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Por uma crítica imanente sobre os limites das políticas públicas de direitos sociais e o Estado na produção do bem comum no modo de produção capitalista Common production in : a critical reading through the public policies linked to rights

Marcus Orione Gonçalves Correia Resumo Universidade de São Paulo. Faculdade de Direito. São Paulo, SP, Brasil. Aprendemos que o estado é responsável pela pro- E-mail: [email protected] dução do bem comum. Desta forma, ele protegeria a coletividade sempre agindo em conformidade com o interesse coletivo, no sentido de produção do bem comum. Veremos que esta forma de conceber as coisas é indispensável para a preservação da ilusória lógica de preservação da democracia bur- guesa. Desta forma, se faz indispensável conceber uma crítica imanente do estado, para que possamos entender os limites das ações estatais na produção deste bem comum. Aqui deve-se ressaltar que a produção do bem comum é uma ilusão recorrente. Uma vez que o é um processo de acumulação de dinheiro pela extração da mais-valia, o estado as- sume um papel estratégico na reprodução da lógica do capital. Sendo o dinheiro equivalente universal, é importante que exista garantia para a sua circula- ção, sendo indispensável um agente que a promova. Sem produção e a sua correspectiva circulação, não há capital. Sem um agente que garanta o processo de troca, o estado, também não é possível a existência do capital. A produção do bem comum por meio das políticas públicas estatais referentes aos direitos sociais encontra-se intimamente ligada a este fenômeno e faz-se necessária uma crítica radical marxista para a sua compreensão. Palavras-chave: Bem Comum; Estado; Marxismo. Correspondência R. Riachuelo, 185. São Paulo, SP, Brasil. CEP 01007-000.

DOI 10.1590/S0104-12902015S01005 Saúde Soc. São Paulo, v.24, supl.1, p.55-65, 2015 55 Abstract A limitada visão institucionalista We’ve learned that the state is responsible for the da produção de bem comum production of . Besides, it protects Aprendemos que o Estado é responsável pela produ- the collectivity and always acts according with ção do bem comum. Além disso, protege a coletivi- public concerns – which, theoretically, would be dade e atua sempre conforme os interesses públicos convergent to the concerns of those who are under – que, em tese, seriam convergentes com os de todos its empire. We will see that this is no more than a que compõem os que estão sob o seu império. recurrent and indispensable illusion for conso- Numa visão institucionalista, nos é passado lidation of a bourgeois . Nevertheless, que, como toda instituição, a estatal compõe-se dos it is indispensable to think about an immanent seguintes elementos: um conjunto de pessoas que, state analysis, in order to, later, understand the sob uma regência, se dirigem a um fim único. O existing limits in its acting as a supposed most fim comum é constantemente destacado para dar important producer of common good. Here is a re- a todos a sensação de obra coletiva a ser realizada current illusion about the idea that the state, while na perspectiva institucional. A igreja católica, por promoting the interest, is the common exemplo, seria uma instituição. Os católicos outor- good production pillar. Well, once capital is the gam poderes ao papa e aos demais religiosos que se process of money accumulation by extracting a organizam, de forma hierárquica, e que se encon- surplus-, the state takes its higher expression tram empossados a partir da missão de realizar o as an intrinsic relation with the capital logic. Once fim comum consubstanciado na consagração dos money is the universal equivalent, it is important that, for its circulation, a guarantee does exist, dogmas da fé que professam. being an indispensable agent to promote such. Nessa visão, o Estado seria, para muitos, um Without ’ production and circulation dos mais perfeitos exemplos de instituição. Os there is no capital. Without such guarantee agent cidadãos entregam, por meios ditados pela forma which shall consolidate the daily exchange process legal e condizentes com a democracia burguesa, a through the universal equivalent (money), there is persecução de um fim comum (a concretização do no capital. Without a guarantor of such production bem público). O bem coletivo aparece como um fim and circulation - the state - there is no capitalism. a ser realizado. Não é sem razão que as decisões do The common good production through the public Supremo Tribunal Federal, não raras vezes, acen- policies is linked to social rights in their context tuam o caráter institucional das ações estatais de and we need a critical Marxist reading to unders- proteção coletiva, como se percebe, por exemplo, com tand such an issue. as demandas envolvendo a previdência social. Esse Keywords: ; State; . é um bom exemplo, já que mesmo com o prejuízo de milhares de pessoas permite-se, in pejus, a mo- dificação de sistemas de proteção previdenciários. A razão posta nos julgados é sempre a mesma: ou seja, antes o sacrifício desses “poucos” do que o da totalidade dos demais. Em geral, quando não somos diretamente afetados, concordamos incondicional- mente com essas premissas – até sermos, um dia (e seremos), atingidos pelas soluções em favor do que se convenciona chamar interesse coletivo. É claro que em matéria de saúde também poderíamos vis- lumbrar a mesma hipótese. Não é desconhecido de ninguém que devemos, sim, em certas hipóteses, ter os nossos interesses individuais sacrificados em nome dos coletivos. Não

56 Saúde Soc. São Paulo, v.24, supl.1, p.55-65, 2015 obstante, a insuficiência das respostas decorrentes perspectiva de indivíduos isolados e não de forma da teoria institucionalista é óbvia. coletiva); b) evita-se a abstração utópica – ou seja, Remanescem questões que nos colocam em di- soluções que remontam a um vazio terminológico ficuldades diárias: será que realmente estamos em e de ação, que, no fundo, nada expressam e não se condição de dizer que o bem produzido é efetivamen- embasam necessariamente no real. Na verdade, aqui, te coletivo? Será que o fim comum realmente está partimos da distinção entre socialistas utópicos e sendo buscado? Será que, observadas as condições socialistas científicos para perceber que a elabo- atuais, é efetivamente possível identificar e distin- ração científica da crítica imanente requer uma guir o bem coletivo? Será que há como identificar construção materialista histórico-dialética a partir realmente aqueles que se dizem promotores de um da teoria do mais-valor, com o que não haverá espa- bem coletivo? ços para elucubrações que constituam idealizações. Ficamos, enfim, confusos. Assim, por exemplo, são evitadas determinações muito abertas, resolvendo-se tudo a partir apenas O que se entende por uma crítica de expressões como “o capitalismo é ruim” e o “so- cialismo é bom” – as determinações precisam ser imanente mais fechadas e baseadas em fatos históricos e na Na nossa concepção, a melhor maneira de abordar sua dialética constante. a produção do bem comum se dá a partir de uma Esses são alguns dos elementos básicos para a leitura marxista. Trata-se do que conhecemos como realização da crítica imanente à forma como a pro- crítica imanente. Quais, no entanto, os elementos dução do bem comum é entendida na atual lógica para esse tipo de análise crítica? institucionalista. Para a realização da crítica imanente dois as- pectos preliminares acentuam-se: a) a utilização do A crítica imanente à realização materialismo histórico-dialético (aqui sugerimos leituras como, por exemplo, o Anti-Düring e Luwig do bem comum a partir do papel Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, ambos desempenhado pelo Estado no de autoria de , além de trechos das modo de produção capitalista obras Contribuição à crítica da economia política e os , de , além da própria Como realçamos no início do texto, há uma ilusão re- leitura d’O capital); b) a análise crítica da teoria corrente em torno da ideia de que o Estado, enquanto do valor-trabalho em seus mais variados aspectos promotor do interesse coletivo, é o pilar da produção (veja-se que, ainda aqui, para a realização desta do bem comum. Veremos que isso não passa de uma crítica é indispensável que a noção de mais-valia se ilusão recorrente e indispensável à consolidação da realize com a utilização do método, o materialismo- democracia burguesa. No entanto, é indispensável histórico dialético). que pensemos a respeito de uma teoria do Estado Trata-se, pois, de método de análise incidente marxista para, após, entender os limites existentes sobre determinado tema estudado. na sua atuação enquanto suposto mais importante Por fim, se não é possível, a priori, dizer exa- produtor do bem comum. tamente os resultados quando se realiza a crítica No plano original de sua obra maior, O capital, imanente, é viável perceber o que se evita com a sua Marx pretendia legar uma análise específica sobre utilização: a) o individualismo metodológico – a solu- o Estado (Rosdolsky, 2001). Porém, não tendo reali- ção individualizante na compreensão dos fatos pos- zado o seu intento, trata-se de tarefa indispensável tos em observação, em especial a título de realização que vem sendo consolidada por vários marxistas. da ciência. Isso aparece em Marx, frequentemente, Nos limites deste trabalho daremos apenas algumas com o nome de “robinsonada” (em referência ao soli- contribuições para o tema, sem pretender, por óbvio, tário Robinson Cruzoe na ilha em que se perdeu, na esgotá-lo. A nossa intenção é apenas sugerir algu- medida em que as soluções pensadas se dariam na mas formas de análise referentes ao Estado no modo

Saúde Soc. São Paulo, v.24, supl.1, p.55-65, 2015 57 de produção capitalista, para fins do entendimento é indissociável da soberania do Estado, e sua so- de seu papel na concretização do que se entende por brevivência supõe que os proprietários privados bem coletivo. acatem a moeda com uma convenção necessária A primeira menção ao Estado em O capital1 (2013) para a reiteração do processo de circulação das se dá na página 198, quando Marx diz: “Assim como mercadorias, de liquidação das dívidas e avaliação a determinação do padrão de preços, também a das riquezas (p. 63). cunhagem de moedas é tarefa que cabe ao Estado”. E, de novo, aparece a mesma função na página 201, em Ora, como veremos a seguir, sendo o capital que o Estado lança no processo de circulação moedas processo de acumulação de dinheiro por meio da que ele cunha. Esse papel do Estado é notado por extração da mais-valia, a primeira vez em que o quando, após destacar as passagens Estado emerge no texto marxiano já faz evidenciar anteriores, diz: “Portanto, o Estado desempenha um a sua relação intrínseca com a lógica do capital. papel vital na substituição de mercadoria-dinheiro Sendo o dinheiro o equivalente universal, é impor- de metal por formas metálicas” (Harvey, 2013, p. 74). tante que tenha garantias de sua existência e de sua Aliás, como lembra Luiz Gonzaga Belluzzo: circulação, fazendo-se indispensável um agente que as promova. Sem produção e circulação de mercado- É pouco mencionado que, já nos capítulos em que rias não há capital; sem a garantia de que estas se cuida da circulação simples de mercadorias e do consolidarão no processo diário de troca, a partir do dinheiro, Marx apresente o Estado moderno como equivalente universal (dinheiro), não há capital. Sem companheiro inseparável da mercantilização geral. um agente garantidor de tal produção e circulação, Nos capítulos sobre a gênese do dinheiro em sua o Estado, não há capitalismo. formatação mercantil, Marx apresenta o Estado No entanto, para melhor compreender o Estado e como fiador da moeda e garantidor da confiança dos o seu comprometimento intrínseco com o processo produtores no resultado de sua labuta. O sistema do capital, é indispensável que se entenda como, na jurídico liberal – particularmente as codificações teoria marxista, se concretiza a lógica desse modo do direito civil e comercial – foi concebido para de produção. permitir a fluidez da circulação de mercadorias e Seria muito simples reduzir o Estado a uma re- dinheiro e, ao mesmo tempo, conter os impulsos alidade que somente se concretizou com o advento individuais dos que pretendam arranhar as ilusões da sociedade capitalista. No entanto, assim como o de equivalência e igualdade. Em sua essência a direito, o Estado, embora forma concretizada na sua soberania monetária está apoiada na arquitetura mais completa plenitude apenas no capitalismo, tem jurídica que sustenta indivíduos livres em sua sido urdido com a própria transformação paulatina condição de produtores de mercadorias, apenas das relações de produção e a concretização plena submetidos às normas dos contratos garantidos deste modo de produção. Assim, por exemplo, até pelo Estado (2013, p. 62). se chegar ao direito nos moldes atuais, há várias protoformas, que não podem ser desprezadas para E, sobre a fidúcia na moeda e o papel do Estado a sua compreensão enquanto forma específica do na preservação dessa confiança, diz Belluzzo na capitalismo. O mesmo se dá com o Estado – não mesma obra: obstante, a sua interpenetração mais imediata com Em última instância, a reprodução da sociedade a política, a questão é imensamente complexa. fundada no enriquecimento privado depende da Nos mesmos moldes, veja-se, por exemplo, a lenta capacidade do Estado de manter a integridade da passagem do trabalho artesanal, que caracterizava o convenção social que serve de norma aos atos dos feudalismo, para o trabalho manufaturado e, depois, produtores independentes. A ordem monetária para o trabalho da época industrial, com a introdu-

1 Aqui utilizaremos basicamente o Livro I. Faremos uso da seguinte edição: MARX, K. O capital – Livro I: o processo de produção do capital. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013.

58 Saúde Soc. São Paulo, v.24, supl.1, p.55-65, 2015 ção da maquinaria (Marx, 20132). A transformação Além disso, para a lógica do capital, é importante é lenta e não se processa instantaneamente. No que a mercadoria individual apresente-se como a caso do Estado isso também se dá. Até o advento sua forma elementar. No entanto, a forma elementar do capitalismo formas anteriores ao Estado foram da sociedade capitalista não é composta da merca- importantes, como se percebe, ainda que de maneira doria individual, mas a sua consideração como um indireta, do capítulo 24 do Livro I d’O capital, em fenômeno social que tem na sua coletivização (ou que se descreve “A assim chamada acumulação melhor, na sua difusão) a mais adequada maneira primitiva” (p. 785). No entanto, não dissentimos da de se entender o fenômeno do capitalismo. conclusão segundo a qual, em sua expressão mais Esse jogo de essência e aparência oculta a relação evoluída, o Estado é forma específica do capitalismo. entre o valor de uso e o valor de troca da mercadoria Somente essa constatação faz possível a compre- e irá desembocar, no fim do capítulo I do Livro I d’O ensão da captura da produção do bem comum pela capital, no que Marx chamou do “caráter fetichista racionalidade do capital. Ou melhor, no capitalismo da mercadoria”. Trata-se de conceito-chave para a processa-se a mágica que faz com vejamos o Estado construção do pensamento marxista ou, como lem- como a única maneira de expressão da satisfação dos bra David Harvey: interesses coletivos e, mais, uma como expressão eterna desses interesses. Trata-se do que, em Marx, No restante d’O Capital, como veremos, o conceito aparece sob o nome de fetiche da mercadoria (item de fetichismo aparece várias vezes (em geral, mais 4 do capítulo I do Livro I d’O capital). Para enten- implícita do que explicitamente) como ferramenta dermos tal proposição é necessário que lembremos essencial para desvendar os mistérios da economia a mudança processada e a transformação do modo política capitalista. Por essa razão, considero o de produção para caracterizá-lo como capitalista. conceito de fetichismo fundamental tanto para a Começo com o próprio Marx, segundo o qual “[...] economia política como para o argumento de Marx toda ciência seria supérflua se houvesse coinci- em seu conjunto. (2013, p. 46) dência imediata entre a aparência e a essência das coisas [...]” (2008, p. 1080). Essa ilação é importante Na dialética entre valor de uso e valor de troca na medida em que: a riqueza do capitalismo se apre- Marx constrói o seu método próprio, embora não senta (isto é, apenas aparece) como uma enorme desprezando a dialética hegeliana, e desvenda o pri- coleção de mercadorias. No entanto, atrás dessa meiro grande mistério do capital: a mercadoria não aparência há a essência: a riqueza do capitalismo é a fonte da riqueza do capital, que busca esconder não se expressa nesses moldes (mas sim pelo valor o lugar de onde ela realmente é proveniente, isto é, trabalho). No entanto, é importante que as pessoas da exploração do trabalho assalariado. O capital não não notem que o valor trabalho é que compõe a se explica pela mercadoria particular, mas pelo con- riqueza do capitalismo. É indispensável ainda que junto de mercadorias. Não se explica essencialmente elas não se apresentem como ilusão (aparência) pelo trabalho concreto, mas por sua passagem para de que a opulência do capital é proveniente das o trabalho abstrato. mercadorias. Esse caráter ilusório não é percebido Isso tudo somente ficará claro a partir da relação pelos clássicos da economia política, que, embora estabelecida na dualidade entre valor de uso e valor partam do valor trabalho para a construção de de troca. Essa dualidade que se comunica como duas suas teorias (ainda que com algumas diferenças janelas. Marx passa de uma janela para outra e vai fundamentais que não poderemos identificar neste estabelecendo a relação dialética, na perspectiva trabalho), mesmo antes de Marx, não operam com não das ideias, mas no plano dos fatos sociais como tal categoria a partir da relação entre essência e indispensável para a construção de seu pensamento. aparência – e mais ainda não se preocupam com o Portanto, há de se entender que: a) o capital é um caráter fetichista da mercadoria. processo em que o capitalista busca a acumulação,

2 Livro I, em seus capítulos X a XIII.

Saúde Soc. São Paulo, v.24, supl.1, p.55-65, 2015 59 em seu poder, de dinheiro, e b) para processar a esta faces de uma mesma moeda, sendo que uma surge acumulação, é indispensável a captação do mais- da outra e a outra depende da primeira. É um desdo- valor (realização da mais-valia). bramento hegeliano que, para dar certo, observado Verifique-se que a obra O capital pretende apenas método próprio de Marx, tem de ser analisado no explicar como se processa o capitalismo, sendo um processo material e histórico. texto de constatação científica deste. Marx constata Ainda em apertada síntese, não bastaria, para como se dá a concepção do valor de uso e de troca que se produzisse o capital, que a mercadoria fosse na lógica do capital, bem como a importância da trocada por dinheiro e, depois, trocada novamente acumulação do dinheiro e da extração da mais-valia por mercadoria (M-D-M). Trata-se de uma troca para o modo de produção capitalista. Ele não cria as rudimentar de mercadorias, que faria com que a ló- relações de produção e nem indica a dinâmica das gica de equivalentes fosse preservada, não havendo forças produtivas: elas simplesmente são constata- qualquer acumulação típica do capitalismo. Neces- das por Marx a partir da movimentação do capital. sário se faz que o dinheiro universalize-se como Não há como se atribuir a O capital as mazelas do mercadoria, como equivalente universal e, depois, capitalismo, que ali estão apenas dissecadas. alguém busque a sua acumulação com a apropria- Constate-se ainda que no Livro I dinheiro e ção de mais-valor. Ou seja, em D-M-D, para que haja circulação de mercadorias estão ordenados apenas o processo de acumulação do capital, o segundo D para indicar como se dá o processo de produção deve vir agregado de algum valor (D’): “O mais-valor do capital. O processo específico de circulação de é, no fundo, valor para além do equivalente” (Marx, mercadorias, depois de explicado como se produz o 2011, p. 255). E esse valor agregado não pode ser algo capital, é objeto de apreciação do Livro II d’O capital contingencial, mas deve qualificar o capital. Caso (“O processo de circulação de mercadoria”, em que contrário, estaríamos numa troca de equivalentes e Marx analisa coisas como os ciclos dessa circulação ninguém teria vantagens: “O equivalente, segundo e as suas rotações, por exemplo). Por fim, no Livro III, sua determinação, é somente a identidade do valor já sabedor de como se processa a formação do capital consigo mesmo. O mais-valor como consequente ja- e como se dá, no seu interior, a circulação de merca- mais pode brotar do equivalente; portanto, tampouco dorias, o autor dedica-se a entender de forma global pode brotar originariamente da circulação; tem de o já explicado na sua gênese: o processo global de brotar do próprio processo de produção do capital produção de mercadorias, discorrendo sobre temas (Marx, 2011, p. 255). Para que alguém tenha vantagens e acumule como a forma pela qual se processa a acumulação dinheiro é necessário que descubra aquela merca- capitalista pela mais-valia no capital comercial ou doria que é a formadora de todos os demais valores. financeiro, por exemplo, ou a análise de fenômenos Ora, se a equivalência é tratada a partir de trabalho como o da concorrência. abstrato necessário para a concepção de mercado- Em uma apertada síntese, Marx pretende de- rias, o único valor capaz de gerar valor é a força de monstrar no Livro I que para que a acumulação trabalho. Logo, somente se apropriando dela alguém capitalista se processe não basta a circulação sim- consegue alcançar o D’: ples (mercadoria-dinheiro-mercadoria – M-D-M), sendo que o ambiente ideal para tal concentração A coisa também pode ser expressa da seguinte é a passagem para a circulação complexa, em que maneira: se o trabalhador precisa de somente meia o dinheiro tem fundamental papel: onde dinheiro- jornada para viver uma jornada inteira, então só mercadoria-dinheiro (D-M-D) passa para dinheiromer- precisa trabalhar meia jornada para perpetuar sua cadoria-dinheiro acrescido de algum valor – D-M-D’. existência como trabalhador. A segunda metade da Perceba-se que Marx não está aqui ocupando-se jornada de trabalho é trabalho forçado, trabalho especificamente do processo de circulação de mer- excedente. O que aparece do ponto de vista do ca- cadoria, o que fará no Livro II de O capital, mas de pital como mais-valor, aparece do ponto de vista do como tal circulação realiza a produção do capital. trabalhador exatamente como mais-trabalho acima Logo, circulação e produção, nesse compasso, são de sua necessidade imediata para a conservação de

60 Saúde Soc. São Paulo, v.24, supl.1, p.55-65, 2015 sua vitalidade. O grande papel histórico do capital o fenômeno do capitalismo. De um lado o possui- é criar esse trabalho excedente, trabalho supérfluo dor do dinheiro, com a capacidade de organizar os do ponto de vista do simples valor-de-uso [...] (Marx, meios de produção, que passam a depender dele 2011, p. 255) para ser ordenados – já que o dinheiro, equivalente universal e única forma nesta sociedade de se obter Não basta apenas aumentar o preço da merca- a propriedade dos meios de produção –; do outro, o doria para se ter D’, já que qualquer um poderia trabalhador, que possui apenas a mercadoria força fazê-lo e, no final, o sistema se constituiria apenas de trabalho. Ou como diz Marx: “O antigo possuidor de um grande jogo com jogadores mais ou menos de dinheiro se apresenta agora como capitalista, e habilidosos. Esse fato, que não deixa de existir no o possuidor de força de trabalho, como trabalhador. capitalismo, não é o fundamento das vantagens O primeiro, com um ar de importância, confiante e obtidas pelo capitalista – já que no grande jogo das ávido por negócios; o segundo, tímido e hesitante, vantagens recíprocas alguém perderia aqui, mas como alguém que trouxe a sua própria pele ao mer- ganharia ali. O que fundamenta a acumulação do cado e, agora, não tem mais nada a esperar além da capitalista é o acúmulo de dinheiro pela extração ... despela” (Marx, 2008, p. 251). da mais-valia (D’): De tudo isso se depreende o conceito de capital: “Até aqui o capital foi considerado, de acordo com [...] o desenvolvimento das forças produtivas do tra- seu aspecto material, como processo de produção balho, que o capital incita continuamente em sua simples. Mas tal processo, sob o aspecto da determi- ilimitada mania de enriquecimento e nas condições nabilidade formal, é processo de autovalorização. A em que exclusivamente ele pode realizá-lo, avançou autovalorização inclui tanto a conservação do valor a tal ponto que a posse e a conservação da riqueza pressupostos quanto sua multiplicação” (Marx, universal, por um lado, só requer um tempo de traba- 2011, p. 243). lho de toda a sociedade e, por outro lado, a sociedade Quando Harvey fala da relação D-M-D, acentua que trabalha se comporta cientificamente com o que: processo de sua reprodução em uma abundância constantemente maior; que deixou de existir, por É nesse ponto d’O capital que vemos pela primeira conseguinte, o trabalho no qual o ser humano faz o vez a circulação de capital cristalizando-se a partir que pode deixar as coisas fazerem por ele. Consequen- da circulação de mercadorias, mediada pelas con- temente, capital e trabalho comportam-se aqui como tradições da forma-dinheiro. Há uma grande dife- dinheiro e mercadoria; o primeiro é a forma universal rença entre a circulação de dinheiro como mediador de riqueza, e a segunda é só a substância que visa o da troca de mercadorias e o dinheiro usado como consumo imediato (...) Por isso o capital é produtivo, capital. Nem todo dinheiro é capital. Uma sociedade i.e., uma relação essencial para o desenvolvimento das monetizada não é necessariamente uma sociedade forças produtivas sociais. Só deixa de sê-lo quando o capitalista. Se tudo se resolvesse pelo processo de desenvolvimento dessas forças produtivas encontra circulação M-D-M, o dinheiro seria simples media- um limite no próprio capital (Marx, 2011, p. 255-256). dor e nada mais. O capital surge quando o dinheiro é posto em circulação com o intuito de conseguir Para isso é importante que a força de trabalho mais dinheiro” (2013, p. 80). apresente-se como uma mercadoria como outra qual- quer. Daí a relevância de que o trabalhador seja tido E para conseguir mais dinheiro é necessária como livre e igual, para, como proprietário, vender uma forma de captação de valor que não seja equi- a única mercadoria que possui: a força de trabalho. valente ao próprio dinheiro – já que o dinheiro não Isso não ocorreu sempre na história da humanida- é o gerador do valor, mas o trabalho. O dinheiro, na de, as condições foram criadas historicamente. A sociedade capitalista, gera riqueza, mas não valor. passagem histórica para a abstração do trabalho Para se gerar a riqueza concentradora do capital é foi essencial, como visto, para que o valor de troca necessário apoderar-se do valor que gera todos os se concretizasse e, com tudo isso, se consolidasse valores: a força de trabalho.

Saúde Soc. São Paulo, v.24, supl.1, p.55-65, 2015 61 A ideia do movimento, partindo da produção, nele se encontram para ganhar mais dinheiro, a par- baseado no mais-valor e na circulação como a sua tir da extração da mais-valia, e concentrar riquezas. concretização é um salto em relação aos clássicos Ao analisar o mais-valor a partir das trocas de da economia política: equivalentes, Marx estreita o para mostrar que não se pode debruçar apenas sobre as relações Ora, essa definição do capital como processo é de meramente individuais: extrema importância. Ela marca um distanciamen- to radical em relação à definição que encontramos Os indivíduos podem ludibriar uns aos outros ven- na economia política clássica, em que o capital dendo por um valor maior e, de fato, isso acontece o era tradicionalmente entendido como um estoque tempo todo. Mas, quando considerado de maneira de recursos (máquinas, dinheiro etc.), assim como sistemática, em termos sociais, o resultado é ape- em relação à definição predominante na ciência nas roubar de Pedro para pagar Paulo. Um capi- convencional, na qual o capital é visto como uma talista pode perfeitamente ludibriar o outro, mas coisa, um “fator de produção”. Na prática, a ciência nesse caso o ganho do primeiro é igual à perda do econômica convencional tem uma grande dificul- segundo, e nenhum mais-valor é agregado. É pre- dade de medir (valorar) o fator de produção que é ciso, portanto, encontrar uma forma em que todos capital. Assim, eles simplesmente o rotulam de K e os capitalistas ganhem mais-valor. Uma economia o inserem em suas equações. Mas, na realidade, se saudável ou de funcionamento adequado é aquela você pergunta “o que é K e como obtemos uma me- em que todos os capitalistas têm uma taxa de lucro dida dele?”, a questão está longe de ser simples. Os constante e rentável. (Harvey, 2013, p. 100) economistas lançam mão de todos os tipos de me- didas, mas não conseguem chegar a um consenso Para a produção de mais-valor, “[...] o trabalha- sobre o que o capital realmente “é”. Ele existe, com dor já tem de estar privado de acesso aos meios efeito, na forma de dinheiro, mas também existe de produção”(Harvey, 2013, p. 102) [...] a força de como máquinas, fábricas e meios de produção; e trabalho é uma mercadoria peculiar, especial, di- como atribuir um valor monetário independente ferente de qualquer outra. Antes de tudo, é a única aos meios de produção, independentemente do va- mercadoria que tem capacidade de criar valor. É o lor das mercadorias que ajudam a produzir? Como tempo de trabalho incorporado nas mercadorias, ficou evidenciado na assim chamada controvérsia e são os trabalhadores que vendem sua força de sobre o capital do início dos anos 1970, toda a teoria trabalho ao capitalista. Este, por sua vez, usa essa econômica contemporânea corre o perigoso risco de força para organizar a produção de mais-valor (...) estar fundada numa tautologia: o valor monetário Assim, o trabalhador, lembre-se, está sempre no de K na forma física de riqueza é determinado por circuito M-D-M, ao passo que o capitalista opera no aquilo que deveria explicar, a saber, o valor das circuito D-M-D’. Há, portanto, regras diferentes para mercadorias produzidas. (Harvey, 2013, p. 80) um e outro pensarem na sua respectiva posição. O Assim, o “[...] capital é dinheiro usado de uma trabalhador pode se contentar com a troca de equi- certa maneira. A definição de capital não pode ser valentes, porque o que lhe importa são valores de divorciada da escolha de lançar o dinheiro-poder uso. O capitalista, por outro lado, tem de solucionar nesse modo de circulação” (Harvey, 2013, p. 80). A o problema da obtenção de mais-valor a partir da finalidade do capitalista seria a constante produção troca de equivalentes. (Harvey, 2013, p. 105) de mais-valor e de concentrar riqueza. Aqui, deve-se Assim, como lembra Marx, em O capital: desconfiar do nível de intencionalidade do capitalis- ta, já que o processo como um todo o coloca nesta A esfera da circulação ou da troca de mercadorias, em posição independentemente de uma vontade mani- cujos limites se move a compra e a venda da força de festa. Não se trata de mero ato individual, mesmo trabalho, é, de fato, um verdadeiro Éden dos direitos que comum a muitos indivíduos, de ganhar dinheiro inatos do homem. Ela é o reino exclusivo da liber- e acumular. Trata-se de processo em que as pessoas dade, da igualdade, da propriedade e de Bentham.

62 Saúde Soc. São Paulo, v.24, supl.1, p.55-65, 2015 Liberdade, pois os compradores e vendedores de uma ção social, dado que ela é impessoal e abstrata. mercadoria, por exemplo, a força de trabalho, são A subordinação a um homem enquanto tal, como movidos apenas pelo livre-arbítrio. Eles contratam indivíduo concreto, significa na sociedade de pro- com pessoas livres, dotadas dos mesmos direitos. O dução mercantil a subordinação ao arbítrio, pois contrato é o resultado, em que suas vontades rece- isto significa a subordinação de um produtor de bem uma expressão legal comum a ambas as partes. mercadorias a outro. Por isso a coação não pode Igualdade, pois eles se relacionam um com o outro surgir sob sua forma não mascarada, como um apenas como possuidores de mercadorias e trocam simples ato de oportunidade. Ela deve aparecer equivalente por equivalente. Propriedade, pois cada como uma coação proveniente de uma pessoa co- um dispõe apenas do que é seu. Bentham, pois cada letiva abstrata e que não é exercida no interesse um olha para si mesmo. A única força que os une e os do indivíduo do qual provém – pois cada homem põe em relação mútua é a de sua utilidade própria, de é um homem egoísta na sociedade de produção uma vantagem pessoal, de seus interesses privados. mercantil–, mas no interesse de todos os membros E é justamente porque cada um se preocupa apenas partícipes das relações jurídicas. O poder de um consigo mesmo e nenhum se preocupa com o outro homem sobre um outro homem é transposto para que todos, em consequência de uma harmonia pre- a realidade como o poder de uma maneira objetiva, estabelecida das coisas ou sob os auspícios de uma imparcial (1989, p. 119). providência todo-astuciosa, realizam em conjunto a obra de sua vantagem mútua, da utilidade comum, Ou ainda, do interesse geral (2008, p. 251). O Estado jurídico é uma miragem, mas uma mira- Nesse processo entra o Estado. Há necessidade gem muito conveniente para a burguesia, pois ela de um ente neutro que nos faça crer que a relação substitui a ideologia religiosa em decomposição efetivamente se estabelece entre sujeitos livres e e esconde, dos olhos da massa, a realidade da do- iguais, que atuam como proprietários, enfim um minação burguesa. A ideologia do Estado jurídico agente que processe a “obra de sua vantagem mú- convém mais do que a realidade religiosa, porque tua, da utilidade comum, do interesse geral”. Caso não reflete inteiramente a realidade objetiva, ainda contrário, o próprio capitalista teria de promover que se apoie sobre ela. A autoridade como “vontade o que o capital entende por interesse geral e, com geral”, como “força do direito”, se realiza na socieda- certeza, seria mais fácil duvidar de sua neutralidade, de burguesa na medida em que esta representa um enquanto parte interessada diretamente no processo mercado. Deste ponto de vista, os regulamentos bai- de acumulação de riquezas. xados pela polícia podem figurar, igualmente, como Assim, caso sejam descumpridos os preceitos encarnação da ideia kantiana de liberdade limitada de igualdade e de liberdade, é preciso que existam pela liberdade do outro” (Pasukanis, 1989, p. 122). mecanismos jurídicos para que eles sejam restabele- cidos. Nesse processo jurídico, mas também social, O autor acrescenta, por fim, que há um produtor neutro da norma aplicável a sujeitos Os proprietários de mercadorias, livres e iguais, que iguais e livres (o legislativo). Há um agente neutro se encontram no mercado, não são como na relação (o executivo) que as coloca em andamento no nosso abstrata de apropriação e alienação. Na vida real, cotidiano. Há um último agente que, quando des- são vinculados por todos os tipos de relações de de- cumpridas as cláusulas de igualdade e liberdade, as pendência recíproca; como, por exemplo, o pequeno faz cumprir ou impõe sanções pelo descumprimento comerciante e comerciante atacadista, o camponês (o judiciário). e o proprietário fundiários, o devedor arruinado e A respeito do tema muito já discorreu Pasukanis: o seu credor, o proletário e capitalista. Todas es- É por isso que, em uma sociedade de proprietários tas inúmeras relações concretas de dependência de mercadorias e no interior do ato da troca, a constituem o fundamento real da organização do função da coação não pode aparecer como fun- Estado” (1989, p. 122).

Saúde Soc. São Paulo, v.24, supl.1, p.55-65, 2015 63 Logo, numa perspectiva materialista histórico- A dimensão jurídica – e, portanto, a estatal – dialética, é indispensável, como visto, para que tudo isto aconteça. Torna-se indispensável a presença de Todo aperfeiçoamento posterior do Estado bur- um agente, o Estado, que faça aparentar que, de guês [...] pode ser remetido a um princípio único forma neutra, realiza a promoção da igualdade segundo o qual nenhuma dos dois trocadores pode, e liberdade, não individualmente considerada, no mercado, regular as relações de troca por sua mas de forma generalizada. Portanto, a univer- própria autoridade; nesta hipótese, exige-se uma salização da aparência de liberdade e igualdade, terceira parte que encarne a garantia recíproca como condição indispensável à lógica de produ- que os possuidores de mercadorias acordam mutu- ção e circulação do capital, não se realiza sem amente, devido a sua qualidade de proprietários, e a presença do Estado. O Estado é, pois, na sua que personifique, em consequência, as regras das mais acabada estruturação, forma típica do ca- relações de troca entre os possuidores de mercado- pitalismo. Logo, Estado ou direito evoluíram no rias (1989, p. 125). tempo e possuem características incipientes nos E, portanto, a burguesia “[...] jamais perdeu de modos de produção anterior. No entanto, a mais vista, em nome da pureza histórica, o outro aspecto bem-acabada manifestação de ambos somente da questão, a saber, que a sociedade de classe não pode-se dar no capitalismo. Merecem, pois, ser é somente um mercado no qual se encontram os considerados como forma típica do capitalismo, proprietários independentes de mercadorias, mas nesse sentido. Em outro momento da humanidade, que é, também, um campo de batalha de uma feroz outras figuras que não se confundem com a atual guerra de classes, no qual o Estado representa uma de Estado ou direito apareceram. No entanto, para arma muito poderosa” (Pasukanis, 1989, p. 125-126), a universalização da figura do sujeito de direito sendo que e de seus correlatos discursos de igualdade e liberdade, forma estatal e jurídica coincidem e Quanto mais a dominação da burguesia for amea- são indispensáveis ao advento e andamento do çada, mais estas correções se tornam comprome- capitalismo. Em se tratando de formas históri- tedoras e mais rapidamente o “Estado jurídico” cas, não existiram antes (mesmo que existissem se transforma em uma sombra material até que a suas protoformas) e não existirão eternamente, agravação extraordinária da luta de classes force compondo outro modo de produção. Logo, são a burguesia a rasgar inteiramente a máscara do apenas formas transitórias, como o devem ser à Estado de direito e a revelar a essência do poder de luz do materialismo histórico-dialético. Não se Estado como violência de uma classe social contra trata de formas transcendentais, eternas – que a outra (Pasukanis, 1989, p. 126). sempre teriam existido e que, inexoravelmente, Aqui é indispensável a leitura do capítulo 2 do sempre existirão. Livro I de O capital (“O processo de troca”). Nele, Já aqui ficam claras as limitações da teoria resta claro que a passagem para o trabalho assala- institucionalista no sentido de que o Estado é o riado é indispensável para a concretização da lógica grande produtor do bem comum. A limitação mais do capital. Estando o capital centrado na produção clara emerge, como visto, de sua inexorável ligação de mais-valor e no processo constante de autovalo- com o capital, como forma específica mesmo desse. rização pela sua extração, nada mais correto do que Não há, em vista dessa ligação, como aquele que se pensar que isso somente pode-se dar por meio da liga inexoravelmente à lógica de autovalorização do disponibilidade livre e igual da única mercadoria capital produzir de forma plena e desinteressada o que o trabalhador possui: a força de trabalho. Aqui bem comum. a lógica é a que o trabalhador não pode ser pensado Logo, mais do que dizer que a saúde, previdência, como um escravo ou servo, tendo que ser visto como assistência, educação passaram, com o capitalismo, um proprietário que possui liberdade e igualdade na a ser tratadas como valor de troca (e realmente o disposição de sua única mercadoria. foram), há de se entender a limitação inerente às

64 Saúde Soc. São Paulo, v.24, supl.1, p.55-65, 2015 políticas públicas a elas correspondentes no modo Referências de produção capitalista. Sendo o Estado o promotor BELLUZZO, L. G. O capital e suas metamorfoses. de tais políticas públicas, encontra-se limitado por São Paulo: Unesp, 2013. sua posição específica na lógica do capital antes desnudada. Logo, não se trata de uma questão que HARVEY, D. Para entender o capital. São Paulo: possa ser vislumbrada de forma individual – no Boitempo, 2013. v. 1. sentido de que se o gestor for bom a política pública MARX, K. O capital: crítica da economia política. será boa ou coisas do gênero –, mas de tema que deve Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. t. 3. ser pensado na lógica da estruturação do capitalis- MARX, K. Grundrisse: manuscritos econômicos mo, a partir especialmente da posição do Estado na de 1857-1858: esboços da crítica da economia reprodução típica do capital. O Estado é elemento política. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: indispensável para a produção tanto da mais-valia UFRJ, 2011. absoluta quanto da relativa. Enfim, não há como, com a lógica do capital, se MARX, K. O capital: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013. t. 1.. pretender que o Estado seja o produtor desinteressa- do do bem comum. Urge que a sociedade, e somente PASUKANIS, E. B. A teoria geral do direito e ela, dê conta de resolver de vez essa limitação do marxismo. Rio de Janeiro: Renovar, 1989. Estado – evidenciada, diuturnamente e, de forma ROSDOLSKY, R. Gênese e estrutura de O mais recente, pela inércia das autoridades estatais Capital de Karl Marx. Rio de Janeiro: EDUERJ: mesmo após as jornadas de junho de 2013. Contraponto, 2001.

Recebido: 17/05/2014 Aprovado: 21/06/2014

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