morte renascimento’, o sacrifício-do-deus- que-morre-para-ressuscitar. Os símbolos do deus de salvação, por si só, são suficiente eloquentes.” Pensando-se na história dos santos oficiais no decorrer dos séculos, a santidade no Ocidente Medieval foi uma das mais intensas, de modo que inicialmente, no culto cristão, tinha-se principalmente a figura

41 Ibidem, p. 189. 42 ANDRADE, op. cit., p. 189. 43 MORIN, Edgar. O homem e a morte. Rio de Janeiro: Imago, 1997, p. 203. 45

masculina entre os santos, com a presença em menor número das mulheres. Bispos, padres, monges, cardeais, jesuítas e outros homens que levaram uma vida de peregrinação, devoção a Deus, invocação de cura, pregações, castidade e caridade acabaram canonizados durante a própria Idade Média, ou durante séculos depois. Dentre alguns casos estão: Santo Tomás de Aquino, Santo André Corseni, São João Nipomuano, São Felipe Benizi, São Luís Gonzaga, Santo Inácio de Loiola e São Martinho. Entre as mulheres que se tornaram santas durante o medievo, podem-se destacar as que tiveram suas vidas entregues as ordens religiosas, a vocação e ao amor a Deus. Um exemplo de santa do período medieval é Santa Rita de Cássia, que viveu no século XIV. Após perder o seu marido e os dois filhos, entregou sua vida a vocação monástica, visto que desde sua infância tinha grande apego à religiosidade. Como retratam Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt:

O culto de Rita é bastante polivalente. Esposa, mãe, religiosa, modelo feminino de paciência doméstica, mas também santa do impossível: se o “roubo” que efetua para entrar no mosteiro constitui no início um episódio preocupante que evoca a magia e a feitiçaria, torna-se de faro sinal de um poder eliminado.44

Santa Rita de Cássia nasceu na Itália, no dia 22 de maio de 1381, casando-se aos doze anos e tendo dois filhos45. Após o falecimento do marido e dos dois filhos, motivado pelo sofrimento, dor da perda e por ter grande devoção à vida religiosa e a Deus desde sua infância, se recolheu no convento Agostiniano de Cássia, na província de Úmbria, na Itália, local onde viveu o resto de sua vida. Morreu em 1457, aos 76 anos. De acordo com Luís de Marchi46, sua devoção é encontrada até hoje, sendo conhecida como a “Santa dos Impossíveis”, tornando-se uma das santas mais populares e conhecidas do mundo ocidental. Sua

44 LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do ocidente medieval. Bauru: EDUSC; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002. 45 MARCHI, Luís de. Santa Rita de Cássia. 8ªed. São Paulo: Edições Paulinas, 1979. 46 Ibidem. 46 imagem nas pinturas e esculturas é quase sempre representa pelos elementos cristãos, como a utilização do crucifixo em suas mãos e do hábito, escondendo-se, de certo modo, sua vida antes de entrar no convento, de mãe e mulher casada. Outro exemplo de santa do período medieval é o de Santa Júlia. Menos conhecida que Santa Rita, foi uma jovem raptada como escrava no século V, sendo sacrificada e crucificada por querer seguir a fé cristã. Em sua imagem, é exposta crucificada, com pessoas “observando a cena” em sua volta. Para Sofia Boesch Gajano, a santidade no Ocidente Medieval era a mediação bem sucedida entre a vida e a morte, constituindo fenômenos de dimensões espiritual, teológico, religioso, institucional e político:

fenômeno espiritual, ela é expressão da busca do divino; fenômeno teológico, ela é a manifestação de Deus no mundo; fenômeno religioso, ela é um momento privilegiado da relação com o sobrenatural; fenômeno social, ela é o fator de coesão e de identificação dos grupos e das comunidades; fenômeno institucional, ela está no fundamento das estruturas eclesiásticas e monásticas; fenômeno político enfim, ela é um ponto de interferência ou de coincidência da religião e do poder. Pode-se, consequentemente considerar a santidade o lugar de uma mediação bem sucedida entre o natural e o sobrenatural, o material e o espiritual, o mal e o bem, a morte e a vida.47

Após o medievo, a presença feminina entre os santos foi mais forte, canonizando-se dezenas de santas nos países europeus.48 Obviamente, a quantidade de santos homens supera o número de mulheres. Entretanto, muitas mulheres causaram uma ruptura com a hierarquia masculina na Igreja, que era privilegiada, como mostra José Rivair Macedo:

47 GAJANO, Sofia Boesch. Santidade. In LE GOFF, J. e TRUONG, N. Uma História do Corpo na Idade Média. Trad. M. F. Peres. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira. 2006, p. 449. 48 CIVITA, Roberto. Os grandes santos. São Paulo: Abril Cultura, 1972, p. 5. 47

Esses exemplos são suficientes para dar uma idéia de como a piedade feminina, pelos mais diferentes motivos, foi marcado a ponto de influenciar politicamente os contemporâneos e a posterioridade mística, castas, as céticas, as santas romperam à hierarquia imposta pelos homens da Igreja.49

Adquirindo inúmeras formas de aproximação e união com Deus, as mulheres tinham uma vida de flagelo, jejum, silêncio, isolamento, caridade, devoção e estudo nas ordens religiosas, como conventos, locais onde passavam parte de suas vidas “entregues” a Deus. A canonização de muitas destas santas foi bastante acelerada, diferente de outras que levaram séculos, como a canonização de Joana d´Arc, que viveu no século XV, mas foi canonizada somente no século XX.50 Depois da Idade Média, sobretudo, a partir do século XVI e durante parte da Modernidade, a santidade passou por períodos tumultuados e difíceis, com a canonização de pouquíssimos santos. Durante o século XX, a Igreja Católica passava por um dos períodos de maior crise “de sua história, crise da qual a elevação de indivíduos à santidade e o poder de intermediação a eles atribuído constituía um dos pontos centrais das tensões.”51 Apesar dos santos ainda representarem modelos e exemplos a serem seguidos e conceberem uma ligação entre a terra e o divino, ou seja, entre os homens e Deus, durante a modernidade, “a concepção de santidade apresenta outras características que a distanciam dos antigos modelos identificados desde os primeiros séculos da história cristã.”52

49 MACEDO, José Rivair. A mulher na Idade Média. São Paulo: Contexto, 1990, p. 79. 50 AMARAL, Flavia Aparecida. História e ressignificação: Joana d'Arc e a historiografia francesa da primeira metade do século XIX. São Paulo, 2012. Tese (Doutorado em História) - Universidade Estadual de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2012. 51 CÉSAR, Aldilene Marinho. Imagens e práticas devocionais: a Estigmatização de Francisco de Assis na pintura ibero-italiana dos séculos XV- XVI. Rio de Janeiro, 2010. Dissertação (Mestrado em História Social) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-graduação em História Social, 2010, p. 20. 52 Ibidem. 48

De acordo com Aldilene Marinho César53, uma das motivações para as interrupções nas canonizações na Idade Moderna está no “saque de Roma”, evento ocorrido no ano de 1527 e que provocou uma desorganização da Cúria, além das sucessões eclesiástica e, principalmente, os enfrentamentos religiosos entre os católicos e os protestantes. Entretanto, apesar da pausa nas canonizações durante este período, quatro santos atualmente conhecidos foram canonizados na primeira metade do século XVII pelo papa Gregório XV, entre eles: Santa Teresa de Ávila, Santo Inácio de Loyola, São Felipe Néri e São Francisco Xavier. Na modernidade, além de reduz o número de novas santidades, as imagens dos santos tradicionais modificaram significativamente, buscando-se a partir de então feições de sofrimento e dor, além de distanciarem-se das tradicionais iconografias religiosas, como as convencionais vestimentas religiosas e os elementos cristãos, sobretudo, os terços e crucifixos. Um exemplo desse período é a iconografia de São Francisco de Assis, que começou a “apresentar as características de uma santidade mais contemplativa e mística, com a representação do santo em expressões dolorosas e com o corpo desfalecido em êxtase; atributos [...] do mundo moderno que não faziam parte da tradição iconográfica franciscana.”54 A partir do século XVIII, após a Revolução Francesa, raros foram os santos canonizados. Entre eles estão São João Batista de Rossi, que nasceu em 1698, na Itália. Viveu parte de sua vida em Roma, onde trabalhou em prol da Igreja Católica, fundando casas para jovens carentes, como a Casa de Santa Gala para rapazes necessitados e a Casa de São Luiz Gonzaga para mulheres carentes. João Batista de Rossi morreu no ano de 1764, mais foi canonizado somente um século depois, no ano de 1881, pelo papa Leão XIII.55 Outro caso de santo canonizado neste período foi José Maria Tomasi. Também italiano, foi um padre teatino e cardeal-presbítero que influenciou as reformas na liturgia da Igreja Católica no século XX através de seus estudos. Nasceu no ano de 1649 e faleceu em 1713, mais

53 Ibidem. 54 CÉSAR, op. cit., p. 24. 55 FRANCISCANOS. Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil, 2016. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2016. 49

foi beatificado em 1803 pelo papa Pio VII e canonizado apenas em 1986 pelo papa São João Paulo II.56 Entre o século XVIII e a atualidade, poucas foram as mulheres que se tornaram santas canonizadas, como é o caso de Paula Elisabete Cerioli, também italiana, nascida no ano de 1816 e falecida em 1865. Era religiosa e foi fundadora das congregações de religiosos e religiosas da Sagrada Família de Bérgamo. Foi beatificada em 1950, pelo Papa Pio XII e sua canonização ocorreu somente no ano de 2004, pelo Papa João Paulo II. Outra santa bastante conhecida no Brasil, considerada uma das mais populares da história da Igreja e que foi canonizada no século XX foi a francesa Teresa de Lisieux, mais conhecida “Santa Teresinha do Menino Jesus da Santa Face”. Freira carmelita descalça, aos 15 anos tornou-se freira e morreu de tuberculose com apenas 24 anos. Sua beatificação e canonização foram quase concomitantes, com apenas dois anos de intervalo, sendo beatificada em 1923 e canonizada em 1925 pelo papa Pio XI. De acordo com Giorgio Papàsogli57, no ano de 1944 foi nomeada co-padroeira da França com a Santa Joana d'Arc. Pensando-se no século XXI, alguns casos merecem destaque, como o de Chiara Luce Badano. Era uma jovem atleta italiana, que faleceu em 1990, vítima de um tumor que descobriu durante uma partida de tênis. Segundo Michele Zanzucchi58, Chiara Luce foi beatificada vinte anos depois de sua morte, em 25 de setembro de 2010, após a confirmação de um milagre de cura de um garoto italiano que sofria de meningite fulminante e que não tinha expectativa de vida. Pensando-se no Brasil, atualmente existem seis santos canonizados e mais de oitenta beatificados59. Entre os canonizados estão:

56 DIOCESE OURINHOS. Disponível em: . Acesso em 10 set. 2016. 57 PAPÀSOGLI, Giorgio. Teresa di Lisieux. Roma: Città Nuova Editrice, 1967. 58 ZANZUCCHI, Michele. “Io ho tutto”: i 18 anni di Chiara Luce. Roma: Città Nuova Editrice, 2010. 59 AQUINO, Felipe. Você conhece os Santos brasileiros? In: Canção Nova. 2016. Disponível em: . Acesso em 10 set. 2016. 50

 São Roque González de Santa Cruz: nasceu no Paraguai e morreu no ano de 1628, no oeste do Rio Grande do Sul. Era jesuíta e participou das missões jesuíticas brasileiras. Foi beatificado pelo papa Pio XI no ano de 1934, quase três séculos após a sua morte e canonizado em 1988, pelo papa João Paulo II;  São João de Castilho: natural da Espanha morreu em 1628 no oeste do Rio Grande do Sul. Também foi jesuíta e participou das missões jesuíticas brasileiras. Foi beatificado e canonização na mesma ocasião que São Roque González de Santa Cruz, pelo papa Pio XI no ano de 1934 e canonizado em 1988, pelo papa João Paulo II;  Santo Afonso Rodrigues: nasceu na Espanha e morreu no ano de 1617 no oeste do Rio Grande do Sul. Também foi jesuíta e participou das missões jesuíticas brasileiras60. Sua canonização aconteceu em 1888, pelo Papa Leão XIII;  Santa Paulina do Coração Agonizante de Jesus (Amabile Lucia Visintainer): natural da Itália morreu em 1942 em São Paulo, apesar de ter vivido parte de sua vida em Nova Trento, Santa Catarina. Foi beatificado no ano de 1991 pelo papa João Paulo II e canonizado em 2002, pelo papa João Paulo II;61  Santo Antônio de Sant'Anna Galvão (Frei Galvão): natural de São Paulo, local onde viveu e morreu em 1822. Foi canonizado no ano de 1997, por João Paulo II e canonizado dez ano depois, em 2007, pelo papa Bento XVI;  São José de Anchieta: nasceu na Espanha e morreu em 1597 no Espírito Santo. Foi beatificado pelo papa João Paulo II no ano de 1980 e canonização em 2014 pelo papa Francisco. É conhecido como o Apóstolo do Brasil, por ser um dos pioneiros na introdução do cristianismo no país.

Imagem 3 – Iconografia dos santos brasileiros.

60 Para saber mais sobre os três santos supracitados, que participaram das missões jesuíticas brasileiras, ver: LEITE, Serafim. Fundação da lingüística nacional. In: História da Companhia de Jesus no Brasil: Tomo II (Século XVI). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1939, p. 545-568. 61 Para saber mais, ver: CADORIN Célia B. Ser para os outros. Perfil Biográfico de Madre Paulina do Coração Agonizante de Jesus. São Paulo: Ed. Loyola, 2001. 51

Fonte: Wikipedia62, 2016.

Dentre estes seis santos brasileiros canonizados, apenas Santo Antônio de Sant'Anna Galvão (Frei Galvão) nasceu no Brasil, no ano de 1739, natural de Guaratinguetá, São Paulo. De acordo com António de Sousa Araújo63, Frei Galvão foi beatificado em 1998 pelo papa João Paulo II e canonizado no ano de 2007 pelo papa Bento XVI, mas seu processo de canonização iniciou ainda na década de 1930. Frei Galvão faleceu no ano de 1822 e foi sepultado na capela do Mosteiro da Luz, na cidade de Luz, em São Paulo:

62 Montagem criada com imagens retiradas do site Wikipedia. In: WIKIPEDIA. A enciclopédia livre. Disponível em: . Acesso em 13 set. 2016. 63 ARAÚJO, António de Sousa. Santo António de Sant’Ana Galvão (1739- 1822): primeiro Santo natural do Brasil. In: Revista Lusitania Sacra, Lisboa, n ° 23, p. 243-262, jan/jun 2011. Disponível em: . Acesso em 12 set. 2016. 52

o seu corpo foi deposto no presbitério da igreja, em sepultura aberta sob a lâmpada do Santíssimo, em frente do altar, cuja lápide registaria o epitáfio: [...] “Aqui jaz Frei António de Sant’Ana Galvão, ínclito fundador e reitor desta casa, que tendo sua alma sempre em mãos, placidamente adormeceu no Senhor, o dia 23 de Dezembro do ano de 1822” [epitáfio está em latim]. A primitiva lápide foi substituída por outra de mármore, com os mesmos dizeres, em 1906. Em Fevereiro de 1991, no âmbito do processo de beatificação, perante as Autoridades, membros do Tribunal Eclesiástico e Médicos do Instituto Médico-Legal de São Paulo e alguns especiais convidados, procedeu-se à exumação dos restos mortais de Frei Galvão. Deles, a parte mais conservada foi recolhida numa urna colocada no mosteiro; os fragmentos menores continuariam a permanecer na sepultura.64

Sua sepultura se tornou local de peregrinação dos devotos, que visitam e costumam deixar flores e bilhetes com pedidos e agradecimentos, conforme Imagem 4. A capela do Mosteiro da Luz é visitada pelos fiéis durante todo o ano, mas é no mês de outubro, na Festa de São Frei Galvão, que o mosteiro recebe a maior quantidade de devotos, com a visita de centenas de pessoas.65

Imagem 4 – Sepultura de Santo Antônio de Sant'Anna Galvão.

64 ARAÚJO, op. cit., p. 255-256. 65 MOSTEIRO DA LUZ. A igreja de São Frei Galvão. Disponível em: . Acesso em 13 set. 2016. 53

Fonte: Mosteiro da Luz66, 2016.

Além destes seis canonizados, existem mais de oitenta beatos brasileiros, isto é, que foram beatificados, mas ainda não canonizados. Destes beatificados, apenas dez “já receberam o título de Veneráveis, ou seja, já tiveram suas virtudes reconhecidas pela Igreja”, conforme salienta o padre Felipe Aquino.67 Entre eles, somente três foram antes do ano de 2012, conforme listagem a seguir:

 Venerável Maria Teodora Voiron (1989);  Venerável Antonieta Farani (1992);  Venerável Padre Rodolfo Komorek (1995);  Venerável Padre Francisco de Paula Victor (2012)  Venerável Atílio Giordani (2013);  Venerável Irmã Serafina Cinque (2014);  Venerável Madre Teresa de Jesus Eucarístico (2014);  Venerável Dom Antônio Ferreira Viçoso (2014);  Venerável Marcello Candia (2014);

66 MOSTEIRO DA LUZ, op. cit. 67 AQUINO, 2016, op. cit. 54

 Venerável Padre João Schiavo (2015).68 Enfim, são décadas, quando não, séculos de tramitações para que uma pessoa se torne santa oficialmente reconhecida pela Igreja Católica Apostólica Romana. Para tanto, passa-se por longos processos, como as venerações, beatificações e, por fim, após o reconhecimento e a aprovação dos milagres no Vaticano, o beato é canonizado. A declaração de canonização pode ser feita apenas pelo papa ou pelos bispos reunidos em Concílio, no Vaticano. Tal declaração é chamada, segundo Felipe Aquino69 de “declaração de magistério infalível, ou seja, é um dogma, é uma verdade irrevogável e definitiva.” Para oficializar seus santos católicos, os devotos acabam fazendo suas homenagens em eventos, como festas e procissões dirigidas e controladas pelo “clero ou por organizações católicas de leigos identificadas com as ordenações papais. Para estes santos são erguidas [...] lugares onde, segundo o oficial, a Casa de Deus recebe seus santos para que estes intercedam pelos fiéis que a eles recorrem”.70 Diferentemente, se observarmos os milagreiros de cemitério, ou seja, os santos não canonizados pela Igreja, estes não possuem templos e eventos organizados pela Igreja para agrupar seus fiéis. Mas os devotos veem no cemitério e no túmulo do milagreiro um local de peregrinação, devoção e ritualização. Como bem lembra Lourival Andrade Júnior, para seus fiéis, não existe a “preocupação de que isso seja oficializado. Ele vive o seu sagrado e pouco lhe importa o que os outros ou as instituições pensem disso. Ele torna-se cúmplice de sua divindade. Podemos dizer que os [...] ‘santos de cemitério’, vivem uma clandestinidade religiosa visível.”71 Importante lembrar que estes devotos dos milagreiros de cemitérios são, geralmente, católicos que frequentam missas e que pedem graças igualmente aos santos canonizados. Assim, “não se pode estranhar que o mesmo católico que vai à missa comungar e se confessar também vá ao cemitério fazer algum pedido para um ‘santo de cemitério’ que em nada está sacralizado pela Igreja oficial.”72 Como

68 SANTOS DO BRASIL. Disponível em: . Acesso em 13 set. 2016. 69 AQUINO, Felipe (Org.). Relação dos Santos e Beatos da Igreja. 2ª ed. Lorena: Editora Cléofas, 2007. 70 ANDRADE JÚNIOR, 2008, op. cit., p. 93. 71 Ibidem, p. 89. 72 Ibidem, p. 100. 55

exemplifica José Carlos Pereira73, muitos dos que visitam o Santuário Nacional de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, em Aparecida, São Paulo, acabam aproveitando a viagem e passando em alguns milagreiros existentes na região como em “Cachoeira Paulista para rezar e pedir graças a ‘Santa Cabeça’ e em São José dos Campos para pedir a ‘Perna Milagrosa’. O imaginário religioso é fértil em sacralizar objetos com certas características ou equivalência e que tem ascendência obscura, portanto misteriosa”. Mas não são apenas os praticantes do catolicismo que frequentam os túmulos dos milagreiros. Muitos dos devotos dos santos de cemitério também são praticantes dos cultos de matriz africana, como a Umbanda e o Candomblé, além de alguns casos de Espíritas, como observado entre os devotos das milagreiras desta pesquisa, sobretudo, os fiéis de Vida Machado. Como recorda Duduco, pai de Vida Machado74, muitos de seus conhecidos umbandistas, como vizinhos e amigos, pedem a sua filha e como forma de agradecimento pelas graças alcançadas, deixam em seu túmulo algumas oferendas, como balas e bolachas. Enfim, independente da religiosidade, o culto aos mortos é o que está em questão, culto este presente desde a antiguidade.

1.2 O CULTO AOS MORTOS NO DECORRER DA HISTÓRIA

A preocupação em cultuar seus entes mortos está presente desde a Antiguidade, com a intensificação do culto aos mártires, como bem ressalta a historiadora Claudia Rodrigues75:

desde o século IV, a expansão do culto dos mártires (muito mais a partir de suas tumbas e relíquias do que nos lugares de seu martírio) foi fundamental para a legitimação do cristianismo frente ao chamado “paganismo”, sendo

73 PEREIRA, José Carlos. Devoções marginais. – interfaces do imaginário religioso. Porto Alegre: Zouk, 2005, p. 51. 74 MACHADO, 2016, op. cit. 75 RODRIGUES, Cláudia. Lugares dos mortos na cristandade ocidental. In: Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Maringá, v. 5, n.15, jan/2013. Disponível em: . Acesso em: 15 set. 2016, p. 107. 56

progressivamente posto sob o controle clerical. Ao levar os cadáveres dos mártires para a cidade, o cristianismo os introduziu no meio dos vivos, em função da crença de que a Igreja era uma só comunidade, que abarcava os santos, os vivos e os mortos. Os túmulos dos santos tornaram-se, doravante, o centro da vida eclesiástica e o seu culto provocou uma visível mudança na relação entre os vivos e os mortos, principalmente em função da transformação dos túmulos dos mártires em locais de veneração e peregrinação.

Tornou-se importante cuidar do espaço onde tais mortos estavam sepultados, instituindo-se nesse período o controle e monopólio da Igreja sobre as sepulturas dos falecidos. Outro ponto importante desse período foi a relação que os “cristãos fizeram entre o culto dos antigos mártires (e de seus túmulos) e a fé na ressurreição sendo os elementos que permitiram a aproximação dos vivos para com os mortos com a busca de inumação próximo aos túmulos dos mártires, a partir do século V.”76 Contudo, inicialmente, os enterramentos eram feitos fora das cidades, longe das residências, devendo o mundo dos vivos estar totalmente distante dos mortos. Como lembra Philippe Ariès77, com o passar dos anos e as relações com o culto aos mortos, os enterramentos começaram a serem feitos nas igrejas, criando-se a relação “osmótica” entre igreja e cemitério: “Reciprocamente, enterrava-se ao mesmo tempo na igreja, contra suas paredes e nas imediações, in porticu, ou sob a calha, sub stillicidio. A palavra cemitério designou mais particularmente a parte externa da igreja, o atrium ou aître (átrio)”78 (grifos do autor). E assim instituiu-se no decorrer do medievo a clericalização da morte, “através da qual o clero foi instituído como intermediário por excelência das relações entre os vivos e os mortos e, em especial, da gestão do culto aos mortos.”79 Neste sentido, a morte passou a ser um meio de cristianizar, por meio da “pedagogia do medo”, como delineia

76 Ibidem, p. 108. 77 ÀRIES, Philippe. História da morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003, p. 40-41. 78 Ibidem, p. 41. 79 RODRIGUES, 2013, op. cit., p. 109. 57

Michel Vovelle.80 Pensando-se em cristianizar através da morte, é estabelecida a partir do século XII, a doutrina do purgatório, por meio do qual constituíram-se “laços de solidariedade entre os vivos e os mortos. O fundamento básico era que através das orações ou esmolas realizadas em intenção de parentes ou amigos mortos os vivos concorreriam para a abreviação das penas de quem delas se favoreceria no Purgatório.”81 Foi a partir deste período que a Igreja Católica passou a controlar escolas e preces, além de cobrar pelas missas feitas em intenção aos entes mortos, beneficiando-se “inclusive com a transposição do sistema de indulgências para a esfera da morte e do Purgatório e com a transformação da prática testamentária em caminho por excelência de preparação para a ‘boa morte’.”82 Quanto à devoção e zelo com as almas do purgatório, estas continuam fazendo parte da vida de muitos católicos brasileiros, como lembra Ilone Fochesatto: “Basta prestar um pouco de atenção no momento em que são lidas as intenções da missa em qualquer comunidade, e logo se verá que a maior parte delas se refere a pessoas falecidas. Entre os descendentes italianos, esta devoção atingiu uma proporção de destaque.”83 Além disso, através da minha pesquisa de trabalho de conclusão de curso84 realizada na cidade de Urussanga, no sul do estado de Santa Catarina, pude observar um ritual de visitação e de pedidos de graças pelas almas do purgatório. Assim, durante nove segundas-feiras consecutivas de qualquer época do ano, faz-se uma novena no cemitério para alcançar uma graça das benditas almas do cemitério. A segunda- feira é considerada pela Igreja Católica o dia de todas as almas, justificando-se a ocorrência das novenas serem realizadas nesse dia da semana. Na cidade de São Paulo, como reforça Amanda Aparecida Pagoto, durante as segundas-feiras é grande “a quantidade de fiéis ofertando velas e orações à memória dos familiares falecidos e às Almas

80 VOVELLE, Michel. As almas do purgatório, ou, o trabalho de luto. São Paulo: Editora UNESP, 2010. 81 RODRIGUES, 2013, op. cit., p. 110. 82 Ibidem. 83 FOCHESATTO, Iloni. Descrição do culto aos mortos entre descendentes italianos no Rio Grande do Sul. Caxias do Sul: CO-EDIÇÃO Escola Superior de Teologia. Universidade de Caxias do Sul. 1977, p. 11 84 TOMASI, 2010, op. cit., p. 107-108. 58 pertencentes ao Purgatório, no intuito de ‘iluminá-las’ e proporcioná-las maior conforto no além.”85 Retornando ao medievo e ao controle da Igreja e a cristianização, segundo Michel Vovelle86, foi instaurado ainda neste período, entre os anos de 1024 e 1033, durante a ordem de Cluny, a celebração do dia 02 de novembro como comemoração dos mortos. Nesta data, conhecida inicialmente como dia de todos os mortos, eram realizadas orações pelas benditas almas do purgatório. Apenas no século XIX que tal celebração foi intitulada “Dia de Finados”, ritual que caracteriza-se pela visitação aos cemitérios, sendo bastante comemorado no Ocidente Católico, como observa-se no Brasil.87 Quanto ao culto aos mortos, o cuidado com o corpo do morto e a institucionalização dos cemitérios se tornaram presentes após a Idade Média, tendo em vista que ainda no século XVII não existia certo cuidado e preocupação com o destino dado aos restos mortais de seus entes, “contando que permanecessem perto dos santos ou na igreja, perto do altar da Virgem ou do Santo Sacramento. O corpo era confiado à Igreja. Pouco importava o que faria com ele, contanto que o conservasse dentro de seus limites sagrados.”88 O que importava era que o corpo estivesse nas igrejas ou suas imediações, ficando próximo de Deus e dos santos, o que significava a garantia da salvação da sua alma. Posteriormente, no final do século XVIII e no decorrer do XIX, os cemitérios começaram a ser construídos fora das igrejas e suas imediações, tendo em vista, dentre outros motivos, os riscos de saúde que poderiam causar à sociedade. Como destaca Renato Cymbalista:

A proximidade entre mortos e vivos passa a ser maléfica, mal vista e os cemitérios são desterrados: longe dos olhos, em espaços onde cada um tem direito a um espaço seu para se decompor, pois não mais se quer tropeçar nos cemitérios entre casas e próximos a Igrejas, já que “A saúde pública exige, que se acabe com um

85 PAGOTO, Amanda Aparecida. Do âmbito sagrado da igreja ao cemitério público: transformações fúnebres em São Paulo (1850-1860). São Paulo: Arquivo do Estado, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004, p. 47. 86 VOVELLE, op. cit., p. 27. 87 REZENDE, Eduardo Coelho Morgado. Cemitérios. São Paulo: Editora Necrópolis, 2007, p. 16. 88 ARIÈS, 2003, op. cit., p. 42. 59

abuso nocivo, introduzido pela barbaridade e ignorância.89

Diferente da falta de preocupação com os restos mortais sepultados nos interiores das igrejas durante o medievo, nos cemitérios, a localização e manutenção das unidades tumulares dos entes queridos sepultados tornam-se importantes, como lembra Àries:

Agora, queria-se não só que se voltasse ao lugar exato onde o corpo havia sido colocado, mas também que esse lugar pertencesse, como propriedade exclusiva, ao defunto e a sua família. Foi então que a concessão da sepultura tornou-se uma certa forma de propriedade, subtraída ao comércio mas com perpetuidade assegurada. Foi uma grande inovação. Vai-se, então, visitar o túmulo de um ente querido como se vai a casa de um parte ou a uma casa própria, cheia de recordações. A recordação confere ao morto uma espécie de imortalidade, estranha ao começo do Cristianismo. A partir do século XVIII na França – principalmente no decorrer dos séculos XIX e XX, anticlericais e agnósticos -, os descrentes serão os visitantes mais assíduos dos túmulos de seus parentes. A visita ao cemitério foi – e ainda é -, na França e na Itália, o grande ato permanente de religião.90

Além disso, apesar dos mortos estarem reunidos em um mesmo campo-santo, cada qual se encontra em um local e em uma determinada forma que caracteriza sua alocação e status. Algumas unidades tumulares são bastante requintadas, com alto investimento econômico observado através das suas ornamentações (como esculturas de artistas renomados internacionalmente) e materiais construtivos empregados (como metais e mármores raros), enquanto alguns indivíduos são

89 CYMBALISTA, Renato. A cidade dos vivos: arquitetura e atitudes perante a morte nos cemitérios do Estado de São Paulo. São Paulo: Annablume; Fapesp. 2002, p. 47. 90 ÀRIES, 2003, op. cit., p. 75. 60 enterrados em covas simples91 ou em gavetas comuns, sem qualquer refinamento. O cemitério acaba então reproduzindo “na sua topografia, a sociedade global, como um mapa reproduz um relevo ou uma paisagem.”92 A distinção social nos campos-santos brasileiros é ressaltada desde as primeiras décadas do século XX, a exemplo de Gilberto Freire, em seu livro “Sobrados e Mocambos”, do ano de 1936, como expõe: “O homem morto ainda é, de certo modo, uma homem social. E, no caso de jazigo ou monumento, o morto se torna expressão ou ostentação de poder, de prestígio, de riqueza dos sobreviventes, dos descendentes, dos parentes, dos filhos, da família.”93 Outra característica do culto aos mortos na contemporaneidade foi que no decorrer do século XX, muitos dos ritos funerários sofreram alterações ou deixaram de ser praticados. Essa variedade de rituais, tão presente na vida dos que ficavam, foi se perdendo, juntamente com o sentido da morte, que se tornou um tabu e de certa forma inominável. Segundo Philippe Ariès94, a atitude de interdição diante da morte teve início nos Estados Unidos95 após a Primeira Guerra Mundial, sendo um meio para os que ficavam, como familiares e amigos do falecido, de preservarem sua felicidade e desviarem do sofrimento que a morte causa. A morte nas últimas décadas acabou sendo, em muitos casos, “reprimida”, e a sociedade que anteriormente estava ao lado da família do morto, se ausentou em quase todas as práticas. Poucos rituais ainda persistem em cidades do interior, como o toque dos sinos de morte, os velórios dentro de casa e as práticas de encomendação do corpo, porém, a variedade antes existente, como realizar um cortejo fúnebre, foi na

91 É um tipo de sepultamento que se caracteriza pela ausência de qualquer construção tumular, composto às vezes por ornamentos, como a cruz, ou outro tipo de sinalização, como um montículo de areia ou vegetação. 92ARIÈS, Philippe. O Homem diante da morte. 2 v. Rio de Janeiro: F. Alves, 1990, p. 547. 93 FREIRE, Gilberto. Sobrados e Mocambos. 12ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Rercord, 2000, p. 39. 94 Ibidem, p. 91. 95 Nos Estados Unidos da América, segundo Júlio de Queiroz, o morrer deve ser banido do viver social, sendo que “estar doente é apenas uma ocasião para demonstrar que se pode sarar, e, nesse país, a morte não tem sentido.” In: QUEIROZ, Júlio de. Morrer para principiantes: ensaios. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2008, p. 50. 61

expressão de José Carlos Rodrigues96 negligenciada, transformando-se a morte e seus rituais em verdadeiros tabus. Juntamente com a interdição da morte íntima, percebe-se, na contemporaneidade, um afastamento dos rituais fúnebres. Mesmo que alguns ritos tenham perdurado no decorrer do século passado e início do XXI, deve-se salientar que muitos deles “foram esvaziados de sentimento e significado; as formas seculares tradicionais de expressão são pouco convincentes”97, como se percebe com o momento do enterro. Anteriormente tão importante para os familiares e amigos do falecido, visto ser o momento mais extremo de separação entre os que ficavam e o falecido, como antes descrito, o enterro cessou de ser um “espetáculo familiar” no transcorrer do século XX. Outra transformação do culto aos mortos a partir das primeiras décadas do século XX é o fato de que muitos adoentados passaram a morrer nos hospitais e clínicas e não mais em casa, junto dos familiares e amigos, como nos séculos passados. Tal característica representa um deslocamento do lugar da morte, já que ela sai da casa, espaço “onde sempre vivera o moribundo, lá onde estavam as suas raízes, as suas lembranças, os seus familiares e os seus pertences, para um espaço de anonimato, para um ambiente frio, vazio e desconhecido: a solidão do quarto de hospital."98 E quando os doentes estão à beira da morte, os médicos raramente falam do seu estado de saúde, ficando os familiares, e principalmente os moribundos, sem saber que a morte está próxima, ou seja, o novo “costume” determina que a pessoa faleça na ignorância de sua própria morte, como lembra Philippe Ariès.99 Outra característica presente na contemporaneidade é o isolamento do idoso do seu círculo familiar e de amizade e a criação dos asilos, que são segundo o sociólogo Norbert Elias100, verdadeiros desertos da solidão. Verifica-se, em muitos casos, um adoecimento e uma morte isolada, privada e solitária desses idosos, o que difere drasticamente das mortes dos séculos anteriores ao XX, que eram eventos muito mais públicos, sendo que os indivíduos faleciam junto

96 RODRIGUES, José Carlos. Tabu da Morte. 2 ed. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2006, p. 163. 97 ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994, p. 36. 98 CORRÊA, José de Anchieta. Morte. São Paulo: Globo, 2008, p. 23. 99 ÀRIES, 2003, op. cit., p. 235 100 ELIAS, op. cit., p. 85-87 62 dos outros por estarem “menos acostumadas a viver e estar sós. Não havia muitos cômodos em que uma pessoa pudesse ficar só. Os moribundos e os mortos não eram tão flagrantemente isolados da vida comunitária.”101 Todavia, no decorrer do século XX e na primeira década do XXI, alguns dos antigos cultos aos mortos ainda foram praticados, como ocorre no Dia de Finados, também conhecido com dia de todos dos mortos. No Brasil, tanto nas áreas rurais quanto urbanas, os cemitérios se tornaram no Dia de Finados um ambiente movimentado, enfeitado e colorido, com a variedade de flores e velas. Nos dias que antecedem a data, muitos familiares e amigos dos falecidos costumam visitar o campo-santo para arrumar a sepultura102, lavando-a, pintando-a e depositando os ritos, entre eles os arranjos de flores naturais e artificiais, como também as velas. Em algumas regiões do país, pessoas viajam longas distâncias para visitar seus entes falecidos, sendo que muitos cemitérios são no dia dois de novembro espaços de sociabilidade e de reencontro com amigos e parentes distantes há anos. Tais características podem ser encontradas ainda hoje na cidade de Urussanga, no Sul do Estado de Santa Catarina, de modo que a data atrai moradores de “diversas cidades tanto da redondeza, como de locais distantes no estado, como Florianópolis, Laguna e Tubarão, para visitar seus entes mortos e participar das celebrações [como as missas realizadas dentro do cemitério].”103 Percebe-se então que o Dia de Finados é uma data extremamente importante para muitos dos brasileiros, em especial para os enlutados que enterraram um ente querido recentemente ou para os devotos que aproveitam a ocasião para homenagear seus milagreiros de cemitério. Conforme salienta Roberto DaMatta104, o Dia de Finados ou dia dos mortos, é uma data que,

no Brasil goza de imensa popularidade, ocasião em que, todas as famílias visitam o cemitério e lembrar os ‘seus mortos’ mais queridos ou mais

101 Ibidem, p. 87. 102 Nos últimos anos, esses ritos de preparação da sepultura do falecido, como limpar, lavar e pintar o túmulo, estão saindo do âmbito familiar e sendo realizados por pessoas pagas para tais funções, de modo que muitos indivíduos estão se especializando na execução de tais serviços no interior dos cemitérios. 103 TOMASI, 2010, op. cit., p. 103. 104 DAMATTA, Roberto. A casa & a rua. 5ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 146. 63

recentes. Vivemos em um universo onde os vivos têm relações permanentes com os mortos e as almas voltam sistematicamente para pedir e ajudar, para dar lições de humildade cristã aos vivos, mostrando sua assustadora realidade.

Entretanto, no restante do ano, principalmente nas grandes cidades brasileiras, o cemitério, de local para sepultar e ritualizar seus entes falecidos e milagreiros tornou-se um espaço “para fumar um baseado, [realizar] práticas sexuais proibidas ou esconderijo de bandidos fugindo da polícia e até de abrigo a alguns desavisados e sem-teto” como destaca José de Anchieta Corrêa.105 Os cemitérios ficam muitas vezes invisíveis nas grandes cidades, quando não são totalmente esquecidos devido à movimentação intensa dos espaços urbanos, com seus prédios altos e viadutos que cortam avenidas inteiras. Assim, mesmo “situados ao lado ou no limite de aglomerado - favelas ou moradias de classe média - ou circundados por vias de tráfico, linhas de ônibus, os cemitérios passam quase sempre despercebidos à população urbana de nossos dias.”106 (grifo do autor). Tais características podem ser confirmadas no cemitério analisado nesta pesquisa, o Itacorubi. São diversos prédios (Imagem 5), ruas e viadutos que o ocultam na grande cidade, apesar do cemitério estar localizado entre duas avenidas movimentadas da cidade de Florianópolis, a Rodovia Admar Gonzaga e a Rodovia SC-401.

Imagem 5 – Cemitério do Itacorubi entre os prédios e avenidas.

105 CORRÊA, op. cit., p. 17. 106 CORRÊA, op. cit., p. 16-17. 64

Fonte: Acervo da autora, 2016.

Além das modificações e permanências dos antigos rituais fúnebres, novos foram introduzidos nas grandes cidades ocidentais, no decorrer do século XX. O morto é a partir de então, em muitos casos, maquiado, disfarçando seu aspecto e aparência mórbida, através da toalete fúnebre, que tenta de alguma forma conservar no corpo do morto a sua fisionomia familiar e alegre que tinha durante a vida.107 E o

107 Para Roberto DaMatta, “o cadáver tem que ser disfarçado (maquiado, embalsamado e colocado num caixão acolchoado e acetinado que lembra uma cama confortável) nos Estados Unidos”, pois a sociedade contemporânea é intensamente egoísta, com um credo individualista. In: DAMATA, 1997, op. cit., p. 138. 65

falecido, não mais velado na casa da família durante 24 horas, pode agora ser exposto por algum tempo na funeral home, uma espécie de hotelaria especializada em receber os entes mortos. Como descreve Philippe Ariès108, a funeral home é caracterizada como “um lugar neutro, que não fosse nem o hospital anônimo, nem a casa demasiado pessoal”, sendo que os velórios realizados nesses locais são para os psicólogos contemporâneos um meio de afastar a dor dos enlutados através de seus ambientes floridos, belos e serenos.109 Outra especialidade relacionada aos rituais de morte na contemporaneidade é que estes deixaram de ser realizados pelos familiares e amigos do morto e passaram a ser feitos por pessoas e empresas especializadas, como os funeral directors. Esses são profissionais que apresentam-se não apenas como “simples vendedores de serviços mas como doctors of grief que têm uma missão, tal como os médicos e os padres, e essa missão, desde o princípio do século, consiste em ajudar os sobreviventes enlutados a voltar ao normal”110 (grifo do autor). Portanto, essas empresas especializadas em vender produtos e serviços relacionados com a morte, como donos e funcionários de funerárias, cemitérios e crematórios, promovem em muitos casos um discurso de eufemismo. Estes discursos tentam neutralizar as palavras que suscitem a lembrança da morte e de seus rituais, como “‘sala de preparação’ em vez de câmara funerária, ‘ataúde’ no lugar de caixão, ‘caixão’ ou ‘féretro’ significando corpo, ‘corpo’ no lugar de cadáver, ‘cerimônia’ em vez de sepultamento.”111 De acordo com Júlio de Queiroz112, as nomenclaturas relacionadas com a morte tornaram-se cada vez menos chocantes, de modo que “Morria-se na Idade Média. No Romantismo europeu, ao morto faleciam as forças. Daí a expressão ‘falecido’: o que perdeu as forças. No mundo moderno, o ente querido deixou os seus, partiu, descansou, fez o favor de sumir-se por fim.” O mesmo afastamento da morte e de seus rituais ocorreu no decorrer do século XX nos cemitérios, como nos cemitérios jardins,

108 ÀRIES, 2003, op. cit., p. 276-268. 109 Ibidem, p. 271. 110 ÀRIES, 2003, op. cit., p. 62. 111 RODRIGUES, op. cit., 179. 112 QUEIROZ, op. cit., p. 61. 66 também conhecidos como cemitérios parques113, que contiveram os traços mórbidos, dando a impressão ao visitante de estar em um jardim ou parque, sem a presença das ornamentações como as esculturas de anjos e cruzes, tão comuns nos cemitérios secularizados. Nos cemitérios jardins, as sepulturas, quase sempre em estruturas pré-moldadas não aparentes e totalmente subterrâneas, trazem pouca identificação de quem é o falecido, como apenas uma lápide com seu nome, as datas de nascimento e morte e, às vezes, sua fotografia e um epitáfio114, isto quando as sepulturas não são totalmente “anônimas”. E as variadas formas de ritualizar os mortos, bastante encontradas nos cemitérios secularizados, são em alguns cemitérios jardins proibidas, como acender uma vela, levar uma flor artificial, um rito afro ou mesmo depositar sobre a sepultura objetos pessoais do falecido, os conhecidos cultos populares. Na cidade de Florianópolis, o único cemitério no formato jardim é o Cemitério Parque Jardim da Paz. Construído há 45 anos, atualmente localizado em uma das avenidas mais movimentadas da cidade, na SC- 401, fica próximo ao cemitério do Itacorubi. É apresentado em sua página virtual por ser o único cemitério local circundado pela natureza verde, paz e tranquilidade, além de ser “idealizado para ser um lugar único e seguro em busca da paz e serenidade. Áreas verdes valorizadas e

113 Os cemitérios jardins ou parques são caracterizados pela “concepção cemiterial com túmulos praticamente ocultos na paisagem, cercados de verde e flores, como em um jardim.”. In: CASTRO, Elisiana Trilha. Aqui também jaz um patrimônio: identidade, memória e preservação patrimonial a partir do tombamento de um cemitério (o caso do Cemitério do Imigrante de Joinville/SC, 1962-2008). Florianópolis, 2008. Dissertação (Mestrado em Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro Tecnológico, 2008, p. 52. Os cemitérios jardins foram criados nos Estados Unidos, sendo que o primeiro cemitério parque do Brasil foi o Cemitério da Paz em São Paulo, no bairro do Morumbi, criado em 1965, de origem protestante. Atualmente, grande parte dos cemitérios particulares existente no Brasil é do tipo jardim, de modo que além de adquirir um lote, é necessário, em muitos casos, pagar uma mensalidade. In: REZENDE, op. cit., p. 24-25. 114 Os epitáfios podem ser frases que sintetizam o que o morto foi em vida, mensagens de saudade deixadas pelos familiares e amigos, como também fragmentos bíblicos. Essas inscrições, como “Saudades eternas” e “Descanse em paz”, costumam estar presentes na lápide, junto dos dados sobre o falecido. 67

bem cuidadas em 40 mil m2, e extensos gramados com árvores e flores tornam o ambiente mais agradável.”115

Imagem 6 – Cemitério Parque Jardim da Paz de Florianópolis

Fonte: CEMITÉRIO PARQUE JARDIM DA PAZ116, 2016

Além disso, contemporaneamente, com as inovações da medicina e a expectativa de vida cada vez maior, a morte e seus rituais foram adiados, de forma que o “espetáculo da morte não é mais corriqueiro”117, sendo criada inclusive, no ano de 1949, a famosa máquina que luta contra a morte, mais conhecida como a “máquina de parar a morte”, do doutor J. Thomas, conforme lembra Edgar Morin118. Para Zygmunt Bauman119, na contemporaneidade vive-se tão ocupado

115 CEMITÉRIO PARQUE JARDIM DA PAZ. Disponível em: . Acesso em 10 out. 2016. 116 CEMITÉRIO PARQUE JARDIM DA PAZ, op. cit. 117 ELIAS, op. cit., p. 15. 118 MORIN, op. cit., p. 325. Ainda, segundo Edgar Morin, esta famosa máquina de “parar a morte”, permite “realizar a perfusão de grandes órgãos, e mesmo de organismos humanos inteiros, em condições próximas das condições fisiológicas normais.” Tal máquina, como bem salienta, é apenas um exemplo dos variados caminhos da ciência, que vão contra as ideias de que o paciente pode ou vai morrer, de modo que “Todos os métodos de luta contra a enfermidade se prolongam em métodos de luta contra a velhice. Todos os métodos de luta contra a velhice se prolongam em métodos de luta contra a ‘bela’ morte. Todos os métodos de luta contra o acidente se prolongam em métodos de luta contra a morte ‘feia’.” In: MORIN, op. cit., p. 327. 119 BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004, p. 194. 68 que “tentando observar todas as prescrições e proscrições que a medicina moderna propõe, pensamos menos, se tanto, na vaidade suprema dessa observância. O resultado da desconstrução é que o inimigo invisível, a morte, desapareceu de vista, e do discurso.” Em suma, como bem sintetiza François Hartog120, notamos nas últimas décadas a extrema valorização da juventude e o retardamento dos sinais da velhice, como as plásticas para amenizar as rugas, particularidades esses do presente no qual vivemos, que se caracteriza por ser hipertrofiado e alargado. E o medo da morte foi intensificado no século passado, de modo que os vivos, mesmo os idosos, acabam se identificando menos com o adoecer, idealizando em muitos casos a imortalidade e a ideia de que a morte está distante.

1.3 MARIA DEGOLADA, ODETINHA E AS 13 ALMAS BENDITAS: OS MILAGREIROS DOS CEMITÉRIOS BRASILEIROS

São milagreiras e milagreiros adultos, idosos, jovens e crianças. Independente do gênero, idade, religião, época que morreu e localidade brasileira em que morava ou faleceu, os milagreiros de cemitério permeiam um universo de devoções, práticas e ritualizações. Dentre as características que lhes aproximam apesar da imensidão que os circundam duas merecem destaque. Os túmulos em que estão os restos mortais dos milagreiros, geralmente localizados nos cemitérios, são os espaços de devoção e peregrinação dos devotos. Sejam unidades tumulares das mais variadas tipologias, como cova simples, túmulo, gaveta, jazigo121 ou mausoléu122 e situados em regiões rurais ou urbanas, de fácil ou difícil acesso, os devotos visitam as sepulturas e lá fazem seus pedidos, intercessões e deixam seus presentes aos milagreiros,

120 HARTOG, François. Tempo, História e a escrita da História: a ordem do tempo. Revista de História, n. 148, São Paulo, 1°. Sem. 2003, p. 27. 121 O jazigo é uma sepultura edificada horizontalmente “para sepultamento de várias pessoas, geralmente, de menor porte que o mausoléu e maior que o túmulo.” In: CASTRO, Elisiana Trilha. Ruhe Sanft: inventário do cemitério de imigrantes alemães de São Martinho Alto. Blumenau: Nova Letra, 2014, p. 311. 122 Também conhecidas como capelas, são as unidades tumulares de grande porte, geralmente, em formato de uma casa, contendo em vários casos janelas, bancos e altares internos com fotografias dos falecidos. Os mausoléus podem abrigar sepultamentos de várias pessoas agrupados em gavetas localizadas ao redor da sepultura. 69

como flores, velas e comidas como forma de agradecimentos, além das placas de ex-voto. O segundo aspecto que aproxima os milagreiros nacionalmente é a forma como tais pessoas faleceram. Sejam mortes por assassinato, acidentes123, suicídio, linchamentos, estupro ou espancamento, os milagreiros geralmente tiveram mortes que “justificam estas devoções. O trágico é sem dúvida o que melhor qualifica o morto e seus poderes. Vale ressaltar que estas mortes, de alguma forma, tem o poder de apagar o que o morto fazia em vida. [...] O trágico purga os pecados da vida.”124 Deste modo, quanto mais foi torturado durante a sua vida, mais o milagreiro de cemitério se torna detentor do poder por ter confirmado na dor corporal sua “fidelidade a Deus e seu filho Jesus Cristo. A dor do corpo, que parece não ser sentida pelo martirizado, é a forma de purificação da alma. A vida passa por este filtro espiritual com o advento da morte, e a resignação perdoa todos os atos impuros.”125 As mortes por doença é outra qualificadora para os santos de cemitério, sobretudo, as crianças que sofreram adoentadas durante longos anos. Além da doença, como lembra Andrade Júnior, tais milagreiros também tiveram, quase sempre, uma vida repleta de:

dedicação ao cristianismo para depois de morto ser cultuado. No caso das crianças, a morte por doença é ainda mais qualificadora. Temos relatos de várias crianças que morreram por diversos males, sofreram, e se tornaram poderosos milagreiros no campo devocional não oficial. Sua pureza é ainda mais destacada e potencializa seus poderes. Podemos citar, entre tantos casos: Antonio da Rocha Marmo em São Paulo/SP e Vitória Salete Nunes em Chapecó/SC.126

Somando-se as doenças e mortes torturantes, outros casos de milagreiros cultuados no Brasil são os que tiveram seus corpos encontrados depois de um longo período desaparecido e que, de acordo

123 Como ocorrido com as irmãs Rosemary e Jane Koerich, que morreram em um acidente aéreo na década de 1980, conforme será explorado no capítulo 2. 124 ANDRADE JÚNIOR, 2012, op. cit., p. 85. 125 ANDRADE JÚNIOR, 2008, op. cit., p. 106. 126 ANDRADE JÚNIOR, 2012, op. cit., p. 85. 70 com seus devotos, familiares e amigos sofreram em virtude da ausência dos restos mortais.127 Outros exemplos de milagreiros de cemitério e que posteriormente se tornam, em muitos casos, beatificados e santos canonizados pela Igreja Católica são os religiosos, como padres, bispos, freis e freiras, conforme já explorados anteriormente. Por ainda não serem beatificados e canonizados reconhecidamente pela Igreja Católica, ou seja, com seus milagres confirmados pelo Vaticano, a Igreja não os reconhece como santos oficiais, apesar dos fiéis os cultuarem “como ‘milagreiros’. Neste caso, a morte não precisa ser necessariamente trágica, mas o morto clérigo, na esmagadora maioria dos casos, já era visto como homem bom e dedicado aos pobres e necessitados durante sua vida religiosa.”128 Conforme propõe o historiador Lourival Andrade Júnior129, que catalogou ao longo de suas pesquisas do campo devocional brasileiro mais de noventa e cinco milagreiros e milagreiras em diversos estados, muitos indivíduos que foram marginalizados durante suas vidas, se tornaram milagreiros após a morte. São desde assassinos, “cangaceiros, prostitutas e outros agentes sociais, que por suas práticas são marginalizados em vida, passam a operar milagres após sua morte trágica. Além disso, o morto agora tem a oportunidade de pagar por meio de milagres e graças pelos erros que cometeu.”130 Dos inúmeros milagreiros levantados e catalogados por Lourival Andrade Júnior em todo o território nacional, alguns serão apresentados detalhadamente a seguir, por meio da análise de estudos realizados por pesquisadores de diversas áreas do conhecimento, como historiadores, antropólogos, geógrafos, sociólogos e estudiosos da religião, além de reportagens jornalísticas. Iniciando pelos milagreiros infantis, Antoninho da Rocha Marmo é um dos santos de cemitérios mais cultuados e conhecidos nacionalmente. Nascido no dia 19 de outubro de 1918, na cidade de São Paulo, foi sepultado no Cemitério da Consolação no dia 21 de dezembro em 1930, com apenas doze anos, vítima de tuberculose. Antoninho viveu seus doze anos na cidade de São Paulo, ausentando-se apenas durante um período para procurar cura da tuberculose em regiões mais

127 ANDRADE JÚNIOR, 2008, op. cit., p. 107. 128 ANDRADE JÚNIOR, 2012, op. cit., p. 85. 129 Ibidem. 130 Ibidem. 71

frias do estado de São Paulo, como São José dos Campos e Campos de Jordão. De acordo com Marília Schneider131, que estudou as histórias de vida e morte de Antoninho da Rocha Marmo, sua devoção iniciou a partir do incentivo de seus familiares e da igreja local, sobretudo, dos padres que conheceram o menino e vivenciaram sua história de fé dentro da Igreja Católica e de luta pela vida. Contudo, a intenção dos familiares e clérigo não era que Antoninho da Rocha Marmo fosse cultuado como milagreiro de cemitério, mas sim reconhecido pela Igreja como beato e posteriormente canonizado como santo da Igreja Católica. Seu túmulo começou a ser visitado a partir da década de 1930, logo após a sua morte, quando as graças alcançadas começaram a aparecer no discurso dos devotos e nas placas de ex-voto deixadas na sua unidade tumular. Atualmente, a sepultura de Antoninho da Rocha Marmo é uma das mais visitadas do Cemitério da Consolação, recebendo aproximadamente mil visitantes por mês, conforme estimativas do próprio cemitério. De acordo com João Fellet132, a procura pela sepultura de Antoninho intensificou-se após o ano de 1982, quando a Rede Globo produziu um seriado sobre sua vida e a devoção em torno do menino. Dentre os milhares de sepultados do Cemitério da Consolação, inaugurado ainda na metade do século XIX e com sepultamentos de pessoas renomadas nacionalmente, como presidentes, artistas e escritores, o túmulo de Antoninho da Rocha Marmo é o que mais atrai visitante e olhares curiosos:

No Cemitério da Consolação, encravado no centro da capital paulista desde 1858, um túmulo chama a atenção por ter mais flores e receber mais visitas do que qualquer outro. Não é o do presidente da República Washington Luís, enterrado lá em 1957, ou do escritor Monteiro Lobato, morador eterno do endereço desde 1948. Hoje, o destino da

131 SCHNEIDER, Marília. Memória e História (Antoninho da Rocha Marmo): misticismo, santidade e milagre em São Paulo. São Paulo: T. A. Queiroz, 2001. 132 FELLET, João. Túmulo de garoto atrai fiéis até a Consolação. In: Folha uol, 03 nov. 2005. Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0311200518.htm>. Acesso em: 10 set. 2016 72

maioria das homenagens feitas no campo-santo vai para uma discreta sepultura no sexto terreno da quadra 80. Lá, cada milímetro de pedra é disputado por vasos, velas, fotos e placas de agradecimento. Trata-se do jazigo de Antônio da Rocha Marmo, o Antoninho, morto aos 12 anos de tuberculose em 1930 e invocado por pessoas em busca de graça ou milagre, principalmente para a cura de crianças e adolescentes. [...] Sem aprovação da Igreja, apoio de diocese, ou qualquer respaldo oficial, a devoção a Antoninho cresceu e floresceu, fazendo dele um santo do povo, ou, como preferem os estudiosos da devoção popular, um santo de cemitério.133

Odette Vidal de Oliveira, mais conhecida como “Odetinha” e "Santinha do São João Batista" é outra pequena milagreira dos cemitérios brasileiros134. Segundo Maria de Cássia Nascimento Frade135, que pesquisou a vida da menina, Odetinha nasceu no ano de 1930, na cidade do Rio de Janeiro e faleceu no dia 25 de novembro de 1939, com apenas nove anos, em decorrência de uma infecção intestinal agravada por uma meningite. De acordo com Tatiana Fernandes Gurjão, a vida de Odetinha está pautada na devoção a Deus, frequentando missas com seus pais desde os primeiros anos de vida e ajudando os carentes e necessitados: “costumava rezar o terço diariamente. Apesar da origem rica, [...] Conta-se que Odetinha costumava doar seus pertences a pobres e a

133 LOES, João. Santos de Cemitério. In: Isto é, 30 set. 2011. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2016. 134 ROHDE, Bruno; MONTEAGUDO, Clarissa. Odetinha, a santinha carioca: será iniciado processo de canonização da menina que atrai fiéis ao Cemitério São João Batista. In: Extra, 24 dez. 2012. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2016. 135 FRADE, Maria de Cássia Nascimento. Santa de casa: a devoção a Odetinha no cemitério São João Batista. Rio de Janeiro, 1987. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, 1987. 73

mendigos. Além disso, aos sábados, ela servia aos pobres pratos de feijoada preparada por sua mãe.”136 Foi enterrada no Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro, onde estão sepultadas centenas de personalidades públicas, sobretudo, cantores, políticos e artistas nacionais. Sua sepultura é uma das mais visitadas, só ficando atrás do túmulo de Carmen Miranda. Quanto aos milagres, segundo Tatiana Fernandes Gurjão, o primeiro foi o de sua própria mãe, Alice Vidal, que foi até a sepultura da filha e “mergulhou a perna em uma bacia com água e pétalas. No dia seguinte, não havia sinal de ferimento em seu corpo”.137 Diferente da maioria dos milagreiros, isto é, que não são reconhecidos pela Igreja Católica, Odetinha teve seu processo de beatificação iniciado no dia 18 de janeiro de 2013, após o reconhecimento formal de diversos milagres a ela atribuídos. Por tal processo, seus restos mortais foram exumados do cemitério São João Batista e transferidos para uma urna na Basílica da Imaculada Conceição, local onde Odetinha fez a sua primeira-comunhão com apenas sete anos. Ao fazerem a exumação, o “estado de conservação dos restos mortais causou surpresa aos membros da Igreja138. Segundo os religiosos envolvidos com o processo de canonização, cerca de 60% da parte óssea de Odetinha conseguiram ser recuperados.”139 Contudo, ainda não foi reconhecida oficialmente como beata e santa da Igreja Católica, tendo o processo de beatificação apenas iniciado. Sendo assim, se mantém como milagreira de cemitério, apesar dos seus restos mortais não estarem mais sepultados no seu túmulo. Mas, sua sepultura permanece no cemitério São João Batista, sendo ainda local de peregrinação e devoções. Neste sentido, além das devoções na sepultura, os “devotos da menina marcam presença nas

136 GURJÃO, Tatiana Fernandes. O milagre de Odetinha. In: História Viva. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2016 137 Ibidem. 138 Importante destacar que os casos de crença na incorruptibilidade dos corpos são bem frequentes entre os milagreiros de cemitério brasileiros, conforme será explorado no decorrer deste subcapítulo. 139 GURJÃO, op. cit. 74 missas celebradas em sua intenção, todo primeiro sábado do mês, na capela do cemitério onde ela está enterrada.”140 Outro exemplo de criança milagreira de cemitério é o de Ana Lídia Braga, conhecida como a “Menina Santa” de Brasília. De acordo com Diego Bayer141, Ana Lídia foi sequestrada no dia 11 de setembro de 1973 no Colégio Madre Carmen Sallés, local onde estudava, em Brasília. Posteriormente foi assassinada, mas antes foi torturada, asfixiada e estuprada. Seu corpo foi encontrado no dia 12 de setembro, em uma

vala rasa no cerrado próximo ao Centro Olímpico da UnB. A menina foi enterrada nua, de bruços e com a face comprimida contra o chão. O local era praticamente deserto. A perícia constata que antes de ser assassinada, Ana Lídia foi torturada, seus cabelos loiros foram cortados de forma irregular, bem rente ao couro cabeludo. Os cílios da metade interna da pálpebra superior esquerda foram arrancados. Havia escoriações e manchas roxas por todo o corpo, sinais de que ela foi comprimida ou arrastada pelo cascalho.142

O caso até hoje não foi solucionado e o assassino nunca foi encontrado e condenado. Um dos principais suspeitos do caso é seu irmão, Álvaro Henrique Braga e alguns filhos de políticos que teriam vendido a menina a traficantes. Após ter sido sequestrada, as investigações destacaram que Ana Lídia Braga foi levada ao sítio de Eurico Resende, o Vice-Líder da Arena no Senado durante o período. No sítio, as investigações apontam que Raimundo Lacerda Duque, conhecido traficante de drogas de Brasília teria torturado, matado e estuprado a menina143. Porém, como o crime ocorreu durante a ditadura militar, as investigações foram controladas e pouco divulgadas pelos militares, sendo que digitais não foram coletada no corpo de Ana Lídia.

140 Ibidem. 141 BAYER, Diego. Na Série “Julgamentos Históricos”, Ana Lídia Braga: Ditadura, Influência e Mistério. In: Carta Capital, Justificando 15 fev. 2015. Disponível em: Acesso em 12 set. 2016. 142 BAYER, op. cit. 143 Ibidem. 75

Como forma de homenageá-la, na região “Parque da Cidade”, em Brasília, um dos parques foi nomeado de “Parque Ana Lídia”. As homenagens a Menina Milagrosa também são deixadas em seu túmulo, tornando-se um “dos mais visitados no cemitério da cidade, sendo cultuada por devotos que creem em milagres concedidos pela menina.”144 Ana Lídia é inclusive considerada entre os seus devotos a “padroeira das crianças”. A menina Maria De Lourdes, mais conhecida como a “Menina Milagrosa”, “Menina da cruz” ou “Menina da cruz milagrosa”, natural da cidade de Jardim do Seridó, do Rio Grande do Norte é outro exemplo de criança milagreira. Conforme descreve Irene de Araújo van den Berg Silva145, a menina da cruz milagrosa faleceu com apenas nove anos, quando foi atropelada por um caminhão, sendo que a “forma trágica como o acidente se deu, esfacelando a cabeça da criança, chocou a população e entre discursos que iam desde a simples especulação até o relato de sonhos e presságios, emergiu a imagem da criança enquanto santa.” O menino José Oswaldo Schietti, da cidade de Londrina, é outro caso infantil de milagreiro de cemitério. Nasceu no ano de 1941, em Londrina e morreu atropelado em 1950 após a sua primeira comunhão, em frente à igreja matriz146. De acordo com Rubia Pimenta, depois de ser sepultado no Cemitério São Pedro, em Londrina, no Paraná, acredita-se no mito de que seu túmulo começou a jorrar água, sendo que “a mina cessou há cerca de 10 anos. Mesmo assim, as visitas são diárias,

144 CASO Ana Lídia: Após mais de 40 anos mistério no qual indica Collor como um dos suspeitos do crime é reaceso. In: Manchetes da Hora. Disponível em: . Acesso em 12 set. 2016. 145 SILVA, Irene de Araújo van den Berg. As Covinhas: práticas, conflitos e mudanças em um santuário popular. Natal, 2010. 241 p. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, 2010, p. 229. 146 SOARES, M. A. N.; ARIAS NETO, José Miguel; SILVA, Lucia Helena Oliveira. Os ex-votos na religiosidade popular: o caso de José Osvaldo Schietti, o menino Santo de Londrina (PR). 2005. Monografia (Aperfeiçoamento/Especialização em Especialização em História Social e Ensino de História) - Universidade Estadual de Londrina, 2005. 76 e as velas tomam a calçada ao lado de sua sepultura no Dia de Finados.”147 Maria Izilda de Castro Ribeiro, mais conhecida como a “Menina Izildinha”, é outra milagreira brasileira que faleceu ainda criança. Diferentes das demais milagreiras infantis apresentadas anteriormente, Izildinha não era brasileira. Nasceu em Lanhoso, Portugal, no ano de 1897 e faleceu em Guimarães, também Portugal em 1911, vítima de leucemia. Seu corpo foi transladado para o Brasil no ano de 1950, a pedido de uma irmã que morava no estado de São Paulo. De acordo com Maria de Lourdes Santos148, quando foram realizar a exumação, quase quarenta anos após sua morte, fala-se que seu corpo estava em perfeito estado, além das suas vestimentas e flores que ornamentavam seu caixão. Seus restos mortais foram enterrados no cemitério da cidade de Monte Alto, no estado de São Paulo. Segundo Maria Aparecida Junqueira Veiga Gaeta149, em Portugal não existe registro de que era considerada santa, mas a “veiculação em jornais paulistas sobre o fenômeno de incorruptibilidade do corpo de Izilda despertou interesse [...] o corpo ‘impassível’ da menina constituiu-se na pedra de toque para a sacralização de seu túmulo.” A partir de então, milhares de pessoas de várias partes do Brasil, sobretudo, os habitantes de Monte Alto e também de Portugal, em sua cidade natal, passaram a frequentar a sepultura de Izildinha e a cultuá-la como santa. Anualmente, a procura por sua unidade tumular movimenta a cidade, sendo que no “dia de finados ou na semana em que se comemora o aniversário de seu nascimento, a cidade se transforma diante dos numerosos visitantes que a homenageiam, deixando ex-votos em seu mausoléu.”150

147 PIMENTA, Rubia. "Santos" populares atraem milhares de fiéis em todo Paraná. In: Gazeta do Povo. Vida e Cidadania, Curitiba, 31 out. 2008. Disponível em: . Acesso em: 13 set. 2016 148 SANTOS, Maria de Lourdes dos. A Tradição oral na devoção popular: a menina Izildinha (Monte Alto 1940-1997). In: Internacional Oral History Conference, 10, 1998, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998. 149 GAETA, Maria Aparecida Junqueira Veiga. “Santos” que não são santos: estudos sobre a religiosidade popular brasileira. In: Revista Mimesis, Bauru, v. 20, n. 1, 1999, p. 68. 150 GAETA, op. cit. 77

Outra característica que diferencia a menina Izildinha de outros milagreiros é que seu túmulo está localizado fora de um cemitério, tendo sido construído um mausoléu no centro da cidade de Monte Alto para receber a urna com os restos mortais da menina durante a década de 1950.151

Imagem 7 – Túmulos de crianças milagreiras de cemitério.

Fonte: Wikipedia152, 2016.

151 MENDES, Giovani Carvalho. MENINA IZILDINHA: uma "santa popular". In: Santos e Beatos Católicos. Disponível em: . Acesso em: 12 set. 2016. 152 Montagem com imagens retiradas do site Wikipedia. In: WIKIPEDIA, op. cit. 78

Além destas crianças milagreiras supracitadas, muitas outras são encontradas nos cemitérios brasileiros. Do mesmo modo que as crianças, vários santos de cemitérios brasileiros faleceram durante sua juventude e velhice. Um dos mais visitados pelos devotos ao redor do país é Antonio Marcelino, popularmente chamado de “Menino da Tábua”. Apesar de ter falecido aos quarenta e cinco anos, ficou conhecido como “menino” devido sua doença que o fez crescer pouco, não se desenvolvendo fisicamente. Natural de Maracaí, interior do estado de São Paulo, nasceu no ano de 1900 e faleceu em 1945, vítima de uma “doença congênita que o obrigou a permanecer durante quarenta e cinco anos deitado sobre tábuas. O menino, segundo relatos de familiares e de romeiros, nunca se revoltou com esta condição.”153 De acordo com Maria Aparecida Junqueira Veiga Gaeta, as representações de sua

pobreza pessoal, pois “vivia nu” tal como Cristo e os anjos, deitado em cima das tábuas, quieto, encolhido, alimentando-se apenas de água, leite e do rescaldo de marmelado, foram aliadas às de sua castidade angelical, pois, apesar do tempo cronológico, possuía uma aparência infantil e inocente, qualidades expressas pela nudez. Essas representações constituíram-se nos ingredientes do maravilhoso santoral gerador de sentidos santificantes em vida: “era um anjo, um santo”, afirmam os depoentes. Embora Marcelino tenha morrido com quarenta e cinco anos e, a rigor, tivesse ultrapassado a fase adulta, pois em tese já havia percorrido mais da metade de sua existência, é reverenciado como “menino” e com esse sentido permaneceu no imaginário popular. O seu corpo infantil, atrofiado pela doença, cristalizou-se na memória coletiva suscitando a piedade dos devotos que o consagraram como um anjo.154

A devoção ao Menino da Tábua foi intensificada após a construção de uma capela em sua homenagem, onde são feitos os

153 GAETA, op. cit., p. 66-67 154 Ibidem, p. 67. 79

pedidos e deixadas as oferentes e as placas de ex-votos ao milagreiro. Importante destacar que esta construção foi incentivada pela prefeitura municipal de Maracaí, devido às caravanas de romeiros para pedir milagres ao Menino da Tábua. Contudo, o clero local “minimizou os poderes sobrenaturais atribuídos ao menino afirmando que esta crença não era consenso entre a população. Criticou também o hábito dos fiéis de deixarem alimentos no túmulo de Marcelino, enfatizando que tais práticas não representam uma religião.”155 Outro razão para as devoções ao “Menino da Tábua” aumentarem regionalmente e se tornar ainda mais conhecido no Brasil foi através do lançamento das músicas da dupla Pardinho e Pardal sobre os milagres do menino milagreiro no final da década de 1970. Dentre as mulheres milagreiras dos cemitérios brasileiros, destaque para alguns casos de prostitutas. De acordo com Lourival Andrade Júnior, apenas um “sofrimento extremo na finitude poderia qualificar a alma dessas mulheres e transformá-las de marginais, perante a sociedade, em almas detentores de poder sagrado.”156 Dentre elas, está Maria Francelina Trenes, chamada pelos devotos de “Maria Degolada”. Nasceu na Alemanha no ano de 1878 e faleceu em Porto Alegre no dia 12 de novembro de 1899. Foi “violentamente assassinada por seu companheiro Bruno Soares Bicudo durante um piquenique no Morro do Hospício. O caso, batizado pela crônica policial da cidade de Crime da Maria Degolada, ganhou grande repercussão nos jornais da capital gaúcha.”157 Passado algum tempo do crime, o local onde ocorreu o assassinato se chamou “Morro da Maria Degolada”, em homenagem à mulher assassinada. Posteriormente, durante as décadas de 1940 e 1950, a vila que ali surgiu também foi chamada “Vila Maria da Conceição”.158 Carlos Alberto Steil e Rodrigo Toniol destacaram que a devoção à

155 Ibidem. 156 ANDRADE JÚNIOR, 2008, op. cit., p. 114. 157 STEIL, Carlos Alberto; TONIOL, Rodrigo. Maria Degolada: de mulher a santa e de santa a mulher. In: ZANOTTO, Gizele (Org.). Religiões e Religiosidades no Rio Grande do Sul. Volume 1. Passo Fundo: UPF, 2012, p. 213. 158 KERBER, Alessander. O mito de Maria Degolada: estudos sobre as representações de um espaço na cidade de Porto Alegre. In: BIBLOS, v. 16, p. 63-71, dez. 2007. Disponível em: . Acesso em: 13 set. 2016, p. 63. 80

Maria Degolada iniciou ainda na década de 1930, “quando se torna possível registrar as primeiras romarias que se dirigem ao alto do morro onde a Maria Francelina Trenes fora assassinada. As versões neste período sobre quem teria sido esta mulher e mesmo como ela teria morrido são diversas.”159 Um dos elementos que estimulam a devoção à Maria Degolada são as lendas das ditas aparições da milagreira na vila, sempre vestida de branco, andando com o peito ensanguentado ou sentada em uma pedra junto à figueira onde morreu, sendo que ao chover, tal pedra fica totalmente manchada de sangue. Seu túmulo, igualmente ao da menina Izildinha, milagreira citada anteriormente, não está localizado em um cemitério. Foi construído pela comunidade do Morro da Maria Degolada “a qual o chama de Capelinha da Maria da Conceição. Lá, levam-se flores e pede-se ajuda a esta que, para muitos, é considerada santa.”160 As histórias contadas e reinventadas sobre a morte de Maria Degolada e seus milagres foi tema de um cordel escrito por Gilbamar de Oliveira. Dentre as várias estrofes, algumas estão transcritas a seguir:

Ciúme, veneno mortal Que mata gradualmente Dose a dose massacrando Passo a passo, cruelmente, Causando dor e sofrimento Como noite de tormento Como grito inocente [...] Um ciúme tão doentio Outrora se mostrou fatal Foi um fato bem sinistro Que ganhou mórbido final Da jovem assassinada, Que por fim foi degolada Vitimada por esse mal161

Maria Isabel Hornos, popularmente conhecida como Guapa é outra milagreira prostituta cultuada no estado do Rio Grande do Sul.

159 STEIL; TONIOL, op. cit., p. 224. 160 KERBER, op. cit., p. 66. 161 OLIVEIRA, Gilbamar de. A história da menina degolada. Parte 1. In: Recando das letras, 16 nov. 2011. Disponível em: . Acesso em 14 set. 2016. 81

Nasceu no Uruguai no dia 15 de junho de 1897, mas morou no Brasil, na cidade de São , local onde veio a falecer durante o ano de 1924. Maria Isabel foi apelidada de Guapa, pois “gostava de se vestir a moda campeira, com botas, bombacha e chapéu de aba larga. Também era eximia tocadora de gaita e trovadora das mais respeitadas.”162 Na cidade de São Gabriel, possuía uma pensão para mulheres, levando uma “vida luxuosa, sendo amante de um rico fazendeiro local. A mulher deste, ciumenta, a fez assassinar por um miciliano, ajudado ao que parece também por um irmão miciliano. O crime não foi investigado.” 163 Segundo Nilo Dias Tavares, na noite do dia 03 de março de 1924, enquanto Maria Isabel estava se arrumando para ir ao baile de Carnaval da cidade, foi assassinada com alguns tiros nas costas por um cabo dos Provisórios do Exército. Sua morte foi de grande comoção local, sendo que seu sepultamento teve um cortejo com centenas de curiosos e a partir de então, as pessoas passaram a frequentar seu mausoléu para pedir graças para a Guapa e pagar promessas. Nilo Dias Tavares destaca que sua devoção se deve muito a “devota de nome Modestina da Silva Dux, já falecida, que durante muitos anos promoveu no Dia de Finados uma procissão até o túmulo da chamada ‘santa do povo’. A procissão deixou de ser feita, mas a devoção continua.”164 Atualmente, o túmulo de Maria Isabel Hornos é um verdadeiro santuário, onde são pagas promessas com flores e placas de ex-votos. Maria do Carmo Fagundes é mais uma milagreira prostituta cultuada no estado do Rio Grande do Sul. Vivia em São Borja, mas era natural de Bagé, ambas cidade gaúchas. Maria do Carmo era considerada uma mulher extremamente bonita e vaidosa, que chamava a atenção dos homens da cidade. Foi assassinada em uma festa no dia 27 de agosto de 1890, aos 26 anos, por um de seus ex-amantes, que

162 TAVARES, Nilo Dias. “Guapa”, a santa do povo. In: Viva São Gabriel, 16 fev. 2011. Disponível em: . Acesso em: 13 set. 2016. 163 PEREIRA, Thiaquelliny Teixeira. Memória e discurso religioso: a fé na “Santa Leocádia” de Guanambi – BA. Vitória da Conquista, 2010, 102 f. Dissertação (mestrado em memória) - Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade, 2010, p. 66. 164 TAVARES, op. cit. 82 motivado por ciúmes a esfaqueou, esquartejou e decapitou. Seu corpo foi dado como alimentos para cães e seus restos mortais foram posteriormente achados em um campo por moradores próximos, sendo que no local, para homenageá-la, fixaram uma cruz com seu nome.165 O assassinato revoltou a população de São Borja e após o crime, o local onde foi encontrado seus restos mortais se tornou espaço de peregrinação, sendo que a devoção aumentou significativamente na década de 1940, quando foi construído um túmulo de alvenaria no lugar. O cemitério onde está sepultada Maria do Carmo é atualmente um dos principais pontos turísticos da cidade de São Borja, recebendo visitas de devotos brasileiros e argentinos. Os devotos vão até sua unidade tumular para pedir graças e depositar as diversas oferendas como forma de agradecimento, sobretudo “coisas que ela apreciava em vida, como batons, cigarros, batons, fitas e laços. Cercados de rituais profanos e passionais. A crença nos milagres de Maria do Carmo se popularizou e hoje ela é conhecida como a Santa Profana Missioneira, a Santa Prostituta.”166 Dentre seus fiéis, as mulheres são as que mais frequentam sua sepultura, fazendo pedidos principalmente relacionados às questões amorosas, como casamentos e novos namorados, além de proteção aos filhos. Várias lendas locais descrevem sua unidade tumular como amaldiçoada, de modo que os moradores da cidade evitam e temem passar sozinhos pelo lugar durante “à noite, e muitos homens afirmaram ter ouvido uma voz feminina chamando por eles, outros dizem escutar risadas e barulhos de garrafas. Muitos são os relatos de pessoas que afirmam ter visto uma moça atraente, mas toda ensanguentada vagando pelo local.”167 Como destaca Thiaquelliny Teixeira Pereira, as “personagens brasileiras Maria do Carmo, Izabel Guapa e Maria degolada ocupam uma mesma posição de sujeito, a de santa-puta.”168 Além do Rio Grande do Sul, as milagreiras prostitutas também estão presentes em outros

165 FAGUNDES, Antônio Augusto. As Santas prostitutas: um estudo de devoção popular no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro Ed., 2003. 166 PORTAL DAS MISSÕES. Maria do Carmo, Santa Missioneira e Profana, da Terra dos Presidentes. In: Portal das Missões. Disponível em: . Acesso em: 14 set. 2016. 167 PORTAL DAS MISSÕES, op. cit. 168 PEREIRA, 2010, op. cit., p. 67. 83

estados brasileiros, como é o caso de Maria Conceição de Barros, também chamada de “Consuelo” ou a “santinha” da cidade de Franca, São Paulo. Era natural de São Paulo, mas veio a suicidar-se no ano de 1929, na cidade de Franca, com apenas vinte e um anos de idade. Maria Aparecida Junqueira Veiga Gaeta169 reforça que a documentação que existe sobre a milagreira “a configurou como uma ambiciosa prostituta, sempre à caça de membros da elite cafeeira, tendo inclusive se amasiado com alguns Coronéis.” Nos registros policiais e judiciais, consta que cometeu o suicídio, pois estava grávida há alguns meses e foi até a cidade de Franca, local onde morava o pai do bebê, para realizar o aborto, mas por contrariedade e resistência do pai, que não concordou com a decisão de Maria Conceição, tirou sua própria vida em um ato de desespero. Apesar de não possuir virtudes próprias para se tornar uma santa, como a ausência de ligações religiosas ou o fato de ter cometido suicídio, Consuelo se tornou uma milagreira de cemitério. Seus devotos forjaram a história de que foi morta pelo pai do rapaz, que não aceitava a ideia de ser sogro de uma prostituta:

Contudo, a morte trágica, prematura, envolta em mitos e mistérios foi o suficiente para suscitar a comoção da população que não aceitou a versão oficial do suicídio, acreditando ter sido, a jovem, vítima de um crime hediondo, praticado pelo ‘sogro’. Esse é apontado, na oralidade, ‘como um rico fazendeiro da região que, refratário ao casamento de seu filho, covardemente assassinou a jovem e simulou a versão policial.’ Os devotos se mostram compadecidos: ‘foi morta grávida, coitadinha’. A morte trágica de Consuelo, executada por poderosos na versão popular, se alojou na memória e no imaginário de moradores locais e regionais sendo recontada e popularizada por meio das oralidades entre as gerações.170

Desde 1929, ano de sua morte, o túmulo da “santinha” da cidade de Franca é visitado pelos seus fiéis, que pedem à milagreira e deixam

169 GAETA, op. cit., p. 70. 170 GAETA, op. cit., p. 70-71. 84 sobre sua sepultura placas de ex-votos, além das velas e flores como forma de agradecimento. Dentre os principais pedidos estão os de mulheres que não conseguem engravidar, sendo Consuelo considerada a “santa da gravidez impossível”. Outra milagreira prostituta do estado de São Paulo é Maria Jandira dos Santos. Conforme ocorrido com Maria Conceição de Barros, a “santinha” supracitada, Maria Jandira também era prostituta e cometeu suicídio devido uma desilusão amorosa. Nasceu no dia 8 de maio de 1911 e morreu no ano 1932, com apenas 23 anos, ateando fogo na própria roupa e morrendo queimada. Élcio Henrique Ramos171 descreve detalhadamente como ocorreu sua morte, no dia 24 de maio de 1934: “em grande desespero, trancou-se em seu quarto e cuidadosamente articulou como seria sua morte [...] Derramando álcool sobre toda a cama, ateou fogo e logo após umedeceu seu corpo também com a substância inflamável. Sob cenário de grande incêndio deitou-se.” De acordo com Irene Maria F. Barbosa, sua sepultura simples conta com um retrato da jovem falecida, dedicatórias de amigos, além da uma grande quantidade de placas de ex-votos “bem antigas, muitas parecem terem sido retiradas, a informante declara ter visto retirarem as placas muito velhas, possivelmente para minimizar a força milagrosa do túmulo; seu culto data dos anos cinqüenta, atualmente, a placa mais antiga é de 1985.”172

Imagem 8 – Prostitutas milagreiras de cemitérios.

171 RAMOS, Élcio Henrique. Graças Alcançadas. In: Revista SARÁO, Centro de Memória UNICAMP, v. 2, n. 2, Novembro 2003. Disponível em: Acesso em 14 set. 2016. 172 BARBOSA, Irene Maria F. Túmulos Milagrosos do Cemitério das Saudades. In: Revista SARÁO, Centro de Memória UNICAMP. Disponível em: Acesso em 14 set. 2016. 85

Fonte: Wikipedia173, 2016.

Além dos casos das milagreiras prostitutas, dezenas de outras mulheres brasileiras se tornaram santas de cemitério, como Maria da Conceição Bueno, mais conhecida como “Maria Bueno” e “santinha de Curitiba”. Nasceu no dia 08 de dezembro de 1864, em Morretes, no litoral do estado do Paraná e morreu em Curitiba no dia 29 de janeiro de 1893, aos vinte e nove anos. Conforme destaca a pesquisadora Juliana Carla Bastos, Maria Bueno foi “trazida para Curitiba em 1880, ingressando no Convento das Irmãs Marcelinas. Oito anos mais tarde, as freiras mudaram-se para o Rio de Janeiro e Maria permaneceu em Curitiba, onde começou a trabalhar como doméstica.”174

173 Montagem com imagens retiradas do site Wikipedia. In: WIKIPEDIA, op. cit. 174 BASTOS, Juliana Carla. Musicalizando a prece "hino à Maria Bueno" (1864-1893): abordagem histórica e artística da santa de Curitiba. 2007. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Produção Sonora) - Centro de Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2007, p. 15. 86

Na noite do dia 29 de janeiro de 1893, Maria Bueno foi brutalmente assassinada por Ignacio José Diniz, homem apaixonado por ela e que motivado por uma crise de ciúmes, a perseguiu e ao encontrá- la sacou uma navalha e acertou vários “golpes contra o rosto de Maria, que lutava, em vão, para defender-se. O relato também fala que Diniz atacou o rosto de Maria, destruindo assim um de seus maiores atributos. O último golpe foi uma navalhada no pescoço, que deixou profundo corte.”175 No local em que Maria Bueno foi assassinada, os moradores colocaram uma cruz de madeira homenageando a falecida e a partir de então o local se tornou um “espaço de preces e devoções, onde devotos afirmavam ter seus pedidos atendidos por Maria Bueno. Conta-se ainda que um vizinha teria acendido uma vela no local do assassinato, a qual teria queimado por semanas sem se esgotar.”176 Conforme destaca a pesquisadora Clarissa Grassi177, Maria Bueno foi enterrada no Cemitério Municipal São Francisco de Paula, na cidade de Curitiba, tornando-se um dos túmulos mais visitados do cemitério durante todo o ano, sobretudo, no Dia de Finados. Segundo Rubia Pimenta, Maria Bueno é a milagreira paranaense mais conhecida e cultuada, tornando-se “tema de peças teatrais, livros, estudos e recentemente sua vida foi representada na Revista RPC.”178 Assim, mesmo depois de mais de um século de sua morte, “Maria Bueno continua viva na memória curitibana. Muitas pessoas são devotas dela, seu túmulo transformou-se em ponto de encontro de fiéis à procura de ajuda.”179 Outra milagreira do estado do Paraná é Maria Trevisan Tortato, popularmente chamada pelos devotos de “Maria Polenta”. Nasceu em Mira, na Itália, no dia 02 de março de 1880 e morreu no dia 22 de abril de 1959. Chegou ao Brasil, especificamente no estado do Paraná, no ano de 1892, com doze anos de idade. Em 1898, com dezoito anos, casou-se com José Tortato, o Bépi Érico, com quem teve vários filhos.

175 BASTOS, op. cit., p. 16. 176 SERAFIM, Vanda Fortuna; PICCOLI, Tonia Kio Fuzihara. Maria Bueno e suas representações: reflexões teóricas sobre as crenças religiosas no Paraná - século XXI. In: Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 8, n. 18, p. 411 - 444. maio/ago. 2016, p. 418. 177 GRASSI, Clarissa. Um olhar... a arte no silêncio. 1.ed. Curitiba: Editora Clarissa Grassi, 2006. 178 PIMENTA, op. cit. 179 BASTOS, op. cit., p. 15. 87

Ficou conhecida em Curitiba por benzer e curar as pessoas, em especial, os casos de torções ou fraturas. Durante as “cinco décadas em que Maria Polenta atuou, as filas de carroças no trecho da Ângelo Sampaio, entre a Sete de Setembro e a Silva Jardim, onde ela morava, foram substituídas por carros.”180 Acredita-se que tenha iniciado as benzeduras quando um de seus filhos se “machucou. Ao passar o polegar, ela botou a fratura no lugar. Maria também teria sonhado com um cadáver – diante do qual recebeu todas as informações sobre o funcionamento do corpo humano.”181 Morreu aos setenta e nove anos, no dia 22 de abril de 1959, “merecendo um dos maiores funerais que a cidade já viu. ‘A cidade foi pequena. Quando o corpo chegou no Cemitério da Água Verde, ainda tinha gente saindo em fila da casa dela’, [com um] cortejo de aproximados cinco quilômetros.”182 Foi sepultada no Cemitério de Água Verde, espaço de peregrinação dos devotos, que procuram seu túmulo para agradecer, pedir graças e depositar as flores e acender as velas, além de deixarem as placas de ex-votos. Após sua morte, Maria Polenta recebeu algumas homenagens na cidade de Curitiba, sendo que seu nome batizou uma rua no bairro Novo Mundo, além de uma unidade de saúde da Rua Carneiro Lobo, no bairro Batel, que também ganhou seu nome. Corina Antonieta Portugal, mais conhecida como “Corina Portugal” ou “Santinha dos Campos Gerais” é outro exemplo de milagreira dos cemitérios paranaenses. Nasceu no Rio de Janeiro no ano de 1869 e após casar-se com Alfredo Marques de Campos, foi morar em Ponta Grossa, no Paraná, para estabelecerem uma farmácia. Foi assassinada pelo próprio marido no dia 26 de abril de 1889, que brutalmente matou a esposa com trinta e duas facadas. Anteriormente, de acordo com diversos relatos, Corina Portugal já sofria com os maus tratos e violência física de seu marido.183

180 FERNANDES José Carlos; CARDOSO Rosy de Sá. Maria Polenta, uma lição de vida. In: Gazeta do Povo, 18 mar. 2007. Disponível em: . Acesso em: 14 set. 2016. 181 Ibidem. 182 Ibidem. 183 FERNANDES, Josué Correia. Corina Portugal: história de sangue e luz. Ponta Grossa: Gráfica Planeta, 1999, p. 2. 88

Corina Portugal foi enterrada no Cemitério São João, na cidade de Ponta Grossa, mas este foi totalmente transferido para o Cemitério Municipal São José de Ponta Grossa. Na ocasião da exumação dos corpos, os registros relatam o “susto passado pelos funcionários que faziam a retirada dos restos mortais dos vários corpos enterrados nesse campo santo. Disseram os homens que, ao abrirem o túmulo de Corina, depararam-se com um corpo intacto, rosto resplandecente, semblante alvo e sereno.”184 Desde então, motivado pelo mito da incorruptibilidade dos seus restos mortais, seu túmulo “é o mais visitado do Cemitério São José, em Ponta Grossa [...] Corina é a ‘santa’ das mulheres que sofrem violência doméstica.”185 De acordo com a escritora Dione Navarro186, através de entrevistas realizadas com mais de cem devotos, observou que estes, especialmente as mulheres, procuram a sepultura de Corina Portugal para buscar várias tipos de graças, como problemas de saúde e relacionamentos amorosos. Sua memória está presente em um cordel, escrito por Eno Theodoro Wanke, além da história de Corina ter se tornado tema de música. Na cidade de Belém, no estado do Pará, algumas milagreiras de cemitério também são bastante cultuadas, como é o caso de Severa Romana Pereira. Severa era filha de imigrantes italianos, casada com um soldado do Batalhão de Infantaria do Exército. No dia 02 de julho de 1900, quando estava grávida de oito meses, foi assassinada por um colega do marido, que estava a assediando187. Assim, como destaca Angela Gonzalez, o “fato de ela ter sido morta para não trair o marido e preservar sua honra fez dela um símbolo muito forte para as mulheres da época. Apesar de ser de origem humilde, passou a ser modelo de virtude até para as moças da alta classe, que iam estudar em Paris.”188

184 PETRUSKI, Maura Regina. Eu oro, tu oras, eles oram para Corina Portugal. In: Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano IV, n. 12, Janeiro 2012, p. 166. 185 PIMENTA, op. cit. 186 NAVARRO, Dione. Corina Portugal - Suplicas e Respostas. Ponta Grossa: Estúdio Texto, 2016. 187 MAUÉS, Raymundo Heraldo. Padres, Pajés, Santos e Festas: Catolicismo Popular e controle eclesiástico, Belém: CEJUP, 1995. 188 GONZALEZ, Angela. 'Santos populares' são os mais visitados. In: Amazonia Jornal, Ano 8, n. 5.074, 02 nov. 2006. Disponível em: . Acesso em: 15 set. 2016 89

Após sua morte, Severa Romana passou a ser cultuada em seu túmulo, localizado no Cemitério Santa Isabel, e a partir de então foi considerada uma das milagreiras de cemitério mais famosas do Pará. Sua sepultura “é ladeada por dezenas de placas de ex-votos depositadas ali por pessoas que asseguram terem conseguido graças por intercessão da jovem que morreu defendendo sua honra.”189 No estado de São Paulo, algumas milagreiras também movimentam os cemitérios locais, como é o caso de Maria Guedes, popularmente chamada de “Sá Mariinha das Três Pontes”. Nasceu no dia 18 de junho de 1882 no município de Cunha, São Paulo, e viveu desde os seus treze anos no Bairro das Três Pontes, local onde iniciou a “sua história como importante personagem dentro do contexto da religiosidade popular do atual município de Cunha.” 190 Durante décadas, benzeu as pessoas e realizou curas, além de receitar remédios homeopáticos. Depois de sua morte, no ano de 1959, seu túmulo, que está localizado no Cemitério Municipal de Cunha, passou a ser visitado e cultuado por centenas de devotos, como também a casa onde morou, no bairro rural das Três Pontes e a capela adjacente. Segundo Adilson da Silva Mello191, que realizou pesquisas no Cemitério Municipal de Cunha e entrevistou duzentas pessoas no Dia de Finados do ano de 1997, os devotos de Sá Mariinha, tanto homens quanto mulheres, são majoritariamente do município de Cunha, se dizem católicos e pedem graças relacionadas principalmente a problemas de saúde e dificuldade econômica.

Imagem 9 – Túmulos de mulheres milagreiras de cemitérios.

189 Ibidem. 190 MELLO, Adilson da Silva. Análise de uma Devoção: Repensando os Elementos Interpretativos. In: Revista de Estudos da Religião – REVER. v. 3, n. 3, p. 50-66. Disponível em: . Acesso em: 14 set. 2016, p. 51. 191 Ibidem, p. 53. 90

Fonte: Wikipedia192, 2016.

Além das mulheres, os homens milagreiros também são bastante encontrados nos cemitérios brasileiros, como os variados casos presentes no estado do Rio Grande do Norte. Dentre eles, pode-se destacar o Doutor Carlindo de Souza Dantas, da cidade de Caicó, do Seridó Potiguar. Carlindo Dantas nasceu em Caicó no dia 30 de agosto de 1934 e foi assassinado no dia 28 de outubro de 1967, com trinta e três anos. Formou-se em medicina com apenas vinte e seis anos, na Faculdade do Recife. Aos poucos, ficou conhecido entre os moradores da cidade, tornando-se o “médico do povo, dos velhos, mulheres dos pobres e dos desamparados. Carlindo, [...] era visto como uma pessoa caridosa, atendendo de graça verdadeiras multidões diariamente, doando remédios, dinheiro, e disponibilizando transportes.”193 No ano de 1966, Carlindo Dantas entra na política de Caicó, candidatando-se como Deputado Estadual e vencendo a disputa de forma expressiva, como destacam Lourival Andrade Júnior e Mary Campelo de Oliveira: “A campanha de Carlindo Dantas foi marcada por

192 Montagem com imagens retiradas do site Wikipedia. In: WIKIPEDIA, op. cit. 193 ANDRADE JÚNIOR, Lourival; OLIVEIRA, Mary Campelo de. Carlindo Dantas, “um milagreiro de cemitério”: representação do sagrado no Seridó potiguar, Caicó/RN. In: MNEME Revista de Humanidades. v. 13, n. 31, 2012, p. 131. 91

uma popularidade imensa, pois o mesmo por ser um médico, ajudou muito o povo humilde, que resultou na sua vitória com um expressivo número de votos o qual atribuiu a população pobre.”194 No dia 28 de outubro de 1967, com apenas trinta e três anos, somente um ano depois de estar na política, foi baleado e assassinado. Seu corpo foi enterrado no Cemitério Campo Jorge, na cidade de Caicó e logo depois sua sepultura passou a ser cultuada pelas centenas de devotos. São placas de ex-votos colocadas atrás do túmulo, como também velas e flores deixadas como oferendas pelos devotos que creem no poder do doutor Carlindo Dantas. Importante destacar que por Carlindo Dantas ter sido “considerado um herói em vida por ter dado assistências médica a muitos pobres, isto também aumenta a potencialidade da devoção a ele, onde são forjadas a imagem de um ser sobrenatural”195 Outro milagreiro dos cemitérios do Rio Grande do Norte é José Leão, mais conhecido como Zé Leão, de Florânia. Dentre as várias versões sobre sua vida e morte, a mais recorrente é que foi um jovem fazendeiro natural da Paraíba que acabou acumulando grandes riquezas em Vila das Flores, mas que no dia 20 de janeiro de 1887 “foi traído, assassinado e depois queimado até se transformar em carvões.”196 Depois de ser cruelmente assassinato e ter um fim trágico, nasce a devoção a Zé Leão. Uma especificidade da peregrinação e devoção à capela de Zé Leão é que “segundo os relatos de alguns devotos, o próprio assassino João Porfírio visitava frequentemente o local da tragédia, onde ele rezava ajoelhado pela alma do homem que ele próprio matou.”197 De acordo com Irene de Araújo van den Berg Silva, no início da peregrinação de Zé Leão, no local onde foi assassinado, “havia apenas um cruzeiro. A capela veio depois, com o fim de guardar os ‘milagres’ que eram depositados e acender velas também em pagamento

194 Ibidem, p. 132. 195 Ibidem, p. 137. 196ANDRADE JÚNIOR, Lourival; OLIVEIRA, Mary Campelo de. Zé Leão um milagreiro: memória e compromisso de fidelidade com o sagrado através dos ex-votos na cidade de Florânia/RN. In: Encontro Estadual de História, 5, 2012, Caicó. Anais...Caicó: Conhecimento histórico e diálogo social, 2012, p. 6. 197 Ibidem, p. 7. 92 de promessa. Gente de todo Nordeste tem ido a Florânia pagar promessa a Zé Leão.”198 João Rodrigues Baracho é mais um exemplo de milagreiro do estado do Rio Grande do Norte, agora da capital Natal.199 Baracho nasceu em 1928 no interior e foi para a capital na década de 1960. Destaca-se por ser “um dos bandidos mais conhecidos da crônica policial da cidade de Natal [...] assaltava e matava pelas ruas potiguares em período noturno. Suas vítimas eram trabalhadores da noite como, principalmente os taxistas. O criminoso agiu por aproximadamente dois anos.”200 Dentre as várias ocasiões em que esteve preso e fugiu, destaque para uma noite no mês de abril de 1962 que serrou a cela da delegacia e fugiu de seis policiais. João Baracho novamente ganhou a sua desejada liberdade. Contudo, desta vez foi passageira, tendo em vista que na manhã do dia 30 de abril “os oficiais fecharam o cerco em um bairro chamado Carrasco, onde sabiam que Baracho estava. [...] No confronto com os policiais, o assassino levou mais de trinta tiros e acabou morrendo.”201 Os últimos minutos de vida de João Baracho são descritos por Irene de Araújo van den Berg Silva, que lembra que durante a “fuga, desesperado, buscando evadir-se dos algozes, ele pede água numa residência e o líquido lhe é negado. Em seguida, é alvejado por vários tiros e morre com sede. No imaginário popular essa cena se replica através dos discursos, mas também das práticas.”202 Após sua morte “nasceu um ritual que ocorre todos os anos no cemitério do Bom Pastor, em que Baracho foi enterrado. Ao visitar o túmulo do bandido, simpatizantes do criminoso levam-lhe recipientes com água, além de flores, velas, braços e pernas de madeira.”203 Além destes simpatizantes, muitos que visitam sua sepultura o consideram um verdadeiro santo, levando para o túmulo pedidos e agradecimentos por

198 SILVA, 2010, op. cit., p. 230. 199 FREITAS, Eliane Tânia. Memória, Ritos Funerários e Canonizações Populares em dois Cemitérios no Rio Grande do Norte. Rio de Janeiro, 2006. Tese (Doutorado em Antropologia) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006. 200 ARAUJO, Felipe. João Baracho. In: Info Escola, Biografias. Disponível em: . Acesso em: 14 set. 2016. 201 Ibidem. 202 SILVA, 2010, op. cit., p. 236. 203 ARAUJO, op. cit. 93

graças alcançadas. Para muitos dos devotos, “o bandido d’água conseguiu ir pra o céu por ter morrido com sede.”204 José Leite de Santana, mais conhecido como o cangaceiro Jararaca, é outro milagreiro de cemitério bastante conhecido na cidade de Mossoró, no estado do Rio Grande do Norte. De acordo com Eliane Tânia Freitas205, Jararaca nasceu em Buíque, Pernambuco, no ano de 1901. Durante os primeiros anos da década de 1920 foi soldado do exército, participando da Revolta Paulista. Porém, no ano de 1926 deixou o exército para se tornar cangaceiro do bando de Lampião. O cangaceiro Jararaca se tornou comandante do grupo de Lampião por destacar-se como bom atirador e lutador com facas, ficando no grupo por um ano e meio, até ser morto em 1927. No ano de 1927, com apenas vinte e seis anos, foi alvejado “e deixado para trás por seus companheiros, que fugiram após mal- sucedida invasão da cidade de Mossoró. Alguns dias depois, ele viria a ser morto de um modo considerado singularmente cruel: teria sido enterrado vivo pela polícia que antes o aprisionara.”206 Depois de ter sido cruelmente assassinado no Cemitério São Sebastião, sendo enterrado vivo, seu túmulo passou a ser cultuado e Jararaca se tornou milagreiro entre seus devotos. Seu túmulo é um dos mais cultuados da cidade de Mossoró, como se observa no Dia de Finados.207 No estado de Goiás, alguns milagreiros também são cultuados nos cemitérios, como é o caso de Antero da Costa Carvalho, sepultado na cidade de Catalão. Era natural de Jataí, em Goiás e morreu no ano de 1936 em Catalão. Antero era farmacêutico prático, jornalista e poeta e chegou à cidade de Catalão no ano de 1932, por intermédio de sua esposa, Amélia Nazar, que era natural da Síria, mas já havia vivido na cidade anteriormente.208 Antero da Costa Carvalho foi brutamente assassinado no dia 16 de agosto de 1936 por jagunços e populares da cidade de Catalão, motivados pela acusação de ser o mandante do assassinato de Albino

204 Ibidem. 205 FREITAS, 2007, op. cit. 206 Ibidem. 207 Ibidem. 208 SILVA, Jaciely Soares. Violência e religiosidade popular em Catalão-GO: a construção da santidade de Antero 1932-2012. Uberlândia. 2014. 197 p. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Uberlândia, Programa de Pós-graduação em História, 2014, p. 31 94

Felipe do Nascimento, que era um fazendeiro local e amigo de Antero. Todavia, apesar dos rumores de ser mandante de um assassinato, “a fama de Antero cresceu consideravelmente, em especial pela população menos abastada da sociedade, visto por populares como um homem carismático e bom, disposto a ajuda a todos.”209 De acordo com Jaciely Soares Silva210, logo após sua morte, já na década de 1940, seu túmulo se tornou local de peregrinação dos devotos, sobretudo nos dias de Finados, aglomerando-se dezenas de fiéis ao redor da sepultura. Antero da Costa Carvalho foi considerado um mártir e o santo da cidade de Catalão na crença popular, através do martírio que acabou sofrendo durante a morte. São bilhetes com pedidos, placas de ex-votos, além de velas e flores naturais e artificiais deixadas como formas de agradecimento às graças alcançadas. Na cidade de Catalão, Antero foi homenageado alguns anos após a sua morte com a construção de uma capela no local onde faleceu. Este se tornou um espaço de devoção e ritualização, “onde são depositados os ex-votos, tendo no seu interior diversas fotografias de pessoas, velas, flores e objetos distintos, como gesso, muletas, a face de Cristo, anjos de cera, terço, santos, e quadros que fazem refereência as imagens apropriadas pela Igreja Católica.”211 Além disso, alguns estabelecimentos locais foram batizados com seu nome, como um centro espírita, um asilo e um abrigo, intitulados “Fundação Espírita Antero da Costa Carvalho”, “Asilo Fundação Antero da Costa Carvalho” e “Abrigo Antero da Costa Carvalho”. Ainda no estado de Goiás, na capital Goiânia, o Padre Pelágio Sauter, chamado entre os devotos como “santo de Goiás” é mais uma demonstração de milagreiro de cemitério. Natural da Alemanha, Padre Pelágio Sauter nasceu no dia 9 de setembro de 1878 e veio para o Brasil no dia 6 de agosto de 1909 para trabalhar nas missões estrangeiras. Viveu quase quarenta anos no estado de Goiás, trabalhando em atividades pastorais. Veio a falecer com oitenta e três anos, no dia 23 de novembro de 1961, na Santa Casa de Goiânia, em decorrência de uma pneumonia. Segundo Eduardo Gusmão de Quadros, uma multidão acompanhou o sepultamento do padre, falando-se em “cinqüenta mil pessoas visitando a Matriz de Campinas naquele dia, para onde fora levado o corpo, e cerca de quinze mil acompanhando o cortejo fúnebre.

209 Ibidem, p. 48. 210 Ibidem, p. 79. 211 Ibidem, p. 164. 95

O governo havia decretado luto oficial no Estado por três dias, sendo ponto facultativo.”212 Padre Pelágio Sauter era conhecido pelos seus trabalhos caridosos dedicados aos doentes e pobres, costumando visitar os necessitados do sertão e doar remédios, além dos remédios que distribuía de forma gratuita na paróquia onde trabalhava.213 Assim, depois de sua morte, o túmulo onde foi sepultado se tornou espaço de peregrinação das centenas de devotos. Importante destacar que durante a década de 1990, foi instaurado o processo de beatificação e canonização de Padre Pelágio Sauter à Sagrada Congregação das Causas dos Santos. Entretanto, como são várias as etapas do processo de beatificação e canonização, podendo durar décadas ou séculos, ainda está em tramitação no Vaticano. Assim, Padre Pelágio Sauter permanece como milagreiro de cemitério, não sendo ainda oficializado como santo pela Igreja Católica. Outro membro da igreja considerado milagreiro é Pio Gianotti, o conhecido “Frei Damião de Bozzano”, de Recife, Pernambuco. Nasceu em Bozzano, na Itália em 1898 e faleceu no Real Hospital Português do Recife no dia 31 de maio de 1997. Foi um frade capuchinho que veio para o Brasil no ano de 1931, na função de missionário da Província dos “Frades Capuchinhos de Lucca para compor o quadro da Missão de Pernambuco, no Convento de Nossa Senhora da Penha, no Recife. Frei Damião faleceu na cidade do Recife em 1997 aos 98 anos de idade, após 66 anos como missionário no Brasil.”214 Os restos mortais de Frei Damião estão enterrados na capela de Nossa Senhora das Graças, no Convento São Félix de Cantalize, no bairro do Pina, em Recife. Após sua morte, seu túmulo se tornou um espaço de peregrinação de devotos que pedem ao padre milagreiro. Nas visitas ao túmulo, fazem pedidos e deixam flores, velas e placas de ex- votos como agradecimento.

212 QUADROS, Eduardo Gusmão de. Os poderes do morto: sentidos do corpo de Padre Pelágio. In: MNEME Revista de Humanidades. v. 12, n. 29, Jan/Jul 2011, p. 654. 213 Ibidem, p. 659. 214 SILVA, Lêda Cristina Correia da. Práticas e representações hagiográficas: a devoção a Frei Damião de Bozzano (1931-2008). Recife. 2009. 161 p. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Pernambuco, Programa de Pós-graduação em História, 2009, p. 13. 96

Porém, a devoção a Frei Damião não se restringe apenas à sua sepultura, sendo realizadas romarias “ao santo em outras cidades, como por exemplo, Guarabira na Paraíba, São Joaquim do Monte em Pernambuco, Capela em Sergipe.”215A Romaria na cidade de São Joaquim do Monte, no interior de Pernambuco, por exemplo, reúne anualmente, entre o final do mês de agosto e início de setembro, milhares de romeiros para homenagear e pedir ao Frei. Já em Guarabira, na Paraíba, foi inaugurado um Memorial ao Frei Damião, concentrando centenas de devotos que pedem e agradecem pelas graças alcançadas. Enfim, a devoção a Frei Damião não se limita apenas à cidade de Recife, possuindo devotos ao redor do nordeste, além de eventos criados em sua homenagem nos estados nordestinos. Importante destacar que, igualmente ao Padre Pelágio Sauter, mencionado anteriormente, foi instaurado o processo de beatificação e canonização à Sagrada Congregação das Causas dos Santos durante o ano de 2003. Assim, Frei Damião de Bozzano ainda não é considerado santo oficial pela Igreja Católica, mais é um milagreiro para o povo nordestino desde a sua morte, em 1997. Em Belém do Pará encontramos um milagreiro de cemitério bastante conhecido no estado. Camilo Henrique Salgado Júnior, popularmente chamado como “doutor Camilo Salgado”, nasceu no dia 22 de maio de 1874 e faleceu em 02 de março de 1938. Foi um dos fundadores da Sociedade Médico-cirúrgica do estado do Pará.216 Está sepultado no Cemitério Santa Isabel, onde também estão os restos mortais de vários milagreiros, como Severa Romana, descrita anteriormente. Seu enterro é detalhadamente descrito por Éden Moraes da Costa, que destaca que a cobertura da imprensa para o seu enterro “mostra um grande número de pessoas, de distintas camadas sociais acompanhando o cortejo [...] A impressão que se tem é a de que o jornal Folha do Norte documentava a morte de um santo, e de que a população acompanhava ao cemitério um ‘corpo santo.’”217 Seu túmulo recebe muitos devotos durante todo o ano, em especial, no Dia de Finados. Dentre as graças requeridas pelos devotos, os pedidos de cura e saúde são os mais frequentes, tendo em vista que

215 Ibidem, p. 78. 216 COSTA, Éden Moraes da. De médico e santo popular: a devoção ao doutor Camilo Salgado em Belém do Pará. In: Revista Estudos Amazônicos, v. 5, n. 2, 2010, p. 51. 217 Ibidem, p. 54. 97

Camilo era médico. Éden Moraes da Costa menciona em algumas palavras como é a devoção dos fiéis na sepultura do doutor Camilo:

A imponente sepultura de Camilo Salgado está localizada a poucos metros da entrada principal do cemitério, do lado esquerdo, configurando-se, dessa forma, como uma espécie de santuário, em que as pessoas chegam, com seus pacotes de velas, acendem-nas, batem três vezes na ponta da lápide de mármore escuro (esse gesto constitui uma saudação ao morto, segundo os informantes), colocam bilhetes com seus pedidos de saúde e bem-estar sobre esta, fitam a efígie de bronze com o rosto do médico, cravada em uma cruz de mármore no alto da sepultura – há casos em que algumas pessoas sobem nas sepulturas ao lado para tocar demoradamente no rosto, como se acreditassem que daí emanariam poderes taumatúrgicos – e rezam fervorosamente, chegando muitas vezes a ajoelhar-se diante dela, alguns com terço à mão, outros com orações impressas ou escritas em pequenos papéis, em semelhança com os rituais destinados aos santos e santas da Igreja Católica.218

No estado de São Paulo, vários são os milagreiros que movimentam os cemitérios durante todo o ano, como é o caso de Toninho Escravo, mais conhecido como “preto véio”. Foi sepultado no dia 13 de março de 1904 no cemitério da Saudade, em Campinas. Toninho era escravo do barão Geraldo de Rezende e a relação de proximidade e vínculo entre os dois fazia os moradores de Campinas refletirem sobre os valores sociais da época.219 Sua sepultura está localizada propositalmente ao lado do túmulo de seu senhor, o barão Geraldo de Rezende, que a comprou encostada para serem enterrados lado a lado. De acordo com Élcio Henrique Ramos220, seu túmulo é o que possui mais graças alcançadas entre os milagreiros do cemitério da Saudade, de Campinas, além de ser o mais antigo dentre os santos

218 COSTA, op. cit., p. 56. 219 RAMOS, op. cit., p. 3. 220 Ibidem, p. 1. 98 populares lá sepultados. Suas placas de ex-votos são de fiéis de várias regiões do Brasil, e quando “as pessoas por ali passam impressionam-se pelo número de plaquinhas. [...] Ali também não falta um recipiente contendo água. A água, fonte da vida, seria a fonte de seus milagres. Os que acreditam costumam passá-la sobre os olhos, o rosto ou a friccionam.”221 Outros milagreiros que destacam-se no Cemitério da Saudade, em Campinas, são os médicos Vieira Bueno e Clemente di Toffoli222, que tiveram importância no trabalho de saúde com os pobres e necessitados na cidade de Campinas e são vistos como milagreiros pela população local. Mas, um dos túmulos mais cultuados dos cemitérios paulistas é o das “13 Almas Benditas”, ou apenas “13 Almas”. Os sepultados são treze vítimas do incêndio do Edifício Joelma, na cidade de São Paulo, ocorrido no dia 1º de fevereiro de 1974. Tal Edifício estava localizado na Avenida Nove de Julho, Praça da Bandeira, região Central de São Paulo, local onde hoje está o Edifício Praça da Bandeira. No incêndio, morreram 179 pessoas, além de 300 feridos223. Dentre estes mortos, estão os treze sepultados em túmulo enfileirados, lado a lado, no Cemitério São Pedro, na Vila Alpina, na cidade de São Paulo. Acredita- se que tais sepultados sejam vítimas que tentaram sair do edifício através do elevador, mas que acabaram morrendo carbonizados e, assim, não identificados. Desde a década de 1970, os treze túmulos movimentam o Cemitério São Pedro durante todo o ano, sobretudo, nas segundas- feiras224 e no Dia de Finados. Além das treze unidades tumulares enfileiradas, foi construída uma capela em homenagem aos treze sepultados, onde contém uma lápide com as seguintes inscrições:

“AS TREZE ALMAS SOMENTE DEUS CONHECE SEUS NOMES DESCANSEM EM PAZ

221 Ibidem, p. 3. 222 SÁEZ, Oscar Calavia. Fantasmas Falados: mitos e mortos no campo religioso brasileiro. Campinas/SP: Ed. da UNICAMP, 1996. 223 MENDONÇA, Heitor Tadeu Teixeira. Edificações civis em situação de incêndio: estudo de caso da Boate Kiss e do Edifício Joelma. 2014. 74 p. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Engenharia Civil) - Centro Universitário de Formiga, UNIFOR, Formiga, 2014, p. 56. 224 A segunda-feira é considerada pela Igreja Católica o dia de todas as almas, conforme já destacado no subcapítulo 1.2. 99

+ 2 DE FEVEREIRO DE 1974 INCÊNDIO DO EDIFÍCIO JOELMA

Os devotos, por saberem que os falecidos morreram carbonizados, costumam jogar água sobre seus túmulos, além de costumeiramente ter um copo de água em cada unidade tumular. Também são deixadas pelos devotos velas, flores, bilhetes e placas de ex-votos em agradecimento às graças recebidas.

Imagem 10 – Casos de milagreiros de cemitérios.

Fonte: Wikipedia225, 2016.

Enfim, os milagreiros de cemitérios são homens e mulheres que viveram nas mais variadas regiões do Brasil durante o final do século

225 Montagem com imagens retiradas do site Wikipedia. In: WIKIPEDIA, op. cit. 100

XIX e decorrer do XX. Estes tiveram diversificados tipos de mortes, como os diversos casos de mortes trágicas, entre eles os assassinatos acima descritos, como os enforcamentos e esfaqueamentos. Os suicídios também fizeram parte das mortes dos milagreiros, em especial, das mulheres prostitutas. Outros exemplos mencionados acima foram as mortes de crianças adoentadas, que tiveram uma vida breve e privada pela doença, geralmente com ligações veiculadas à Igreja Católica. Por fim, também foram descritas as mortes naturais, como os exemplos de religiosos que também se tornaram milagreiros entre seus devotos. Percebe-se que o martírio e sofrimento durante suas mortes é um incentivo para se tornarem milagreiras e milagreiros de cemitério. Em suma, como bem sintetiza Lourival Andrade Júnior:

A alma passa a ser mais poderosa, quanto maior tiver sido o sofrimento do corpo quando da morte; isto é muito presente e determinante para a “santificação” na religiosidade não-oficial, neste caso, há uma aproximação da idéia de martírio dos primeiros cristãos perseguidos e torturados. [...] São essas almas que ganham poder de interceder junto a Deus pelos vivos e que vão de crianças que morrem ainda muito jovens até ladrões confessos e prostitutas.226

1.4 DO OESTE AO LITORAL: OS MILAGREIROS DO ESTADO DE SANTA CATARINA

Professora, cigana, caixeiro viajante, frei ou estudante. No estado de Santa Catarina, os milagreiros de cemitério tiveram funções variadas durante suas vidas e estão presentes nos cemitérios das mais diferentes cidades, desde a região oeste, passando pela serra, vale do Itajaí, sul do estado até chegar o litoral catarinense. Durante o ano de 2016, realizei várias viagens de campo, sendo visitadas as sepulturas de muitos destes milagreiros, conforme será pontuado detalhadamente neste subcapítulo. Iniciando pelo extremo oeste catarinense, através da cidade de São Miguel do Oeste, localizada a 656 quilômetros da capital Florianópolis, encontramos o túmulo da milagreira Maria Joana dos Santos. Foi professora durante alguns anos na primeira metade do século

226 ANDRADE JÚNIOR, 2008, op. cit., p. 111. 101

XX e ocupou o cargo de diretora do Colégio São Miguel durante os primeiros anos da década de 1950227. Nasceu no dia 24 de junho de 1915 e faleceu no dia 14 de junho de 1958, conforme dados presentes em sua lápide (Imagem 11). Foi sepultada no Cemitério São Miguel e Almas, na cidade de São Miguel do Oeste. Sua sepultura, revestida em azulejo e granito escuro, possui como ornamento uma cruz em alto relevo sobre a tampa tumular. Na lápide, estão os seguintes dados: nome completo, datas de nascimento e de morte, o epitáfio “Gratidão dos amigos” e uma fotografia preto e branco em porcelana. Durante a visita, realizada no dia 19 de março de 2016, não foram encontrados devotos visitando sua sepultura e placas de ex- voto. Como ritos, tinham vasos de flores artificias e restos de velas queimadas sobre a unidade tumular. Por ter sido professora da cidade durante anos, os jovens estudantes são os que mais pedem à Maria Joana dos Santos, como pedidos de aprovações em provas escolares, vestibulares e concursos públicos.228

Imagem 11 – Milagreira Maria Joana dos Santos em São Miguel do Oeste (SC).

227 Colégio São Miguel completa 70 anos de história. In: Folha do Oeste, 05 out. 2015. Disponível em: . Acesso em 15 set. 2016. 228 ANDRADE JÚNIOR, 2008, op. cit., p. 144 102

Fonte: Acervo pessoal da autora, 2016.

Ainda na região oeste do estado, na cidade de Chapecó, localizada a 552 quilômetros de Florianópolis, o túmulo da menina Vitória Salete Nunes, mais conhecida como “menina milagrosa” é o que recebe mais visitas do Cemitério Ecumênico Municipal de Chapecó. Conforme dados presentes em sua lápide ( Imagem 12), nasceu no mês de junho de 1953 e faleceu no dia 23 de agosto de 1967, com quatorze anos. Sofria de problemas graves de saúde, sobretudo, do aparelho digestivo, se alimentando apenas por líquidos. Faleceu em decorrência das doenças que a acompanharam durante os poucos anos de sua vida. De acordo com Darci Debona, quando a menina Vitória “ainda estava viva, algumas pessoas passaram a atribuir a menina graças alcançadas. Após a sua morte a fama aumentou e o túmulo é o mais visitado em Chapecó, no Dia de Finados.”229 Passado quarenta e nove anos de sua morte, sua sepultura recebe visitas de devotos de várias cidades do oeste, que pedem e agradecem por graças alcançadas. Sua sepultura destaca-se entre as demais do seu entorno no Cemitério Ecumênico Municipal de Chapecó, por ser um mausoléu pintado de rosa com telhado e porta azuis ( Imagem 12). Está localizado próximo a um portão secundário do cemitério, aberto apenas em datas comemorativas, como Dia de Finados. Durante a visita, realizada no dia 20 de março de 2016, estavam dispostos no interior do mausoléu dezenas de vasos e coroas de flores artificiais, dois pequenos quatros com fotografias da menina Vitória, duas imagens de Nossa Senhora Aparecida, um crucifixo, uma imagem de anjo e alguns terços. Como o mausoléu estava fechado no dia da saída de campo, se tornou impossível visualizar todo o interior da sepultura através de uma porta de vidro, em especial, pela grande quantidade de flores artificiais, podendo alguns objetos estarem escondidos. Na parte externa da sepultura, tinham restos de velas queimadas em um velário, além de um vaso de flor natural, não sendo encontrados fiéis visitando o túmulo e placas de ex-votos. Nas reportagens dos jornais catarinenses, a devoção a “menina milagrosa” é, sem dúvida, uma das mais noticiadas. São dezenas de

229 DEBONA, Darci. Visitas ao túmulo de Vitória. In: Diário Catarinense, Florianópolis, 03 nov. 2009. Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina (BPESC), p. 19. 103

reportagens que falam sobre os milagres de Vitória Salete Nunes, conforme notícia a seguir:

Muitos acreditam e atribuem a Vitória Nunes, a menina milagrosa, uma série de milagres e graças, e todos os anos, no dia de finados, vêm lhe trazer presentes e orações de agradecimento. Ninguém sabe como nem quando os milagres começaram a ocorrer, mas muitas pessoas, como a dona-de-casa Marlene Cararo, 46 anos, afirmam ter alcançado as graças pedidas. Marlene, emocionada relata a história de seu filho, Paulo Sales Fontes, hoje com 26 anos. Há aproximadamente 10 anos, ele foi internado em estado grave, no antigo Hospital Santo Antônio - hoje o Uniclínicas, em Chapecó, com meningite espinhal. Muito preocupada, Marlene rezava e chorava ao lado do filho, até que uma manhã, diz ela, um enfermeiro - o qual ela não lembra o nome e nem sabe se ainda está vivo - sugeriu à ela para que rezasse à menina milagrosa. No começo, Marlene diz que ficou um pouco receosa, mas movida pela fé e na esperança de salvar seu filho, foi até o túmulo de Vitória. Rezou e pediu para que ele melhorasse. Dias depois ele deixou o hospital e desde então a dona- de-casa freqüenta o túmulo da menina.230

Imagem 12 – Milagreira Vitória Salete Nunes em Chapecó (SC).

230 TÚMULO de milagreira recebe visitação. In: A Notícia, Joinville, 02 nov. 2001. Disponível em: Acesso em 23 jan. 2017. 104

Fonte: Acervo pessoal da autora, 2016.

Próximo a Chapecó, na cidade de Concórdia, encontramos outra milagreira de cemitério. Popularmente conhecida como a “menina milagrosa”, não existem registros de identificação em seu túmulo, como datas de nascimento e morte, nome ou fotografia, sendo também sua história de vida desconhecida entre os moradores locais. Observando-se o pequeno tamanho do túmulo, sabe-se que é uma criança que ali está enterrada. Sepultada no Cemitério Municipal de Concórdia, a menina é cultuada há algumas décadas pelos moradores de Concórdia, que levam 105

flores, velas e oferendas, como brinquedos e chupetas. Durante o dia de Finados, a “visitação é tão grande que os funcionários do cemitério fazem plantão no local para evitar que o acúmulo de velas provoque um incêndio.”231 Como o mito criado com alguns milagreiros descritos anteriormente, durante a transferência do antigo cemitério da cidade para o atual, o corpo da menina milagrosa estaria intacto. Porém, se é verdade ou não, o correto “é que a Menina Milagrosa é a grande atração do Dia de Finados em Concórdia. O cálculo dos administradores do cemitério municipal é de que mais de mil pessoas visitem neste final de semana o túmulo, que fica ao lado da capela central.”232 Na cidade de Joaçaba, no meio oeste catarinense, encontramos no Cemitério Municipal Frei Edgar a devoção ao Frei Bruno. Nascido em Dusseldorf, na Alemanha, no dia 08 de setembro de 1876, faleceu em Joaçaba, após uma parada cardíaca aos oitenta e quatro anos, no dia 25 de fevereiro de 1960. Veio para o Brasil em missão franciscana no dia 12 de julho de 1894, desembarcando na cidade de Salvador. Morou em várias cidades ao redor do país, sobretudo, cidades catarinenses, como Gaspar e Rodeio. Viveu em Joaçaba entre os anos de 1956 e 1960, mas apesar do pouco tempo, se tornou conhecido pelas ações de caridade aos necessitados. Sua morte comoveu a cidade e durante os rituais de sepultamento, como cortejos e enterros, as “lojas e indústrias fecharam em sinal de luto e quase 200 carros acompanharam o cortejo até o cemitério. Foi o maior enterro que já houve em Joaçaba.”233 Sua sepultura (Imagem 13) é visitada durante todo o ano, sobretudo, no Dia de Finados e no mês de fevereiro, quando ocorre a romaria penitencial que homenageia Frei Bruno, reunindo milhares de devotos todos os anos. De acordo com Giuliano Pedroso, seu túmulo é o mais visitado da cidade:

231 TÚMULO da Menina Milagrosa atrai fiéis. In: A Notícia, Joinville, 01 nov. 2002. Disponível em: . Acesso em 14 set. 2016. 232 Ibidem. 233 DIA de Finados movimenta os cemitérios em Santa Catarina. Diário Catarinense, Florianópolis, 02 nov. 2009. Disponível em: . Acesso em: 17 set. 2016. 106

Para muitos féis Frei Bruno, é considerado santo, e o que o frei fez em vida, é relembrado por milhares de fiéis no dia de Finados. No cemitério Frei Edgar, o local que deve receber maior visitação deverá ser o túmulo do religioso alemão. A confiança em sua intercessão tem atraído milhares de fiéis ao seu túmulo e ao monumento a ele dedicado. Às 9 horas da manhã de sábado (2) será realizada uma missa em frente ao túmulo de Frei Bruno, Frei Edgar que dá nome ao cemitério municipal de Joaçaba.234

Imagem 13 – Sepultura de Frei Bruno em Joaçaba (SC).

234 PEDROSO, Giuliano. Cemitérios são preparados para o Dia de Finados. In: Diário do Vale SC, Joaçaba, 30 out. 2013. Disponível em: . Acesso em: 17 set. 2016. 107

Fonte: Acervo pessoal da autora, 2016.

No ano de 2008, devotos e párocos de Joaçaba deram entrada na organização da documentação do processo de beatificação e canonização de Frei Bruno, mas o processo ainda está no Brasil, sem intervenções no Vaticano. Além disso, no dia 29 de novembro de 2008 foi inaugurado na cidade de Joaçaba um monumento com a estátua de Frei Bruno em sua homenagem. O monumento é o terceiro maior das Américas: “Com 37 metros de altura, o monumento é motivo de orgulho. É menor apenas que a Estátua da Liberdade (93 metros) e o Cristo Redentor (38 metros), é o terceiro maior das Américas.”235 Após

235 CADORE, Francine. Frei Bruno ganha estátua de 37 metros no Meio-Oeste de Santa Catarina. In: Diário Catarinense, Florianópolis, 29 nov. 2008. Disponível em:

Imagem 14 – Estátua do Frei Bruno em Joaçaba (SC).

Fomte: CADORE, 2008.

Ao lado do meio oeste, encontramos a serra catarinense. Na cidade de Lages, localizada a 225 quilômetros da capital Florianópolis, os milagreiros fazem parte dos cemitérios e da história local. Segundo Lourival Andrade Júnior, que pesquisou a milagreira Cigana Sebinca Christo, dos treze milagreiros que contabilizou no estado até o ano de 2008, sete estão em Lages. Destes sete santos populares de Lages, a maioria está sepultada no Cemitério Cruz das Almas. Ao entrar no Cemitério Cruz das Almas, placas indicam a localização das sepulturas de três destes milagreiros (Imagem 15). Iniciando por Ernesto Canozzi e seu peão, Olintho Pinto Centeno, popularmente conhecidos como “Irmãos Canozzi”, estes foram brutalmente assassinados no dia 01 de maio de 1902. De acordo com a historiadora Sara Nunes236, Domingos Brocato assassinou Ernesto

ganha-estatua-de-37-metros-no-meio-oeste-de-santa-catarina-2313341.html>. Acesso em 17 set. 2016. 236 NUNES, Sara. Caso Canozzi: Um crime e vários sentidos. Florianópolis, 2007. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-Graduação em 109

Canozzi e Olintho Pinto Centeno, sendo que os corpos dos “irmãos” foram encontrados um dia depois na estrada que ligava a cidade de Lages ao estado do Rio Grande do Sul. Quando encontrados, a brutalidade do crime chocou, pois Ernesto Canozzi estava com os olhos perfurados e Olintho Centeno com o crânio esmagado.237 Tal local do assassinato se tornou espaço de peregrinação dos devotos, sendo “visitado por romarias e devotos individuais, que, ao lado onde estão encravadas três cruzes, colocam seus pedidos amarrados em plástico e também depositam placas de ex-votos a graças alcançadas.”238 Ernesto Canozzi e Olintho Centeno foram enterrados na mesma sepultura, em um túmulo que certamente passou por várias modificações construtivas ao longo do tempo. Atualmente, caracteriza-se por ser um mausoléu semiaberto, com uma corrente que delimita a parte do corpo sepulto e sua cabeceira, como pode-se observar na Imagem 15. Possui identificação dos dois sepultados, com as inscrições “Aqui Jaz”, seguido pelos nomes de ambos. Na cabeceira da sepultura de Ernesto Canozzi existe sua fotografia em porcelana preto e branca, enquanto que no túmulo de Olintho Pinto Centeno possui apenas as inscrições com seu nome. Quanto aos ritos, durante a visita, realizada no dia 03 de março de 2016, foram encontrados alguns vasos e coroas de flores artificiais, além de velas queimadas na parte interna do mausoléu. A sepultura possui dezenas de placas de ex-votos feitas em vários materiais como madeira, porcelana e granito. A maioria das placas encontra-se pendurada nas paredes do mausoléu, enquanto outras estão soltas, deixadas em frente à unidade tumular e algumas foram gravadas na própria cabeceira, moldadas e escritas na alvenaria. Dentre as mensagens, a maioria agradece pelas graças alcançadas e possui apenas as iniciais do nome do devoto, como, por exemplo: “Por uma graça alcançada M.A.L.P” Além dos ritos deixados, alguns rituais são praticados na própria sepultura, como “‘o ritual de retirar a corrente e colocá-la de volta no lugar, se repetiu durante todo o dia. Segundo o que se acredita, para conseguir uma bênção dos Irmãos Canosi, é preciso mudar a posição da corrente que está presa ao túmulo.’”239

História, Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, 2007, p. 10. 237 Ibidem, p. 29-30. 238 ANDRADE JÚNIOR, 2008, op. cit., p. 193. 239 Ibidem, p. 191. 110

Imagem 15 – Cemitério Cruz das Almas e sepultura dos Irmãos Canozzi em Lages (SC).

Fonte: Acervo pessoal da autora, 2016.

A Cigana Sebinca Christo é outra milagreira de Lages sepultada no Cemitério Cruz das Almas. Sebinca nasceu na Grécia no ano de 1886 e chegou ao Brasil no ano de 1935. Teve nove filhos e como ocorrência com a maioria dos ciganos, “Sebinca lia a sorte e o grupo vendia tachos, mas já era velha quando chegou a Lages, por conta disto não trabalhava 111

na venda de objetos.”240. Morreu na cidade de Lages no dia 12 de março de 1965241. Uma característica que a diferencia de muitos milagreiros é que Sebinca Christo não era, de acordo com seus familiares, moradora de Lages, “ou seja, não era do lugar. Mas tornou-se depois de morta.”242 Contudo, conforme destaca Lourival Andrade Júnior, os relatos sobre Sebinca são bastante controversos, sendo que os parentes da cigana e seus devotos constroem versões próprias e particulares, como é o caso do motivo de sua morte: “O fato de os devotos transformarem uma morte natural em uma tragédia e darem à cigana poderes em vida que, segundo a família, nunca existiram, faz de seu culto um original espaço de gestos e narrativas que justificam para uns e para outros o seu poder.”243 A peregrinação na unidade tumular de Cigana Sebinca é intensa, com devotos frequentando sua sepultura durante todo o ano, especialmente no Dia de Finados. São cultos que se modificam no decorrer dos anos, como observou Lourival Andrade Júnior ao longo de sua pesquisa:

Inicialmente velas brancas, flores e cigarros. Depois cidras, vinhos, cerveja e água. Mais à frente no tempo: frutas, bijuterias, baralho, batons. Seguindo, mais velas, aparecendo além das brancas, também vermelhas, cor-de-rosa, amarelas, roxas e pretas. É por meio dessas oferendas que pudemos perceber como o culto a ela foi se reciclando e se recriando a cada devoto que buscava seus poderes. Os ciganos continuaram levando apenas aquilo que Sebinca gostava, vinho e embutidos, além de velas brancas e flores.244

Durante a visita de campo, realizada no dia 03 de março de 2016, foram encontrados apenas cigarros queimados e restos de velas

240 ANDRADE JÚNIOR, 2008, op. cit., p. 259. 241 As datas de nascimento e morte foram coletadas na fotografia presente na cabeceira do seu túmulo. 242 ANDRADE JÚNIOR, 2008, op. cit., p. 259. 243 Ibidem, p. 11. 244 ANDRADE JÚNIOR, 2008, op. cit., p. 272. 112 derretidas de várias cores ao lado da sepultura, junto ao muro, como apresentado na Imagem 16. Seu túmulo passou por reformas após seu sepultamento245, sendo que atualmente o túmulo é revestimento de granito marrom e possui uma cabeceira quebrada onde estão duas fotografias em porcelana preto e branco, sendo uma de Sebinca e outra de sua neta, Cida Christo, que foi sepultada anos depois na mesma unidade tumular.

Imagem 16 – Túmulo de Cigana Sebinca Christo em Lages (SC).

Fonte: Acervo pessoal da autora, 2016.

Outro caso de milagreiro do cemitério Cruz das Almas é o do Frei Silvério Weber, que faleceu de morte súbita, em decorrência de um infarto fulminante no dia 04 de março de 2000. Nasceu no dia 08 de julho de 1945, na cidade de Pomerode (SC), se tornando padre no ano de 1972. Foi pároco em

245 De acordo com Lourival Andrade Júnior, a última reforma ocorreu no ano de 2007, com uma transformação radical: “O túmulo já não era mais coberto com o azulejo azul escuro de tantos anos, ele recebeu um granito marrom claro, não possuía mais nem a cruz.” In: ANDRADE JÚNIOR, 2008, op. cit., p. 218. 113

várias cidades do estado de Santa Catarina, entre elas: Lages (por dezesseis anos), Forquilhinha (por dois anos) e Joaçaba (também por dois anos), além de realizar trabalhos religiosos entre os anos de 1983 e 1985 na cidade de Pato Branco, no Paraná.246 Caracteriza-se por ser o único clérigo a se tornar milagreiro na cidade de Lages. Era bastante conhecido no estado de Santa Catarina, por ter um “programa de televisão de exibição estadual, em que todos os dias às dezoito horas (Hora da Ave Maria), rezava com seus fiéis e benzia um copo de água pelas ondas da televisão, que os devotos ou seguravam nas mãos ou colocavam sobre o aparelho de TV.”247 De acordo com um reportagem do jornal Diário Catarinense, o túmulo de Frei Silvério recebe milhares de pessoas durante o Dia de Finados, como foi o caso do ano de 2003, com a visita de mais de 3 mil pessoas.248 As outras duas milagreiras presentes no cemitério Cruz das Almas são as meninas Aline Giovana Shmitt e Yvone de Oliveira Freitas. Yvone de Oliveira Freitas faleceu no dia 19 de outubro de 1960, com apenas dez anos de idade, decorrente de uma leucemia, sendo que a “devoção a ela se mantém nestes últimos 47 anos e as placas de agradecimentos são encontradas em grande número em seu túmulo. Também se percebe que são deixadas oferendas junto à sepultura, como balas, doces em geral e pirulitos.”249 Já a menina Aline Giovana Shmitt tinha apenas 12 anos quando foi cruelmente assassinada com dois tiros pela própria mãe, no dia 05 de março de 1982: “O que continuou chocando a população foi que a mandante do crime havia sido a mãe de Aline, que desejava ficar com a herança da filha, após sua morte, já que a menor era sócia do pai na madeireira da família.”250 O cemitério Cruz das Almas é referenciado em algumas reportagens jornalísticas no estado de Santa Catarina pela procura aos milagreiros, conforme reportagem “Milagreiros são homenageados”, do dia 01 de novembro de 2005, do Diário Catarinense, de Florianópolis.

246 FREI Silvério Weber, OFM. In: Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil, 13 out. 2011. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2016 247 ANDRADE JÚNIOR, 2008, op. cit., p. 200. 248 TÚMULO de Frei Silvério é a grande atração. In: Diário Catarinense, Florianópolis, 03 nov. 2003. Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina (BPESC), p. 22. 249 Ibidem, p. 194. 250 Ibidem, p. 198. 114

Na notícia, se destaca que não são as personalidades políticas ou os “líderes empresariais, colonizadores e religiosos os centros das atenções dos moradores de Lages no Dia de Finados. Além das homenagens aos familiares que partiram, pessoas simples, consideradas milagreiras recebem o mesmo tratamento dispensado aos parentes próximos.”251

Imagem 17 – Reportagem sobre os milagreiros de Lages.

Fonte: ROSA, 2005.252

251 ROSA, Diego. Milagreiros são homenageados. In: Diário Catarinense, Florianópolis, 01 nov. 2005. Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina (BPESC), p. 24. 252 ROSA, 2005, op. cit., p. 24. 115

O último caso de milagreiro da cidade de Lages descrito em pesquisas acadêmicas e mencionado em reportagens jornalísticas é o da menina Salete de Fátima Madruga, sepultada no Cemitério Nossa Senhora da Penha. Foi brutalmente assassinada no dia 26 de setembro de 1965, após ter sido estuprada. Como lembra Lourival Andrade Júnior: “Da mesma forma que Yvone e os Canozzi, Salete também teve uma morte dolorosa e trágica, o que qualifica sua devoção.” Ainda na serra catarinense, na cidade de Capão Alto, na localidade de Santo Antônio do Pelotas, um cemitério do interior, em estado de abandono, guarda a sepultura de um milagreiro. Durante uma pesquisa histórica dos cemitérios localizados ao longo do Caminho das Tropas, este cemitério foi levantado e tal milagreiro registrado.253 Identificado como Cemitério Alto da Serra, durante a visita de campo, realizada no ano de 2010, estava em situação de total abandono, com o mato cobrindo as unidades tumulares e com reflorestamento de pinos ao seu redor, o que dificultou localizá-lo na alta vegetação. Em uma das unidades tumulares, foram encontradas três placas de ex-votos soltas sobre o corpo sepulto. As placas são esculpidas em basalto, material construtivo bastante comum nos túmulos mais antigos da região da Coxilha Rica. Em uma das placas, possui as seguintes inscrições: “AGRADECE UMA GRAÇA J.L.S.”, conforme apresentado na imagem abaixo:

Imagem 18 – Placas de ex-votos de milagreiro de Capão Alto (SC).

253 Importante destacar que participei de tal projeto durante os anos de 2009 e 2010 e estive no levantamento de campo deste cemitério. Para saber mais, ver: HERBERTS, Ana Lucia; CASTRO, Elisiana Trilha. Cemitérios no Caminho: O patrimônio funerário ao longo do Caminho das Tropas nos Campos de Lages. Blumenau: Nova Letra, 2011, p. 278-282 116

Fonte: Ana Lucia Herbert e Elisiana Trilha Castro, 2010.

Em outras regiões catarinenses, como no Vale do Itajaí, a existência de milagreiros de cemitérios são mais raras, como é o caso da cidade de Blumenau. O único destacado em pesquisas acadêmicas e reportagens jornalísticas (Imagem 19) é o milagreiro Frei Fulgêncio Kaup, falecido no ano de 1968. Frei Fulgêncio nasceu na Alemanha e veio para o Brasil com dezenove anos, fixando-se no Vale do Itajaí, onde se dedicou durante “quase três décadas à educação no Colégio Santo Antônio, que lhe trouxe a afeição dos blumenauenses. Lecionou Biologia, da qual era profundo conhecedor, além de Matemática e Inglês.”254 Cinco anos antes de falecer, no dia 28 de novembro de 1963, recebeu o título de "Cidadão Blumenauense" pela Prefeitura Municipal de Blumenau. Além disso, também foi homenageado com uma rua batizada com seu nome no bairro Vila Nova, em Blumenau. Está sepultado no cemitério São José, onde semanalmente os fiéis visitam seu túmulo para pedir e agradecer as graças alcançadas, deixando flores e velas como homenagem. De acordo com Marilene Rodrigues, sua sepultura foi reformada “e ganhou mármores e bancos para receber romeiros. O local agora também tem um acendedor de velas. A recente reforma foi proporcionada por um empresário blumenauense como forma de pagamento pela graça alcançada.”255

254 RODRIGUES, Marilene. Frei Fulgêncio lidera adoração em Blumenau. In: Diário Catarinense, Florianópolis, 02 nov. 2003. Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina (BPESC), p. 35. 255 RODRIGUES, 2003, op. cit., p. 35. 117

Imagem 19 – Reportagem sobre adoração a Frei Fulgêncio.

Fonte: RODRIGUES, 2003, op. cit., p. 35.

Quando ao sul do estado, a cidade de Urussanga, localizada a 191 quilômetros da capital Florianópolis, tem como milagreiro o Monsenhor Agenor Neves Marques, popularmente conhecido como “Padra Agenor”. Nascido no município de Palhoça no ano de 1914, estabeleceu-se na cidade de Urussanga em 1948, quando assumiu a Paróquia. Faleceu na cidade de Urussanga com noventa e dois anos, no 118 dia 31 de agosto de 2006. Seu cortejo fúnebre foi um dos que mais movimentou a cidade, como recorda Maria Aparecida João256:

Eu fui do padre Agenor, do padre Agenor foi um evento na cidade, né? Veio gente de todos os lugares, pessoas de todos os meios, políticos, religiões, crianças, tudo. Foi feito um livro de presença, colocado ao público, foi na igreja, o padre ficou o tempo todo ali na igreja. Nossa, foi maravilhoso, as homenagens, um ritual totalmente diferente dos demais, né? O mega.

Além do funeral bastante movimentado, com velório, cortejo fúnebre e enterro, que atraíram centenas de devotos, sua missa de sétimo dia reuniu pessoas de toda a região do sul do estado. A missa realizada após os sete dias de morte teve grande movimentação e homenagens, sendo entregue nesta data a lembrancinhas de morte257, com mensagens e imagens do padre:

Imagem 20 – Lembrancinhas de morte do milagreiro Padre Agenor e sua lápide no cemitério Municipal de Urussanga (SC).

Fonte: Acervo pessoal da autora, 2010.

256 JOÃO, Maria Aparecida. Entrevista concedida a Julia Massucheti Tomasi, no dia 15 de janeiro de 2010. 257 Conforme constatei na cidade de Urussanga (SC), através da monografia intitulada “Morte à italiana: os ritos funerários no município de Urussanga (SC) no decorrer do século XX”, as lembrancinhas de morte, santinhos ou cartões de recordação, eram, até o final do século XX, entregues nas missas de sétimo dia. Nesse “cartão, o conteúdo é bastante diversificado, possuindo informações, como por exemplo, nome completo do ente, data de nascimento e morte, foto do falecido, frases que ‘sintetizem’ o que o morto foi em vida, poesias, fragmentos bíblicos, orações ou imagens sacras”. In: TOMASI, 2010, op. cit., p. 90. 119

Seus restos mortais foram sepultados no cemitério Municipal de Urussanga, localizado no centro da cidade, sendo que sua sepultura atrai devotos de várias cidades da região. São flores e velas deixadas diariamente ao querido padre Agenor, como também as placas de ex-votos. Por último, pensando-se no litoral, os registros de milagreiros de cemitérios nas pesquisas acadêmicas e notícias de jornal são presentes apenas na capital Florianópolis, com referência somente ao túmulo de Vida Machado, sem mencionarem os túmulos das irmãs Jane e Rosemary Koerich. Estas três milagreiras serão exploradas a seguir, nos próximos quatro capítulos. Enfim, são milagreiros catarinenses das mais variadas regiões e cidades, mas que unem pessoas em um mesmo espaço, isto é, seus túmulos. E todos os devotos com um único propósito: o de alcançar graças. Para tanto, as homenagens a seus milagreiros de cemitérios são infinitas, como as flores naturais e artificiais, velas, placas de ex-votos, brinquedos, cigarros, bebidas e alimentos. Enfim, seja do oeste ao litoral, os milagreiros fazem parte dos cemitérios de Santa Catarina e da vida dos devotos catarinenses.

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120

2 HISTÓRIAS DE VIDA, MORTE E POST-MORTEM DAS IRMÃS ROSEMARY E JANE KOERICH

2.1 “ROSEMARY, RONALDO, JANE E SÉRGIO. ASSIM ERA NOSSA FAMÍLIA, NOSSOS FILHOS, NOSSAS VIDAS”: A BREVE HISTÓRIA DE VIDA DAS IRMÃS KOERICH

Rosemary, Ronaldo, Jane e Sérgio. Assim era nossa família, nossos filhos, nossas vidas. Vivíamos momentos de intensa e singular felicidade. O destino trágico e cruel nos solapou e, de um só golpe, nos tirou a vida de nossas duas únicas filhas. Foi no dia 12 de abril de 1980, quando o inesperado aconteceu. O avião que conduzia nossas filhas de retorno a Florianópolis, após uma breve estada na capital paulista, perdeu o controle batendo contra um morro nas cercanias da capital catarinense, perecendo no acidente, além de Jane e Rosemary, outras quase cinqüenta pessoas. 258

O depoimento acima mencionado, do casal Antônio Obet Koerich e Ony Furtado Koerich, presente na obra “Porto de alegria”, do ano de 1994, destaca especificidades da vida das irmãs Rosemary Furtado Koerich Noceti e Jane Furtado Koerich. Família natural da região da grande Florianópolis, os pais Antônio Obet Koerich e Ony Furtado Koerich se casaram no ano de 1957 e tiveram quatro filhos: Rosemary Furtado Koerich, primogênita, nascida no dia 17 de dezembro de 1957, Ronaldo Furtado Koerich, que nasceu em 20 de fevereiro de 1959, Jane Furtado Koerich, nascida no dia 6 de maio de 1960 e Sérgio Furtado Koerich, o caçula, que nasceu no dia 26 de agosto de 1962. De acordo com o relato de Antônio Obet Koerich259, seus quatro filhos foram “criados em cima do pilar família, respeito e raízes, uma herança dos nossos pais. Então viveram todos eles com uma infância

258 XAVIER, Francisco Cândido. Porto de alegria. Uberaba: Editora Instituto de Difusão Espírita, 1994, p. 33. 259 KOERICH, op. cit. 121

bastante boa, educados em uma determinada disciplina, estudantes”. Os episódios mais rememorados pelos pais, antes do falecimento das duas filhas, são os almoços semanais com os familiares e amigos, onde se faziam presentes as brincadeiras entre os quatro filhos e as pequenas desavenças frequentes entre os irmãos. As irmãs Rosemary e Jane, que apresentavam uma pequena diferença de idade, de somente dois anos e cinco meses, estudaram nos Colégios Coração de Jesus e Catarinense e cursavam ensino superior na Universidade Federal de Santa Catarina. No ano de 1980, quando ocorreu o acidente aéreo que vitimou as irmãs, Rosemary estava no último ano do Curso de Economia e Jane cursava as primeiras fases de Língua Portuguesa. No ano de 1977, Rosemary casou-se com Sidnei Noceti Filho, com quem namorou durante longos anos, enquanto Jane era solteira e namorava Dagoberto Baggio Caon. As irmãs eram consideras distintas em suas atitudes, personalidades e comportamentos, como se pode observar nas biografias apresentadas nos livros em que estão suas psicografias260:

Rosemary Furtado Koerich [...] Descontração e alegria foram as expressões maiores de sua efêmera existência. Ao contrário de sua irmã Jane, também vitimada no acidente, Rosemary, pela sua descontração, encontrava sempre alternativas nos embaraços criados por seus irmãos, desejosos em ver Rosemary envolvida e sem saída nas brincadeiras por eles colocadas. Criativa, vivia com simplicidade. Da mesma forma vestia-se. Aos quinze dias do mês de outubro de 1977 casou-se com Sidnei Noceti Filho, passando, a

260 As seis mensagens das irmãs Koerich são datadas de 22 de agosto de 1980, 12 de setembro de 1981, 15 de maio de 1982, 15 de abril de 1983, 14 de abril de 1984 e 11 de abril de 1986. Cinco delas enviadas por Jane e uma por Rosemary, todas elas foram psicografadas pelos médiuns Francisco Cândido Xavier e Divaldo Pereira Franco. Nas ocasiões das mensagens, os pais Antônio Obet Koerich e Ony Furtado Koerich estiveram no Grupo Espírita da Prece (GEP), na cidade de Uberaba, Minas Gerais. Importante destacar que a primeira mensagem foi enviada por Jane no dia 22 de agosto de 1980, 4 meses após o acidente. Tais mensagens serão aprofundadas no subcapítulo 2.3. 122

partir daquela data, a chamar-se Rosemary Furtado Koerich Noceti.261

Jane Furtado Koerich: Jovem tímida e idealista; era inteligente e dotada de grande sensibilidade, a ponto de comover-se facilmente até às lágrimas. Muito amada pelos familiares e amigos, fez-se exemplo, em face dos seus valores morais acentuadamente cristãos.262

Tais características que diferenciavam as irmãs também são descritas por seus amigos e familiares, conforme explicita o pai, Antônio Obet Koerich263: “A Rose era uma pessoa desprovida de todo e qualquer sentimento de vaidade, na realidade todas as duas. A Rose era expansiva, a Jane uma pessoa tímida, retraída. Então, as duas viviam harmoniosamente. A Jane era uma menina muito sensível, qualquer coisa a tocava, e a Rose já não”. Como reforça o pai, durante a juventude suas filhas gostavam de sair, frequentadoras das domingueiras do Clube XII de Agosto, além de viveram na geração dos Beatles e serem apaixonadas por música, sobretudo Rosemary, hábito que foi intensificado ao lado de seu marido, Sidnei, que era músico e tocava em festas.

Imagem 21 - Fotografia de Jane Imagem 22 - Fotografia de Rosemary Furtado Koerich. Furtado Koerich Noceti.

261 FRANCO, Divaldo Pereira. Vitória da Vida. Salvador: Livraria Espírita Alvorada, 1988, p. 55. 262 XAVIER Francisco Cândido; FRANCO, Divaldo Pereira. “... E o amor continua”. Salvador: LEAL Livraria Espírita Alvorada Editora, 1983, p. 11. 263 KOERICH, op. cit. 123

Fonte: Francisco Cândido Xavier e Fonte: Divaldo Pereira Franco.265 Divaldo Pereira Franco.264

A religiosidade das irmãs é outra particularidade destacada nos relatos dos entrevistados e nas mensagens psicografadas. Durante a infância e parte da adolescência, as irmãs Koerich frequentavam constantemente a casa da avó materna, Maria Goulart Furtado, que era adepta da doutrina espírita, o que as motivou a conhecer e praticar a doutrina, além de serem católicas, religião praticada pela família paterna, como destaca Antônio Obet Koerich266, frequentador assíduo de missas e eventos religiosos da Igreja Católica. Independente da religiosidade, algo que merece destaque é a devoção que as irmãs possuíam ao Padre João Batista Reus267, de São

264 KOERICH, op. cit. 265 FRANCO, op. cit., p. 55 266 KOERICH, op. cit. 267 De acordo com Carlos Alberto Steil “A devoção ao Padre Reus é possivelmente aquela que possui maior abrangência entre as devoções de origem local no estado [do Rio Grande do Sul], cruzando, inclusive, suas fronteiras e atingindo devotos em Santa Catarina e no Paraná. Padre Reus nasceu na Alemanha, ordenou-se padre e tornou-se jesuíta no início do século 124

Leopoldo, como se observa nos relatos dos pais e nas mensagens psicografadas, as quais se referem a ele em duas das mensagens, chamando-o afetivamente de “amado Padre Reus”, conforme transcrição a seguir, de uma das mensagens psicográficas:

Há poucos dias, tivemos oportunidade de receber a visita, em nosso departamento de trabalhos e estudos, do amável, Padre Reus, tão querido em nossa Santa Catarina, pelas suas realizações de amor ao lado dos sofredores da Terra. Ouvimo-lo com emoção e respeito, recordando-nos do que nos era familiar desde a infância em torno da sua vida de taumaturgo. Não posso negar que as lágrimas de emoção e júbilo escorriam-me, evocando na tela da memória.268

De acordo com Antônio Obet Koerich269, tal devoção era constante nas orações e pedidos feitos ao Padre Reus por Maria Goulart Furtado, sua sogra, desde a infância de suas filhas, o que fortaleceu, consequentemente, suas devoções e afeições particulares tanto em vida quanto em morte. Jane e Rosemay, apesar de distintas, eram unidas e companheiras de festas e diversões, além de compartilharem amizades, como a amiga Sônia Beatriz Cabral, que trabalhava com Rosemary na Fucat e era amiga de ambas, vindo a falecer no mesmo acidente aéreo que vitimou as irmãs no dia 12 de abril de 1980.

passado, vindo para o Brasil como missionário no início do século XX. Depois de sua morte passou a ser cultuado pelos católicos que passaram a frequentar o seu túmulo. Mais tarde os jesuítas construíram um moderno templo, dedicado ao Sagrado Coração de Jesus, deixando ao túmulo um lugar de destaque, fora do templo. As romarias ao túmulo e santuário são constantes, com dois momentos de maior afluência no dia 2 de novembro e na Sexta-Feira Santa”. In: STEIL, Carlos Alberto. Catolicismo e memória no Rio Grande do Sul. In: Debates do NER, ano 5, n° 5. Porto Alegre: PPGAS/UFRGS, 2004. Além da devoção popular, importante destacar que existe um processo de beatificação do Padre Reus desde a década de 1950, alguns anos após a sua morte. Tal processo ainda tramita no Vaticano, retomado na década de 1990 e no ano de 2010 pelo Bispo Dom Zeno Hastenteufel, da Diocese de Novo Hamburgo. 268 XAVIER; FRANCO, op. cit., p. 15. 269 KOERICH, op. cit. 125

Afinal, qual o motivo da viagem que provocou a morte das irmãs e da amiga Sônia? De acordo com o pai, Antônio Koerich270, Rosemary estava fazendo um tratamento de tireoide na cidade de São Paulo, sendo esta a sua segunda viagem. Na ocasião, também foram acompanhá-la sua irmã Jane, que aproveitou a viagem para passear, e a amiga Sônia, que também foi para São Paulo para tratamento de saúde, como destacado em uma reportagem do jornal O Estado: “Rosemay Koerich Nocetti, casada, de 22 anos e Jane Koerich, de 18 anos. Elas estavam acompanhadas de Sonia Cabral, de 25 anos. Rosemary e Sonia foram á São Paulo tratar assuntos de saúde e Jane simplesmente quis acompanha-la para dar um passeio.”271 O itinerário da viagem das irmãs Koerich é relatado detalhadamente pelo pai, Antônio Obet Koerich272, que recorda que o retorno de São Paulo para Florianópolis estava previamente agendado para o dia 13 de abril, no domingo:

E eu posso também te dizer que elas saíram daqui numa quarta-feira previsto naquela época e a empresa de maior confiança era a Varig. Elas saíram daqui na quarta-feira pela manhã, com o horário previsto para retornar no domingo. Estavam já com o voo comprado ida e volta, com os horários previamente marcados. Mas o que aconteceu? A Rose concluiu o seu exame com o médico, coisa semelhante e tiveram a oportunidade de antecipar. Ao invés de esperar domingo pela manhã, revolveram antecipar o voo para sábado. E foi aí onde aconteceu o acidente.273

As mesmas lembranças são descritas por Rosemary na mensagem psicografada por Divaldo Pereira Franco, no mês de abril de 1983, três anos após o desastre aéreo, como transcrito a seguir:

270 Ibidem. 271 A TRAGÉDIA do Boeing, seção cidades. O Estado, Florianópolis, n° 19.670, ano 65, 14 abr. 1980. Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina (BPESC), p. 3. 272 KOERICH, op. cit. 273 Ibidem. 126

No caleidoscópio da memória, revejo os nossos preparativos para a viagem a São Paulo, no dia 10 de abril, com os bilhetes marcados para retomarmos no dia 13 à nossa amiga Florianópolis. Fui eu, quem, sem o desejar, vencida pelas saudades e concluídos os compromissos na capital paulista, resolveu o retorno, antecipando-o para o sábado com a chegada prevista para as 20h.... No telefonema à mamãe Ony ainda me recordo da Jane brincando, por alcançar a vitória da sua viagem. Desejei chamá-lo, papai, a fim de ouvir-lhe a voz, no entanto, porque nos iríamos ver, logo mais, adiei o prazer e não podia imaginar que, na Terra, nunca mais iria fruir desse júbilo.274

Tal acidente aéreo do Boeing 727 da Transbrasil, que foi densamente noticiado pela mídia regional e nacional, é considerado até hoje um dos piores desastres da história catarinense, com a morte de quase todos os passageiros, em um total de cinquenta e cinco, com apenas três sobreviventes, conforme apresentado no próximo subcapítulo.

2.2 “A TRAGÉDIA QUE ABALOU O ESTADO”: O ACIDENTE DO BOEING 727 DA TRANSBRASIL NO MORRO DA VIRGÍNIA NO DIA 12 DE ABRIL DE 1980

“A colisão, seguida de uma explosão, ocorreu por volta das 21 horas de ontem, quando um avião de grande porte sobrevoou a baixa altura a localidade de Ratones, assustando as pessoas que começavam a entrar no salão do baile e outras que se encontravam numa venda conversando. Momentos após um estrondo, seguido de incêndio, confirmava a tragédia com o Boeing que transportava 50 passageiros e oito tripulantes.”275

274 FRANCO, op. cit., p. 56 275 A TRAGÉDIA do Boeing. O Estado, Florianópolis, n° 19.669, ano 65, 13 abr. 1980. Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina (BPESC). 127

A matéria supracitada, que está na capa do Jornal “O Estado” do dia 13 de abril de 1980, noticia o maior acidente aéreo da história do estado de Santa Catarina, ocorrido na noite do dia 12 de abril de 1980, no morro da Virgínia, Ratones, na cidade de Florianópolis. O Boeing 727 da Transbrasil PT-TYS (TB 303) que saiu de Belém, no Pará, fez algumas conexões em capitais brasileiras, como Brasília e São Paulo e tinha como destino o Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, com sua última conexão no Aeroporto Hercílio Luz, em Florianópolis, às 21 horas. Nos jornais de circulação local, como O Estado, Jornal da Semana, A Notícia, Jornal de Santa Catarina e Diário Catarinense, a divulgação foi intensa, sobretudo, no jornal O Estado, que realizou a cobertura completa do acidente, com uma edição extra no dia 14 de abril, com o propósito de noticiar o motivo do acidente, a busca e identificação dos cinquenta e quatro corpos e o estado de saúde dos quatro sobreviventes. Para os moradores de Florianópolis, o acidente aéreo foi uma das piores tragédias já vivenciadas na cidade, como constatado nos depoimentos dos entrevistados276 (Cardoso277, Santana278, Machado279, Dionisio280, Peixoto281 e Koerich282). De acordo com o relato de Othilia de Carvalho Cardoso (2015), que perdeu um irmão no acidente, as lembranças remetem a um sábado chuvoso e uma noite com fortes temporais:

276 Foram realizadas entrevistas com seis moradores de Florianópolis, entre eles cinco mulheres e um homem, todos com idade superior a 75 anos, que relataram suas recordações sobre o dia do acidente, além das datas subsequentes, destacando como foi a repercussão midiática, além de participações em velórios de vítimas da tragédia. 277 CARDOSO, Othilia de Carvalho. Entrevista cedida à Julia Massucheti Tomasi, no dia 30 de janeiro de 2015. 278 SANTANA, Feliciana. Entrevista cedida à Julia Massucheti Tomasi, no dia 30 de janeiro de 2015. 279 MACHADO, Cecília Maria dos Santos. Entrevista cedida à Julia Massucheti Tomasi, no dia 30 de janeiro de 2015. 280 DIONISIO, Rosa Francisca. Entrevista cedida à Julia Massucheti Tomasi, no dia 30 de janeiro de 2015. 281 PEIXOTO, Cely Cortes Galotti. Entrevista cedida à Julia Massucheti Tomasi, no dia 30 de janeiro de 2015. 282 KOERICH, op. cit. 128

Era um sábado chuvoso, a Ana e o Luís saíram para a missa e caiu um temporal. A gente viu que o avião ia passando. A gente nem imaginava que ia cair o avião naquele momento. A gente ficou sabendo do acidente no morro em Ratones, caio o avião cheio de gente... E o meu irmão, Luis Carvalho faleceu nele, ele viajava muito. Ele tinha uma loja em Tubarão e ele era presidente do sindicato, então ele viajava muito a serviço, tanto que ele foi só para uma reunião. E cada vez que ele viajava ele ligava para mim e se desse ele vinha aqui antes de viajar. E naquele dia ele não tinha nem ligado. Ele viajou e a gente nem sabia. Por isso que ficou aquela dúvida, quando a gente viu “Luis Carvalho”. 283 Eles divulgaram o nome e nos jornais também tinha.284

A identificação dos passageiros é um dos principais temas abordados nas primeiras reportagens jornalísticas, conforme listagem a seguir (Imagem 23), divulgada no jornal O Estado, que identifica os oito tripulantes e os cinquenta passageiros que estavam a bordo do Boeing 727 da Transbrasil. Conforme destacado nas reportagens, cerca de 90% dos passageiros desembarcaria em Florianópolis, apesar do voo também se dirigir a Porto Alegre. A maioria dos passageiros falecidos era catarinense, entre eles líderes sindicais, médicos, empresários, comerciantes, professores e alunos universitários, conforme observado nas biografias dos falecidos, presentes na Imagem 24.

283 Importante destacar que um dos sobreviventes do desastre, Cleber Moreira, reforça em entrevista concedida ao Jornal da Semana que Luis Carvalho estava entre um dos sobreviventes antes das explosões da aeronave. Contudo, ao se afastar do grupo de sobreviventes para buscar ajuda não foi mais encontrado e foi posteriormente identificado entre os mortos. In: JORNAL DA SEMANA, abril de 1980, op. cit., p. 12 284 CARDOSO, op. cit. 129

Imagem 23 - Lista dos passageiros do Boeing 727 Imagem 24 - Lista dos passageiros do da Transbrasil Boeing 727 da Transbrasil

Fonte: O Estado285.

Fonte: O Estado286.

285 O ESTADO, 13 de abril de 1980, op. cit. 286 O ESTADO, 14 de abril de 1980, op. cit., p. 3. 130

De acordo com as notícias veiculadas nos jornais, os primeiros socorros ocorreram somente quando “Marcos Rodrigues Malta, residente em Ratones, comunicou o fato ao plantão às 21h15min”287, 15 minutos após o acidente. Os bombeiros, o salvamento da base aérea, os soldados da Força Armada Brasileira e da Polícia Militar e os médicos da Fundação Hospitalar de Santa Catarina foram acionados imediatamente e as buscas pelos sobreviventes iniciaram. Contudo, em decorrência das dificuldades, tendo em vista o difícil acesso à mata fechada do morro, as fortes chamas que saiam do avião, além da chuva intensa durante toda a noite, fizeram com que o acesso inicial fosse feita quase que exclusivamente através de helicópteros.

Imagem 25 – Remoção dos corpos do local do acidente.

Fonte: Jornal da Semana288.

O morador Ciriaco João Pereira, um dos primeiros a chegar ao local do acidente, relatou ao jornal O Estado que vários eram os sobreviventes, apesar da violência da colisão e das chamas provocadas pela explosão da aeronave. Os primeiros socorristas que chegaram ao local também destacaram que oito pessoas estavam vivas nas primeiras

287 Seção especial. O Estado, Florianópolis, n° 19.970, ano 66, 12 abr. 1981. Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina (BPESC), p. 17. 288 JORNAL DA SEMANA, abril de 1980, op. cit.

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horas, porém, até a chegada dos helicópteros, quatro delas acabaram falecendo em decorrência de hemorragias, queimaduras e fraturas externas. Um dos sobreviventes que faleceu antes da chegada dos socorristas foi o juiz Antônio Borges, que se identificou para os moradores da região presentes no local: “Sou Antônio Borges, tenho seis filhos e moro no Jardim Atlântico. Avise à minha família, por favor.”289 Os quatro sobreviventes que resistiram foram encaminhando até o heliporto do Aterro da Baía Sul e encaminhados para os hospitais mais próximos.290 A primeira sobrevivente encontrada nos escombros foi a médica Denise Moritz Pereira, que estava consciente e distante 25 metros do local da queda do avião. O casal sobrevivente Cleber Moreira e Marlene Moreira, natural do Rio Grande do Sul, que perdeu seu filho no acidente, foi encontrado entre duas pedras, próximo aos escombros do avião. O último sobrevivente, Flávio Barreto, que foi encontrado em frente à aeronave, foi considerado um milagre pelos socorristas, tendo em vista que estava próximo às chamas, o que acabou dificultando o seu resgate. No decorrer da semana que perpassou o acidente, os sobreviventes que permaneceram em Florianópolis, entre eles Cleber Moreira, Marlene Moreira e Flávio Barreto, deram entrevistas aos jornais locais. Os principais relatos das vítimas reforçam os minutos antes ao acidente e as lembranças sobre o resgate, conforme as informações fornecidas pelo passageiro Cleber, que relatou estar dormindo no momento do acidente. Após o impacto, esteve sempre acordado e lúcido, mesmo com um corte na cabeça e uma fratura no braço esquerdo. Em uma das entrevistas concedidas ao Jornal da Semana, narra que nos minutos após a queda da aeronave, a sua primeira ação foi “salvar a minha mulher e o meu filho. Mas tudo aconteceu com muita rapidez e a gente não tinha condições de raciocinar direito. Era como se estivesse num pesadelo. Saí das ferragens, auxiliando Marlene. Depois retornei em busca de meu filho, mas aí o avião começou a explodir.”291 Um mês depois, os três sobreviventes cederam aos jornais locais novas entrevistas. O casal Cléber e Marlene Moreira, que ficou mais de

289 O ESTADO, 1981, op. cit., p. 17. 290 O ESTADO, 13 de abril de 1980, op. cit. 291 O DESASTRE. Jornal da Semana, Florianópolis, n° 64, ano 2, 19 a 26 abr. 1980. Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina (BPESC), p. 12 132

30 dias internado no Hospital de Caridade em recuperação, relata o abalo psicológico vivenciado com a tragédia e agradece o apoio concedido no decorrer do mês, tanto da equipe de resgate e médica, quanto dos populares, que apoiaram no empréstimo de automóveis para os familiares das vítimas e de um televisor para entreter o casal durante a internação.292 Já o sobrevivente Flávio Barreto, morador de Florianópolis, retomou a rotina três dias após o acidente, quando deixou o hospital, voltando ao trabalho logo em seguida, apesar dos problemas de saúde, como dores no tórax e nas pernas. Finaliza a entrevista destacando que se sente “feliz em estar vivo, mas ao mesmo tempo muito triste por saber que morreram 55 pessoas”.293 Quanto à sobrevivente Denise Moritz Pereira, esta foi transferida para o Rio de Janeiro logo após o acidente, falecendo alguns dias depois. As buscas às vítimas do acidente foram suspensas durante a madrugada do dia 12 de abril, visto a falta de condições meteorológicas e de visibilidade. E durante o domingo, dia 13, as dificuldades para acessar o local dos destroços do avião continuaram, pois as trilhas eram longas, chegando há quase três horas, com algumas equipes de resgates perdidas na mata. Com a claridade do dia, os soldados “removeram em duas horas e meia os 54 corpos mutilados e carbonizados. Como havia poucas macas, foi estendida uma lona a cem metros do avião e sobre ela foram colocados os restos das vítimas.”294

Imagem 26 – Imagens do acidente publicadas pelo jornal O Estado.

292 JORNAL DA SEMANA, 1980, op. cit., p. 14. 293 Ibidem. 294 O ESTADO, 14 de abril de 1980, op. cit., p. 2. 133

Fonte: O Estado295.

Tais notícias comoveram não somente os familiares e amigos das vítimas, como também os florianopolitanos, que ficaram horrorizados e impactados com as notícias que circulavam na mídia e nas rodas de conversa, como exposto na reportagem a seguir: “A quase totalidade da

295 O ESTADO, 1980, op. cit. 134 população de Florianópolis não conseguia, ontem (três dias após a tragédia) falar em outra coisa. No terminal de ônibus, pelo menos centenas de pessoas portavam jornais do dia para saber novidades a respeito da queda do Boeing da Transbrasil.”296 O então prefeito de Florianópolis, Francisco de Assis Cordeiro, decretou luto oficial nos dias 14, 15 e 16 de abril, conforme comunicado apresentado no jornal O Estado, do dia 14 de abril de 1980:

Luto Oficial Gabinete do Prefeito Decreto n° 32/80 O Prefeito Municipal de Florianópolis, no uso de suas atribuições, – Considerando que a comunidade florianopolitana foi atingida por imenso pesar em virtude do infausto acidente aéreo ocorrido na noite de 12/4/80, na localidade de Ratones, nesta capital, ocasião em que perderam a vida munícipes dos mais conceituados e merecedores de elevada estima e respeito. – Considerando que esses munícipes vitimados no acontecimento eram pessoas ligadas a atividades profissionais e particulares de caráter eminentemente social, tendo prestado inúmeros e relevantes serviços à comunidade: Decreta Luto oficial, no município de Florianópolis, nos dias 14, 15 e 16 de abril de 1980. Florianópolis 14 de abril de 1980. Francisco de Assis Cordeiro Prefeito Municipal.297

As irmãs Jane e Rosemay Koerich, de acordo com a notícia do jornal O Estado298 foram uma das primeiras e serem localizadas no dia 13, conforme transcrição da matéria: “Juntas, foram retiradas Jane e Rosemere Koerich, que estavam presas ás suas poltronas. Dos escombros, os soldados retiraram braços, pernas carbonizadas [...] Das

296 A TRAGÉDIA do Boeing, seção Polícia. O Estado, Florianópolis, n° 19.672, ano 65, 16 abr. 1980, p. 6. Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina (BPESC). 297 O ESTADO, 16 de abril de 1980, op. cit., p. 6. 298 O ESTADO, 14 de abril de 1980, op. cit., p. 2. 135

54 vítimas, 19 puderam ser reconhecidos, justamente porque foram projetados para fora de área do impacto”. No entanto, seus corpos ainda não haviam sido reconhecidos no IML durante todo o domingo, apesar da presença dos familiares para tentar identifica-las através de acessórios que estivessem utilizando, como brincos, anéis e relógios, como também a presença do dentista, que auxiliou na realização do reconhecimento dos seus corpos através da arcada dentária. O reconhecimento dos restos mortais das vítimas foi um dos principais temas explorados nos jornais e nas entrevistas, como ressalta a depoente Othilia de Carvalho Cardoso (2015) sobre as implicações na identificação dos restos mortais de seu irmão, Luis Carvalho: “O corpo do meu irmão foi difícil de identificar, o meu marido é que foi. Estava muito queimado. Ele podia não ter morrido, porque ele foi ajudar, foi no segundo estouro que ele morreu”. Com manchetes como “A penosa tarefa da identificação dos corpos”, “A longa e angustia madrugada à espera dos corpos” e “A identificação dos corpos foi morosa e extenuante”299, os jornais mostraram o árduo processo de reconhecimento dos corpos, que perdurou alguns dias, tendo em vista o estado de carbonização e esfacelamento de muitos dos corpos. Depois de encontrados em meios aos destroços do avião, os restos mortais dos falecidos eram encaminhados por viaturas do DETRAN para o Instituto Médico Legal, local onde os parente e amigos das vítimas aguardavam para o reconhecimento, além de populares curiosos que esperavam por notícias de sobreviventes. De acordo com o jornal O Estado300, no IML, em uma “pequena sala com aproximadamente 25 metros quadrados, estavam os corpos carbonizados, em pedaços, alguns completamente irreconhecíveis”, além das dezenas de caixões que estavam enfileirados no IML, como ilustrado nas imagens a seguir:

299 Ibidem, p. 3. 300 O ESTADO, 14 de abril de 1980, op. cit., p. 2, p. 5. 136

Imagem 27 - Caixões no IML.

Imagem 28 - Caixões no IML.

Fonte: O Estado301.

Fonte: O Estado302.

A partir das 17 horas de domingo, à medida que as vítimas eram identificadas, os velórios eram realizados brevemente, devido o estado dos corpos dos falecidos. Além do velório, realizaram-se para alguns dos falecidos missas para a encomendação de suas almas e, em seguida, os entes eram rapidamente sepultados, sobretudo, no Cemitério do Itacorubi. Até às 22 horas de domingo, vinte e dois falecidos já tinham sido enterrados no Cemitério do Itacorubi, a maioria dos sepultamentos realizados durante a noite, conforme relatou em entrevista o sepultador Enio Vilpert303, que trabalha no Cemitério do Itacorubi desde a década de 1980 e realizou a maioria dos sepultamentos do acidente aéreo. De acordo com Enio Vilpert, os dias 13 e 14 de abril de 1980 foram as datas com o maior número de sepultamentos da história do Cemitério do Itacorubi, com a necessidade do funcionamento noturno para atender o grande movimento e realizar todos os enterros existentes.

301 Ibidem, p. 8. 302 Ibidem, p. 5. 303 VILPERT, Enio. Entrevista cedida à Julia Massucheti Tomasi, no dia 23 de janeiro de 2015. 137

Na segunda-feira, dia 14, foram sepultados outros seis falecidos, entre eles Nelson Luís Teixeira Nunes, Antônio Lídio Borges, Jane Koerich, Rosemary Koerich Noceti, Sônia Cabral e Eduardo D´Ávila, como noticia o jornal O Estado: “As irmãs Koerich, e Sônia Cabral, foram veladas no cemitério de Itacorubi, onde foi rezada missa e realizados os serviços funerários por volta das 18 horas de ontem [segunda-feira].”304 Na mesma edição, o jornal destaca que o maior movimento no cemitério foi em decorrência do sepultamento das irmãs Koerich, com a participação de dezenas de pessoas. Entre os participantes do velório e missa para as irmãs estava a professora Cecília Maria dos Santos Machado, que descreve detalhadamente em entrevista como foram os rituais fúnebres, como o velório e o cortejo:

Eu fui ao enterro das meninas e mais da outra, a coleguinha delas [Sônia Cabral]. Porque eu era professora do Silveira de Souza e a Dona Luci, tia delas, era colega. Então, a nossa diretora nos dispensou e fomos todas no enterro das meninas com um ônibus. A gente chegou lá e elas estavam sendo sepultadas em uma das capelas. Já tinha muita gente e ali teve canto, com um grupo que cantou uma música do Roberto Carlos muito linda, “Como é grande o meu amor por você”. Além da encomendação, que eu não me lembro agora quem que encomendou o corpo. E depois aquele grupo, que naturalmente eram colegas dela, foi cantando a música. Tinha muita gente... E nós acompanhamos até lá em cima, na sepultura. E vai aquele cortejo, rezando, cantando, até chegar à sepultura.305

O Jornal de Santa Catarina, do dia 15 de abril de 1980306, também noticia o velório e enterro das irmãs Jane e Rosemary Koerich e da

304 A TRAGÉDIA do Boeing, edição extra. O Estado, Florianópolis, n° 19.671, ano 65, 15 abr. 1980, p. 7. Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina (BPESC). 305 MACHADO, 2015, op. cit. 306 O ENTERRO DAS JOVENS KOERICH. Jornal De Santa Catarina, Santa Catarina, n° 2621, ano 8, 15 abr. 1980, p. 6. Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina (BPESC). 138 amiga Sônia Beatriz Cabral. De acordo com a reportagem, o sepultamento das irmãs foi um momento “muito constrangedor devido à dor e o chorar dos que assistiam ao ato”, conforme exposto na Imagem 29:

Imagem 29 – Enterro das irmãs Koerich.

Fonte: Jornal de Santa Catarina307.

307 JORNAL DA SEMANA, abril de 1980, op. cit. 139

O senhor Antônio Obet Koerich, pai de Jane e Rosemary, também me detalhou em entrevista a aflitiva demorada na identificação dos corpos de suas filhas, o breve velório e o ato de sepultamento:

Isso foi no sábado à noite, esperamos domingo e de domingo foi para segunda-feira, às cinco e meia da tarde, que nós fomos sepultá-las. Sepultá- las de uma forma... Com uma urna lacrada, fechada e as fotografias em cima. Foi aquela situação, reconhecido só depois de domingo, pela arcada dentária e uma série de coisas e isso tudo ia abalando ainda mais a gente. Tendo de buscar documentos, alguma coisa, dentista, comprovar que eram mesmo as nossas meninas. Aquela situação toda que vai comovendo a gente. Velório simplesmente não existiu, foi achada a urna, colocado de imediato e, momentaneamente, realizado durante uma meia hora ali na capelinha do Itacorubi. Depois foi recolhido e diretamente para a sepultura, não teve tempo para velório. Chuva, chuva torrencial. E porque também a gente já estava sem condições físicas e emocionais. Estávamos todos em bagaço. Nós íamos caminhar para 48 horas. Elas foram sepultadas 48 horas após o acidente. Vivendo toda essa situação da expectativa, fazia isso (comer, dormir) de qualquer maneira. 308

Outro tema que chama atenção nas reportagens jornalísticas na semana do acidente foi a disputa entre as funerárias locais para vender os caixões, além de terrenos no Cemitério do Itacorubi. Isto foi destacado nas páginas do Jornal da Semana, de 19 a 26 de abril de 1980, com a matéria intitulada “As funerárias brigam pelo tilintar da caixa registradora”, conforme a transcrição da reportagem a seguir: “Como não se pode impedir que os urubus esvoacem o lugar onde se prepara a carniça, não se pode estanhar também que os agentes funerários rodeiem as tragédias. Só não se pode admitir que façam da desgraça alheia um tétrico festival de concorrência, verdadeira disputa escatológica.”309

308 KOERICH, op. cit. 309 JORNAL DA SEMANA, abril de 1980, op. cit. 140

A morte das irmãs Jane e Rosemary Koerich foi densamente noticiada nos jornais locais, como O Estado, que destaca o sofrimento e o luto da família Koerich: “A família Koerich, também ficou enlutada, pois o Sr. Antônio Koerich perdeu suas duas filhas no acidente. Rosemary Koerich Nocetti, casada, de 22 anos e Jane Koerich, de 18 anos. Elas estavam acompanhas de Sônia Cabral, solteira, de 25 anos.”310 Quanto à busca dos corpos, no dia 14 de abril, dois dias após a tragédia, os serviços foram retomados desde as primeiras horas da manhã, pois nove vítimas ainda não haviam sido encontradas. No final do dia, seis dos corpos já haviam sido localizados sob as ferragens do avião, sendo que “durante todo o tempo as equipes de resgate, curiosos e jornalistas trilhavam sobre eles. Estes corpos foram demoradamente procurados nas proximidades do local do acidente, pois o Corpo de Bombeiros achava que tinham sido atirados à distância, com a explosão.”311 Somente no dia 16 de abril, quatro dias após o desastre aéreo, a procura pelos corpos das vítimas finalizou, quando os últimos passageiros foram encontrados nos escombros e todas as vítimas identificadas no IML. De acordo com várias reportagens do jornal O Estado, durante todo o processo de busca pelas vítimas, os curiosos estavam presentes no local do acidente, o que dificultou o trabalho dos bombeiros e soldados, tendo em vista que os carros de particulares estavam estacionados em locais que bloqueavam o acesso e deslocamento das macas, além de impossibilitarem a circulação dos soldados na busca sob as ferragens da aeronave. Ademais, ocorrências de curiosos se acidentando no local também são mencionadas nas reportagens, como uma criança que caiu e se cortou nas ferragens, além de inúmeras pessoas que tiveram os pés machucados por estarem descalços e os vários casos de picadas de cobras. Outro problema destacado foi o saque dos objetos pessoais das vítimas e das fuselagens do avião, como recordam todos os seis entrevistados e é amplamente apresentado nas reportagens dos jornais locais, que assemelham o local do acidente a um grande formigueiro, com “mais de 500 pessoas que se aglomeram durante todo o dia de ontem por cima dos destroços e começaram a desmontar peça por peça para leva-las morro da Virgínia abaixo. [...] Boa parte das pessoas que

310 O ESTADO, 14 de abril de 1980, op. cit., p. 3. 311 O ESTADO, 15 de abril de 1980, op. cit., p. 8. 141

subiram o Morro da Virgínia é mecânico de oficinas não especializadas.”312

Imagem 30 – Invasão dos populares no local do acidente e saques de objetos.

Fonte: O Estado, 16 de abril de 1980, p. 7.

No dia 17 de abril, as reportagens do jornal O Estado313 intituladas “Um telefone para denunciar quem possui objetos das vítimas” e “Os arrependidos querem devolver os pedaços do avião” destacam que muitos dos curiosos que saquearam partes da fuselagem se arrependeram acreditando que as mesmas pudessem auxiliar na identificação das causas do acidente e telefonaram para a Base Aérea de Florianópolis para devolvê-las. Quanto os objetos pessoais das vítimas

312 O ESTADO, 16 de abril de 1980, op. cit., p. 7. 313 A TRAGÉDIA do Boeing, seção Polícia. O Estado, Florianópolis, n° 19.673, ano 65, 17 abr. 1980. Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina (BPESC). 142 que foram saqueados, como as joias e outros pertences, pediram-se aos avaliadores e compradores de adereços que verificassem a procedência das joias que fossem compradas a partir de então, pois podiam ser as saqueadas dos passageiros. Caso fossem encontradas, era solicitado que o indivíduo ligasse anonimamente para a delegacia, registrando o caso314. O movimento no local do acidente foi tão intenso que suscitou ironias entre os populares que subiram o morro para ver os escombros do avião, alguns cogitando em vender comida e bebida para os curiosos, como destacou em reportagem o estudante do Instituto de Educação, Alberto Da Prata Nunes, que se “arriscava dizer até que ‘por dinheiro compensa trazer carrinho de pipoca e de sorvete para ficar no pé do morro servindo a freguesia’. Por ele, o comércio poderia ir até mais longe: ‘Que tal vender água mineral para as mulheres e cervejinha em lata para homens que conseguirem subir’.”315 Algumas semanas após o acidente, sobretudo, aos finais de semana, os curiosos ainda subiam o Morro da Virgínia em busca das fuselagens do avião ou apenas para conhecer o local da tragédia, conforme ironiza a matéria “Ainda entre as nuvens”, presente no Jornal da Semana:

E enquanto ainda há luto e dor entre famílias e sobreviventes, os amenos fins-de-semana de maio continuam assistindo o novo hábito turístico da cidade: uma procissão de curiosos peregrina ao Morro da Virgínia com as mais sortidas intenções. Há os que levam o farnel e as crianças, para uma tarde de “alpinismo”. Há os que se entretêm com os restos da tragédia com um interesse sobre o mórbido. E há até os que pretendem obter lucro com a desgraça alheia. Munidos de serras, desfalcam o que sobra da carcaça do avião, como “souvenir”, ou como matéria prima para comercializar no primeiro ferro-velho da cidade.

314 Importante destacar, neste sentido, que um dos passageiros falecidos no acidente, o empresário João Nascimento, trazia de São Paulo dezenas de joias para abrir sua joalheria na capital, sendo que estas foram saqueadas e nunca encontradas. 315 O ESTADO, 16 de abril de 1980, op. cit., p. 7. 143

O PP-TYS jaz descaracterizado como uma baleia descarnada316.

Imagem 31 – Populares no local do acidente semanas após o desastre.

Fonte: Jornal da Semana317.

Durante a semana que ocorreu o acidente e as subsequentes, foram enviadas dezenas de notas de pesar nos jornais locais por várias instituições públicas e privadas que perderam funcionários, membros e conhecidos, como o Ministério do Trabalho, a Justiça do Trabalho, a Associação dos Professores da Universidade Federal de Santa Catarina (Apufsc), a Arquidiocese de Florianópolis, a Universidade Federal de

316 JORNAL DA SEMANA, abril de 1980, op. cit., p. 12. 317 Ibidem. 144

Santa Catarina (UFSC), a Associação Catarinense de Engenheiros, a Associação Catarinense dos Médicos (ACMR), dentre outras. A família Koerich, em nome do pai, Antônio Obet Koerich, foi uma das que mais recebeu notas de pesar das instituições pela morte de suas duas filhas, como as notas do Clube de Diretores Lojistas de Florianópolis, grupo Empresarial Alfred e organizações Koesa, Kilar e Koerich. Igualmente, os convites para as missas de sétimo dia de diversas vítimas do acidente também ganharam espaço nas páginas dos jornais, sobretudo, no jornal O Estado, como exemplificado na Imagem 32:

Imagem 32 – Notas de pesar e convites para missas de sétimo dia publicados no jornal O Estado. 145

Fonte: O Estado318.

A Fundação Transbrasil, responsabilizada pela tragédia, encaminhou no dia 18 de abril de 1980 em alguns jornais de Santa Catarina uma mensagem de pesar aos familiares e amigos dos falecidos

318 O ESTADO, 17 de abril de 1980, op. cit. 146 no acidente. Do mesmo modo, fez um agradecimento aos florianopolitanos e as equipes de resgate pelo apoio nos dias que perpassaram o desastre na busca pelos sobreviventes e reconhecimentos das vítimas, conforme apresentado na transcrição da mensagem a seguir:

Nossa palavra de gratidão Profundamente sensibilizados pelas demonstrações de apoio e solidariedade, os administradores e funcionários da Transbrasil vêm, de público, expressar sua gratidão, ao tempo em que traduzem e retribuem a sua irrestrita solidariedade às famílias enlutadas no doloroso acidente do dia 12. É confortador testemunhar, neste infortúnio, a verdadeira corrente de solidariedade humana, formada pelo povo de Florianópolis, quando todos se mobilizam, sem medir sacrifícios ou riscos, para socorrer e resgatar as vítimas do acidente, assim como amparar as famílias atingidas. É dever de justiça destacar o trabalho heroico das equipes do Serviço de Buscas e Salvamento da Força Aérea Brasileira, do Corpo de Bombeiros da Polícia Militar, do Instituto Médico Legal, da Prefeitura de Florianópolis e de centenas de voluntários anônimos, cuja coordenação foi exercida, pessoalmente, pelo Senhor Secretário de Segurança do Estado. Inexcedíveis foram o carinho e o desvelo com que o corpo médico e os funcionários do Hospital de Caridade de Florianópolis atenderam os sobreviventes, propiciando-lhes toda a assistência, humanamente possível. A nossa gratidão a todos eles e a toda comunidade médica e odontológica de Florianópolis. Não menos desvanecedor foi o pronto e irrestrito apoio recebido do Ministério da Aeronáutica, através do Gabinete do Ministro, do Departamento de Aviação Civil, do Comando de Transporte Aéreo, do Comando Costeiro e do Comando da Base Aérea de Florianópolis. Os nossos agradecimentos são extensivos à Prefeitura Municipal de São Paulo, às Empresas Aéreas, à Imprensa e a todos aqueles que não 147

pouparam esforços no sentido de mitigar a dor que a todos nós atingiu. Nesta hora de provação, é alentador saber que existem tanta bondade, desprendimento e amor no coração de tanta gente. Graças a Deus. Transbrasil S.A. Linhas Aéreas Fundação Transbrasil.319

Em 19 de abril, um dia após a mensagem enviada pela Transbrasil, os jornais divulgaram a morte de Denise Pereira, uma das quatro sobreviventes do voo. Encaminhada para o hospital Miguel Couto, no Rio de Janeiro, um dia depois do acidente, a médica Denise Pereira faleceu após uma parada cardíaca. Com sua morte, conforme consta no jornal O Estado, “eleva-se para 55 o número de vítimas fatais no trágico acidente aviatório do último dia 12. Restam como sobreviventes, Cleber Moreira, e sua mulher Marlene Moreira e Flávio Barreto.”320 Nas semanas que perpassaram o desastre aéreo, as notícias sobre o acidente circundavam nas explicações sobre a queda do avião, buscando-se pistas sobre as reais motivações para a queda. Os periódicos “O Estado” e “Jornal da Semana” publicaram diversas notícias sobre as possíveis causas do acidente, intituladas como “Falha mecânica: a tese de um especialista”, “O que falhou” e “FAB confirmou: avião estava fora da rota”. No entanto, as causas reais sobre o acidente foram publicadas nos jornais apenas um ano depois, quando as investigações foram encerradas.

Imagem 33 – As causas do acidente aéreo.

319 A TRAGÉDIA do Boeing, seção Política/Administração. O Estado, Florianópolis, n° 19.674, ano 65, 18 abr. 1980, p. 3. Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina (BPESC). 320 A TRAGÉDIA do Boeing, seção Polícia. O Estado, Florianópolis, n° 19.675, ano 65, 19 abr. 1980, p. 6. Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina (BPESC). 148

Fonte: O Estado321.

De acordo com as matérias “A aeronáutica já sabe as causas da queda” e “Tripulação teve culpa: não era para pousar na capital”, a tripulação do Boeing foi considerada culpada pelo acidente, conforme parecer da Assessoria Técnica Operacional da Divisão de Meteorologia da Aeronáutica (DMET), que reforçou que a tribulação não observou as condições adversas da meteorologia, fazendo um pouso forçado no Morro da Virgínia, sem as condições necessárias de visibilidade durante a aproximação com o Aeroporto Hercílio Luz, de Florianópolis.322 Além das condições climáticas, o desvio de rota e a falta de infra-estrutura do Aeroporto Hercílio Luz também são destacados nas reportagens jornalísticas, conforme matéria do Jornal da Semana:

As condições meteorológicas eram realmente adversas. Um temporal com descargas elétricas, vento sul e nuvens escondendo em seu bojo remoinhos e correntes de ar descendentes. A navegação do piloto era equívoca. O presidente da Transbrasil, Omar Fontana, admite o desvio de oito quilômetros na rota do PP-TYS, durante o procedimento de aproximação. Para completar, a

321 O ESTADO, 1981, op. cit., capa. 322 O ESTADO, 1981, op. cit., capa. 149

infra-estrutura do Aeroporto Hercílio Luz para orientação de vôo por instrumento é, como já se viu, precária.323

Além das causas do acidente, um ano após a tragédia, nesta mesma edição do Jornal O Estado, de 12 de abril de 1981, é transcrita na integra uma das mensagens psicografadas pelo médium Chico Xavier, enviada por Jane Koerich, que faleceu no acidente aéreo, assunto que será abordado no próximo subcapítulo. Após três décadas e meia do desastre aéreo, reportagens jornalísticas e um documentário recordaram o acidente. No ano de 2006, o vídeo-documentário "Transbrasil PT-TYS Vôo 303, o acidente que Florianópolis não esqueceu", produzido como Trabalho de Conclusão do Curso de Jornalismo do estudante Gilson José Giehl, da Faculdade Estácio de Sá de Santa Catarina, apresentou imagens da época, além de relatos de sobreviventes e das equipes de resgate. Do mesmo modo, após 30 anos da tragédia, a repercussão do acidente também é veiculada na mídia impressa, conforme reportagem do jornal Diário Catarinense, do dia 9 de abril de 2010, intitulada “Tragédia com avião da Transbrasil em Florianópolis completa 30 anos nesta segunda-feira”.324 De acordo com a matéria, as marcas do acidente ainda podem ser vistas no alto do Morro da Virgínia, no bairro de Ratones, como partes da fuselagem do avião e “até uma escova de dente queimada. Em meio à rocha e à mata fechada, uma cruz em homenagem aos mortos. No ponto da explosão, o chão continua escuro pelo fogo. Ali, o verde insistiu em não crescer, guardando uma lembrança das mais tristes para Santa Catarina.”325 No ano de 2015, com a edição comemorativa dos 100 anos do Jornal O Estado, o periódico “Notícias do Dia” destacou os 35 anos do acidente aéreo, considerada uma das maiores coberturas jornalísticas do periódico “O Estado” em suas quase oito décadas de existência, com a participação de 45 profissionais, como repórteres e fotógrafos que auxiliaram inclusive nas operações de resgate, conforme apresentado na Imagem 34. Além disso, a edição especial do acidente, do dia 14 de

323 JORNAL DA SEMANA, abril de 1980, op. cit., p. 10. 324 TRAGÉDIA com avião da Transbrasil em Florianópolis completa 30 anos nesta segunda-feira. Diário Catarinense, 9 abr. 2010. Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina (BPESC). 325 Ibidem. 150 abril de 1980, vendeu 35 mil exemplares, recorde de tiragem no período, com leitores formando “filas diante das bancas de jornais e revistas de Florianópolis.”326

Imagem 34 – Edição comemorativa do Jornal O Estado.

Fonte: NOTÍCIAS DO DIA327.

Em suma, mesmo depois de 36 anos, o acidente do Boeing 727 da Transbrasil no Morro da Virgínia, em Ratones, no dia 12 de abril de 1980 permanece na memória dos florianopolitanos como uma das piores

326 MUNIZ, Angela. Tragédia há 35 anos tem tiragem recorde, Caderno Especial O Estado 100 anos. Notícias do Dia, Santa Catarina, 13 maio. 2015. Disponível em: . Acesso em 15 maio. 2015, p. 46 327 MUNIZ, op. cit. 151

tragédias aéreas da história catarinense, sejam eles parentes e amigos das vítimas ou indivíduos que vivenciaram o acidente durante as semanas que perpassaram o dia 12. O sábado chuvoso, com um temporal intensificado durante a noite está na lembrança de muitos dos moradores de Florianópolis, que falam sobre o ocorrido detalhadamente e com imensa tristeza.

2.3 “NO PRÓPRIO VOO INTERROMPIDO”: AS MENSAGENS PSICOGRAFADAS DAS IRMÃS KOERICH

“Na dor e na saudade por elas deixadas (as duas filhas), buscamos algo que pudesse consolar e confortar nossos corações aflitos. Mais uma vez por Deus; fomos ouvidos, quando decorriam pouco mais de 4 meses de suas passagens para outra vida, nosso amigo Francisco Cândido Xavier foi portador do recado que mais nos aproximou de nossas filhas e que nos deu um novo sentido de vida.”328

O depoimento acima transcrito, de Antônio Obet Koerich e Ony Furtado Koerich, pais de Jane e Rosemary, está presente no livro de psicografias “E o amor continua”, publicado em 1983. No transcorrer dos anos de 1980 a 1986, as irmãs Koerich enviaram seis mensagens psicografadas por Francisco Candido Xavier e Divaldo Pereira Franco. Em todas as ocasiões das mensagens, os pais Antônio e Ony estiveram no Grupo Espírita da Prece - GEP, localizado na cidade de Uberaba, em Minas Gerais, em busca de informações sobre suas filhas. A primeira mensagem foi enviada por Jane no dia 22 de agosto de 1980, 4 meses após o acidente. Um ano depois, no dia 12 de setembro de 1981, Jane enviou sua segunda mensagem, ambas psicografadas por Francisco Candido Xavier. A terceira mensagem de Jane foi enviada no dia 15 de maio de 1982 e psicografada por Divaldo Pereira Franco. A quarta mensagem foi enviada por Rosemary no dia 15 de abril de 1983 e psicografada por Divaldo Pereira Franco, como também as duas últimas psicografias, que foram enviadas por Jane nos dias 14 de abril de 1984 e 11 de abril de 1986, consecutivamente.

328 XAVIER; FRANCO, op. cit., p. 11. 152

O senhor Antônio Obet Koerich expõe detalhadamente o momento em que recebeu a primeira mensagem enviada pela filha mais nova, Jane, no dia 22 de agosto de 1980, das mãos de Chico Xavier:

Eu estava em uma distância dessas do Chico Xavier psicografando na cabeceira da mesa. Quando eu vi a mão bem solta, ‘no próprio voo interrompido’329, sabia que era uma mensagem de nossas filhas. E veio aquela expectativa, quatro meses depois do ocorrido. Eram umas 2 horas da manhã, vai chamando um, outro e tem mensagem de fulano, beltrano e lá pelas tantas tem uma mensagem da Jane e aqui está. Essa é a original. Eu estou procurando mostrar a originalidade, 35 anos.330

Imagem 35 – Primeira mensagem psicografada de Jane Furtado Koerich.

329 Parte do título deste capítulo da tese provém desse depoimento de Antônio Obet Koerich. 330 KOERICH, op. cit. 153

Fonte: Acervo pessoal de Antônio Obet Koerich, 2015.

Em um total de 52 páginas, a primeira psicografia aborda várias questões, como a ânsia das irmãs em voltarem para Florianópolis no dia 154

12 de abril de 1980, com a antecipação do voo, que estava previamente agendado para o dia 13, algumas informações sobre o momento do acidente, a ocasião em que perceberam que haviam partido deste plano, o estado em que as irmãs e a amiga Sônia se encontram, a saudade de sua mãe Ony, entre outros conteúdos. Uma das partes mais comoventes da mensagem remete à dor que sua mãe Ony está sentindo com suas perdas: “Mãezinha Ony, o seu coração compreende o que passou. Quantas lágrimas nos escorreram dos olhos para a face, não saberíamos contar... De imediato pusemo-nos em ligação involuntária com a casa e vimos, por dentro de nós [...] quanto sofriam com o acontecimento.”331 Oito meses após o envio da mensagem, quando passado um ano da tragédia, a psicografia foi publicada na íntegra pelo Jornal O Estado, do dia 12 de abril de 1981, em uma reportagem especial sobre o acidente aéreo, contendo informações sobre o andamento da perícia da queda do avião (

Imagem 36). Intitulada “Jane Koerich envia mensagem pelo médium Chico Xavier”, a matéria realça um fragmento da psicografia em que Jane narra não entender o porquê de escolherem aquele horário do voo, tendo em vista que anteciparam a passagem já comprada anteriormente. Além disso, a reportagem evidencia a integridade da mensagem, destacando que Chico Xavier não conhecia a família Koerich, tampouco os familiares que Jane se referiu em vários momentos da mensagem, inclusive nomeando-os, como suas bisavós maternas e paternas e seu bisavô paterno. No ano de 1983, três anos após a mensagem ter sido enviada, esta foi publicada na obra “E o Amor Continua”, com várias psicografias de Francisco Candido Xavier e Divaldo Pereira Franco.

Imagem 36 – Mensagem de Jane Furtado Koerich publicada no Jornal O Estado.

331 O ESTADO, 1981, op. cit., p. 17. 155

Fonte: Jornal O Estado332.

A segunda mensagem de Jane, psicografada por Francisco Candido Xavier e enviada no dia 12 de setembro de 1981, foi publicada no livro “Porto de Alegria”. Totalizando 58 páginas, a mensagem inicia com Jane explicando que escreve devido à saudade de ambos os lados e

332 O ESTADO, 1981, op. cit., p. 17. 156 a ânsia da família em obter informações sobre as duas. Nas primeiras linhas, Jane explica as motivações pelas quais novamente é ela quem envia as mensagens, tendo em vista que Rosemary está bastante ocupada e empenhada em apoiar seu marido, Sidnei, que necessita de auxílio e amparo. Neste sentido, lembra que a amiga Sônia, carinhosamente chamada por Jane de Soninha, é bastante tímida e está “fazendo exercícios para se largar da timidez”.333 Por tais motivações, Jane tenta se desinibir e transmitir a mensagem da melhor forma possível. Esta mensagem se diferencia da anterior no sentido de Jane descrever minuciosamente diversificadas informações sobre o mundo espiritual, como o fato de estarem em uma sociedade que também possui regras e convenções respeitáveis. Jane ressalta que se mudaram desde a última mensagem enviada à família e narra em detalhes este novo local que habitam, nomeado por ela de “parque-cidade-jardim”:

Estamos num parque-cidade-jardim, se posso definir com estas três palavras o grande centro de recuperação e cultura em que presentemente nos achamos. [...] A cidade é grande e especializada. Muitas atividades lhe caracterizam o ambiente e não há tempo para meditações ociosas, para quem deseja valer-se da meditação como norma de preparação para o serviço a fazer e para as realizações por atingir. Ninguém é obrigado a trabalhar, porque a violência onde estamos é vocábulo desconhecido, mas quantos se empenham a agir e servir adiantam-se com facilidade, na marcha para adiante, com aquisições valiosas para a organização do presente e do futuro. Quem prefere a inércia recebe uma cota simples de recursos para a própria sustentação, mas não consegue meios para renovar-se, de vez que a fixação de companheiros dedicados à imobilidade e à lamentação não lhes permite maiores incursões no progresso ambiente. E isso ocorre até que se decidam a sair espiritualmente de si próprios, buscando, por iniciativa deles mesmos, o trabalho que lhes melhorará as condições.

333 XAVIER, op. cit., p. 37 157

As religiões são praticadas segundo as tendências dos que se agregam no sítio que tento descrever, todos, porém, com a marca da responsabilidade e da fé em que se inspiram, sem que haja antagonismos entre umas e outras. A criatura evolui por si mesma, desde que assim o deseje. Por essa razão, a transferência de muitos irmãos, de cultos para cultos outros mais propensos à solidariedade e às edificações liberais, é incessante. E o que é de se admirar é que ninguém onde estamos é obrigado a crer que passou pelo fenômeno da desencarnação.334

Outra questão abordada por Jane é a dificuldade dos que vivem no “parque-cidade-jardim” em compreender ou mesmo aceitar que desencarnaram, como o caso exemplificado de uma senhora que acredita que sua filha morreu em um acidente aéreo, quando na verdade, ela que desencarnou em tal desastre aéreo. Reforça, nesse sentido, a perda de memória e o abatimento de alguns dos indivíduos que vivem nesta transitória moradia em que estão, sendo que muitos demoram um longo período para aceitar a morte. Jane sintetiza tal parte da mensagem com as seguintes palavras “E a vida continua. Quem quiser receber luzes que as distribua e quem se proponha a encontrar alegria, deve doá-la aos outros.”335 Finaliza a mensagem com palavras carinhosas aos seus pais, sempre se referindo a ambos como “mãezinha” e “paizinho”, se justificando que tentou escrever da melhor forma possível. Conclui então a mensagem: “creiam a mãezinha Ony e o papai Antônio que, ao beijá-los com o meu enternecimento e carinho de todos os dias, continuo sendo a filha que lhes consagra todo o amor que possa trazer no próprio coração, sempre a filha agradecida.”336

Imagem 37 – Segunda mensagem psicografada de Jane Furtado Koerich.

334 XAVIER, op. cit., p. 37-39. 335 Ibidem, p. 39 336 Ibidem, p. 39-40 158

Fonte: Acervo pessoal de Antônio Obet Koerich, 2015.

A terceira mensagem de Jane foi psicografada por Divaldo Pereira Franco no dia 15 de maio de 1982 e publicada um ano depois na obra psicográfica “E o Amor Continua”, de Francisco Candido Xavier e Divaldo Pereira Franco. A mensagem inicia com Jane destacando que dois anos passados o acidente, não resta dor, aflição ou mágoa do desencarne, apenas a saudade, que “ao inverso de ser um abismo separando-nos, constitui-nos a ponte abençoada das nossas lembranças, em contínuas viagens de carinho e ternura. A saudade entretecida de amor é a presença do ausente cantando recordações, na pauta sinfônica da música do sempre querer.”337 Novamente justifica-se por ser ela a responsável por cunhar a mensagem, pois Rosemary continua devotando-se e apoiando seu marido Sidnei. Além disso, conforme mensagens anteriores, se reporta ao momento do acidente, referindo-se ao sábado que refletia os sonhos e

337 XAVIER; FRANCO, op. cit., p. 14 159

as esperanças das duas irmãs e de Sônia, que, entretanto, abriram-se ao novo, quando seus corpos deixaram de vibrar nos destroços do avião. 338 Do mesmo modo, lembra que estes dois anos, apesar de parecerem um longo e intenso período, foi na realidade uma breve temporada que seus familiares perderam dois membros, mas ampliaram- se nos afetos e humanidade, exemplificando através das doações nas empresas de seu pai. Neste sentido, agradece as doações e caridade que seus pais realizaram no último Natal, através de suas empresas, como uma forma de homenageá-las, conforme destacou: “No último Natal acompanhei-os, a você e à Mãezinha, e recebemos, suas filhas, toda a guirlanda feita com flores de amor e caridade com que vocês atenderam aos que partilham de nossa família ampliada.”339 Outro momento expressivo da mensagem é a parte que Jane oferece à sua mãe Ony, destacando o luto vivenciado por ela, sobretudo, nas vezes que Jane encontra-a no seu quarto olhando o seu retrato e questionando-se o porquê de suas mortes, como reforça Jane “somente as mães sabem elaborar. Não poucas vezes envolvo-a em ternura e falo- lhe ao coração, utilizando-me do microfone se altere e permaneça a sua irrestrita confiança em Deus.”340 Igualmente, Jane envia algumas linhas a seu pai, Antônio, destacando que sabe a sua dificuldade em lidar com suas perdas e aceitar sem questionamentos. Assim, pede que seu pai “Prossiga justo e bom, gentil e amigo, amparando os sofredores e socorrendo a todos, especialmente aqueles que contribuem pelo trabalho para a preservação do pão de cada dia.”341 Como citado na mensagem anterior, Jane também descreve nesta mensagem experiências vivenciadas na “cidade-jardim”, salientando que todas as três estão prosperando por meio de estudos e ações que desempenham, lembrando que nesta cidade, cada um cresce conforme o seu esforço pessoal e sua serventia aos demais. Outra passagem da psicografia é a descrição da visita de Padre Reus, que Jane chama carinhosamente de “amável Padre Reus”. Destaca que se sentiu imensamente emocionada com tal visita e que “lágrima de emoção e júbilo escorriam-me, evocando na tela da memória os clichês da religião onde haurimos as noções de Deus e as diretrizes da fé.”342

338 XAVIER; FRANCO, op. cit., p. 14 339 Ibidem, p. 15. 340 Ibidem, p. 14. 341 Ibidem, p. 15. 342 Ibidem. 160

Além de Padre Reus, Jane descreve as novas amizades feitas nos últimos anos na “cidade-jardim”, como os benfeitores da Comunidade Espírita de Florianópolis, entre eles Osvaldo Melo, Nelito e Abreu. Jane finda a mensagem com uma frase afetuosa a seus pais “Querida Mãezinha Ony querido papai Antônio, beijando-os, com toda unção e reconhecimento, a filha de sempre, sempre devotada e que buscará crescer para melhor os amar.”343 No dia 15 de abril de 1983, Rosemary envia sua primeira mensagem, que foi psicografada por Divaldo Pereira Franco e publicada no ano de 1988 no livro psicográfico “Vitória da Vida”, de Divaldo Pereira Franco. A mensagem aborda diversos temas, muitos deles já descritos por Jane nas mensagens precedentes. Rosemary inicia a mensagem recordando a ocasião do acidente, ocorrido há três anos, momento de muita dor devido à rápida separação entre eles. Reforça que a antecipação do voo, que estava marcado para chegar no dia 13, foi adiantada por ela, que “vencida pelas saudades e concluídos os compromissos na capital paulista, resolveu o retorno, antecipando-o para o sábado com a chegada prevista para as 20h.”344 Neste sentido, descreve o telefonema dado a sua mãe Ony, última ocasião que pôde ouvir sua voz na Terra, oportunidade que não teve com seu pai, apesar da vontade, prazer que não pôde mais desfrutar. Rosemary delineia que as mensagens anteriores foram enviadas por Jane, tendo ela cedido lugar a sua irmã para que esta vencesse sua timidez, além do pouco tempo que possuía, tendo em vista suas atribuições em auxiliar Sidnei, seu marido, que necessita de muito amparo e atenção. Neste sentido, Rosemary concede algumas linhas a Sidnei, reforçando que este tem o direto de reconstruir uma nova família e um novo lar: “Não havendo fruído da felicidade de permanecer mais tempo como sua esposa – e fomos imensamente felizes quando juntos – suplico a Deus para ser-lhe devotada amiga maternal zelando pelo prosseguimento da sua realização de homem jovem e bom.”345 Ultimando esta parte, Rosemary fala sobre Dagoberto, namorado de Jane, lembrando que este era um amigo querido de Jane e uma esperança de matrimônio futuro. Conforme as mensagens precedentes de Jane, Rosemary descreve o local em que estão vivendo, chamado por ela de “comunidade” e “cidade universitária”, onde estagiam, trabalhando e estudando “dentro

343 XAVIER; FRANCO, op. cit., p. 15. 344 FRANCO, op. cit., p. 56 345 Ibidem. 161

de padrões superiores, em que a cultura objetiva essencialmente o crescimento do ser, na elaboração do progresso da humanidade. Ali aprendemos o culto dos deveres morais ao lado das responsabilidades e treinamos fraternidade e amor [...].”346 Ademais, Rosemary informa que sua amiga Sônia, afetuosamente chamado de “Soninha”, permanece com elas na saudade dos que ficaram na terra, descrevendo-a como uma amiga leal e companheira, comparando-a a uma verdadeira irmã. Nas últimas páginas da mensagem, Rosemary “dialoga” com seus pais, lembrando que foi autorizada por sua bisavó Custodia a enviar informações para eles, que estavam em Uberaba na expectativa de receberam informações sobre as filhas. Rosemary reforça que elas sempre estão olhando e orando por eles, como na ocasião que a senhora Ony, sua mãe, passou por um tratamento oftalmológico. Pede que seus pais, que carinhosamente chama de “paizinho” e “mãezinha”, continuem a semear o amor e acender “a luz da caridade em toda parte. Quando vocês se recordam de nós e agem em nossa memória, ouvimos os seus sentimentos e atos que nos chegam como dádiva de incontida felicidade. Os paizinhos são o sol das vidas dos filhos que somente podem avaliar- lhes a grandeza [...].”347Igualmente, Jane pede espaço na mensagem para agradecer o amor e orações que ambos enviam a elas e intercede a Jesus que no dia do seu aniversário, no mês de maio, como um presente, possa retornar ao lar para beijar seus pais, que são, para ela, os mais maravilhosos progenitores. Concluindo a mensagem, Rosemary manda sentimentos de afeto a todos, como seus irmãos, Ronaldo e Sérgio, o marido Sidnei e namorado de Jane, Dagoberto, além dos demais parentes delas e de Sônia, com especial atenção a seus pais, Ony e Antônio, conforme transcrição a seguir:

[...] chega o momento do beijá-los e pôr as reticências nesta carta de amor filial. Abraçamos, Jane, Sônia e eu, os familiares amados, especialmente o Ronaldo e o Sérgio, a avozinha e os amigos, incluindo o Dagoberto e o Sidnei por quem oro comovida...

346 FRANCO, op. cit., p. 56 347 Ibidem, p. 57. 162

E beijando-os, enternecidamente, paizinho Antônio e querida mãezinha Ony, todo o carinho e amor da filha devotada, sempre afetuosa.348

Um ano após a mensagem supracitada, Jane envia uma nova mensagem a seus pais, no dia 4 de abril de 1984, psicografada por Divaldo Pereira Franco e publicada posteriormente no livro psicográfico “Porto de Alegria”. Tal mensagem diferencia-se de todas as demais devido suas escassas linhas. Nela, Jane fala brevemente sobre o seu papel de ser novamente a intérprete da mensagem, conforme solicitação da irmã Rosemary e amiga Sônia. Lembra que Rosemary continua densamente comprometida, apoiando seu companheiro Sidnei, enquanto ela e Sônia permanecem aprofundando os seus estudos, para que possam ser ainda mais úteis aos demais. Sintetiza a mensagem relatando que todas as três estão bem, ao lado dos avôs e demais parentes, sendo que o sofrimento da perda dos quatro anos é atualmente, para elas, a felicidade de poder lembrar a união de suas famílias, conforme delineia a seus pais: “o sofrimento de quatro anos passados, hoje é alegria de recordar a nossa constante união. Estejamos felizes. Um abraço aos irmãos queridos, e para os pais sempre amados todo o carinho e reconhecimento da filha, que não os esquece, sempre mais afetuosamente.”349 A última mensagem enviada pelas irmãs Koerich foi seis anos após o desastre aéreo, no dia 11 de abril de 1986, redigida por Jane e psicografada por Divaldo Pereira Franco. Também publicada no livro psicográfico “Porto de Alegria”, a mensagem aborda como estão as três, sempre incluindo a amiga Sônia, além de enviar informações sobre a comunidade em que vivem e agradecer em vários momentos da mensagem o papel de benfeitoria que seus pais tem feito, seja auxiliando o próximo ou orando por elas. Jane inicia destacando que nos seis anos de vida espiritual, as transformações e renovações foram enormes, com os novos trabalhos e estudos. Igualmente, lembra que tais transformações não se fizeram presentes apenas para elas, mas também para seus pais, que às substituíram por “muitos corações necessitados a quem os pais queridos prestam valiosa assistência. Nossa família ampliou-se. Os meus irmãos se fizeram mais irmãos de quantos nos compartilham da convivência e

348 Ibidem. 349 XAVIER, op. cit., p. 43 163

nós, ambas, nos regozijamos ao vê-los buscando a oportunidade de servir.”350 O agradecimento aos pais se repete em várias linhas, sobretudo, à mãe Ony, que prestou, de acordo com Jane, vários planos de serviço ao próximo, distribuindo consolo, amor e orações aos que precisam. Do mesmo modo, agradece ao pai Antônio por estar mais feliz e tranquilo nos últimos tempos, “espalhando paz e alegria com os nossos irmãos no trabalho que ele sustenta com carinho e segurança.”351 Durante várias páginas, Jane descreve o estado de cada uma delas, iniciando pela irmã Rosemary, que permanece apoiando seu marido, Sidnei, como se fosse uma mãe sempre dedicada ao filho. Quanto à amiga Sônia, lembra que ela encontra-se executando algumas ideias do seu coração. Por fim, narra suas vivências, salientando que está há algum tempo junto de seus avôs, Maria Goulart e Eugenio, sendo-lhes útil em seus trabalhos. Além disso, descreve detalhadamente o papel desempenhado por ela no instituto de espiritualidade da região que habitam:

Não estou inativa na residência na qual ainda nos achamos e freqüento um instituto de espiritualidade de nossa região, aproveitando as lições de luminares do bem, quais são o Padre Reus e o irmão senhor Osvaldo Melo, catedráticos de renovação e fé com os quais tenho adquirido novos e belos ensinamentos em torno da vida. Com isso, pude obter igualmente pequena dependência, na qual procuro transmitir as instruções com que sou agraciada, junto de outros irmãos de boa vontade que aprendem não só para si, mas também para distribuir com os mais fracos e inexperientes nas questões do espírito. Sou feliz porque me aceitaram no trabalho, e, com isso, adquiri o certificado de acesso a outros setores de conhecimento, nos quais vou entesourando as informações com que me renovo. Aqui, onde me encontro, a pessoa vale o que produz no campo do bem aos semelhantes, e me fortaleço cada vez mais, para guardar as minhas saudades da família querida sem perder a

350 Ibidem. 351 Ibidem, p. 44 164

disciplina através da qual preciso crescer em aquisições espirituais, humildes embora, mas que me auxiliam a ser eu mesma acrescentada pelos conhecimentos que busco resguardar comigo.352

Encerra a mensagem agradecendo novamente o carinho dos pais durante os seis últimos anos, desde o acidente do dia 12 de abril, que lhe tirou a vida. Carinhosamente, nas últimas linhas, Jane delineia intenso afeto aos pais, dizendo-lhes: “Trago-lhes as flores do nosso afeto, cujo perfume espero lhes envolva os corações queridos, e com as lembranças da Rose e da Sonia, no abraço da vovó Maria Goulart, aqui ficam os muitos beijos de ternura e reconhecimento da filha que os ama com todo o coração.”353

Imagem 38 – Capas dos livros “E o Amor Continua”, “Porto de Alegria” e “Vitória da vida”.

Fonte: Acervo pessoal da autora, 2015.

Percebe-se através da explanação das seis mensagens psicografadas pelas irmãs, datadas de 1980 a 1986, quase sempre enviadas no mês de abril, próximo ao dia do acidente, que todas são oferecidas aos pais Ony e Antônio. Nelas, são enviadas informações sobre o estado em que as duas irmãs se encontram, além da amiga Sônia, referida constantemente nas mensagens. Também descrevem

352 XAVIER, op. cit., p. 44-45. 353 Ibidem, p. 45 165

detalhadamente o local em que vivem, intitulado por elas como “comunidade”, “cidade universitária”, “cidade-jardim-parque” e “instituto de espiritualidade”, além de enviarem notícias sobre os parentes falecidos, sobretudo, os avôs e bisavôs. As irmãs também agradecem em quase todas as mensagens os serviços de benfeitoria prestados por seus pais, auxiliando sempre que possível os necessitados, em especial, nas empresas familiares Koerich. Do mesmo modo, as irmãs se referem em quase todas as mensagens ao episódio do acidente aéreo e a antecipação do voo, que provocou suas mortes. Por fim, destacam em todas as mensagens psicográficas o amor intenso a seus pais, Ony e Antônio, reforçando que a saudade permanece com o passar dos seis anos, mas que os trabalhos desempenhados por elas auxiliam nesse processo de distanciamento físico. 166

3 “VIDA MACHADO: VIVA PARA DIZER O QUE É A VIDA”: BREVE BIOGRAFIA DA MENINA MILAGREIRA

3.1 A CRECHE DO DUDUCO

Por eu ter uma creche há trinta e dois anos, onde eu iniciei o meu trabalho aqui nos altos do morro da José Boiteux, na década de 1970, algumas pessoas da comunidade passavam a deixar os filhos aqui para mim cuidar e outros deixaram para mim adotar mesmo. Ficaram um período grande assim comigo e depois de ir embora assim as crianças não voltavam, porque estavam acostumados aqui. Aí acabou aparecendo as primeiras adoções.354

Conforme destaca Nilson Nelson Machado355, o Duduco, suas atividades de assistencialismo iniciaram ainda na década de 1970. Natural de Florianópolis, Duduco nasceu no dia 17 de janeiro de 1961 e residiu durante anos no Morro do 25, no bairro Agronômica. Posteriormente, se mudou para o centro da cidade de Florianópolis, no morro da Rua José Boiteux, local onde instalou e fundou uma creche, conhecida como “Creche do Duduco”. Durante as suas quatro décadas de existência, a creche foi e permanece mantida e administrada pelo próprio fundador e atendeu no decorrer dos anos, centenas de crianças, sendo que muitas delas foram posteriormente adotadas por Duduco. De acordo com Duduco356, no ano de 1973 foram registradas vinte e cinco adoções, muitas delas provenientes do grupo “Anjos da Noite”, criado pelo Duduco com o propósito de acolher menores das

354 MACHADO, 2016, op. cit. 355 Importante destacar que Nilson Nelson Machado foi acusado no ano de 2013 de abuso sexual contra menores da sua creche, sendo que o Ministério Público denunciou Duduco por estupro de vulnerável e maus-tratos e por tentativa de coação de testemunhas. Após denuncias divulgadas através de depoimentos de alguns de seus filhos adotivos, Duduco ficou preso durante os dias 24 de setembro e 17 de outubro de 2013. Atualmente responde em liberdade. 356 Ibidem. 167

ruas da cidade de Florianópolis. Tal grupo funcionou durante aproximadamente dez anos e abrigou centenas de crianças na Creche do Duduco. Além do “Anjos da Noite”, Duduco criou o grupo de voluntários “Novo Sol, assistindo os menos favorecidos com conforto espiritual e material. Abraçou a solidariedade para com o próximo como leva, ao conviver com a miséria e o fantasma da dor nos corredores dos hospitais onde trabalhou”, como destaca Beto Abreu.357 Ao longo dos anos, algumas associações foram criadas para colaborar com a creche, como a Associação de Mães da Creche do Duduco e a Associação de Idosos da Creche do Duduco.358 Outra associação que apoiou a creche foi a ASSEF (Associação das Entidades Filantrópicas da Grande Florianópolis), fundada no ano de 1987 com o apoio do Duduco. Mas, não eram apenas as associações que amparavam a creche, de modo que Duduco realizava vários eventos para manter a instituição, como festas e feiras (Imagem 39) na comunidade para angariar verbas para realizar reformas necessárias e pagar as despesas mensais, como alimentação e salário dos funcionários. De acordo com a entrevistada Maria Aparecida da Fonseca Luz359, moradora de Florianópolis e frequentadora de alguns dos eventos e festas de aniversário realizados na Creche do Duduco, todos eram eventos bem organizados, com comida variada aos convidados, como bolos, macarronadas e cafés, sendo todos, crianças e convidados, bem atendidos.

Imagem 39 – Feirinha de frutas Imagem 40 – Construção do realizada por Nilson Nelson novo prédio da creche do Machado no ano de 1987. Duduco no ano de 1998.

357 ABREU, Beto. Florianópolis: a cidade vista por seus personagens. Florianópolis: Pentagrama, 2001, p. 110. 358 MACHADO, 2016, op. cit. 359 LUZ, op. cit. 168

Fonte: Acervo pessoal de Nilson Nelson Machado, 2016.

Imagem 41 – Crianças em frente à creche do Duduco.

Fonte: Acervo pessoal de Nilson Nelson Machado, 2016.

Em muitos dos eventos realizados na cidade, como os desfiles de Sete de Setembro (Imagem 42), as Procissão do Senhor dos Passos e festas de dia das crianças, Duduco levava suas dezenas de filhos, como recorda Maria Aparecida da Fonseca Luz: “Onde é que ele ia, ele levava aquelas crianças. Era procissão, era sete de setembro, era para ver o boi de mamão que saia ali da Mauro Ramos antigamente. Ele levava todos os filhos juntos.”360

360 LUZ, op. cit. 169

Imagem 42 –Filhos do Duduco no desfile de Sete de Setembro na década de 1990361.

Fonte: Acervo pessoal de Nilson Nelson Machado, 2016.

3.2 DA CRECHE AO HOSPITAL: OS DOIS LARES PARA A “VIDA”

E nesse meu trabalho social de creche, de adoção, de retirar crianças de rua, em 1992 veio a Vida, que era moradora aqui da comunidade. A mãe dela era portadora do vírus HIV, o pai também. Tiveram uma menina que eles também mandaram para mim, com nome de Roberta, mas a menina só durou um mês aqui em casa, que eles já mandaram ela com a doença bem adiantada. A menina veio a falecer. Daí ela teve novamente outra criança, que foi a Vida e chamava-se, na verdade, Cíntia Maria Pedro, que foi o nome que a mãe dela registrou. Ela veio para a minha casa com três meses.362

Conforme supracitado, Cíntia Maria Pedro, posteriormente registrada por Duduco como Vida Machado, chegou a sua casa com apenas três meses de idade, bastante debilitada em decorrência do vírus HIV, sobretudo, por sua mãe, também portadora do vírus HIV, não ter

361 Nesta imagem, destaque para a Vida, que é a menor menina a frente. 362 MACHADO, 2016, op. cit. 170 feito o tratamento durante o período gestacional, sendo agravado com a amamentação durante os três meses que esteve com ela.363 Duduco, por intermédio de sua mãe, passou a chamar a criança de Vida, tendo em vista que sua mãe acreditava que nomes fortes e positivos pudessem colaborar na sua recuperação: “Ela disse pra mim um dia que a menina estava muito mal aqui em casa: - Começa a chamar ela de Vida, para ela ter mais vida. Daí eu peguei e comecei a chamar ela de Vida, né. Desde os três meses, quando ela veio residir aqui. E aí ficou com esse apelido.”364 Após dois anos morando em sua creche, Duduco registrou Cíntia Maria Pedro, alterando seu nome para Vida Machado. Conforme destaca Duduco365, alterar o nome dos filhos no momento do registro da adoção não era comum, porém como o nome Vida foi carinhosamente e comumente chamado por ele, familiares, amigos, conhecidos e funcionários do Hospital Infantil Joana de Gusmão, onde era internada assiduamente, acabou pedindo autorização ao Juiz. Este, como já conhecia a história da menina através de reportagens jornalísticas, concedeu a mudança do nome e deste modo foi chamada durante os outros oito anos de Vida e assim permaneceu e se mantém conhecida na memória dos amigos, familiares, conhecidos e devotos. Durante os dez anos que viveu ao lado da sua nova família, Vida Machado passou por várias internações no Hospital Infantil João de Gusmão, algumas delas duravam meses, passando por períodos de sofrimento, em especial, por utilizar sondas, como a sonda estomacal, que dificultavam as rotinas de brincadeira e estudos de uma criança. Além das internações quando sua imunidade decaía expressivamente, Vida ainda frequentava o Hospital Infantil Joana de Gusmão quinzenalmente para tomar o coquetel HIV. As palavras de Duduco transcritas abaixo sintetizam os momentos de sofrimento que vivenciou ao lado de sua filha Vida:

Aí comigo aqui ela ficou até os dez anos de idade. Mas, todo o período de muito sofrimento. Ela teve, acredito, que umas quinze internações só no

363 Importante destacar que os pais de Vida Machado faleceram alguns anos depois. Além disso, Vida não possuía irmãos de sangue, tendo em vista que sua única irmã, Roberta, também entregue ao Duduco com meses de vida, faleceu antes do nascimento de Vida, também em decorrência do HIV. 364 MACHADO, 2016, op. cit. 365 Ibidem. 171

Hospital Infantil. E, às vezes, muito graves, mas resistia e voltava. Chegava a ficar de dois a três meses internada lá. Ela ficava internada durante um bom período lá. Porque a imunidade dela era muito baixa. Usava sonda por um período, depois usou uma sonda estomacal, ela era um símbolo de resistência por causa disso, porque os médicos, os próprios médicos do Hospital Infantil ficavam espantados, né, com a resistência dela. E os médicos logo achavam que ela ia embora [morrer] e de repente uma melhora.366

É importante ressaltar que durante o período em que a Vida precisou de internamentos e cuidados médicos, entre os anos de 1993 e 2002, o Brasil vivia uma fase de grandes investimentos farmacêuticos para os pacientes com o HIV. Segundo Cristiani Vieira Machado367, os investimentos nacionais em medicamentos para AIDS aumentaram mais de 24.000%, além da aprovação de uma lei brasileira específica no ano de 1996 que passou a garantir o acesso das pessoas com AIDS aos medicamentos. Enquanto esteva internada, por ser muito querida pela comunidade e filha do Duduco, uma figura emblemática da cidade, Vida recebia dezenas de visitas, alterando a rotina do hospital. Uma visita que movimentou o hospital foi a de Carlos Eduardo Bouças Dolabella Filho, popularmente conhecido como Dado Dolabella, que participava da “Malhação”, série de televisão da Rede Globo em 2001, ano que a visitou. Duduco lembra que a Vida era fã do ator e como presente de aniversário de nove anos, por estar comemorando no hospital, durante uma internação, disse que queria conhecer o Dado Dolabella. Por coincidência, o ator estava na cidade durante aquele final de semana, participando de um desfile no Beiramar Fashion de 2001. Como uma amiga do Duduco estava coordenando o evento, esta conseguiu que o ator visitasse a Vida, como recorda: “A minha amiga trouxe ele lá no

366 MACHADO, 2016, op. cit. 367 MACHADO, Cristiani Vieira. Prioridades da saúde no Brasil nos anos 1990: três políticas, muitas lições. In: Rev Panam Salud Pública, Rio de Janeiro, v. 20, n.1, p. 44-49, 2006. Disponível em: < http://www.scielo.br/revistas/rpsp/v20n1/31720.htm>. Acesso em: 10 ago. 2016. 172

Hospital Infantil. Ele viu ela e chorou muito. Ele trouxe para ela um caderno e uma mochila com o nome dela e tudo. E ele pegou e fez uma pintura lá na hora e escreveu: “Vida Machado, viva para dizer o que é a vida368.” Dado Dolabella conversou durante algum tempo com Vida e antes de se despedir, pediu ao seu pai que caso ela viesse a falecer, que fosse comunicado. Após a morte, Duduco comunicou o ator e lhe enviou como presente de agradecimento pela atenção dada a sua filha um anel com o nome “Vida”, anel este que o ator utilizou em algumas aparições na mídia, sendo que durante uma participação em um programa de televisão, Dado falou sobre o caso e se emocionou. De acordo com Duduco369, durante a entrevista ao programa, Dado Dolabella disse que havia visitado uma menina com o nome de Vida em Florianópolis e “que essa menina veio a falecer e falou do anel no dedo que o pai tinha dado. E ele disse que tinha muita fé nessa menina. Falou que sentia a presença dela e era uma menina que dava muita força pra ele, porque é espírita, né”. Durante as internações, para auxiliar na recuperação, Duduco transferia o quarto de Vida de casa para o hospital, como suas bonecas e brinquedos. Outro alento para o restabelecimento das forças de Vida era a admiração e carinho que mantinha diariamente ao lado do Duduco, seu pai e amigo, que sempre a acompanhava no hospital, proporcionando- lhe dias de festas e alegrias. Vida também encontrava em Duduco o amparo e a esperança de poder retornar para casa, como descreve emocionadamente:

Ela era muito apegava em mim, porque ela via eu como um socorro, né. No final das contas eu acho que ela conciliava as duas coisas. Ele é o meu socorro. Nos momentos difíceis da vida dela, no hospital, não era um médico, era eu, tinha que ser eu. Ela via força em mim, porque eu nunca fui lá pra dizer pra ela: - Ah, Vida, está na hora de tu ir embora. Tu estás mal. Não! Eu chegava lá brincando, dançando, levava palhaços para ela. Escola de samba, com grupo que se apresenta no Hospital Infantil. Eu ia com as passistas no quarto dela. Fazia muita festa. Todo dia tinha festa no

368 Parte do título desse capítulo da tese provém desta frase deixada pelo ator Dado Dolabella durante a visita a Vida Machado. 369 MACHADO, 2016, op. cit. 173

quarto dela que eu fazia. Então, eu acho que ela se apegou muito em mim, é a força, né. Eu chegava lá e já gritava assim, na porta do corredor, eles diziam: - Para. E eu gritava: - Vida, cheguei! Eu dizia: - Vida, o pai chegou. Ela ria, entendesse? Eu dizia muita palhaçada, muita palhaçada para ela. Palhaçada direto com as enfermeiras, eu ficava a noite inteira dizendo piada, um palhaço, né. E ela gostava. Ela dizia assim: - Amanhã é o dia do meu pai, é o dia de ele vir. As enfermeiras tudo riam. Era sempre assim.370

Contudo, apesar das constantes visitas e da presença diária do pai, Vida reclamava da saudade de casa, dos irmãos e dos amigos, como exposto nas linhas a seguir:

Tinha vezes que ela internava e ela dizia: - Eu quero ir embora, quero ir embora. Eu to com saudade da casa, to com saudade do fulano, do beltrano. E quando internava muita gente ia visitar ela. Por ser uma pessoa conhecida como eu sempre fui na cidade, então tinha muito movimento, muito movimento. E trazia um presente para ela. Então, eu acho que aquilo ali estimulava ela a viver mais tempo.371

A menina Vida, por ser uma das pacientes mais assíduas do Hospital Infantil João de Gusmão e conhecida pelos funcionários como o símbolo de resistência, sobrevivendo a várias internações complexas e exaustivas, foi homenageada após a sua morte com uma nova ala dos apartamentos em seu nome e uma praça localizada junto ao Hospital Nereu Ramos, ao lado do Hospital Infantil Joana de Gusmão, chamada “Vida Machado”.

3.3 UMA DÉCADA DE “VIDA”: ENTRE SONHOS, LUTAS, BUSCAS DE CURA, FESTAS E ESPERANÇA

370 Ibidem. 371 MACHADO, 2016, op. cit. 174

No transcorrer dos quase dez anos em que viveu na creche do Duduco, Vida Machado teve uma infância com dias de sonhos, lutas, buscas de cura, festas e esperança. Duduco destaca que ela era uma criança querida por todos da comunidade, bastante mimada e cheia de afetos e atenção na creche: “Ela teve uma infância com toda a assistência, né. Tinha muito gente aqui em casa, morava muito criança, ela era muito paparicada. A comunidade também, o pessoal do morro aqui paparicava muito. Aquele amor, carinho, afeto, atenção. E isso aí levantava ela.”372 Suas ligações afetivas eram inúmeras, sobretudo, com alguns irmãos que possuía um vínculo mais forte, como o vereador Tiago Silva e as crianças da creche, além de pessoas da comunidade que costumavam visita-la semanalmente e cantar músicas para ela, sua grande alegria, sobretudo, as canções de Roberto Carlos, que era um de seus cantores preferidos.

Imagem 43 - Vida Machado e suas ligações afetivas (destaque com flecha em vermelho).

372 Ibidem. 175

Fonte: Acervo pessoal de Nilson Nelson Machado, 2016.

Vida Machado era bastante conhecida na cidade, pois sempre estava presente em todos os eventos e festas que Duduco participava. Eram desfiles de carnaval, eventos políticos, festividades cívicas e religiosas de Florianópolis, além de viagens que realizava com seu pai e irmãos. Nas procissões do Senhor dos Passos, Duduco levava muitos de seus filhos e Vida Machado sempre estava presente, conforme imagens a seguir:

176

Imagem 44 – Duduco e seus filhos Imagem 45 – Vida Machado vestidos para a Procissão do Senhor dos sentada a frente da imagem do Passos, com destaque para a Vida Senhor dos Passos Machado à frente, segurando uma vela.

Fonte: Acervo pessoal de Nilson Nelson Machado, 2016.

No ano de 1995, conforme já mencionado anteriormente, Duduco foi homenageado pela Escola de Samba Protegidos da Princesa, com o samba enredo “Duduco, um ser de luz”. Vida foi uma das atrações no desfile, desfilando no carro “Abre Alas” no colo de Duduco. Tal episódio repercutiu polêmicas entre as escolas de samba locais e títulos à Vida. Devido o atraso do desfile, tendo iniciando apenas às 2 horas da madrugada, a Escola de Samba Protegidos da Princesa foi penalizada, perdendo pontos por ter trazido uma integrante menor de idade naquele horário, sendo que e o tema virou polêmica na cidade. Conforme é de costume, a euforia é intensa quando o carro “Abre Alas” surge na passarela e a escola inicia o desfile, porém, naquela noite, a Passarela do Samba Nego Querido “chorou porque ela já era bem conhecida. E aí ela acabou chamando a atenção na cidade.”373 A comoção foi intensa, sendo que a notícia repercutiu nacionalmente. Posteriormente, Duduco recebeu um pedido do Museu do Carnaval, localizado no Sambódromo, na Rua Marques de Sapucaí, no Rio de Janeiro, para enviar uma foto de Vida, tendo em vista que ela havia sido homenageada e incluída no museu como menor destaque que desfilou em uma escola de samba a nível nacional.

373 MACHADO, 2016, op. cit. 177

Quanto ao seu dia a dia, Vida Machado chegou a frequentar a escola por somente dois anos, estudando na Escola Básica Silveira de Souza, localizada próximo à creche, no centro da cidade. Devido às dificuldades em frequentar as aulas regularmente, decorrentes das internações no Hospital Infantil Joana de Gusmão e da baixa imunidade, ficando doente com frequência, Duduco acabou optando por afastá-la da escola. De acordo com Duduco374, outra justificativa que atrapalhava sua ida para a escola era a dificuldade que as professores relatavam em medicá-la, tendo em vista que Vida necessitava ser medicada pela sonda durante as aulas, o que, em grande medida, impactava e abalava seus professores e os colegas de classe:

A presença dela, com aquela sonda, não há professora que ficasse com ela. Elas choravam, elas me chamavam lá e diziam: - Ai Duduco, a presença dela me trás uma tristeza grande. E a luta dela, entendesse? Porque daí os irmãos mais velhos, meus filhos mais velhos estudavam lá e eu mandava um remédio para eles darem na hora, entendesse? Era por uma sondinha. E aquilo ali mexia com o sentimento das professoras e alunos. E depois ela vomitava muito. Daí ela foi só dois anos na escola.375

Porém, apesar do pouco tempo na escola, de acordo com Duduco, Vida era dedicada e inteligente durante os anos que estudou. Embora fosse uma menina tímida e pouco comunicativa, possuía feições meigas e um rosto simpático e sereno, conforme define seu pai, o que chamava a atenção das pessoas que conviviam com ela. Apesar das dificuldades enfrentadas devido à doença, como seu baixo peso, pouca força, o braço sempre imobilizado pelo soro, a utilização das sondas e os medicamentos fortes que causavam efeitos colaterais, Duduco lembra que sua filha Vida enfrentava seus dias sem expressões de sofrimento. Descreve tais características em algumas palavras: “Então, por tudo isso, com sonda no nariz, sonda no estomago, isso tudo acabava chamando a atenção das pessoas e as pessoas diziam: como é que ela resiste tanto? E ela resistiu, ela resistiu!”376

374 MACHADO, 2016, op. cit. 375 Ibidem. 376 Ibidem. 178

Outro aspecto que merece ser destacado de sua vida foram suas festas de aniversário. Especificidade comum de uma criança, Vida sempre gostou do dia 15 de dezembro, data de seu aniversário e durante os nove anos que viveu na creche, Duduco sempre festejou a data, tendo em vista que era mais um ano de luta e de vida. Algumas destas festas foram descritas por Duduco, de modo que possui em seu acervo pessoal dezenas de registros fotográficos de tais comemorações, alguns deles apresentados na Imagem 46.

Imagem 46 – Festas de aniversário de Vida Machado de dois e oito anos. 179

Fonte: Acervo pessoal de Nilson Nelson Machado, 2016.

Entretanto, a festa que seu pai Duduco mais recorda foi seu aniversário de quinze anos. Mesmo falecendo aos nove anos, faltando um mês para completar dez anos, o sonho de Vida era ganhar sua festa de quinze anos. E seu pai realizou este sonho, de modo que antecipou a festa, realizando tal comemoração alguns meses antes de falecer, quando tinha nove anos: “Eu até antecipei, porque ela sempre dizia que ela 180 queria muito a festa dela de quinze anos. Ela sempre dizia que queria. Aí como eu vi nela que ela não ia ter resistência, eu antecipei.”377 A grande festa foi realizada no Clube do Penhasco, localizado na Prainha, em Florianópolis e contou com a presença de centenas de convidados, dentre parentes, amigos, vizinhos e pessoas da comunidade. Para alegrar a festa, cantaram amigos e conhecidos do Duduco de escolas de samba e grupos de pagode. Em regra, como geralmente ocorre nas festas de quinze anos, a aniversariante desfilou com belos vestidos, que foram feitos pela renomada estilista Nilma Vieira, de São José, que carinhosamente deu-lhes de presente378.

Imagem 47 – Dois dos vestidos utilizados por Vida Machado em sua festa de aniversário de quinze anos.

Fonte: Acervo pessoal de Nilson Nelson Machado, 2016.

Ao longo dos nove anos que criou e cuidou de Vida, Duduco procurou cura de inúmeras maneiras, fosse por meio da própria medicina, mas principalmente através das devoções religiosas. Quanto às devoções, Duduco e Vida participavam de sessões espíritas e missas, além de fazerem pedidos a santos oficiais e não oficiais. Atualmente, Duduco é Evangélico, praticante da Igreja Assembleia de Deus,

377 MACHADO, 2016, op. cit. 378 Um destes vestidos de sua festa de quinze anos foi utilizado para enterrar Vida, alguns meses depois. 181

contudo, enquanto sua filha estava viva, era frequentador do catolicismo e espiritismo. Duduco379 relata que por ter uma forte relação com o espiritismo e kardecismo, levava Vida regularmente aos centros espíritas de Florianópolis, como também de Uberaba, visitando Chico Xavier algumas vezes. No mês de maio de 2002, ano em que Vida morreu, Duduco a levou bastante debilitada, acreditando que faleceria em breve. Contudo, de acordo com Machado, Chico Xavier assim falou:

Eu disse: - Olha Chico, eu acho que dessa vez a Vida vai. Ela tá muito ruim. Eu levei ela bem ruinzinha dessa vez e até fiquei com medo, mas resistiu. Quando chegou lá ele sentou ela no colo e disse: - Não Vida, tu não vai já. O Chico vai na tua frente. Não te preocupa. Eu vou na frente dela ainda. E foi em junho e ela foi em novembro do mesmo ano.380

Como possuía grande devoção e admiração pelo médium Chico Xavier, Duduco e sua filha foram ao seu velório e sepultamento, que aconteceram em Uberaba nos dias 01 e 02 de julho, sendo que dois meses depois, visitaram sua sepultura no Cemitério São João Batista, também localizado na cidade de Uberaba. A Igreja Católica e seus santos oficiais eram mais uma alternativa de busca de cura para Vida. Como Duduco era muito devoto de Santa Paulina e do Senhor dos Passos, as imagens de ambos eram presentes no quarto de Vida, que as acompanhavam quando ficava internada no Hospital Infantil Joana de Gusmão. Além das imagens, pai e filha faziam orações e pedidos à Santa Paulina, visitando seu santuário na cidade de Nova Trento, Santa Catarina, com certa frequência. Também visitaram em algumas ocasiões o Santuário Arquidiocesano Mariano de Nossa Senhora da Penha, em Penha, no Rio de Janeiro. Durante a entrevista, Duduco destacou que em uma das visitas ao santuário, subiu a escadaria de joelhos com alguns de seus filhos (Imagem 48), desafiando-se e fazendo promessas e penitencias. O Santuário de Nossa Senhora Aparecida, em Aparecida, São Paulo, foi outro local visitado por eles.

379 MACHADO, 2016, op. cit. 380 MACHADO, 2016, op. cit. 182

Duduco também era devoto de Padre João Batista Reus, visitando em algumas oportunidades o túmulo do padre (Imagem 49), localizado no Santuário Sagrado Coração de Jesus, em São Leopoldo, no estado do Rio Grade do Sul. Conforme já destacado anteriormente, existe um processo de beatificação do Padre Reus381 desde a década de 1950, alguns anos após a sua morte.

Imagem 48 – Duduco e seus filhos subindo a Imagem 49 – Duduco na sepultura escadaria do Santuário de Nossa Senhora da de Padre Reus, em São Leopoldo. Penha, no Rio de Janeiro.

Fonte: Acervo pessoal de Nilson Nelson Machado, 2016.

Além dos santos oficiais da Igreja Católica, Duduco e Vida Machado costumavam pedir cura a sua doença aos santos não oficiais, os conhecidos milagreiros de cemitério. Tais milagreiros, segundo João Carlos Pereira382 são “desterritorializados”, não sendo aceitos pelo

381 MOLIN, Ângela. Santuário do Sagrado Coração de Jesus junto ao túmulo do Padre Reus em São Leopoldo/RS: proposta de projeto de Lei Municipal de salvaguarda do patrimônio imaterial a partir do estudo de caso de lugar e celebração. 2011. Dissertação (mestrado em Memória Social e Bens Culturais), Centro Universitário La Salle, Canoas, 2011. 234 p. 382 PEREIRA, José Carlos. Interfaces do Sagrado. Catolicismo popular – o imaginário religioso nas devoções marginais. Aparecida, SP: Ed. Santuário, 2011. 183

oficial, de modo que os fiéis acabam deixando os espaços sagrados, como as igrejas e fazem seus pedidos e devoções em lugares profanos e irregulares, como é o caso dos cemitérios. Duduco e Vida, além de pedirem aos milagreiros, costumavam visitar suas sepulturas, localizadas em cemitérios ao redor do país, como nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo e Recife:  Odetinha (Odette Vidal de Oliveira) e Betinha (Elizabete de Oliveira Mota), ambas no Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro;  Antônio (Antoninho) da Rocha Marmo, no Cemitério da Consolação, em São Paulo;  Maria Bueno, no Cemitério Municipal São Francisco de Paula, em Curitiba;  Menina sem nome, no Cemitério de Santo Amaro, em Recife;  Irmãs Koerich, no Cemitério São Francisco de Assis (Itacorubi), em Florianópolis. Duduco expressa em algumas linhas o quanto viajou o Brasil em busca dos milagreiros de cemitério, fazendo promessas com sua filha Vida:

E ela gostava muito da sepultura da Odetinha, porque tem imagem da Odetinha em cima. Ela gostava muito, ela ia lá e fazia carinho. Ela gostava da Odetinha, né. Levei várias vezes. Ela foi lá mais de dez vezes. Eu ia sempre ao Rio e levava ela sempre lá. E tem uma menina também na mesma quadra da Odetinha, com o nome de Betinha. Ela também foi naquele Antônio da Rocha Marmo, em São Paulo. Levei ela também na Maria Bueno, em Curitiba e fomos na menina desconhecida, lá em Recife. Eu ai nesses túmulos tudo. Muita promessa. Tudo foi feito, eu recorria a tudo. Tudo que alguém mandava. Não tinha recurso e a gente optava por isso.383

383 MACHADO, 2016, op. cit. 184

Registros fotográficos foram feitos em algumas das visitas aos milagreiros, conforme Imagem 50, em que Duduco e seus filhos estão orando e pedindo a Odetinha. Nesta imagem, Vida Machado aparece em frente ao túmulo, olhando para a foto. Conforme seu pai expressa na citação acima, Vida Machado tinha grande devoção e afeto a Odetinha, de modo que sempre que ia ao Rio de Janeiro, Duduco, como um fiel, assumiu o compromisso de levar sua filha para orar, agradecer e pedir à menina milagreira.

Imagem 50 – Duduco e seus filhos na sepultura de Odetinha, no Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro.

Fonte: Acervo pessoal de Nilson Nelson Machado, 2016.

Além das visitas para orar e pedir, Duduco salientou que chegou a levar nas igrejas e sepulturas que frequentaram logo que os milagres eram atendidos placas de ação de graça a alguns dos santos oficiais da Igreja Católica e aos milagreiros, entre eles “Senhor dos Passos e Padre Reus. Eu tenho na Igreja da Penha. Tenho lá em Belém do Pará, na cidade de Nazaré, placas que eu levava. No Antoninho da Rocha Marmo, eu sempre botava. Na Santa Paulina. Eu era muito católico, muito católico.”384 Em síntese, a busca de cura através dos pedidos aos santos oficializados ou não, através de penitencias, visitas e orações, era para

384 MACHADO, 2016, op. cit. 185

Duduco uma das únicas opções que lhe restavam. Como bem resume: “porque quando eu comecei a procurar cura para ela, que eu vi que pela medicina não tinha, aí eu me socorri à religião, né. Aí eu levei ela aos santos de cemitério pelo Brasil.”385

3.4 COM CORTEJO FÚNEBRE, VELÓRIO E COMOÇÃO: MORTE E POST MORTEM DE VIDA MACHADO

Mas ela sempre foi muito alegre, ela. Ela era alegre. Só quando ela viu que a doença, que ela estava sem resistência mesmo. Daí ela entregou-se mesmo, ela não aguentou mais. Foi um sofrimento. Teve uma hora que a doença foi mais forte, né. E no dia 11 de novembro de 2002, a doença levou ela.386

Como supracitado, foi no dia 11 de novembro de 2002, faltando apenas um mês e quatro dias para completar dez anos, que Vida Machado faleceu. Já internada há algum tempo no Hospital Infantil Joana de Gusmão, no isolamento, devido seu estado crítico de saúde e como forma de evitar que seu estado fosse agravado, não podia ter acompanhamento ou mesmo receber visitas. No entanto, seu pai e alguns irmãos a acompanhavam diariamente, ficando do lado de fora da sala. Duduco recorda que havia ido para casa tomar banho e recebeu a ligação do hospital, dizendo que o estado de saúde havia piorado consideravelmente. Como faziam revezamento para não deixá-la sozinha, apesar de não estarem ao seu lado, estavam no hospital no momento Tiago Silva, vereador de Florianópolis e antigo frequentador da creche do Duduco por anos, além de um dos filhos mais velhos de Duduco, Márcio. Por ser paciente antiga do hospital e admirada pelos funcionários, tendo em vista sua luta diária nas internações, Vida recebia atenção especial. Logo, Duduco, Tiago Silva e seu filho Márcio, três das pessoas mais ligadas com Vida, foram autorizados a entrarem na sala para estar com ela em suas últimas horas de vida. Ainda consciente, Duduco ficou com sua filha durante algumas horas e conforme seu último pedido,

385 MACHADO, 2016, op. cit. 386 Ibidem. 186 cantou a música “Amor sem limites” dezenas de vezes, do cantor Roberto Carlos, lançada em 2000, música esta que Vida adorava387. Duduco descreve emocionado os detalhes das últimas horas de sua filha Vida, falando para ela ir e descansar, pois jamais a esqueceria, afinal ele a amava muito e ela seria para sempre sua filha do coração:

Daí ela disse: - Canta pra mim. Daí ela gostava muito da música do Roberto Carlos. Daí eu cantava e quando parava ela dizia: - Canta de novo, ela dizia. Cantava a música, sem parar. E levou umas três horas para ela vir a falecer, né. Ela faleceu era uma e pouco da madrugada e eu cansado de cantar a música e ela dizia: - Canta de novo, canta de novo, ela só dizia isso. E eu cantava.388

E assim faleceu Vida Machado, no dia 11 de novembro de 2002, a uma e quinze da madrugada, com Duduco cantando a música “Amor sem limites”: Vivo por ela / Ninguém duvida / Porque ela é tudo / Na minha vida / Quem ama não esquece quem ama / O amor é assim / Eu tenho esquecido de mim / Mas d'ela eu nunca me esqueço / Por ela esse amor infinito / O amor mais bonito / É assim nosso amor sem limite / O maior e mais forte que existe. Após a morte de Vida, Duduco e seus familiares e amigos organizaram as celebrações fúnebres, iniciando pelo velório, que aconteceu na própria creche do Duduco. Como Vida era muito querida e conhecida em Florianópolis, além do papel de notoriedade que seu pai ocupava na cidade, as capelas mortuárias do Cemitério São Francisco de Assis (Itacorubi) seriam pequenas para abrigar tantas pessoas, o que motivou a fazerem na própria creche, local onde Vida foi criada e viveu.

387 Duduco recorda que a primeira vez que Vida ouviu a música “Amor sem limites”, quando Roberto Carlos cantou na televisão, durante o show de fim do ano de 2000, Vida se emocionou, justificando suas lágrimas, pois o cantor havia feito a música em homenagem a sua espoca falecida, Maria Rita. Como havia gostado, Duduco comprou o CD para a filha, que logo aprendeu e decorou a letra da música. Durante as viagens, Vida sempre pedia que o pai colocasse o CD, como recorda: “A gente tinha um pequeno sítio lá em Paulo Lopes e a gente ia pra lá e botava no alto do volume e ela queria que a gente botasse a música sempre. Sempre, sempre!”. In: MACHADO, 2016, op. cit. 388 MACHADO, 2016, op. cit. 187

Familiares, amigos, conhecidos, vizinhos, além de curiosos que sabiam sobre a história da Vida estiveram presentes no velório. Posteriormente ao velório, que ocorreu no transcorrer do dia 11 de novembro de 2002, terminando às 17h, foi realizado um cortejo fúnebre389. Como o movimento se intensificou e muitos não conseguiram vê-la na creche, acabaram fazendo como última homenagem a Vida o cortejo fúnebre. Este saiu da creche, com centenas de pessoas que percorreram a pé quase 1 km pela Rua José Boiteux e Avenida Mauro, no centro da cidade (conforme mapa com o trajeto presente na Imagem 51), chegando até o conhecido Banco Redondo, local onde o carro fúnebre aguardava para levá-la ao cemitério. Durante o trajeto, as pessoas cantaram e rezaram em nome da menina Vida, como recorda Cecília Maria dos Santos Machado390, moradora do Morro do Céu, próximo à creche do Duduco e que participou das celebrações fúnebres.

Imagem 51 – Mapa com o trajeto do cortejo fúnebre de Vida Machado.

389 Realizar cortejos fúnebres e velórios em casa são rituais fúnebres raríssimo na cidade de Florianópolis na atualidade, conforme pude constatar em pesquisa sobre os rituais fúnebres da capital no decorrer do século XX. In: TOMASI, Julia Massucheti. Com velórios, enterros e missas de corpo presente: os rituais católicos de morte em Florianópolis na contemporaneidade. In: XV Encontro Estadual de História da ANPUH-SC, 2014, Florianópolis. Anais do XV Encontro Estadual de História ?1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado", 2014. v. XV. p. 1-12. 390 MACHADO, 2015, op. cit. 188

Fonte: Google Maps391.

Encerrado o cortejo fúnebre, o carro seguiu para o cemitério do Itacorubi, juntamente com os familiares e amigos que lá realizaram a última despedida de Vida Machado. Os coveiros do cemitério, Enio Vilpert392 e João Ferreira de Lima393 destacaram em entrevista que o sepultamento foi bastante movimentado, sendo que foi João Ferreira de Lima que realizou todo o enterro e também construiu a sepultura. De acordo Duduco, o cemitério estava lotado, tendo em vista que muitos não estiveram presentes no velório, devido os medos e preconceitos pela creche ser em uma comunidade carente: “E lá no cemitério também já tinha mais gente esperando. Como a gente mora no morro, tinha gente que tinha preconceito de morro, de achar que é lugar perigoso, e muita gente esperou lá. Daí lá tinha mais gente ainda. Bastantes pessoas da cidade.”394

391 GOOGLE MAPS. Mapa com o trajeto do cortejo fúnebre de Vida Machado, 2016. Disponível em: . Acesso em: 30 ago. 2016 392 VILPERT, op. cit. 393 LIMA, João Ferreira de. Entrevista cedida à Julia Massucheti Tomasi, no dia 23 de janeiro de 2015. 394 MACHADO, 2016, op. cit. 189

Durante todo o ritual do enterro, desde a entrada do caixão no cemitério até o momento de dar o último adeus, vários cantores deram a sua colaboração, como D’angelo e a Marisa Sabará, que cantaram algumas canções, dentre elas, a música preferida de Vida “Amor sem limites”, de Roberto Carlos. O enterro aconteceu apenas às 20h, pois o cortejo foi longo, durando mais de uma hora, além dos rituais de enterro dentro do cemitério, conforme destaca seu pai: “Já estava escurinho a hora que ela foi enterrada. Demorou bastante, tinha muita gente. E eu via as pessoas bem serenas, dava a impressão que ela tinha aceitado bem a morte. Também ela é uma criança, né.”395 Duduco recorda que o momento de fechar o caixão foi bastante sofrido e doloroso, visto esse ser o extremo do ritual de separação entre o morto e os vivos. O desespero e o sofrimento nessa hora são marcantes, expressados, por exemplo, por gritos e choro, devido à impossibilidade de ver novamente a pessoa, mesmo morta. A sepultura, toda construída com revestimento em granito, foi feita pelo coveiro João Ferreira de Lima logo após o enterro de Vida. Mas, as duas esculturas, tanto a da parte superior da tampa quanto a do topo do túmulo, foram feitas pelo artista plástico de São José, Plínio Verani. Tais esculturas são réplicas de Vida Machada, sendo que a deitada é a imagem de como estava no caixão, trajando um dos vestidos de sua festa de quinze anos e a do topo, em pé, foi uma das fotografias de Vida quando chegou ao Clube do Penhasco, onde festejou sua festa de quinze anos. Duduco foi quem encomendou as esculturas com o artista plástico Plínio Verani, deixando com este as duas fotografias (no caixão e na festa), para que as esculturas ficassem idênticas.

Imagem 52 – Fotografias da sepultura de Vida Machado, com destaque para as duas esculturas.

395 Ibidem. 190

Fonte: Acervo pessoal da autora, 2011 a 2016.

Todavia, o que motivou Duduco a fazer tais esculturas? Para quem já visitou o túmulo de Odetinha, no Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro, pode se deparar com o que parece uma grande coincidência, tendo em vista que a sepultura de Odetinha possui sua réplica na parte superior da tampa do túmulo, aos moldes ao de Vida Machado. De acordo com Duduco, o caso não é coincidência, como explica: “A que está deitada é ela no caixão. Foi um modelo da Odetinha. Como ela gostava da escultura da Odetinha eu peguei, fui e copiei o da Odetinha. Mas copiei por ela, usando fotografias da Vida. A que tinha no alto fui eu que botei por acréscimo.”396 Claramente, as unidades tumulares e esculturas das duas sepultadas são bastante díspares, como o material empregado nas suas construções, além do distanciamento do período de sepultamento, sendo o túmulo de Odetinha da década de 1930 e o de Vida Machado de 2002. Porém, as propostas de construção e esculturas são parecidas, tendo Duduco se espelhado significativamente para deixar uma cópia do túmulo de sua milagreira, Odetinha.

396 MACHADO, 2016, op. cit. 191

Após a morte de Vida Machado, seu pai e irmãos frequentavam sua sepultura em certas datas especiais, como aniversário de nascimento, morte, Dia de Finados, dia das crianças, dia dos pais, Natal, além de vários domingos. De acordo com o sepultador Enio Vilpert397, nos dias de Finados e das crianças, Duduco e alguns filhos e crianças da sua creche costumava realizar uma verdadeira festa para a Vida, decorando a sepultura com balões (Imagem 53). Duduco lembra que passava dias inteiros nos primeiros anos de falecimento de Vida, sobretudo, aos domingos. Outras datas que ele e seus filhos visitavam o túmulo eram os dias de alguns Santos devotos, como Santa Paulina e Nossa Senhora Aparecida, como salienta “Eu ia pra lá às 6 horas da manhã e saia às 20, 21 horas da noite. Dia de Finados, dia de aniversário dela, na Páscoa, dia de alguns dos santos.”398 No dia 03 de novembro de 2005, na reportagem do Jornal A Notícia399, de Joinville, em uma manchete sobre o Dia de Finados, está destacada uma foto de Duduco junto à sepultura de Vida, enfeitada com balões. Nesta reportagem, consta que a sepultura foi uma das mais visitadas dos cemitérios da capital no decorrer do Dia de Finados:

A sepultura de Vida Machado, que faleceu há três anos, acabou sendo uma das mais visitadas no cemitério São Francisco de Assis. Ao lado do túmulo, especialmente decorado com balões e flores, estava o deputado Nilson Nelson Machado (PDT), o Duduco. ‘A cada ano encontro uma nova maneira de homenageá-la’, justificou. O parlamentar, conhecido pela irreverencia, distribuiu botons e mensagens aos populares que rezaram pela garota. ‘É aqui, ao lado do túmulo de minha filha, que enfrentou bravamente o HIV, encontro forças par continuar lutando pelos meus outros filhos’, desabafou.400

397 VILPERT, op. cit. 398 MACHADO, 2016, op. cit. 399 FELTHAUS, Rosane. No Itacorubi limpeza vai demorar pelo menos 15 dias, seção Cidades. A Notícia, Joinville, 03 nov. 2005. Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina (BPESC). 400 FELTHAUS, op. cit., p. 6. 192

Imagem 53 – Reportagem do Jornal A Notícia destacando o túmulo enfeitado de Vida Machado no ano de 2005.

Fonte: FELTHAUS, 2005401.

Outra reportagem sobre o Dia de Finados, do ano de 2006, igualmente do Jornal A Notícia, também destaca o túmulo de Vida Machado com sendo um dos mais visitados do cemitério do Itacorubi:

O túmulo de Vida Machado, que morreu em 2002, aos nove anos, vítima do vírus HIV e órfã dos pais biológicos, foi um dos mais visitados do

401 Ibidem. 193

Cemitério Municipal São Francisco de Assis, o maior de Florianópolis, no bairro Itacorubi. Homenageada todos os anos pelo pai adotivo, o hoje deputado estadual (não-reeleito) Nilson Nelson Machado, o Duduco, Vida tornou-se uma espécie de santa. Todas as semanas, Duduco recolhe bilhetes e placas deixados por desconhecidos sobre o túmulo da menina, todos agradecendo por graças alcançadas. Ontem, Duduco passou o dia ao lado da sepultura decorada com flores, e balões e um cartaz com a imagem da menina.402

No dia 03 de novembro de 2006, no mesmo dia que a reportagem supracitada, do Jornal A Notícia, o Diário Catarinense publicou uma reportagem sobre a visitação ao túmulo de Vida e expôs uma imagem do túmulo da milagreira, enfeitado com balões e recebendo a visita de algumas pessoas, conforme imagem abaixo:

Imagem 54 – Reportagem do Jornal Diário Catarinense destacando o túmulo enfeitado de Vida Machado no ano de 2006.

402 DIA de Finados: Flores, orações e muita saudade. A notícia, Joinville, 03 nov. 2006. Disponível em: Acesso em: 05 set. 2016. 194

Fonte: BARBOSA, 2006403.

Além de visitar sua filha em muitas datas especiais e enfeitar a sepultura com balões e flores, Duduco realizava verdadeiras serenatas para Vida, tendo em vista que esta adorava músicas, conforme já destacado anteriormente. Eram corais infantis e grupos musicais que tocavam e cantavam durante as noites em frente ao túmulo da menina. Em algumas ocasiões, as serenatas adentravam a madrugada e Duduco e os cantores e músicos chegaram a sair do cemitério depois das duas da manhã. Quando não possuíam músicos, Duduco carregava um aparelho de som a pilha e alguns CDs que Vida mais gostava, como expõe: “Eu levava música. Levava um gravador, um CD, pilha e botava estas músicas dela. Porque no início assim a gente sente muito, né. Então ela gostava e eu achei que ela estaria ouvindo. Também deixava no túmulo muito CD do Roberto Carlos lá.”404

403 BARBOSA, Marion. Ritual de homenagem aos mortos. In: Diário Catarinense, Florianópolis, 03 nov. 2006. Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina (BPESC), p. 24. 404 MACHADO, 2016, op. cit. 195

Outros presentes que Duduco deixava para sua filha além dos CDs eram balas e pirulitos, pois “eu acreditava na vida após a morte, né. Muita bala, muito pirulito. Daí hoje quem faz isso é aquele pessoal, que vão lá [devotos].”405 Segundo Duduco, todos os presentes que oferecia a sua filha, além das fotografias que deixava junto ao túmulo, em um espaço envidraçado próximo a escultura deitada, eram levados pelos frequentadores. Para ele, levar as coisas do túmulo de sua milagreira é como um amuleto: “As pessoas tem essa vocação de achar que levando para casa vira um amuleto. Aí eu botava as fotos dela, mas daí eles começaram a raptar as fotos. Botava no vidro, por dentro do vidro, mas eles estouravam o vidro e levavam. Daí tá o nomezinho dela lá.”406 Os dias de aniversário de Vida, além de serem celebrados com a visita ao cemitério, eram festejados por Duduco na creche, como se sua filha estivesse viva, fazendo bolo com seu nome, cantando parabéns e presenteando pessoas carentes, como crianças e idosos do asilo, em nome dela:

Meu Deus, no dia do aniversário dela, eu fazia festa como se fosse normal. Bolo com o nome dela, eu fazia. Botava a música do Roberto Carlos o dia inteiro. As pessoas já sabiam, aniversário da Vida. Gostava de comprar um presente para dar para uma criança, em nome dela. Pela alma da minha filha Vida. Eu ia ali no asilo e dava coisa para os velhinhos, porque ela ia muito no Asilo São Joaquim comigo. Quando ela morreu eu dava para os velhinhos, pela alma da Vida.407

Atualmente, Duduco frequenta pouco a sepultura de sua filha. Por ter mudado de religião há alguns anos e não acreditar mais em vida após a morte, considera desnecessário visitar sua filha com maior frequência. Durante o ano, o Dia de Finados se tornou um dos únicos a visitar Vida, passando apenas fim do dia para deixar flores, não ficando longas horas como o fazia anteriormente. Outro motivo que justifica sua quase que ausência no túmulo de Vida é por considerar impertinentes os pedidos dos devotos, como se possuísse dons por ser pai de uma milagreira:

405 Ibidem. 406 Ibidem. 407 MACHADO, 2016, op. cit. 196

Daí eu via que as pessoas começavam a manjar o dia que eu ia. E as pessoas iam lá, pediam para mim: - ah, porque tu és pai, ela vai atender. Ai Duduco, pede! Botava a mão em mim assim: - Ai, tu és um santo, criasse ela. E botavam a mão em mim. Aí eu disse, aí não e desapareci da sepultura. Faz uns três anos que eu não fui mais. Deixei assim mesmo, entendesse? Começou a aparecer muita romaria, daí dava a impressão que a gente estava em busca de popularidade. Daí eu disse: - eu não venho mais não. Daí eu peguei e sai. As pessoas até hoje estranham. – Ah, ele abandonou a sepultura. Não é que eu abandonei a sepultura, eu ainda vou. Mas não faço questão de ir nestes dias, que é para as pessoas acharem que a gente tá querendo popularizar.408

Contudo, apesar de não frequentar mais o cemitério com tamanha intensidade como nos anos após sua morte, Duduco destaca que a saudade de sua filha permanece, chorando em datas especiais, como aniversários de nascimento e morte. Dentre as dezenas de crianças que adotou, Vida foi a única que já faleceu. Ressalta que em alguns dias, ao sentar no sofá ou mexer em gavetas, vê fotografias e recorda de momentos especiais que viveu ao seu lado. Como sintetiza: “Claro que eu tenho saudades da minha filha, eu tenho. A Vida foi a única que morreu e que deixou muita saudade.”409 Nos três primeiros anos após a morte de Vida (entre os anos de 2003 e 2005), Duduco participou do show do “Rei” Roberto Carlos da Rede Globo em homenagem a Vida. Ia ao Rio de Janeiro assistir pessoalmente, no Estádio do Maracanãzinho, sendo que em uma das ocasiões acabou inclusive ganhando uma rosa do “Rei”. Quando Roberto Carlos subia ao palco, já começava a chorar e assim seguia até o final, quando cantava a música que Vida mais admirava. Como Duduco disse, ia para se “desmanchar a chorar”. Enfim, assim foram vida, morte e post mortem da milagreira Vida Machado. Nove anos vividos intensamente com momentos de alegrias, dor, sofrimentos, emoções, angústias, aprendizagens e retomadas, quase todos, ao lado de seu pai Duduco e irmãos da creche.

408 Ibidem. 409 Ibidem. 197

4 ESPAÇO DE DEVOÇÕES E OFERENDAS: OS TÚMULOS DAS MILAGREIRAS DO CEMITÉRIO DO ITACORUBI

4.1 CEMITÉRIO MUNICIPAL SÃO FRANCISCO DE ASSIS: QUASE UM SÉCULO DE HISTÓRIA

O cemitério Municipal São Francisco de Assis, mais conhecido com Itacorubi é o cemitério público mais antigo da cidade de Florianópolis. Inaugurado no mês de novembro de 1925, no antigo bairro das Três Pontes, o cemitério foi criado com o propósito de instalar o novo campo santo da capital e retirar o antigo cemitério público da cidade, localizado na cabeceira da Ponte Hercílio Luz. De acordo com a historiadora Elisiana Trilha Castro410, que pesquisou a transferência do cemitério na década de 1920, a cidade de Florianópolis passava por significativas transformações durante este período, como construções de novas ruas e casas. E nesse contexto se fez necessária a “mudança do cemitério público, que muitos consideravam mal localizado na entrada da cidade e no alto de um morro, como também lotado, desordenado, sendo alvo de reclamações e pedidos de transferência.”411 Tal cemitério público era bastante antigo, inaugurado ainda na primeira metade do século XIX, no ano de 1841, quando os enterramentos na cidade ainda eram feitos nas igrejas e suas imediações, como nas suas paredes ou chão e de preferência, próximos dos altares e dos santos. Contudo, depois de oitenta anos instalado, Florianópolis cresceu e se urbanizou e ter um cemitério no morro do Vieira, localização privilegiada, na entrada de Florianópolis (conforme Imagem 55), se tornou um transtorno. E tal problema foi agravado no início do século XX devido à construção da Ponte Hercílio Luz, que passaria com suas vidas pelo meio do cemitério.

Imagem 55 – Antigo cemitério Público durante a construção da Ponte Hercílio Luz.

410 CASTRO, Elisiana Trilha. Aqui Jaz um cemitério: a transferência do cemitério Público de Florianópolis, 1923-1926. 2004. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) - Centro de Ciências Humanas e da Educação, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2004. 411 Ibidem. 198

Fonte: CASTRO, 2004412.

Com a construção da ponte Hercílio Luz, foi brevemente projetada a implantação do novo cemitério, que começou a funcionar no ano de 1915, apesar das transferências começarem somente no ano de 1923, como aponta Elisiana Trilha Castro413: “Como este ficava longe do centro da cidade [...] ainda se continuava a sepultar no antigo cemitério e o novo cemitério ficou atendendo, então, ao Bairro das Três Pontes. Somente em 1923 é dado início aos trabalhos de transferência”. E assim o Cemitério São Francisco de Assis (Itacorubi), anteriormente conhecido como o cemitério das Três Pontes, foi recebendo seus primeiros túmulos. O primeiro sepultamento registrado foi no dia 18 de novembro de 1925, de Waldemar Viegas, curiosamente o homem que projetou o próprio cemitério, conforme reportagem do jornal Hora de Santa Catarina.414 A opção pela instalação do cemitério no bairro das Três Pontes foi assim pensada, pois era significativamente afastado do centro urbano. Deslocar o cemitério para fora dos centros urbanos não é uma especificidade da capital. Entre o fim do século XIX e início do XX,

412 CASTRO, 2004, op. cit., p. 20. 413 Ibidem, p. 26. 414 STINGHEN, Caroline. A história escondida do cemitério São Francisco de Assis. Hora de Santa Catarina, Florianópolis, 02 nov. 2016. Disponível em: . Acesso em 10 nov. 2016. 199

parte dos cemitérios brasileiros foi retirado das proximidades das igrejas e dos centros das cidades e deslocado para regiões afastadas das habitações e do comércio. Isso ocorria, dentre outros motivos, devido o adensamento urbano e a especulação de áreas centrais, além da preocupação e o medo que se tinha com a teoria dos miasmas415, sendo que os odores de putrefação e as sujeiras de fora “[...] deveriam ser eliminados para não disseminarem doenças.”416 Os cemitérios eram considerados focos de alto índice de doenças que os cadáveres poderiam causar. Com isso, por motivos sanitários e preceitos higienistas, principalmente do início do século passado, os cemitérios foram transferidos para locais mais arejados e distantes dos centros urbanos. Quando inaugurado, o cemitério do Itacorubi era amplo e organizado, contando com um:

sistema de vias internas para circulação de veículos e pedestres, quadras e lotes numerados, quadras de sepulturas perpétuas e rotativas, ossuário comum, necrotério, sanitários públicos e belo ajardinamento. Com alamedas identificadas por A, B, C, D, E e espaços para as Irmandades particulares como a de Nossa Senhora do Parto, a de Nosso Senhor do Espírito Santo, a de Nossa Senhora do Rosário, a de Nossa Senhora da Conceição, a da Ordem Terceira, como também para a Comunidade Evangélica Alemã, o cemitério do Itacorubi foi devidamente planejado para ter aproximadamente 32 quadras, cada qual com sepulturas, perpétuas, arrendadas e temporárias, divididas para uso de adultos, menores e indigentes. [...] Com ruas e avenidas

415 Miasmas tem como significado “Emanação mefítica proveniente de matérias pútridas ou de moléstias contagiosas.” In: MICHAELIS. In: Dicionário online Michaelis UOL, 2010. Disponível em: . Acesso em: 15 set. 2016. 416 GÓMEZ, Carlos Minayo; MINAYO, Maria Cecília de Souza. Enfoque ecossistêmico de saúde: Uma estratégia transdisciplinar. Interfacehs Revista de Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Meio Ambiente, 2006. Disponível em: . Acesso em: 15 set. 2016, p. 2. 200

arborizadas e rampas gramadas, a nova morada dos mortos contava com uma avenida de seis metros na parte gramada e nove metros na parte arborizada, cortando o cemitério e as suas margens, 62 lotes de 25 metros quadrados para túmulos de grande tamanho.417

Nas primeiras décadas de funcionamento, sua área compreendia 17.975 metros quadrados, tendo a capacidade para abrigar três mil e quatrocentas sepulturas e cem lotes para jazigos perpétuos. No decorrer dos anos passou por algumas ampliações e atualmente possui 93.270 m², sendo que no ano de 1997 já contava com “12 mil sepulturas e 47.851 pessoas enterradas”, conforme contabiliza a geógrafa Edna Teresinha da Rosa.418 Em 1997, um evento que se tornou polêmico no cemitério foi a divulgação do esgotamento do cemitério e impossibilidade de construir novas sepulturas. Com isso, o então secretário da SUSP, João da Bega “autorizou, em outubro de 1997, a utilização de parte dos terrenos das irmandades, abrindo vagas para aproximadamente 150 novas sepulturas, além de outras 150 vagas que surgiram como o término da remoção de um bloco rochoso no interior do cemitério em 2001.”419 Atualmente, com um total de trinta e sei mil unidades tumulares, o cemitério não possui novos terrenos para construir outras sepulturas, tentando suprir o esgotamento através das exumações, o que não é suficiente, tendo em vista que o número de pessoas que é sepultada todos os meses é significativamente superior ao de exumações, chegando a uma média de quatro sepultamentos por dia, ou seja, mais de cem sepultamentos por mês, conforme pontuou em entrevista o coveiro Enio Vilpert420.

Imagem 56 – Cemitério São Francisco de Assis.

417 CASTRO, 2004, op. cit., p. 65-66. 418 ROSA, Edna Teresinha da. A relação das áreas de cemitérios públicos com o crescimento urbano. 2003. Dissertação (Pós-Graduação em Geografia) - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2003, p. 49. 419 ROSA, op. cit., p. 49. 420 VILPERT, op. cit. 201

Fonte: Acervo pessoal da autora, 2015 e 2016.

Em uma reportagem do Jornal Diário Catarinense do ano de 2016, o secretário executivo de Serviços Públicos, Eduardo Garcia, destacou que “existem vagas públicas em gavetas, que são cedidas por um período de quatro anos, prazo em que as famílias precisam adquirir um jazigo ali ou em outro cemitério para realizar a exumação e transferência.”421 Após o período de quatro anos, muitos dos restos

421 WOLFF, Gabriela. Faltam vagas nos cemitérios de Florianópolis. Diário Catarinense, Florianópolis, 29 abr. 2016. Disponível em: 202 mortais são exumando e vão, geralmente, para o ossuário do cemitério, cedendo espaço para outros sepultados. Assim, com uma média de 100 sepultamentos por mês, a maioria dos corpos é sepultada nestas vagas públicas ou se destinam aos túmulos já construídos. Ainda referente à questão da ampliação de vagas para novos sepultamentos, nos dias de hoje, o cemitério passa por pequenas expansões para tentar sanar, de alguma forma, o problema. No ano de 2016, por exemplo, o cemitério passou por “uma reforma que vai abrir mais 60 gavetas. Também está em curso um processo licitatório para mais 360 gavetas.”422 Uma nova alternativa está na desapropriação de unidades tumulares que se estão abandonadas a alguns anos, de modo que a atual gestão administrativa do cemitério vem realizando um levantamento com os familiares dos falecidos para verificar cada uma das situações. Além da falta de espaço para abrigar novos sepultamentos, outro problema frequente no cemitério do Itacorubi é a situação de abandono, destruição das sepulturas e falta de manutenção. Muitos túmulos estão em regiões “íngremes, assim como túmulos parcialmente abertos, inclusive com ossos humanos expostos, o que demonstra a falta de manutenção do local.423 Nos últimos anos, as poucas reportagens dos jornais locais que mencionam o cemitério do Itacorubi sinalizam apenas tais assuntos. Com manchetes como “Maior cemitério de Florianópolis tem mato alto e infestação de caramujos”424 e “Situação é crítica no cemitério do Itacorubi, em Florianópolis”425, a depredação dos túmulos

. Acesso em: 15 nov. 2016. 422 WOLFF, op. cit. 423 MACHADO, Patricia Oening. Levantamento de culicideos em criadouros artificiais nos cemitérios públicos da Ilha de Santa Catarina. 2012. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Ciências Biológicas) - Centro de Ciências Biológicas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2012. 424 Maior cemitério de Florianópolis tem mato alto e infestação de caramujos. In: G1 SC, 20 out. 2015. Disponível em: < http://g1.globo.com/sc/santa- catarina/noticia/2015/10/maior-cemiterio-de-florianopolis-tem-mato-alto-e- infestacao-de-caramujos.html>. Acesso em 10 nov. 2016. 425 SCHIEST, Saraga. Situação é crítica no cemitério do Itacorubi, em Florianópolis. Notícias do Dia, Florianópolis, 25 out. 2011. Disponível em: . Acesso em 10 nov. 2016. 203

e a falta de manutenção das vias que dão acesso às unidades tumulares são descritas, conforme destaca-se: “A situação do cemitério é complicada, por todos os lados restos de flores e até de caixões estão largados pelo chão.”426 Conforme supracitado, a infestação de caramujos africanos foi outro problema constatado a partir do ano de 2015: “A menos de duas semanas do Dia de Finados, celebrado em 2 de novembro, o maior cemitério de Florianópolis está tomado por mato, que em alguns pontos chega a ultrapassar a altura dos túmulos. Há lápides quebradas, lixo jogado e até uma infestação e caramujos africanos – que podem transmitir doenças.”427 Enfim, quando os dias de Finados se aproximam, tais temas ganham as páginas dos jornais e familiares e amigos dos sepultados ficam aflitos e indignados com a situação. Contudo, no decorrer do ano, os problemas de manutenção são frequentes, tendo em vista o pequeno número de funcionários contratados para cuidar do maior cemitério público da cidade, como salientaram em entrevista os coveiros João Ferreira de Lima428 e Enio Vilpert429. O cemitério possui apenas seis funcionários contratados, três para cada período do dia, que devem cuidar de vários trabalhos, como enterros, exumações, limpezas e registros. De acordo com Enio Vilpert430, o coveiro mais antigo em exercício do cemitério do Itacorubi, tendo iniciado suas atividades no ano de 1978431, a visitação é mais intensa somente em datas especiais, como Dia de Finados, das mães, dos pais, das crianças, Páscoa e Natal. No Dia de Finados, de acordo com Vilpert, o movimento é intenso (Imagem 57), chegando a mais de quarenta mil visitantes. Porém, reforça que nas décadas passadas as visitas eram mais frequentes,

426 SCHIEST, op. cit. 427 G1 SC, op. cit. 428 LIMA, op. cit. 429 VILPERT, op. cit. 430 Ibidem. 431 Durante estes trinta e nove anos de profissão, uma lembrança que o coveiro Enio Vilpert relatou na entrevista que jamais esquecerá foi o sepultamento das quarenta e três vitimas do acidente aéreo da Transbrasil, no mês de abril de 1980, tema este já abordado no capítulo 2. Com sepultamentos realizados durante todo o dia, inclusive a noite, reforça que o enterro das irmãs Koerich foi o que mais movimentou esses dias de muito trabalho e imensa comoção regional. 204 sobretudo, dos mais jovens, sendo que o número de visitas é atualmente maior, pois o número de sepultados no cemitério aumentou substancialmente. Anualmente, as reportagens jornalísticas destacam o movimento do cemitério do Itacorubi durante o Dia de Finados, caracterizando-o como um dos maiores e mais movimentados do estado. No ano de 2006, por exemplo, o Diário Catarinense contabilizou mais de 50 mil pessoas visitando seus entes queridos.432

Imagem 57 – Cemitério São Francisco de Assis durante os dias de Finados.

432 BARBOSA, 2006, op. cit., p. 24. 205

Fonte: Acervo pessoal da autora, 2013 a 2016.

Já o coveiro João Ferreira de Lima433, que trabalha no local há mais de duas décadas, relatou que raras são as pessoas que visitam o cemitério semanalmente, como uma senhora que todos os sábados visita o túmulo de seus entes queridos. Lembra que antigamente, quando iniciou suas atividades, esta prática era mais comum. Quanto às sepulturas mais visitadas do cemitério, de acordo com o coveiro Vilpert434, os túmulos de ex-governadores do Estado, como Celso Ramos e Vidal Ramos e da milagreira Vida Machado são as mais procuradas durante todo o ano. Conforme salientaram durante entrevista, várias pessoas pedem informações sobre a localização exata dos túmulos das milagreiras, sobretudo, nos dias dos Finados, de modo que algumas vezes os coveiros levam os visitantes até as sepulturas. Além dos túmulos mais visitados, muitos nomes conhecidos da cidade estão presentes nas lápides do Itacorubi, como “o túmulo do médico e ex-deputado Paulo Fontes. [...] Ali estão ainda enterrados Heitor Blum, ex-prefeito de Florianópolis; o ex-governador Jorge Lacerda; e a professora, jornalista, escritora e deputada Antonieta de Barros.”435 Outra peculiaridade é a presença do cemitério da Comunidade Alemã de Florianópolis, localizado dentro do próprio cemitério do Itacorubi, separado apenas por um portão, ficando na quarta alameda à direita da entrada principal, ocupando oito quadras, sendo administrado pela Associação ACCAF (Associação Cemitério da Comunidade Alemã de Florianópolis).436 Este cemitério da Comunidade Alemã de Florianópolis se destaca na paisagem do Itacorubi, pois entre os túmulos estão alguns “bastante diferenciados dos demais. Estátuas de anjos, cruzes, símbolos da maçonaria. Um pouco sombrio, até mesmo.”437 Em suma, é quase um século de história de enterros, velórios, cortejos e exumações que faz do cemitério do Itacorubi um espaço fúnebre de rituais religiosos, devoções, dor, luto e saudade. Como bem resume a historiador Elisiana Trilha Castro438:

433 LIMA, op. cit. 434 VILPERT, op. cit. 435 STINGHEN, op. cit. 436 CASTRO, 2008, op. cit. 437 STINGHEN, op. cit. 438 CASTRO, 2004, op. cit., p. 72 206

Hoje [o cemitério Itacorubi] está envolto pela cidade que cresceu e esbarrou na necrópole e mesmo estando tão próximo, parece-me que os que habitam a sua volta, já não se preocupam mais com este vizinho. Entre os mais de 50 mil sepultados, repousa bem próximo ao muro uma menina: o túmulo negro traz em cima sua imagem deitada em bronze439, a dor da separação fez de sua imagem a figura eternizada do pesar pela perda daqueles a quem amamos. A sua sepultura quase no muro, pode ser vista da janela do vizinho, mas este parece não se importar com a imagem: a visão do cemitério e seus ares já não lhe causam medo, sua proximidade já não o adoece, a morte por trás dos muros já não lhe causa tanta repulsa. Ele mora ao seu lado e talvez finja que não o vê, afinal, a morte tão próxima encontra-se exilada apesar de muitas vezes ser, a vizinha mais próxima.

4.2 COM VISITAS AO CEMITÉRIO E PLACAS DE EX-VOTOS: O POST MORTEM DAS IRMÃS KOERICH

Após o acidente aéreo e a morte das irmãs Jane e Rosemary Koerich, as visitas as suas sepulturas no cemitério do Itacorubi se tornaram frequentes, tanto dos familiares, como de amigos e desconhecidos que procuravam o túmulo para orar, agradecer e fazer pedidos às sepultadas. De acordo com o pai, Antônio Obet Koerich, nos primeiros anos após a morte das filhas, a sua visita à sepultura era cotidiana, como reforça:

Nos primeiros tempos a gente visitava quase que diariamente. Eu ia após o trabalho. Encerrava o expediente e eu passava por lá. Eu saía lá do cemitério umas oito, nove horas da noite. Eu ia marcar com a minha presença. Sempre que eu tinha a oportunidade, eu levava uma rosa do nosso jardim. Eram aquelas flores que tinham um

439 A autora Elisiana Trilha Castro se refere a sepultura de Vida Machado. 207

determinado simbolismo. O nosso jardim na Bocaiúva sempre tinha rosas. Quero te dizer o seguinte, não tinha um sábado sem missa, como não tinha também um sábado e domingo sem visita ao cemitério. Isso deve ter acontecido até uns vinte anos atrás. Permanentemente aos sábado era religioso. Saía de casa, para o cemitério e missa. Casa, cemitério e igreja. 440

Em datas especiais, como Dia de falecimento, nascimento, Finados e Natal, a sepultura onde estão sepultadas as irmãs e Sônia era constantemente visitada, como reforça Antônio Obet Koerich441, sobretudo, no Dia de Finados. Ele destaca que “permanentemente tinham pessoas”. Tais constatações também são reforçadas pelos coveiros do cemitério do Itacorubi, Enio Vilpert442 e João Ferreira de Lima443, que relataram em entrevista que a sepultura das irmãs Koerich são bastante visitadas pelos familiares durante o Dia de Finados.

Imagem 58 – Sepultura das irmãs Koerich no Dia de Finados do ano de 2014.

440 KOERICH, op. cit. 441 Ibidem. 442 VILPERT, op. cit. 443 LIMA, op. cit. 208

Fonte: Acervo pessoal da autora, 2014.

Durante a década de 1980, especialmente nestas datas comemorativas, como o Dia de Finados, além das visitas durante o dia, à noite eram realizadas serenatas para as irmãs, sempre organizadas pela mãe, Ony Furtado Koerich, como descreve Antônio Obet Koerich.444 Os participantes da serenata eram todos familiares, amigos e conhecidos das irmãs, sempre convidados pela senhora Ony. Os seresteiros levavam

444 KOERICH, op. cit. 209

instrumentos musicais, como violão e acordeão para tocarem e cantarem em frente à sepultura das filhas, homenageando-as e recordando-as. As serenatas no cemitério, como salienta Antônio Obet Koerich, era uma continuidade das serenatas realizadas anteriormente na casa da família, quando as filhas se reuniam com os amigos e cantavam: “quando as meninas eram mais jovens, com muita frequência, tinham pessoas que iam fazer serenata para nós. E aquilo ali foi a continuidade das serenatas que eles faziam para nós, desenvolvendo depois para lá. Havia um convite para aqueles próprios seresteiros para fazerem presença.”445 As serenatas também são recordadas pelo coveiro Enio Vilpert446, que lembra que o movimento noturno e as músicas eram vistos com estranheza pelos que passavam próximo ao cemitério do Itacorubi. Tal fato é reforçado pelo pai, Antônio Koerich447, que relata: “As primeiras serenatas que foram feitas provocaram certo tipo de desconfiança. Cantar para quem já é morto? É uma coisa diferente, cantar em cemitério”. De acordo com o senhor Antônio, as serenatas foram feitas durante aproximadamente dez anos, quase sempre em datas especiais, como Finados, aniversário de morte e dia de Natal. Durante o ano, eram feitas algumas serenatas, conforme a organização da senhora Ony, sendo que estas findaram com o passar dos anos. As visitas à sepultura em datas não comemorativas eram menores, mas em várias ocasiões em que o senhor Antônio Obet Koerich esteve no cemitério, encontrou amigos e mesmo desconhecidos que oravam e faziam pedidos às sepultadas, além de depositarem flores, acenderem velas e deixarem as placas de ex-votos por graças alcançadas pelas irmãs. As placas de ex-votos às irmãs perfazem atualmente trinta e três, com placas deixadas sobre a sepultura desde o ano de 1982. Das trinta e três placas, quatorze são datadas, algumas com data completa e outras apenas com o mês e/ou ano, conforme listagem apresentada a seguir:

 22/04/1982;  01/02/85  08/1997;

445 Ibidem. 446 VILPERT, op. cit. 447 KOERICH, op. cit. 210

 22/08/2001;  2001;  07/01/2002;  14/02/2008;  14/02/2008;  2008;  02/08/2010;  28/08/2010;  09/06/2011;  08/12/2011  07/07/2015

Além das datas, algumas placas possuem mensagens de reconhecimento às graças alcançadas, além de outras com iniciais do nome das pessoas que receberam as graças, conforme se observa nas transcrições das placas a seguir:

 A uma graça alcançada  Por uma graça alcançada  Graças alcançadas  Rose e Jane, obrigada  Rose e Jane! Obrigado pela graça alcançada  Agradeço uma graça recebida  Obrigada pela graça alcançada  E.S  C.E  J e R [iniciais de Jane e Rosemary]  J.H.F.J [na sepulturas existem duas placas com estas mesmas iniciais]  D.P.S [na sepulturas existem duas placas com estas mesmas iniciais]

Para o senhor Antônio Obet Koerich, a manifestação através das placas de ação de graça iniciaram poucos anos após a morte de suas filhas, como se constata através de uma placa datada de 1982. Para a família, tais placas de ex-votos se caracterizaram como um “choque”, como também foi a morte e, posteriormente, as seis mensagens psicografadas pelas filhas. De acordo com o pai, poucas foram as pessoas que ele viu depositar as placas na sepultura, a grande maioria, indivíduos desconhecidos da família. Reforça inclusive que ele mesmo realiza 211

pedidos, mas nunca colocou placas, invocando as filhas quase que diariamente, atentando que: “Agora se elas me atendem, não sei. Possivelmente, quando eu estou em um sentimento de felicidades elas me atendem [...] E algumas vezes eu já pedi lá no cemitério. ‘Jane e Rose, estou vendo tantas placas aí, eu estou precisando da intercessão de vocês’. Eu vejo que é uma situação natural.”448 Nilson Nelson Machado449, pai da milagreira Vida Machado, foi um dos primeiros a colocar as placas de ex-votos no túmulo das irmãs Koerich. Acredita que tenha depositado a placa ainda no ano de 1980 ou 1981, logo após o falecimento. Como acompanhou toda a tragédia da queda do avião, tendo em vista que trabalhava no Hospital de Caridade, local que recebeu os sobreviventes, além de conhecer as irmãs de eventos da cidade e a mãe, Ony, Duduco esteve presente no velório e enterro. Como visitava o cemitério com frequência, costumava ir até a sepultura das irmãs, tendo em vista que sentiu muito pela perda dos pais Antônio e Ony. Além de rezar pela alma das irmãs, certo dia resolveu fazer um pedido às irmãs, conforme detalha em seu relato:

Aquela tristeza da Ony e Toninho, perder as duas filhas. Daí eu fui no enterro delas e vi todo aquele sofrimento. Eu como já costumava ir ao cemitério, eu comecei a visitar a sepultura delas. Daí eu comecei a frequentar a sepultura delas. Através daquele sofrimento da Ony, de muita gente visitando, daí eu pensei, eu vou pedir pra elas. Aí pedi um dia. E eu naquela minha crença acreditei que tinha alcançado tal graça, né. E botei a placa lá, eu acho que naquele mesmo ano que elas morreram. E se não foi naquele ano, foi no seguinte, em 1981. Se não me engano só tinha uma placa lá, e eu coloquei a minha depois.450

Imagem 59 – Placas de ex-votos na sepultura das irmãs Koerich.

448 KOERICH, op. cit. 449 MACHADO, 2016, op. cit. 450 MACHADO, 2016, op. cit. 212

Fonte: Acervo pessoal da autora, 2013 e 2016.

No decorrer dos 35 anos de falecimento, de acordo com o senhor Antônio Obet Koerich, já foram encontradas placas de vários materiais, como madeira e papelão, que acabaram se deteriorando com o passar 213

dos anos, sendo que as placas de mármore foram as únicas que resistiram às décadas, conforme descreve:

Tinham placas de madeira. Você pegava uma placa de granito ou uma placa de madeira pintada com as iniciais de fulano de tal, uma graça alcançada. Outras vezes eu me lembro inclusive que foi feito um tipo de cartaz também pequeno com um tipo de papelão mais grosso. E aquilo com o tempo se deteriorou. Então, aquelas placas que lá estão são aquelas que resistiram ao tempo e outras surgiram. Algumas com madeira de lei mais esculpida, outras em cerejeira, só que com o tempo o material se deteriora. O granito você conserva, não se desfaz de uma hora para outra.451

Quanto às visitas à sepultura das filhas, de acordo com o senhor Obet Koerich, atualmente estas não são tão intensas quanto nos primeiros 20 anos, motivado pela insegurança que o cemitério do Itacorubi oferece. Contudo, reforça que as visitas com a esposa Ony costumam ser mensais: “Diminuímos a frequência pela falta de tranquilidade no cemitério, não te oferece mais segurança. Eu tenho medo de ir sozinho [...]. Mas, às vezes, passando por ali e eu digo: ‘Vamos ver as meninas?’ É a maneira como a gente se refere.”452 Entretanto, apesar das visitas serem mensais, o cuidado e preservação do túmulo é semanal, havendo um funcionário da família que realiza a limpeza e conservação da unidade tumular em alguns sábados do mês, conforme relatos dos coveiros Enio Vilpert453 e João Ferreira de Lima.454 Em síntese, são visitas à sepultura, serenatas no cemitério, placas de ex-votos e pedidos às irmãs falecidas que permeiam o post mortem de Jane Furtado Koerich e Rosemary Furtado Koerich Noceti.

4.3 COM BILHETES, PLACAS E DEVOÇÕES: O CULTO AO TÚMULO DE VIDA MACHADO, A MENINA MILAGREIRA

451 KOERICH, op. cit. 452 Ibidem. 453 VILPERT, op. cit. 454 LIMA, op. cit. 214

A primeira placa foi de uma estudante da universidade. Foi uma moça da universidade que botou. Daí depois daquilo dali eu comecei a ver outros universitários lá também, não sei se essa mulher passou a conversar e passar a diante. E de vez em quando eu vejo muito universitário lá. Bilhetes e carta que eles botam.455

Conhecida como a milagreira dos estudantes do cemitério do Itacorubi, Vida Machado começou a ser intercedida no mesmo ano de sua morte, somente um mês depois, quando ocorreu o vestibular da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Conforme supracitado, a primeira devota a colocar uma placa de ex-votos foi uma estudante que foi aprovada no vestibular no curso de medicina. Esta viu a sepultura de Vida durante um enterro uma semana antes de prestar o vestibular e acabou pedindo a falecida, mesmo sem conhecer sua história e não possuir nenhum registro de milagres. Quando a graça foi recebida, isto é, após passar no vestibular, solicitou aos coveiros o contato de algum familiar de Vida para pedir permissão para colocar a placa. Após contatar Duduco, que a autorizou, a primeira placa de ex- voto foi depositada no túmulo. A partir de então, dezenas de placas de ex-votos foram deixadas junto à sepultura. Placas em gratidão a aprovação em provas, como vestibular, concurso e exames finais escolares eram as mais frequentes. Contudo, a grande maioria delas foi dispensada, tendo em vista que seu pai, Duduco, jogou muitas delas fora, como relata: “Tirava, tinha muita placa. Daí eu me tornei evangélico e passei a ter outra visão, eu peguei e disse: - Ah não, isso daí, isso daí vai virar uma idolatria. Daí eu comecei a tirar as placas. Mas depois nem fui mais lá e não tirei mais.” 456 De acordo com Duduco, além de ter desprezado muitas das placas, vários dos devotos, como uma forma de estar mais perto da milagreira, também levavam placas para casa, pois em algumas ocasiões chegava e se deparava com um número inferior ao que tinha na visita anterior: “Parece que semana passada tinha vinte placas e agora tem dez, eu dizia assim. Será que alguém tá levando para outra sepultura? Daí eu

455 MACHADO, 2016, op. cit. 456 MACHADO, 2016, op. cit. 215

peguei e vi que era tradição de algumas pessoas. Eu vou levar para casa, que é melhor para orar, pensam.”457 Nas numerosas visitas que fiz ao túmulo de Vida, entre os anos de 2011 e 2016, encontrei um número variado de placas de ex-votos, sendo todas elas feitas em granito, com inscrição em tinta. No ano de 2011, primeira vez que estive na sepultura, havia somente duas placas e no transcorrer dos seis anos, variaram entre duas a dez placas. Atualmente, existem apenas cinco placas, nenhuma delas datada ou identificada, possuindo apenas as seguintes mensagens: “Uma graça alcançada” (quatro das placas possuem esta mesma mensagem) e “Graça alcançada” (apenas uma delas com esta mensagem). Na Imagem 60, na primeira foto, do ano de 2011, observam-se apenas duas placas, enquanto que as duas fotografias abaixo, de novembro 2016458, existem as cinco placas encontradas atualmente:

Imagem 60 – Placas de ex-votos na sepultura de Vida.

457 Ibidem. 458 O Dia de Finados de 2016 foi a última visita que realizei ao túmulo de Vida. 216

Fonte: Acervo pessoal da autora, 2011 a 2016.

Além dos casos de pedidos de estudantes, os de saúde também são muito comuns. Duduco recorda que uma das primeiras placas depositadas foi de uma mãe que estava com sua filha internada na UTI do Hospital Infantil Joana de Gusmão, em estado gravíssimo. Mesmo sem esperanças, pois os médicos já haviam dado seu parecer negativo, foi até a sepultura de Vida e pediu recuperação a sua filha. A menina se salvou e como agradecimento, sua mãe visita a sepultura de Vida anualmente, presenteando-lhe no dia de aniversário com um arco de coroa de flores feito por ela, que coloca na estátua de Vida. Mais um caso de pedido de saúde à Vida é de outra mãe, do bairro do Campeche, em Florianópolis. Como sua gravidez foi de risco e 217

tinha poucas chances de manter sua gestação até o período que sua filha pudesse nascer saudável, foi até Vida para fazer uma promessa. Caso a graça fosse atendida e sua filha nascesse bem, homenagearia Vida colocando o mesmo nome em sua filha. E quando nasceu, assim o fez, registrando sua filha de “Vida”. Mas, não são apenas as buscas de cura e recuperação que os devotos solicitam à menina Vida. Conseguir uma boa oportunidade de emprego também é um pedido comum entre os visitantes do túmulo, como reforça Maria Aparecida da Fonseca Luz.459 Segundo ela, que é frequentadora assídua do cemitério do Itacorubi, por possuir o túmulo do marido ao lado ao de Vida, um dos casos de devotos que mais recorda é de um jovem que alcançou uma vaga de emprego graças a um pedido feito à Vida:

Muita gente vai lá botar placa. Tinha um rapazinho, moreninho, que todo ano vai lá. Bota uma flor, uns pirulitos e umas coisas. Disse pra mim que ele estava desempregado e ele foi ali e arrumou emprego. Eu pensei até que ele era algum filho do Duduco, mas daí eu conversei com ele. Daí ele disse que não, que nem conhecia. Que só veio ali porque ele entrou com desespero ali no cemitério e viu aquela criança, aquela estátua ali e pediu e começou a ir ali. E disse que todo ano ele vai ali, porque recebeu uma graça. É a fé, cada um com a sua fé.460

Determinados exemplos de devotos merecem maior destaque, como é o caso de uma moradora do bairro Córrego Grande, de Florianópolis, que não quis se identificar. De acordo com a mãe da devota, sua filha alcançou uma graça de Vida e partir de então, passou a cultuá-la diariamente. No quarto da jovem filha, possui fotos de Vida, no carro está gravado o nome da milagreira, além de usar vários acessórios estampados com o nome “Vida”, como camisetas e pulseiras. A devota diz que sempre que precisa de auxílio, graças e conselhos, conversa com a milagreira, reforçando que todos os pedidos já feitos foram alcançados e que sua vida e destino estão nas mãos de Vida Machado.

459 LUZ, op. cit. 460 Ibidem. 218

Outro caso já citado anteriormente e que merece destaque é a devoção que o ator Carlos Eduardo Bouças Dolabella Filho, popularmente conhecido como Dado Dolabella, tem a Vida. Como já mencionado, o ator conheceu a menina no ano de 2001, durante uma internação no Hospital Infantil Joana de Gusmão. Em uma entrevista em um programa de televisão, Dado falou sobre o caso de Vida e a fé que tinha na menina, como lembra Duduco: “Disse que tinha muita fé nessa menina. E que sentia a presença dela, ele falou na televisão. Falou que era uma menina que dava muita força pra ele, porque é espírita, né.”461 Alguns parentes de Vida, como os irmãos e as tias (irmãs de Duduco) são bastante devotos dela, como também vizinhos e pessoas da comunidade que a conheciam e acompanhavam seus dias de luta contra a doença. De acordo com Duduco, muitos dos seus amigos também intercedem por ela, como “amigos meus de carnaval, que dizem: - Ai Duduco, esses dias eu estava numa situação tão complicada e pedi para Vida, a sua filha. Meu Deus! Me atendeu na hora. Aquela menina tem um poder, eles dizem assim. Eles pedem, acreditam, né.”462 Até hoje, segundo Duduco, ainda é frequentemente surpreendido na rua por pessoas que ao encontrá-lo, dizem que pedem à Vida e que visitam sua sepultura para orar pela menina e agradecer às graças alcançadas. O próprio Duduco, enquanto era praticante do espiritismo e catolicismo, pedia a sua filha e acreditava que as graças eram alcançadas. No entanto, adverte que nunca colocou placas para Vida, como colocou anos antes em vários milagreiros ao redor do Brasil, pelas graças alcançadas para a Vida, conforme referido anteriormente. Duduco lembra que sua crença na filha foi intensificada quando recebeu mensagens psicografadas463 da Vida durante algumas visitas realizadas ao Grupo Espírita da Prece - GEP, localizado na cidade de Uberaba, em Minas Gerais: “Eu acreditei, porque recebi cartas da Vida. Eu fui lá em Uberaba, eu fui frequentador assíduo de Uberaba. Aí eu recebi umas cinco, seis cartas da Vida, logo depois da morte. Aí eu recebia e achava válido ir lá no túmulo, cantar e conversar com ela.”464

461 MACHADO, 2016, op. cit. 462 MACHADO, 2016, op. cit. 463 Tais mensagens psicografadas não foram localizadas, tendo em vista que Duduco não as possui mais e o Grupo Espírita da Prece – GEP não as disponibilizou. 464 MACHADO, 2016, op. cit. 219

De acordo com Maria Aparecida da Fonseca Luz465, o túmulo de Vida é sempre movimentado e cheio de oferendas. Devido o fato do túmulo do marido ser ao lado ao de Vida e por visitar o cemitério em várias datas especiais e ficar em frente ao túmulo do marido o Dia de Finados quase que inteiro, acompanhou anos de peregrinação dos devotos, como lembra:

É muito movimentado, a sepultura dela é sempre cheia. Nos Finados, chega um, chega outro. Eu vou para lá de manhã e vejo, até a hora que eu saio de lá. Eles acendem muita vela, muita bala, pirulito. Por causa de Cosme e Damião, né. Além das placas que mandam fazer. Passam mais de duzentas pessoas por ali nos Finados. Fazem oração, mas tudo individual, não é em grupo não. Ano passado eu não me encontrei com o Duduco, mas quando eu estava lá muita gente acendeu vela e rezou.466

As oferendas depositadas no túmulo de Vida Machado, relatadas acima por Maria Aparecida Luz, são frequentes. Importante mencionar que nos seis anos que realizei visitas ao cemitério, entre 2011 e 2016, presenciei dezenas de oferendas deixadas em seu túmulo, sobretudo, os doces, como pacotes abertos e fechados de pipoca doce, balas, açúcar (em um das ocasiões, o túmulo estava repleto de abelhas, tendo em vista que depositaram o açúcar sobre a própria escultura de Vida, como pode ser observado na Imagem 61, além de bolachas recheadas e pirulitos, conforme imagem a seguir:

Imagem 61 – Oferendas deixadas no túmulo de Vida.

465 LUZ, op. cit. 466 Ibidem. 220

Fonte: Acervo pessoal da autora, 2011 a 2016.

As oferendas de doces podem ser interpretadas de algumas maneiras. Para muitos fiéis, deixar os doces para a milagreira, que faleceu ainda criança, é uma forma de agradá-la e um meio de agradecer pelas graças alcançadas. Para outros, é uma oferenda às entidades dos cultos afro-brasileiros (Orixás) e uma forma de agradecer São Cosme e Damião e o erês467. Deve-se salientar que as oferendas são encontradas

467 De acordo com Júlio César Tavares Dias São Cosme e Damião “foram nas religiões afro-brasileiras sincretizados com os erês (espíritos de crianças)”. In: DIAS, Júlio César Tavares. Doce de Cosme e Damião: considerações sobre um 221

durante todo o ano e não apenas nos dias 27 de setembro (Dia de Cosme e Damião) e 12 de outubro (dia das crianças) datas mais comum para deixar os doces a São Cosme e Damião. Para Vagner Gonçalves da Silva468, tais oferendas de alimentos são para os praticantes da Umbanda um meio de “fortalecê-los, simbolicamente, nutrindo-os de atenção, respeito, reconhecimento, amor e confiança”. Enfim, como bem destaca o historiador Lourival Andrade Júnior469, as oferendas no túmulo são para muitos devotos dos milagreiros de cemitério a “manutenção de sua tradição; para outros, a necessidade de demonstrar agradecimento e empenho em sua devoção”. De acordo com Duduco, muitos desses doces oferecidos a Vida são comidos pelos próprios devotos, de modo que alguns levam para casa, para comerem posteriormente, enquanto outros os comem no próprio cemitério, em frente a sua sepultura: “A gente botava a bala ali e eles levavam. Teve uma senhora que disse um dia pra mim: - Sempre que eu venho aqui tem sempre uma balinha que eu levo pra casa. Eu levo, às vezes até derretida, mas eu levo, porque ela tem um poder de milagre essa menina.”470 A ingestão dos alimentos para muitos fiéis pode ser interpretada como uma forma de estar mais perto do milagreiro ou mesmo uma forma da graça ser atendida mais rapidamente. Os devotos e visitantes do túmulo de Vida não depositam apenas os doces. Conforme destacaram acima Luz471 e Machado472 e pude constatar nas visitas, os ritos deixados a ela são variados, como os arranjos de flores naturais e artificiais, sempre diferentes a cada visita, além das velas473. Nas numerosas visitas que fiz ao túmulo, nunca encontrei a sepultura sem ritos, em especial, as flores artificiais e velas, caso de sincretismo. In: Revista Diálogos, Maringá, n ° 11, p. 21-40, abr/mai 2014. Disponível em: . Acesso em: 22 ago. 2016. 468 SILVA, Vagner Gonçalves da. A criação da umbanda. In: História Viva. Grandes Religiões: Cultos Afros, São Paulo, n ° 6, p. 34-39, 200, p. 68. 469 ANDRADE JÚNIOR, op. cit., p. 265. 470 MACHADO, 2016, op. cit. 471 LUZ, op. cit. 472 MACHADO, 2016, op. cit. 473 Foram encontradas apenas velas tradicionais brancas. 222 fossem apagadas ou acesas no velário localizado no chão, ao lado da sepultura, conforme imagem a seguir:

Imagem 62 – Ritos presentes no túmulo de Vida.

Fonte: Acervo pessoal da autora, 2011 a 2016.

Outra forma que os fiéis encontraram para se comunicar com Vida, seja para agradecer as graças alcançadas ou pedir novas são as mensagens escritas, como os bilhetes deixados na sepultura. Foram encontrados nas diversas visitas ao túmulo de Vida mensagens dobradas abaixo de uma pequena imagem de anjo (Imagem 63), localizada sobre o tampo, ao lado da escultura da milagreira. Como reforçado anteriormente, em um relato de Duduco, os estudantes são os que mais deixam tais mensagens escritas à Vida. A maioria das mensagens é composta por letras de músicas que tratam de saudade, amizade, esperança e amor, além de outras que contém passagens bíblicas e frases à Vida. Em umas das visitas, foram encontrados cinco bilhetes, apresentados em folhas avulsas, todas iguais, retiradas de um mesmo caderno, ou seja, deixados pela mesma pessoa, conforme exposto na imagem a seguir.

Imagem 63 – Bilhetes deixados no túmulo de Vida. 223

Fonte: Acervo pessoal da autora, 2011 a 2016.

Estes cinco bilhetes contém a tradução de várias músicas em inglês, como as traduções das letras das músicas “Está tudo voltando para mim agora”, de Celine Dion e “Eu não me importo mais”, de Phil Collins. Em um das folhas, estão presentes nomes de músicas de cantores e bandas nacionais, como Paralamas do Sucesso, Raul Seixas, Revelação, Fundo de Quintal e Osvaldo Montenegro, conforme as transcrições apresentadas abaixo474:

O amor não sabe esperar (Paralamas)

474 As transcrições dos bilhetes foram mantidas no original, sem alterar a apresentação e o português do documento original. 224

O dia em que terra parou (Raul Seixas) Talvez (Revelação) Amizade (Fundo de Quintal) Quando a gente ama (Osvaldo Montenegro) Lua e flor (Osvaldo Montenegro) Estrelas (Osvaldo Montenegro)

A última folha contém apenas um fragmento da página, escrita a seguinte mensagem:

Loucura?? Ou ingratidão Fé é a luz maior.

São pedidos de saúde, emprego e aprovações em vestibular e concurso, que fazem do túmulo de Vida um dos mais visitados do cemitério do Itacorubi. Para agradecer as graças alcançadas e pedir novas, os devotos oram e conversam com a milagreira em frente à sepultura ou deixam as mensagens escritas. Também oferecerem alimentos a ela, como balas e bolachas e depositam os ritos, como os vasos de flores artificiais e naturais e as velas. Como sintetiza Lourival Andrade Júnior475, as oferendas deixadas nos túmulos de milagreiros fazem desses espaços “um lugar privilegiado e original, onde se encontram práticas do catolicismo tradicional e do popular ao lado de práticas da umbanda”.

475 ANDRADE JUNIOR, 2008, op. cit. 225

5 MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E SILENCIAMENTO

5.1 DOS ESQUECIMENTOS AO LUTO TRAUMÁTICO: A CULTURA DA MEMÓRIA NO FINAL DO SÉCULO XX E INÍCIO DO XXI

Está-se convencido de que a manifestação pública do luto, e também sua expressão privada muito insistente e longa, é de natureza mórbida. A crise de lágrimas transforma-se em crise de nervos. O luto é uma doença. Aquele que o demonstra prova fraqueza de caráter.”476

Testemunhar uma graça alcançada, narrar um ritual praticado na sepultura do seu milagreiro ou relatar as histórias de vida de sua filha, considerada santa de cemitério, inclusive mencionando os traumas causados por sua morte. O testemunho dos devotos e de seus familiares e conhecidos permeiam a devoção das santas de cemitério aqui estudadas, reconhecendo e consequentemente legitimando seus poderes de milagreiras através de seus próprios relatos. Conforme mencionado anteriormente, por não serem santos oficiais da Igreja Católica, com eventos e festividades criados e organizados pelo clérigo para cultuá-los e midiatizá-lo, os milagreiros de cemitério dependem exclusivamente da propagação de seus devotos, sobretudo, através da oralidade, como a divulgação de graças alcançadas. Narrar uma graça que alcançou não pode ser caracterizado somente como um mero relato entre os devotos, mas sim uma propagação e estímulo da fé, proporcionando a difusão dos milagres em seus vínculos sociais, como entre amigos, conhecidos, parentes e, inclusive, desconhecidos que relatam experiências no próprio cemitério. Neste sentido, importante destacar que os devotos das milagreiras aqui pesquisadas costumam relatar que suas graças foram atendidas, porém tais pedidos costumam ser omitidos, tendo em vista suas particularidades, como os pedidos amorosos, de saúde, ou econômicos.

476 ARIÈS, 1990, op. cit., p. 633. 226

Quanto aos relatos e propagação das graças e pedidos feitos às milagreiras, estes não se limitam apenas ao espaço cemiterial, tendo em vista que tais relatos podem ser feitos em várias circunstâncias, como nas igrejas, reuniões de trabalho ou conversas em rodas de amizade. Porém, o cemitério, por meio das unidades tumulares das milagreiras, certamente é o principal local de transmissão das confissões de graças alcançadas, além de ser um espaço para ritualizar. Assim, datas especiais como o Dia de Finados e os dias de morte e nascimento das três milagreiras se tornam primordiais, pois são as datas de maior visitação aos túmulos das milagreiras e dia de reencontrar amigos e parentes no cemitério do Itacorubi, conforme expõe Duduco, pai da milagreira Vida Machado. Por meio de várias postagens que Duduco realizou em seu perfil pessoal da rede social477 do Facebook478 no Dia de Finados do ano de 2016, publicizou fotografias tiradas com alguns amigos no cemitério do Itacorubi, destacando em mensagens na rede de sociabilidade que o Dia de Finados é uma data para reencontrar os amigos e conhecidos não vistos há anos, como algumas pessoas que só encontra anualmente no cemitério, durante os dias de Finados.

477 As redes sociais, também conhecidas como redes de relacionamento, são nos dias de hoje importantes instrumentos de participação e de mediação no diálogo social, sendo que elas “propiciam o compartilhamento de ideias e de valores entre pessoas e organizações que possuam interesses e objetivos em comum.” In: BARBOSA, Alexandre; CAPPI, Juliano; TAVARES, Robson. Redes sociais: revolução cultural na Internet. In: BARBOSA F., Alexandre (Coord.). Pesquisa sobre o uso das tecnologias da informação e da comunicação no Brasil: 2005-2009. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2010, p. 52. 478 O Facebook foi criado no dia 4 de fevereiro de 2004, com o nome "Thefacebook", pelo estudante Mark Zuckerberg. Inicialmente, foi criado com o intuito de ser utilizado pelos estudantes da universidade em Harvard. No ano de 2006, foi aberto para o cadastro de qualquer pessoa, tornando-se posteriormente a principal rede social do mundo, com bilhões de usuários ativos. De modo resumido, a rede social abrange perfis pessoais e comunidades. No primeiro, acessado através de email e senha, é possível criar perfil com dados pessoais, preferências do usuário, adicionar fotos e vídeos, procurar e selecionar amigos, visualizar perfis de outros usuários, enviar mensagens, curtir fotografias, entre outras opções. As comunidades têm a finalidade de discutir sobre determinados temas afins, podendo ser abertas ao público ou restritas, isto é, acessadas apenas aos participantes. Nelas são encontradas, entre outros itens, informações gerais sobre a comunidade, como apresentação, quantidade de membros e curtidas, além de possuir os fóruns de discussões. 227

Assim, durante os dias de Finados, aniversários de nascimento e morte, entre outras datas, foram realizadas várias entrevistas com os devotos, familiares e conhecidos das milagreiras irmãs Rosemary e Jane Koerich e Vida Machado. A utilização da história oral nesse trabalho englobou tanto histórias de vida dos entrevistados, sobretudos, dos pais das três milagreiras, como também a memória coletiva. Buscou-se trabalhar com a história de vida, pois ela, como salienta José Carlos Meihy enquadra as informações colhidas com os dados objetivados do depoente, e mesclando “situações vivenciais, ganha mais vivacidade e sugere características do narrador.” 479 Todavia, a memória individual não se limita apenas as suas lembranças particulares e ao isolamento total, visto que cada indivíduos, ao poder “evocar seu próprio passado, tem frequentemente necessidade de fazer apelo às lembranças dos outros.”480 Já a memória coletiva, reúne lembranças de um conjunto de pessoas que tem muito mais “chances de descrever muito exatamente os fatos ou os objetos que vimos ao mesmo tempo que elas, e mesmo reconstituir toda a sequência de nossos atos e de nossas palavras dentro das circunstâncias definitivas, sem que nos lembrássemos de tudo aquilo.”481 A utilização da história oral como fonte, através da memória dos entrevistados foi fundamental, tendo em vista que “confirma o presente, pois sem ela não podemos garantir as regras da vida social que se baseiam em repetições de atitudes definidas no passado.”482 Entretanto, deve-se levar em consideração que a oralidade traz consigo muitas vezes o esquecimento, que pode ser tanto intencional, como também involuntário, além das deformações da memória, sendo estas três características, segundo José Carlos Meihy483 matérias de uma “boa história oral”, mas que quando encontrados devem ser pontuados e explicados. E o esquecimento, que é uma das principais ocorrências da memória, foi visto no decorrer da história como um grande mal, que

479 MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de História Oral. São Paulo: Loyola, 2002, p. 148. 480 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2004, p. 58. 481 HALBWACHS, op. cit., p. 31. 482 MEIHY, op. cit., p. 66. 483 Ibidem, p. 51. 228 segundo Mircea Eliade484 “[...] faz parte integrante do reino da Morte. Os defuntos são aqueles que perderam a memória.” Percebe-se que a utilização da memória é essencial nesta pesquisa, levando-se em consideração as lembranças, os esquecimentos e os silenciamentos dos relatos dos entrevistados, tendo em vista ser este um tema tabu, doloroso e interdito para muitos, como para os devotos que estavam em situações desesperadoras ao realizar o(s) seu(s) pedido(s) e, principalmente, para os pais das três milagreiras. Para estes últimos, as lembranças de experiências vivenciadas durante as mortes e post mortem das suas filhas podem estar bloqueadas, esquecidas, silenciadas, interditas e alteradas, tendo em vista os traumas vividos durante estas fases de suas vidas, o que os impossibilita de possuir recordações positivas, ou mesmo de se tentar rememorar seu passado. Abordando-se a memória, nas próximas laudas serão explorados alguns apontamentos de como vem sendo vivenciada e discorridas nos trabalhos acadêmicos das últimas décadas, além das dificuldades e implicações em se utilizar as memórias traumáticas e interditas nas pesquisas acadêmicas. A partir da segunda metade do século XX, observa-se a emergência, privilégio e muitas vezes até a obsessão da memória485. Durante a década de 1960, com os novos movimentos sociais e as descolonizações486, emergiram no ocidente discursos de

484 ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva. 2007, p. 109. 485 A memória, segundo a filósofa argentina María Inés Mudrovcic, é um tema bastante fecundo que dá oportunidade de ser abordado por várias disciplinas, como nos estudos biológicos, históricos, sociológicos e antropológicos, sendo que até a década de 1970, “eram os psicólogos, os neurobiólogos, os sociólogos, os filósofos, entre outros, que tinham como um de seus focos [de estudo] a memória.” In: MUDROVCIC, María Inés. “Por que Clio retornou a Mnemosine?”. In: Azevedo, Cecília et al. (Org.). Cultura política, memória e historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2009, p. 101. Já para Pierre Nora, a memória é um fenômeno sempre atual, vulnerável a usos, capaz de lembrar-se e esquecer-se, mantida por grupos vivos e com isso está sempre em evolução. É descrita também como sendo coletiva, afetiva, aliada à tradição oral, múltipla, plural, individualizada e absoluta, e utilizando-se dos estudos de Halbwachs, Nora expõe que existem proporcionalmente tantas memórias quanto grupos. In: NORA, Pierre. “Entre memória e história. A problemática dos lugares”. Projeto História, n. 10, p. 7-28, dez. 1993, p. 9. 486 Entre as décadas de 1950 e 1960, aproximadamente quarenta países afro- asiáticos tornaram-se independentes. 229

memória de um novo tipo, conforme salienta Andreas Huyssen.487 Tais discursos de memória tiveram repercussão entre o final da década de 1970 e decorrer da década de 1980, nos Estados Unidos e na Europa, com as questões da memória do Holocausto, que segundo Pierre Ansart488 caracterizou-se pelas recordações relacionadas aos fatos, violências e perseguições durante a Segunda Guerra Mundial. Observa-se a partir de então uma obsessão e preocupação com a memória, sendo que esta não é uma especificidade apenas de países ocidentais. Além da sua comercialização pela indústria cultural ocidental, a partir dos anos noventa, países pós-comunistas do leste europeu e a antiga União Soviética tem se preocupado com a memória e o esquecimento. A cultura da memória está amplamente propagada pelo mundo, servindo, por exemplo, na Argentina e Chile “para criar esferas públicas de memória ‘real’ contra as políticas do esquecimento, promovidas pelos regimes pós-ditatoriais.”489 Nas últimas décadas do século XX, relacionado a essa ânsia pela memória, percebe-se também as questões relacionadas ao patrimônio, como a restauração de antigos centros urbanos e a musealização das cidades, sobretudo, nos Estados Unidos e nos países europeus. François Hartog ressalva essa preocupação com os monumentos e cidades antigas a partir da década de setenta, de maneira que, para ele, uma fenda apareceu no presente, que mostrou-se apreensiva pela memória, preocupada com as questões patrimoniais, “atormentada pela conservação de monumentos, de lugares antigos ou não tanto, a preservação da natureza. Ansiosa com a recuperação do que foi perdido, ou estava para ser perdido ou inquieta com o que fora ‘esquecido’”490, especialmente a memória da II Guerra Mundial. Como ocorrido com a memória, com um “dever” da memória e o remorso de nada esquecer, anunciando-se ou reclamando-se memórias de tudo, se acrescentou uma ardente “obrigação do patrimônio”, com suas exigências de conservação, de reabilitação e de comemoração. A questão patrimonial chegou a um limite que seria “tudo patrimônio ou

487 HUYSSEN Andreas. “Passados presentes: mídia, política, amnésia”. In: Seduzidos pela Memória. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000, p. 10. 488 ANSART, Pierre. “História e memória dos ressentimentos”. In BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia (Org.). Memória e (res)sentimento. Indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Unicamp, 2004, p. 30. 489 HUYSSEN, op. cit., p. 16. 490 HARTOG, 2003, op. cit., p. 29. 230 suscetível de tornar-se.”491 Todavia, essa obsessão pela memória e a busca em tudo preservar não são surpresas para as últimas décadas do século XX. Tempo de catástrofes, rupturas e de fortes acelerações na experiência do tempo vivido, o patrimônio e em especial a memória valem como respostas e sintomas do presentismo, o atual regime de historicidade, conforme delineia François Hartog.492 Já nos primeiros anos do século XXI, a cultura da memória é acusada de amnésia e indiferença, visto que através das mídias493, veiculadoras da memória, esta última se torna cada vez mais acessível. Pode-se então problematizar se o enorme aumento de memória não segue o mesmo sentido de um espantoso aumento de esquecimento. A partir dessa relação e/ou distanciamento entre memória e esquecimento, utilizando-se dos estudos freudianos, Andreas Huyssen aponta que ambos estão ligados, de maneira que a memória “é apenas uma outra forma de esquecimento e que o esquecimento é uma forma de memória escondida”494. Porém, e quanto ao medo do esquecimento? Como pode-se viver resistindo ao esquecimento? Uma constatação importante é que quanto mais as lembranças são insistidas e o esquecimento amedrontado, mais medo se sente de esquecer-se e, consequentemente, mais intenso torna- se o ato do esquecimento. Ligado a essa “síndrome da memória” e ao medo do esquecimento, observa-se que, no mercado, o passado está chamando mais atenção do consumidor do que o futuro, o que significa que os vendedores estão lucrando mais com os produtos relacionados ao passado, como é o caso das vendas de retrô. São rádios, móveis, televisores e uma imensidão de eletrodomésticos fabricados nos últimos anos e que imitam modelos que fizeram sucesso no passado. Essas são características de um presente hipertrofiado e “que tem a pretensão de ser seu próprio horizonte”495, de forma que as solicitações do mercado desempenham um papel fundamental, como as

491 HARTOG, François. “Tempo e Patrimônio”. Varia História, v. 22, n. 36, p. 261-273, jul/dez. 2006. Disponível em: . Acesso em 10 out. 2016, p. 268. 492 Ibidem, p. 272. 493 Como, por exemplo, a imprensa, a televisão ou a internet. 494 HUYSSEN, op. cit., p. 16. 495 HARTOG, François. “Regimes de Historicidade”. International Review of Social History, n. 38, 1993. Disponível em: . Acesso em 10 out. 2016, p. 9. 231

alterações científicas e o ritmo cada vez mais rápido das mídias, que tornam as coisas obsoletas. Como bem sintetiza Hartog496, vivemos em um presente que, por não ter passado e futuro, ele os gera. Na mesma direção, encontramos as reflexões de Huyssen497, que diz que vivemos em um presente cada vez mais encolhido, sendo que a aceleração das inovações tecnológicas fabrica produtos praticamente obsoletos, que já saem para o mercado atrasados, tornando-se em alguns anos “peças de museu”. Ainda em relação às discussões da memória, pode-se questionar o que afinal seria a memória no final do século XX e início do XXI? Para Pierre Nora498, o que se denomina por memória não é mais memória, mas história, mostrando que a necessidade de memória é também uma necessidade da história. Nesse sentido, aponta as diferenças entre a memória que denomina de verdadeira e a memória modificada por sua comunicação com a história. A memória verdadeira ou tradicional seria aquela “abrigada no gesto e no hábito, nos ofícios onde se transmitem os saberes do silêncio, nos saberes do corpo, as memórias de impregnação e os saberes reflexos.”499 Enquanto que a memória alterada pela história é quase o oposto, portando-se como um dever, não sendo mais tão natural e espontânea, ou seja, é para Nora uma memória não mais psicológica, subjetiva e individual. Com isso, enfatiza criticamente que se ainda tivéssemos a memória verdadeira, não haveria a necessidade de se aplicar os lugares de memória500, pois cada ato por nós vivenciado seria uma reprodução do que sempre se praticou, e com isso, nos identificaríamos com estes atos. E quanto à memória que temos do século XX? Após as histórias de guerras, as tentativas de descolonizações, os casos ditatoriais e

496 Ibidem. 497 HUYSSEN, op. cit., p. 28. 498 NORA, op. cit., p. 14. 499 Ibidem. 500 Os lugares de memória são caracterizados por Nora como híbridos, mistos, enlaçados de vida e morte, marcos de outra era, restos, e antes de tudo locais não de história, mas de memória. In: NORA, op. cit., p. 12-13. Como bem resume Ulpiano Bezerra de Meneses, um lugar de memória vai desde um objeto material e concreto, como um artefato ou uma paisagem, até um objeto abstrato. In: MENESES, Ulpiano T. B. de. “Cultura política e lugares de memória”. In: Azevedo, Cecília et al. (Org.). Cultura política, memória e historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2009, p. 450. 232 repressivos em diversos países, e principalmente, depois da Segunda Guerra Mundial, com o genocídio em massa, “a nossa consciência foi afetada de tal modo que a visão da modernidade ocidental e suas promessas escureceu consideravelmente dentro do próprio ocidente.”501 Assim, para muitos indivíduos, as lembranças de experiências vivenciadas durante o século XX podem estar bloqueadas, esquecidas, silenciadas e/ou interditas, tendo em vista os traumas vividos durante massacres e guerras, o que os impossibilita de possuir recordações positivas e pacificadoras, ou mesmo de se tentar glorificar o passado, como será trabalhado a seguir. Pensando-se na memória traumática, durante o século XX, lembra-se quase sempre das experiências vivenciadas pelas vítimas da Segunda Guerra Mundial. Adotando-se então o caso de Primo Levi502, que foi um dos sobreviventes do campo de concentração de Auschwitz, pode-se apontar algumas reflexões a partir de seus sonhos. Neles, Primo Levi se imagina deixando o campo e retornando para a casa. Ao chegar em casa, tenta contar os sofrimentos e os horrores que passou durante seu aprisionamento, porém, é ignorado pelos outros, os ouvintes. Ninguém o escuta, se retiram um a um, deixando-o sozinho e desesperado por se fazer ouvir.503 Se atendo ao personagem do ouvinte, aquele que, em síntese, deveria desempenhar a função de escuta, este no sonho de Primo Levi acaba por se levantar e ir embora, talvez por não querer saber a narrativa da vítima, não desejar que sua história alcance-o ou ameace sua linguagem tranquila.504 Porém, essa ausência de um ouvinte não foi vivenciada apenas por Primo Levi. Muitas das vítimas sobreviventes dos campos de concentração, depois de serem libertadas, encontravam as escutas para contar suas experiências e seus sofrimentos apenas inicialmente, sendo logo exaurida a vontade dos indivíduos de ouvir os horrores dos campos, conforme enfatiza o sociólogo austríaco Pollak.505

501 HUYSSEN, op. cit., p. 31. 502 Exemplo este utilizado pela filósofa Jeanne Marie Gagnebin. In: GAGNEBIN, Jeanne Marie. “Memória, História e Testemunho”. In BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia (Org.). Memória e (res)sentimento. Indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Unicamp, 2004, p. 92-93. 503 Tais sonhos também são sonhados por seus companheiros do campo de concentração durante as noites. 504 GAGNEBIN, op. cit., p. 93. 505 POLLAK, Michael. “Memória, Esquecimento, Silêncio”. Estudos Históricos, v. 2, n. 3, 1989, p. 6-7. 233

Segundo ele, essa angústia de não ter uma escuta é uma das motivações para que as vítimas desenvolvam uma memória traumática e, consequentemente, silenciem e esqueçam suas lembranças. Da mesma forma que a ausência de um ouvinte, existem outras razões intensamente complexas para as vítimas da Segunda Guerra calarem, como é o caso da relação entre eles e suas famílias. Para Pollak506, muitos deportados dos campos de concentração gostariam de poupar seus filhos de crescerem na lembrança de suas feridas. No entanto, lembra que após algumas décadas das deportações, convergem razões políticas e familiares para acabar com esses silêncios, pois as testemunhas oculares sabem que vão morrer, logo querem registrar as suas lembranças contra o ato do esquecimento. Outros motivos de bloqueios das lembranças encontrados pelas vítimas, bem como os descritos acima, é a punição pelo que se fala e o caso de se expor a mal-entendidos. Muitos sobreviventes dos campos de concentração, como prostitutas, homossexuais e ciganos, silenciaram coletivamente depois da guerra, temendo muitos deles a revelação das razões de seu internamento, já que poderiam perder seu emprego, serem provocadas denúncias contra eles ou ainda a revogação de seu contrato de locação.507 Todavia, a memória traumática sucedida pela guerra não é uma especificidade apenas das vítimas. Entre os antigos nazistas ou simpatizantes do regime, os esquecimentos são bastante frequentes e compreensíveis, conforme ressalta Michael Pollak. As “zonas de sombra” da memória podem ser encontradas nas biografias dos personagens públicos, como é exemplificado pela história biográfica do presidente austríaco Kurt Waldheim, sendo o tema do nazismo omitido, devido as interdições que geram o assunto e a vergonha de ter simpatizado ou participado ativamente do nazismo.508 A memória traumática do pós-guerra, como exposto acima, é provocada por diversas razões, de modo que uma pessoa ou mesmo um grupo pode acabar silenciando e/ou esquecendo as lembranças de experiências vivenciadas. Além desses não ditos descritos anteriormente, mais um aspecto que se deve destacar da memória traumática é o silêncio sobre si. Diferente do esquecimento, ele é um trabalho de gestão da memória, podendo ser uma condição necessária

506 Ibidem, p. 6-7 507 POLLAK, 1989, op. cit., p. 12. 508 Ibidem, p. 6. 234 para manter uma comunicação com o meio ambiente. Segundo Helenice da Silva509, tal silêncio é um sintoma patológico da negação dos grandes traumas do passado, como é o caso da Segunda Guerra. O silêncio sobre si pode ser elucidado a partir de uma vítima judia que sobreviveu durante o holocausto, e que optou por permanecer residindo na Alemanha. Esta judia, quando questionada sobre seu passado, pode silenciar sobre alguns fatos ocorridos, porém, este silêncio só raramente resulta de brancos da memória ou de esquecimentos, mas sim de uma reflexão sobre a própria utilidade de falar e transmitir seu passado.510 Nesse sentido, compreende-se que o silêncio sobre o seu passado está essencialmente relacionado com sua necessidade de encontrar um modo de viver com aqueles que viram sua deportação, neste caso os moradores da Alemanha. E como são as recordações pessoais de quem viveu em campos de batalhas durante a Segunda Guerra? Às lembranças mais próximas das pessoas que viveram nestes locais são de ordem sensorial, a partir de cheiros, barulhos e até cores. Isto significa dizer que as lembranças dessas pessoas caracterizam-se muitas vezes pelas recordações, não das datas dos eventos ou dos números de mortos e soldados, mas sim dos barulhos dos aviões, dos cheiros dos explosivos, como de fósforo e enxofre, e mesmo dos choros desesperados das vítimas.511 Outra questão importante para ser salientada é a dificuldade para essas pessoas que passaram pelo trauma da Segunda Guerra em formular suas trajetórias de vida. Muitas delas se deparam com embaraços ao tentar construir uma coerência e uma continuidade para contar sua própria vida, especialmente quando esta foi marcada por rupturas. Neste sentido, observa-se a importância que os filmes possuem no enquadramento dessas memórias. Para Pollak, o filme é o melhor suporte para captar todas as lembranças em objetos de memória, captando tanto as emoções, como também as capacidades cognitivas, como é o caso do filme Shoah512, que aborda o holocausto judeu

509 SILVA, Helenice Rodrigues da. “A Renovação Historiográfica Francesa após a ‘guinada crítica’”. In: MALERBA, Jurandir; ROJAS, Carlos Aguirre (Org.). Historiografia Contemporânea em Perspectiva Crítica. São Paulo: EDUSC, 2007, p. 179. 510 POLLAK, 1989, op. cit., p. 13. 511 POLLAK, 1989, op. cit., p. 13. 512 O filme Shoah, segundo a crítica literária argentina Beatriz Sarlo, foi dirigido por Claude Lanzmann, lançado no ano de 1985, e tem a duração aproximada de 235

vivenciado durante o regime nazista. Segundo Beatriz Sarlo513, tal filme não destaca apenas o pouco conhecimento sobre a guerra, mas também o fato desse conhecimento ter “a fragilidade de um discurso que pode ser esquecido e que, portanto, é preciso voltar a ele repetidas vezes, porque o tempo, as ideologias, a política dos Estados, o cansaço da culpa [...] corroem esse núcleo de saber que começou a ser construído no pós-guerra”. O filme, sobretudo o testemunho e documentário, além de ser uma maneira de enquadrar as memórias, é para Pollak, um instrumento poderoso para rearranjar a memória coletiva, como também a televisão, que acaba por readaptar a memória nacional.514 Bem como os indivíduos que tentam recordar e contar suas trajetórias de vida, também se deve lembrar as pessoas que almejam esquecer as situações traumáticas do seu passado. Muitas vítimas sobreviventes e participantes do regime nazista anseiam ou mesmo necessitam esquecer os traumas vividos durante a guerra. A partir de uma pesquisa desenvolvida por Pollak, que analisou as histórias de quarenta mulheres sobreviventes do campo de concentração515, este pôde perceber que diversas destas mulheres possuíam o desejo de regressar ao campo, para testemunhar e, consequentemente, esquecer as experiências vividas, e com isso retomar uma vida “normal”.516 Portanto, como acabou-se de abordar, existem variadas razões, algumas bastante complexas, para se desenvolver a memória traumática no pós-guerra, podendo ser encontrada em nível individual, como a memória de um participante do regime nazista, e também em grupo, como os sobreviventes homossexuais dos campos de concentração. As lembranças silenciadas e as omissões das experiências vividas por essas pessoas acabam sendo, em muitas ocasiões, as soluções para tentar seguir uma vida sem culpa e ressentimento ou sem medo e sofrimento. Antes de explorar algumas reflexões acerca da memória traumática de enlutados, como é o caso dos pais das milagreiras deste

dez horas. In: SARLO, Beatriz. Paisagens imaginárias: Intelectuais, arte e meios de comunicação. São Paulo: USP, 1997, p. 35-36. 513 SARLO, op. cit., p. 40. 514 POLLAK, 1989, op. cit., p. 11. 515 Esta pesquisa foi publicada sob o título “L'expérience concentrationnaire: essai sur le maintien de 1'identité sociale”. Para saber mais ver: POLLAK, Michael. L'expérience concentrationnaire: essai sur le maintien de 1'identité sociale. Paris: Éditions Metailié, 1990. 516 POLLAK, 1989, op. cit., p. 12. 236 trabalho, deve-se compreender o luto. Palavra que carrega consiga sentido de dor e tristeza, o luto tem variados significados, mas quando aludido, é logo associado aos sentimentos de perda pela morte de alguém517. O luto, como bem sintetiza Edgar Morin (1997, p. 80),

exprime socialmente a inadaptação individual à morte, mas, ao mesmo tempo, ele é este processo social de adaptação que tende a fechar a ferida dos indivíduos sobreviventes. Após os ritos da imortalidade e o fim do luto, após um ‘penoso trabalho de desagregação e de síntese mental’, só então a sociedade ‘tendo voltado à paz, pode triunfar da morte’.

No decorrer da história, o luto foi vivenciado de diferentes formas. Na Idade Média, por exemplo, o enlutado tinha que expressar sua dor da perda por determinado período, mesmo que esta não estivesse mais presente, além das visitas constantes dos familiares e amigos. A partir do século XIX, modificam-se essas práticas do luto. Os enlutados

517 A morte de uma pessoa próxima costuma causar muitas dificuldades para a vida dos que ficam, podendo transformar-se em um luto saudável e conciso, como também traumático, ocasionando implicações psíquicas na vida do enlutado, desenvolvendo “até o aparecimento de doenças psicossomáticas, depressão, ansiedade, melancolia e psicopatias.” In: OLIVEIRA, Tereza Marques de. O psicanalista diante da morte: intervenção psicoterapêutica na preparação para a morte e elaboração do luto. São Paulo: Editora Mackenzie, 2001, p. 92. Inicialmente, logo depois da morte, o luto costuma ser representado pelas lágrimas e lembranças constantes do ente falecido, mas após alguns anos, é demonstrado principalmente por um distante sentimento de saudade. No entanto, dependendo do grau de parentesco e da ligação afetiva com o falecido, a duração do luto pode variar. Alguns enlutados podem demonstrar seu pesar por mais tempo, atingindo inclusive algumas décadas, como aqueles que passam por uma morte trágica, enquanto outros podem expressar mais brevemente. Do mesmo modo que a duração do luto, pode-se destacar a forma como este é manifestado, sendo que algumas pessoas conseguem demonstrar sua dor mais naturalmente, enquanto outras são mais recolhidas e introspectivas. Enfim, o luto como a memória, vai modificando-se com o passar dos anos, tendo em vista que “não é um processo moldado (‘elaborado’) no tempo histórico.” In: PORTELLI, Alessandro. “O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana: 29 de junho de 1944): mito, política, luto e senso comum”. In: AMADO, Janaina; FERREIRA, Marieta de Moraes. (Orgs.). Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 109. 237

passam a demonstrar o sofrimento espontaneamente ou de modo histérico para os psicólogos de hoje: chora-se, desmaia-se e jejua-se, como ressalta Philippe Ariès.518 Já a partir do século XX, em muitas regiões urbanas de países ocidentais encontra-se geralmente, o luto isolado, individual, silenciado e sem o negro na vestimenta, presente desde a Idade Moderna. Chorar na presença de familiares e amigos pode parecer vergonhoso e deprimente. E a sociedade, que nos séculos passados se fazia presente após a morte, visitando e apoiando o enlutado, agora está em muitos casos distante, talvez pelo medo de não saber expressar as condolências adequadas ou vergonha de mostrar a dor. Chora-se comumente em casa, porém não junto dos demais e sim em um cômodo escondido, longe do círculo familiar. Essa individualização da dor da perda acaba fazendo com que a morte diga respeito apenas ao enlutado, que a vivencia desamparado, de modo que nenhum enlutado pode escapar “ao trabalho de luto, o aspecto mais angustiante da nossa memória, pois nos confronta com a presença invisível daqueles que nos precederam”, como enfatiza o historiador Michel Vovelle519. E quanto mais o falecido for “próximo, íntimo, familiar, amado ou respeitado, isto é, ‘único’ [para o enlutado], mais violenta é a dor; nenhuma ou quase nenhuma perturbação se morre um ser anônimo, que não era ‘insubstituível.’”520 Para muitos indivíduos enlutados, falar sobre a perda de um ente querido é uma situação bastante sofrida. Às vezes, passam-se meses, anos e mesmo décadas e as dores de um enlutado pela morte de alguém próximo continuam latentes. Filhos falecidos podem permanecer na memória e nos discursos de seus pais durante longos e dolorosos anos. Pais enlutados fazem parte dos estudos do italiano Alessandro Portelli521. Este pôde observar com sua pesquisa na pequena cidade italiana de Civitella Val di Chiana, que os moradores, em especial as mulheres, preservaram durante alguns anos, uma memória criada e centrada pelo seu luto. Após o massacre ocorrido em 1944, com a execução alemã de cento e quinze civis do sexo masculino, a cidade ficou “entenebrecida” durante anos, sendo que parte dos moradores teve parentes assassinados brutalmente.

518 ARIÈS, 2003, op. cit., p. 72. 519 VOVELLE, op. cit., p. 13. 520 MORIN, op. cit., p. 32. 521 PORTELLI, op. cit., p.103-130. 238

Portelli mostra, a partir dos relatos desses enlutados, a comoção entre eles e os sentimentos de perdas pessoais e coletivas. Alguns depoimentos coletados com as mulheres poucos anos após o massacre descrevem desde o encontro com os corpos até os ritos de morte, conforme exposto a seguir:

Ao chegarmos à praça, onde estavam todos os chapéus e o sangue, entre choros e gritos, encontramos nossos amados dentro das casas, num estado terrível [...] Nós, mulheres, não sei de onde nos veio a coragem para fazer tudo isso, carregamos os mortos para a igreja, todas juntas, ajudando umas às outras. [...] No dia seguinte, criamos coragem novamente e retornamos ao povoado, onde juntas, ainda nos ajudando umas às outras, construímos caixões, colocamos os mortos dentro e os levamos em carroças até o cemitério. Ali abrimos as covas, baixamos os caixões e os cobrimos de terra.522

Esse depoimento, colhido dois anos após os assassinatos, demonstra expressões de carinho com os entes falecidos, como também de ajuda mútua entre as mulheres e de coragem diante daquela situação de desespero. Quando descreve os rituais de morte, tal entrevistada relata cada fase ocorrida, desde a construção dos caixões, os cortejos em carroças, e por fim, o momento do sepultamento. Este momento de abaixar o caixão é considerado de grande dor e sofrimento, devido à impossibilidade de ver novamente a pessoa, sendo o extremo do rito de separação entre o morto e os vivos. No entanto, nota-se neste caso, pelo relatar da entrevistada, poucas palavras que demonstram sentimento de dor, descrevendo apenas cada etapa do funeral. Deve-se advertir, nesse sentido, a dificuldade que os enlutados da cidade encontraram para partilhar sua dor da perda. Portelli faz referência ao trabalho de Valeria Di Piazza, pesquisadora que se dedicou ao estudo dos enlutados após o massacre, em especial os obstáculos que os sobreviventes encontraram para compartilhar seu luto. Esses empecilhos são explicados, sobretudo pelo luto ser avaliado como traumático e fechado em si. Salienta que qualquer pessoa que não “tenha

522 PORTELLI, op. cit., p. 104. 239

passado por uma experiência desse tipo jamais conseguirá sentir o que as pessoas de Civitella carregam dentro de si.”523 A grande quantidade de mortos, bem como a forma que os indivíduos foram assassinados, são motivações para esse luto ser caracterizado como traumático. Segundo a pesquisadora Waina Ferreira Miranda524, o luto traumático pode ser causado por calamidades que afetam quase toda a população local, como desastres naturais ou atentados, provocando na vida dos que sobrevivem ocorrências de diversas ordens, como material, física e emocional. No caso do massacre da cidade italiana, as consequências foram especialmente emocionais, de modo que muitos sobreviventes presenciaram os assassinatos de seus parentes e perderam quase todos os membros da família, como marido e filhos. Neste sentido, os estudos do psiquiatra inglês Colin Parkes525 são bastante representativos, já que, segundo ele, as mulheres que perdem seus maridos e os pais que passam pela morte de um filho são os mais propícios ao luto traumático. Estes indivíduos permanecem mais tempo para esquecer o trauma da morte, em especial quando o falecimento acontece repentinamente, sem os “avisos” habituais, como uma doença grave ou a idade avançada. As irmãs Rosemary e Jane Koerich, que morreram no acidente aéreo do dia 12 de abril 1980, conforme explorado no capítulo 2, são exemplos de causas de luto traumático. Conforme reforça o pai Antônio Obet Koerich526, foram anos de visitas quase que diárias ao túmulo das suas filhas no cemitério do Itacorubi. Tais enlutados acabam preservando, em muitos casos, a memória da pessoa morta, por meio, por exemplo, de seus objetos pessoais como as roupas, sendo, às vezes, mantido intacto o quarto do falecido, como se este fosse retornar algum dia. Outra consequência que o luto traumático pode provocar é o esquecimento. A partir da morte traumática de um ente, o enlutado pode se deparar com os bloqueios de memória. Esses esquecimentos podem

523 Ibidem, p. 107. 524 MIRANDA, Waina Ferreira. Práticas de aconselhamento para adultos enlutados: A importância da relação de ajuda na superação da dor da perda. 2010. Monografia (Pós Graduação em Aconselhamento) - Faculdade Teológica Batista de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 30. 525 PARKES, Colin Murray. Luto: estudos sobre a perda na vida adulta. São Paulo: Summus, 1998. 526 KOERICH, op. cit. 240 estar relacionados com experiências vivenciadas junto do ente, antes deste falecer, em especial os fatos que ocorreram próximos a data da morte, além dos casos de enlutados que não recordam do velório ou enterro, mesmo tendo comparecido e participado destes rituais. Retornando ao depoimento da moradora da cidade de Civitella Val di Chiana, pode-se levantar a partir deste algumas peculiaridades relacionadas às práticas do luto na contemporaneidade. A individualização da dor da perda no momento da morte, tão comum no século XX, nas cidades ocidentais, não se faz presente no relato, uma vez que é inversamente descrito pela sobrevivente. Ressalta que as mulheres se uniram para ritualizar seus mortos, através dos cortejos fúnebres e dos funerais, e igualmente concederem aos corpos de seus entes um espaço para abrigá-los no cemitério. Além do massacre italiano da cidade de Civitella Val di Chiana, diversos acontecimentos no decorrer do século XX provocaram processos de luto bastante traumáticos, como os originados a partir da Segunda Guerra Mundial. De acordo com Glaucia Vianna527, nos anos que sucederam a guerra, ocorreu um desmedido empenho “coletivo para prestar honras póstumas aos mortos, (na maioria dos casos, privados de funerais e quase sempre mortos em condições atrozes) e com o intuito de consolar os vivos - sobreviventes e enlutados - diziam que uma perda dessa natureza é dificilmente apaziguada”. Essas mortes ocasionadas pela guerra geraram lutos contínuos, causando aflições a famílias inteiras. Tais sobreviventes enlutados do pós-guerra, ao sentirem-se isolados e melancólicos, faziam algumas associações que os conduziam ainda mais ao sentimento de dor estrema, conforme salienta Vianna. Essas associações podiam ser representadas por meio de “uma palavra, mas também por algumas notas de uma melodia esquecida, alguns versos de um poema ouvido no passado, uma carícia leve e furtiva como a das plumas de um pássaro, que poderiam entrar em ressonância com as reminiscências dos mortos queridos.”528 Percebe-se então que a morte de uma pessoa querida e amada costuma causar muitas dificuldades para a vida do enlutado, podendo transformar-se em um luto traumático. Meses, anos e às vezes décadas de sofrimento e isolamento fazem parte do processo do luto. Porém,

527 VIANNA, Glaucia Regina. “Narradores melancólicos: literatura testemunhal e a construção de uma memória”. Morpheus, v. 8, n. 13, 2008. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2016. 528 Ibidem. 241

nem todos os enlutados vivenciam experiências traumáticas, sendo que muitos têm um conciso período de luto e conseguem demonstrar o seu pesar mais facilmente. Em suma, nas últimas décadas do século XX, a memória tornou- se cada vez mais presente, o que ocasionou posteriormente na sua obsessão e no pesar de nada esquecer. Bem como essa ânsia e dever de memória, encontra-se no final desse século, uma necessidade em preservar e restaurar.

5.2 MEMÓRIAS DAS MILAGREIRAS DO ITACORUBI: DOS JORNAIS AOS RELATOS

Saudades, só portugueses Conseguem senti-las bem, Porque têm essa palavra Para dizer que as têm.529

Sejam trinta e seis ou quatorze anos de morte, as três milagreiras do cemitério do Itacorubi trouxeram aos seus túmulos centenas de devotos no transcorrer dos anos. Suas memórias e histórias estão presentes nas páginas dos jornais catarinenses, nas placas de ex-votos presentes em suas sepulturas, nos relatos dos devotos e familiares e nos acervos pessoais de seus pais. Iniciando pela milagreira Vida Machado, que faleceu há quatorze anos, no dia 11 de novembro de 2002, a história de peregrinação e de suas graças alcançadas está presente nas páginas dos jornais catarinenses. Em pesquisas na Biblioteca Pública do estado de Santa Catarina, nos jornais em circulação entre os anos de 2002 e 2016, período do post mortem de Vida Machado, as reportagens sobre as visitações a sua unidade tumular foram encontradas em somente quatro reportagens, referentes aos anos de 2005 (duas deste mesmo ano), 2006 e 2009, todas vinculadas ao Dia de Finados (Imagem 64).

Imagem 64 – Reportagens de jornal sobre a devoção à Vida Machado.

529 PESSOA, Fernando. Quadras ao Gosto Popular. 6ª ed. Lisboa: Ática, 1965, p. 110. 242

Fonte: Biblioteca Pública de Santa Catarina, 2016.

Nestas quatro notícias, descrevem como foi a movimentação no Dia de Finados no cemitério do Itacorubi e ressaltam que um dos túmulos mais procurados é o da menina Vida Machado. Em três destas reportagens publicaram imagens de seu túmulo enfeitado com balões pelo seu pai Duduco e repleto de ritos, como flores e velas deixadas pelos seus devotos. Em todas as reportagens, mencionam que possuía uma saúde debilitada, decorrente do HIV positivo e que a quantidade de bilhetes e de placas de ex-votos agradecendo as graças chama atenção dos passantes. 243

Como descreve a jornalista Mariana Ortiga, entre as sepulturas mais visitadas do cemitério

está a de Vida Machado, que faleceu aos 10 anos [lembrando-se que ainda tinha 9 anos quando morreu] em função de ser portadora do vírus da Aids. Mesmo quem desconhece a história da criança que nasceu com a saúde comprometida pela doença e morou em uma creche, para e olha a sepultura, que chama a atenção por causa da ludicidade de duas estátuas: a de uma menina deitada em cima do túmulo e a de outra em pé sobre a construção de mármore, que mais parece uma pequena casa.530

Conforme já referido anteriormente, no subcapítulo 3.3, as estátuas são réplicas da própria Vida, sendo que a imagem deitada é da própria milagreira deitada no caixão, trajando um dos vestidos que usou em sua festa de aniversário e a do topo, em pé, foi uma das fotografias de Vida quando chegou ao Clube do Penhasco, onde festejou seu aniversário. Tais estátuas realmente chamam a atenção dos visitantes do cemitério do Itacorubi, como observei nos cinco anos de visita de campo ao cemitério. Menções como “olha o túmulo da menininha do Duduco”, “o túmulo da milagreira”, “que esculturas bonitas, quem está aí enterrada?” eram frequentes entre os que passavam pela sepultura de Vida Machado. Ainda referente às notícias de jornal, em três delas, duas referentes ao ano de 2005 e uma de 2006, seu pai Duduco concedeu entrevista aos jornalistas, ressaltando que visita o túmulo regularmente. Importante mencionar, conforme a entrevista que me concedeu, que durante este período visitava o túmulo da filha com frequência, sobretudo, nos Finados e aniversários de nascimento e morte e dia das crianças, levando balões e flores em homenagem a sua filha e permanecendo na sepultura durante longas horas, quando não o dia inteiro. Contudo, conforme supracitado no subcapítulo 3.4, após mudar de religião, tornando-se evangélico da igreja Assembleia de Deus, passou a frequentar a sepultura da filha raramente, indo apenas no Dia de Finados, permanecendo lá somente alguns minutos.

530 ORTIGA, Mariana. Feriadão com muita saudade. In: Diário Catarinense, 03 nov. 2009, p. 19. Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina (BPESC). 244

Além das reportagens jornalísticas, a memória de Vida Machado se faz presente no dia a dia de quem conviveu os nove anos ao seu lado, como seus familiares, em especial, seu pai. Durante algumas visitas de campo realizadas a casa de Duduco, observaram-se dezenas de materiais relacionadas à menina. Neste sentido, foram levantadas dezenas de fontes, como fotografias, reportagens de jornal, quadros, roupas e objetos pessoas de Vida Machado. Com um acervo de centenas de fotografias pessoais de Duduco, foram levantadas para a pesquisa setenta fotografias vinculadas à história de Vida Machado. São fotografias tiradas desde os seus primeiros dias na creche até seus últimos dias de vida, registrando viagens que a menina realizou com seu pai e irmãos, suas festas de aniversário, desfiles de carnaval que participava e registros do seu dia a dia na creche com seus colegas e irmãos. Além das fotografias, Duduco guarda em seu acervo pessoal há mais de quatorze anos dois dos vestidos utilizados por Vida em sua festa de quinze anos, evento este descrito no subcapítulo 3.3. Tais vestidos foram fotografados durante uma das visitas e estão registrados na Imagem 47. Outros elementos presentes no arquivo pessoal de Duduco são dois pequenos quadros (Imagem 65) que estão expostos em sua casa com duas das reportagens jornalísticas sobre Vida Machado, uma do ano de 2005 e outra de 2006, reportagens estas analisadas anteriormente.

Imagem 65 – Quadros de reportagens sobre Vida. 245

Fonte: Acervo pessoal de Nilson Nelson Machado, 2016.

Além de seu acervo pessoal, Duduco me concedeu uma entrevista531 de uma hora e doze minutos no dia 25 de janeiro de 2016, relatando a história de Vida Machado, como adoção, luta contra a doença, internações no Hospital Infantil Joana de Gusmão, viagens em busca de cura, relações afetivas com familiares e amigos na creche, além de contar como foi a morte da filha, os rituais fúnebres e seu post mortem.

531 MACHADO, 2016, op. cit. 246

Conforme descreve na entrevista, a memória de sua filha Vida está presente no seu dia a dia, sobretudo, em datas especiais, como aniversários de nascimento e morte, apesar dos quatorze anos de sua morte. Como bem reforça: “Claro que eu tenho saudades da minha filha. Eu choro quando chega o aniversário dela, quando chega o dia da morte dela, que eu não consigo esquecer. Quando eu mexo em alguma coisa aqui em casa eu lembro dela, como o vestido que ela usou.”532 A noção de saudade, segundo Roberto da Matta533, nos “faz refletir e, sobretudo, sentir com mais vigor, presença e intensidade o nosso amor e a ausência dos entes e das coisas que queremos bem. Ou seja: sei que amo porque tenho saudade. Sei que sinto a falta de um lugar porque dele sinto saudade.” Além disso, lembra que a saudade é uma categoria sociológica, o que significa que possui conexões com o passado, presente e futuro. Assim, devido estas relacionais com o tempo, os mortos “desaparecem, mas as relações ficam. Como disse, em outro lugar, no Brasil a morte mata, mas os mortos, pela força dos elos que temos com todos eles, não morrem. E aí está a saudade como um operador paradoxal que permite transformar a perda em felicidade.”534 A memória de Vida Machado também está presente nos relatos dos devotos que frequentam a sua sepultura. Nas inúmeras visitas à unidade tumular de Vida Machado durante os cinco anos de pesquisa realizada no cemitério do Itacorubi, dezenas de fiéis foram encontrados cultuando a menina milagreira, como no dia das crianças e Finados. Enquanto alguns devotos apenas rezavam em frente ao túmulo, ajoelhando-se, cruzando as mãos e fechando os olhos, outros levam vasos de flores naturais ou artificiais e deixam bilhetes e oferendas em gratidão à menina, como balas, bolachas doces e pipoca. Alguns fiéis como forma de se despedir da menina milagreira, beijam sua estátua deitada, presente em seu túmulo, além de muitos devotos que acendem uma vela e fazem o sinal da cruz. A grande maioria dos devotos encontrados não quis gravar entrevista ou assinar o termo de concessão de diretos autorais para a utilização nesta pesquisa. Porém, alguns conversaram e relataram os milagres feitos, como é o caso de Maria Aparecida da Fonseca Luz535 e

532 MACHADO, 2016, op. cit. 533 DAMATTA, Roberto. Conta de mentiroso: sete ensaios de antropologia brasileira. Rio de Janeiro: Rocco, 1993, p. 21. 534 Ibidem, p. 34. 535 LUZ, op. cit. 247

Idalino536. Esta última destacou que pediu algumas graças à Vida Machado, todas para a sua filha, para que fosse aprovada na escola, no terceiro ano do ensino médio e que passasse no vestibular, para o curso de Nutrição. Lembra que sua filha, de dezessete anos, nunca tirava notas boas na matéria de física e pediu para a menina Vida. Na próxima prova, tirou nove, nota nunca antes conseguida. Como forma de agradecimento, reza semanalmente uma missa em intenção a menina na Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, no centro da cidade de Florianópolis. Conhecida como a milagreira dos estudantes do cemitério do Itacorubi, a maioria dos pedidos são feitos por jovens estudantes, seja para ser aprovado no colégio, no vestibular ou apenas para tirar boas notas nas provas. Como relata a senhora Maria Aparecida da Fonseca Luz537, que é antiga frequentadora do cemitério do Itacorubi, por possuir o túmulo do marido ao lado ao de Vida Machado, são dezenas de crianças e jovens que vão e deixam os bilhetes e placas. Contudo, além dos jovens, muitos casos de doença e questões econômicas também são pedidos à Vida Machado, conforme já foi explorado no capítulo 4. Importante ressaltar que para muitos dos devotos que visitam o túmulo de Vida Machado, o motivo de sua visita é ocultado, sobretudo, quando existem promessas relacionadas ou pedidos particulares. Mas, quando as graças são alcançadas, muitos as testemunham, resultando na confirmação de seus poderes como milagreira, dando assim maior autenticidade aos seus dons como santinha de cemitério. Quanto às outras duas milagreiras do cemitério do Itacorubi, as irmãs Jane Furtado Koerich e Rosemary Furtado Koerich Noceti, conforme explorado no subcapítulo 2.2, estas faleceram há trinta e seis anos, vítimas do acidente aéreo do Boeing 727 da Transbrasil na noite do dia 12 de abril de 1980, no Morro da Virgínia, no bairro Ratone, em Florianópolis. O acidente, que matou cinquenta e cinco pessoas, será lembrado para sempre pelos pais das irmãs Koerich, Ony Furtado Koerich e Antônio Obet Koerich. A noite de sábado do dia 12 de abril, como também os dias 13 e 14 foram trágicos e jamais serão esquecidos pelo pai, Antônio538, tendo em vista que esperaram dois dias para

536 IDALINO, Laura Celma. Entrevista cedida à Julia Massucheti Tomasi, no dia 02 de nov de 2016. 537 LUZ, op. cit. 538 KOERICH, op. cit. 248 reconhecerem os corpos das filhas. Foram sepultadas apenas na tarde de segunda-feira, com a urna lacrada, sem velório e demais rituais fúnebres convencionais para a época, como realizar um cortejo fúnebre. Em entrevista, o senhor Antônio Obet Koerich539 destaca que muito do que viveu naqueles dias foi esquecido ou recorda com certa dificuldade. O esquecimento, conforme foi ressaltando no subcapítulo 5.1, se torna frequente quando a vida é abruptamente marcada por alguma ruptura, sendo a dor da perda um dos maiores traumas para a vida de um pai. De acordo com o senhor Antônio Obet Koerich540, as lembranças das filhas fazem parte de seu dia a dia, apesar das décadas da morte. Por quase vinte anos visitou o túmulo das filhas quase que diariamente, saindo do trabalho durante a semana e passando para orar por elas, sempre sozinho. Além dos dias de semana, visitá-las aos sábados era rotina dos pais, indo com sua esposa, Ony Furtado Koerich. O casal rezava por suas filhas e levava uma rosa de seu quintal como uma forma de homenageá-las. O senhor Antônio Koerich gentilmente me concedeu uma entrevista de uma hora e seis minutos, no dia 25 de fevereiro de 2015, relatando histórias de vida, morte e post mortem das filhas, como descrição das filhas, detalhes sobre suas mortes e visitações ao túmulo. Além da entrevista, durante algumas visitas realizadas a seu escritório, me disponibilizou as duas primeiras psicografias de sua filha Jane Furtado Koerich. A primeira é datada de 22 de agosto de 1980, manuscrita pelo médium Chico Xavier e a segunda de 12 de setembro de 1981, psicografada pelo médium Francisco Candido Xavier. Ambos são documentos originais e de acordo com o senhor Antônio Koerich, jamais foram disponibilizados para outra pessoa, tendo total cuidado, apreço e zelo com tais psicografias. As duas estão em ótimo estado (conforme se pode observar na Imagem 34 e

Imagem 36), guardadas cuidadosamente pelo pai, sendo que a primeira possui um total de 52 páginas e a segunda, 58 laudas. Quanto às reportagens jornalísticas catarinenses, a história do post mortem das irmãs só foi noticiada em matérias sobre a queda do

539 Ibidem. 540 KOERICH, op. cit. 249

avião, como no dia 12 de abril de 1981, pelo Jornal O Estado541, em uma reportagem especial sobre o acidente aéreo, contendo informações sobre as ocorrências após um ano da queda do avião. Nesta matéria (como apresentado na

Imagem 36), intitulada “Jane Koerich envia mensagem pelo médium Chico Xavier”, também publicam um fragmento da primeira psicografia de Jane Furtado Koerich, do dia 22 de agosto de 1980. No fragmento escolhido pelo jornal, Jane narra não entender o porquê de escolherem aquele horário do voo, tendo em vista que anteciparam a passagem já comprada anteriormente. Quanto às matérias de jornal veiculadas em todo o estado de Santa Catarina sobre a devoção as irmãs, estas são totalmente inexistentes, não havendo menção a seus milagres em nenhuma reportagem ou mesmo trabalho acadêmico. Referente às visitas dos devotos aos túmulos das irmãs Koerich, em todos os dias de pesquisa realizados ao cemitério do Itacorubi, foram encontrados somente familiares, entre eles, pais e irmãos, além do devoto Duduco, pai de Vida Machado. Duduco, que foi um dos primeiros a depositar as placas de ex-votos às irmãs durante o início da década de 1980542, conforme já mencionado no subcapítulo 4.2, foi o único não pertencente ao círculo familiar encontrado visitando o túmulo das irmãs. A visita foi realizada no Dia de Finados do ano de 2015, quando Duduco rezou sobre as sepulturas e depositou um vaso de flores naturais em homenagem às irmãs. Assim, apesar das trinta e três placas de ex-votos deixadas sobre a unidade tumular das irmãs, datadas de 1982 a 2015, os fiéis não foram encontrados nas minhas dezenas de saídas de campo ao cemitério do Itacorubi. Pelas análises, isto significaria que as milagreiras não possuem mais devotos que pedem a elas no cemitério, o que não condiz com as placas, tendo em vista que das quatorze placas datadas, doze são atuais, deixadas a partir do ano de 2001, inclusive, uma delas do dia 07 de julho de 2015. Contudo, o que pode-se constatar é que seus devotos não frequentam seus túmulos em datas especiais, como dia de Finados e aniversário de morte, tendo em vista que durante todos os dias de

541 O ESTADO, 1981, op. cit., p. 17. 542 MACHADO, 2016, op. cit. 250

Finados e morte das irmãs entre os anos de 2012 e 2016 estive presente em suas sepulturas. Outro fato que merece destaque é que as pessoas não param em sua unidade e nem mencionam sobre quem ali está sepultada, apesar da grande quantidade de placas que chamaria a atenção dos passantes. Ainda referente às visitações, o pai das milagreiras, Antônio Obet Koerich543 destacou que nas centenas de vezes que esteve no cemitério visitando os túmulos de suas filhas, raríssimas foram as ocasiões que cruzou com algum devoto, lembrando remotamente de no máximo duas visitas. Em suma, o cemitério do Itacorubi abriga três milagreiras com diferentes realidades, práticas e rituais. Enquanto uma milagreira possui apenas cinco placas de ex-votos em seu túmulo, que é o caso de Vida Machado, se caracteriza por ter um túmulo repleto de rituais, visitas, bilhetes, oferendas, orações e práticas de centenas de devotos em datas especiais, como os dias de Finados e das crianças. Já as irmãs Koerich possuem trinta e três placas de ex-votos, número significativo quando comparado a outros milagreiros do Brasil, mas suas visitas e ritualização são escassas, sendo encontrados somente familiares que deixam flores naturais e artificias e acendem velas. Quais seriam os motivos para tais divergências? Quanto à diferença da quantidade de placas, as explicações podem ser variadas. Os vinte e dois anos que distanciam a morte das três milagreiros pode ser um motivador, sendo a morte das irmãs Koerich muito mais pretérita do que a de Vida Machado. Além disso, conforme já explorado no trabalho, Duduco544, o pai de Vida Machado, durante alguns anos se desfez de várias placas de ex-votos deixadas no túmulo da filha, jogando-as fora. Diferentemente, o senhor Antônio Obet Koerich545, pai das irmãs Koerich destacou na entrevista que nunca jogou fora qualquer placa, apesar de algumas delas terem se deteriorado com o transcorrer do tempo, como as placas de madeira e outros materiais mais frágeis. Quanto às visitas e ritualizações, sem dúvida os devotos de Vida Machado são mais frequentes do que os das irmãs Koerich, ao menos em datas especiais, além de deixarem oferendas com muito mais regularidade. De acordo com os coveiros Enio Vilpert546 e João Ferreira

543 KOERICH, op. cit. 544 MACHADO, 2016, op. cit. 545 KOERICH, op. cit. 546 VILPERT, op. cit. 251

de Lima547, o túmulo de Vida Machado realmente é muito mais procurado e visitado que os das irmãs Koerich. Enfim, são apenas três unidades tumulares e três falecidas entre os milhares de sepultados e sepulturas existentes no cemitério do Itacorubi que reúnem placas de ex-votos e fiéis que lá visitam para ritualizar, pedir, orar e agradecer pelas graças alcançadas.

547 LIMA, op. cit. 252

CONSIDERAÇÕES FINAIS: CONCLUINDO AS LAUDAS ATRAVÉS DAS MILAGREIRAS E SEUS TÚMULOS

Cemitérios, sepultados, túmulos, milagreiros, velas, epitáfios, flores, placas de ex-votos, fotografias, bilhetes de devotos, memórias, entrevistas e enlutados. Locais de pesquisa e temas que acompanham meu cotidiano acadêmico há uma década. Em síntese, pesquisar a imensidão que abrange a temática da morte, perpassando por inúmeros assuntos e contextos, como os mortos, rituais e cultos fúnebres, milagreiros, memórias, choros, comoções, medos, luto e sentimentos de dor e saudades dos pais enlutados. Estes foram alguns dos diversos obstáculos e dificuldades enfrentadas no decorrer da trajetória da pesquisa, sobretudo, dos quatro anos desta tese. Trilhar outros caminhos de estudo que não a morte e o morrer e voltar atrás? Nunca, tendo em vista que estes foram assuntos desafiadores, instigantes, novos e prazerosos para uma historiadora do tempo presente, que vê na morte, nos cemitérios e no morrer um universo ainda interdito e esquecido a ser percorrido e alinhavado nas escritas historiográficas. Do mesmo modo, não poderia deixar de confessar que lágrimas caíram com algumas saídas de campo ao cemitério do Itacorubi, com imagens emocionantes e comoventes em frente aos túmulos das milagreiras e durante os relatos dos entrevistados, mesmo sabendo-se que para ser um “bom pesquisador”, deve-se haver um distanciamento dos documentos de pesquisa. Contudo, apenas quem estuda os cemitérios, a morte e os mortos de perto pode compreender as entrelinhas e as nuances de uma pesquisa fúnebre, que é tão interdita para muitos, e tão prazerosa para poucos548. Para tal trabalho, foram dias investigando e buscando novos cemitérios e seus respectivos túmulos de milagreiros pelas cidades que visitei, passando pelo oeste, serra, sul, norte e litoral catarinense. Todavia, foi em Florianópolis, especificamente no cemitério do Itacorubi, que desfrutei das mais intensas e produtivas horas, chegando a

548 Neste sentido, faz-se necessário salientar que no ano de 2004 foi criada a Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais (ABEC), durante seu primeiro congresso realizado na Universidade de São Paulo. São dezenas de pesquisadores das mais variadas áreas de conhecimento, como sociologia, história, geografia, teologia, arqueologia e antropologia, que discutem teorias e práticas da temática da morte, além de trocarem experiências regionais através de encontros realizados a cada dois anos. 253

dias, meses e anos visitando, pesquisando e registrando as unidades tumulares de Vida Machado e das irmãs Rosemary Furtado Koerich Noceti e Jane Furtado Koerich, as três milagreiras da cidade de Florianópolis. Para muitos que caminhavam pelas vias e corredores estreitos e irregulares do cemitério do Itacorubi, fossem devotos ou pessoas que circulavam para visitar a sepultura de parentes e amigos, acender velas, orar pelos entes queridos ou fazer um pedido, eu era mais uma devota ou enlutada, enquanto para alguns eu era uma pesquisadora ou mesmo uma verdadeira estranha, sempre acompanhada por uma câmera fotográfica, um caderno e um lápis nas mãos, registrando inúmeros momentos, buscando não intervir nas ações, rituais e cultos dos visitantes, enlutados e devotos. Já para os coveiros, eu era a historiadora das santinhas, que ouvia seus causos e histórias e insistia em visitar os túmulos das milagreiras, fossem dias de chuva e de sol, quentes e frios, sempre levantando rituais e conhecendo novos devotos. Assim, buscou-se com esta pesquisa compreender e analisar as devoções às milagreiras do cemitério do Itacorubi, observando-se suas histórias de vida, morte, post mortem e memórias. Foram pesquisadas suas características pessoais, relações familiares, envolvimentos religiosos, além de explorar como ocorreram suas mortes549 e destacar suas memórias e seu post mortem, considerando-se para tal suas unidades tumulares, seu único espaço devocional. Para tanto, foram levantadas e analisadas inúmeras fontes, como orais, escritas e visuais, buscando-se caminhos, respostas e novas reflexões aos meus questionamentos. Através dessa pesquisa, deu-se voz a homens e mulheres, que apesar do estranhamento e “distanciamento” de alguns para com o tema, contribuíram com suas histórias e memórias, como rituais e práticas vivenciadas. Porém, importante ressaltar que se para alguns entrevistados a temática causou repulsa e estranheza, para outros foi a oportunidade de recordar bons momentos e experiências jamais relatadas. Sentimentos, emoções, lágrimas e sorrisos fizeram parte dos depoimentos orais. Nota- se aqui a importância da história oral, que se caracteriza, segundo Paul

549 Lembrando-se que Vida Machado faleceu no ano de 2002, com apenas nove anos de idade, vítima do vírus HIV e, que as irmãs Rosemary Furtado Koerich Noceti e Jane Furtado Koerich faleceram no acidente aéreo do Boeing 727 da Transbrasil no morro da Virgínia, no bairro Ratones, em Florianópolis, no dia 12 de abril de 1980. 254

Thompson550, na construção da história em torno de pessoas. A história oral “[...] lança a vida para dentro da própria história e isso alarga seu campo de ação”.551 Dentre estas fontes orais, foram realizadas inúmeras entrevistas com os devotos, amigos e familiares das milagreiras, com especial atenção às entrevistas dos pais das três milagreiras, como também os coveiros do cemitério do Itacorubi. Além das entrevistas, as fontes escritas também foram primordiais para o desenvolvimento da pesquisa, como os jornais da imprensa florianopolitana presentes no acervo da Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina (BPESC) e as psicografias das irmãs Koerich. As imagens foram outras fontes importantes para o desenvolvimento do trabalho, como os registros fotográficos das numerosas visitas realizadas no cemitério do Itacorubi entre os anos de 2012 e 2016, sobretudo, nos dias de Finados e aniversários de nascimento e morte das milagreiras. Além das fotografias do cemitério, através do acervo pessoal de Nilson Nelson Machado, pai da milagreira Vida Machado, foram coletadas dezenas de fotografias de sua filha, como imagens de suas festas de aniversários, viagens e registros de seu dia a dia na creche. Foram entrevistas, vozes, fotografias, psicografias, jornais e pesquisas de campo nos cemitérios que deram corpo e alma ao trabalho, englobando esta tese vertentes e aspectos da vida, morte, post-mortem e memória das “santinhas” do Cemitério do Itacorubi. Foi no transcorrer de cinco capítulos que se desenvolveram várias discussões e análises, iniciando-se pela história dos santos canonizados pela Igreja Católica e dos milagreiros dos cemitérios brasileiros, com ênfase nos “santinhos de cemitério” do estado de Santa Catarina. Observou-se que muitos dos santos que foram canonizados pela Igreja Católica no decorrer da história também eram anteriormente cultuados em seus túmulos, tornando-se suas sepulturas locais de peregrinação dos devotos, que lá rezavam e agradeciam. Após reconhecimento da Igreja, eram construídos santuários para acolher seus restos mortais e conferir um grau de institucionalização dos santos padroeiros da região. Quanto aos milagreiros de cemitérios, percebeu-se que estes são intercedidos por indivíduos das mais variadas classes sociais e religiões, por meio de devotos que estabelecem e sustentam

550 THOMPSON, Paul. A voz do passado: História Oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 44. 551 THOMPSON, op. cit. 255

uma relação afetiva e de confiança com seus “santinhos e santinhas de cemitério”. Viver na mesma cidade que seu milagreiro, poder visitar e tocar sua unidade tumular, fazendo os pedidos diretamente a eles, conhecer suas histórias de vida e morte, além de poder conversar ou mesmo pedir a eles são elementos de intimidade que aproximam milagreiro e devoto, ampliando sua fé e crença. Apresentaram-se milagreiros das mais variadas faixas etárias, sobretudo, as crianças e adultos, como mulheres e homens que viveram e morreram nas mais variadas regiões do Brasil durante o final do século XIX e decorrer do XX e que tiveram diversificados tipos de mortes, como os casos de mortes trágicas, entre eles os assassinatos, como os enforcamentos e esfaqueamentos. Os suicídios também fizeram parte das mortes dos milagreiros apresentados no trabalho, em especial, das mulheres prostitutas. De Maria Degolada a Antoninho da Rocha Marmo, observou-se que os milagreiros de cemitério permeiam um universo de devoções, práticas e ritualizações. Do mesmo modo, analisou-se a preocupação existente em cultuar os mortos no decorrer da história, desde a Antiguidade, com a intensificação do culto aos mártires. Além disso, abordou-se as histórias de vida e morte das irmãs Koerich, dando-se especial atenção ao acidente aéreo que as vitimou no dia 12 de abril de 1980 e as mensagens psicografadas enviadas por elas. Do mesmo modo, foram exploradas as histórias de Vida Machado, desde a sua adoção, suas festas de aniversário, os longos anos de doença e internação no Hospital Infantil Joana de Gusmão, suas relações afetivas com os irmãos da creche e seu pai, além de sua morte, com apenas nove anos de idade. Explorou-se também o local de sepultamento das milagreiras, através da história do cemitério Municipal São Francisco de Assis, mais conhecido como Itacorubi, o cemitério público mais antigo da cidade de Florianópolis, que por quase um século de história de enterros, velórios, cortejos e exumações, faz do cemitério do Itacorubi um espaço fúnebre de rituais religiosos, intensas devoções, dor, luto e saudade. Do mesmo modo, apresentaram-se os túmulos das três milagreiras, explorando-se a periodicidade da visitação dos familiares e devotos, as serenatas realizadas nos túmulos durante anos pelos amigos e parentes, o cuidado com as sepulturas, as dezenas de placas de ex- votos deixadas, os bilhetes entregues com agradecimentos e pedidos de graças e as oferendas e cultos ali praticados, sendo suas sepulturas locais de intensas devoções e ritualizações. 256

Por fim, abordaram-se as entrevistas, memórias e testemunhos dos devotos e familiares que permeiam a devoção das três milagreiras do cemitério do Itacorubi, o que acaba reconhecendo e consequentemente legitimando os poderes de milagreiras através destes relatos. Foram os relatos dos pais, parentes e amigos das milagreiras que revelaram seus dias de vida e personalidades, humores, afeições e preferenciais. Além disso, também foram entrevistados os devotos, de modo que testemunhar uma graça alcançada não foi observado somente como um mero relato entre os devotos, mas sim uma propagação e estímulo da fé, proporcionando a difusão dos milagres em seus vínculos sociais, como entre amigos, parentes e, inclusive, desconhecidos que relatam experiências no próprio cemitério, quando visitam a sepultura das milagreiras. Quanto às visitas e ritualizações, notou-se que os devotos de Vida Machado são muito mais frequentes do que os das irmãs Koerich, particularmente nas datas especiais, como Finados, dia das Crianças, Páscoa, Natal e aniversários de nascimento e morte, além de deixarem oferendas com muito mais regularidade, como doces e ritos. Contudo, as placas de ex-votos são mais recorrentes nos túmulos das irmãs Koerich, com trinta e três unidades, enquanto que na sepultura de Vida Machado foram encontradas somente cinco durante a última visita, realizada no Dia de Finados no ano de 2016. Observou-se também por meio da pesquisa, que por não serem santos oficiais da Igreja Católica, com eventos e festividades criados e organizados pelo clérigo para cultuá-los e midiatizá-lo, os milagreiros de cemitério dependem exclusivamente da propagação de seus devotos, sobretudo, através da oralidade, como a divulgação de graças alcançadas. Todavia, deve-se destacar que apesar dos vários temas explorados, existem outros para serem considerados e futuramente pesquisados, abrindo-se então novas portas e janelas para futuras investigações e estudos acadêmicos. Percebe-se assim que as devoções às milagreiras do Cemitério do Itacorubi possuem distintos caminhos a serem estudados nas diversas áreas de conhecimento, como na sociologia, antropologia e psicologia, englobando esta pesquisa somente algumas abordagens no campo historiográfico. Em síntese, são inúmeras placas de ex-votos, bilhetes com pedidos de graças, velas acesas e derretidas, flores naturais e artificiais e oferendas de alimentos que fazem das sepulturas de Vida Machado, Rosemary Furtado Koerich Noceti e Jane Furtado Koerich, as três milagreiras do cemitério do Itacorubi, espaços únicos de devoções e 257

cultos, repletos de dinamismo, cores, aromas e pessoas que se tornaram neste trabalho, locais de incessante análise, pesquisa e estudos.

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REFERÊNCIAS

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