Mulheres intelectuais na Idade Média

Mulheres intelectuais na Idade Média

Entre a medicina, a história, a poesia, a dramaturgia, a filosofia, a teologia e a mística

Marcos Roberto Nunes Costa Rafael Ferreira Costa

Diagramação: Marcelo A. S. Alves Capa: Lucas Margoni

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) COSTA, Marcos Roberto Nunes; COSTA, Rafael Ferreira

Mulheres intelectuais na idade média: entre a medicina, a história, a poesia, a dramaturgia, a filosofia, a teologia e a mística [recurso eletrônico] / Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2019.

296 p.

ISBN - 978-85-5696-599-8

Disponível em: http://www.editorafi.org

1. Filosofia; 2. Mulher; 3. Idade Média; 4. Intelectualidade; 5. História; I. Título.

CDD: 100 Índices para catálogo sistemático: 1. Filosofia 100

À irmã Adélia Ulisses de Miranda (beneditina), que de maneira paciente, generosa e competente fez a correção ortográfica da presente obra, os nossos sinceros agradecimentos.

Sumário

Introdução ...... 11

1. Escritoras religiosas e/ou laicas defensoras da fé cristã ...... 15

Faltonia Betitia Proba (séc. IV) ...... 15 Egéria (sec. IV/V) ...... 20 Aelia Eudoxia Augusta (séc. IV/V) ...... 30 Huneberc von Heidenheim (séc. VIII) ...... 32 Dhuoda de Septimania (806-843) ...... 33 Roswita von Gandersheim (935-1002) ...... 39 Ava von Göttweig (1060-1127)...... 46 Hildegard von Bingen (1098-1179) ...... 48 Heloíse de Argenteuil (1101-1164) ...... 101 Elisabeth von Schönau (1129-1165) ...... 108 Herrad de Landsberg (1130-1195) ...... 110 Clémence de Barking (1163-1200)...... 113 Hadewijch de Antuérpia (ou Amberes) (1190-1240) ...... 114 Chiara de Assis (1193-1253) ...... 121 Beatrijs van Nazare (1200-1268) ...... 123 Mechthild von Magdeburg (1207-1294) ...... 131 Marguerite d’ Oingt (1240 -1310) ...... 141 Mechthild von Hackeborn (1241-1299) ...... 147 Angela di Foligno (1248-1309) ...... 149 Marguerite Porete (1250-1310) ...... 153 Gertrudis von Helfta, a Grande (1256-1302) ...... 164 Christine Ebner (1277-1356) ...... 169 Margaret Ebner (1291-1351) ...... 171 Brigida Birgersdotter (da Suécia) (1303-1373) ...... 172 Juliana Norwich (1342-1430) ...... 184 Catarina di Siena (1347-1380) ...... 188 Dorotea de Montau (1347-1394) ...... 194 Bartolomea Riccoboni (1369-1440) ...... 196 Marjery Kempe (1373-1438) ...... 196 Juliana Berners (1388-146?) ...... 198 Catarina di Bologna (1413-1463) ...... 200 Teresa de Cartagena (1425-????) ...... 202 Isabel de Villena (1430-1490) ...... 208 Catarina di Genova (1447-1510) ...... 210 Antonia Pulci (1452-1501) ...... 213

2. Escritoras laicas ligadas às artes liberais ...... 215

Hipátia de Alexandria (370-413 d. C) ...... 215 Trotula di Ruggiero (1050-1097) ...... 220 Anna Komnēnē (1083-1153) ...... 228 Beatriz (ou Condessa) de Dia (1140-1180) ...... 230 Marie de (séc. XII) ...... 231 Bettisia Gozzadini (1209-1261) ...... 235 Compiuta Donzella (cerca de 1240-????) ...... 236 Nina Siciliana (cerca de 1290-????) ...... 238 Jacqueline Félicie (1290-1340) ...... 239 Giovanna Bianchetti (cerca de 1310-????) ...... 241 Novella d’Andrea Calderini (1333-1366) ...... 242 Bartolomea Mattugliani (1350-????) ...... 243 Leonora della Genga (1360-????) ...... 244 Leonor López de Córdoba (1362-1430) ...... 246 Cristina di Pisano (1363-1430) ...... 248 Elisabetta Trebbiani (1397-????) ...... 262 Alessandra Macinghi (1407-1471) ...... 263

Referências ...... 265

Introdução

É corrente afirmar-se que, antes da chamada Modernidade, não há registro de mulheres na construção do pensamento erudito. Que, se tomarmos como exemplo a Filosofia e a Teologia, as quais foram as duas áreas do conhecimento que mais produziram intelectuais durante a Idade Média, não encontraremos a presença das mulheres intelectuais nesse período. Realmente, se nos basearmos em alguns dados empíricos, como, por exemplo, os Manuais ou Compêndios de Filosofia (comumente chamados de História da Filosofia), pelo menos na sua grande maioria, não aparece nenhuma mulher na lista dos chamados Filósofos1. Também nos Manuais de Teologia há uma ausência total das mulheres2. E, mesmo na Modernidade/Contemporaneidade, em que as mulheres conquistaram elevado espaço nas mais variadas áreas do fazer teórico e prático, em determinadas áreas do conhecimento ainda coloca-se sob suspeita a atribuição de certos títulos ou estatutos científicos a mulheres. Por exemplo, os autores dos Manuais de História da Filosofia ainda não se sentem confortáveis em classificar e apresentar como “Filósofas” certas mulheres que se apresentam como tais. É o caso, por exemplo, das nossas contemporâneas Rosa de Luxemburgo, Edith Stein, Hannah Arendt, Simone de Beauvoir e Simone Weil, dentre outras, que ainda não aparecem como “Filósofas” nos Manuais de Filosofia.

1 No que se refere à Idade Média, até onde é do nosso conhecimento, o único Manual de História da Filosofia Medieval que traz ou classifica mulheres em seu elenco é o seguinte: SARANYANA, 1999. 2 Em pesquisa recente chamou-nos a atenção o fato de que no Banco de Dissertações e Teses [repositório] do Ibcit – Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia, não há uma única dissertação e/ou tese desenvolvida por um Programa de Pós-graduação em Filosofia no Brasil sobre uma pensadora medieval. 12 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Bem como, os estudos monográficos acerca de escritoras medievais (e porque não dizer também das modernas/contemporâneas), até pouco tempo atrás eram marcadamente preconceitusos, o que levou Caroline Walker Bynum, em seu prefácio à tradução da obra Scivias, de Hildegarda de Bengin, a dizer: “Se eu tivesse escrito esse prefácio em 1950, eu poderia ter demonstrado que a única coisa em que as diversas escritoras da Idade Média tinham em comum era o desprezo por parte dos estudos eruditos modernos” (In: HILDEGARDA de Bingen, Scivias, 2015, p. 10). Esses e outros exemplos levam à afirmação corrente, porém não muito científica, de que o Pensamento Ocidental é essencialmente machista, no sentido de que foi ou é construído exclusivamente por homens. Entretanto, apesar de todas as evidências, se vasculharmos a construção do Pensamento Ocidental veremos que as mulheres sempre estiveram presentes, contribuindo indireta ou diretamente, seja como sujeito passivo ou ativo desta história. E até é possível identificar a presença de algumas delas já nos tempos remotos, na Filosofia Clássica Antiga, por exemplo, passando pela Antiguidade Tardia, pela Patrística (ou Alta Idade Média), pela Escolástica (ou Baixa Idade Média), até alcançarmos o Renascimento. No que se refere à Idade Média, nosso objeto de estudo aqui, fazemos eco às palavras de Karine Simoni que, destacando o papel da mulher na construção do conhecimento intelectual nesse período, diz:

Em geral, o medievo é visto como masculino e misógino, no qual a mulher era considerada Maria ou Eva, santa ou pecadora. É certo que nesse período a mulher estava relativamente privada de direitos; essencialmente dependente da tutela de um homem (pai, marido ou dos parentes) e destinada aos serviços domésticos, ao matrimônio ou ao convento. Porém, por outro lado, é difícil sustentar a hipótese de uma marginalização generalizada da mulher medieval. Através de documentos notariais, por exemplo, sabe-se que muitas figuras femininas agiam de forma independente, administravam negócios, pagavam impostos, trabalhavam como professoras, escritoras, farmacêuticas, médicas, rainhas. É o caso de Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 13

Heloïse, Maria de França, Hildegarda, Eleonora de Aquitânia (século XII), e Catarina de Sena (século XIV), para citar alguns nomes. Se ao longo do tempo foi aceito que as mulheres ficaram à sombra de um mundo dominado pelo masculino, a tendência atual é a de revisão desse paradigma. A história das mulheres, geralmente escrita por homens e com base em fontes elaboradas por autores masculinos e escolásticos, está sendo substituída por abordagens que privilegiam registros deixados pelas próprias mulheres (2010, p. 1)3.

Dentro desse maravilhoso universo feminino, elencaremos aqui, até onde os registros nos permitiram, os nomes de algumas Pensadoras de destaque. Para tal, buscando fugir das intermináveis discussões acerca da delimitação histórica do que venha a ser Idade Média, escolhemos a tradicional e mais comum classificação que se encontra na grande maioria dos Manuais de História (ou nomes similares), os quais costumam delimitar como “Idade Média” o longo período que vai da queda do último Imperador de Roma, capital do Império Romano do Ocidente, em 476, à conquista de Constantinopla, capital do Império Romano do Oriente, pelos Turcos, em 1453. Assim sendo, relacionamos aqui Mulheres Intelectuais que viveram nesse período, ainda que tenham nascido um pouco antes da data inicial ou falecido um pouco depois da data final.

3 Reforça essa tese DREW, 2012, ao afirmar: “Os ‘filósofos naturais’ não eram todos homens, ao contrário da crença generalizada, mas incluíam inúmeras mulheres. porque muitos cientistas do sexo feminino foram envolvidos no estudo da ciência desde a idade pré-histórica [...]”. Igualmente CIRLOT; GARÍ, 1999, p. 11, diz: “Mulheres, escritura, experiência interior: a conjunção destes três elementos é explosiva, porém insólita na Idade Média. É tão insólita que não parece verdade. E, sem embargo, o é. Na Idade Média, as mulheres se apropriaram dos instrumentos das escrituras para falar de si mesmas e de Deus, pois Deus foi o que encontraram em suas câmaras, em suas moradas, em seus castelos da alma. Rompendo as barreiras do mundo que as havia condenado ao silêncio, alçaram suas vozes, que foram ouvidas porque saíam de suas experiências sobrenaturais”. Para uma visão geral do assunto, indicamos o artigo SÁNCHEZ PIETRO, 2010, que traz um leque de mais de cem mulheres que de alguma forma se envolveram com alguma atividade intelectual na Alta Idade Média, tais como ensinar, escrever, pricipalmente correspondências, transcrever e ilustrar obras, financiar e organizar bilbliotecas, etc. Na sua grande maioria mulheres oriundas da classe nobre, de forma que, conclui a referida comentadora, “em definitivo, não se pode dizer que a escrita fosse na Alta Idade Média um privilégio de uma casta masculina e clerical, ainda que se possa afirmar que, salvo casos excepcionais, esta era patrimônio da aristocracia” (Ibid., p. 1).

1

Escritoras religiosas e/ou laicas defensoras da fé cristã

Faltonia Betitia Proba (séc. IV)

Faltonia Betitia Proba1

Fonte: http://www.peuplesantiques.com/

Faltonia Betitia Proba nasceu em Roma, em 320, em meio a uma família aristocrática pagã muito influente politicamente. Seu pai era Petrônio Probianus, que chegou ao cargo de cônsul romano, e sua mãe chamava-se Demetria. Faltonia Betitia Proba casou-se com Clodius Celsinus Adelphus, que foi prefeito de Roma, em 351, com quem teve dois filhos: Quintus Clodius Hermogenianus Olybrius e Faltonius Probus Alípio, que se tornaram altos oficiais imperiais.

1 Iluminura de Faltonia Betitia Proba presente na tradução francesa da obra De claris mulieribus, de Giovanni Boccaccio, em 1400. 16 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Sua família era pagã, mas Faltonia Betitia Proba se converteu ao cristianismo (cerca de 362), chegando a influenciar seu marido e seus filhos, que se converteram depois dela. Faltonia Betitia Proba escreveu dois poemas: o primeiro, Constantini bellum adversus Magnentium, escrito quando ainda era pagã, em que narra a guerra entre o imperador romano Constâncio II e o usurpador Magnentius, e que mais tarde, arrependida, ela mesma ordenou que fosse destruída. Quanto ao segundo poema, embora as edições do texto tenham conferido à obra títulos como Versus Probae, Cento2 virgilianus Probae, Cento Probae, Cento virgilianus laudibus Christi, Virgilianus Cento ou De laudibus Christi3, segundo Márcio Gouvêa Júnior, “parece mais adequada a terminologia oferecida pela própria poetisa que, no verso n. 9, intitula seu texto de Carmen Sacrus” (2010, p. 57)4. Trata-se de um poema épico cristão, escrito após sua conversão, em torno de 362, com uma coletânea de versos extraídos de várias obras de Virgílio (principalmente Bucólicas, Geórgicas e Eneida), adaptando-os ao cristianismo, neste caso, com a introdução,

2 Segundo, Antonio Arbea (2002, p. 98), “a palavra cento vem do latim cento, centonis, voz que, já no século III a. C. se designava uma colcha ou manto cobertor composto de diferentes retalhos velhos e de diversas cores, cozidos entre si, que era usado principalmente por gente humilde. Mais tarde, no século III d. C. já em latim pós-clássico, a palavra cento aparece usada metaforicamente com o significado de poema ou relato composto de diversos fragmentos de uma obra alheia. Este sentido figura foi o único que a palavras acabou conservando”, conforme definição de DOMÍNGUEZ, 2009, p. 218: “Obra literária em verso ou prosa, composta inteiramente, ou em maior parte, de sentenças e expressões alheias”. Ou como diz COVIELLO, 2002, p. 321-22, o “centro é um fenômeno literário baseado na iminsso peo qual atio [...]. Não obstante, não se tratar de uma simples cópia ou reprodução: implica um translado e, portanto, uma distância entre o modelo e o novo texto”. 3 Além disso, em seu verbete da obra De claris mulieribus, Giovanni Boccaccio, dá notícias de que Faltonia Betitia Proba tenha escrito uma terceira obra, o Cento Homericus, desta feita em grego, a partir das Ilíadas de Homero, mas que não foi preservada (cf. apud CORTIJO OCAÑA, 2012, p. 208) 4 ARBEA, 1999, p. 1, reforça essa informação quando diz: “Proba é a única figura feminina da literatura cristã primitiva de quem conservamos uma obra completa. Essa obra é seu Carmen Sacrum. O poema, de 694 hexámetros, tem sido tradicionalmente chamado de Cento Virgilianus, designação que não constitui, a rigor, um nome, senão uma determinação genérica – isso é a peça: um cento virgiliano, quer dizer, uma obra composta com versos de Virgílio. A designação Carmen Sacrum, ao contrário, ainda que genérica, me parece preferível; por sinal, é a que emprega a própria Proba para referir-se a seu poema”. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 17 conversão, adaptação ou troca de nomes gregos por nomes bíblicos, como, por exemplo, “o poeta grego Museu, citado por Virgílio no verso 667, do Canto VI da Eneida, se torna o Moisés hebraico, no verso 36 do Carmen Sacrus”(Ibid., p. 63). Bem como, num sentido contrário, muitos personagens e/ou passagens bíblicas foram adaptadas para se adequar aos poemas virgilianos, como por exemplo, “o episódio da fuga para Egito (Mt. 2, 13), também foi remodelado. Se, no Evangelho de Mateus, José recebeu a notícia do massacre dos inocentes, no Carmen Sacrus, por seu turno, quem soube do perigo foi Maria, estranhamente dotada da capacidade de premonição (prescia uenturi), como a Siliba no canto VI da Eneida, a quem se refere o verso no original” (Ibid.). Ou seja, com muita habilidade, Faltonia Betitia Proba apresenta a história bíblica desde a criação do mundo até a vinda de Cristo, usando 694 linhas de Virgílio, que são divididas em um Proemium (linhas 1-55) seguido de episódios do Antigo Testamento (linhas 56-345) e, depois, de episódios do Novo Testamento (linhas 346-694). Para além de uma função educativa, o Carmen Sacrus traz uma conotação política, quando, semelhante a um profeta, Faltonia Betitia Proba busca enaltecer o cristianismo e combater o paganismo, nomeadamente aquele do imperador Juliano, que pretendia libertar o império do cristianismo e restaurar o paganismo. Para tal, baseada no modelo heróico da Eneida, centra a história na imagem de Jesus, o protagonista, como herói, contrapondo a imagem do imperador como inimigo de Cristo, conforme ressalta Márcio Gouvêa Júnior: De fato, todas essas apropriações dos versos vigilianos não se deram de modo ingênuo, mas para transformar o Cristo das Escrituras em uma forma de herói épico, ainda moldado segundo as concepções da Antiguidade. Por isso, o Cristo do centão é expressamente chamado de heros, como Eneas, no verso 672 do canto VI das Eneida. Por isso, apesar da pretensa intenção de contribuir para com a divulgação do cristianismo, pouco tempo depois da morte de 18 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Faltonia Betitia Proba, em 394, São Jerônimo, em Carta ao padre Paulino de Nola (Carta 53,7), critica fortemente o poema Carmen Sacrus, dizendo que "uma tagarela velha queria ensinar as Escrituras antes de compreendê-las". Finalmente, no século V, o Papa Gelásio I (492-496) classificou o Carmen Sacrus de apócrifo, portanto, mesmo que não sendo considerado um texto herético, a sua leitura pública era proibida5. Apesar disso, foi o único trabalho de Faltonia Betitia Proba a ser preservado, pois, os outros dois, um ela mesma mandou queimar após a conversão e o outro se perdeu na história. Apesar da proibição, com o passar dos tempos o Carmen Sacrus ganhou força nos meios intelectuais medievais, tendo sido elogiado, no século VII, por Isidoro de Servilha, em duas de suas obras: uma e suas Etymologiae, e outro no De viris illustribus, quando diz que “Proba, mulher do procônsul Adelfo, é a única mulher a quem se coloca entre os varões relógios versada na história de Cristo em sua obra intitulada Cento de Cristo, composto a partir do versos de Virgilio (cf, apud CORTIJO OCAÑA, 2012, p. 206). Em 1362, Faltonia Betitia Proba seria incluída na lista das mulheres mais influentes da Idade Média, por Giovanni Boccaccio, em sua obra De claris mulieribus, que no verbete 97, diz:

Proba, que pelos feitos, nome e sabedoria em letras, foi mulher muito digna de memória; [...] e, entre seus outros conhecimentos, com interesse tão notável se familiarizou com os poemas de Virgilio que, como testemunham suas próprios obras, parece que, memorizados como os tinha, estavam sempre em sua vista. E, como os lera em algum momento com um cuidado mais atento, deu em pensar que com eles poderia descrever toda história do Antigo e Novo Testamento em versos agradáveis e fáceis porem carregados de sentido. [...] e entregando-se a obra tão pia, discorreu por aqui e ali pelos versos das Bucólicas, Geórgicas e a Eneida, tomou daqui versos inteiros, de lá só uma

5 Além disso, a obra foi severamente criticada por São Jerônimo em carta (ep. LIII) ao padre Paulino de Nola, na qual a chama de ‘velha charlatona’, que ela pretendia ensinar as escrituras sem entendê- las e fazer de Virgilio um escritor cristão, sem ser (cf. CORTIJO OCAÑA, 2012, p. 207). Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 19

parte, os submeteu a seu propósito de maneira tão admirável que pós aqui alguns inteiros, ou conectou por lá os fragmentos de outros, mantendo em tudo o esquema métrico e a dignidade dos versos de tal modo que ninguém poderia dar-se conta, salvo um que fora muito conhecedor da poesia virgiliana Começou pelo princípio do mundo e recompôs as histórias que se lêem no Antigo e Novo Testamento até a chegada no Espírito Santo tão sagazmente que não soubesse o que havia feito facilmente poderia crer que Virgilio foi profeta ou evangelista [...] (apud CORTIJO OCAÑA, 2012, p. 206-207).

Cem e dez anos mais tarde, em 1472, o Carmen Sacrus seria impresso em forma de livro, sendo, possivelmente, o primeiro trabalho escrito por uma mulher a ser impresso. No século XVII, a humanista mexicana Juana Inês de la Cruz chega a classificar Faltonia Betitia Proba de “a primeira mulher intelectual cristã”, e, consequentemente, adoto-a como modelo de mulher e intelectual, por conta disso passou a ser chamada de “a Proba mexicana”. Faltonia Betitia Proba faleceu em 370, tendo sido enterrada, junto ao seu marido, na Basílica de Sant'Anastasia Palatino, em Roma, e mais tarde transferidos para Villa Borghese.

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Egéria (sec. IV/V)

Egéria

Fonte: http://smalltalkwitht.wordpress.com/

Não se sabe exatamente em que data e onde viveu Egéria (ou Etéria ou Silvia) e até mesmo seu nome é construído a partir dos títulos que seus escritos receberam ao longo da história. O que se sabe é que, por volta de 680, uma cópia [transcrição] de sua obra foi enviada aos monges da comunidade de São Pedro de Montes, fundada por São Frutuoso de Braga, em Bierzo, província de Astorga. No início do século XI, por razão desconhecidas, os manuscritos foram trasladados para o mosteiro de Montecassino, por Ambrósio Rastrellini, abade deste monastério de 1599 a 1602, finalmente, em 1810, no perpíodo das guerras napoleônicas, por questões de segurança, foram transportados para Biblioteca della Fraternità dei Laici, de Arezzo6. Ali - em Montecassino -, em 1884, os manuscritos foram redescobertos pelo italiano Gian Francesco Gamurrini, que a esta altura o já estava incompleto: faltando-lhe uma pequena parte inicial e uma grande parte no final7. Três anos depois, em 1887, o referido

6 Cf. a introdução à tradução brasileira: NOVAK, Maria da Glória. Intodução. In: EGÉRIA, 1977, p. 9- 10 e VALLE, 2008, p. 30. 7 A esse respeito diz Maria Filomena Coelho: “Esta é a primeira impressão que chegou até nós do itinerarium que Egéria percorreu na Terra Santa, entre os anos 381 e 384 d.C. O manuscrito que registra as memórias da viagem desta mulher, infelizmente, não sobreviveu na sua forma integral e Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 21 italiano fez a primeira publicação da obra, que apareceu com o título: Peregrinatio ad Loca Sancta S. Silviae Aquintanae ad Loca Sancta (Peregrinação de Santa Silvia de Aquitana a Terra Santa). Ou seja, a obra foi atribuída a Santa Silvia de Aquitana, que segundo Rosalvo do Valle era “irmã de Flávio Rufino da Aquitânia, gaulês, contemporâneo de Teodósio Magno, a qual nos fins do século IV teria feito uma peregrinação à Terra Santa” (CID LÓPEZ, 2010, p. 11). Mas, em 1903, a descoberta de uma carta8 do referido monge Valerius de Bierzo aos monges de Montecassino, datada do século VII, o qual havia conhecido a cópia completa dos manuscritos na Comunidade de São Pedro de Montes9, revelou a identidade da verdadeira autora10, de forma que, em 1910, uma nova edição fora preparada, desta feita com o título: Peregrinatio [ou Itinerarium] Aetheriae ad Loca Sancta (Peregrinação [ou Viagem] de Etéria a Terra Santa), que com o passar dos tempos seriam abreviadas hoje acredita-se que se tenham perdido cerca de dois terços. Não sabemos ao certo de onde ela saiu, quais são as suas origens, o que a empurrou à peregrinação. Devido ao desaparecimento da primeira parte do manuscrito, subimos a bordo da memória de Egéria já em plena caminhada, no meio da península do Sinai” (2011, p. 353). 8 A referida carta foi descoberta por Dom Mário Férotin que levou ao público num artigo: “Le véritable auteur de la Peregrinatio Silviae, la vierge espagnole Éthérie. Revue des Questions Historiques, v. 74, p. 367-397, 1903 – pondo em dúvida a autoria de Silvia até então aceita” (NOVAK, Maria da Glória. Intodução. In: EGÉRIA, 1977, p. 10). 9 Segundo Rosa Manuela Barbosa Oliveira, Valerius “morreu em 695, no mosteiro de S. Pedro dos Montes, onde viveu uma vida monacal e de eremita, durante mais de quarenta anos” (2014, p. 70), justamente o mosteiro onde havia uma cópia completa dos manuscritos de Égeria, os quais foram transferidos depois para outos ligares até se fixar definitivamente na Biblioteca della Fraternità dei Laici, de Arezzo. 10 Ou seja, “muito antes de Gamurinni descobrir, em 1884, o Códice de Arezzo, já sabíamos que uma dama da ‘Provincia Gallaeciae’, no noroeste da Espanha, havia percorrido, durante três anos, no século IV, os países que hoje chamamos Oriente Próximo, e que nos havia deixado a descrição desses países num Itinerarium que um monge de Bierzo, Valério, da mesma região da Espanha, que teve entre suas mãos, no século VII, dando-nos a conhecer pela primeira vez a exitênciadesse Itinerarium e o nome de sua aurora” (ARCE, Agustín. Prologo. In: , 2010, p. XIII). Cf. também, FREIRE, 1987, p. 273-274. Mas, como ressalva David Manuel Mieiro, ainda ssim há quem continua com a nomemclaruta antiga, como é o caso de Jarecki, que “continuava a dizer que Egéria ou Etéria não era uma figura histórica. permanecendo na ideia primordial de que seria Sílvia ou Silviana. A sua ligação a altas autoridades, como o imperador Teodósio, e o facto de ter feito uma peregrinação aos lugares santos, em meados do século IV, induz imediatamente a ela como autora [...]. Vingará a novidade, melhor fundamentada, de que Egéria é a verdadeira autora do itinerário” (2013, p. 41-42). 22 | Mulheres Intelectuais na Idade Média simplesmente por Itinerário (ou Viagem, ou Peregrinação) de Etéria (ou Egéria). Entretanto, vale salientar, nos supracitados manuscritos o nome da autora é escrito de diversas formas, como, por exemplo, Etheria, Heteria, Egeria, Eiheria, Echeria, das quais prevalecem duas delas: Aetheriae e Egeria, “mas modernamente a forma Egeria tem logrado maior aceitação” (VALLE, 2008, p. 34), daí preferirmos esta nomemclatura aqui. Se quanto ao nome da autora do Itinerário há controvérsias, mais ainda é quanto a sua origem familiar e posição social. Quando a sua posição social, três elementos que se interligam levam os comentadores a falar de Egéria como “monja e/ou nobre”. Primeiro, por seu prestígio junto a Igreja institucional da época. Em seus relatos de viagens, Égeria mostra que por onde passava era muito bem acolhida nos mosteiros e pelas autoridades eclesíasticas: padres, bispos, etc11. Motivo pelo qual o monge Valerius de Bierzo, na supracitada carta aos monges de Montecassino (em 680), logo no início se referir a Egeria como uma monja, conforme vemos no trecho da referida carta (Epistola laude Etheriae virginis, 1.10.11), que diz:

Quando consideramos os feitos e virtudes de varrões fortíssimos e santos, consideramos mais digna de admiração a constantíssima prática da virtude na debilidade de uma mulher, a qual se refire a nobilíssima história da bem-aventurada Egéria, mais forte do que todos os homens do século […]. Esta bem-aventurada monja Egéria, inflamada pelo desejo da divina graça e ajudada pela virtude da majestade do Senhor, empreendeu com intrépido coração e com todasas suas forças uma languíssima viagem por toda a região [...] (In: EGERIA, 2010, p. 9 - destaque nosso).

11 cf. por exemplo, EGERIA. Peregrinação de Etéria. XIX, 5, 1977, p. 69-70, que diz: “O santo bispo da cidade, homem verdadeiramente religioso, monge e confessor, disse-me, acolhendo-me de boa vontade: ‘vejo, filha, que pela religião te impususte tão grande labor que, dos confins da terra, chegaste a estas paragens; se, pois, te der prazer, nós te mostraremos todos os lugares que são, aquí, agradáveis de ver para os cristãos’. Então, pois, dando graças a Deus em primeiro lugar, e também a ele, pedi-lhe muitíssimo se dignasse fazer o que dizia”. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 23

A partir daí, quase todos os comentadores falam com a maior naturalidade de Egéria como uma monja12, mas, ressalva Maria Rosa Cid López, há quem discorde de que ela fosse uma monja, como é o caso de Hagith Sivant, para quem

não é fácil aceitar que uma mulher, celibatária, com deveres no monastério, pudesse viajar e estar fora por tanto tempo, gozando de tal liberdade de movimentos. A situação seria ainda mais estranha no caso de se tratar de uma abadessa. Precisamente, esta larga permanência fora de seu lugar e da facilidade com que se trasladava leva a pensar em uma mulher não atada por votos religiosos (apud CID LÓPEZ, 2010, p. 25).

Já Maria da Glória Novak, em sua intodução à tradução brasileira, pondera as posições opostas, ao dizer:

Não há certeza de que Etéria fosse monja, apesar da indicação de Limonges. Valério diz virgo e sanctimonialis (1,2; 4,4); objeta-se que não haveria monjas na Galiza no século IV, mas, na verdade, parece que havia lá virgens consagradas a Deus, e virgo e sanctimonialis tanto podem referir-se a monjas como às virgens leigas consagradas à vida ascéticas (In: EGÉRIA, 1977, p. 12).

Monja ou não, no sentido restrito da palavra, o certo é que Egéria estaba ligada a um certo grupo de mulheres religiosas, as quais são as destinatárias diretas de seus escritos, pois por diversas vezes fala de algumas “domnae – senhoras”, a quem dirige suas palavras, com as quais tem certo compromisso religioso, de forma que, caso viesse a falacer antes de retornar, seus escritos deveriam ser destinados a elas. Isto vemos claramente no seguinte trecho do Itinerarium ad loca sancta:

12 LIMA, 2012, p. 240, diz: “No século IV, há uma mulher a percorrer um Itinerrium escrito em forma de carta, num diálogo conservado em letras. É a viagem realizada pela monja Egéria desde a província romaa da Gallaecia até à Terra Santa”. 24 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Daí, senhoras, minha luz, dedicando à vossa bondade esta narrativa, era já meu propósito, em nome de Cristo, nosso Deus, dirigir-me à - a Éfeso, para rezar no martyrium do santo e bem-aventurado apóstolo João. Se, depois disso ainda estiver viva e ainda puder conhecer alguns outros sítios, eu mesma, se Deus se dignar permitir, os descreverei a vossa bondade; ou, ao menos, se decidir outra coisa, vo-lo comunicarei por escrito. Vós, senhoras, minha luz13, dignai-vos lembrar-vos de mim, quer eu esteja neste corpo ou fora dele (2Cor 12,2-3) (EGERIA. Peregrinação de Etéria. XXIII, 10, 1977, p. 79).

Portanto, há um claro compromisso religioso para com certas “domnae – senhoras”, que não eran necessáriamente monjas14, o que dá um caráter epistolar ao Itinerarium ad loca sancta, conforme palavras de Alexandra B. Mariano, em sua introdução à tradução portuguesa desta obra:

Uma característica do Itinerário, fácilmente deduzida a partir da leitura, é a forma marcadamente dilogística do discurso, que o aproxima, em termos de estrutura, do registro epistolar ou para- epistolar e que pressupõe a existencia de um eu que se dirige a um tu/vós (Vos 23,10), destinatário ausente mas real. No caso preciso, o texto é dirigido a um grupo de mulheres (domnae/dominae), com quem existe uma relação próxima, que a narradora insiste em explicitar […] (In: EGÉRIA, 1998, p. 16-17)15.

13 A expressão “lumnen meum – minha luz”, que aparece aqui por duas vezes, é substituída em outros momentos por outros termos igualemente afetuosos, como: “venerabilis soroles – veneráveis irmãs” (III, 8) e “dominae animae meae – senhoras de minha alma” (XIX, 19), que denotam sempre proximidade, respeito, compromisso, etc. 14 PASCAL, 2005, p. 452, observa que, “falar da monja Egeria (perdão por adiantar o nome, rompendo a intriga) é um despropósito. Pela expressão reiteradamente empregada dominae et sorores, não pode deduzir-se que se trata de monjas - e desde logo, o contexto geral é outro, como em seguida veremos -. Desde muito antes de que nascera Egéria, a expressão soror, empregada coloquialmente, tinha uma mera conotação de efeto [...]. A interpelação a umas dominae et sorores havia de traduzir-la, para ser fierl ao espírito da letra, como ‘respeitáveis amigas’, ou ‘queridas amigas’”. 15 Nesta intodução a comentadora insister, por diversas vezes, no caráter epistolar na obra de Egéria. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 25

E este é o principal motivo da viagem de Egéria: levar a suas “irmãs” o testemunho ocular dos lugares santos, uma missão que ela própria acredita ser o fruto de uma inspiração divina. Quanto ao outro ponto - sua nobreza, inferi-se, primeiro, pelo questionamento de como uma mulher dispunha dos recursos necessários para empreender longas viagens16, pois, como observa Alexandra de Brito Mariano, “uma viagem de tal envergadura exigiria, certamente, a mobilização de meios consideráveis, mesmo segundo os padrões da nossa época” (MARIANO, 2007, p. 121), a não ser que fosse de família aristocrata, e, segundo, pelo apóio que recebia das autoridades imperiais, que lhe colocavam a sua disposição casa e até soldados romanos para auxiliar-lhe nas viagens, conforme consta em seus retatos de viagens:

Há, pois, de Clisma - isto é, do Mar Vermelho - até à cidade de Arábia, quatro pousadas através do deserto: tanto é de fato pelo deserto, que há, em cada acampamento, um posto com soldados e oficiais que nos acampanharam, sempre, de um forte a outro (EGÉRIA. Peregrinação de Egéria. VII, 2, 1977, p. 53).

E mais adiante diz:

A partir daí, dispensamos os soldados que nos havia auxiliado em nome dos príncipes romanos, enquanto andáramos por regiões perigosas; agora, porém, visto que a estrada que atravessa a cidade de Arábia, isto é, a que conduz da Tebaida a Pelúsio, é pública através do Egito, não mais se fazia necessário molestá-los (Ibid., IX, 3, 1977, p. 56).

Portanto, como conclui Rosa Maria Cid López:

16 A comentadora Angelika Ritter-Grepl, diz que, “partiendo desde o norte da Espanha e dirigindo-se até o Oriente, desde o ano 381aol 384 percorreu cerca de 9.000 kilômetros por terra, atravessando o continente até Constantinopla, para chegar depois aos lugares da Biblia. todos los lugares indicados en su guía, la Biblia. Durante um tempo se fixou em em Jerusalén, logo prosseguiu a peregrinação até o Egito e subiu ao Monte Sinai. Por último, chegou ao lugar mais ao leste do seu itinerário, ou seja, ao Harán, na Siria, pátria de Abraham” (2010, p. 35). 26 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Egéria devia pertenecer aos grupos aristocráticos e possuir uma fortuna considerável, absolutamente imprescindível para empreender uma viaje com estas características [...]. De igual maneira, se alude ao fato de ser recebida pelas autoridades eclesiásticas, e não só por monges, ou o fato de receber a proteção de destacamentos militares [...].Tudo isso não sería mais que a manifestação evidente de sua elevada posição social (2010, p. 24)17.

Tal era o pretígio de Egéria junto à Igreja e ao Império, que José Eduardo López Pereira chega a se perguntar:

Monja ou não, contando com tantos meios a sua disposição, não seria da família de Teodosio, que naqueles anos era Imperador, galego de origem, segundo nos recorda o historiador quase contemporâneo, Hidacio, bispo de Chaves? Alguns investigadores, como A. Lambert, a supõe irmã de Gala Plácida, a mulher de Teodosio. Outro, E. Bouvy, partindo da forma Eucheria do nome, a considera relacionada com Eucherius, um tio de Teodosio (2010, p. 47)18.

Outro ponto controverso na história de Egéria é quanto ao local em que nasceu e viveu - sua pátria -, de forma que

foi tida como francesa, italiana ou hispânica, ainda hoje os mais e mais fortes argumentos levam a pensar que era originária da Gallaecia, segundo o espaço que compreendia no século IV esta província romana, antes da reforma de Deoclesiano, que chegava desde o Sul até o rio Duoro e se alargava pelo Leste, seguindo a linha

17 Mas a própria comentadora ressalta que outros autores, e cita o caso de Hagith Sivant, “têm questionado a pertência de Egéria a tais círculos da elite social, baseando-se no latim que utilizava, muito popular, e não próprio das mulheres da aristocracia do momento. Por sua vez, se enfatiza que não conhecia o grego, o que seria estranho para uma dama bem educada da época” (apud CID LÓPEZ, 2010, p. 24-25). 18 Cf. também CID LÓPEZ, 2010, p. 21, que diz: “Por razões das conotações um tanto patrióticas, Egéria tem sido apresentada como uma mulher galega, de elevada posição social, ao que se buscou, inclusive, parentesco com a família de Teodosio”. O franciscano Agustín Arce, por exemplo, destaca o parentesco, mas enfatiza os laços de amizade ao dizer, inclusive, que “podemos, pois, supor que Teodósio e Egéria partiram juntos do NO da Espanha: Teodósio para defender o Império contra os bárbaros invasores; Egeria para venerar os santuários da Palestina e visitar os monastérios de Siria e Egipto” (ARCE, Agustín. Introdución. In: EGERIA, 2010, p. 9). Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 27

deste rio, até terminar no mar Cantábrico, limitando com o País Basco [...] por isso quando dizemos que Egéria era uma escritora galega, há que se entender dentro da divisão territorial da época em que viveu, já que bem poderia ser da zona de Astorga ou de Braga, onde estavam os dois centros culturais mais importantes do momento, o que poderia explicar que no século IV, no ‘finis terrae’, possa viver uma mulher capaz de escrever em latim (Ibid., p. 44 )19.

Relacionada à questão do período em que viveu, está a dificuldade de datação da viagem/escrita da obra de Égéria, tendo sido levantadas várias hipóteses, algumas das quais apresentaremos aqui, em ordem decrescentes: A data mais tardia, entre 533-430, fora defendida por Karl Meister, que influenciará, mas tarde, Bruyne (1909). Já “Aimé Lambert (1938) propõe 414-416 e Dekkers 415-418 (1948), na tentativa de conciliar estes anos com a celebração do quadragésimo dia depois da Páscoa em Belém” (MIEIRO, 2013, p. 45). Jà Dom Férotin e Dom Leclerq, segundo Maria da Glória Novak, defendem que a “a viagem se faria relizado por volta de 395-396, e não depois disso uma vez que Etéria não menciona orignismo, heresia derivada do priscilianismo e logo depois difindida na palestina” (In: EGÉRIA, 1977, p. 12). Alexandar B. Mariano, por sua vez, diz que “A. Baumstark foi o primeiro a avançar as balizas cronológicas de 383-385, mas é com Paul Devos20 que a data do último ano da viagem é fixada em 384” (In: EGÉRIA, 1998, p. 16-17). Finalmente, mais um porto controverso acerca de Egéria é quanto a sua capacidade intelectual, ao ponto de se colocar em questão o fato do Itinerarium Egeriae (Viagem de Egeria) ter sido escrito por uma mulher “capaz de escrever em latim” (Ibid., p. 44). Mais do que isso, e já respondendo a questão, não só escreveu em latim, mas, segundo José Eduardo López pereira, foi a primeira escritora em língua latina da Idade Média:

19 Cf. também, NOVAK, Maria da Glória. Intodução. In: EGÉRIA, 1977, p. 11 e MARIANO, Alexandra B. Intodução. In: EGÉRIA, 1998, p. 28-31. 20 Cf. DEVOS, Paulo. La data du voyage d’Égeria. Analecta Bollondiana, v. 85, p. 165-194, 1967. 28 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Falar de Egéria escritora latina, quase nos permite falar da primeira mulher que escreve em latim, cuja obra chegou até nós, porque muito pouco há de Proba no Cento virgilianus que ela escreveu, e muito pouco também de Perpetua no Passio Perpetuae (Ibid., p. 45).

Muito embora alguns comentadores acusem de se tratar de um “latim vulgar”, ponto este que geraria longos e intermináves debates entre os linguistas e/ou latinistas ao longo dos tempos, e que, por ser um assunto muito técnico, não entraremos no mérito da questão aqui, mas tão somente indicar alguns trabalhos que tratam da questão21. Afora as controvérsias até aqui elencadas, o certo é que “o texto é o segundo testemunho escrito de uma peregrinação ao Oriente (viagem empreendida cerca de 50 anos depois da do peregrino de Bordéus, que já referimos22) e o primeiro que se conhece redigido por uma mulher” (MARIANO, 2007, p. 122)23. A

21 Dentre os estudiosos mais importantes, indicamos aqui apenas três, para falar apenas de linguistas brasileiros: BECHARA, Avanildo. Estudos sobre a sintaxe nominal na Peregrinatio Aetheriae. Trabalho apresentado para o concurso de provimento da Cátedra de Filologia Românica da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Estado da Guanabara, Rio de Janeiro, 1963, 45 p. ; Idem. A carta de Valério sobre Etéria. Revista Romanitas. Rio de Janeiro, v. 6-7, 1965 e FONDA, Enio Aloisio. A síntese orgânica do “Itinerarium Aetheriae”. Assis: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis, 1966, 190 p., que foi sua tese de doutoramento em Língua e Literatura Latina, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em 1961. E mais recentemente, a tese de livre-docência, despois publicada: VALLE, Rosalvo do. Considerações sobre a Peregrinatio Aetheriae. Rio de Janeiro: Botelho Editora, 2008, especialmente o capítulo II - O latim da Peregrinatio Aetheriae (p. 47-70) e a dissertação defendida no Mestrado em Liguistica da UNICAMP: MARTINS, Maria Cristina da Silva. Os locativos na Peregrinatio Eatheriae. Campinas: UNICAMP, 1996. 139 p. Igualmente há estudos acerca de Égeria que a analisam à luz de uma visão “feminista”, buscando encontrar em seus eecritos traços de uma “escrita feminina”, mas que não entraremos no mérito da questão aqui. Para um maior aprufundamento desta questão indicamos os artigos: LIMA, Filomena. Viajar no feminino: as imagns das palavras – peregrinação de Egéria à Terra Santa – no século IV. In: LOPES, Maria José et al. (orgs.). Narrativas do poder feminino. Braga: Universidade Católica Portuguesa, 2012, p. 239-25 e PACHECO, Maria Cândida Monteiro. Itinerarium ad loca sancta, de Egéria: uma escrita feminina? In: FERREIRA, Maria Luísa Ribeiro (org.). Também há mulheres filósofas. Lisboa: Editorial Caminho, 2001, p. 71-82. 22 O texto a que se refere aqui é o , escrito cerca de 50 anos antes de Egéria. 23 A mesma comentadora acrescenta que antes de Egéria, “conhecem-se, é certo, outras damas que teriam empreendido peregrinações ao Oriente. Destacamos, por exemplo, Melânia-a-Velha viúva de Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 29 primeira parte, com 23 capítulos (I-XXIII), descreve os lugares sagrados e pontos geográficos em suas viagens, e está dividido em quatros etapas da viagem:

1ª) Peregrinação ao Monte Sinai e a volta a Jerusalém (cap. I-IX); 2ª) Subida ao Monte Nebo (X-XII); 3ª) Saída de Jerusalém e visita ao túmulo de Jó, em Cárneas ou Denaba, cidade de Ausítide (XIII-XVI); 4ª) Depois de três anos em Jerusalém (cf. XVI,7 e XVII,1), peregrinação à Mesopotamia Syriae (XVI-XXI) e o regresso a Constantinopla, de onde partira (XXI-XXIII) (VALLE, 2008, p. 26- 27).

Na segunda parte, 26 capítulos (XXIV-LIX), Egéria detalha as práticas litúrgicas e eclasiásticas da Igreja em Jerusalém, onde

não faltam informações sobre os santuários, numerosos, e alguns suntuosíssimos, construídos principalmente nos ‘lugares sagrados’ e onde se realizaram as cerimônias acima referidas: a Basílica do Santo Sepulcro (com a Anastasis, o Calvário e o Martiyrium ou Ecclesia Maior), o santuário do Cenáculo de Sião, os três santuários do Monte das Oliveiras (Imbomon, Eleona e Getsemani), a basílica de Belém e duas igrejas na Betânia, uma das quais é a chamada Lazarium (Ibid., p. 28-29).

E a julgar pela linguagem e fundamentação bíblica encontrada na obra, tudo leva a crer que sejam verdadeiras as hipóteses de que Egéria fosse realmente uma mulher culta, o que leva Rosalvo do Valle a concluir: “O certo é que dessa peregrinação de cerca de três anos essa mulher satis curiosa nos legou uma preciosa fonte de informações linguísticas, históricas e litúrgicas” (Ibid., p. 38). Ou seja, ao narrar suas viagens, Egéria acabou por fazer História, pois, como ressalta Gilberto Figueiredo Martins, suas recorrentes referências aos

um prefeito de Roma, em 373 (Jerónimo, Epist., 4 – PL, t. 22, col. 336), Paula de uma nobre família romana e Eustóquio, em 385 (Idem, Epist., 108 – PL, t. 22, col. 878-906) e Poemenia, parente de Teodósio,em 390 (Paládio, Hist. Laus., 35 – PL, t. 74) (p. 122, nota 4), mas nenhuma delas escreveu suas experiências de viegens, já são conhecidas pelos relatod de outros. 30 | Mulheres Intelectuais na Idade Média monastérios e igrejas, seus depoimentos sobre as práticas religiosas ocorridas nestes locais, etc.,

além de auxiliarem futuros peregrinos em suas viagens [...] acabam por fornecer informações essenciais acerca da situação na qual, à época, encontravam-se os lugares e monumentos bíblicos. Por isso, os comentadores têm destacado a importância central do relato da Peregrinação de Etéria para o conhecimento histórico dos percursos e percalços da expansão da fé cristã na Idade Média (2011a, p. 12).

Além disso, os escritos de Egéria revelam que ela tinha um grande conhecimento das Sagradas Escrituras, cuja versão, pelas citações que fez em seu diário, para a comentadora Maria da Glória Novak, “assemelhava-se mais a uma das versões latinas partidas da Septuagenta, portanto à Vetus Latina, do que à Vulgara, que São Jerônimo traduziu pelos fins do século IV. Por outro lado, estudos minunciosos levam à afirmação de que a peregrina conhecia também uma tradução latina do Onomastikon de Eusébio” (In: EGÉRIA, 1977, p. 14).

Aelia Eudoxia Augusta (séc. IV/V)

Aelia Eudoxia Augusta

Fonte: http://pt.wikipedia.org/

Aelia Eudoxia Augusta (inicialmente recebeu o nome de Athenais), nascida em Atenas por volta de 394, era filha do retórico Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 31 pagão Leonitius, que desde cedo lhe repassou toda cultura clássica, de forma que quando ela era ainda criança já sabia decorado a poesia de Homero e Píndaro. Quando jovem, após a morte do seu pai, mudou-se para Constantinopla, onde casou-se com Teodósio II, imperador do Império Bizantino, momento em que, além de ser batizada como cristã, foi coroada imperatriz em 02 de janeiro de 423, com o nome de Aelia Eudoxia Augusta. O casal teve três filhos, mas apenas uma filha sobreviveu, a qual recebeu o nome de Licínia Eudoxia, que mais tarde casou-se com o imperador Valentiniano III, imperador do Ocidente. Apesar de ter se convertido ao cristianismo, por ser de origem grega, Aelia Eudoxia Augusta continuou a promover estudos clássicos e a apoiar os direitos civis dos não-cristãos que viviam no Império. Por seus envolvimentos com os não-cristãos, por volta de 440, Aelia Eudoxia Augusta foi acusada de adultério com o conselheiro Paulino, sendo banida de Constantinopla e enviada para Jerusalém, onde passou o resto de sua vida. Ali continuou o seu apoio aos não- cristãos, especialmente em defesa da comunidade judaica. Segundo Antonio Arbea, neste período, em Jerusalém, Aelia Eudoxia Augusta escreveu cinco obras:

(1) um poema em celebração a vitória alcançada por Teodósio, na guerra contra os persas, no ano 421 d. C., (2) uma paráfrase do Octatêutico, (3) uma paráfrase das profecias de Daniel e Zacarias, (4) um poema em três livros sobre a história e martírio de São Cipriano, e (5) um cento homérico. As duas últimas são as únicas que se conserva (2002, p. 98).

O De martyrio sancti Cypriani (Sobre o Martírio de São Cipriano), é um poema épico que conta a história de como Justa, a virgem cristã, derrotou o mago Cipriano através de sua fé em Deus. Cipriano tinha sido contratado por Aglaidas para forçar Justa a amá-lo. O poema termina com a conversão de Cipriano e sua 32 | Mulheres Intelectuais na Idade Média rápida ascensão ao o posto de bispo, e Justa se tornando uma diaconisa, com o novo nome, Justina. Os Homerocentones (Centos homéricos24) são compostos por 2.344 versos, os quais, a exemplo de todos os Centos construídos na história, apresentam uma interpretação bíblica, em que o Velho Testamento ocupa apenas 200 versos, sendo os demais dedicados ao Novo Testamento, com uma narração completa da vida de Cristo, desde o nascimento até a ressurreição. Aelia Eudoxia Augusta morreu em 20 de outubro de 460 e foi sepultada na Igreja de St. Stephens de Jerusalém.

Huneberc von Heidenheim (séc. VIII)

Huneberc (também chamada de Hygeburg ou Hugeburc) foi uma religiosa anglo-saxônica, da Abadia de Heidenheim, na época em que aí ocupava o cargo de abadessa sua amiga e parente Walburga. Huneberc foi autora de uma Vita S. Wynnebaldi abbatis Heidenheimensis (Vida de São Wynnebald, abade de Heidenheim - 702-761), fundador e abade do mosteiro de Heidenheim até 761, ano em que Huneberc chegou ao Mosteiro. Além disso, escreveu uma segunda biografia, a Vita S. Willibaldi episcopi Eichstaetensis (Vida de São Willibaldo, bispo de Eichstätt - 701-786), irmão de S. Wynnebaldi, também chamada de Hodoeporicon S. Willibaldi (Relato de uma viagem de São Willibaldo)25, na qual relata a viagem do referido Santo à Terra Santa, entre 767 e 778, que lhe fora narrada por ele próprio. Não se sabe a data do falecimento de Huneberc von Heidenheim. Sabe-se que em 780 ela ainda estava viva, quando

24 Diferentemente de Faltonia Betitia Proba que construiu seu Cento parafraseando o poeta Virgilio (Cento Virgilianus), Aelia Eudoxia Augusto parafraseia o poeta Homero, ou seja, poemas extraídos das Ilíadas ou da Odiséia. 25 Há uma tradução do Relato de uma viagem de São Willibald na internet, no seguinte endereço eletrônico: http://www.fordham.edu/halsall/basis/willibald.html Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 33 visitou Cesareia e informou que a cidade tinha uma igreja e um "grande número de cristãos".

Dhuoda de Septimania (806-843)

Fonte: http://ldysinger.stjohnsem.edu/

Dhuoda de Septimania, filha de Sancho Lopez I, Duque de Gascuña e Aznárez de Aragão, filha de Aznar Galindez I, Conde de Aragão, nasceu, provavelmente, em 806. Portanto, nasceu e viveu sua infância em meio a uma família nobre, onde recebeu uma esmerada educação, aprendendo a ler e escrever em latim, como demostrará tempos depois. Em 24 de junho de 824 casou-se, no Palácio de Aix, com Bernardo de Gothia, Duque de Septimania, que era primo do Imperador Carlos Magno. O casal Bernardo de Gothia e Dhuoda de Septimania teve dois filhos: William (em português Guilherme), que nasceu em 826, e Bernardo, que nasceu quase quinze anos depois, em 841, quando, nesta época, o casal residia em Uzès, estando Bernardo de Gothias em missão a serviço do Imperador Luis, o Piedoso. A partir de 840, com a morte de Luís, o Piedoso, inicia-se uma grande luta entre os herdeiros (Lotário, Luis e Carlos, o Calvo) pelo poder, a qual atingiria a família de Dhuoda de Septimania, uma vez que seu marido pertencia à família real, era primo de Carlos Magno. Resultado dessa querela foi o 34 | Mulheres Intelectuais na Idade Média esfacelamento de sua família, em 841: ela e seu primeiro filho, Guilherme, foram feitos reféns na corte de Carlos, o Calvo26, enquanto que o outro filho mais novo, Bernardo, foi levado com o pai para Aquitânia. Aliás, segundo Maria Guilhermina Barbosa, quando houve a separação entre Dhuoda e o filho mais novo (Bernardo) este não tinha sequer o nome, uma vez que ainda não tinha sido batizado (cf. BARBOSA, 2003, p. 18)27. Quatro anos mais tarde, em 844, seu marido foi executado, acusado de traição. Em seu exílio domiciliar, Dhuoda de Septimania, pouco antes de morrer, entre 841-843, resolveu escrever o Liber manualis (Livro manual), com o propósito de educar seu filho mais velho, Guilherme, dentro de princípios ético-morais cristãos28 capazes tanto de fazê-lo viver bem neste mundo, como de garantir-lhe a salvação eterna, principal objetivo de todo homem vindo a este mundo, conforme ressalte no final do livro:

Desde a primeira linha deste pequeno livro, até a última sílaba do mesmo, reconhece que tudo foi escrito para tua salvação [...]. Os versos que estão acima, no meio e embaixo, eu mesmo os ditei para proveito de tua alma e teu corpo. E não me canso de

26 Por inúmeras vezes, no Liber manualis (Livro manual), Dhuoda se refere ao Imperador como seu Senhor, como, por exemplo, numa pequena passagem ao filho Guilherme, que trabalhava junto a Corte: “Mas depois de ter ficado muito tempo longe da vossa presença, nesta cidade onde resido por ordem do meu senhor, todavia contente com os seus sucessos [...]” (DHUODA de Septimania. Liber manualis apud BARBOSA, 2003, p. 20 – destaque nosso). 27 Ora, sabemos que em 843 Dhuoda faleceu, que em 844 seu marido foi executado e que seu filho Guilherme também foi executado aos 24 anos. Mas não sabemos qual foi o destino de seu filho mais novo, a quem o Liber manualis (Livro manual) também é destinado, conforme vemos num trecho em que pede ao filho mais velho que faça chegar até o irmão mais novo os ensinamentos da obra: “Este pequeno volume, este manual que eu compus e onde eu inscrevi o teu nome, logo que ele também seja chegado à idade de falar e de ler, mostra-lho e guia a sua leitura, porque ele é a tua carne e teu irmão” (DHUODA de Septimania. Liber manualis apud BARBOSA, 2003, p. 23). 28 Por sua preocupação cristã na educação do filho, a tradução espanhola da referida obra traz o seguinte título: DHUODA de Septimania. La educación cristiana de mi hijo. Trad. de Marcelo Merino. Pamplona: Eunate, 1995. Muito embora, ela mesma não fosse uma cristã fervorosa, ou muito praticante, conforme diz num trecho do referido livro: “Mas eu, Dhuoda, tíbia e preguiçosa, frágil e sempre propensa ao abatimento, não me sinto atraída nem pela oração longa, nem sequer pela breve. Tu, do contrário, meu filho Guilherme, vigia, pede e reza, com palabra breve, fevoroza e pura […]. (DHUODA de Septimania. Manual, II, 3 apud ARAUZ MACEDO, 2005, p. 203). Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 35

advertir que recebas e guardes em teu coração (apud OLIVEIRA, 2006, p. 33).

E encerra pedindo ao filho que olhe para aquele livro (ou os conselhos nele contidos) como para “um espelho no qual poderás contemplar sem hesitação a salvação de tua alma, de modo que em tudo possas agradar não só ao mundo, mas Àquele que te formou do limo da terra. Isso é-te necessário para todas as coisas, meu filho Guilherme, para que leves, nos dois planos, uma vida tal que possas ser útil ao mundo e que sejas capaz de agradar sempre a Deus em todas as coisas” (DHUODA de Septimania, Liber manualis, Prologo, I, 21 apud BARBOSA, 2003, p. 60), o que levou sua obra a ser considerada por muitos como uma espécie de Espelho de Príncipes, como é o caso de Ruy Afonso Nunes: “o Manual de Dhuoda se assemelha aos Espelhos escritos por Alcuíno, Paulino de Aquileia, Jonas de Orleans e Hincmar” (1979, p. 164), com algumas diferenças: primeiro, “a originalidade do Manual de Dhuoda se encontra no fato de que seu destinatário é o próprio filho, no que se distingue dos demais Espelhos escritos na mesma época” (DIB, 2005, p. 86)29, que eram escritos para Príncipes. Em segundo lugar, foi escrito por uma mulher, “o que constitui um caso único dentro da literatura altomedieval” (ARAUZ MACEDO, 2005, p. 202)30, e mais do que isto, escrito por uma mulher laica, diferente dos demais Manuais que foram escritos por clérigos, e, por fim, por ter apresentado a si própria, ou sua esperiência de vida como modelo a ser seguindo pelo filho, Dhuoda acabou imprimindo um caréter

29 Cf. também ROVERSELLI, 2006, p. 16. 30 Igualmente acentua o fato dela ser mulher a comentadora Ana Belén Sánchez Pietro, ao dizer: “De Dhuoda impressiona a sinceridade de sua fé cultivada com numerosas leituras, seu amor pela família, seu profundo sentido do dever, sua prudência nos negócios mundanos [...], mas sobretudo impressiona que no século IX Dhuoda é mulher e que é esposa e mãe, quer dizer, que é mulher e laica, pois qualquer uma dessas condições teria bastado para prossupormos que fosse iletrada” (2010, p. 70). Ao que completa: “Incontestável é que Dhuoda é a única autora de seu sexo durante o século IX, e que sua obra tem características peculiares que lhe conferem um lugar a parte na história da literatura” (p. 70). 36 | Mulheres Intelectuais na Idade Média autobiográfico ao texto, coisa que não vemos nos demais Manuais da época31. Por estas características peculiares encontradas na obra de Dhuoda, alguns comentadores rejeitam, ou pelo menos questionam o enquadramento do Livro Manual no rol dos Espelhos de Príncipes, ou de outro gênero literário de seu tempo, defendendo que se trata de um estilo próprio, totalmente original. Dentre estes cometadores temos Franco Cardini, que diz:

Estamos, todavia, diante de um Espelho, ou antes, de um Liber Manualis, de um tipo muito específico; um caso único na literatura alto-medieval. No interior de um arco não muito amplo da produção laica do IX século - enquanto escrita de e para laicos - o Liber Manualis, dedicado por Dhuoda ao filho Guilherme de Septimania [...] distingue-se enquanto escrito por uma mulher - de categoria principesca é certo; mas mulher - e, sobretudo, enquanto dedicado por uma mãe angustiada a um filho que está longe, friamente e brutalmente arrancado de si [...]. Por outro lado sabemos bem quão pouco pessoal e íntima era a escrita medieval do gênero (apud BARBOSA, 2003, p. 29-30).

Afora as dificuldades de se enquadrar a obra num determinado gênero litetrário, o certo é que mais do que uma preocupação para com a educação do filho, ou para além desse objetivo imediato, “o Livro Manual reflete a voz de uma mulher culta e instruída32 que transmite [...] ao mesmo tempo os ideias religiosas e mundanos do seu entorno” (ARAUZ MACEDO, 2005, p. 202).

31 LAUAND, 1986, p. 122, assim resume estas especificidades do Manual de Dhuoda: “O Espelho é um gênero literário que traça o retrato de um ideal, especialmente o ideal moral. Na Gália Franca, os Espelhos eram, sobretudo, obras de espiritualidade escritas por clérigos para leigos. Daí a extrema originalidade de Dhuoda, uma mulher leiga, e mais, uma mãe escrevendo para seu filho. Original também é o caráter pessoal e autobiográfico que Dhuoda imprime ao livro, que não se reduz a um tratado de moral e espiritualidade, mas visa à formação geral do nobre”. E segundo Carla Roverselli, isto fica bem claro desde o início da obra, quando, “já no incipt Dhuoda se apresenta: em primeiro lugar como mulher, com o seu nome, em segundo lugar como mãe do destinatário, em terceiro lugar como educadora” (2006, p. 16). 32 Sobre a bagagem intelectual do Dhuoda, diz Ana Belén Sánchez Pietro: “A própria Dhuoda se declara leitora assídua, e pelo tom profundamente pessoal de seu escrito se pode supor que, além das obras do padres latinos, conhecia os escritos de Alcuino e outros autores do século IX, como Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 37

Portanto, para além de uma preocupação teleológica para com a salvação do filho, a obra traz ensinamentos ético-morais cristãos de convivência social, quando “a mãe chama a atenção do filho para que conserve consigo as virtudes essenciais para a vida em sociedade e estas virtudes precisam estar vinculadas à religião” (OLIVEIRA, 2006, p. 35). E, dentre as virtudes, acentua a fidelidade: ele - o filho - deve ser fiel em primeiro lugar à Deus33, depois, numa ordem hierárquica, à Igreja, ao rei, ao pai, à família e aos amigos, princípio este que lhe garantirá uma dupla felicidade: viver bem neste mundo e alcançar a “verdadeira felicidade”, em Deus:

Portanto, tu, meu filho Guilherme, oriundo de tua raça, sê para com teu senhor, como te disse, veraz, vigilante, útil e importante. Em todo negócio que interesse ao poder do rei, trata, enquanto Deus te der força, de mostrar-te o mais prudente possível, interna e externamente. Lê a máxima e as vidas dos santos Padres (as personagens bíblicas já referidas) que nos antecederam, e aí tu descobrirás como e de que forma deves servir ao teu senhor, e assisti-lo fielmente em tudo. E quando o houveres descoberto, aplica-te a executar fielmente as ordens do teu senhor. Considera, também, aqueles que o servem assiduamente com a máxima fidelidade, e deles aprende as lições de serviço; ilustrado pelo exemplo deles, com o socorro e ajuda de Deus, conseguirás mais facilmente atingir o objetivo que te indiquei. Que o teu Deus e Senhor seja em tudo propício e benigno; que ele seja o teu defensor, teu chefe benfazejo, teu protetor, em todas as tuas ações ele se digne de te assistir continuamente como teu amparo e defesa. Como ele o quiser no céu, assim seja! Amém (apud NUNES, 1995, p. 125-26).

Esses ensinamentos são válidos não só para seu filho, mas para todo cidadão, daí o largo alcance e importância da obra.

Ambrósio Autperto, Jonas de Orléans, Paulino de Aquilea, Rabano Mauro e Lupo de Ferrières, além das obras de Isidoro de Sevilla, Venancio Fortunato e Gregorio de Tours” (2010, p. 79). 33 No Livro Manual, diz ao filho: “Exorto-te pois, meu bem - amado filho Guilherme, a amar a Deus antes de tudo” (DHUODA de Septimania. Liber manualis, II, 2 apud BARBOSA, 2003, p. 61). 38 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Os originais do Liber manualis (Livro manual) encontram-se hoje na Bibliothèque Nationale de Paris, e compreende as seguintes partes:

• Prólogo - o autor e suas razões para escrever • Livro 1 - amar a Deus • Livro 2 - o mistério da Trindade • Livro 3 - a ordem social e o sucesso secular • Livro 4 - vida moral • Livro 5 - castigo de Deus sobre aqueles que ele ama • Livro 6 - a utilidade das bem-aventuranças • Livro 7 - a morte do corpo e do espírito • Livro 8 - como orar e para quem • Livro 9 - os números de interpretação • Livro 10 - resumo dos pontos principais da obra, mais sobre o autor • Livro 11 - a utilidade de recitar o Salmo

Dhuoda de Septimania faleceu logo após o término de sua obra, em 843, mas sua mensagem permaneceu viva, influenciando pedagogos ao longo dos séculos, e sua importância é tal que a seu nome foi dedicado o Centro de Pesquisa sobre Mulheres da Universidade de Barcelona - Espanha. Seu filho Guilherme, tendo se aliado aos rebeldes de Aquitania, foi decapitado quando tinha pouco mais que 24 anos de idade, de forma que não sabemos se chegou sequer a tomar conhecimento do referido Liber manualis (Livro manual), a ele escrito por sua mãe.

Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 39

Roswita von Gandersheim (935-1002)

Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Hrotsvitha

Roswita34 von Gandersheim, grande nome da literatura de fundamentação cristã em terras germânicas, sendo conhecida como a primeira poetisa de origem germânica na Idade Média, nasceu provavelmente por volta do ano 935, uma vez que, alguns anos depois, por volta de 959, quando Gerberga, filha do duque Henrique da Baviera e sobrinha do Imperador Otto I, foi eleita abadessa do mosteiro beneditino de Gandersheim - Leste da Saxônia, ela também já era cônega35 desse mosteiro. No mosteiro de Gandersheim, sob a orientação de Rikkardis, que ela cita como grande mestra, e da abadessa Gerberga, Roswita recebeu uma boa educação36, tendo lido os clássicos da

34 Segundo Bernard Pautrat “existem pelo menos 22 denominações de seus nomes, entre as quais podemos encontrar variadas formas como Hrotsuit, Hrosvitha, Hroswitha, Hrotsvitha Hrotsvithae, Roswitha” (apud BOVOLIM, 2005, p. 13). Segundo Elisabeth Reinhardt, “há diversas teorias sobre o significado do nome, por exemplo, Rosa Branca” (1999, p. 600, nota 3). Já ORTUÑO ARREGUI, 2016, p. 54, nota 34, diz que “é mais provável que tenha o significado dado por ela mesma a seu nome, quando no Prefácio das seis comédias se denomina a si mesma Ego,Clamor Validus Gandershemensis (a etimologia alemã é "hruot"= clamor y "sui(n)d"= validus)”. 35 Segundo Diana Arauz Macedo, Roswita não era propriamente uma monja, mas uma cônega, o que significa dizer que “as cônegas da mencionada abadia, diferentemente das monjas, faziam votos de castidade e obediência, mas não de pobreza, de forma que podiam dispor e administrar seus bens, fato que as mantinha em uma rotina mais dinâmica com o mundo exterior, diferetemente do enclausuramento exigido as outras religiosas” (2005, p. 2004, nota 3). Isso fazia com que Roswita, como oriunda da classe nobre, mantivesse contato com a Corte e com os meios intelectuais do seu tempo, com quem dialogava. Traz esta mesma informação ORTUÑO ARREGUI, 2016, p. 55. 36 Peter Dronke insinua que Roswita, que abraçou a vida monástica já com certa idade, iniciou sua formação intelectual antes de sua entrada no mosteiro, quando diz: “Roswita talvez chegou a canonisa com uma idade não tão jovem, depois de haver passado por uns bons anos de formação 40 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Antiguidade, visto que, na época, a abadia de Gandersheim tinha uma grande biblioteca37, o que lhe permitiu “educar-se, atuar como educadora e tornar-se conhecida por sua produção literária, tanto no campo religioso como secular. E pertencer a um grupo de mulheres e monjas medievais detentoras do conhecimento, situação pouco comum na época” (BOVOLIM; OLIVEIRA, 2012, p. 1007). Os escritos de Roswita von Gandersheim dão provas de que ela estava familiarizada com as obras dos Pais da Igreja, como Santo Agostinho, e com a poesia clássica, ainda em vigor na época dela, incluindo as obras de Virgílio, Horácio, Ovídio, Terêncio e outros, que são citados em suas obras38. Na comédia Sabedoria, por exemplo, que narra o martírio das santas virgens Fé, Esperança e Caridade, supostamente acontecido no tempo do Imperador romano Adriano, a personagem principal - a mãe Sabedoria - é apresentada como uma mulher extremamente sábia que, além de ministrar a educação religiosa cristã, transmite, também, conceitos importantes para a formação intelectual laica, como, por exemplo, da matemática39. Segundo Jean Lauand, esses conceitos foram extraídos do De Arithmetica, de Bóecio (cf. cultural e social em meio a um ambiente refinado e cosmopolita da Corte dos Ottos, onde deve ter compartilhado das aspirações literárias, artísticas e políticas destes últimos titulares autênticos do Império romano[...]” (apud BOVOLIM, 2005, p. 83). Defende este mesma tese Diana Arauz Macedo, quando diz que “Hrotsvitha passou grande parte de sua juventude no ambiente da Corte, onde se nutriu de uma rica Biblioteca baseada em autores clássicos e medievais” (2005, p. 204). 37 A esse respeito diz Andrés López: “Os grandes mosteiros da Alemanha, no século X, inclusive Gandersheim, estavam repletos de obras de autores clássicos, personalidades literárias e autores culturais reconhecidos, que desempenharam um papel importante na formação das mulheres nobres e das religiosas que frequentavam os mosteiros da Alemanha” (apud BOVOLIM; OLIVEIRA, 2012, p. 107). 38 A propósito diz WEMPLE In: 1990, p. 264: “Hrotsvita conhecia bem muitos autores, mas na primeira linha dos seus favoritos estavam Virgílio e Terêncio. Virgílio serviu de modelo aos seus escritos épicos e as suas peças foram escritas com o sentido de humor malicioso de Terêncio, embora o seu argumento se baseie nas legendas de santos e nada tenha de terenciano”. 39 MARTINS, 2011b, p. 88, comentando acerca do simbolismo nas obras de Roswita, chama a atenção para a grande quantidade de números na supracitada peça, como, por exemplo, “a menina Fé morre com 12 anos, chicoteada por 12 centuriões”; no instante em que Caridade morre “quem olhasse atentamente veria 3 jovens radiosos de claridade que a acompanhavam, etc.”. Para um maior detalhamento dos conceitos matemáticos trabalhados por Roswita, ver: NASCIMENTO In: 2012. p. 11-15. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 41

LAUAND, 1986, p. 41), de forma que podemos afirmar que, “além de exaltar os ideais religiosos, ela transmitiu aos ocupantes dos mosteiros ensinamentos mínimos sobre a civilização clássica e sobre as artes liberais: o trivium (gramática, retórica e dialética) e o quadrivium (aritmética, geometria, música e astronomia)” (BOVOLIM, 2005, p. 15). Por isso, embora procurasse se autorretratar como uma mulher humilde, o que era típico das mulheres místicas medievais40, Roswita era conhecida como “a voz forte da abadia de Gandersheim”. A produção literária de Roswita, escrita em latim, como era habitual para a época, divide-se em três grupos: 1 - os poemas, que por sua vez estão divididos em dois tipos:

- os poemas religiosos (em número de oito) em versos leoninos: um versa sobre a Virgem Maria (a partir do evangelho apócrifo de São Tiago, o irmão de nosso Senhor), outro sobre a Ascensão do Senhor e os outros seis sobre as vidas de alguns santos (Gandolph, Pelágio, Theophilus, Basilius, Denis, Agnes)41. Esses

40 Para muitos comentadores, muitas escritoras medievais apresentavam-se como mulheres humildes como estratégia pedagógica para se fazerem ouvir em meio a uma sociedade elitista e machista. Mas, por trás dessa aparente humildade, ou nas entrelinhas de seus escritos, principalmente das personagens femininas por elas protagonizadas, apresentavam-se como mulheres fortes e sábias, em condições de discutir em pé de igualdade com os homens, o que deixava entrever certa “teologia/filosofia feminina” em defesa da igualdade de gênero. Daí, para BOVOLIM, 2005, p. 88, “Roswita manifestava uma atitude muito sábia perante o sexo oposto, ela procurava agradar destacando a debilidade da mulher e, ao mesmo tempo, exaltando toda força, inteligência, coragem e o conhecimento que ela possuía”. Em seus diálogos acabavam sempre por vencer os homens. Igualmente reforça essa tese Luiz Jean Lauand. que, na introdução à sua tradução do Dulcício de Roswita, diz: “[...] no Dulcício, os papéis ridículos e grotescos são reservados aos homens, enquanto as personagens femininas são as heroínas, cheias de força e determinação” (LAUAND, 1998, p. 170); e BRAGANÇA JÚNIOR; RESENDE MARQUES, 2013, p. 49-50, assim concluem seu texto: “Em sua arte dramaturga, cujas obras são de caráter educador e evangelizador, Roswita von Gandersheim dramatiza a vida dos santos e mártires da Igreja justamente com nomes e elementos da História, com a intenção de criar um modelo de comportamento voltado ao público feminino das congregações conventuais e, poderíamos também dizer, para a sociedade cristã [...]. Mas do que isso, Roswita mostra como seu teatro, no qual os personagens femininos são os protagonistas, que a mulher medieval pode ser tanto (ou mais) forte que o homem quando se trata de manter sua fé inabalável”. 41 Cf. REINHARDT, 1999, p. 602. 42 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

poemas parecem ter sido projetados para leitura em voz alta ou a recitação pelas monjas do mosteiro, ou seja, como instrumento educacional, o que era uma novidade na época, pois antes, durante os primeiros séculos da Idade Média, o teatro, nomeadamente aquele de cunho cômico, foi condenado pela Igreja, o que levou o comentador Fernando Peixoto a dizer que “a princípio a Igreja proíbe o teatro e ameaça os atores com o fogo do inferno, mas logo em seguida passa a utilizá-lo como celebração religiosa ou ensinamento” (apud CAETANO, 2011, p. 165 ). - os poemas épicos, que são histórias rimadas, um dos quais a vida do Imperador Otto I, por isso intitulado Gesta Ottonis (As obras de Otto). É também chamado de Panagyric Ottonum, e foi apresentado pela autora em 968, ao mesmo tempo ao velho Imperador e ao seu filho (então já coroado como) Otto II. Segundo Giovanni Isabella, “trata-se de um poema épico com cerca de 1500 versos, que se propõe a recontar as ações políticas e militares (esse o sentido próprio do termo gesta) de Otto I da Sassonia” (ISABELLA, 2007, p. 34).

2 - as comédias, dramas ou peças (em número de seis), de cunho moral, que tratam da vitória da fé e da pureza sobre o poder e a sedução: Gallicanus (Conversão de Galicano, general dos exércitos); Dulcitius (Dulcício ou Martírio das santas virgens Ágape, Quiônia e Irene – que simbolizam respectivamente a Caridade, a Pureza e a Paz)42; Callimachus (Ressurreição de Drusiana e Calímaco); Abraham (Caída e conversão de Maria, sobrinha do eremita Abraão);Paphnutius (Conversão da meretriz Taíde) e Sapientia (Martírio das virgens santas: Fé, Esperança e

42 Da peça Dulcício, temos uma tradução para o português, com introdução e comentários de Luiz Jean Lauand In: LAUAND, 1998, p. 171-190, o qual assim resume o enredo da peça: “Martírio das santas virgens Ágape, Quiônia e Irene. Na calada da noite, o governador Dulcício aproximou-se secretamente do lugar em elas estavam encarceradas, ardendo em desejos de abraçá-las. Mas, acometido de súbita demência, enganou-se e começou a abraçar e beijar panelas e caldeirões de cozinha, tomando-as pelas moças, até que ficou com o rosto e as vestes impregnados de uma horrível pretume. Depois, as virgens foram entregues a Sinísio, para que as torturasse, mas, milagrosamente, por ele também foram enganadas. Por fim, Ágape e Quiônia foram queimadas e Irene, trespassada por uma flecha”. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 43

Caridade)43. Tais comédias tomam como modelo as comédias de Terêncio, o dramaturgo romano cujas obras, em tom de irreverência e humor, foram escritas entre os anos 170-160 aC. Muitos de seus manuscritos sobreviveram até a Idade Média. Daí o ensaísta do Dicionário Internacional de Teatro afirmar que as peças de Roswita tinham “um travesso uso da ironia", embora o mesmo comentador ache que certas passagens, "como os dois longos didáticos discursos sobre matemática e a harmonia cósmica, são intrigantes em sua dramática função, mas em outros lugares há ampla comédia situacional e vicário sensacionalismo para fazer seu apelo de entretenimento óbvio" (apud Hrotsvitha..., 2012). Mas, como cônega, apesar de tocar em temas sensuais ou de trazer para suas obras os pontos “indecentes” do poeta pagão Terêncio, a poetisa teve de adaptá-los à moral cristã da época, conforme narra a própria Roswita:

Muitas vezes enrubesci por ter de escrever a respeito da detestável loucura dos amores ilícitos e de inconvenientes colóquios amorosos, coisas às quais não devemos prestar atenção. Mas se, envergonhada, eu não tratasse desses assuntos, não conseguiria atingir meu objetivo, que é o de celebrar o louvor das almas inocentes. Na verdade, quanto maior parece a sedução dos amantes, tanto maior a glória do auxílio divino (apud LAUAND, 1986, p. 31).

E uma das formas ou instrumento pedagógico usado por Roswita para falar de temas proibidos ou tabus era exatamente transformá-los em dramas e/ou comédias jocosas ou lúdicas,

43 Da comédia Sapientia, temos uma tradução para o português, com introdução e comentários de Luiz Jean Lauan In: Textos antigos e medievais traduzidos. Coord. e seleção de Ricardo da Costa. Disponível em: http://www.ricardocosta.com/textos/textosmed.htm Acesso em: 30.03.2012. Em linhas gerais, nesta peça, “cuja ação decorre no início da era cristã, durante o império de Adriano, as personagens Sabedoria e suas três filhas – Fé, Esperança e Caridade – são estrangeiras que, chegadas a Roma, vêem-se denunciadas ao imperador pelo severo Antíoco, por ameaçar a ordem do Estado e a ‘concórdia do povo’, ao difundir ‘a divergência de culto’, e induzir à disrupção social pela ‘prática da religião cristã’” (LAUAND, 1986, 46-47). Já segundo MARTINS, 2011b, p. 83, “as crianças (Fé, Esperança e Caridade) alegorizam, antes, as três virtudes teologais, enquanto a personagem da mãe (Sabedoria) pode se referir à própria Verdade sagrada revelada nos evangelhos”. 44 | Mulheres Intelectuais na Idade Média enquadrando-se ela, assim, na tradição medieval criada nos tempos do Imperador Carlos Magno, quando seu mestre, o filósofo e pedagogo Alcuíno de York, que tinha como orientação pedagógica o ensinar brincando, utilizava-se de anedotas, brincadeiras, enigmas e charadas. Tempos depois, esse método atingiu os mosteiros, onde o lúdico ou jocoso passou a ter, além do caráter motivacional, outra função pedagógica: aguçar a inteligência dos jovens. E é aí que se enquadra Roswita, conforme chama a atenção Eliana Lucci, ao comentar uma passagem de uma de suas peças - Sabedoria:

No mosteiro beneditino de Gandersheim - na época dessa nossa educadora (em torno do ano 1000), um importante centro cultural, onde havia monjas de cultura esplendorosa - Roswita, após um hiato de séculos, re-inventa o teatro, re-introduz a composição teatral no Ocidente. E compõe 6 peças de caráter educativo (Sapientia, por exemplo, traz embutida toda uma aula de matemática!) - que combinam drama e comédia. Entre inúmeras outras situações cômicas, destacamos aqui a hilariante sequência de cenas IV a VII da peça Dulcício: O governador pagão, Dulcício, está encarregado da impossível tarefa de demover 3 virgens cristãs – Ágape, Quiônia e Irene - de sua fé. Confiante em seu poder de sedução e atraído pela beleza das moças, manda trancafiá-las na despensa ao lado da cozinha do palácio, e, de noite - enquanto elas cantam hinos a seu Deus -, Dulcício vai invadir a despensa, mas tomado de súbita loucura, equivoca-se e entra na cozinha e acaba, sofregamente, abraçando e beijando os caldeirões e panelas, tomando-as pelas prisioneiras que o espiam pelas frestas e veem-no cobrir-se de fuligem etc. Só quem ignora o papel do lúdico na pedagogia medieval pode-se surpreender que uma mulher, uma monja, numa composição devota, para ser encenada no mosteiro, inclua uma cena "escabrosa" como essa (LUCCI, 2012).

Não se sabe ao certo se tais esboços dramáticos foram alguma vez representados, se ela os escreveu apenas como exercício literário, utilizado somente para a distração de suas companheiras do convento, ou se tiveram um público maior, com Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 45 encenação propriamente dita. Alguns comentadores consideram que tenham sido realmente encenados, principalmente as peças com papéis infantis, pois em sua época crianças eram mandadas para os conventos para serem educadas. Por exemplo, na peça Sapientia, na qual Roswita tem a preocupação de escrever as falas de acordo com a idade das personagens, as crianças mais novas (as personagens infantis têm 8, 10 e 12 anos) recebiam menos falas, mais curtas e mais fáceis. Mas, para outros comentadores, é impossível que as peças de Roswita tenham sido encenadas. De qualquer forma, por ter “escrito todos as suas obras em latim, é considera a primeira pessoa desde a Abntiguidade tardia a compor obras de teatro nessa língua” (ORTUÑO ARREGUI, 2016, p. 55). 3 - prosas, que são crônicas, como o De primordiis et fundatoribus coenobii Gandersheimensis (Sobre os primórdios e os fundadores do mosteiro de Gandersheim), em que narra a história de sua abadia, desde as origens até o ano 919. Todas as obtas de Roswita foram reunidas em um único documento chamado Codex Bayerische Staatsbibliothek Clm 14485, que segundo Manuel Ortuño Arregui, “foi escrito por várias mão em Gandersheim no final do século X e início do XI. Foi descoberto pelo humanista Conrad Celtis em 1493-1494, na abadia de San Emerano em Ratisbona [...] que o editou por ordem do Príncipe eleito de Sajonia, Federico III”(Ibid., p. 56). Roswita faleceu em 05 de setembro de 1002, mas,

ao contrário de muitas escritoras de seu tempo, a obra de Hrotsvitha de Gandersheim tem sido conhecida, divulgada e interpretada através da história: pouco despois de sua morte, foi copiada num único manuscrito a totalidade de sua obra; no século XVI, os humanistas alemães se encaregaram de destacar seu talento [...] refletindo uma euforia nacionalista por sua primeira poetisa sajona; posteriormente, em meados do século XIX, apareceria a primera tradução para o Francês de seu teatro, enquanto alguns historiadores positivistas da ordem beniditina se apropriavam dos textos da autrora, assumindo suas próprias interpretações. Na 46 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

atualidade, seguimos estudando desde distintas disciplinas as contribuições desta excelente escritora, cuja imagem e palavra parecem inesgotáveis no tempo, pois suas inquitações e preocupações levantadas naquele tempo têm se mantido no curso da história e seguem virgentes neste século, manifestando-se através de diversos discursos (ARAUZ MACEDO, 2005, p. 207).

Ava von Göttweig (1060-1127)

Fonte: http://webs.schule.at/website/

Ava von Göttweig (ou Ava de Melk, ou Frau Ava), nascida em 1060, na cidade de Klein-Wien, perto de Göttweig - Áustria, foi a primeira poetisa conhecida na língua alemã. Em uma de suas obras, o Das Jungste Gericht (O juízo final), ela narra que foi casada e teve dois filhos (Hartmann e Heinrich), que provavelmente foram sacerdotes e ajudaram sua mãe na escrita de poemas religiosos e autobiográficos, em linguagem médio-alto tedesca (médio-alto alemão). Após a morte de seu marido, tornou-se monja beneditina, na Abadia de Göttweig (ou de Melk), na Áustria, perto de Krems. Pelas obras de Ava von Göttweig sabe-se que ela tinha conhecimento dos comentários bíblicos de Beda (São Beda ou o Venerável Beda), das obras de Rábano Mauro, especialmente do De rerum enciclopedia naturis, das obras do filósofo e pedagogo Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 47

Alcuíno de York e do De libellus antichristo, do Abade Adso, demonstrando assim uma boa formação intelectual. Dos seus cinco poemas, três - Leben Jesu (Vida de Jesus), Der antichrist (O anticristo) e Das Jungste Gericht (O juízo final) - foram descobertos em 1841 por Joseph Diemer em um mosteiro de Vorau e por isso são conhecidos como "os manuscritos do Vorau". Os dois últimos - Die 7 Gaben des Heiligen Geistes (Os Sete Dons do Espírito Santo) e Johannes (João Batista) - são, provavelmente, parte do "Leben Jesu", mas são muitas vezes considerados como obras independentes. Ava von Göttweig faleceu em 07 de fevereiro de 1127 e, ainda hoje, em Klein-Wien, perto de Göttweig, há uma torre, chamada "Avaturm" (Torre de Ava), que se acredita ter sido parte de seu antigo mosteiro. Como forma de reconhecimento e atualidade de sua pessoa, um prêmio bienal literário conhecido como Literaturpreis Frau Ava foi instituído em 2001, na Alemanha, para obras publicadas em alemão sobre temas espirituais, religiosos ou políticos principalmente endereçados aos leitores jovens. Ava de Göttweig foi proclamada venerável pela Igreja Católica. 48 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Hildegard von Bingen (1098-1179)

Fonte: http://regisaeculorumimmortali.files.wordpress.com/

Vida e obras

Segundo Joseph-Ignasi Saranyana, Hildegard44 von Bingen (em português Hildegarda de Bingen), última dos dez filhos45 do casal de nobres Hildebert e Mechtild, nasceu em 109846, na

44 Segudo Cristina Siccardi, o nome Hildegard significa “aquela que é audaz na batalha” (2013, p. 215). 45 Além de Hildegard, mais três filhos do casal tornaram-se religiosos: “Hugo, que chegou a ser canônico e cantor de sua irmã; Roric, que foi sacerdote em Tholey; Clemência, que foi monja beneditina junto a sua irmã” (MATTHEI, 1999, p. 2). Cristina Saccardi completa esta irformação ao dizer que: “O seu irmão Hugo tornou-se cantor e dignitário na corte arquiepiscopal de Mogúncia e, como tal, também precetor na Escola da catedral [....]. O irmão Rorico, pelo contrário, tornou cônego regular em Tholey, no Sarre (Saarlaud, em alemão); enquanto Drutwin herdara a administrar a propriedade que lhe lhe coube; quando morreu, os irmãos ainda vivos decidiram deixar a herança ao mosteiro de Hildegarda. A irmã Clementina viveu na abadia de Desibodenberg e, depois, em Rupertsberg. Das irmãs Hermengarda, Olídia e Judite não há notícias, apenas sabemos que Santa Hildegarda matinha boas relações com dois sobrinhos, filhos das irmãs. Dos outros filhos de Hildebert e de Mechtild não se conhece nem o nome, o que se deve, muito provavelmente, à sua morte premarura” (2013, p. 37). 46 Justamente o ano em que o beneditino Roberto de Molesmer (1024-1111) fundou uma abadia em Cister (Cîteaux – França), que cresceria como um ramo dos Beneditinos com o nome de Cistercienses. Três anos antes (1095) comçava a primeira Cruzada, que durou até 1099, ano da morte do Papa que a convocou (Urbano II (1040-1099). Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 49 fortaleza de Merxheim, em Bermersheim – sede dos barões de Sponheim – próximo de Alzey, na Francônia-Renânia, região do Vale do Rio Reno47. Como era costume entre as famílias nobres da época, em 01 de novembro de 1106, dia de Todos os Santos48, quando tinha apenas aos oito anos de idade, Hildegard foi confiada como oblata à abadessa e ex-condessa Jutta (Judite)49, filha do Conde Stephen de Sponheim, esposo de Sophia, no mosteiro das beneditinas de Disibodenberg50. A família de Jutta e de Hildergad eram intimamente ligadas, pelos laços de nobreza e vida cristã51.

47 Cf. SARANYANA, 1999, p. 153, nota 41. Já ZAMBONI, 1997, p. 24, discordando um pouco de J.-I. Saranyana, diz que Hildegard “nasceu em 1098 em uma cidadezinha nas proximidades de Magonza, na região renana [...]”. 48 Dez anos mais tarde, entrará também nestde mosteiro Gertrudes de Sponheim, de dez anos de idade, com quem Hildegard fará grande amizade. 49 Segundo Bárbara J. Newman, “eles ofereceram a Deus, como dízimo, sua filhinha de oito anos de idade, colocando-a no eremitério de Jutta” (NEWMAN, Bárbara J. Introdução. In: HILDEGARDA de Bingen, Scivias, 2015, p. 24 - destaque nosso). Reforça essa informação TRIVIÑO MONRABAL, 2013, p. 87: “Cumpridos os oito anos de idade, seus pais a ofereceram a Deus como ‘dízimo’, para compartilhar a ‘vida reclusa’ com a virgem Judite, filha do Conde de Sponheim, no monastério beneditino de Disibodenberg”. E GÓNGORA, 2012, p. 24, ao dizer que ela “foi entregue, como dízimo, a vida religiosa desde sua infância”. 50 CIRLOT, 2012b, p. 18, confrontando a Vita de Jutta e a de Hildegard, levanta outra versão para entrada de Hildegarda no mosteiro beneditino de Disibodenberg. Para ela, “com a idade de oito anos Hildegard teria sido confiada a Jutta von Sponheim, todavia não teriam se recluído no mosteiro, senão que permaneceram no castelo de Sponheim até a morte da mãe de Jutta, quando se mudaram para o castelo de Uda von Göllheim. Só em 01 de novembro do ano 1112, entraram Jutta e Hildegard, com catorze anos, na cela da clausura, que Guibert descreveu como um pequeno recinto construído em pedra com uma pequena janela que utilizavam para comunicação com as monjas e para passar a comida. A biografia de Jutta insiste na severidade das práticas ascéticas”. 51 GRONAU, 1991, p. 47, levanta a hipótese de que fossem “talvez até parentes”. 50 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Entrega da jovem Hildegard à Abadessa Jutta - altar da Igreja de Santa Hildegarda, em Bingen, Alemanha -

Fonte: http://pt.wikipedia.org/ wiki/Hildegarda_de_Bingen

Além de Jutta (Judite)52, consta que na instrução de Hildegard interveio também o monge Volmar, seu primeiro confessor-copista e biógrafo que conviveu com ela por mais de trinta anos, os quais iniciaram sua educação que, como era costume da época, começava pelo estudo das Escrituras Sagradas, nomeadamente pelos Salmos, a ponto de dizer-se que naquele tempo aprender a ler era aprender a salmodiar. Pouco antes de completar os dezeseis anos de idade Hildegard fez os votos religiosos, recebendo o véu e o anel das mãos do bispo Otto de Bamberg, tornando-se monja cisterciense, passando a viver (em companhia de Jutta) em regime de ascetismo. Além de levar uma vida reclusa, “sofria repetidamente, desde a infância, de doenças atrozes, de tal maneira que só raramente conseguia caminhar [...]. Por diversas vezes, ao longo de sua existência, permaneceu acamada, e durante longos períodos, até anos” (SICCARDI, 2013, p. 37)53.

52 Sobre a vida de Jutta e sua influência da vida/educação de Hildegarda, ver atrigo: TORRENTE FERNANDEZ, 2009. 53 Ao que comenta SALMERÓN JIMÉNEZ, 2008, p. 3: “Sofreu sempre de intensos ataques e graves enfermidades - ainda assim viveu até os 81 anos, sempre em atividade constante - e susas Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 51

Em 22 de dezembro de 1136 Jutta faleceu, fao que levou Hildegarda tornou-se abadessa do mosteiro das beneditinas de Disibodenberg. Cinco anos depois, em 1141, aos quarenta e três anos de idade, Hildegard teve sua primeira grande experiência mística e/ou visionária (seguida de outras, das quais resultaram várias obras, conforme veremos mais adiante)54, momento em que recebeu - como diz ela - “o encargo de Deus” para escrever e pregar, o que implicaria uma mudança radical de vida55, ou seja, sair da vida de reclusão e iniciar uma vida pública de peregrinação/pregação. Essa primeira grande experiência mística e/ou visionária é descrita pela própria Hildegard numa Declaração, uma espécie de Prólogo, ao Livro I do Scito vias Domini (Conhece os caminhos do Senhor), que depois foi abreviado simplesmente por Scivias56:

E sucedeu no 1141º ano da encarnação de Jesus Cristo, Filho de Deus, quando eu tinha 42 anos e sete meses de idade, uma ardente luz de um intenso brilho veio do céu para se pôr por completo em minha mente, como uma chama que não queima persistentes visões tenderam, como era natural, a constituir-se praricamente em uma forma de vida”. 54 Num profundo artigo em que analisa se Hildegard seria uma “mística” e/ou “visionária”, se se enquadraria na chamada uma mística/visionária “obejetiva” ou “subjetiva”, a comentadora Cecilia Avenatti de Palumbo, chaga à conclusão que “Hildegarda foi uma mística cristã no sentido pleno, pois seu discurso expressa uma experiência subjetiva consciente do Místério revelado, numa lingagem da visão que é uma linguagem simbólica” (AVENATTI DE PALUMBO, 2012, p. 23). 55 CIRLOT, 2012b, p. 15, chama a atenção para importâcia desse acontecimento na vida de Hildegard, ao dizer que ele “é o eixo central que ordena o resto dos acontecimentos e que, sobretudo, supõe uma descontinuidade no rítmo temporal. Implica uma mudança qualitativa e com ela uma nova orientação de vida [...]. Diferencia um tempo anterior doutro posterior, de modo que é possível estruturar a vida de Hildegard em um antes do ano 1141 e um depois”. Ao que completa na página seguinte: “[...] o acontecimento do ano 1141 se apresenta como um segundo nascimento ao receber a ordem de manifestar as visões e desse modo experimentar uma profunda mudança em relação a elas” (p. 16). 56 Segundo Helios Jaime, “o termo scivias é um composto do verbo latino scire que significa ‘saber’ e de onde procede a palavra ‘ciencia’, combinado com o acusativo plural da palabra vias, quer dezer, ‘caminos‘. Para dar o sentido proximado a palabra scivias, nessecitamos uma peráfrasis: ‘os caminos que conducem a sabeduría’, que pensamos que é tomada em sua acepcção de ‘suprema sapiencia’. Na realidade, mais que o título de um livro, esta palavra designa uma nova forma de linguagem metafórico-simbólico” (JAIME, 2014, p. 77-78). 52 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

mas que ilumina. Ela me preencheu totalmente, coração e alma, como um sol que esquenta algo com seus raios. E mais uma vez eu poderia ter o gosto de entender realmente o que diziam e o que significavam os Sagrados Livros - Os Salmos, os Evangelistas e os demais livros do Antigo e Novo Testamento [...] (HILDEGARDA de Bingen, Scivias, 2015, p. 96).

Muitas são as iluminuras medievais que retratam as experiências místicas de Hildegard, como esta que aparece na capa de uma das primeiras edições da referida obra, na qual se pode ver Hildegard, acompanhada por sua amiga e secretária Richards, ditando suas visões ao seu primeiro copista Volmar, que escreve o que ouve em tábuas de cera. Na figura, Hildegard recebe o conhecimento através de cinco línguas de fogo (fogos aéreos), que inundam seu cérebro e seus olhos57:

Hildegard e seu copista Volmar

Fonte: http://pt.wikipedia.org/ wiki/Hildegarda_de_Bingen

Dizemos a primeira grande experiência mística porque desde a infância Hildegard teve várias pequenas visões, muitas delas ainda confusas, quando seu campo visual era tomado por uma

57 Para Georgina Rabassó, as cinco línguas de fogo “recordam a passagem bíblica das línguas de fogo que o Espírito Santo fez aparecer sobre os apóstolos (At 2,3)” (2013, p. 102). Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 53 estranha luminosidade58, a que ela mais tarde entendeu como um “reflexo da Luz vivente”. Mas como ela ainda era uma criança não entendia o porquê das visões, e quando acerca delas cometava ou interrogava aos adultos muitas vezes era incompreendida ou até ridicularizada, daí preferir o silêncio, conforme narra ao seu biógrafo Theoderich von Echternach:

[...] aos três anos vi uma luz tão grande que minha alma tremeu; mas, dada a minha idade infantil, nada pude dizer desta visão. [...] e, até aos quinze anos, tive muitas visões e disse várias coisas com simplicidade, pelo que aqueles que ouviram isto, interrogavam-se maravilhados, de onde isto provinha e de quem. [...] ora, como não ouvi de ninguém uma coisa semelhante, mantive escondida o quanto pude a visão que eu tinha no íntimo [...]. Esgotei-me muito com esses fenômenos, pergutei a uma ama de leite se via alguma coisa, além do que aparecia externamente, pespondeu-me que não, porque não via nada. Por isso, tomada de grande temor, não ousava manifestar a ninguém as minhas experiências íntimas; todavia, ao falar, ao escrever, eu costumava expor coisas relativas ao futuro. Quando estava inteiramente absorta na visão, eu dizia muitas coisas que pareciam estranhas a quem as ouvia. Mas, quando a força da visão enfraquecia, eu comportava-me novamente as maneiras de agir infantis, próprias da minha idade, envergonhava-me muito; chorava frequentemente e, muitas vezes, de bom grado me teria calado, se me tivesse sido possível. Mas com o medo que sentia

58 Por ter vivenciado durante toda sua vida a estranha experiência de uma luminosidade sobre seu campo visual, muitos comentadores acusam Hildegard de ter sido portadora de certa doença crônica. Helena Lima de Ávila, por exemplo, levanta a hipótese de que ela “era portadora de epilepsia. Outros acreditam que a monja era vítima de uma patologia chamada migraine – em português migrânea – popularmente conhecida como enxaqueca. Entre outros sintomas, o doente de migrânea sofre de distúrbios visuais. Concluímos que Hildegard poderia ter migrânea com aura, que é aquela que aguça ainda mais tais alterações visuais: há visão de pontos de luminosidade, pontos cegos, diminuição ou aumento de objetos e perda da nitidez. Ainda mais, acreditamos que Hildegard sofreu da síndrome periódica da infância, caracterizada por crises rápidas de vertigem, que torna a criança um adulto enxaquecado” (AVILA, 2009, p. 18). Reforçam esta última tese o comentador Charles Singer, que, baseado em estudos clínicos do médico e Oliver Sacks, defende que a abadesa sofria de “escotoma cintilante”, que é uma forma de enxaqueca. Para maiores detalhes da tese de Charles Singer aconselhamos o artigo: EZPELET, 2001. 54 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

diante dos homens, não ousava confessar a ninguém como aconteciam as visões (In: CIRLOT, 2001, p. 51)59.

Só mais tarde, na maturidade, é que veio a entender que “era uma menina diferente das outras”60, que nascera com um dom especial, que era uma predestinada por Deus para “ver, ouvir e pregar” o que as outras crianças não viam, conforme vemos nesta pequena passagem de sua biografia escrita por Theoderich von Echternach: “Desde o tempo em que eu tomava forma, quando Deus me despertou com o sopro da vida no ventre de minha mãe, Ele imprimiu na minha alma esta capacidade de ver” (In: CIRLOT, 2001, p. 51). Mas foi a grande experiência mística de 1141 que a levou a escrever e pregar, quando entendeu que se tratava de um convite da “própria Luz vivente”, ou da Luz divina. Quanto ao conteúdo ou mensagem recebida nesta grande experiência, a ser executada, vemos na Declaração que antecipa a obra, uma espécie de Prólogo, que em descreve o que viu e ouviu da “Luz vivente”:

Eis aqui! No quadragésimo terceiro dia de meu percurso terrestre, quando eu estava observando com grande temor e trêmula atenção a visão celeste, vi um grande esplendor no qual ressoava uma voz do Céu, a dizer-me: Ó frágil humano, cinza das cinzas, e imundice da imundice! Dize e escreve o que vês e ouves. Contudo, visto que és tímido no falar e simples na exposição, e iletrado no escrever, fala e escreve estas coisas não por uma boca humana e não pela compreensão da invenção humana, e não por exigências de compisição humana, mas como as vês e as ouves no alto dos

59 Segundo, Maria Carmen Poll, baseada em relatos de Gottfried, uma de suas visões na infácia aconteceu quano “enquanto caminhava com sua ama, a pequena Hildegard exclamou: ‘veja que bezerrinho bonitinho dentro desta vaca. Ele é branco com manchas no peito, nas patas e nas costas’. Quando o bezerro nasceu, algum tempo depois, constatou-se que era exatamente conforme a descrição de Hildegarda” (POLL, 2010, p. 56). 60 Título do primeiro capítulo do livro de Cristina Siccardi, em que escreve acerca da infância de Hildegard (cf. 2013, p. 21) Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 55

lugares celestes, nas maravilhas de Deus. Explica estas coisas de seu instrutor, possa expô-las naquelas palavras, de acordo com aquela vontade, visão e instução. Assim, portanto, ó humano, fala estas coisas que vês e ouves. E escreve-as não por ti mesmo ou por qualquer ser humano, mas pela vontade daquel que sabe, vê e dispõe de todas as coisas no segredo de seus mistérios. E mais uma vez ouvi a voz do céu dizendo-me: ‘Fala, portanto, destas maravilhas e, sendo assim instruído, escreve-as e fala’ (HILDEGARDA de Bingen, Scivias, 2015, p. 95)61.

Mas como era uma mulher fiel a ortodoxia católica, Hildegarda esperou a autorização da Igreja para começar tal tarefa. Primeiro, em carta, recorreu a São Bernardo de Claraval, que a encorajou. Mas, como ela continuou em dúvida, por intermédio de seu Bispo Henrique de Mogüncia, o caso foi levado ao Papa Eugênio III, que em 1147-48, durante o Sínodo de Tréveris, encarregou uma comissão de teólogos, dentre os quais Bernardo de Claraval, Albero de Couni, bispo de Verdun, para examinar os relatos de suas visões e, depois de um parecer favorável, autorizou que ela escrevesse suas experiências místicas62. A partir de então, ou seja, tendo recebido o aval da Igreja, Hildegard assumiu sua missão como uma verdadeira “profetisa”. Assim, já em 1150, depois de enfrentar uma forte resistência por parte do Abade, visto eu a comunidde feminina era subordinada ao mostério masculino, e de algumas monjas da comunidade, semelhante a Moisés no Êxodo, a quem tinha como modelo de

61 Este discurso reaparece em diversos momentos do Scivias, com outras palavras, como, por exemplo, no Prólogo à Primeira Visão (O redentor), do Segundo Livro, onde diz: “Ó tu, que és deprezível terra e, como mulher, inculta em todo ensino de mestres terrenos e incapaz de ler literatura com entendimento filosófico, não obstante és tocada por minha luz, que ascende em ti um fogo interior como um solescaldante; grita, narra e escreve estes meus mistérios que vês e ouves em místicas visões [...]” (Ibid., p. 218). 62 Sobre as Cartas (1 a 8) e outros documentos envoltos neste momento da autorização da publuicação do Scivias, envolvendo, pricipalmente Berbardo de Claraval e o Papa Eugênio III, indicamos o artigo: EDMUNDO GÓMEZ, 2014, o qual é autor, também, da introdução a tradução espanhola: HILDEGARDA de Bingen, Cartas de Hildegarda de Bingen, 2015). 56 | Mulheres Intelectuais na Idade Média profetismo a seguir, Hildegard deixa Disibodenberg e parte em companhia de dezoito monjas e o copista Volmar para Rupertsberg, próximo a Bingen, com a finalidade de revitalizar o antigo Mosteiro de Monte Rupert, construído no passado sobre a tumba de São Rupert63. Segundo seu biógrafo, Theoderich, o local fora escolhido mediante uma visão, ou “foi o espirito quem indicou a Hildegarda o lugar, no sítio onde o rio Nahe conflui com o Reno, isto é, na altura que tomou o nome, desde os tempos longínquos, de São Ruperto Confessor” (apud SICCARDI, 2013, p. 141). Em apenas três anos Hildegard recosntituiu o antigo Mosteiro de Monte Rupert, isto graças a uma valiosa doação por parte de um casal de condes palatinos Hermann e Gertrudes de Stahleck – irmã do rei Conrado II. O conde Hermann antes fora um ferrenho inimigo da Igreja, mas ao conhecer Hildegard, com sua profunda espiritualidade, converteu-se e tornou-se grande benfeitor do Mosteiro, o qual abrigará a sua esposa apos o seu falecimento, em 1156. Mas não só estes,

também houve a intervenção do conde Meginardo de Sponheim, que deu enormes propriedades fundiárias e se disponibilizou para equipar o mosteiro; também a Magrave von Stader doou uma grande parcela de terra, próximo a Bingen; além disso, a entrada da noviça Clementina levou um dote notável à nova fundação. Os irmãos de Hildegarda juntaram-se ao elenco dos benfeitores, doando suas propriedades de Bermersheim [...]; e, para sustento das monjas, o arcebispo de Mogúncia doou um moinho, chamado Mulenwert, que se encontrava numa enseada do Reno (Ibid., p. 147).

Ali, na nova morada de Rupertsberg -, com carisma e espírito missionário, age semelhante aos profetas do Antigo Testamento, ou como “a trombeta de Deus”, como ela mesma se define, deixando transparecer nessa missão os três elementos

63 Nesse mosteiro Hildegard viveria até o final da vida, motivo pelo qual a palavra Bingem seria incorporado para sempre ao seu nome, sendo conhedida até hoje conhecid por Hildegard von Bingen. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 57 típicos do profetismo: 1. a declaração de sua própria incapacidade; 2. a iluminação do alto e 3. a graça divina, que a fez superar sua incapacidade, a exemplo de Jeremias, Isaías etc. Quanto ao primeiro deles - declaração de sua própria incapacidade -, temos um dos pontos controversos da vida de Hildegard. Por um lado, em quase todos os seus escritos, ela se declara ou se apresenta como um “frágil se humano, ingênuo e ignorante” (Scivias, II, - prólogo), ou seja, como alguém que não tinha estudos, conforme vemos numa Carta 1, escrita a Bernardo de Claraval:

Na leitura conheço o sentido interior do texto do Saltério, do Evangelho e de outros livros que me são mostrados no peito e na minha alma como uma chama ardente, ensinando-me o sentido profundo da exposição. Mas, sem embargo, não me ensinam as obras - que desconheço - na língua alemã [...]. Responde-me acerca disto, qual é o teu parece, pois sou um ser humano carente de toda instrução escolar quanto ao exterior, mas inteiormente tenho sido instruída em minha alma [...] (2015, vol. I, p. 43).

O que é roforçado em um dos relatos de uma de suas visões, contido em sua biografia escrita por Theoderich von Echternach.:

[...] de repente, compreendi o sentido dos livros como o Saltério, o Evangelho e outros textos católicos, tanto do Antigo como do Novo Testamento, embora eu não conhecesse o significado das palavras do texto, nem a divisão das sílabas, nem as declinações, nem as conjunções (In: CIRLOT, 2001, p. 52).

E seus principais biógrafos dizem que ela não frequentou uma escola regular, e que sua formação não passou de pequenos conhecimentos adquiridos no mosteiro, sob a instrução de Jutta, o que viria a confirmsr as supracitadas palavras da própria Hildegard. É o que vemos, por exemplo, no Livro I, 1, da versão final de sua supracitada biografia:

58 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Quanto completou oito anos foi recolhida, oara ser enterrada com Cristo e assim poder ressuscitar com Ele na glória imortal, em um monte de São Desibod com uma piedosa mulher consagradas a Deus, chmada Jutta. Esta mulher a educou na humildade e na inocência, lhe instruiu no Saltério e lhe ensinou a gozar dos Salmos de Davi. A excerção desta simples introdução nos Salmos, não recebeu nenhum outro ensinamento, nem da arte da música, nem das letras [...] (In: CIRLOT, 2001, p. 52).

Por isso, para alguns comentadores, suas obras são verdadeiramente fruto de uma experiência sobrenatural, da qual ela é apenas um veículo, ou que “seus escritos foram possíveis graças a que ela não era nada, senão só receptáculo e transmissão da vontade de Deus. Sua autoridade procedia de que não era ela que falava, senão a voz que ouvia na visão” (CIRLOT; GARÍ, 1999, p. 55). É o que vemos em suas palavras, escritas no prólogo de sua primeira obra, Scivias, quando diz:

E eis que foi no ano de quarenta e três do curso de minha vida temporal, quando, em meio a um grande temor, tendo uma celeste visão, vi uma grande claridade em que se ouvia uma voz que vinha do céu que dizia: ‘Frágil ser humano [...] escreve o que vês e ouves. Mas como tens medo de falar, como és ingênua e ignorante para escrever, fala e escreve não fundamentada na linguagem dos homens, não na inteligência e na invenção humana, senão fundamentada no fato de que vês e ouves o que vem de cima, no céu, nas maravilhas de Deus’. E de novo ouvi uma voz que me dizia: ‘Proclama estas maravilhas, escreve o que tens aprendido’ (Scivias, 5).

Mas, apesar de apresentar-se como ignorante ou indouta, alguns “estudiosos de história medieval reconhecem que nos seus escritos há um vasto conhecimento dos textos mais lidos nas Escolas de Teologia e nas Universidades de seu tempo” (ZAMBONI, 1997, p. 26), sinal de que ela não era uma mulher sem estudos, como dizia. Pois,

Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 59

em suas obras, contrariamente à sua pretensão de ser ignorante, Hildegarda provou ter um bom conhecimento não só da Bíblia, mas também dos autores latinos, da filosofia neoplatônica e ciências naturais, como em "et curae causae" uma espécie de manual prático da medicina e da farmacologia, sobre temas médicos, filosóficos e astrológicos, como em "Physica", sobre as propriedades das plantas, pedras e animais (SANTUCCI, 2012).

Reforça essa informação a comentadora Bárbara Newman, em sua introdução a tradução brasileira do Scivias, ao dizer que

as influências mais penetrantes em Scivias são a Bíblia e seus comentários, a liturgia, a Regra Beneditina e as obras dos Padres da Igreja, amplamente lidos como Santo Agostinho, Jerônimo, Gregório Magno e Beda [...]. É provável que Hildegarda tenha adquirido seu conhecimento dos Padres da Igreja a partir de florilégios e de antigas adptações medievais, bem como de textos originais. Entre autores tardo-antigos e carolíngios, certamente ela deveria ter conhecido Isidoro de Sevilha, Rábano Mauro, Pascásio Radbert e o hinista Notker de São Galo. A tradição neoplatônica, que matiza fortemente sua cosmologia – respondendo por afinidades com autores mais ‘vanguardistas’ como Bernardo Silvestre e Alan de Lille – pode ter chegado até ela através de João Escoto Erígena. Por outro lado, ela pode ter conhecido esse autor somente de maneira indireta através de seu divulgador do século XII, Honório Agustinense. Entre seus contemporâneos, Hildegarda situa-se mais próxima do próprio Honório, um prolífico autor que supostamente passou a úktima parte de sua vida em Regensburg, e de Rupert de Deutz, um beneditino que escreveu numerosas obras de teologia e de exegese. Já observamos as semelhanças entre Scivias e a obra de Hugo de São Vitor. Outros reformadores, tais como Gerhoch de Reichersberg e Godfrey de Admont, fornecem pontos úteis de comparação e de contraste para o programa eclesiástico de Hildegarda (In: HILDRGARDA de Bingem, Scivias, 2015, p. 81-83)64.

64 Ao que reforça Christian Feldmann, ao dizer que “Hildegarda não recebeu nenhuma formação científica em sentido estrito; sem embargo, quando anos depois se qualifica a si mesma de indouta, não se trata senão de uma humildade exagerada, pois, em Disibodenberg, Hildegarda não só aprendeu a ler e escrever, a salmodiar e desempenhar trabalhos manuais, senão que também adquiriu um sólido conhecimento da Bíblia, dos Padres de Igreja e dos teólogos mais importantes de seu tempo. Isto se demonstra pelas numerosas referências cultas de sua obra” (2009, p. 45). Marta Cristiani, por sua vez, em 60 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Por isso, para alguns comentadores, dentre eles Ximena Aguirre, essa forma de proceder não passa de “uma simples estratégia, e mostrar-se pequena era uma forma de resguardar-se, de não levantar nenhuma suspeita sobre sua verdadeira intenção, seu afã de escrever” (2001, p. 5). Já Celina Lértora Mendonza diz que “sua confissão de humildade (ser “pobre mulher” ou “indouta mulher”), por outra parte, tinha o efeito de garantir a autenticidade e a origem divina de seus escritos ou palavras proféticas mais do que exibir um reconhecimento intelectual” (2006, p. 320). Além dos mais, não podemos esquecer que logo após o falaciemto de Jutta, Hildegard lhe sustituiu no cargo de abadessa, o exigia certa bagagem intelectual, pois, segundo Elisabeth Reinhardt, naquela época, num mosteiro, este cargo “se poderia comparar a uma diretora de escola, já que era responsável pelo ensino que se praticava, ensinava pessoalmente e seguia de perto os progressos das alunas” (1999, p. 599). Motivo pelo qual, Cristina Siccardi, diz que “Hildegarda não só escreveu, não só ditou, mas também se tornou professora e subiu à cátedra por vontade de Deus e da Igreja” (2013, p. 85). O que sabemos é que não era ela quem escrevia suas obras, mas um copista ou secretário, que anotava os relatos de suas visões, as quais eram ditadas, “provavelmente” em alemão medieval (ou arcáico), para que fossem passadas para o latim eclesiástico da época por seus copistas65. O primeiro dele foi sua introdução a tradução italiana do Liber divinorum operum, comentando acerca da instrução dada por Jutta a Hildegard, diz que “com toda probabilidade, o apredizado dos Salmos era acompanhado daquele que era considerado o texto indispensável a sua interpretação, os Comentários aos Salmos de Santo Agostinho” (In: ILDEGARDA, 2003, p. XIV). Cf. também, ÉPINEY-BURGARD, Georgette. La cultura de Hildegarda. In: ÉPINEY-BURGARD ; BRUNN, p. 45-47. 65 A esss respeito Melchor Sanchez de Toca Alameda, no início da tradução espanhola do Liber cauisae et curae, em uma enorme “nota de advertência”, diz, dentre muitas coisas, que “não sabemos como ouvia Hildegarda em seu interior as explicações da Luz Viva, e parece razoável que fora em latim, uma língua que tinha apenas um conhecimento precário. Sabemos que Hildegarda ditaba estas explicações em um latim de ouvido, rústico, sem desinências ou com desinências aproximadas, e que seu secretário, o benditino monje Fólmar (Volmar ou Volmer) ou sua devota irmã Richards, completavam para deixá-lo gramaticalmente correto. Em suas obras, em concreto esta [Liber cauisae Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 61

Volmar, que, ao falecer, entre 1170 e 1173, foi substituído por Gottfried, que iniciou sua primeira biografia, mas, três anos depois, faleceu, em 1176, ficando em seu lugar Guibert de Gembloux, que continuou a referido escrito. Por tudo isso, todos concordam que nas suas obras, ou para produzir suas obras, o mais importante são as visões e não o conhecimento adquirido pelos estudos. Afora as controvérsias se Hildegard era culta ou inculta intelectualmente, o certo é que ela declara insistentemente que “o conhecimento profético não tem a sua origem nela: Hildegard percebe-se como a portadora de um conhecimento. Ela é mensageira de uma verdade. Mas não é ela que produz esta verdade” (ZAMBONI, 1997, p. 26). É o que vemos nas palavras da própria Profetisa, em uma Carta endereçada ao monge Guibert (1175), ao falar acerca de suas visões, que resultaram no Scivias:

et curae], especialmente em algumas passagens do livro V, fica manifesto em que ocasiões Hildegarda balbuciou, não sabendo como dizer e repetiu de outra maneira a frase malentendida ou mal dita. Seu fiel secretário copiou as duas versões consecutivas da mesma ideia, distintas, praticamente identicas, mas com distintas formas em relação a gramática latina” (TOCA ALAMEDA, Melchor Sánchez de. Advertencias para un lector de Santa Hildegarda. In: HILDEGARDA de Bingen, 2013a, p. 13). Igualmente o comentador Pedro Edmundo Gómez, na introdução ao volume 1 da tradução espanhola das Cartas de Hildegarda, traz uma passagem de uma de suas cartas, na qual deixa entrever que recebia suas visões em uma língua estranha ou “ignorada”, que precisava ser burilada para se tornar cognoscitível ao gênero homano. Logo, não sabemos ao certo que “lingua ignorada” era esta; se se trata de um alemão arcaico, como querem alguns comentadores, ou da “língua ingnota”, da qual falaremos mais adiante, que fora mais uma de suas criações. A supracitada passagem da Carta de Hidelgada diz o seguinte: “Aquele que é grande e sem defeito algum tocou agora neste humilde habitáculo, para que se pudesse acontecer um prodígio e formara letras desconhecidas e fizera uso de uma língua ignorada. E este disse a esta pequena morada: Aquele que tem a pedra pomes não descuide da tarefa de pulir e tormar cognoscitível ao gênero humano o que te foi dado em uma língua manifestada a ti a partir do alto e não segundo a forma formalizada entre os seres humanos, porque assim não te foi revelado” (apud EDMUNDO GÓMEZ, Pedro. Introdução. In: HILDEGARDA de Bingen. Cartas de Hildegarda de Bingen, 2015, vol. I, p. 21). Crhristian Feldmann, por sua vez, em capítulo intitulado “O mal latin do Epírito Santo”, adverte que, não obstante as críticas que se fazem ao obscuro estilo literário das obras de Hildegarda, a ponto de “alguns de alguns filósofos se queixarem por este tipo de linguagem, acusando de blasfêmia tribuir semelhante estilo ao Espírito Santo”, mesmo assim - continua -, “de quanta força poética é capaz esta monja apesar de não possuir nenhum talento retótico [...]. Uma verdadeira catedral de palavras, segura, como uma catedral gótica levantada sobre os blocos de pedras [...]. É um autêntico fenômeno: o mísero latin, com o qual ela escreve e dita, claramente pode apenas conter o poder expressivo desta monja. Maneja sobremaneira as imágrns, emprega de forma certeira as comparações e sabe impor plasticidade e cor [...]” (FELDMANN, 2009, p. 72-73). 62 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

As palavras que digo não provêm de mim, mas eu as vejo em uma suprema visão [...]. Vejo e guardo na memória por muito tempo, pois recordo que alguma vez as vi e ouvi [...]. E simultaneamente vejo, escuto e entendo, e quase no mesmo instante aprendo o que entendo. O que não vejo, desconheço, posto que não sou douta. Logo, o que escrevo é o que vejo e escuto. E não acrescento outras palavras minhas àquilo que escutei na visão e me exprimo num latim não refinado, pois na visão não me é ensinafo a escrever como escrevem os filósofos [...]. As palavras que escuto são como uma chama ardente, assemelhando-se a nuvens que se movem no ar. E no mesmo céu vejo o brilho, mas não frequentemente, de outra luz, que chamo luz vivente, que não sou capaz de explicar, nem como e nem quando [...]. Mas como sei que sozinha não sou capaz de nada, ofereço simplemente as minhas mãos a Deus, para serem por Ele pegadas como uma pluma que não tem nenhum peso e que voa na força do ventro (In: CIRLOT, 2001, p. 152).

Portanto, numa época em que a intelectualidade estava reservada aos homens, “foi o sobrenatural que permitiu a Hildegard sair dos estreitos marcos que, em princípio, lhe havia reservado em seu mundo, para situar-se em um primeiro plano da espiritualidade e cultura da época” (CIRLOT; GARÍ, 1999, p. 51). Diferentemente de muitas mulheres místicas que tiveram suas experências místicas em total estado de êxtase ou sonhos, em Hildegard há um perfeito nível de consciência nas experiências místicas, conforme ela mesma diz em sua Scivias (Conhece os caminhos do Senhor):

As visões que tive não foi em sonhos, nem dormindo, ou em momentos de delírios, ou pelos olhos do corpo, ou pelos ouvidos do corpo, ou em lugares ocultos; recebi-as, pois, estando acordada e com a mente clara, com olhos e ouvidos do homem Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 63

interior, em lugares abertos, conforme a vontade de Deus (HILDEGARDA de Bingen, Scivias, 2015, p. 96)66.

Afora a explícita correlação com a teoria agostiniana da iluminação, em Hildergad, “os conteúdos da revelação não se apreendem mediante a atividade separada da racionalidade, senão que em seu intelligere aquela está conectada com a alma e, também, com o corpo” (RABASSÓ, 2013, p. 108). Daí para Cristina Siccardi, enquanto

muitos místicos vivem num oscilante vaivém do Céu para a terra, divididos, como os anfíbios, entre o terreno e o últraterreno, continuamente bifurcados entre o êxtase e a recaída, traumática, no mundo [...] não foi assim com Hildegarda: ela teve a aventura de ver e de viver o sobrenatural no natrural, numa contemplação continua e tão intensa que penetrou os segredos destas duas dimensões reais. A sobrenatrureza engloba a natureza e Hildegarda compreendia a dimesão terrestre com a luz que Deus lhe concedia. Os sentidos, a alma e o intelecto operavam nesta profetisa sem separação alguma (2013, p. 47).

E dentro deste espírito, Hildegard escreveu diversas obras em que descreve suas visões ou mensagens recebidas de Deus, dentre as

66 Igualmente na Carta ao monge Guibert (1175), diz: “Não escuto estas coisas com os ouvidos corporais, nem percebo com os pensamentos de meu coração, nem percebo nada por meio dos meus cinco sentidos, senão em minha alma, com os olhos exteriores abertos, de maneira que jamais experimento nisso o estado próprio de êxtase. Vejo estas coisas acordada, tanto de dia como à noite” (In: CIRLOT, 2001, p. 151). A propósito, ressalta Neucir Lopes da Silva que, diferentemente do que sucedeu com outras místicas, as visões de Hildegard “não são fruto de alucinações e sonhos. A sua existência se dá dentro da esfera do transcendente” (2011, p. 224). O que para Azucena Fraboschi é um caso raro e motivo de investigação por parte dos historiadores das religiões: “Os historiadores das religiões estudam com grande interesse suas visões, porque ao longo dos séculos não se tem notícia de outro caso de uma mística que as tivesse em estado de vigilância, sem perder a consciência nem entrar em estado de êxtase” (2016, p. 1). Ao que reforça Helios Jaime, ao dizer: “Estas visiões nos levantam uma problemática psicofisiológica: são estados oníricos, são ilusões, são motivadas por alucinações ou constituem uma clarividência excepcional? Podemos observar que as visões de Hildegarda não são produzidas por um sonho já que sucede, em total estado de vigília. Nem, tampouco são devidas a um êxtase, o que significa que são diferentes das que pode experimentar, in estricto senso, um místico. Tampouco se trata de ilusões; Hildegarda não se propõe a criar seu próprio mundo fora de todo contexto ambiental, tampouco é uma miragem devida a uma percepcão deformada das pessoas ou dos objetos, nem a uma interpretação confusa da realidade” (JAIME, 2014, p. 78). 64 | Mulheres Intelectuais na Idade Média quais: Scivias (Conhece os caminhos do Senhor)67, primeira de suas obras teológicas (teologia dogmática), iniciada em 1147, após a supracitada autorização do Papa Eugênio III, e concluída em 115168. Nela são expostas, de forma ordenada e profética, 26 visões, divididos em três livros: o primeiro (seis visões), sobre o Criador (o Luminoso), a criação e a entrada do mal no mundo; o segundo (sete visões), sobre a o Redentor e a redenção; e o terceiro (treze visões), trata da história da salvação. Ou seja, uma história da criação do homem, de sua queda e de sua redenção e salvação. Além, do cartáter teológico, nas entrelinhas a obra traz reflexões filosóficas acerca do universo e do homem: sobre a origem do cosmo, sobre o macrosmo e do microsmo, sobre a estrutura do ser humano, etc. Os principais temas tratados no Scivias foram retratados pela própria Hildegard, em forma de iluminuras, cujo objetivo é não só ilustrar o livro, mas também exercer a função pedagógica de reforçar as ideias69, como, por exemplo, as que apresentaremos a seguir:

67 Para FRABOSCHI, 2016, p. 2, o título sugere uma contrafigução da obra Conhece-te a ti mesmo, do filósofo Pedro Abelardo, embora em nenhum Hildegard cite ou faça referência a este, mesmo sendo os dois contemporâneos. 68 Do Scivias foram reproduzidas várias cópias durante os séculos XIII e XIV e só em 1513 foi impresso em Paris, e depois, em 1628, em Colonia, na Alemanha. 69 Analisando a função das pinturas realizadas pela própria Hildegarda de Bingen em suas obras, mas não só ai mas das artes sacras como um todo, na Idade Média, Cristina Siccarde diz que elas “tornaram-se a Biblia pauperum, ou seja, a Bíblia dos pobres, dos analfabetos que, através da artes, podiam compreender os dogmas, a doutrina, e as Sagradas Escrituiras” (2013, p. 31). Para um maio aprofundamento do simbilismo estétio nas obras de Hildegarda, indicamos os artigos: AVENATTI DE PALUMBO, 2002 e ESTHER ORTIZ, 2014. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 65

A Criação do Mundo - iluminura de Hildegard, no Scivias -

Fonte: http://pt.wikipedia.org/ wiki/Hildegarda_de_Bingen

A Alma Humana - iluminura de Hildegard, no Scivias -

Fonte: http://pt.wikipedia.org/ wiki/Hildegarda_de_Bingen

Nos anos seguintes, Hildegard escreveu mais duas obras: o Líber vitae meritorum (Livro dos méritos da vida - 1158-1163), que é um tratado de teologia moral, em seis livros, em que se estabelece a oposição entre o bem e o mal, expondo trinta e cinco virtudes e os vícios correspondentes a cada uma delas, a partir de figuras metafóricas nas quais, por exemplo, os vícios são descritos ou retratados em formas grotescas em que se misturam partes humanas e animais, com o objetivo de mostrar e alertar para o perigo de não se encontrar o caminho a ser seguido para alcançar o 66 | Mulheres Intelectuais na Idade Média reino celeste, quando se deixam levar pelo apego às coissas terrenas. Ou seja, são temas já tratados no Scivias. Por isso o Líber vitae meritorum (Livro dos méritos da vida) é considerado um complemento ou aprofundamento do Scivias. A segunda obra foi o Liber divinorum operum (Livro das divinas obras - 1163-1174)70, onde, além de tratar de temas como a Trindade, a Criação e a Redenção, a Hildegard faz uma estreita relação entre o homem (antropologia) e o universo (cosmologia), colocando o homem como centro do cosmos. Dessa concepção antropológico-cósmica71, nasce sua famosa iluminura, como ilustração da 2ª Visão, da primeira parte, da referida obra, denominada “A Roda do Firmamento”, na qual o homem é colocado no centro do universo, em perfeita harmonia com o universo e com Deus.

Fonte: http://pt.wikipedia.org/ wiki/Hildegarda_de_Bingen

70 Há um interessante artigo intitulado “El imaginario de la luz en la mística cortés de Matilde de Hagdeburgo: continuidad y transformación de la herencia hildegardiana en el siglo XIII”, no qual a autora mostra a influência do Liber divinorum operum (Livro das divinas obras), de Hildegard, sobre a obra Das fließende Licht der Gottheit (A luz que flui da divindade), de Matilde de Magdeburgo (cf. AVENATTI DE PALUMBO, 2009). 71 A comentadora Georgina Rabassó, baseada em estudos de Peter Dronke, levanta a hipótese de haver uma forte influência do Timeu de Platão na concepão comológica de Hildegard, haja vista que “se conserva uma cópia do século XI do Timaeus procedente da abadia de Echternach, comunidade com a qual Hildegard mantve relações e de da qual provinha seu último secretário Theodorico, autor da Vita Sancta Hildegardis. Em consequência, o Timaeus é uma fonte a qual a autorapoderia ter tido acesso” (RABASSÓ, 2015, p. 723-724). Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 67

Conforme palavras da própria Hildgarda,

no centro desta roda aparece uma imagem de homem, cuja cabeça alcança a parte superior e os pés a parte inferior de ares denso, branco e luminoso. Pelo lado direito, a ponta dos dedos de sua mão direita, e pelo lado esquerdo, a ponta dos dedos da mão esquerda, estão esticados e chegam até o mesmo círculo, tocando- lhe em pontos diferentes da circunferência. A razão pela qual a imagem tem os braços estendidos é porque na estrutura do mundo o homem está no centro, já que é mais poderoso que todas as outras criaturas que estão, sem embargo, na própria estrutura. Ainda que seja pequeno na estrutura, é grande pela energia da alma. Como tem a capacidade de mover a cabeça para cima e os pés para baixo, alcança tanto os elementos superiores como os inferiores e pode movê-los. As obras de suas mãos ultrapassam tudo, porque têm, pela força do homem interior, a possibilidade de pôr esta capacidade em execusão. Como o corpo do homem supera em tamanho seu coração, assim as forças da alma superam o corpo, pois o corpo do homem está circundado pelas forças da alma, que se estendem por toda redondeza da terra. Assim o homem crente existe no conhecimento de Deus e tende a Deus, não somente nas preocupações do espírito, senão também nas mundanas. Aspira a Deus em todas as suas empresas, prósperas ou adversas, e nelas não cesa de manifestar a Deus toda devoção que lhe professa. Como o homem contempla com os olhos carnais as criaturas ao seu redor, assim, pela fé, pode ver a Deus em todas as partes e O reconhece em todas as criaturas, porque sabe que Ele é o Criador delas (HILDEGARD von Bingem. Libro de las obras divinas, I, II, 15, 2013c, p. 50-51)72.

72 Como se vê na iluminura, o universo, e dentro dele o homem, está dentro da barriga de Deus, de forma que Deus aparece como um grande círculo que abarca o nundo, ao que explica Hildegard: “A divindade, em sua presciência e no seu obrar, é como uma roda perfeita e sem nenhuma divisão, porque não tem nem princpipio nem fim. Tão pouco pode ser abarcado porque é atemporal. E como o círculo comprende tudo o que está encerrado dentro de sua circunferência, assim infinitamente a santa divinidade comprende e domina todas as coisas” (HILDEGARD von Bingem, Libro de las obras divinas, I, II, 2, 2013c, p. 44). Num trabablho em que busca enfatizar a importância do corpo humano na antropologia-cosmologia hildegardiana, assim interpreta estes texto a comentadora Azucena Adelina Fraboschi: “Na primeira visão do Livro das Obras Divinas, última obra da abadessa de Bingen, Deus se apresenta como o Criador que nos dá Sua obra, como o Amor que é Vida e dá vida. É uma esplêndida imagem na qual se conjugam mundo e homem, macrocosmos e 68 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Além disso, Hildegard escreveu ainda diversas Epístolas (cerca de 400, entre 1146-1179)73, dirigidas a papas, cardeais, bispos, abades e abadessas, reis e imperadores, monges e monjas, homens e mulheres de todas as classes sociais, os quais tinham grande admiração e respeito para com seus conselhos. Nelas - nas Cartas -, “Hildegarda não economiza palavras para acusar os erros e exortar à fidelidade ao Evangelho. Papas e reis são alvo de seu apreço, mas também de seu olhar crítico” (MAÇANEIRO, 2000, p. 443)74. E, muitas vezes, usava de um tom áspero em suas Cartas, como, por exemplo, naquela endereçada ao decano Werner de Kirchheim, em que, narrando uma de suas visões proféticas, a “Luz vivente” lamenta o deplorável estado de miséria em que se encontra sua Igreja, fruto do desleixo dos seus sacerdotes, exortando-os a serem mais vigilantes para com a ela:

No ano de 1170 da Incarnação do Senhor, enquanto em jazia desde muito tempo no leito por conta de uma doença, vi a figura de uma belíssima mulher [a Igreja]. [...] mas seu rosto estava microcosmos - porque para a abadessa de Bingen o homem é uma teofania, e o mundo una antropofania –. Toda criatura se contempla no homem porque o mundo é reflexo do homem, para cujo serviço foi criado. No pensamento de Hildegarda, o universo é apresentado como uma antropofanía, un mundo descrito com belíssimas imagens tomadas da realidade do homem. A direção foi invertida: não estamos ante um macrocosmo que inclui o microcosmo, senão ante o homem que irradia e projeta seu ser num mundo que tem nele seu sentido, posto que foi feito para o homem. Temos, então, que a referência ao corpo como a realidade material do homem integra também a terra da qual o homem foi feito; que a alma, como seu princípio vital e animador, é comparada a água, comparação que podemos tornar extensiva aos fluídos vitais que circulam através do corpo; e que a racionalidade como seu espírito ou princípio intelectual é asimilada ao sol e a lua, cuja luz ígnea ilumina tornando possível o connhecimento” (2013, p. 94). 73 Do epitolário de Hildegarda temos a seguinte tradução espanhola de uma parte delas: Cartas de Hildegarda de Bingen. Coordenação de Azucena A. Fraboschi, Cecilia Inés Avenatti de Palumbo y María Esther Ortiz. Introducción de Pedro Edmundo Gómez. Trad. de vários colaboradores. Buernos Aires: Miño y D’àvila, 2015, vol. I – Cartas 1 a 90. 74 Igualmente diz Pedro Edmundo Gómez, em sua intodução a tradução erspanhola das Cartas de Hildegarda: “O epistolário hildegardiano contem, como disse no prólogo ao Liber vite meritotum, as respostas e edvertências para grande quantidade de p4ssoas tanto importantes como humildes, quer dizer a correspondência que a praeposita manteve com papas, imperadores, reis, nobres, bispos, monjes, e gente de toda condição social que procuravam a ela em busca de luz, ajuda, intercessão e conselho” (In: HILDEGARDA de Bingen. Cartas de Hildegarda de Bingen, 2015, vol. I, p. 18). Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 69 coberto de poeira, a sua veste rasgada no lado direito. Também o manto tinha perdido a sua preciosa beleza. O calçado estava sujo por cima. Com uma voz forte e dolorosa gritava ao Céu e dizia: ‘Afila as orelhas, ó Céu, o meu rosto está machado! Veste de luto, ó terra, a minha veste está rasgada! Treme, ó abismo, o meu calçado está sujo! As raposas têm suas tocas e as aves do céu o seu ninho, mas eu não tenho nenhuma ajuda e conforto, nem bastão em que apoiar-me e que me sustente’ [...]. Os meus assistentes, os sacerdotes, que deverim fazer de modo que o meu rosto resplandecesse como o amor, que a minha veste fosse luminosa como um relêmpago, que o meu manto brilhasse como as pedras peciosas e o meu calçado luzisse claro, atiraram o meu rosto à poeira, rasgaram as minhas roupas, escureceram o meu manto e enegreceram os meus cabelos. Aqueles que tinham o dever de me embelezar toda, abandonaram-me infielmente. Emporcalharam o meu rosto quando, afetados pela impureza dos seus costumes exagerados, pelo podre fedor da prostituição e do adultério, na avidez impetuosa da pior espécie na compra e venda de todas as possíveis coisas convenientes, celebram o mistério e recebem o Corpo e o Sangue do meu Filho. Por isso, sujam-no, como se uma criança se sentasse no meio dos excremntos dos porcos. Os estigmas do Esposo (Cristo) continuam abertos, enquanto estiverem abertas as feridas dos pecados dos homens. Precisamente, o facto de as feridas de Cristo continuarem abertas devem ser imputado aos eclesiásticos. Eles, que deveriam tornar- me pura e esplendorosa e que deveriam servir-me na pureza, mudam uma igreja após outra por imoderada avidez (adquirindo posições melhores). A seguir, dilaceram minhas roupas, enquanro transgressores da Lei, do Evangelho e do seu dever sacerdotal. Subtraem esplendor ao meu manto, porque em todas as coisas descuram os preceitos que lhes foram impostos. Não os cumprem nem na intenção nem na execução - com a temperança da esmeralda -, nem com outras pedras preciosas. Sujam o meu calçado por cima, porque não respeitam as sendas direitas - quer dizer, duras e ásperas - da justiça, e não são bom exemplo nem sequer para os seus inferiores. Contudo, debaixo do meu calçado - de cerdo modo pelo meu mistério -, encontro em alguns o esplendo da verdade. Ouvi uma voz do Céu a dizer-me: ‘Esta imagem figura a Igreja’. Agora, portanto, tu, ó pobre mulher, que vês e ouves estes 70 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

lamentos, anuncia-os aos eclesiásticos, que são ordenados para guiar e para ensinar o povo de Deus e aos quais se diz, como aos Apóstolos: ‘Ide por todo mundo e pregai o Evangelho a cada criatura!’ (apud SICCARDI, 2013, p. 179-180).

Igualmente para com o Imperador Frederico Barba Roxa que reivindicava para si não só poder secular, mas também sobre a Igreja, a ponto de alia-se ao antipapa Vítor IV e expulsar o Bispo Conrado, da Diocesse de Mogúncia, Hildegarda usa de palavras duras e até ameaçadoras, sob pena de receber os castigos divinos, caso continue perseguindo o Sumo Pontífice de Roma, quando diz:

Ó rei, é absolutamente necessário que sejas prudente nas tuas ações. De facto, vejo na mistariosaque te comportas como uma criança irracional aos olhos de Deus. Ainda tens tempo de reinar sobre as coisas terrenas. Estejas atento a que o sumo Rei não te dobre até o chão pela cegueira dos teus olhos, que não sabem bem como manter na mão o setro para reinar bem. Estejas atento a isto: comporta-se de modo que não se extinga em ti a graça de Deus [...]. Assim fala aquele que é: Destruirei e esmagarei a opisição daqueles que me desafiam. Ai! Ai desta maldita conduta dos ímpios que me desprezam! Ó rei, se quiseres viver, dá ouvidos a estas palavras! Do contrário, a minha espada traspassarte-á! (apud SICCARDI, 2013, p. 190).

Por tudo isto, Marcial Macaneiro conclui que “Hildegarda é uma mulher política’. Ela está presente à sua época. Não fez do mosteiro um refúgio, mas sim uma fortaleza de batalha. Dalí ela profere sermões, parte em viagem e envia centenas de cartas. Intervém nos descaminhos do imperador Frederico Barba-Roxa e adverte os prelados da Igreja sobre a correta conduta pastoral” (2000, p. 447). Entre os anos de 1151-1158 escreveu uma grande obra de ciências naturais, o Liber subtilitatum diversum naturarum creaturarum (Livro das sutilezas das diversas naturezas da Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 71 criação)75, a qual, “diferentemente da trilogia teológico-profética, fala sobre o mundo natural sem se referir explicitamente a visões específicas” (SICCARDI, 2013, p. 160), daí ser considerado mais científico, ou fazer dela uma precursora da ciência moderna76. Não obstante, continue o caréter teleológico das obras anteriores, qual seja: fazer a interrelação entre o mundo vegetal/animal/mineral e o homem, buscando nas qualidades escondidas daqueles a cura dos males deste; estabelecer uma correspondência entre o macrocosmo e o microcosmo, entre o corpo e a alma, entre o homem e Deus77. Após a morte de Hildegard essa obra foi dividida em duas: o Physica ou Liber simplicis medicinae (Física ou Livro de medicina simples) e Liber causae et curae ou Liber compositae medicinae (Livro das causas e curas ou Livro da medicina composta). O primeiro deles é um tratado de medicina naturalista, em nove tomos ou secções, que tratam das diversas classes de entes naturais que podem ser utilizados com fins terapêuticos, a saber:

1. as plantas 2. os quatro elementos – aqui Hildegard defende que “a saúde é condicionada por quadro elementos – o seco, o húmido, o frio e o

75 Por este conjunto de obras, onde, dentre outras coisas, estuda o animais, Hildegard tem sido estudada e valorizada até entre os veterinários, que a consideram como a primeira mulher a atuar nesta área, conforme vemos no artigo de VALDENEBRO ; GARRIDO ; PRIETO, 2007, p. 1, que diz: “Além do cuidado espiritual se ocupou da saúde dos fiéis e de seus animais domésticos. Os historiadores da ciência e da medicina moderna consideram sua obra, junto com a de Trota de Salermo, como os primeiros trabalhos femininno da medicina medieval. No que se refere a vetorinária, alguns autores contemplam a obra de Hildegarda como o primeiro antecedente feminino da profissão na Europa”. Por isso, ou melhor, “os seus métitos, unidos a sua condição de santidade, tem sido motivo para que alguns autores chegem a propor que ela seja a ‘Patrona’ dos veterinários” (p. 3). 76 A esse respeito, comenta SALMERÓN JIMÉNEZ, 2008, p. 5: “Esta obra que, como dissemos, é a mais científica, porque Hildegarda nunca pretebdeu que fosse qualificada como de inspiração divina, senão mais bem como um produto da observação e da experiência, contitui um verdadeiro tratado enciclopédico de ciências natutais cujo estilo é por sua vez direto e didático”. 77 Comentando essa dupla faceta de Hildegard, diz SALMERÓN JIMÉNEZ, 2008, p. 1: “Nada é mais falso que dizer que Hildegarda de Bingen tenha sido apenas uma visionária do século XII, e não porque não fosse essa extraordinária mulher uma mística no sentido da palavra [...], mas isto não evitou que se ocupasse das questões do mundo real e que pudesse tratá-las de maneira narural e científica, ainda que sua vida tenha transcorrido em boa medida no centro de um mundo sobrenatrural”. 72 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

calor – e pela sua integração com quatro humores: a linfa, o sangue, a bílis amarela e a bílis negra. As descompensações físicas provocam um reflexo imediato no equilíbrio das pessoas” (SICCARDI, 2013, p. 160-61)78. 3. as árvores 4. as pedras (preciosas) 5. os peixes79 6. as aves 7. os animais (terrestres) 8. outros animais (os répteis) 9. os metais

Em suma, nas nove secções que compõem o Physica ou Liber simplicis medicinae (Física ou Livro de medicina simples), “são examinados catorze elementos, duzentas e treze variedades de plantas, sessenta e três árvores, vinte e seis minerais, quarenta e cinco mamíferos, trinta e seis peixes, setenta e duas aves, dezoito répteis e oito metais” (SICCARDI, 2013, p. 161), para fins de utilização médica.

78 Igualmente no Liber causae et curae ou Liber compositae medicinae (Livro das causas e curas ou Livro da medicina composta), Hildegarda estabelece uma estreita relação entre os quatro elementos do cosmo e o homem, ao dizer: “Deus fez os elementos do mundo, estão no homem e o homem está condiciodado por eles: são o fogo, o ar, a água e a terra; estes quatro elementos estão intimamente ligados entre si, de forma que nenhum deles pode ser separado dos outros e assim se contituem ao mesmo tempo no que no que se chama firmamento” (HILDEGARDA de Bingen, Libro de las causas y remedios de las enfermedadas, 2013a, I, 7, p. 28). E mais adiante completa: “O fogo, o ar, a terra e a água estão no homem e o homem é composto deles. Pois o ser humano possui do fogo, o calor, da água, o sangue, do ar, o sopro, da terra, a carne. Também possui do fogo, a visão, do ar, o ouvido, da água, o movimento, e da terra a capacidade de andar. Assim, o mundo é próspero quando os elementos cumprem bem sua função e com ordem; o calor, o orvalho e a chuva se repartem pouco a pouco, com moderação e a seu tempo, e descem a molhar a terra e seus frutos trazendo saúde e muitos frutos porque se caíssem de repente e todos ao mesmo tempo e sem ordem, a terra se desfaleceria e pereceria seu fruto e seu bem estar. Assim tembém, quando os elementos atuam ordenadamente no homem, o conservam e o mantém são. Mas quando há discordância entre eles o fazem adoecer e o matam. Pois as coagulações dos humores que nascem no homem e que existem nele pelo calor, a humidade, o sangue e a carne, se se desenvolvem com tranquilidade e em justa temperatura trazem saúde para si, quando, pelo contrário, chegam simultaneamente sem ordem e caem sobre ele de maneira excessiva, o debilitam e o matam” (Ibid., II, 97, p. 57). 79 Mauro Matthei diz que “a seção em que trata dos peixes do Reno é considerada até os dias de hoje como o que há de mais completo escrito sobre a matéria” (1999, p. 5). Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 73

A segunda obra, o Liber causae et curae ou Liber compositae medicinae (Livro das causas e curas ou Livro da medicina composta), está dividido em em cinco seções, que tratam das causas das enfermidades, seus remédios, o funcionamento interno do corpo humano e sua relação com o cosmo, dentro de uma visão terapêutica de totalidade80. Aqui, mantendo-se em seu holismo, em que explicita a íntima relação existente entre corpo e alma, o homem e a natureza, o natural e o sobrenatural, Hildegard defende que boa parte das doenças dos homens resulta da perda da harmonia entre corpo e alma, que forma o homem, e deste com a narureza81. Assim, por não considerar a doença como um assunto exclusivamente de ordem física, “propunha-se a recuperar o equilíbrio do corpo e da alma, tratando o doente como um todo, não apenas sua enfermidade” (QUARANTA, 2009, p. 54). Dentro dessa ótica, por exemplo:

na medicina hildegardiana, o estado de espírito melancólico era algo extremamento perigoso e maléfico à saúde do ser humano, pois comprometia todo seu sistema imunológico, retirando das

80 Segundo José María Pujol e Pablo Kurt Rettschlag, em nota a tradução espanhola por eles realizada, diferentemente das demais obras de Hildegarda que se encontram na Biblioteca Estatal de Hessen, na Alemanha, “o Livro das causas e remédios chegou até nós em um Códice em pergaminho que pertenceu ao monastério de São Maximino de Tréveris, e que por circunstâncias outras terminou na Biblioteca Real de Copenhague, catalogado como códice NY kgl Saml. No 90b. Dali foi transcrito em princípios do século XX pelo professor Paul Kaiser, que pouco tempo depois o publicou em Teubner (1903), depois de cotejá-lo com a Analecta Sacra do Cardenal Pitra (tomo 8, pp. XXI, 468-482 e 521-523), e com a Physica de Santa Hildegarda [...]. O manuscrito é do século XIII e não procede portanto do Scriptorium de Santa Hildegarda antes bem, provavelmente é uma cópia de terceira mão, e ainda que confiável no geral (como pode cotejar-se com os textos equivalentes dos manuscritos mais antigos da Physica) contêm erros e repetições enquanto copia de copia do original que transcreveu o monje Vólmar, secretário de Santa Hildegarda, ao qual a mão de um terceiro escriba intermediário acrescentou títulos para os cabeçalhos que com frequência são errôneos ou desafortunados” (PUJOL, José María ; RETTSCHLAG, Pablo Kurt. Esta edición promanuscrito. In: HILDEGARDA de Binge. Libro de las causas y remédios de las enfermedades, 2013a, p. 23-24). 81 Ao que comenta SALMERÓN JIMÉNEZ, 2008, p. 5, a partir dos estudos de Margaret alic, Chico de Borja e Peter Dronk: “A Física foi uma obra popular que se converteu em libro texto na escola de medicina de Montpellier. Hildegarda entendia que a mediciana devia consistir em fomentar no homem o equilíbrio e a harmonia tanto entre o corpo e o espírito como em relação ao seu entorno, o que a torna uma pioneira da ecologia”. 74 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

pessoas o desejo de viver. Este estado procedia da bílis negra, que produzia maus humores, contribuindo para desestruturar a pessoa. Para resolver este problema, a solução era relativamente simples, bastando para isso mudar os hábitos alimentares e utilizar o que a natureza tem a nos oferecer, agindo no sentido de manter o equilíbrio físico, mental e espiritual do indivíduo (PINHEIRO, 2013, p. 50).

Ou seja, para Hildegard, a enfermidade não é senão uma degeneração da vida humana, um déficit de força vital ou do que ela chama de “viriditas” (vigor)82. Por isso, segundo Christian Feldmann, “o processo de cura consiste em um mudar de direção que abarca corpo e alma, razão e espírito, em uma revolução de estilo e objetivos na vida [...]”83. Por esse motivo, segundo a mesma comentadora, para Hildegard,

a saúde não deve ser entendida meramente como um processo eventual consistente na reparação de órgãos danificados. Levar uma vida sã se converte em um dever cotidiano. E, se alguma vez se faz necessária uma ação médica, esta deve ter em conta o organismo em sua totalidade, sem desprezar as condições externas vitais; ademais, tal atuação deve também combinar-se com um programa prévio de prevenção e posterior seguimento (FELDMANN, 2009, p. 146).

Em síntese,

a terapêutica hildegardiana realça mais a preocupação de tratar o doente do que a doença. Para a Mística do Reno, o estado natural

82 Espécie de força vital ou capacidade natural que a natureza humana tem de se autodefender-se ou autorregenerar-se, na qual tem papel importante o aspecto psíquico, semelhante ao que na modernidade chamamos de autoimunidade. 83 FELDMANN, 2009, p. 146, que mais adiante completa: “A vida em equilíbrio, em ritmo harmonioso; este é o pensamento central que se adverte em todos os ensinamentos médicos de Hildegarda, que recomenda comidas variadas, que se complementem entre si, nem muito secas nem muito gordas [...] Entre a janta e a hora de ir-se para cama há de ter um tempo para o passeio [...]. O vinho tem uma ação benéfica e alegra o coração, sempre e quando não se toma em demasia [...] Regras de higiene, como limpar regularmente os dentes, cortar os cabelos, preocupar-se com os pés e unhas, etc.” (p. 156). Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 75

do homem é a saúde, que o pecado veio a arruinar. Reencontrar e conservar a saúde natural é uma tarefa de vigilância diária e depende não só do corpo, como também do espírito. Para Hildegard, é o regime alimentar que permite reencontrar o equilíbrio da saúde e essa dieta inclui o jejum, não total, porque autoriza caldos de legumes, sumos de fruta e diversas especiarias: esse jejum parcial distende o organismo e permite-lhe eliminar periodicamente os excessos e, deste modo, reencontra o equilíbrio. Entre os produtos que a abadessa recomenda, está, em primeiro lugar, a espelta [trigo integral], cereal pouco comum que, assegurana-nos, é o melhor. A castanha é apresentada como um fruto útil contra todas as fraquezas que há no homem, e recomenda que se como frequantemente, tanto natutal como em forma de farinha. Depois, uma hortaliça que tem muitos efeitos positivos é o funcho que, como escreve Hildegard, torna o homem jovial, assegura uma boa cor ao seu rosto, um bom odor pessoal e uma boa digestão. Em relação aos frutos, o melhor é a maçã (aconselha também morangos e pêssegos) que, segundo Hildegarda, é tão necessária aos doentes como aos sãos, e todos tirarão proveito comendo-as, cozidas ou assadas na grelha. A maior parte das plantas a usar como remédios preparam-se por decoração, geralmente em vinho. Hildegarda também aconselha as cataplasmas, as aplicações de plantas quentes envoltas em panos, pousadas na parte doente do corpo (STANZIONE apud SICCARDI, 2013, p. 162).

Por tudo isso, para Mirtes Emília Pinheiro, “sua inteligência e vivacidade antecedem o espírito renascentista em quatro séculos e sua preocupação para com o ser humano é o que hoje poderíamos chamar de holística, pois se preocupa integralmente com todos os aspectos: físico, mental e espiritual” (PINHEIRO, 2013, p. 25). Para alguns comentadores, esta “visão religiosa” das doenças e suas curas são fruto da formação prática que Hildegard recebeu no mosteiro, visto que na Idade Média os mosteiros funcionavam como verdadeiros hospitais84:

84 Cf. ALMEIDA, 2009, p. 39, que diz: “A Regra da Ordem dos monges beneditinos – uma das primeiras do Ocidente – além de regular o cotidiano dos monges preocupava-se com a sua saúde e a 76 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Numa época em que os hospitais ainda eram raros, os mosteiros representavam uma das poucas possibilidades de obter cuidados médicos, embora prevaleça a compreensão de que a medicina dos mosteiros ‘considerava a doença um castigo [...] e exigia, portanto, orações e arrependimento, a par de cuidados médicos’. É possível que esta interpretação do caráter eminentemente religioso da medicina nos mosteiros tenha influenciado a apreciação do trabalho médico de Hildegard von Bingen como fruto da sua religiosidade (ALMEIDA, 2009, p. 41-42).

Inclusive, é por esse motivo que certos setores da literatura médica atual não consideram ou não incluem as obras de Hildegard em seus livros, conforme observa Cybele Almeida:

[...] de fato, uma pesquisa preliminar demonstra esta resistência no fato de Hildegarda não ser mencionada no verbete Medicina do Dicionário de Idade Média organizado por LOYN. O verbete MEDIZIN, do Sachwörterbuch der Mediävistik (DINZELBACHER, 1992, p. 515) menciona apenas o seu nome e datas de nascimento e morte, sem aludir a nenhuma de suas obras. Além disso, obras especializadas em história da medicina, como MARGOTTA e LYONS/PETRUCELLI, a ignoram por completo. Isso se deve provavelmente a um erro de interpretação bastante comum que consiste em apresentar o trabalho médico de Hildegard como resultado puro e simples da sua condição de religiosa (Ibid., p. 42).

Esse silêncio deve-se também à presença de elementos da astrologia e da magia em suas teorias/práticas médicas, conforme acusa Margaret Alic:

ocorrência de doenças. O resultado desta preocupação foi a organização de um sistema de cuidados médicos nos mosteiros, com enfermarias para os monges (infirmarium), para os ricos e nobres (domus hospitum) e para os pobres e peregrinos (hospitale pauperum), com a reprodução da ordem social existente também fora dos mosteiros. Estes dispunham também de celas para os médicos, os doentes graves, banhos, farmácia e jardim com ervas medicinais [...]. É neste contexto que devemos apreciar a medicina na Idade Média, de modo a compreender as múltiplas funções dos mosteiros e o seu papel na formação de Hildegard von Bingen”. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 77

Ainda que condenasse a astrologia, Hildegarda sustentava que os corpos celestes podiam revelar em ocasiões sinais de Deus. A lua, por exemplo, influía na natureza humana e nos assuntos dos homens [...]. Acreditava ainda que a procriação numa fase inapropriada da lua poderia gerar crianças deformadas (apud ALMEIDA, 2009, p. 43.).

Entretanto, a própria Cybele Almeida, apoiando-se em outros comentadores, procura mostrar que a formação médica de Hidelgard não é apenas fruto das experiências práticas no monastério, pois

tendo a sua formação formal consistido na fornecida no Mosteiro de Disibodenberg (onde inicialmente noviça, posteriormente freira e abadessa), sob a orientação de sua tia, Jutta, Hildegarda aprendeu latim, que é a língua em que ela escreverá as suas obras mais importantes: Scivias, Physica e Causae et curae (SWEET, 1999, p. 390-391). Nestas obras, especialmente na última, pode-se perceber que Hildegarda foi uma ponte entre o conhecimento teórico, vindo da Antiguidade com os humores de Galeno (ALIC, 1991, 92), e um conhecimento prático, como, por exemplo, o uso de plantas com propriedades curativas (cujos nomes aparecem em sua obra em alemão) [...]. Portanto, seria errôneo pensar que Hildegarda conhecia apenas os rudimentos da medicina prática (ALMEIDA, 2009, p. 42)85.

Além disso, Hildegard escreveu outras obras menores, como duas biografias de santos, estilo literário em voga na época: a Vita

85 Igualmente afirma DEBRA apud HILDEGARD..., 2012: “não se sabe como ela veio a adquirir seu conhecimento; sua atividade como médica foi toda informal e sua formação nesse campo aconteceu provavelmente de forma autodidata, mas ela pôde ter recebido uma base terapêutica prática com Jutta e os monges de Disibodenberg durante seu noviciado. Pois, fazia parte das obrigações das superioras conventuais velar pela saúde de suas monjas, mas a prática profissional do ofício exigia formação universitária, o que era vedado às mulheres. Seja como for, pelo conteúdo do tratado se infere que ela estava familiarizada com a medicina de Galeno, de Hipócrates, as práticas árabes e o curandeirismo tradicional alemão, e deve ter ampliado seus conhecimentos com a prática de atendimento a doentes no seu mosteiro. Também deve ter conhecido as obras de naturalistas antigos como Plínio, o Velho, e Isidoro de Sevilha, bem como os bestiários e livros de maravilhas de sua época, e as teorias dos temperamentos, dos fluidos corporais e dos humores, estabelecidas desde a Antiguidade, mas fez muitas observações originais e inventou diversas terapias novas. O texto traça um panorama abrangente das práticas medicinais disponíveis em sua época, derivadas das tradições pagãs greco-romanas, muçulmanas, cristãs e folclóricas, e fica clara sua concepção de que a natureza e o homem são espelhos mútuos e integrados”. 78 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Sancti Disibodi (Vida de São Disibodo – 1170), escrita a pedido do abade Hellenger, de Disibodenberg, louvando a vocação precoce de São Disibodo e sua humildade, comparando-o a São João Batista, e a Vita Sancti Ruperti (Vida de São Ruperto - 1070-73), produzida certamente para celebrar o santo patrono do mosteiro que Hildegard reconstruiu sobre as ruínas de um edifício anterior que honrava o local da tumba do santo. Escreveu ainda alguns pequenos trabalhos exegéticos, como: Explanatio regulae S. Benedicti (Explanação da regra de São Bento - 1053-65); Explanatio symboli Sancti Athanasii (Explanação do símbolo de Santo Atanásio - 1065); Expositiones Evangeliorum (Exposiçôes dos Evangelhos), sobre o ano litúrgico; Solutiones XXXVIII quaestionum (Respostas a 38 questões - 1178), sobre problemas teológicos propostos pelos monges cisternienses de Villers de Brabante. Hildegard é autora também de uma Lingua ignota (Língua desconhecida ou secreta ou nunca ouvida – 1150), formada por um alfabeto ou Litterae ignotae (Letras desconhecidas), que, segundo Jeffrey Schnapp, é “uma lista com pouco mais de mil termos inventados, a grande maioria trazendo ao lado a tradução latina, seguida da tradução alemã” (SCHNAPP, 2007, p. 70 ), ou seja, uma espécie de dicionário ou vocabulário de palavras alegóricas ou metafóricas usadas por ela em suas obras para se fazer entender junto ao povo ou para falar de assuntos científicos com palavras populares86.

86 Ainda segundo o supracitado comentador, como médica, especialmente das mulheres, Hildegard usava termos populares em seus escritos sobre medicina, nomeadamente para falar das partes íntimas do corpo humano, o que foi motivo de críticas por partes de muitos, que a acusaram de obscenidade (cf SCHNAPP, 2007, p. 74). Outros sugerem que essa língua serviu como um código secreto para a comunicação das monjas quando em presença de estranhos. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 79

Alfabeto da língua Ignota, de Hildegard

Fonte: tp://it.wikipedia.org/wiki/Ildegarda_di_Bingen

Espelhando-se em outras obras similares de seu tempo, mais especificamente nas Etimologias, de Isidoro de Sevilha, e no Hermeneumatica, do Pseudo-Dositheano, na Língua ignota de Hildegard as palavras estão dispostas em grupos hierarquicamente decrescentes que vão do geral ao particular, ou seja, de cima para o centro e do centro para baixo, ou seja, de Deus até o homem e do homem aos demais seres naturais. Cada um desses degraus, por sua vez, obedece a uma disposição hierárquica descendente, como é o caso do homem, por exemplo, que vai do alto da cabeça até o tórax e daí até a sola dos pés87. Além de escritora, médica, mística e artista plástica, Hildegard era, também, grande musicalista, compositora e dramaturga88, chegando a compor setenta e sete canções litúrgicas

87 Os manuscritos das obras de Hildegard foram reunidos em um arquivo chamado Riesenkodex (códice gigante), “produzido em Rupertsberg logo após a morte de Hildegard, sob a supervisão do monge Gilbert de Gembloux, que se tornou secretário e amigo da religiosa no final da vida desta. O Riesenkodex preservou todos os textos de caráter profético de Hildegard, incluindo suas correspondências, com exceção de seus textos médico-científicos” (POLL, 2010, p. 15), que, como veremos mais adiante, contram-se hoje em Roma. Confirmam estas informações SICCARDI, 2013, p. 155. Já Christian Feldmann diz que “na biblioteca regional de Hessen se conservava antigamente um magnífico manuscrito, o códice de Rupertsberg, realizado em 1165 no mosteiro de Hildegarda e que estava ilustrado com 35 valiosas miniaturas coloridas. Para proteger esta obra dos bombardeios, alguém os levou durante a Segunda Guerra Mundial a fim de por a salvo em algum lugar da Alemanha. Grave erro, pois o manuscrito desapareceu sem deixar rastro depois da contenda. Por sorte, os beneditinos da abadia de Santa Hildegarda em Eibibgen realizaram preciosas reproduções facsímiles em pergaminho no tamanho natural entre 1927 e 1933” (FELDMANN, 2009, p. 55). 88 Dada a versatilidade de Hildegard, diz Cristina Siccardi: “A atividade desta monja de clausura era impressionante. Não descurava a oração, ouvia a todos, escrevia constantemente e ocupava-se de muitos interesses: da música, da medicina, da farmacêutica, da poesia e da linguagem. Mas também era perita em questões econômicas, jurídicas, de ciências naturais, de agricultura, de criação de gado e de pesca” (SICCARDI, 2013, p. ’59). Igualemente diz PALAZZO, 2002, p. 146: “O que surpreende, 80 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

(antífonas, responsórios, sequências, hinos, um Kyrie eleison e um Alleluia)89 para o uso do mosteiro, que estão reunidas na obra Symphonia harmoniae caelestium revelationum (Sinfonia da harmonia das revelações celestiais - 1140 – 1150)90, muito embora, a exemplo do ato de escrever, diz ela, nunca tenha estudado música91, “compus também poemas e melodias para louvor de Deus e dos santos, sem que ninguém mos ensinasse, e cantava-os, mesmo sem que ninguém me tivesse ensinado a notação musical ou o canto” (apud SICCARDI, 2013, p. 138)92. A produção musical de Hildegard, segundo Ítalo Bardelli,

portanto, não é só a variedade de sua obra, mas a profundidade de seus escritos, a qualidade de todos os seus trabalhos, desde os relatos das visões até a música, a poesia, a correspondência em geral e os compêndios de medicina”. 89 Em portugûes, há uma coletânea de hinos, sequenciais, responsórios e antifonias de Hildegarda que foram selecionados e traduzidos por Joaquim Félix de Carvallho e José Toletino Mendonça, e publicados como título “Flor Brilhante”. Ver nas Referências: HILDEGARD, 2004. 90 Além destas obras, na Epístola 23, dirigida aos prelados de Maguncia, escrita por ocasião do interdito a que foi submetido seu mosteiro, Hildegard desenvolve sua concepção de música. Uma verdadeira teologia musical, a qual está assentada numa visão pitagórica, presente na obra de Regino de Prum, que fala de uma música celestial (o cântico dos anjos no céu), e na classificação boeciana da música (mundana, humana e instrumental). Nesta carta, Hildegard chega a dizer que uma das consequências do pecado de Adão foi a “perda da voz”, que significa a perda da semelhança com Deus e, portanto, da capacidade de conhecimento. Por isso apresenta a música como instrumento catequético-pedagógico de recuperação da condição original do homem. A música é colocada no plano revelacional (cf. HILDEGARDA de Bingen. Carta 23, a los prelados de Magucia, entre 1178 y 1179, 2015, vol. I, p. 109-115). 91 Não sabemos ao certo a época em que Hildgarda ecreveu suas obras musicais, mas sabemos que já 1148, o mestre de Teologia de Paris, Odo de Soissons, dá notícias de que suas inovações musicais já eram bastabta conhecidas, a julgar pelos comentários que faz na carta a ela endereçada (cf. Carta de Soissons a Hildegard. In: CIRLOT, 2001, p. 121-22). 92 PIRQUER I POMÉS, 2004, p. 5-6, por sua vez, reforça essa informação e dá notícias de muito mais composições, de Hildegard, quando diz: “Sem que nunca houvesse realizado qualquer estudo especializado de tipo artístico ou literário, pintava as miniaturas de seus livros, escrevia hinos e poemas litúrgicos, e os musicava. Tem cerca de cento e setenta composições musicais de caráter monódico, líricas e dramáticas, com modulações muito pessoais que diferem da música gregoriana de sua época”. Já Bruno Cagnoli, discorda da declaração de que ela fosse “indouta” também em música, ao dizer quer “na ralidade, Hildegarda, aquela que, como já sabemos, se define como mulher indouta, de fato em música não era tanto quanto em telogia; desde a infância ela cresceu na escuta dos Salmos de Davi e dos cantos gregorianos do Ofício de da Missa. O canto gregoriano, língua musical da liturgia, era bem conhecido e contidianamente pratricado também no convento de Hildegard” (2008, p. 19). Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 81

se integra na tradição beneditina ou gregoriana em suas formas melódicas: sequências, antífonas, responsórios, hinos, como ao sistema modal; sem embargo, sua obra constitui uma criação original, sobretudo na exploração dos limites do estilo imperante. Geralmente vai além das faixas costumeiras, por exemplo, se um hino se estrutura em estrofes de quatro versos e a cada sílaba corresponde um tom, ela tende a ultrapassar esse limite, seus hinos são mais longos, não têm a divisão estrófica costumeira, não têm um texto métrico regular e desenvolvem, de maneira extraordinária e genial, os melismas, isto é, a multiplicação de tons em uma sílaba. Em Hildegarda se desenvolve toda uma busca por novos sentidos musicais, as antífonas, sequências, responsórios e hinos são mais extensos e complexos do que o normal da tradição. Também é audaz a ampliação da tessitura. Por exemplo, no responsório ‘O VOX ANGELI’, chega às oitavas e média. No sistema modal tende, na maioria dos casos, aos modos ré e mi. Também constitui um dado curioso o uso de cores na partitura tetragrâmica, os neumas fa são pintados em vermelho, os neumas do em amarelo (1999, p. 1)93.

Além disso, o belo artigo de Ítalo Bardelli procura mostrar que, enquadrando-se na sua holística maior, a produção musical de Hildegard traz em si sua visão filosófico-teológica de homem e de mundo. Para tal, metaforicamente, transforma a história salvífica do homem e do mundo em sons, fazendo uma relação entre o Criador e a criatura, o cosmo e o homem, o homem e a alma, etc. De forma que, para o supracitado comentador,

a questão da música na Symphonia de Hildegarda deve ser entendida desde o tríplice fundamento: CRIAÇÃO ORIGINAL, QUEDA E REINTEGRAÇÃO SUBLIMADA. A música está no princípio, e segue permanecendo no cosmo, na alma humana e nos instrumentos. Tudo tende a uma reunião sinfônica. O ser humano como centro deste drama tem a possibilidade de reintegração, do retorno, da reparação do seu ser, por vocação sinfônica, mas mantém vigente a possibilidade de ser desviado, anulado, ensurdecido, calado. A permanência da

93 Reforna essa tese TRIVIÑO MONRABAL, 2013, p. 91-92. 82 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

música é a permanência do som original e sua ressonância no universo e no homem [...] (Ibid., p. 4).

É o que vemos, por exemplo, em um de seus dramas musicados intitulado Ordo virtutum94 (A ordem das virtudes), de 1150, que é um conjunto de 14 peças musicais em forma de um pequeno drama sacro musicado ou peça teatral (dai ser comun a tradução livre “O Drama das Virtudes”), como uma síntese didática da trilogia Scivias (Conhece os caminhos do Senhor), Líber vitae meritorum (Livro dos méritos da vida) e Liber divinorum operum (Livro das divinas obras), descrevendo de forma dramático- musicada a origem, o estado de natureza decaída e o destino final do homem. Ou seja, segundo Beverly Mayne Kienzle, em linhas gerais, o Ordo virtutum

é uma dramatização musicada da luta de uma alma que caiu em pecado em busca de redenção. Os personagens principais são a Alma, o Demônio e as personificações das várias Virtudes que concorrem para o resgate da alma caída, e o texto tem uma clara função moralizante. Cada Virtude tem pelo menos uma seção de solo onde descreve suas características. No final a Alma redimida é levada para o céu, enquanto que as Virtudes, lideradas pela Humildade, acorrentam o Demônio (apud HILDEGARD, 2012)95.

Hildegard era, também, grande oradora, tendo sido autorizada a pregar na igreja (proferir Sermões), coisa rara entre as mulheres de seu tempo, conforme nos informa Carlos Guimarães:

Ela foi uma extraordinária pensadora, uma grande filósofa e teóloga. Ela era uma freira que - coisa raríssima na época - fazia Sermões públicos, e que além de atrair pela riqueza de conteúdo

94 Segundo Cristina Siccardi, “a composição Ordo virtutum é a primeira representação sagrada da Idade Média, na qual se pôs em cena, com fuguras alegóricas, a vitória da Alma sobre o Diabo, com a ajuda das virtudes” (2013, p. 168). 95 Para um maior aprodudamento do Ordo virtutum, de Hildegard, recomendamos a leitura do artigo: ORTIZ, 2014. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 83

o povo de sua época, atraía multidões pelo carisma e pela grande beleza física que possuía, como podemos ver pelas iluminuras que a representam e pelos relatos sobre ela. Dentre outras qualidades, ela era compositora (suas músicas foram recentemente gravadas), escritora, médica, botânica. Era muito dada ao estudo. De certa forma, durante o reinado das trevas, ela possivelmente tenha sido a primeira cientista após a destruição definitiva da Biblioteca de Alexandria (GUIMARÃES, 2009)96.

Mais do que se difundirem através dos seus escritos, as visões de Hildegard previam uma missão profética evangelizadora, por isso realizou pelos menos quatro grandes viagens missionárias ao longo dos rios Nahe, Meno, Mosela, y Reno (entre 1167 -1171), das quais se destacam: a de 1158, indo do Main até Bamberg; a de 1160, a Tréveris; a de 1161 a 1163, através do Rio Reno, indo até Colônia; e a de 1170 a 1771, em que, passando por Schwaben (Suábia), foi até Hirsau e Zwiefalten97. Nelas fez pregações em diversas igrejas, abadias e praças públicas sobre temas que afetavam a Igreja em seu tempo, principalmente sobre a corrupção do clero e o avanço das heresias, nomeadamente as heresias dos Cátaros98 e dos Valdenses99. Por conta de suas pregações, Hildegard foi muito atacada e hostilizada durante toda sua vida. Mas, segundo Carlos Guimarães, a pior retaliação aconteceu no final de sua vida,

96 Muitos outros comentadores apresentam Hildegard como uma mulher para além do seu tempo, como, por exemplo, CIRLOT; GARÍ, 1999, p. 49, que dizem: “Em pleno século XII Hildegarda de Bingen transpassou as fronteiras do silêncio a que estava submetido seu sexo, para falar e predicar, para escrever acerca de Deus e de sua criação, do homem e do universo”. Igualmente, diz ÁVILA, 2009, p. 22: “A ordenação sacerdotal era negada às mulheres, e com isso também o acesso à teologia e à pregação pública, sendo, entretanto, Hildegard von Bingen uma exceção, pelo que se sabe”. 97 Para uma visão detalhada das viagens de Hildegard, Cf. MATTHEI, 1999, p. 6. 98 Movimento herético dentro da Igreja, remanescentes dos maniqueus, que negava a Incarnação do Verbo e a ressureição dos corpos, os quais, por levarem uma rdival vida de auteridade, consideravam-se os verdadeiros católicos, daí a origm do nome “cátaros”, que significa “católicos perfeitos”. 99 Movimento herético no seio da Igreja, que no afã de viver radicalmente a pobreza evangélica, condenava toda e qualquer forma de propriedade, pricipalmente dentro da Igreja, mesmo a indispensável à vida cotidiana. Pos isso Hildegard a chamar de “heresia pauperista”. 84 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

visto que ela, caridosamente, enterrou em seu mosteiro um jovem revolucionário que havia sido excomungado, quebrando assim uma das mais rígidas leis eclesiásticas da Igreja. Os Bispos exigiram que ela exumasse o corpo, considerado indigno de repousar em terra santa. Ela recusou-se, dizendo que o jovem morrera em graça e em comunhão com Deus. Seu mosteiro foi imediatamente interditado e ela e suas irmãs foram proibidas de participar da missa (GUIMARÃES, 2009)100.

Somente alguns meses antes de sua morte seus direitos foram restaurados. Concluimos esta primeira parte, com as palvaras do Pe. Marcial Maçaneiro, o qual ressalta que “Hildegarda não é uma mística da interioridade, no estilo ad intra que predomina em Gertrudes de Helfta ou mesmo em Teresa de Ávila. As mensagens são direcionadas ad extra: ao mundo e às pessoas, tratando da saúde, dos rumos da Igreja, dos desafios espirituais e temporais. A profecia é traço original de Hildegarda” (2000, p. 446).

O pensamento de Hildegard

Como médica, herdeira da tradição médica de Galeno, Hildegard descobre uma estreita correspondência entre o ser humano e o cosmo. Para tanto, diz que,

assim como o ano é dividido em quatro estações, como o dia é dividido em quatro partes, quatro são os temperamentos dos seres humanos: o melancólico, o colérico, o sangüíneo e o paciente. Quatro são, também, os elementos do corpo humano: a bile negra, a biles, o sangue e a flegma. Um certo caráter está ligado a uma determinada parte do dia e estação do ano, como está determinado por um certo elemento do corpo (ZAMBONI, 1997, p. 23).

100 POLL, 2010, p. 90, acrescenta a informação de que o “interdito, a excomunhão coletiva, postulava que, enquanto durasse, as freiras não poderiam nem receber a Comunhão e nem cantar o Ofício Divino, podendo apenas recitá-lo”. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 85

A ideia de complementariedade entre homem e natureza é, para Hildegard, indispensável. E essa relação de intimidade entre homem e natureza era tal que, segundo o que escreveu, o comportamento humano é capaz de alterar o meio ambiente e vice-versa, relacionando a irregularidade do clima ao estado de incessante inquietude humana, pois essa agitação confundia os elementos (os quatro elementos: terra, água, ar e fogo) e os fazia sair de seus limites, com resultados desastrosos, antecipando uma sombria prefiguração dos problemas ecológicos de hoje101. O Liber divinorum operum é um vasto painel de toda criação, no qual faz a autora uma correlação entre a descrição da constituição e forma do ser humano, compreendendo seu corpo físico e sua alma, e vários aspectos do micro e do macrocosmo com seus quatro elementos - fogo, ar, água e terra -, onde o homem é inserido como centro do universo, sem, no entanto, perder sua relação holística com o todo, visão retratada por Hildegard na referida obra. A forma humana é vista, pois, como o modelo divino da Encarnação, de acordo com o conceito básico apresentado no Gênesis, e é louvada como uma manifestação da vitalidade, do amor e da beleza de Deus. Corpo e alma são concebidos como uma unidade integral, onde as forças da natureza e do espírito interagem em harmonia, e servem como um espelho para toda a obra da Criação: "Deus inscreveu toda sua obra na forma humana". Dentro dessa teoria da integração, Hildegard acabou por defender uma necessidade de complementaridade entre o homem

101 A esse respeito diz DURAN In: HILDEGARDA..., 2012a: “O dado mais original em seu pensamento foi sua forte tendência a analisar tudo numa perspectiva holística, e disso deriva o seu grande apelo para os movimentos ecológicos, pacifistas e naturistas modernos. Ao interligar várias correntes distintas de pensamento em um corpo conceitual bastante integrado, seu trabalho tem afinidade com o de pensadores contemporâneos que não podem ser encaixados facilmente em uma única escola, como Alan Watts e Fritjof Capra. Para Hildegarda, não fazia sentido analisar um fenômeno específico isoladamente, mas era essencial ter uma visão do todo e dos múltiplos relacionamentos estabelecidos entre suas partes”. 86 | Mulheres Intelectuais na Idade Média e a mulher, conforme aparece no Liber divinorum operum (Livro das obras divinas):

O homem e a mulher estão numa relação tão estreita entre si que a obra de um se completa através da obra do outro: porque o homem sem a mulher não se chamaria homem, nem a mulher sem o homem teria o nome de mulher. A mulher é a obra do homem e o homem a obra da mulher, e nenhum dos dois pode existir sem o outro (HILDEGARD von Bingem. Libro de las obras divinas, I, IV, 100, 2013c, p. 168).

E no Scivias (Conhece os caminhos do Senhor), fazendo uma interpretação do texto paulino (Ef. 5), compara o amor de Cristo (esposo) para com a Igreja (esposa) com o amor entre um homem e uma mulher. E aqui coloca o matrimônio como verdadeiro sacramento de amor, que, numa perspectiva cristológico- eclesiológica, aparece como sinônimo de fidelidade, tanto entre Cristo e a Igreja, como entre um homem e uma mulher, daí defender ser o matrimônio um sacramento indissolúvel:

Deus uniu a mulher com o homem com um juramento de fidelidade, para que esta fidelidade recíproca não seja nunca destruida. Assim, a mulher e o homem que Deus uniu forma uma harmonia semelhante a união de alma e corpo. Quem quer que seja que rompa o juramwnto de fidelidade e persista no seu erro encontrará o exílio da Babilônia, quer dizer, uma terra caótica e vazia, em perpétua aridez do verdor e dos prados fecundos. Quer dizer, carente da benção de Deus. E a vingança de Deus recairá sobre ele até a sua última linha da descendência [...] (Ibid., I, I, 15, 2013c, p. 38)102.

Dentro desta lógica, estabelece uma complementaridade biológica e psicológica entre homens e mulheres, com igual dignidade entre ambos. No Liber vitae meritorum (Livro dos méritos da vida), por exemplo, diz que a perfeição de uma pessoa

102 Para uma maior compreensão da relação de complementariedade entre homem e mulher em Hildegarda, indicamos a recente tese de doutrorado de PINHEIRO, 2017. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 87 está precisamente em unir harmônica e conjuntamente em si as características masculinas e femininas. Assim, a brandura feminina que leva à debilidade, necessita do complemento da força masculina, enquanto a força masculina necessita da mansidão e clemência femininas para não degenerar em dureza e crueldade. Igualmente, ao falar de sexualidade, embora concordando com a teoria aristotélica segundo a qual “o homem é o semeador e a mulher a receptora da semente”, Hildegard acrescenta a isso fatores psíquicos, ressaltando o amor (caridade) como o fator mais importante no ato sexual, cuja presença ou ausência influencia não só na definição do gênero, mas também na personalidade da criança, conforme adverte no texto a seguir:

Quando um homem se liga a uma mulher e derrama seu forte sémem com reto amor de caridade, e a mulher também recebe com amor verdadeiro pelo homem neste mesmo momento, se concebe um varão, [...]. E este varão será prudente e virtuoso porque foi concebido com sémem puro e no amor verdadeiro da caridade que seus pais têm reciprocamente. Ao contrário, se na mulher falta este amor pelo homem, de modo que só o homem tem amor verdadeiro por ela neste monento e não a mulher pelo homem, se o sémem é são, ainda assim será concebido um varão, porque o amor de caridade do homem é superior, mas este varão será débil e não virtuoso, porque na mulher faltava o amor. Já quando o sémem do homem é fraco, ainda que tenha amor casto a sua mulher e ela o mesmo amor ao homem, então se concebe uma menina virtuosa. E quando não exite amor do homem para com a mulher e da mulher para com o homem e o sémem é fraco neste momento, também nascerá uma menina, por causa da debilidade do sémem. Mas se o sémem for forte, mas não tem amor de caridade entre os pais, também se procia um varão, mas será amargo pela amargura de seus pais. Ou se o sémem é fraco e nenhum dos pais tem amor de caridade um pelo outro, nasce uma menina de temperamento amargo (HILDEGARD von Bingen. Libro de las causas y remedios de las enfermedadas, II, 63. 2013a, p. 48-49).

88 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Mais do que isto, segundo Peter Stearns, temos em Hildegard a defesa do prazer no ato sexual, inclusive por parte da mulher, com “a primeira descrição de um orgasmo feminino, retratado em termos de um calor descendo para os genitais femininos” (apud PINHEIRO, 2013, p. 52), conforme texto da própria Hildegard:

O prazer na mulher é comparável ao sol que com seu calor aquece a terra com dolçura, suavidade e constância, de sorte que nascem frutos, porque se o sol quiemasse a terra intensamente prejudicaria os frutos mais do que beneficiaria. Assim também o prazer da mulher tem um calor agradável e suave, de forma que assim concebe e dá a luz a sua prole. Se permanecesse sempre ávida por prazer, não seria apta a conceber e parir. Quando surge o prazer na mulher, é mais rápido do que no homem, porque o fogo não arde nela tão forte como no homem (HILDEGARD von Bingen. Libro de las causas y remedios de las enfermedadas, II, 150, 2013a, p. 72).

Ou seja, a exemplo de Trotula de Ruggiero, destaca-se em Hildegard,

o fato de que a sexualidade humana se admite e se descreve sem nenhum tipo de censura moral, e os caracteres humanos se estabelecem de acordo com a fisiologia e sem que medeie nenhum juízo de valor [... ] com uma descrição apaixonada e realista dos aspectos biológicos femininos que não aparecem em nenum outro escrito médico na Idade Média e que são de grande importância para ginecologia do século XII (SALMERÓN JIMÉNEZ, 2008, p. 5)103.

Nela também encontramos a reprovação de formas abusivas de controle do corpo e do sexo, como, por exemplo, as flagelações e mortificações do corpo, que eram praticadas por muita gente de seu tempo. Contra esse tipo de ascese, Hildegard recomenda o

103 Igualmente ÉPINEY-BURGARD, Georgette. El hombre y la mujer. In: ÉPINEY-BURGARD ; BRUNN, p. 53-56, observa que “se situa aí uma perspectiva mais clínica que moralista”. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 89 equilíbrio ou justa medida, conforme escreve em Carta dirigida à abadessa de Efurt:

Comprovo que muitas vezes quando o homem impõe a seu corpo abstinências excessivas produz nele uma repugnância que multiplica os vícios mais que se o tivesse alimentado em sua justa medida (apud SALÉ, 2013, p. 24).

Da mesma forma, ao falar da concepção de uma criança, apresenta uma visão totalmente revolucionária em relação à aceita na época, especialmente a aristotélica, que afirmava ser o homem o responsável pela definição dos caracteres da criança, sendo a mulher apenas um elemento passivo, “um depósito ou receptáculo onde o homem colocava o esperma”, como dizia Aristóteles. Para Hildegard, é o calor do útero materno que define ou dá a forma a uma criança a partir do seu sangue:

O calor da mulher que tem natureza carnosa supera o calor do sémem do homem, de modo que muitas vezes a criança forma seu rosto semelhante a elas. Mas as mulheres que são fracas por natureza formam uma criança cujo rosto se parece com o do seu pai (HILDEGARD von Bingen. Libro de las causas y remedios de las enfermedadas, II, 63. 2013a, p. 49).

Assim, mantendo-se no seu esquema de diferença e complementaridade entre os sexos, afirma que o versículo bíblico “o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus”, deve ser entendido em sentido genérico, como o “ser humano”, no qual está incluída a mulher, o que significa afirmar que também a mulher é imagem de Deus, ou melhor, que nem o homem, nem a mulher é, separadamente, imagem de Deus, confome diz no Livro das obras divinas:

Quando Deus criou o homem, gostou muito, porque o havia criado com a roupagem de Sua imagem e segundo Sua semelhança, já que o homem devia proclamar, pelo instrumento de sua voz racional, todas as Suas maravilhas. Pois o homem é a 90 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

plenitude da obra divina, porque Deus é cohecido através do homem e porque Deus criou para ele todas as criaturas e lhe concedeu o verdadeiro amor. Mas faltava ao homem uma ajuda [alguém] semelhante a ele, pelo que Deus também o deu esta ajuda nesse espelho que é a mulher, na qual se ocultava todo o gênero humano que devia desenvolver-se em virtude da força divina, como também em virtude de sua força Deus produziu o primeiro homem. E assim o homem e a mulher se uniram para realizarem-se um através do outro, porque o homem sem a mulher não se chamaria homem, nem a mulher sem o homem não seria chamada mulher (Idem. Libro de las obras divinas. I, IV, 100, 2013c, p. 168).

Além disso, diferentemente de alguns Padres da Igreja que asseguraram a semelhança do homem com Deus apenas pela alma, Hildegard inclui aí também o corpo e, é claro, o corpo feminino, conforme acentua Joseph-Ignacio Saranyana: “Convém assinalar que, para Hildegarda, a mulher não é só imagem de Deus enquanto alma, senão também enquanto corpo, quer dizer, pela carne [...]” (1999, p. 155). Mas, apesar dessa supervalorização da mulher, deixando transparecer, nas entrelinhas, certo feminismo em seu pensamento, o que levou muitos comentadores atuais a classificá- la como uma “teóloga feminista”104, ou a ser reverenciada como tal pelos movimentos feministas do século XX, não podemos dizer que de fato Hildegard tivesse tal pretensão, muito menos que buscasse uma emancipação da mulher, haja vista que em nenhum momento

104 Se não há em Hildegard uma “teologia feminista” no sentido moderno do termo, há, pelo menos, uma “teologia do feminino”, quando, a exemplo de tantas outras escritoras medievais, reserva um lugar de destaque para as mulheres em suas visões metafóricas, nas quais a mulher aparece como exemplo (Espelho), a ser seguido por todos. No Scivias III, 4, por exemplo, “descreve uma de suas visões em que em frente à Palavra de Deus (um pilar de três lados coroado por uma radiante pomba) aparece uma figura feminina da Scientia Dei que se dirige alternativamente para a coluna e para os homens para que eles recordem seu criador” (GONGORA, 1999, p. 2). E, mais adiante, citando o Scivias III, 9, 25: “Hildegarda vê uma imagem de Sapientia que, assim como a Scientia Dei recém- mencionada, é uma figura feminina que representa a atividade divina na Igreja e no Cosmo. Esta mulher está vestida com uma túnica de ouro, leva uma coroa e uma estola enfeitada com jóias que proclamam sua realeza [...]” (Ibid.). Igualmente, “no Livro dos méritos da vida, Liber vitae meritorum 1, 46, a Sapientia é concebida como uma mulher amada nos braços de Deus”. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 91 ela questiona o papel ou a situação social da mulher na Igreja e na sociedade. Daí poder Maria Carmen Poll afirmar que, “embora Hildegarda tenha sido, de fato, em muitos aspectos uma mulher à frente do seu tempo, ela nunca reivindicou para si ou para as mulheres de sua época qualquer mudança” (POLL, 2010, p. 28-29), pelo contrário, em muitos pontos defende posições conservadoras ou tradicionais a esse respeito. Daí Christian Feldmann, em capítulo intitulado “uma reformadora conservadora: quanto maior a antiguidade, melhor”, dizer:

A beneditina era reformadora em suas intenções com seus numerosos contatos e sua atenção as necessidades, mas suas concepções de uma reforma social e eclasiástica diferem, como temos visto, muito claramente do programa de partidos progressistas contemporâneos e são completamente conservadoras. Se propunha a uma volta as orígens antes que a uma orientação radicalmente nova. Melhor quanto maior seja a antiguidade. Sua predileção pela vida eremítica explica tudo por si só (2009, p. 269).

Um dos pontos em que Hildegard é declaradamente conservadora refere-se à sua posição contrária a ordenação sacerdotal de mulheres na Igreja e/ou a parcipação das mulheres na ministração dos sacramentos105, entendendo que, na grande interação holística do cosmo, na qual o micro deve estar em sintonia com o macro, as mulheres estavam designadas a ter filhos e criá-los, sendo assim o sacerdócio uma atividade incompatível com a função biológica, conforme vemos no Scicias, em tópico intitulado Mulheres não deveriam aproximar-se do serviço do altar, ao narrar o que ouvi de Deus em uma de suas visões:

105 Aqui, vale salientar, que Hildegard refutava provavelmente as heresias dos Cátarpos e dos Valdeses, pois segundo Rayana Lippmann, “embora não pudessem ascender ao episcopado, entre os Cátaros era possível que as mulheres exercessem diversos ministérios. Já entre os Valdenses, além de exercer o ministério da pregação, as mulheres também ministravam vários sacramentos, inclusive a Eucaristia” (2014, p. 27). 92 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

[...] também as pessoas dos sexo feminino não devem aproximar-se do serviço de meu altar; com efeito, elas são habitação enferma e fraca, designadas a gerar filhos e nutri-los diligentemente. Uma mulher concebe uma criança não por si mesma, mas através de um homem, como um chão é arado não por si mesmo, mas por um agricultor. Potanto, tal como a terra não pode arar a si mesma, uma mulher não deve ser sacerdotisa e fazer o trabalho de consagração do corpo e do sangue de meu Filho, embora ela possa cantar o louvor de seu Criador, como a terra pode receber chuva para irrigar seus frutos (HILDEGARDA de Bingen. Scivias, II, 8, 76, 2015, p. 406 - destaque nosso).

Por isso a Pensadora de Bingen dava capital importância ao casamento, conforme vimo anteriormente, o que a tornava fiel e querida pela ortodoxia católica, conforme comenta Maria Carmen Poll:

A pronta aceitação de Hildegarda no meio eclesiástico não se deve a um único fator, mas um motivo se destaca: a clara ortodoxia de Hildegarda. Não há dúvida de que os prelados se sentiram em grande parte atraídos por essa ortodoxia: no Scivias, Hildegarda enfatiza doutrinas como a origem divina do casamento, a santidade da eucaristia e a dignidade do sacerdócio, que os Cátaros negavam veementemente (2010, p. 66).

Também, apesar de bater forte contra o clero da época, em suas cartas e sermões Hildegard nunca questionou a Igreja em si, nem tentou inaugurar uma nova corrente de pensamento religioso, dentro ou fora da Igreja: sempre permaneceu fiel à ortodoxia da Igreja Católica106. Pelo contrário, nesse ponto foi até considerada conservadora ou tradicional. Por exemplo, em relação à famosa polêmica acerca da estrutura hierárquica e da riqueza na Igreja, e não só na Igreja, mas também em relação às diferenças socioeconômicas na sociedade como um todo, posicionou-se contra aqueles que defendiam a chamada “pobreza evangélica”, os

106 A esse respeito diz BINGEMER, 2011: “Hildegarda não pretendeu inaugurar uma nova corrente de pensamento religioso, permanecendo fiel à Regra Beneditina e à ortodoxia católica”. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 93 chamados pauperistas, adeptos da heresia dos Valdenses, recebendo severas críticas, como foi o caso da abadessa Tengswich da comunidade religiosa de Andernach, que a acusou de defender um monaquismo elista, uma vez que no Monastário de Bingen só ingressavam, como noviças, jovens oriundas da classe nobre, contrariamente a Cristo, “que elegeu para sua primeira Igreja pobres pescadores”. Ao que respondeu Hildegard, dizendo que a divisão social faz parte da Vontade divina, que até no Céu, entre os anjos, há uma hierarquia:

Deus também tem um olhar cuidadoso e atento sobre cada pessoa, de maneira tal que a ordem menor não ascenda e passe por cima da maior, como fizeram Satanás e o primeiro homerm, que quiseram voar a uma altura maior que aquela que havia sido postos. E que homem reúne todo o rebanho, quer dizer, bois, burros, ovelhas e cabas, em um só estábulo de maneira que não brigem entre si? Por isso, também aqui vale esta diferenciação, para que pessoas diversas reunidas em um único rebanho não se destruam pela soberba da exaltação nem na indiferença da diversidade, e, principalmente, para que a nobreza do caráter não se deteriorie, quando por causa do ódio brigem entre si, quando a ordem mais alta cai na inferior e a inferior ascende sobre a mais alta, por isso Deus fez distinção entre aqueles que habitam na terra como também entre os habitantes do Céu, onde há anjos, arcanjos, tronos, denominações, querubins e sefarins. E todos estes são amados por Deus, ainda que não tenham igual nome (HILDEGARDA de Bingen. Carta 52r, a la comunidad religiosa de Andernach, entre 1148 y 115, 2015, p. 168).

Foi a partir desta visão que Hildegard criou a famosa iluminura “As Hierarquias Angélicas”, contida no Scivias (Conhece os caminhos do Senhor):

94 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

As Hierarquias Angélicas - iluminura de Hildegard, no Scivias -

Fonte: http://pt.wikipedia.org/ wiki/Hildegarda_de_Bingen

Além disso, Hildegard posicionou-se politicamente a favor dos movimentos hierocratas que, baseados no princípio agostiniano de que o espiritual é superior ao temporal, e que “não há poder que não venha de Deus”, defendiam a subordinação do poder temporal ao espiritual, o que na prática resultava na defesa da plenitude do poder papal. Também nesse ponto foi considerada uma mulher conservadora. E, mesmo quando de suas admoestações às autoridades eclesiásticas e civis da época, nunca questionou o poder em si, apenas chamava a atenção para que cumprissem suas obrigações, devendo submeter-se ao Papa, como retrata sua carta ao Imperador Frederico Barba Roxa, em que diz:

Sê vigilante, porque no momento todos os reinos da região estão dominados por reis falaciosos que destroem a justiça [...]. Sabe, pois, que o Rei supremo te olha: e não sejas acusado diante d’Ele de não ter exercido corretamente teu ofício e não venhas assim a envergonhar-te [...]. Toma cuidado para que o Supremo Rei não te lance por terra por culpa da cegueira dos teus olhos. Sê tal que a graça de Deus não te falte (HILDEGARD apud SOCIEDADE…, 2012).

Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 95

Embora mais adiante, diante da insistência do Imperador em contrariar a Igreja, ao apoiar o antipapa Vitor IV, e expulsar o arcepispo Concado da Diocese de Mogúncia, use de um tom mais agressivo e ameaçador, quando, valendo-se do poder profético de suas visões, diz:

Ó rei, é absolutamente necessário que sejais prudente nas tuas ações. De facto, vejo em minha misteriosa visão que te comportas como uma criança irracional aos olhos de Deus. Ainda tens tempo de reinar sobre as coisas terrenas. Estejais atento a que o sumo Rei não te dobre até o chão pela cegueira de teus olhos, que não sabes bem como manter na mão o cetro para reinar bem. Estejais atento a isto: comporta-te de modo que não se extinga em ti a graça de Deus! [...] assim fala Aquele que é: Destruirei a indocilidade e esmagarei a oposição daqueles que me desafiam. Ai! Ai desta maldita conduta dos ímpios que me desprezam! Ò Rei, se quiseres viver, dá ouvido a estas palavras! Do contrário, a minha espada traspassr-te-á! (Idem apud SICCARDI, 2013, p. 190).

Ou quando escreve ao Papa Anastácio VII, admoestando-o acerca dos males morais cometidos pelo clero da época:

Oh homem, que estando ainda107 no conhecimento lúcido en vigilante se encontra cansado demasiado como para enfrentar a jactância soberba dos homens postos em seu rebanho, sob a tua proteção: Por que não resgatas do naufrágio os que não podem emergir de suas dificuldades a não ser que recebam ajuda? E por que não cortais a raiz do mal que sufoca a erva boa e úteis, as que têm um gosto doce e suavíssimo aroma? Tu descuidas da filha do Rei, isto é a Justiça - que vive nos braços celestiais e que te foi confiada -, pois permites que esta filha do Rei [a Igreja] seja jogada por terra e que seu diadema e sua formosa túnica sejam destruídos pela grosseria dos dos costumes daqueles homem hostis que se assemelham aos cães ladrões e que, como as galinhas que à noite as vezes tratam de cantar, deixam escapar a

107 Referência ao fato de que, apesar do papa Anastácio já se encontrar em idade avançada, tendo sido eleito papa aos oitenta anos, ainda se encontrava lúcido. 96 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

nécia exaltação de suas vozes. Estes são simuladores que em suas palavras manifestam uma paz fingida, mas que em seu interior, em seus corações, mostram os dentres como o cão, que se mostram amigos de quem lhe são conhecidos, mas mordem ao soldado que presta seu serviço no palácio do Rei. Por que suportais os valvados costumes desses homens que vivem nas tendas da estupidez, reunindo e entesourando para si tudo o que é nocivo, como a galinha que grita à noite aterrorizando-se a si mesma? [...] Oh homem que te mostras como pastor, levanta-te e corre velozmente em direção à Justiça, de meneira tal que não sejais acusado ante ao grande Médico de não ter purificado da imundice o Seu rebanho e não tê-lo ungido com óleo [...]. Por conseguimte tú, oh homem, mantém-te no caminho reto, e Deus te salvará, te conduzirá novamente a mansão da bendição e da eleição, e viverás eternamente (HILDEGARDA de Binge, Carta 8, al papa Anastasio, entre 1153 y 1154, 2015, vol. I, p. 60-64)

Em síntese, em assuntos políticos e eclesiológicos o que Hildegard fez foi combater os males civis, as heresias dentro do seio da Igreja, principalmente os Cátaros e os Valdenses, a quem chama de “lobos em pele de ovelha”, e a corrupção moral do clero. Portanto, está longe de ser uma “reformista”, precursora da “reforma protestante”, como querem alguns. Pelo contrário,

a beneditina é reformadora em suas intenções com seus numerosos contatos e sua atenção às necessidades, porém suas concepções de reforma social e eclasiástica diferem, como temos visto muito claramente, do programa de partidos progressistas contemporâneos e são completamente conservadoras (FELDMANN, 2009, p. 269).

Importância e atualidade do pensamento de Hildegard

Hildegard faleceu em 17 de setembro de 1179, aos 80 anos de idade, no mosteiro de Monte Rupert (Ruperstberg – próximo a Bingen), onde viveu desde 1151, quando deixou Disibodenberg. No Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 97 momento de seu falecimento, segundo a Vida de Santa Hildegarda, escrita por Theoderich von Echternach108,

sobre a habitação em que a santa virgem entregou sua feliz alma a Deus no primeiro crepúsculo da noite do domingo, apareceram no céu dois arcos brilhantes e de diversas cores, que se prolongaram por um longo caminho, estendendo-se pela terra em quatro partes, dos quais um foi de Norte a Sul e outro de Leste a Oeste. No vértice, ali onde os arcos se cruzavam, surgiu uma clara luz em forma de círculo lunar que parecia apartar as trevas da noite de sua habitação [...] o que se deve crer com quanta claridade havia iluminado a sua amada nos céus. Tampouco faltaram, antes que fora sepultada, milagres que atestam o mérito de sua santidade. Pois dois homens, que cheios de fé tocaram em seu santo corpo, foram curados de uma grave enfermidade [...]. Seu corpo foi sepultado em lugar santo [...] de onde exala um maravilhoso odor de suavidade, doçura e fragrância saem de seu sepulcro e inundam os sentidos dos homens (In: CIRLOT, 2001, p. 91).

Além, disso, cultiva-se na memória popular a história de que “seu espírito, rejuvenescido, foi visto várias vezes andando e cantando pela capela, com uma expressão de doce júbilo no rosto. Ela cantava a sua canção predileta: ‘O virgia ac diadema’” (GUIMARÃES, 2009)109.

108 A Vita Sanctae Hildegardis (Vida de Santa Hildegarda) foi iniciada pelo monge copista Gottfried, que em fins de 1174 ou no início de 1175, substituiu o antigo copista e confessor Volmar, falecido entre 1170 e 1173. Mas Gottfried faleceu em 1176, sem terminá-la, sendo substituído por Guibert de Gembloux, que se empenhou em concluir a referida biografia, mas também não finalizou o trabalho, abordando apenas os anos iniciais da vida da Santa. Somente uma década após a morte de Hildegarda, o monge Theoderich von Echternach retomou o trabalho, acrescentando-lhe mais dois volumes e um prefácio. Portanto, a Vida de Santa Hildegarda fora escrita por várias mãos, e tem três partes ou livros: o primeiro, As ações prodigiosas da Santa; o segundo, As visões da Santa; o terceitro, Os milagres e a morte da Santa. Além do prefácio de Theoderic de Echternach (cf. CIRLOT; GARÍ, 1999, p. 70 e SICCARDI, 2013, p. 37). 109 Além disso, no Livro III da Vida de Santa Hildegarda, há registros de diversos milagres operados por Santa Hildegarda, alguns deles ainda em vida, como, por exemplo, este narrado por seu biógrafo: “Enquanto atravessava num barco o curso do rio Reno, junto à cidade de Rüdesheim, para ir ao mosteiro próximo, uma mulher aproximou-se do barco levando o seu filho cego nos braços, e com uma voz débil suplicou que lhe impusesse as mãos. E ela, movida à piedade, recordando-se daquele que tinha dito: ‘Vai à piscina de Siloé e lava-te’ (Jo 9), com a mão esquerda apanhou um 98 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Hildegard foi sepultada na igreja do mosteiro de Monte Rupert (Rupertsberg). Suas relíquias permaneceram ali até 1632, quando o mosteiro foi destruído pelos suecos. Atualmente seus restos mortais encontram-se em uma urna num dos mosteiros fundado por ela, em Eibingen – Alemanha. Em 1233, os bispos da região de Mogúncia enviaram à Santa Sé o primeiro pedido de canonização de Hildegard, mas até 2013

não foi oficialmente canonizada pela Igreja, a despeito dos diversos processos que foram instituídos, mas foi considerada santa pela população desde a Idade Média. Diversos milagres foram-lhe atribuídos ainda em vida e registrados por seus hagiógrafos. Seu nome figura no martirológio romano e sua festa é celebrada em diversas dioceses da atual Alemanha (SILVA, 2002)110.

Finalmente, “em 1979, por ocasião do VIII Centenário de sua morte, os Bispos da Alemanha endereçaram a João Paulo II e à Cúria romana o pedido de que se conferisse à profetisa teutónica, como era chamada pelos seus contemporâneos, o título honorífico de Doutora da Igreja” (SICCARDI, 2013, p. 19), título este que só veio a ser concedido em 07 de outubro de 2012 pelo papa Bento XVI, o mesmo que, em 10 de maio de 2012, a tornou santa, embora já fosse considerada como tal pelo povo a mais de oitocentos anos, motivo pelo qual não houve processo de canonização, mas a chamda “caninização equivalente”111, que é uma modalidade de canonização instituida pelo papa Urbano VIII (1623-1644). Analisando a importância de Hildegard para a atualidade, afirma Barbara Newman: pouco de água do rio e abençoou-a com a direita. Depois, aplicou sobre os olhos do menino que, por graça divina, recuperou a vista” (THEODERICH von Echternach. Vida de Santa Hildegarda, III, XXVIII. In: CIRLOT, 2001, p. 78). 110 Informação confirmada por CIRLOT; GARÍ, 1999, p. 75. 111 Sgundo Cristina Siccardi, “na canonização equivalente, o Papa estabelece que um servo de Deus, que é objeto de um culto antigo e sobre cujas virtudes heróicas ou martírio ou milagres é constante a declação comum de historiadores dignos de fé, seja honrado na Igreja univeral, com ofício e celebração eucarística num dia determinado, sem nenhuma sentença formal” (2013, p. 22). A esse respeito cf. também, ZAZZANORI, 2013, p. 105. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 99

Sua contribuição foi tão excepcional em se tratando de uma mulher de sua época, que os pesquisadores modernos, com todo o seu aparato teórico e instrumental, ainda consideram difícil analisá-la com suficiente objetividade e avaliar sua real importância. Alguns a consideram simplesmente uma anomalia bem sucedida; muitos compreensivelmente duvidam da origem divina de seus escritos; mas em geral não se dá importância à elevadíssima estima que ela desfrutou entre seus contemporâneos, que a chamaram de ‘A Sibila do Reno’, a ‘Profetisa dos Teutões’ e outros epítetos grandiloquentes, nem se vê como injusto ela ter-se tornado um dos ícones do movimento feminista do século XX. É de assinalar algumas de suas conquistas: foi a primeira mulher a ser considerada uma autoridade em assuntos teológicos; a única mulher medieval a quem se concedeu o direito de pregar a doutrina cristã em público; a autora do primeiro auto sacro jamais escrito e o único dramaturgo no século XII que não permaneceu anônimo; a única mulher medieval a ser lembrada como compositora de um extenso e qualificado corpo de obras musicais; o primeiro autor a escrever sobre sexualidade e ginecologia de um ponto de vista feminino, e o primeiro santo a ter uma biografia oficial que inclui trechos autobiográficos (apud HILDEGARD..., 2012)112.

Uma prova da importância e reconhecimento da figura de Hildegard em nossos tempos são os títulos e monumentos a ela

112 Ao que completa o Marcial Maçaneiro: “Hoje, com a explosão de espiritualidade verificada no planeta, Hildegarda está sendo traduzida - além do inglês e alemão – também em italiano, espanhol, francês e catalão. Torna-se acessível e conquista um público que vai além dos ambientes teológicos e das fronteiras da Igreja. É autora do mundo. Consta no catálogo de várias editoras. Suas frases são citadas em agendas e calendários, suas melodias são registradas em CDs [...]. A cada século retomamos algum personagem marcante da fé cristã, traduzindo e repropondo sua espiritualidade. Alguos têm alcance localizado e aplicação restrita. Outros atravessam séculos sem perder a atualidade, como Agostinho, Francisco de Assis e Teresa de Ávila, entre tantos. Nestesentido, creio que Hildegarda seja uma santa do novo século, com contribuições importantes à vida cristã no milênio que ora inauguramos [...]. Porque Hildegarda tem uma identidade carismática pluriforme e wna obra de inspiração interdisciplinar. Sua mensagem ultrapassa seu momento histórico e toca os atuais debates em teologia, mistica e cosmologia. É mulher de sensibilidade simbólica e agilidade intelectual. Vive na encruzilhada entre Idade Média e Idade Moderna. Escreve com audácia espiritual e abre um leque sugestivo de perspectivas: da medicina. à música, da vida monástica à política, da contemplação à reforma da Igreja, das coisas celestes às sutilezas da natureza. Se hoje buscamos uma fé significativa, com força profética e abordagem de síntese, encontramos em Hildegarda uma fonte inspiradora e uma referência para a espiritualidade cristâ” (2000, p. 435). 100 | Mulheres Intelectuais na Idade Média dedicados. Por exemplo, ela é a patrona do Prêmio Hildegard von Bingen, criado em 1995, na Alemanha, para distinguir jornalistas e publicitários que deram uma contribuição humanitária importante no seu campo e promoveram a pluralidade e o diálogo entre homens e mulheres. É nome de uma escola em Rudesheim – Alemanha. É um dos vultos históricos relembrados no Templo de Walhalla em Regensburg - Alemanha (placa comemorativa nº 46). É patrona da Medalha Hildegard von Bingen da Bundesvereinigung Prävention um Gesundheitförderung, para personalidades destacadas no campo da educação sanitária mundial. Sua vida foi objeto de um filme de Margarethe von Trotta intitulado Vision - Aus dem Leben der Hildegard von Bingen, lançado em 2009. Já existem duas sociedades internacionais dedicadas ao estudo de sua vida e obra: a Internationale Gesellschaft Hildegard von Bingen, fundada na Suíça em 1980, organizando grupos de trabalho, conferências e publicando uma revista, e contando com cerca de 1800 membros de vários países do mundo; e a International Society of Hildegard von Bingen Studies, sediada desde 1983 nos Estados Unidos, desenvolvendo, também ela, uma intensa atividade, além de outras entidades de menor porte.

Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 101

Heloíse de Argenteuil (1101-1164)

Fonte: http://upload.wikimedia.org/

Uma importante intelectual que veio a tornar-se religiosa entre os séculos XI e XII foi Heloíse de Argenteuil ou de Paracleto. Segundo Zeferino Rocha, de sua história, ou seja,

dos pais e da infância de Heloísa nada se conhece de historicamente comprovado. Sabemos, apenas, que ela, desde pequena, foi educada na Abadia beneditina de Argenteuil (subúrbio de Paris). E aí está o segredo de sua extraordinária cultura. Mas, o fato de tão cedo ter sido enviada para receber uma educação primorosa numa abadia de monjas beneditinas e de ter um tio que pertencia ao grupo muito restrito dos cônegos de Notre Dame (celeiro de onde, em geral, os bispos eram escolhidos), parece indicar que Heloísa pertencia a uma família nobre da região parisiense (1996, p. 219)113.

Na realidade, o pouco que se sabe da vida de Heloíse de Argenteuil é em função de seu belo e dramático romance com o filósofo Pedro Abelardo (1079-1142), com quem dividiu sua vida pública, o que levou Ana Paula Schlesener a dizer que “Heloísa passou

113 Patrícia Rangel, por sua vez, acrescenta que Heloïse de Argenteuil fora educada por um certo Lucano, de forma que “já era célebre em toda a França antes mesmo de conhecer pessoalmente Abelardo” (RANGEL, 2011, p. 79-80). 102 | Mulheres Intelectuais na Idade Média para a história mais como mulher e amante que como intelectual, embora tenha sido excepcional nesse campo” (2003, p. 69). Aos 17 anos de idade, Heloíse de Argenteuil foi a Paris para estudar, sob os cuidados de seu tio, o cônego Fulbert, vigário geral da Catedral de Notre-Dame. Três anos depois, foi confiada a Pedro Abelardo, como preceptor, que era vinte anos mais velho. A relação entre ambos logo se transformou em amor, que resultaria em grande tragédia. Ao descobrir o romance secreto entre ambos, o tio de Heloïse, o cônego Fulbert, que planejara o casamento dela com um jovem filho de família nobre, tentou separá-los, mas os dois continuaram o romance secreto, chegando a se casarem às escondidas, e, pouco tempo depois, a terem um filho – Astrolábio. Sabendo do casamento, Fulbert expulsa Heloíse de casa, que passou a viver num convento de Pallet, na Bretanha, sob os cuidados de uma irmã de Abelardo, onde veio a ter o filho. Além disso, Fulbert mandou castrar Abelardo que, revoltado e com sentimento de culpa, passou a interpretar a tragédia como um castigo divino, por ele ter quebrado o pacto com Deus, uma vez que, segundo a tradição, ser filósofo era um dom divino, que exigia, da parte do filósofo, o celibato. Como forma de reconciliar-se com Deus, Abelardo resolve entrar para a vida monástica, tornando-se padre/monge beneditino, chegando a ser Abade do mosteiro de S. Denis, e pede a Heloíse que siga a mesma forma de vida. Depois de certa resistência ela faz os votos, tornando-se monja do mosteiro de Santa Maria de Argenteuil, onde posteriormente ocupou o cargo de prioresa, e, mais tarde, em 1129, de abadessa do Paracleto. A partir de então, Abelardo e Heloíse de Argenteuil passaram a trocar correspondências114, através das quais cultivaram pelo resto da

114 Mais do que simples correspondências pessoais ou íntimas, as Cartas constituem um gênero literário na Idade Média, um instrumento pedagógico, variante dos Espelhos ou Exemplos, pelas quais se pretende passar para o público uma mensagem ou visão de mundo, apresentando o autor(a) como exemplo a ser seguido. Assim, “o texto da Correspondência, assim como a imagem de Heloísa como mulher excepcional, tanto em conhecimentos como em devoção, funcionam como um conjunto de exemplos para outras mulheres. Fazendo uso do pensamento medieval, Heloísa superou Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 103 vida o amor entre eles. Castas estas que, embora tratem ou foram sscritas para tratar de assuntos filosóficos, teólogicos e eclasíasticos, mas nas entelinhas estão rechedas de sentimentos pessoais, de um amor velado, que não morreu apesar dos pesares, daí a grande quantidade de experessões amorosas, de cobranças pessoais, principalmente por parte de Heloíse, tais como: “não me negligencies”; “vem-me ver, senão irei eu”; “se não vens é porque não me amas”; “não sabes o quanto sofro”, etc. Embora não nos tenha deixado nenhuma obra, exceto as Cartas115 escritas ao referido Filósofo116, das quais temos algumas as limitações de seu sexo e, apesar de todas as dificuldades, mostrou-se como um modelo de conduta” (SOUZA, 2009, p. 34). 115 Existe uma grande discussão entre diversos comentadores acerca da autenticidade das cartas que foram publicadas ao longo dos séculos como sendo de Abelardo e Heloíse, discussão que Étienne Gilson sintetiza, tomando partido, nos seguintes termos: “[...] Heloísa morreu vinte anos depois de Abelardo: quem provará algum dia que, se ela não é a autora das cartas atribuídas a Abelardo, pelo menos, não as revisara com vistas à sua difusão? [...] pois, enfim, se Abelardo tivesse preparado ele próprio essa coletânea tendo em vista assegurar sua própria glória, como teria escrito ou deixado as passagens tão duras de Heloísa, tão verdadeiras também, que desvendam o egoísmo, a crueldade, o orgulho levado à mais estúpida cegueira da qual deu provas várias vezes em todo o caso? Diz-se que ele quis colocar em evidência suas qualidades de diretor de consciência; mas o fato é que ele malogrou, lamentavelmente. Jamais, em nenhuma de suas cartas, Heloísa admitiu que aceitava como justo o julgamento de Deus, que amava a Deus mais que a Abelardo e que era por Deus, não por Abelardo, que se impunha a expiação da vida monástica. Heloísa acabou por calar-se, mas jamais cedeu. Eis também o que ela quer que se saiba, e é para fazer com que saibamos que compôs essa coletânea de cartas tal como a lemos hoje” (2007, p. 194-195). Logo, conclui que a hipótese “mais convincente e mais sábia de todas consiste em ainda supor que Heloísa seja a autora das cartas de Heloísa, Abelardo, o autor das cartas de Abelardo, e Heloísa, a provável editora do conjunto da coletânea” (2007, p. 196). Para um maior aprofundamento da controvérsia acerca da autenticidade ou não das Cartas de Abelardo e Heloísa, recomendamos a leitura do Apêndice I - A autenticidade da correspondência de Heloísa e de Abelardo (In: GILSON, 2007, p. 175-196). 116 Afora as discussões sobre a autenticidade das Cartas de Abelardo e Heloísa, o certo é que dos manuscritos depositados na Biblioteca de Troyes, nos finais do século XII, apenas cinco foram publicados e republicados ao longo dos tempos, os quais, segundo Pedro Rodolfo Silva, contém: “- A Historia Calamitorum, uma espécie de autobiografia, endereçada a um amigo, provavelmente escrita em 1132, quando Abelardo tinha trinta e dois anos; - Uma Carta [consolatio] de Heloísa, enviada a Abelardo depois que esta tomou conhecimento da Historia Calamitorum; - Uma série de três cartas [Abelardo a Heloísa, Heloísa a Abelardo, Abelardo e Heloísa]; - Três cartas, de caráter impessoal, relativas à administração do Paracleto, do qual Heloísa havia se tornado abadessa; - Por fim, uma regra proposta por Abelardo sobre a organização da vida das monjas que viviam sob a autoridade de Heloísa”. Além de tais cartas, diversos comentadores trazem notícia de uma obra de Heloísa que chamam de Problemata, que na realidade é uma série de questões filosófico-teológicas a serem resolvidas por Abelardo, encaminhadas através de uma de suas cartas, conforme comenta Cléber Eduardo Dias, em resenha a uma das traduções das referidas Cartas: “O texto do Problemata 104 | Mulheres Intelectuais na Idade Média traduções no Brasil117, Heloíse de Argenteuil aparece na história como uma mulher culta, capaz de discutir com os peritos, dentre os quais Abelardo, na arte da lógica e da dialética. Ela que dominava muito bem o latim, além ter um bom conhecimento das línguas grega e hebraica (cf. ROCHA, 1996, p. 218, nota 03)118, qualidades que a tornaram famosa entre os parisienses, que lhe deram o título pomposo de “nominatíssima”, conforme atesta em carta Pedro, o Venerável, abade do mosteiro de Cluny:

Eu era adolescente, ainda na flor da idade, quando o teu nome já era famoso, não pela vida religiosa que em seguida escolheste, mas por teus admiráveis e profundos estudos. Vim a saber que uma mulher se dedicava com todas as forças ao estudo das letras e à busca da sabedoria, fato raríssimo, e não se deixava distrair pelos prazeres e alegrias do mundo [...] que, com amor à ciência, superou não apenas todas as mulheres, mas também a maior parte dos homens (apud SCHLESENER, 2003, p. 69).

Esta opinião é reforçada por Abelardo, em sua História de minhas calamidades:

Heloissae, no qual a sábia Heloíse oferece a Abelardo uma série de questões teológicas para serem por ele resolvidas, é antecedido por uma carta de Heloísa, na qual pede auxílio ao mestre Abelardo (p. 735-39). Nesta obra, traduzida a partir da edição da PL 178 (col 677-8), podemos ver as motivações de Heloïse que, de uma forma ou de outra, ainda requeria a presença de Abelardo, se não mais como esposo, ao menos como mestre de si e de suas monjas” (DIAS, 2005, p. 179. Resenha de: EPISTOLARIO di Abelardo e Eloísa, 2004). Igualmente reforça essa informação José Carlos Estevão, ao dizer que “uma das pelas desse intercâmbio epistolar é particularmente interessante: Heloisa formula uma série de 42 perguntas teóricas para qur Abelerdo as responda. Em geral, El pergunta pelo significado de passagens bíblicas, mas algumas das questões são bem mais elaboradas, permitindo, melhor do que qualquer outra fonte, aquilar o tipo de interlocução que se desenvolveu entre eles. Aliás, os Problemas de Heloisa são um verdadeiro presente para os historiadores da filosofia, uma vez que muitas vezes ela pergunta justamente aquilo pelo qual o histotriador se interroga. Um exemplo simples: ‘Por que você às vezes usa a palavra ‘espirito’ e outras a palavra ‘alma’? Qual a diferença entre ‘espirito’ e ‘alma’?” (2015, p. 83). 117 Dentre as traduções das Cartas de Heloíse, temos no Brasil: ABELARDO; HELOÍSA, 1989 e 1997. 118 Além disso, numa das cenas do filme “Em Nome de Deus”, que narra o belo e dramático romance de Abelardo e Heloísa, o Bispo de Paris chega a dizer que “ela sabe latim, grego e hebraico mais do que um homem com o dobro de sua idade”. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 105

Na realidade, de rosto ela não era das mais belas, mas era suprema pela abundância dos conhecimentos literários. Levando em consideração que este dom da ciência literária era muito raro entre as mulheres, isso recomendava muito mais a jovem e a fazia formosíssima em todo o Reino (1997, p. 73).

Tamanha era a competência intelectual de Heloise que George Duby, em sua famosa obra “Heloísa, Isolda e outras damas do século XII”, ao analisar a argumentação retórica das correspondências trocadas entre ela e seu amante Abelardo, diz não ter dúvida de que “temos aqui dois ‘filósofos’ célebres, muito célebres, que se uniram carnalmente, no amor dos corpos” (DUBY, 1995, p. 61), ou seja, coloca ambos em pé de igualdade. E Ana Luíza Mendes chega a entrever certa superioridade de Heloísa em relação a Abelardo, uma vez que ela “transforma os ensinamentos do filósofo em sua arma contra ele mesmo”. Com isso, conclui a autora, “Heloísa toma as rédeas do jogo através da linguagem, herança de um dos filósofos mais importantes do século XII, seu amante, seu marido” (MENDES, 2009, p. 44 - destaque nosso). Ao que reforça Laura Vasconcelos, ao dizer que nas cartas trocadas entre ambos, “assistimos a uma espécie de debate retórico e argumentativo entre os dois. Heloíse imprime na sua resposta a Abelardo a própria questão, para que o destinatário não fuja do problema” (VASCONCELOS, 2016, p. 180). Tal é a força argumentativa de Heloíse que a referida comentadora conclui que “é muito provável que Abelardo tenha assimilado muito do estilo epistolar de Heloisa, e não o inverso” (Ibid., p. 182). Nas referidas cartas trocadas com Abelardo, Heloíse deixa entrever, nas entrelinhas, sua visão de mundo, seu posicionamento frente aos mais diversos temas, como, por exemplo, acerca do amor, do casamento, da amizade, etc., nos quais, segundo Ana Paula Schlesener, “demonstra um conhecimento profundo dos pensamentos de Sêneca, Cícero, Ovídio, o que era incomum entre 106 | Mulheres Intelectuais na Idade Média as mulheres da época, principalmente as de classe inferior” (2003, p. 73-74)119. E conclui seu artigo dizendo:

Para as monjas, era a virgindade que as tornava fortes e resistentes. Heloísa se apresenta como uma mulher diferente, que criou sua imagem própria de força, de coragem e resistência, justamente pela exaltação dos sentimentos. E conseguiu muito mais: com sua capacidade intelectual se elevou a uma situação que era destinada especificamente aos homens. Heloísa vinculou a sua fragilidade feminina à sua determinação racional, conseguindo transformar sensibilidade em tenacidade, sem deixar de ser feminina (Ibid., p. 75).

Abelardo morreu em 21 de abril de 1142, aos 63 anos de idade, e foi enterrado no Convento onde Heloïse era abadessa. Vinte e dois anos depois, em 15 de maio de 1164, Heloïse veio a falecer, sendo sepultada no mesmo túmulo de Abelardo, uma vez que, segundo Étienne Gilson,

relata-se que, pouco tempo antes de sua morte, Heloísa tomara as disposições necessárias para ser enterrada com Abelardo. Quando se abriu o túmulo para ali a sepultar junto dele, ele estendeu os braços para acolhê-la e cingiu-os estreitamente sobre ela (GILSON, 2007, p. 151)120.

Considerando a insistente luta de Heloïse em manter o amor conjugal entre eles, expresso em suas cartas, comenta, ironicamente, o mesmo comentador:

119 A esse respeito igualmente diz Lauras Vasconcelos: “O estudo efetuado sobre as cartas de Heloisa a Abelardo, e isto é uma opinião de certa forma generalizada e expressa por especialistas como Michael Clanchy e outros, revela que Heloisa usou, seguramente, o seu conhecimento das Hereides de Ovidio na composição de suas cartas. Ela utiliza os modelos literários latinos de modo assaz pouco habitual a sua época, pois incute, no seu discurso, não só uma significativa dimensão literária como filosófica e teológica. Por outras palavras, Heloisa enfrenta o mundo com um ‘eu’ muito próprio construído e expresso através de traços e rasgos dos grandes autores do passado”. 120 Cf. também, BORRALHO, 2002, p. 267, que diz: “[...] e aponta a lenda (e o cronista Gregório de Tours) que, quando se levantou a campa, os braços de Abelardo se abriram”. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 107

Assim contada, a história é bela, mas lenda por lenda, acreditaríamos mais facilmente que, ao se unir ao amigo no túmulo, Heloísa tenha aberto os braços para abraçá-lo (Ibid ).

Em 1817, por ordem de Josephine Bonaparte, os restos mortais dos dois amantes foram removidos para o cemitério Père Lachaise - Paris. Atualmente é um dos cemitérios mais famosos e visitados do mundo, por estarem sepultadas ali personalidades célebres, como Chopin, Jim Morrison, Oscar Wilde, Maria Callas, Allan Kardec e Paul Éluard, além de Abelardo e Heloïse de Argenteuil. 108 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Elisabeth von Schönau (1129-1165)121

Fonte: http://www.librarything.com/author/elisabethofschnau

Contemporânea e seguidora de Hildegard von Bingen, Elisabeth von Schönau (em português, Elizabete de Schönau), nascida em 1129, de uma nobre família das redondezas de Bonn-Köln – Alemanha, foi aos doze anos de idade conduzida ao mosteiro das beneditinas de Schönau, não muito longe de Bingen, para aí fazer seus estudos. Em 1147 fez os votos, tornando-se beneditina, e, já em 1152, começou sua experiência mística com uma série de êxtases e visões que se repetiram ao longo de sua vida. Em 1157 foi eleita abadessa do mosteiro de Schönau, onde permaneceu até a morte. Por sua influência seu irmão Egbert, que era clérigo secular, fez-se monge beneditino no mosteiro masculino de Schönau, passando a ser confessor de sua irmã e colaborador na redação de suas obras. Elizabeth sabia apenas o latim, o que, segundo Joseph-Ignacio Saranyana, às vezes tornava difícil distinguir a autoria das obras que lhe foram atribuídas (cf. SARANYANA, 1999, p. 156). Elisabeth von Schönau faleceu em 18 de junho de 1164. O monge Egbert, que mais tarde se tornou Abade do mosteiro masculino de Schönau, juntou-se a sua irmã (e a Hildegard von

121 As publicações brasileiras traduzem por Santa Isabel de Schönau ou simplesmente por Santa Isabel da Alemanha (cf. TAVARES, 2012). Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 109

Bingen) na luta contra os Cátaros. Além disso, escreveu a primeira biografia de Elisabeth von Schönau, depois que esta faleceu. Embora tenha sido fortemente influenciada pelos escritos de Hildegard von Bingen - inclusive consta que foram amigas e mantiveram correspondências122 -, as experiências místicas de Elisabeth von Schönau são muito diferentes das de sua amiga. Segundo Joseph-Ignacio Saranyana, “Hildegarda teve visões e audições interiores, sem êxtases ou repercussões físicas; os fenômenos místicos de Elisabeth von Schönau consistiam em êxtases, visões e aparições, acompanhadas de alterações físicas” (1999, p. 156-7)123. Suas mensagens, em seus escritos, resultado de suas visões místicas, dirigiam-se, sob forma de crítica, a todos os setores da sociedade, mas, de maneira especial, à Igreja, a quem conclamava para a necessidade urgente de mudança (reforma) nos costumes dos religiosos e, principalmente, do clero secular. Apesar das dúvidas acerca da autenticidade de suas obras, atribui-se a Elisabeth von Schönau os seguintes livros: De resurrectione beatae Mariae matris Christi (Sobre a ressurreição da bem-aventurada Maria, mãe de Cristo), que trata da vida e assunção de Maria; Liber viarum Dei (Livro dos caminhos de Deus), que conclama à penitência e à reforma dos costumes na Igreja; Liber revelationum de sacro exercitu virginum Coloniensium (Livro das revelações sobre o santo exército de virgens de Colônia), que inspirará,

122 Incluindo as cartas escritas a Hildegard e a outras personalidades (bispos, abades, monjas, etc.), o Epistolário de Elisabeth von Schönau consta de vinte e oito cartas. Há uma tradução das cartas trocadas entre Hidegard e Elisabeth na obra: CIRLOT, 2001, p. 129-136. 123 Igualmente diz POLL, 2010, p. 149: “Não se pode dizer que a mística, que emergiu com tanto vigor nos séculos posteriores àquele em que Hildegard viveu, seria uma herança de Hildegard. Até mesmo Elisabeth de Schönau, sua contemporânea mais jovem e considerada sua ‘discípula’, revelava uma espiritualidade diversa da de Hildegard, justamente no que concerne ao misticismo. Pois se Elisabeth ‘herdou’ de Hildegard o ‘espírito profético’, juntamente com o dom das visões, manifestando-se, como Hildegard, a favor da reforma clerical, escrevendo cartas de conselho espiritual e proferindo avisos apocalípticos, há, no entanto, acentuadas diferenças entre as duas mulheres. Elisabeth não partilhava com a religiosa de Bingen seu interesse pela doutrina cristã, seu pensamento platonista, sua percepção científica e cosmológica do mundo, sua simbologia espiritual e seus talentos artísticos. Por outro lado, o que se destaca em Elisabeth e que faltava em Hildegard era justamente o misticismo típico, caracterizado por êxtases, cultivo da união com o divino, profunda subjetividade e relação pessoal com os santos”. 110 | Mulheres Intelectuais na Idade Média na Idade Média, o culto e a difusão do mito das onze mil virgens, baseado em suas visões sobre o martírio de Santa Úrsula e seus companheiros (cf. SARANYANA, 1999, p. 157, nota 54, e GÓNGORA, 2007). Embora essas obras tenham alcançado grande difusão, não tiveram o mesmo prestígio dos escritos de Hildegard von Bingen. Elisabeth von Schönau não foi canonizada oficialmente, mas seu nome foi incluído no Martirológio Romano em 1584. Sua memória é celebrada pela Igreja Católica no dia 18 de junho. Santa Elisabeth von Schönau é invocada pelos fiéis católicos contra as tentações.

Herrad de Landsberg (1130-1195)

Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Herrad_of_Landsberg

Herrad de Landsberg (ou de Hohenburg) nasceu por volta de 1130, no castelo de Landsberg, em meio a uma nobre família da Alsácia. Já em idade avançada, tornou-se monja no mosteiro agostiniano de St. Odile, em Hohenburg, nas montanhas de Vosges, cerca de quinze quilômetros de Strasbourg - França, onde veio a ser abadessa em 1167. Ela é conhecida como autora da obra Hortus deliciarum (Jardim das delícias), que é um manual ou compêndio de 324 páginas, escrito ao mesmo tempo em latim e alemão, oferecendo uma enciclopédia de ciências (artes liberais124) e teologia em

124 A esse respeito a comentadora Alic diz que sua obra mais importante, o Hortus deliciarum (Jardim das delícias), “é uma enciclopédia de religião, história, astronomia, geografia, filosofia, história Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 111 palavras e imagens (iluminuras), além de poesias e hinos a serem utilizados por religiosos e leigos nas escolas. O compêndio consta de quatro partes:

- a primeira, traz uma reinterpretação da criação do universo a partir da narrativa bíblica do Gênesis; - a segunda, trata da história salvífica de Cristo a partir dos Evangelhos e dos feitos dos Apóstolos; - a terceira, é um pequeno tratado de eclesiologia, destinado aos membros da Igreja; - a quarta, anuncia a segunda vinda de Cristo, que irá completar o projeto de salvação.

Além disso, o texto é acompanhado por 336 ilustrações (iluminuras, desenhos, etc.)125, que, segundo Santini, em alguns casos “são mais significativas que o texto ou dizem mais do que este" (2000, p. 113). Dentre elas, há uma que representa as sete artes liberais – o trivium e o quadrivium:

Fonte: http://www.esec-josefa-obidos.rcts.pt/herrad/hortus_deliciarum.htm

natural e botânica médica” (ALIC apud ALMEIDA, 2009, 44). Além disso, segundo a mesma comentadora, a exemplo de Hildegard, Herrad de Landsberg “construiu um hospital no convento de Hohenberg, na Alsácia, que dirigiu até morrer em 1195” (ALMEIDA, 2009, p. 44). 125 Dada a grande quantidade e alta qualidade de suas pinturas, Herrad de Landsberg é comparada ou igualada a Hildegard nas artes plásticas, muito embora, segundo SANTINI, 2000, p. 113, Herrad de Landsberg não as fez sozinha, mas trabalhavam com ela no Scriptorium do monastério cerca de sessenta mulheres, que a ajudaram a ilustrar a obra. 112 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Dos temas bíblico-teológicos, que na referida obra ganham uma interpretação peculiar, temos, por exemplo, a ilustração que retrata o inferno:

Fonte: http://www.newworldencyclopedia.org/entry/Herrad_of_Landsberg

E temos também esta em que se vê retratado o batismo de Cristo:

Fonte: http://www.newworldencyclopedia.org/entry/Herrad_of_Landsberg

Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 113

Além disso, o livro contém também poesias e 20 hinos ou canções (alguns acompanhados de notação musical). Um deles – o Primus parens hominum (Primeiro pai do homem) -, que sobreviveu até hoje, é uma música monofônica que descreve a história da salvação desde a criação da humanidade e sua queda, passando pela vinda de Cristo, até a Jerusalém celestial. Tudo isso prova que Herrad de Landsberg era uma mulher culta, educada na melhor tradição da época e sob a influência dos maiores teólogos de seu tempo, especialmente Santo Anselmo, Bernardo de Claraval e Pedro Lombardo, que são citados largamente por ela. Herrad de Landsberg faleceu em 25 de julho de 1195.

Clémence de Barking (1163-1200)

Fonte: http://www.fordham.edu/

Clémence de Barking foi uma monja anglo-normanda que viveu num Convento Beneditino de Barking, nos arredores de Londres, na segunda metade do século XII. É a autora de uma Vida de Santa Catarina (de Alexandria), martirizada no século IV. A obra é escrita de forma poética, 114 | Mulheres Intelectuais na Idade Média tomando como modelo ou influência o romance cortês Tristão e Isolda, de Thomas da Inglaterra. Nela, Clémence de Barking traça um paralelo entre Santa Catarina de Sena e Santa Catarina de Alexandria, colocando uma como sucessora da outra.

Hadewijch de Antuérpia (ou Amberes) (1190-1240)

Fonte: http://poco-de-babel.blogspot.com.br/

Conforme ressalta Alessia Vallarsa, “de Hadewijch (de Antuérpia ou de Amberes) não possuímos uma Vita, nenhum confessor ou hagiógrafo se preocupou com externar ou elogiar sua vida; faltam também notícias de um diretor espiritual [...]. Tudo nos falta a seu respeito: as notícias em torno da sua família de origem, as datas e os lugares de nascimento e de morte, o nome da cidade em que viveu” ([s.d], p. 84)126, mas, a julgar pelos relatos autobiográficos presentes em suas obras127, em que, além de si mesma, cita diversas personagens de sua época, especialmente os

126 GUARNIERI, Romana. Introduzione. In: HADEWIJCH, 2000, p. vii, por sua vez, diz que “a misteriosa beguina, nascida – em Anversa? ou Bruxelas? Nem mesmo isto sabemos com certeza – por volta do final de 1100 e morta, se pensa, pouco antes da metade do Duzentos (encontrava-se viva em 1236)”. 127 A esse respeito diz NASCIMENTO, 2011, p. 191-92: “Um número de mulheres místicas ganhou tal respeito que muitas informações sobre elas foram preservadas em latim nas vitae escritas por autores contemporâneos. É a esse grupo de mística que Hadewijch pertence, todavia sua vida não foi escrita e o conhecimento que temos sobre esta beguina se dá através dos diversos textos escritos por ela”. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 115

“setenta e três perfeitos vivos”128 aos quais ela se refere, presume- se que tenha nascido por volta de 1190, no Ducado de Brabante, próximo de Antuérpia (hoje sul dos Países Baixos e norte da Bélgica), e pelos seus escritos deduz-se que era oriunda de família nobre, pois, ressalta Georgette Épiney-Gurgad,

dá mostras de uma cultura assombrosa, tanto profana como teológica. Sabia latin, conhecia as regras da prosódia, a retórica e a arte epistolar [...]. Do potno de vista religioso, dá prova de seus conhecimentos bíblicos, litúrgicos e teológicos. Cita implícita, mas textualmente, a Ricardo de São Victot (Carta X) e Guilherme de Saint-Thierry (Carta XVIII), um hino trinitário atribuído a Hildeberto de Lavardin (†1134) (Carta XXI) (In: ÉPINEY- BURGARD; BRUNN, 2007, p. 156)129.

Aquilo de que se tem certeza é que Hadewijch foi uma beguina130, que extravasou seu amor extático por Deus em líricas

128 Dentre os “perfeitos vivos – aqueles que alcançaram a perfeição aqui na terra” - listados por Hadewijch na Visão XIV, encontra-se “uma beguina a quem o mestre Roberto fez morrer por causa do seu amor justo”. Para CIRLOT; GARÍ, 1999, p. 78, trata-se do “tenebroso Robert de Bougre, antigo cátaro arrependido que se fez dominicano e que foi inquisidor de Flandes na Diocese de Cambrai de 1235 a 1238”. Igualmente reforça essa hipótese SERRADO, 2004, p. 24, quando diz: “a datação da obra de nossa beguina através da Lista dos Perfeitos, um apêndice às Visões, mostra que a obra se situaria entre 1236 -1239, na referência, entre outras, a meester Robert. Este seria o ex-herético Roberto, o Pequeno ou Bougre, um inquisidor papal dominicano, que conduziria à morte mais de 260 homens e mulheres heréticas”. Já quanto a mulher citada no númro vigéssimo nono na “lista dos perfeitos” de Hadewijch, segundo María Tabuyo Oretga, na introdução a sua tradução espanhola das Visões de Hadewijch, “ trata-se de Aleydis, queimada com outras beguinas na fogueira em 1236, pelo dominicano Robert de Bougre, inquisidor em Flandes de 1235 a 1238” (In: HADEWIJCH de Amberes, Visiones, 2005, p. 10). Tudo isso leva a crer que por essa época Hadewijch estava em exercício literário. 129 Igualmente diz María Tabuyo Ortega, na introdução a sua tradução das Visões de Hadewijch: “Sua escritura transparece uma cultura assombrosa, e seu nome se encontra na origem da literatura flamenga em língua materna, vernácula. Conhecia bem o latim, a poesia trovadoresca francesa, a Bíblia, os apócrifos, e sem dúvida també textos de grandes filósofos e teólogos da Alta Idade Média, entre eles Escoto Eriúgena - que traduz o Pseudo-Dionísio, introduzindo assim a teologia mística do cristianismo oriental no Ocidente -, Guilherme de Saint-Thierry, Ricardo de São Victor, e da escola cisterciense [...]” (ORTEGA TABUYO, María. Intoducción. In: HADEWIJCH de Amberes, Visiones, 2005, p. 10). 130 SERRADO, 2004, p. 11, acrescenta que Hadewijch não só foi beguina, mas “uma mestra e dirigente de uma comunidade feminina”, uma espécie de “abadessa beguina”. Isto porque, segundo CIRLOT; GARÍ, 1999, p. 84, a partir de um determinado período as beguinas, até então comunidades livres, vão se organizando hierarquicamente, de forma que começam a “aparecer as congregações de beguinas disciplinadas que se submetem a uma certa regra de vida, obedecem a uma magistra [...]. 116 | Mulheres Intelectuais na Idade Média narrativas místicas de amor cortês, um gênero literário desconhecido no Ocidente, até então, o que levou Cecília Palumbo a dizer que, “inspirados nos tópicos trovadorescos, os escritos de Hadewijch inauguraram um novo gênero, o da ‘poesia cortês espiritual’ ou da ‘mística cortês’” (2009, p. 269)131. Embora tenha escrito suas obras em língua vulgar (o neerlandês medieval)132, endereçada às suas companheiras beguinas, pela qualidade de seus escritos e pelas citações que faz, todos os comentadores concordam ter sido ela uma mulher culta, que conhecia muito bem o latim e o francês, conforme atesta Maria Clara Bingemer:

Não há uma biografia ordenada e articulada sobre seus escritos, apenas esparsas indicações que levam a concluir que ela fazia parte do movimento emergente das beguinas, comunidades contemplativas e místicas de mulheres, vistas com desconfiança

Pouco depois se levantam os primeiros recintos de beguinas, chamados de curtis ou beguinatos”. Mais do que isto, algumas defenderam a criação de uma nova Igreja, hierarquicamente dominada pelas mulheres, com padres, bispos e até papisa, conforme relata Adriana Valério: “Alguns anos antes da morte de Porete, sabemos da existência de uma comunidade reunida em torno de Guglielma de Milão († 1289), venerada como encarnação do Espírito Santo. Guglielma havia reunido à sua volta crentes em constante escuta de suas palavras inspiradas e, quando da sua morte segundo a natureza humana, havia designado uma discípula, Maifreda, como sua vigária. Ela, de fato, por ser encarnação do Espírito Santo, iria subir ao céu, no Pentecostes de 1300, na presença de seus discípulos, para elevar as mulheres e para instaurar uma nova igreja com hierarquia feminina. Maifreda, na esperança de ser eleita papisa, pregava, exercitava poderes sacerdotais, fazia-se chamar Vigária, solicitando de seus seguidores gestos de obséquio usualmente reservados ao papa” (2005, p. 372). Outras comunidades de beguinas acabaram por receber a chancela ou por ser supervisionadas por alguém do Clero ou por uma Ordem religiosa católica (cf. SERRADO, 2004, p. 17). 131 Mais adiante completa: “A poesia mística de Hadewijch, por um lado, recorreu à tradição agostiniana da iluminação interior [...], e, por outro lado, assumiu as formulações da mística nupcial cisterciense, pondo especial acento no desenvolvimento da teologia trinitária de Guilherme de Saint Thierry. A confluência dessa dupla vertente teológica com os tópicos da poesia dos trovadores de origem profana deu por resultado o novo gênero da mística cortês” (p. 272). 132 CIRLOT, 2012a, p. 45, chama a atenção para o fato de Hadewijch, ao lado de Beatriz de Nazaré, ter sido das primeiras escritoras a escrever em língua vulgar: “As primeiras obras místicas em língua vulgar, em alemão antigo (que também inclui o neerlandês), são as de Breatrijs van Nazareth e Hadewijch, na primeira metade do século XIII”. VALLARSA, [s.d.], p. 90, afirma: “O corpus das visões de Hadewijch constitui a primeira e a mais importante coleção de visões escrita em língua vulgar, por uma mulher. Hildegarda de Bingen (†1179) e Elisabeth de Schönau (†1164) tinham escrito suas visões em latim”. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 117

pela hierarquia eclesiástica. Hadewijch tinha uma cultura vasta e profunda de literatura e teologia em várias línguas, incluindo Latim e Francês, em um tempo no qual estudar era um luxo do qual as mulheres podiam usufruir apenas excepcionalmente133.

Os escritos de Hadewijch estão divididos em três tipos: os Poemas estróficos, uma obra da juventude, composta por 45 poemas, e os Poemas rimados, com 16 poemas, ambos escritos na linguagem lírica do amor cortês134, que será a mesma das Cartas, das quais existem 31 recuperadas. Encontramos um dos poemas de Hadewijch no trabalho de Georgette Épiney-Burgard, no qual (Poema estrófico V) o amor é mostrado em toda sua força, pela síntese dialética que ele realiza entre as antíteses que marcam a condição de quem ama:

Por triste que seja a estação e os pássaros, não deve estar o coração nobre, que queira afrontar os trabalhos do Amor. Deve saber e conhecer tudo: - doçura e crueldade, alegria e dor -, tudo o que se encontra a serviço do Amor. As elevadas almas que têm crescido até ao ponto de amar na insatisfação devem ser em tudo fortes e atrevidas sempre dispostas a aceitar o consolo e a aflição que o Amor lhes reserva.

As vias do Amor são inauditas, como sabe quem as tem seguido,

133 BINGEMER, 2013. CIRLOT; GARÍ, 1999, p. 80, acrescentam que “nos escritos de Hadewijch se destaca a presença de pelo menos três autores do séc. XII cujas obras podemos afirmar com segurança que a escritora leu diretamente: Bernardo de Claraval, Guilherme de Saint Thierry e Ricardo de São Victor”. 134 Georgette Épiney-Burgard diz que “os Poemas fazem de Hadewijch uma das criadoras da poesia lírica neerlandesa” (In: ÉPINEY-BURGARD; BRUNN, 2007, p. 156). 118 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

pois Amor, de repente, retira seu consolo. não pode permanecer firme aquele a quem toca o Amor e gasta muitas horas inominadas.

Tão pronto quente, tão pronto frio, tão pronto tímido, tão pronto audaz numerosos são os caprichos do Amor. Ele nos recorda nossa grande dívida até seu alto poder, pelo que nos atrae.

Tão pronto alegre, tão pronto doloroso, tão pronto distante, tão promnto próximo, quem lhe apreende na fidelidade do amor está no regozijo: Como de a um só golpe, Amor abraça e golpeia!

Tão pronto humilhado, tão pronto exaltado, Tão oculto, tão pronto revelado: Para ser consumido pelo Amor é preciso arriscar-se a uma grande aventura antes de alcançar esse lugar em que se gosta a natureza do Amor.

Tão pronto rápido, tão pronto pesado, tão pronto sombrio, tão pronto claro; no consolo que liberta, na angústia que sufoca, dando e tomando, tal é a vida dos espíritos que, aqui em baixo, vagam pelos caminhos do Amor (In: ÉPINEY-BURGARD; BRUNN, 2007, p. 175-177).

Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 119

Além disso, Hadewijch escreveu uma obra intitulada Livro das visões135, no qual relata 14 visões por ela experienciadas, algumas ainda na juventude136, as quais, diferentemente do que acontecia com Hildegarda de Bingem que tinha suas visões em total estado de consciência, em Hadewijch, assim como em Beatriz de Nazaré, aconteciam em estado de êxtase e/ou alucinação. Igualmente, assim como em Beatriz de Nazaré, as Visões de Hadewij estavam relacionadas com os tempos litúrgicos: Páscoa, Pentecoste, Natal, Aniversários de Santos, etc. Além disso, eram guiadas, ou tinham como personagem sobrenatural, um anjo, o qual, em seus escritos, recebe o nome de “campanheiro”, conforme diz no início de sua Primeira Visão:

O que me conduzia era um anjo do coro dos Tronos, que tinha como característica própria o discernimento. Porque, com efeito, nesse mesmo dia eu havia crescido em discernimento, e o recebi para que, mais adiante, fosse meu guia e companheiro de todos os meus caminhos. E esse anjo me disse: ‘Narureza humana, recebe a inteligência desde a árvore e saberais o que eis’. E eu compreendi, pois ele revelou-me que a árvore era o conhecimento em si mesmo (HADEWIJCH de Amberes, Visiones, I, 2005, p. 50).

135 Georgette Épiney-Burgard diz que “depois de ter sido celebrada e citada no século XIV por Jan van Ruusbroec e seu discílulo, o Buen Cocinero Jan van Leeuwem, a obra de Hadewijch, da qual só restaram quatro manuscrítos, ficou quase que completamente esquecida até que foi redescoberta no século XIX por investigadores medievalistas, mas também por um poeta como Maeterlinck. A obra apareceu em edição crítica a partir de 1920, graças aos trabalhos de J. van Mierlo” (In: ÉPINEY- BURGARD ; BRUNN, p.153). E graças a isto, completa a mesma comentadora, “se pode dizer que a obra de Hadewijch é muito mais conhecida hoje do que em vida” (Ibid., p. 154). VALLARSA, [s.d.], p. 7, por sua vez, diz que, hoje, os manuscritos das obras de Hadewijch estão reunidos em três documentos, conhecidos pelas letras A, B e C: “Os dois primeiros encontram-se preservados na Biblioteca Real de Bruxelas; o último, na Biblioteca Universitária de Gent”. Partes dos escritos de Hadewijch foram selecionadas, traduzidas e publicadas na seguinte obra: HADEWIJCH. Poesie, visioni, lettere. Scelte e tradotte da Romana Guarnieri. Genova: Editrice Marietti, 2000. 129 p. 136 Em uma pequena passagem da Carta 11, Hadewijch diz que “desde os dez anos me tem iststo e pressionado o amor mais violento”, o que presume-se que tenha vivenciado a experiência visionário desde muito jovem. 120 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Como destaca María Tabuyo Ortega, “o apareciemento do anjo marca a entrada em outra esfera, e esta, por suz vez, o início de etapas sucessivas”, as quais levam Hadewijch a sair e retornar a si mesma, que começa pela metáfora da “árvore” (1ª visão), a árvore do conhecimento e da sabedoria, cujas ramos representam as múltiplas virtudes que se é necessário viver para alcançar o segundo estágio (2ª visão), da sabedoria, para só então iniciar o estágio do Amor (3ª visão), momento em que, as várias vittudes se unem numa só e única virtude, a maior de todas as virtudes, o Amor. A partir deste momento tudo é amor, e o amor é tudo, tudo é descrito na linguagem do amor. A partir da quarta vidão a matáfora da árvore é substituída pela imagem do céu, ou melhor dos céus, quando, guiada pelo “anjo companheiro”, a alma percorre três céus, com suas potestades, os anjos, que culmina com a presença de Cristo, o Cristo Amado, em quem se dá a união definitiva entre o amante e o Amado. Como beguina, Hadewijch defende a ideia de que algumas pessoas chegam a alcançar um tão elevado grau de perfeição (de amor) aqui na terra que superam a necessidade de seguir preceitos institucionais, muito embora, entre os “perfeitos” de sua lista, inclua Hildegard von Bingen, que, como vimos, do ponto de vista eclesiológico, foi uma freira ortodoxa (cf. CIRLOT, 2012a, p. 44)137. Hadewijch faleceu por volta de 1240. Após sua morte, seus escritos influenciaram muitos pensadores ao longo dos séculos, dentre os quais “o grande místico e teólogo flamengo Jan van Ruusbroec, que desenvolveu muitas de suas intuições e ideias, embora de uma maneira mais teológico-sistemática” (BINGEMER, 2013)138.

137 A tradução espanhola da Visões de Hadewijch feita por María Tabuyo Ortega, traz, como pultima parte, a lista completa “dos Pefeitos” que Hadewijch diz ter visto em uma de suas visões, “todos vestidos como Amor e cada um com acampanhado do seu anjo serafim”. Para tal, ver: HADEWIJCH de Amberes. Lista de los Perfectos. In: HADEWIJCH de Amberes, Visiones, I, 2005, p. 50, na qual Hildegarda de Bingen aparece como vigéssima oitava. 138 Reforça essa tese CIRLOT; GARÍ, 1999, p. 103, ao dizer: “Sem nenhuma dúvida, a principal influência direta de sua obra, e possivelmente o mais importante divulgador de seu pensamento, foi Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 121

Chiara de Assis (1193-1253)

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Chiara Offreduccio ou Chiara di Assis (em português, Clara de Assis), filha de Faverone Offreduccio, conde de Sasso-Rosso, e Ortolana di Fiumi, nasceu na cidade de Assis - Itália - em 16 de Julho de 1193139. Desde tenra idade, destacou-se por sua caridade e respeito para com os pequenos, tanto que, ao deparar-se com a pobreza evangélica vivida por São Francisco de Assis, a quem conheceu ao vê-lo pregar pela primeira vez na Catedral de São Rufino, em Assis, em 1210, foi tomada pela irresistível vontade religiosa de segui-lo. Pouco tempo depois, em 1215, aos dezoito anos de idade, enfrentando a oposição da família, que pretendia arranjar-lhe um casamento vantajoso, Chiara di Assis abandonou seu lar para seguir radicalmente a Jesus.

Jan van Ruusbroec [...]. Além disso, as supracitadas comentadoras vêem uma estreita relação entre as obras de Hadewijch e as obras de Beatriz de Nazaré (1200-1268), de quem falamos no capítulo anterior, quando afirma: “Dos escritos em neerlandês de Beatriz só conservamos um pequeno tratado acerca do amor, no qual ressoam significativamente os ecos de Hadewijch, especialmente a carta 20, que a beguina dedica às doze horas do amor [...]”. (p. 102). A referida Carta teria grande relação com a obra Sete maneiras de amor sagrado, de Beatriz de Nazaré (p. 103). 139 A vida de Chiara di Assis chegou até nós principalmente pela Legenda de Santa Clara (também chamada de Legenda Menor), escrita por Tomás de Celano, seu assistente e primeiro biógrafo, além do Processo de Canonização e dos seus escritos, sobre os quais falaremos mais adiante. 122 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Para isso, num primeiro momento, seguindo o conselho de São Francisco, ingressou no Mosteiro beneditino de São Paulo das Abadessas, com o objetivo de familiarizar-se com a vida religiosa. Ainda em 1215, São Francisco levou-a para o Convento Franciscano de São Damião, onde seria criada a Ordem Segunda Franciscana, com um convento feminino, tendo Chiara di Assis como primeira superiora140. Primeiramente as religiosas que ali de instalaram foram chamadas “Damianitas”, depois, Irmãs da “Ordem das Damas Pobres” e, finalmente, mais tarde, pela importância de Chiara di Assis, de “Irmãs Clarissas”, como são chamadas até hoje. Além de virtuosa, Chiara di Assis foi excelente escritora. Seus escritos - quatro Cartas a Inês de Praga (1ª - 1234; 2ª - 1235; 3ª - 1238; 4ª - 1253)141, uma Carta a Ermentrudes de Bruges (1240)142, o Testamento (1247), uma Bênção (1253) e uma Forma Vitae (1247) (Forma de Vida)143 (também chamada de Regras, a serem seguidas pelas monjas de sua Ordem das Damas Pobres ou Clarissas) 144 - demonstram que ela recebeu uma formação muito boa para seu tempo, inclusive em latim, uma vez que a Forma Vitae foi escrita em latim. Além disso, segundo José Carlos Freire, “todos os escritos devem ter sido do próprio punho de Clara. O único que pode ter

140 Embora tenha criado a Ordem feminina franciscana das “Damas da Pobreza”, as religiosas que ali viviam seguiam a Regra de São Bento, adaptada pelo Papa Gregório IX. Só em 1252, um ano antes de falecer, é que Clara de Assis escreveu sua própria Regra (Forma Vitae), que seria aprovada pelo Papa Inocêncio IV dois dias antes do falecimento da Santa. 141 Inês de Praga ou da Boêmia (1205-1282) era filha do rei Otocar I, da Boêmia, e da rainha Constância, da Hungria. Ingressou na Ordem das Damas Pobres ou Clarissas, em 1234. Nunca conheceu pessoalmente Chiara di Assis, mas admiravam-se mutuamente e trocaram algumas cartas. 142 Ermentrudes de Bruges nasceu em Colônia, na Alemanha, onde seu pai ocupou um cargo público. Dedicando-se a Deus, começou a peregrinar pelas regiões ribeirinhas do Reno e chegou a Flandres, onde se estabeleceu como írmã clarissa e fundou diversos mosteiros. Em 1253 viajou para a Itália com a intenção de visitar Chiara di Assis, mas quando chegou a Roma soube que ela tinha morrido. 143 Na página há uma tradução anônima para o português, com ricas introduções, das obras completas de Chiara di Assis. 144 Todos os comentadores, dentre eles FREIRE, 2000, p. 11, enfatizam que Chiara di Assis foi a primeira mulher a escrever uma Forma de Vida (Regra) para uma Ordem Religiosa, a qual foi aprovada pelo Papa Inocêncio IV, em 1253. Cf. também SILVA, 2008, p. 82. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 123 sido ditado é a 4ª Carta a Inês, escrita pouco antes da morte, quando já estava bastante doente” (2000, p. 16). Em 1247, o Papa Inocêncio IV publica a bula de aprovação canônica da Ordem das Damas Pobres ou Clarissas. Chiara di Assis veio a falecer em 11 de Agosto de 1253 e foi sepultada na Igreja de São Jorge, onde São Francisco estava enterrado. Em 1260, depois de construída a Basílica de Santa Clara, ao lado da Igreja de São Jorge, seu corpo foi transladado para lá com todas as honras, e aí se encontra exposto, em uma urna de vidro, até os nossos dias. Ainda em 1253, três meses depois de seu falecimento, instaura-se um Processo de Canonização, que só veio a ser concluído em 1255, pelo Papa Alexandre IV. Em 14 de fevereiro de 1958 o Papa Pio XII declarou Santa Clara "celeste padroeira da televisão", em alusão a uma de suas visões, quando, estando enferma em uma sela, descreveu detalhadamente uma celebração eucarística sem que lá estivesse, como se tivesse assistido pela televisão.

Beatrijs van Nazare (1200-1268)

Fonte: http://www.dolfi.com/pt/santa-beatriz-da-nazare.asp

Beatrijs van Nazare (em português, Beatriz de Nazaré), nascida em 1200, é a sexta filha de uma modesta família de Tienen, próximo a Lovaina - Holanda, conforme está escrito no início de 124 | Mulheres Intelectuais na Idade Média sua biografia (Vita Beatricis), escrita após sua morte, em 1275, por um capelão confessor (anônimo) do monastério de Nazareth onde ela vivia e foi prioresa por cerca de trinta anos145:

Na cidade antigamente chamada de Tienen, sob a a autoridade dos duques de Brabante ou de Lotaringia, na diocese de Lieja, Beatriz, discípula de Cristo, nasceu de pais de modesta condição (In: BEATRIZ de Nazaré, Los siete modos de amor, I, 2004, p. 64).

Mas, apesar de ser orienda de uma família modesta, sob os cuidados de sua mãe Gertrudis, desde cedo Beatriz recebeu uma boa formação escolar, de forma que, sendo o mesmo biógrafo, “com a idade de cinco anos podia recitar o saltério de Davi” (Ibid. I, 19, p. 66). Aos sete anos de idade, com a súbita morte da mãe, seu pai, Bartolomeu, que terá seu nome sempre ligado ao da filha, entrega Beatriz a uma comunidade de beguinas de Zoutleeuw, ficando com ele seus dois irmãos e suas três irmães. Na comunidade das beguinas, “durante algum tempo assitiu também a uma escola de artes liberais, e ali foi formada nas disciplinas escolares nas quais havia sido iniciada por sua mãe” (Ibid., I, 21, p. 66). Mas, por razões desconhecidas, dois anos depois volta a casa do pai sem ter acabado o trivium (gramática, retórica e dialética). Em anos depois, em 1210, seu pai ingressou no mosteiro cistercense de Bloemendaal-Florival, como irmão leigo admistrador, levando consigo toda a sua prole. Ali Beatriz passou a viver como oblata (leiga consagrada), “onde completa o programa de estudos, o trivium quadrivium (música, aritimética, geometria e astronomia)” (Ibid., I, 23, p. 67).

145 Georgette Épiney-Burgard acrescenta a informação que “esse religioso, que ainda não pôde ser identificado, não conheceu Beatriz, mas dispunha de um Livro de Vida, um diário em neerlandés da Beata, e das recordações comunicadas por suas irmães religiosas e sua própria irmã Cristina. Este confessa não ter retocado mais que muito ligeiramente esse diário, ‘pulindo o estilo de uma língua vacilante’, adornando-a com as figuras de estilo da retórica latina” (In: ÉPINEY-BURGARD ; BRUNN, p.121). Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 125

Em 1215, ou seja, aos quinze anos de idade, tornou-se noviça, abraçando uma vida de extrema austeridade, usando um cinto de espinhos e comprimindo seu corpo com cordas. No ano seguimte foi enviada ao scriptorium do mosteiro de Rameya, para aprender o ofício de copista, com vista à confecção de livros litúrgicos. Nesse mosteiro, famoso pelo trabalho de suas miniaturistas, Beatriz não só aprende, pelas mãos de Ida de Nivelles (1199-1231), a arte de escrever e copiar manuscritos, mas ao mesmo tempo desenvolve uma estreitíssima amizade para com esta. Ida de Nivelles, que antes de ser professora em Cister, havia sido por seis anos beguina em Nivelles, a cidade de Maria de Oignies (cf. CIRLOT; GARÍ, 1999, p. 109). Essa convivência com Ida de Nivelles (ex-beguina) influenciaria profundamente Beatriz, que, poucos anos depois, no Natal de 1217, teria sua primeira visão mística, seguida depois por outras, das quais resultaria sua obra. Em 1221, Beatriz, seu pai e seus irmãos, foram transferidos para o recém-construído mosteiro de Bloemendaal-Tienen, onde, aos vinte e seis anos de idade, Beatriz professa os votos perpétuos, tornando-se monja beneditina. Em 1236, já como monja respeitada na comunidade, foi enviada, junto com seu pai e irmãos, e mais duas irmães (Cristina e Sibila) para fundar o mosteiro feminino de Nazaré, em Lier-- Brabant, na Bélgica, passando a ser a primeira priora da Abadia de Nossa Senhora de Nazaré, cargo que exerceu até sua morte. A partir de então passou a ser conhecida por Beatriz de Nazaré (cf. VALLARSA, [s.d.], p. 78). Em suas visões, que, como vimos, começaram em 1217, diz que “o Senhor da misericórdia transpassou de repente sua alma com fogo do seu amo, como uma flecha ardente, e penetrou seu coração como uma espada em chamas” (Vita Beatricis, II. In: BEATRIZ de Nazaré, Los siete modos de amor, I, 2004, p. 70), daí o sentido da foto acima. Essas visões foram postas por ela, a partir de 1232, em tábuas de cera, dando origem à sua única obra Uan 126 | Mulheres Intelectuais na Idade Média seven manieren van heileger minne146 (Sete maneiras de amor sagrado)147, que seria a primeira obra em prosa no idioma neerlandês148, a qual chegou até nós por ter sido traduzida para o latim, incorporada à supracitada biografia (Vita Beatricis)149. Sete maneiras de amor sagrado é uma obra de literatura mística primitiva que descreve sete degraus, modos. maneiras ou

146 María Tabuyo Ortega na introdução a sua tradução espanhola: “Los siete modos de amor”, esclare que “a palavra Minne, feminina em neerlandês e alemão antigo e que se traduz habitualmente por amor, tem originalmente um significado muito mais amplo e guarda reminiscências platônicas. Com efeito, relacionada etimologicamente com os vocábulos latinos menini, mens (inglês mind, casteliano mente), seria, por sua parte, o pensamento, a memória, presente e viva no coração, da pessoa amada, já personificada na poesia trovadoresca; mas se relacionaria também com a anamnesis, a recordação das ideias, o conhecimento do Bem, a Verdade e a Beleza. Nossas místicas identificaram Minne-Amor com Deus, pois Deus é Amor, mas também com o amor vivido e padecido por todos os que amam, e com a recordação. Eis aqui onde radica sua riqueza maior e assim, mantendo-se na mais pura tradição do amor cortés, transcendendo-la a Minnemystik se une com a mística do ser ou especulativa; a experiência é conhecimento, sabedoria que transfigura: entregar-se a Minne-Amor e devenor Minne-Amor, ‘ela é amor e o amor reina nela’, dirá Beatriz de Nazaré, é gozar de ‘uma doce igualdade com nosso Senhor e de um conhecimento íntimo de Deus’. Pois a amante se enontra submergido, abismado no amor, engolido por ele: ela mesma já não é mais que amor” (In: BEATRIZ de Nazaret, Los siete modos de amor, 2004, p. 14-15). 147 Segundo, María Tabuyo Ortega, em sua introdução geral a tradução espalhola da obra de Beatriz de Nazaré, durante séculos esta obra esteve desaparecida, até que “em 1923, o jesuita Leonce Reypens encontrou, entre um velho legado de finais do século XIII, um texto anônimo que atraiu poderosamente sua atenção; se tratava de Os Sete Modos de Amor, e dois anos mais tarde pude estabelecer o nome da autora: Beatriz de Nazaré” (In: BEATRIZ de Nazaret, Los siete modos de amor, I, 2004, p. 9). Ainda segundo a mesma tradutora, “a obra de Beatriz, junto com a de outra mística esplêndida que foi a beguina Hadewicjch de Amberes (com a qual guarda mais de um ponto de contato), é o documento literário mais antigo em neerlandés médio ou flamengo, e a obra de ambas teve uma enorme influência na mística posterior” (Ibid., p. 10). 148 Cf. POS, Arie. Um tratado memorável – sobre Sete maneiras de amor sagrado. In: BEATRIZ de Nazaré. Sete maneiras de amor sagrado, 2018, p. 25, onde tambpem avrcrrscenta que na referida obra a aufora “procurava um contacto mais pessoal com Deus através de uma mística feminina do amor e do noivo baseada na interpretação do Cântivo dos Cânticos de Bernardo de Claraval e Guilherme de Saint-Thierry” (Ibid), no caso deste último a obra De natura et dignitate amoris. 149 Segundo Joana Serrado, nos Estudos Introdutórios à tradução portuguesa na obra de Betraiz de Nazeré, em sua Vita Beatricis, o seu biógrafo anônimo dar-nos notícias de muitas outras obras de Beatriz de Nazaré, todas em latim, as quais se perderam, a saber: “De frequentatione et exercitio temporalis (Vita II, 2); De tripici exercitio spiritualium affectuum (Vita II, 3); De duabus cellis quas in corde suo constituit (Vita II, 5); De quinque speculis cordis sui (Vita II, 6); De monasterio spiritual (Vita II, 7); De ordo fructifero cordis suo (Vita II, 9); De eo quod ad cognitionem sui ipsius omnimodam aspiravit (Vita II, 10); De quadam ordinatione vitae spiritualis quam aliquanto tempore exercuit (Vita II, 11), e duas orações: O Domine juste e O justissime, O potentissime Deus” (In: BEATRAIZ de Nazaré. Sete maneiras de amor sagrado, 2018, p. 12). Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 127 estágios de amor. Uma espécie de itinerário através do qual a alma (o homerm caído com o pecado) é purificada e transformada antes de poder voltar a Deus150, e está estruturada da seguinte forma: O 1º degrau fala do desejo ou saudade de Deus que nos criou à sua imagem e semelhança, ou, como diz a autora:

A primeira é um desejo que surge por obra do amor; tem de reinar muito tempo no coração antes que consiga expulsar bem todos adversários e tem de trabalhar com força e com engenho, aumentando corajosamente neste ser. Esta maneira é um desejo que seguramente provém do amor, isto é, que a boa alma, que queira servir fielmente o nosso Senhor e piamente segui-lo e verdadeiramente amar, é transportada para o desejo de obter e de estar na pureza, na liberdade e na nobreza em que foi criada pelo seu criador segundo a sua imagem e semelhança, que deve amar muito e guardar bem [...] (BEATRIZ de Nazaré, Sete maneiras de amor sagrado, I, 5-10, 2018, p. 49).

O 2º degrau, da natureza totalmente desinteressada e gratuita do amor, introduz a alma no dinamismo interior do amor puro que permeia todas as atividades do ser humano e que ficou conhecido pelo nome de “amor sem porquê”, momento em que Beatriz se utiliza da imagem simbólica da donzela, que serve ao seu senhor sem buscar recompensa, para explicar esse tipo de amor:

Por vezes ele tem também uma outra maneira de amor, isto é, que ela procura servir o nosso Senhor sem contrapartida, somente por amor, sem qualquer porquê e sem qualquer recompensa de graça ou glória, e assim como uma donzela serve o seu senhor por grande amor, e sem paga, dando-se por satisfeita que pode servi-lo e que ele consente que o sirva, assim ela deseja o amor por amor, sem medida e excessiva, e acima de sentido e razão humanos, com todo o serviço de fidelidade (Ibid., II, 5-10, 2018, p. 53).

150 Aqui Georgette Épiney-Gurgard vê uma clara influência do neoplatonismo no pensamento de Beratriz de Nazaré, ao dizer: “O amor toma sete formas que vêem de cima (uten hoegsten) e voltam ao cumo (ten oversten). O amor parte do que há de mais alto e a ele volta: movimento neoplatônico da saída e do retorno” (In: ÉPINEY-BURGARD ; BRUNN, p.133). 128 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

O 3º degrau é o momento do sofrimento ou tortura por parte da alma, que padece por não poder servir a Deus com amor perfeito, por causa de sua natureza decaída. É o momento em que, segundo a própria Beatriz,

Uma outra maneira de amor tem a boa alma em tempos que envolvem muitas dores e sofrimentos, isto é, que deseja satisfazer o amor e segui-lo em toda a honra, e em toda a obediência e em toda a submissão do amor. Este desejo é por vezes muito tempestuoso na alma, e assim ele procede com forte desejo a fazer todas as coisas, aspirando a todas as virtudes, sofrendo e suportando tudo, e praticando todas as suas obras no amor sem poupar e sem medida [...] (Ibid., III, 5-10, 2018, p. 55).

No 4º degrau Beatriz começa a descrever as primeiras experiências positivas, que serão completadas no degrau V. É o primeiro passo da união com Deus. Momento em que

por vezes acontece o amor ser despertado docemente na alma, levantando-se alegremente e manifestando-se no coração sem qualquer contributo de ação humana. E assim o coração é tão tenramente tocado de amor, tão desejavemmente transportado para o amor e tão ardentemente agarrado pelo amor e tão violentamente dominado pelo amor, e tão carinhosamente abraçado no amor que fica totalmente vencido com amor [...] (Ibid., IV, 5-25, 2018, p. 59).

O 5º degrau acontece quando a alma afeta o corpo e, juntos, abraçam ou buscam o amor com toda força, conforme diz a própria Beatriz:

Por vezes acontece também o amor ser despertado fortemente na alma, levantando-se tempestuosamente com grande ímpeto e grande fúria como se com violência fosse partir o coração transportando-o para fora dele e para acima dele na prática do amor e na aspiração ao amor. E ao mesmo tempo é também Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 129

transportado para o desejo de realizar as obras grandes e puras do amor ou de cumprir as múltiplas exigências do amor [...]. Quando está nisto, está tão fortemente no espírito e muito empreendedora no coração, e mais acordadas no corpo, e mais célere nas obras, e muito ativa por fors e por dentro, pelo que lhes parece que tudo nela esteja ativo e ocupado, mesmo que esteja toda tranquila por fora [...]. Entretanto, o amor torna-se tão desmedido e tão transbordando na alma quando se manifedst tão fortre e com fúria no coração, que lhe parece que o coração seja frequentemente dolorosamente ferido e que as feridas sejam renivadas continuamente, doendo em sofrimentos dolorosos e novas presenças. E assim lhe parece que suas veias se abrissem e o seu sangue se esvaísse e sua medula definhasse e as suas pernas enfraquecessem, e o seu peito arfdesse e a sua garganta secasse, pelo que o seu rosto e todos os seus membros sentem por dentro o calor e a fúria do amor [...] (Ibid., V, 5-25, 35-45, 2018, p. 63-65).

E mais adiante, relacionando este estágio com uma de suas visões, Beatriz diz “por vezes sente também que uma seta perpassa repetidamente o coração para a garganta e asiante até ao cérebro como se fosser perder a razão. E assim como um fogo devorador que engole tudo o que consiga dominar, assim ela sente que o amor está a lavrar furiosamente dentro dela, sem poupar e sem medida, engolindo e consumindo tudo” (Ibid., V, 45-50, 2018, p. 65). Foi esse o momento em que Jesus lhe apareceu e perfurou seu coração com um dardo de fogo, conforme acenamos anteriormente. O 6º degrau ou estágio se contrapõe ao quinto, uma vez que agora a tormenta do amor se transforma em um estado de repouso absoluto, ou melhor, o amor triunfa sobre seus sentidos. Esse é o momento em que a alma

[...] sente então que o amor venceu todos os seus adversários dentro dela e que corrigiu os defeitos e dominou os sentidos e adornou de virtude o caráter e aumentou e elevou o ser, e ganhou poder completo sem contradição sobre ela própria, pelo que 130 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

controla o coração em segurança, podendo fruir em sossego e devendo esforçar-se em liberdade [...]. Assim sente então um poder divino e uma pureza clara e uma doçura espiritual, e uma intensa liberdade e uma sabedoria discernente, e uma suave igualdade com nosso Senhor, e um conhecimento próximo de Deus [...]. Então ela é como uma dona de casa que tem sua casa bem organizada e sabiamente governada, e belamente ordenada, previdentemente protegida, e sensatamente guardada, trabalhando com discernimento; e ela manda entrar e sair, e faz e deixa de fazer segundo a sua vontade; assim é também com esta alma, ela é amor e o amor reina nela de forma dominante e poderosa, trabalhando e descansando, fazendo e deixando de fazer por fora e por dentro segundo e sua vontade [...] (Ibid., V, 45-50, 2018, p. 65).

Finalmente, no 7º degrau ou estágio a alma desemboca na verdadeira união mística, pela qual entra em uma ininterrupta união amorosa, que a enche de fruição e paz, até chegar ao alcance do gozo imediato de Deus, na bem-aventurança eterna, quando a alma

[...] é transportada acima de humanidade no amor, e acima de sentido e razão humanas, e acima de todos os trabalhos do nosso, sendo transportada unicamente com o amor eterno para a eternidade do amor e para a incompreensibilidade, para a amplidão e para a vastidão, e a inacessível altura e o profundo abismo da divindade, que está em todas as coisas e que continua incompreensível acima de todas as coisas e que é imutável, omnipresente, omnisciente e omni-dominante [...] )( Ibid., VII, 5- 10, 2018, p. 75).

É o momento da contemplação direta de Deus, alcançada pelo êxtase ou visão mística, ao qual outros místicos medievais deram o nome de “visão unitiva”, a qual Beatriz alcançou mediante suas visões. Beatriz de Nazaré faleceu em 29 de agosto de 1268 e foi sepultada no mosteiro de Nazaré, onde era superiora. Depois de Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 131 algum tempo, seu corpo desapareceu, quando se passou a acreditar que teria sido abduzido pelos anjos. A Igreja comemora sua festa no dia 29 de Agosto.

Mechthild von Magdeburg (1207-1294)

Fonte:

A mais fecunda e importante das três místicas de Helfta é sem dúvida Mechthild von Magdeburg (em português, Matilde de Magdeburg), nascida na Sajonia por volta de 1207151, provavelmente, de família nobre152, onde recebeu uma boa

151 Cf. VILLENA, Almudena Otero. Prologo. In: MATILDE de Magdeburgo, 2016, p. 9. Já a comentadora Émilie Zum Brunn coloca como período do nascimento de Matilde de Magdeburgo entre 1207 e 1210 (In: ÉPINEY-BURGARD ; BRUNN, p. 85). Ingeborg Gleichauf, por sua vez, estende esta data para 1212 (cf. 2010, p. 30). 152 Cf. BRUNN, Émilie Zum, Matilde de Magdebrugo (1207/1210-1282/1294). In: ÉPINEY-BURGARD ; BRUNN, p. 85-86, nota 1, questiona essa informação, ao dizer: “Se há admitido sempre que Matilde tenha pertencido a nobreza. Se encontra, com efeito, em numerosas passagens de seu livro, alusões a vida ‘acomodada’ que levava em sua juventude e aos bens do mundo que havia desfrutado se não hpuvesse sacrificado tudo por amor a Deus [...]. Por outra parte,nas referências a Baudoin, o irmão de Matilde, se fala dos bons costumes e das virtudes em que foi educado em sua infância, e se entende que se há de entander por isso a educação esmerada dos jovens nobres da qual também a irmã deveria ter gozado, [...] em que se pode ver um argumento a favor da ogigem nobre destes. Sem embargo, a questão não nos parece resolvida, e só estamos meio convencidos por todas as razões evocadas. É evidente possível que Matilde nsceu em uma família ‘acomodada’, mas não cremos suficietemente demosntrado que haja prtencisdo a nobreza, como repetem os atigos dos dicionários e os prefácios que saem a encabeçar os extrados de seus livros. Não temos contra as conclusões habituais mais que um único argumento, mas este nos parece de maior peso que vários nos quais se apóiam: é o silêncio dos primeoros redadotes e de 132 | Mulheres Intelectuais na Idade Média formação educacional153, e que, com aproximadamente vinte anos de idade, abandonou a família e a vida mundana para viver entre as beguinas154 de Magdeburgo, em rigorosa vida de estudos e quem a conheceram”. Dentre as poucas passagens em que Mechthild von Magdeburg fala sobre seus familiares, na obra A luz que flui da divindade diz que “enquanto viveu com seus parentes e amigos foi sempre muito querida (cf. IV, 2, 2016, p. 174), e mais adiante refere-se por duas vezes a um irmão carnal, de nome Baudoin, que chegou ao cargo de superior da Ordem dos Predicadores, no mosteiro dominicano de Halles (Cf. IV, 26 e VI, 42). 153 Afora a controvérsia se Maltilde pertenceu ou não a nobreza, segundo REINHARDT, 2007, p. 21, “é de supor que desde a infância ela tenha recebido uma educação esmerada, como se deduz de sua linguagem e de sua familiaridade com os costumes da corte; tudo leva a pensar que se tratava de uma Domina”, ou seja uma nobre. E, mais adiante, p. 27-28, ao falar das fontes ou influências sobre sua obra, Elisabeth Reinhardt chama a atenção para o fato de que, além de demonstrar grande conhecimento das Sagradas Escrituras, “a base teológica da obra, em primeiro lugar, pode encontrar-se na tradição patrística, como São Gregório Magno, Santo Agostinho, Orígenes e o Pseudo-Dionísio [...]. Também muitas metáforas e parábolas de Matilde têm sua base na patrística grega e latina [...]. Ademais, existe um ponto claramente perceptível com a teologia monástica do século XII, especialmente São Bernardo de Claraval e Guilhermo de Saint-Thierry, assim como com os victorianos [...]. A autora tem um conhecimento amplo da doutrina imago Dei, com suas raízes bíblicas e patrísticas. No modo de apresentar a mística se encontram ressonâncias de Ricardo de São Victor [...]. Encontra-se, além disso, um paralelismo com as obras de Tomas Gallo de Vercelli, concretamente seus comentários ao Pseudo-Dionísio, em torno de 1230, e com o Cântico dos Cânticos, respectivamente [...]. Quanto às fontes teológicas extra-acadêmicas, cabe incluir, do século XII, Hidelgarda de Bingen, no que se refere à doutrina da criação, à escatologia e à eclesiologia, e, do século XIII, a beguina Hadewijch, cuja língua Matilde podia entender”. Isso leva a crer que Matilde de Magdeburgo era uma mulher culta, apesar de se apresentar como “ignorante ou iletrada”, ou dizer que seu conhecimento provinha unicamente de suas visões místicas, o que era típico das mulheres místicas medievais. Já RASCHIETTI, 2009, p. 86-87, é mais categórico ao afirmar que “ao contrário de Eckhart, Mechthild nunca cita suas fontes; mesmo assim, procedendo por analogias e comparação, é possível individuar na Bíblia (Antigo e Novo Testamento), na Patrística e no Pseudo-Dionísio Areopagita, a nascente de onde provém sua inspiração”. 154 Segundo SARANYANA, 1999, p. 248-9, ainda hoje “se discute muito acerca da origem das Beguinas. O mais provável é que se tratava de associações de mulheres piedosas que levavam vida em comum sob a direção de uma ‘mestra’ e se dedicavam à piedade e às obras de caridade”. Igualmente, diz ZAMBONI, p. 30: “As beguinas eram mulheres que decidiam seguir uma vida de cunho religioso, vivendo juntas em certos quarteirões da cidade grande. Não estavam ligadas a nenhuma autoridade da Igreja [...]. Escolhiam um gênero de vida modesto, que se aproximava aos movimentos religiosos mais radicais, que escolhiam a pobreza como modo de vida”. Ou seja, trata-se de leigas penitentes que, segundo VAUCHEZ, 1995, p. 120, “viviam em comunidade sob a direção de uma delas, sem pronunciarem votos religiosos propriamente ditos e associando o trabalho manual e a assistência aos doentes a uma intensa vida de oração”. E, mais adiante, completa: “Eram celibatárias ou viúvas que, em idade adulta, assumiram uma vida religiosa individual ou comunitária, uma vivência associada à prece, à prática da caridade e ao trabalho manual” (p. 152). Por isso, não eram reconhecidas pela hierarquia oficial da Igreja, antes, pelo contrário, foram consideradas heréticas, adeptas ou simpatizantes da “heresia do Espírito Livre”, pelo Concílio de Viena, em 1311-1312, conforme informa RICHARDS, 1993, p. 73: “Beguinas e beguinos foram acusados e sentenciados por serem adeptos da ‘heresia do Espírito Livre’. ‘O Espírito Livre’ era um estado de espírito, relacionado estritamente com o movimento místico ortodoxo. Seus adeptos eram indivíduos, muitos dos quais mulheres, cuja principal motivação era a busca da perfeição espiritual. Eles esperavam atingi-la Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 133

155 penitência, o que marca o início de sua vida espiritual . Mechthild von Magdeburg conviveu por cerca de trinta anos com as beguinas156, mas, com o decorrer de suas experiências místicas, especialmente a partir dos quarenta e dois anos, quando começou através da imitação da vida apostólica e enlaçando, no decorrer de suas vidas, uma união total e permanente com Deus. De fato, acreditavam que alcançar este estado de perfeição os tornaria incapazes de pecar e os libertaria das restrições morais convencionais e da obediência à Igreja. Esta posição de amoralismo teórico facilitou aos adversários do Espírito Livre deduzir dela um padrão de imoralidade real e ativa. Mas, na realidade, eles acreditavam que a perfeição só poderia ser alcançada pela prática do extremo ascetismo e de uma vida apostólica”. E, na página seguinte, conclui: “No concílio de Viena (1311- 12), o papa Clemente V editou uma Bula que denunciava a heresia do Espírito Livre e condenava as beguinas por violarem a proibição da criação de novas ordens” (p. 74). Finalmente, outra fonte que nos leva a entender o que venha a ser uma beguina ou o movimento das beguinas, encontramos no verbete do Dicionário Italiano de Mística, que, ao definir a palavra, diz: “O termo francês begin[e], originalmente utilizado no Brabante Meridional, nos territórios de Liège e nas regiões renanas, pode ser uma corrupção popular de albigenses, mais provavelmente, do antigo anglo-saxônico beggen (pregar, mendigar), ou ainda, mais provavelmente, do antigo francês bege (tipo de lã grossa ou não tingida) com o sufixo inus, ou seja, beg(u)inus, pessoa que usa vestes dos hereges (cátaros ou lulardos)” (BORRIELLO, et al. (orgs.), 1998). Já Falbel diz que, “de acordo com a lenda do século XV, a corporação teria sido fundada por Santa Bega (†694), filha de Pepino, o Velho, ou pelo pregador Laberto, le bégue (o gago) ou le béguin, em Liège, em 1177. Outros pensam que o nome deriva de albigenses, ou talvez do hábito beige (= bege, lá em seu estado natural) das mulheres” (FALBEL, 1976, p. 81). Mas, apesar de condenadas pela Igreja, Sandra Ferrer (2013) nos lembra que, se por um lado “as beguinas tiveram grandes detratores, também tiveram homens de Igreja que defenderam seu modo de viver: Roberto Gossateste, Roberto de Sorbon e o rei São Luís IX de França, chamado ironicamente de o pobre rei das beguinas. Jacques de Vitry, cônego agostiniano e futuro bispo de Acre, foi outro de seus defensores. Confessor e amigo de Marie d’ Oignies (beguina), defendeu sempre as beguinas”. 155 Além de Matilde de Magdeburgo, AMARAL, 2012. p. 51, ao definir o que vêm a ser as beguinas, traz uma lista das principais mulheres intelectuais medievais que fizeram parte desta heresia: “As ordens religiosas femininas se organizam e são tradicionalmente constituídas de acordo com as normas aprovadas pelas autoridades eclesiais. No seio da vida religiosa cristã surgem as Mulieres religiosae – termo usado na época para resguardar as formas menos estruturadas de vida pessoal, religiosa e devocional de mulheres que não possuíam o status social convencional: não casavam, não entravam na vida religiosa da Igreja, abandonavam o lar de origem e viviam uma vida de castidade, devoção, caridade e oração. Para Bernard McGinn, o inesperado fato de um grande número de mulheres seguirem o modelo do pathos de Maria Madalena na história da redenção e salvação de Cristo, como modos de vida mística e devocional, surpreende em toda Europa medieval, nos séculos XII, XIII e XIV. Essa forma de vida religiosa, extraclaustro e semi-religiosa, teve sua origem nos países de língua germânica, no vale do Reno, como é o caso de Hadewijch de Antuérpia, Beatriz de Nazareth e Mechthild de Magdeburgo, nos séculos XI e XII; Ângela de Foligno, no final do século XIII, e Catarina de Sena, no séc. XIV, na Itália; na França, Margarida d’Oingt (Lyon) e Marguerite Porete (Valencia); na Inglaterra (séc. XV), Juliana de Norwich ; Guilherma de Boêmia que viveu em Milão em 1260, como beguina”. 156 A informação de que Matilde de Magdeburgo tenha convivido com as beguinas encontra-se no prólogo de sua própria obra, escrito provavelmente por seu copista, que diz: “No ano de 1250 depois de Cristo e durante aproximadamente quinze anos a partir desta data, este livro foi revelado por Deus a uma beguina (irmã) em língua alemã [...] (In: CIRLOT; GARÍ, 1999, p. 143). 134 | Mulheres Intelectuais na Idade Média a colocar por escrito essas experiências (visões)157, propondo reformas profundas em sua comunidade, começou a ser criticada e hostilizada por suas companheiras de comunidade. Depois de sofrer muito com as perseguições não só por parte do clero mas das próprias beguinas, em 1270 resolveu deixar a comunidade beguina e abraçar a vida religiosa158, tornando-se monja do mosteiro cisterniense feminino de Helfta, perto de Eisleben (cidade onde mais tarde nasceria Martinho Lutero, em 1483), onde passou o resto de sua vida, sob a proteção da abadessa Mechthild von Hackeborn e da mística Gertrudes, a Grande, sob a orientação espiritual/intelectual dos Dominicanos, especialmente de Enrique de Halle e Wichmann von Arnstein, amplamente mencionados por ela. Ali, na companhia de Mechthild von Hackeborn e Gertrudes, a Grande, Mechthild von Magdeburg encontrou ambiente propício para desenvolver sua experiência mística. Ao entrar para a vida religiosa, encorajada e auxiliada pelo dominicano Enrique de Halle, Mechthild von Magdeburg continuou a escrever sobre sua vida mística, prosseguindo o trabalho que havia iniciado ainda quando estava entre as beguinas e que ali não era incentivada a tal, antes, pelo contrário, recebia severas críticas, conforme ela mesmo diz: “Temo a Deus quando me calo, mas quando escrevo, temo aos homens que não me entendem”. Os seus escritos foram organizados por Enrique de Halle em sete livros, recebendo o título, em baixo-alemão, de Das Flie ßende Licht der Gottheit (A luz que flui da divindade)159, nome

157 Embora só tenha começado a escrever suas visões na vida adulta, Matilde de Magdeburgo teve suas primeiras experiências místicas (visões) quando ainda era crianças, aos doze anos de idade (cf. MATILDE de Magdeburgo. La luz que fluye de la divindad, IV, 2, 2016, p. 174). Bem como, vale salientar também que, diferentemente de Hildegard, que tinha suas visões em pleno estado de lucidez, Santa Matilde de Magdeburgo recebia suas visões em estado de êxtase. 158 A esse respeito diz Émilie Zum Brunn: “Se pensa que foi o intento de fugir das calúnias e das perseguições que a levou a retirar-se na velhice no convento cisterciense de Helfta, junto a abadessa Gertrudes de Hackeborn” (In: ÉPINEY-BURGARD ; BRUNN, p. 87). 159 Essa é uma tradução nosssa da forma como aparece o título da obra de Marilde de Magdeburgo na tradução espanhola da Herder - Das Flie ßende Licht der Gottheit (La luz que fluye de la divindad) (cf. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 135 que lhe fora dado em visão pelo próprio Deus, conforme está escrito no prólogo ao Livro I: “Oh, Senhor, quem terá feito este livro? O fez eu, incapaz de conter meus dons160. Oh, Senhor, como se deve chamar este livro para que sirva unicamente a tua glória? Deve se chamar a luz que flui de minha divindade em todos os corações que vivem sem falsidade” (MATILDE de Magdeburgo. La luz que fluye de la divindad, I - prol., 2016, p. 69 - grifo nosso), que foram sendo publicados paulatinamente, tendo os seis primeiros sido publicados quando ela ainda estava em vida161. Pouco tempo

2016). Já o comentador Émilie Zum Bruno, assim coloca/traduz o mesmo título: Das Fliessende Licht der Gottheit (La luz resplandecente de la divindad) (cf. In: ÉPINEY-BURGARD ; BRUNN, p. 86) 160 Apesar de ter recebido uma boa formação intelectual entre as beguinas, Mechthild von Magdeburg, a exemplo da maioria das mulheres místicas medievais, apresentava-se como uma mulher indouta, justificando que o que escrevia não vinha de si, mas de uma luz que falava através dela, conforme encontramos em uma de suas cartas ao seu confessor: “Mestre Heinrich, você está surpreso com algumas palavras escritas neste livro [...]. De fato, desde que eu, mulher pecadora, fui requerida a escrever, tem sido uma questão de grande aflição em meu coração que eu seja capaz de escrever este autêntico conhecimento [...]. Eu perguntei ao Mestre Eterno o que Ele tinha a dizer sobre disto. Ele respondeu: ‘pergunte como aconteceu com os apóstolos: depois de terem sido tímidos, tornaram-se tão audazes depois de terem recebido o Espírito Santo’” (MATILDE de Magdeburgo apud NASCIMENTO, 2005, p. 2-3). Igualemmte no Livro II, 8, da obra A luz que flui da divindade, onde, ao manifesta sua aflição ante a ordem do divina para que escrevesse o livro, tem uma visão do Senhor que estando com o Livro em suas mãos, lhe diz: “Amada minha, não te aflinjas demasiado, nada pode vencer a verdade. Quem quer que queira retirá-lo de minhas mãos deverá ser mais forte do que eu. O Livro é trino e pertence só a mim. Este pergaminho que o envolve representa minha humanidade pura, clara e justa, que por te padeceu a morte. As palavras representam minha divindade maravilhosa, fluem incesantemente em tua alma a partir de minha boca divina [...]. Olha todas estas palavras, de que modo tão admivavel revelam meu mistperio mais íntimo, e não duvides de te mesmo” (MATILDE de Magdeburgo. La luz que fluye de la divindad, II, 26, 2016, p. 131). Ao que insiste Matilde: “Ah, Senhor, se eu fosse um douto clérigo, e tivesse feito nele estes grandes e singulares prodígios, receberia por isto eterna glória. Mas quem vai crer que nessa lagoa imunda tenhas contruído uma casa de ouro, e que habites realmente nela com tua mãe e todas as criaturas e com toda a coete celestial?” Ao que responde o Senhor: “Filha, por descuido muitos homens sábios perdem seu precioso ouro [...] muitos são os sábios mestres da Escritura que em si mesmo uns nécios ante meus olhos. E ainda te digo mais: é para mim uma grande honra [...] que a boca ilertrada instrua as línguas letradas por meio de meu Espírito Santo” (Ibid. – grifo nosso). 161 Os originais da obra de Mechthild von Magdeburg, organizados por Enrique de Halle, foram reunidos no Códex Einsidlensis 227, desde 1345, a partir dos quais foi feita uma primeira edição por Gall Morel, em 1869 (Cf. VILLENA, Almudena Otero. Prologo. In: MATILDE de Magdeburgo, 2016, p. 16 e KEUL, 2016, p. 16). Segundo a comentadora REINHARDT, 1999, p. 11, esta teria sido “a primeira obra religiosa relatando as visões de Matilde, em prosa em língua vernácula, assim como a obra de Porete foi a primeira obra mística feminina escrita em francês”. 136 | Mulheres Intelectuais na Idade Média depois, o próprio Enrique de Halle fez a tradução da obra, do baixo-alemão para o latim. Quanto ao conteúdo, a obra traz uma reflexão sobre a história da salvação, uma ética das virtudes e uma história da Igreja, em que, com um tom profético igual a Hildegard von Bingen, expressa suas preocupações em relação à Igreja: o relaxamento dos costumes, principalmente entre os clérigos e religiosos, e uma insistente necessidade de mudanças (cf. MATILDE de Magdeburgo. La luz que fluye de la divindad, III, 8; VI, 3). No centro de sua experiência mística, especialmente nos cinco primeiros livros da referida obra, Mechthild von Magdeburg desenvolveu uma verdadeira antropologia existencial, centrada na mística do amor, ou do “Amor Cortês” (em baixo-alemão, Gottesminne)162, que, na lírica dos trovadores medievais, é um amor gratuito, bom, verdadeiro e de serviço que um homem professa por uma mulher, sem esperar nenhuma recompensa senão o próprio prazer de amar ou a “alegria de amar”, conforme explica Zeferino Rocha:

A única recompensa do amor cortês é a alegria de amar. Esta alegria é traduzida, no dialeto accitano, pela palavra ‘Joy’, que indica uma alegria muito mais da ordem do gozo (gaudium), do que da ordem do prazer libidinal. Noutras palavras, o amor cortês é uma dádiva de amor que se alimenta na doação de si mesmo, de um modo inteiramente gratuito, sem nenhuma recompensa outra que a alegria de amar (1996, p. 136-37).

162 Segundo REINHARDT, 2007, nota 5, p. 21, “a palavra Minne (do ‘Mittelhochdeutsch’ o médio-alto- alemão, e atualmente palavra arcaica), de gênero feminino, tem difícil tradução. Os especialistas em língua e literatura alemã medievais têm chegado a distinguir até oito sentidos de Minne, entre eles três com componente religioso: equivalente a caritas; como amor misericordioso de Deus e de Cristo para com os homens; e, finalmente, como doação ou entrega amorosa do homem a Deus. Como ponto de referência, poder servir o ‘amor cortês’ medieval, o amor reverencial e de servidão que um cavaleiro professa por uma mulher. No livro de Matilde, o substantivo Minne e o verbo Minne significam o amor entre pessoas, e Gottesminne tem de entender-se como amor do homem a Deus”. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 137

Sendo que, no caso da mística de Mechthild von Magdeburg, Gottesminne adquire um caráter religioso com duplo sentido: por um lado, significa o amor dirigido exclusivamente a Deus ou ao próximo em função de Deus, o qual, por sua vez, passa a ser sinônimo de caritas e, por outro, num sentido transcendente, significa o amor de Deus ou de Cristo para com os homens. Assim, analogamente ao “amor cortês” mundano, amor ao sexo oposto, na mística de Mechthild von Magdeburg Gottesminne tem um significado de sofrimento em relação ao Amado – Deus. Mais ainda, minne (o amor) passa para o feminino, e nos diálogos escritos por Mechthild von Magdeburg aparece como Frau Minne (a Dama Amor), ligada à alma ou a consciência. Segundo Joseph-Ignacio Saranyana, nos escritos de Mechthild von Magdeburg,

as virtudes são consideradas como virgens que servem a pessoa humana – a quem chama de ‘rainha’ -, para que esta sirva a Deus e cumpra a vontade Dele. Como todas as místicas de Helfta, Matilde tinha uma devoção espontânea, profunda e esteticamente bela para com a Virgem Maria, a quem considerava modelo de mulher (1999, p. 250).

Esse amor funda a experiência mística de Mechthild von Magdeburg, que, ao expressar o amor da alma (o homem) para com Deus, e vice-versa, divide-o em três aspectos ou estágios, os quais, por sua vez, refletem a história da humanidade: criação (união de Deus com o homem), queda (queda ou afastamento entre Deus e o homem) e redenção/salvação (reconciliação e restauração da união entre Deus e o homem). O primeiro estágio, da criação, Mechthild von Magdeburg considera como uma união de essência (ontológica), uma vez que Deus fez o homem à sua imagem e semelhança por um ato de amor (o homem foi feito por amor para amar), o que, na linguagem simbólica do “amor cortês”, significa uma perfeita reciprocidade entre o amante e o amado. 138 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Nesse primeiro momento, além de estabelecer uma relação ontológica de amor entre o homem (esposa) e Deus, descreve (daí sua mística fazer parte da chamada “mística nupcial” medieval, cujo modelo ideal é o livro bíblico Cânticos dos Cânticos), dentro de uma perspectiva feminina, a criação do homem (varão) e da mulher dentro de uma relação de igualdade de dignidade, sem, no entanto, negar suas diferenças, conforme descreve a própria Mechthild:

Adão e Eva foram criados em uma condição nobre, à semelhança do Filho eterno (Cristo), nascido eternamente do Pai [...]. Deus deu a Adão uma virgem bela, nobre e delicada, que era Eva. E lhe deu, pelo amor glorioso que o Filho professa pelo Pai, o casto amor matrimonial (apud REINHARDT, 2007, nota 18, p. 23).

Mais ainda, a antropologia cristã de Mechthild von Magdeburg traz também uma visão positiva do corpo e da sexualidade, criados ontologicamente bons, para a procriação. O segundo estágio, da queda, afastamento ou estranhamento, Mechthild von Magdeburg compara, simbolicamente, com a queda (pôr) do sol, à qual segue a “noite escura” das trevas, quando o homem, por livre vontade, deixa de amar o verdadeiro Amor ou Amante – Deus, e passa a amar a si mesmo (soberba) ou as demais criaturas, amor que se caracteriza como mundano, carnal, etc. Nesse momento, o homem perde sua condição primeira: de uma “natureza primeira”, boa, passa a uma “natureza segunda”, menos boa, porém boa. As consequências dessa queda recaem inclusive sobre os corpos humanos, que, segundo Mechthild von Magdeburg, referindo-se a Adão e Eva, “haviam de ser límpidos, porque Deus não os criou membros de vergonha, senão que os vestiu com veste angelical. Haviam de obter filhos em um amor santo, como o sol acaricia a água, sem turvá-la [...]. Porém, quando tomaram do alimento proibido, experimentaram uma mudança Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 139 desconcertante no corpo, tal como os seguimos experimentar hoje” (Ibid., nota 19, p. 23). A partir daí encontramos na obra de Mechthild von Magdeburg uma série de passagens que denotam certa visão negativa do corpo, visto, algumas vezes, como “a casa em que está aprisionada minha alma” (Ibid., nota 28, p. 24)163. Finalmente, o terceiro estágio, da reconciliação ou restauração da experiência unitiva, dá-se com ou em Cristo, ou seja, quando o homem volta (pela conversão) a amar a Deus, que, contrariamente à “noite escura” ou às trevas do segundo momento, aparece na mística de Santa Mechthild von Magdeburg como “Luz”, a “Luz que flui da divindade”, que daria origem ao título de sua obra. Nesta terceira fase, em Cristo ou pela graça redentora de Cristo, a “Luz que flui da divindade”164, o homem encontra forças para superar sua condição de natureza decaída (natureza segunda) e voltar à sua natureza primeira, ontologicamente boa, recuperando seu verdadeiro estado de liberdade, que torna a alma capaz de, por livre escolha, controlar os apetites carnais e elevar a si mesma e ao corpo a Deus, tornando-se o homem todo - alma e corpo - imagem de Deus, como em seu estado inicial, quando assim foi criado. É neste estágio que acontece o amor em toda sua amplitude (Minne), quando o amante (o homem, simbolizado pela esposa), totalmente livre das paixões mundanas, entrega-se ou encontra todo seu gozo no Amado (Deus), quando suas ações se fundamentam no amor, realizam-se com amor e têm seu fim no Amor, princípio, meio e fim da “verdadeira felicidade” do homem.

163 Cf. também os livros I, 46; VI, 28, 38, 40; VII, 26, em que ela se refere negativamente ao corpo ou pede a Deus que ajude a alma a controlar o corpo. 164 Em artigo anteriormente citado aqui, Matteus Raschietti (2009, p. 77-90) mostra-nos a importância ou o uso que fez Matilde de Magdeburgo da metáfora da luz em sua obra, que não por acaso recebe o nome de “A luz que flui da divindade”, onde Deus, a Luz por excelência, é comparado ao Fogo, e a alma aparece como centelha dessa Luz. 140 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

A obra A luz que flui da divindade, de Mechthild von Magdeburg, teria grande repercussão pelos séculos seguintes e acabaria influenciando muitos pensadores na posteridade, dentre os quais o Mestre Eckhart, conforme atestam Victoria Cirlot e Blanca Garí:

É possível que o Mestre Eckhart tenha conhecido a obra de Matilde de Magdeburgo. Dietrich de Apolda, autor de uma popular Vida de São Domingos, foi membro da comunidade de Erfurt e nesta Vida, composta entre os anos 1287 e 1298, incluiu passagens da versão latina de A luz que flui da divindade. E por aqueles mesmos anos, desde 1294 até 1392, Eckhart foi prior do convento de Erfurt (1999, p. 163)165.

Tamanha foi a importância de Mechthild von Magdebugo que alguns comentadores, dentre os quais Ancelet-Hustache, chegam a relacionar sua pessoa com a figura de Matelda, presente no purgatório da obra A Divina Comédia, de Dante Alighieri166. Por tudo isto, concluimos com as palavras de Almudena Otero Villena, que no Prólogo a sua tradução espanhola da referida obra de Mechthild von Magdeburg diz que

ainda que a autora de Magdeburgo seja filha se suas circuntâncias e sua obra seja fruto de um tempo e de um lugar determinados, de uma religião concreta e de um certo entorno social, sua voz nasceu com o desejo de transcender essa fronteira, de ir para além de si mesma, de superar os limites do eu; de

165 FAGGIN, 2012, por sua vez, diz: “Na obra alemã e latina de Mestre Eckhart se juntam, em uma conciliação definitiva, a corrente mística (Matilde e Gertrudes de Hackeborn, Gertrudes de Helfta, Matilde de Magdeburgo, David de Augsburgo, Geraldo e João de Sternegassen...) e a corrente agostiniana-neoplatônica (Teodorico de Friburgo, Ulrico de Estrasburgo, Bertoldo de Ratisbona, João de Kastl...) que constituem, junto com o aristotelismo de Alberto Magno, a espiritualidade do século XIII alemão”. Igualmente RASCHIETTI, 2009, p. 82: “O pensamento do mestre dominicano foi associado, na história da interpretação, ao movimento das beguinas, e suas obras revelam a influência de duas figuras de relevo desse movimento: Marguerite Porete e Mechtild von Magdeburg”. 166 A esse respeito cf. VALLARSA, [s.d.], p. 101-103. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 141

refletir, precisamente, a vida (In: MATILDE de Magdeburgo, 2016, p. 10).

Mechthild von Magdeburg faleceu em 1294167.

Marguerite d’ Oingt (1240 -1310)

Fonte: http://www.franciscanasprovidencia.org.br/

Da vida de Marguerite d’ Oingt, também conhecida por Marguerite de Duyngt ou Duyn (em português, Margarida de Oingt), principalmente dos anos que antecederam suas obras, pouco se sabe, exceto pequenas informações advindas de duas fontes: primeiro, os relatos autobiográficos de suas visões, que foram compiladas em duas obras; segundo, os comentários do compilador de suas obras, reunidas num documento chamado Manuscritos de Grenoble, no qual o referido compilador, a partir de tais escritos, especialmente daquele em que Margherite d’Oingt narra a vida de outra importante mulher do seu tempo - Beatriz de Ornacieux -, que teria vivido com ela no mosteiro, deduz que Marguerite d’ Oingt tenha nascido por volta de 1240, nas proximidades de Lyon – França -, sendo membro de uma poderosa família da nobreza antiga dos Lyonnais, os Oingt. Sua mãe chamava-se também Marguerite e ela tinha dois irmãos (Guiscardo

167 Émilie Zum Brum coloca como período em que Matilde de Magdeburgo falaceu entre 1282 e 1294 (In: ÉPINEY-BURGARD ; BRUNN, p. 85). 142 | Mulheres Intelectuais na Idade Média e Luís) e três irmãs (Catarina, Isabel e Inês). Esta última a seguiria na vida religiosa no mosteiro das Cartuxas de Polenteins, sucedendo-a depois como priora (cf. BENTO XVI, 2012). Em 1288, Marguerite d’ Oingt foi eleita quarta priora do referido mosteiro168. A primeira informação autobiográfica encontra-se no início de uma de suas obras, chamada Páginas de Meditações, escrita em latim vulgar, na qual a autora declara a data de uma de suas visões, dizendo:

No ano do Senhor mil duzentos e oitenta e seis, um domingo da septuagésima, eu, Margarida, serva de Cristo, estava na igreja, na missa, e quando começaram a cantar o intróito da missa ‘os gemidos da morte me rodearam’, [...] (apud CIRLOT; GARÍ, 1999, p.168)

A partir daí começa sua vida pública, que vai sendo revelada à medida que ela vai escrevendo suas visões. Mas, o que teria Marguerite d’ Oingt escrito, que, ao mesmo tempo, retrata sua vida, o contexto histórico em que viveu e sua concepção filosófico- teológica de mundo? Primeiramente, segundo Victoria Cirlot e Blanca Garí (cf. 1999, p.170), o texto de Páginas de Meditações deve ser entendido ou enquadrado dentro de uma tradição de escrita masculina, cujo modelo se encontra na obra Orationes sive meditationes (Orações ou meditações), de Santo Anselmo de Canterbury/Aosta (1033- 1109). Mas, ao seguir este modelo, a obra de Marguerite d’ Oingt teria sido o primeiro escrito feminino deste tipo na Idade Média e, embora mais tarde tenha chegado a ser lido por outros, nasceu de uma necessidade interior da autora, de uma espécie de desabafo de algo que a atormentava e precisava ser externado, conforme relata ela própria em Carta 136 ao seu confessor:

168 Informação contida nos comentários de Hugo de Amplepuis, prior de Valbonne, à obra Espelho (Speculum) de Margherite d’ Oingt (In: CIRLOT; GARÍ, 1999, p.180). Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 143

Meu muito querido pai, não escrevo estas coisas para outros, nem para vós, nem para ninguém, nem para que vejam depois de minha morte, pois não sou pessoa que deva escrever coisas duradouras, nem que devam ser tomadas em consideração. Só escrevo essas coisas para pensar nelas quando meu coração está despedaçado pelo mundo, para poder fazer retornar meu coração a meu criador e retorná-lo ao mundo (apud CIRLOT; GARÍ, 1999, p.170).

Essa necessidade secreta levou Marguerite d’ Oingt a vivenciar diversas experiências místicas, que a impulsionaram a escrever incessantemente. Algumas delas fizeram-na ficar sem comer e dormir até por sete dias, em um tal estado de concentração que, se não fossem escritas, ela poderia chegar à morte, ou pelo menos à loucura, conforme comentário de seu confessor: “Creio firmemente que, se ela não tivesse posto por escrito, teria morrido ou ficado louca, pois fazia sete dias que não havia comido nem dormido” (apud CIRLOT; GARÍ, 1999, p.171). Através das Meditações (visões místicas) Marguerite d’ Oingt retrata, por um lado, a pecadora, e nela toda a raça humana, como fruto do pecado original (homem velho), e, por outro, o caminho a ser percorrido para se passar desse estado de natureza decaída para o estado de salvação (homem novo), quando a pessoa encontra, no seu interior, a contemplação do amor de Cristo. Por isso suas Meditações são, ao mesmo tempo, estágios ou momentos de medo (morte) e felicidade (salvação). De medo (morte), pela tomada de consciência do próprio estado de natureza decaída, adquirida, segundo ela, “ao meditar na miséria a que estamos entregues por causa do pecado de nossos pais. E nesta meditação concebi tanto pavor e tanta dor que me pareceu que o coração me falava completamente, devido ao que não sabia se seria digno ou não da salvação” (apud CIRLOT; GARÍ, 1999, p.168). 144 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

De felicidade ou paz (salvação), pela alegria de reconhecer ou encontrar o amor de Cristo nas Sagradas Escrituras, conforme narra a seguir:

Logo, quando ouvi o versículo em que Davi salmodiou ao Senhor dizendo: ‘Eu te amo, Senhor[...]’, meu coração se sentiu aliviado, porque recordou a doce promessa que o Senhor fez aos amigos quando disse: ‘Eu amo aos que me amam’, pois sabia que Ele é tão bom e tão terno, que nunca permite que se destruam os que o amam (Ibid.).

Nas partes seguintes das Páginas de Meditações, a autora vai relatando o caminho ou itinerário de sua evolução espiritual, que culmina com o encontro, no seu coração, com Jesus. Para isso, com muita imaginação, ao retratar suas visões, usa da simbologia própria de sua época, expressa principalmente nas artes plásticas (iconografia), as quais, segundo Jeffrey Hamburger, grande estudioso das relações entre artes e mística medieval, “eram instrumentos de iniciação do leitor nos mistérios transcendentais” (apud CIRLOT; GARÍ, 1999, p.177), destacando-se neste sentido as iluminuras. Isso fica bem claro, por exemplo, na segunda etapa das Meditações, que está centrada no desenvolvimento de três imagens: 1. a do juízo final; 2. a do inferno; 3. a do paraíso, sendo a do inferno a mais densa. Outra obra de Marguerite d’ Oingt que segue a mesma imaginação simbólica é o Speculum (Espelho), em que, por exemplo, ao narrar a visão da cena do juízo final, na qual Cristo aparece sentado à direita do Pai com um livro na mão, faz uso da simbologia das cores, muito usada da época:

Vi também na mão direita daquele que está sentado ao trono um livro [...]. O livro estava escrito por fora com letras brancas, Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 145

negras e roxas. O dorso do livro estava escrito em letras de ouro [...] (apud CIRLOT; GARÍ, 1999, p.182)169.

Vem a seguir a simbologia das duas partes do livro, a de fora e a de dentro. A primeira – a de fora - representa o homem exterior, ligado às coisas mundanas. A segunda – a de dentro - remete à interioridade do homem, na qual se dá seu encontro com Cristo. A passagem de uma à outra significa a tomada de consciência, a conversão do homem velho ao homem novo, que passa a ver-se ou espelhar-se no modelo de Cristo, daí o título da obra – Espelho. O espelho é, portanto, a verdade escrita nas Sagradas Escrituras, através da qual Cristo revela, como um reflexo de espelho, as suas maravilhas, conforme aparece na visão interna do livro:

Dentro do livro aparecia um lugar delicioso que era tão grande que todo o mundo não é mais que pequena coisa em comparação. Nesse lugar aparecia uma gloriosa luz que se divide em três partes como em três pessoas, mas não há boca de homem capaz de falar dela [...] Dali saíam todos os bens possíveis. Dali vinha a verdadeira sabedoria pela qual todas as coisas foram feitas e criadas. Ali era o poder e ante sua vontade todas as coisas se inclinavam. Dali saía tão grande doçura e tão grande consolo que os anjos e as almas estavam tão saciadas que não podiam desejar mais que aquilo. Dali saía um odor que era tão bom que atraía todas as virtudes do céu. Dali saía um abraço de amor tão grande que todos os amores deste mundo não são mais que grande amargura em comparação com este amor. Dali saía um gozo tão grande que seu coração de homem não podia pensar[...] (apud CIRLOT; GARÍ, 1999, p.184)

A esta obra segue-se outra intitulada Vida de Beatriz de Ornacieux, que, embora tenha um caráter biográfico, pois conta a vida de uma mulher da nobreza de seu tempo que desde os treze

169 Para as referidas comentadoras, no que se refere ao uso das cores, Margarida d’ Oingt teria recebido influência direta da obra O Livro das Três Escrituras (negra, roxa e branca), de Ruysbroeck, o Admirável. 146 | Mulheres Intelectuais na Idade Média anos de idade esteve no mosteiro das Cartuxas de Polenteins, onde foi instruída por Margarida d’ Oingt, ao traçar a evolução espiritual de sua contemporânea traz a mesma estrutura trinitária do Espelho, inclusive com o uso das figuras metafóricas das três cores. Além disso, nos Manuscritos de Grenoble, encontram-se quatro cartas de Marguerite d’ Oingt: as três primeiras, dirigidas ao seu confessor espiritual, e a quarta, a uma dama de nome ignorado, na qual relata uma de suas famosas visões, em que aparece a figura metafórica da árvore, que ficaria tão famosa a ponto de alguns comentadores a chamarem de “mulher árvore”. É utilizada pela autora para falar da natureza humana. Num primeiro momento, ela descreve a natureza humana decaída pelo pecado original, representada metaforicamente pela árvore quase morta:

[...] pareceu-me estar em lugar deserto onde não havia nada, exceto uma grande montanha e ao pé desta montanha havia uma árvore muito maravilhosa. Nesta árvore havia cinco galhos que estavam todos secos e todos se inclinavam para a terra. E nas folhas do primeiro galho estava escrito: visão; no segundo estava escrito: audição; no terceiro estava escrito: paladar; no quarto estava escrito: olfato; no quinto estava escrito: tato. Em cima da árvore havia uma grande cobertura circular, semelhante ao fundo de tonel, de tal modo que a árvore estava completamente cercada por cima e nem o sol nem a chuva poderiam alcançá-la (apud CIRLOT; GARÍ, 1999, p.188-189).

Em seguida, mais uma vez simbolicamente, mostra a redenção do homem pela graça de Cristo, simbolizada pelo rio que faz a árvore renascer:

E quando fiquei olhando atentamente a árvore, ela levantou os olhos até a montanha e viu um grande rio que descia com tanta força que acreditou estar vendo o mar. A água se precipitou tão violentamente ao pé desta árvore que todas as raízes geraram para cima e se puseram acima da terra, e os galhos que se inclinavam para a terra se levantaram alcançando o céu, e as Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 147

folhas que estavam completamente secas reverdeceram todas, as raízes que estavam plantadas na terra se externaram e se dirigiram até o céu, e reverdeceram e se cobriram de folhas à maneira dos galhos[...] (apud CIRLOT; GARÍ, 1999, p. 189).

No final da obra Speculum (Espelho) encontra-se a informação de que Santa Marguerite d’ Oingt faleceu em 1310 (cf. CIRLOT; GARÍ, 1999, p.181).

Mechthild von Hackeborn (1241-1299)

Fonte: http://misticavita.wordpress.com/santa-matilde-de-hackeborn/

Segundo Joseph-Ignacio Saranyana, Mechthild von Hackeborn (em português, Matilde de Hackeborn), uma das chamadas místicas de Helfta,

nasceu em 1241, de uma família de barões de Hackeborn, proprietários de grandes bens em Turíngia e em Harz. Aos sete anos de idade [1248] foi levada ao monastério de Rodersdorf (depois para Helfta)170, onde sua irmã mais velha, Gertrudes de

170 Segundo SARANYANA, 1999, p. 246, o mosteiro ao qual foi levada Mechthild von Hackeborn (e, depois, Santa Gertrudes, a Grande), era o mosteiro feminino cisterniense, que fora fundado em 1229 em Mansfeld e fora posteriormente transferido para Rodersdorf (1234) e, depois, para Helfta (1258). As monjas seguiam a Regra de São Bento, porém a direção espiritual estava confiada aos Dominicanos de Halle. Tanto é assim que, segundo o mesmo comentador, “através dos Dominicanos, Santa Matilde de Hackeborn conheceu os escritos de Alberto Magno e Tomás de Aquino” (cf. 247, nota 108). 148 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Hackeborn, era abadessa [...]. Muito jovem foi mestra (magistra) e – por seus dotes musicais – cantora (cantrix) do convento. Em 1261 recebeu como aluna uma menina de cinco anos, que chegaria a ser Santa Gertrudes, a Grande, a quem se uniria com grande amizade. Faleceu em 19 de novembro de 1299 (1999, p. 247, nota 108).

Ainda segundo o supracitado comentador (cf. Ibid. p. 247- 48), desde a juventude Mechthild von Hackeborn teve várias experiências místicas, as quais ocultou até os 50 anos de idade. Mas, durante seus últimos anos de vida, especialmente de 1291 a 1299, período em que ficou enferma sobre uma cama, resolveu contá-las e essas experiências foram recolhidas e escritas por sua aluna e amiga predileta Santa Gertrudes, a Grande. Antes de falecer, Mechthild von Hackeborn teve a oportunidade de ler e confirmar como seu o que havia escrito sobre ela a amiga Santa Gertrudes, a Grande, e está conservado no seu Liber specialis gratiae (Livro da graça especial). O livro é constituído por sete partes: as duas primeiras trazem as experiências místicas de Mechthild von Hackeborn em torno das festas litúrgicas; as terceira e quarta partes reúnem os ensinamentos referentes à salvação do homem e às suas virtudes; a quinta, está dedicada às almas dos defuntos; a sexta, é uma breve biografia de Gertrudes de Hackeborn (a Velha), sua irmã; por fim, a sétima parte descreve os últimos dias de Mechthild von Hackeborn e sua morte. No centro de tudo está o Sagrado Coração de Jesus, símbolo do amor divino, de quem ela tinha frequentes visões ou experiências místicas. Daí seu pensamento ser essencialmente cristológico, e como tal é a base de sua espiritualidade eclesiológica, na qual prega a extensão da comunhão entre Cristo, os santos e os demais membros da Igreja. Além disso, ocupa um papel importante nos seus escritos o tema mariológico, que se desenvolve em torno de três dogmas marianos: a Imaculada Concepção de Maria, sua maternidade divina e a concepção virginal de Jesus. Foi ainda Mechtild von Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 149

Hackeborn que inaugurou a devoção de rezar diariamente três Ave-marias, pedindo a especial proteção de Maria. Além de mística, Mechthild von Hackeborn tinha grande aptidão para a música, chegando a ser mestra do coro do monastério, ficando conhecida pelo apelido de “Rouxinol de Cristo”.

Angela di Foligno (1248-1309)

Fonte: http://www.beataangela.it/tela_in_sangiacomo.asp

Angela di Foligno (em português, Ângela de Foligno)171, filha de uma rica família, nasceu em 1248, em Foligno, no Vale Espoleto, na Umbria, próximo a Assis - Itália. Aos vinte anos de idade Angela di Foligno casou-se com um nobre, com quem teve vários filhos, passando a levar uma vida confortável, voltada para as vaidades, festas e diversões mundanas. Assim viveu até os trinta e sete anos, quando uma inesperada tragédia mudou sua vida: num curto espaço de tempo perdeu os pais, o marido e todos os filhos, um a um.

171 Segundo Pablo García Acosta, na introdução a sua tradução espanhola da obra Memoriale de Angela di Foligno, em sua comunidade franciscana, Angela “era mais conhecida como Lella, abreviatura de Angelella, Anglita” (GARCIA ACOSTA, Pablo. Introducción. In: ÁNGELA de Foligno, Libro de la experiencia, 2014, p. 11). 150 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Por esse tempo (cerca de 1285), começaram suas experiências místicas. Num primeiro momento, recebeu em sonho a orientação de São Francisco de fazer uma peregrinação a Assis, o que só veio a acontecer seis anos mais tarde, em 1291. Ali teve ela sua primeira visão mística, acompanhada de uma forte crise de histeria (gritos) e dores físicas, o que foi motivo de escândalo para os presentes e de curiosidade por parte do padre local, de nome Arnaldo, que a procurou depois para conversar sobre o ocorrido, passando a ser seu confessor e o redator de suas visões. O episódio da peregrinação a Assis (em 1291) mudou completamente a vida de Angela di Foligno que, convertida, resolveu deixar a vida mundana, doar todos os seus bens aos pobres e entrar para a Ordem das Damas Pobres de Santa Clara de Assis. Mais do que uma mudança de vida, “o episódio de Assis significou o autêntico início de uma experiência interior elevadíssima, na qual teve lugar um processo de operações e mutações na alma destinadas ao conhecimento de Deus e de si” (CIRLOT; GARÍ, 1999, p. 196). A partir de então Angela di Foligno teve diversas visões místicas, as quais, segubndo o seu confessor espiritual, o frade Arnaldo di Foligno, que as transcreveu172 e publicou em um volume sob o título de Memoriale173,

ela começou a escrever de forma ligeira e negligente, quase como uns apontamentos que lhe ajudatriam depois a recordar [quasi pro quodam mihi memoriali], em uma pequenina tábua, já que pensava escrever pouco. Sem embargo, pouco tempo depois de que começamos o ditado lhe foi revelado pelo fiel de Cristo que eu tinha de escrever o que me dizia, não em uma pequenina tábua, senão em unm fgrande caderno (apud GARCIA ACOSTA In: ÁNGELA de Foligno, Libro de la experiencia, 2014, p. 11).

172 Segundo CIRLOT; GARÍ, 1999, p. 198, “o frade Arnaldo escreveu em latim aquilo que Angela lhe deu a conhecer em sua língua ûmbrica”, ou seja, no dialeto ou língua vulgar de sua região – a Ûmbria. 173 Em espanhol temos duas traduções/edições que trazem, respectivamente, como título: ÁNGELA de Foligbo. El libro de la vida, [s.d.], e ÁNGELA de Foligno, Libro de la experiencia, 2014. . Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 151

A obra tem como preocupação central mostrar a evolução espiritual da autora, que é apresentada em 30 passos, graus ou degraus, divididos em duas partes: a primeira, com 19 passos, de cunho autobiográfico, refere-se à primeira etapa da conversão da visionária, desde o sonho/visão com São Francisco (1285) até o episódio de Assis (1291). A exemplo de tantas outras obras de mulheres místicas medievais, nesta primeira parte Angela di Foligno tem a experiência mística da morte, ou seja, o despertar da consciência de sua condição de pecadora e a necessidade interior de confessar- se, o que em sua obra é representado simbolicamente pelo desnudar-se perante a cruz de Cristo, narrado por ela de forma mais nítida nos sétimo e oitavo passos de sua obra:

No sétimo passo me era dado contemplar a cruz na qual havia morrido Cristo por nós, momento em que senti uma grande dor [...]. Neste conhecimento da cruz me era dado tanto fogo que, estando tão perto da cruz, tirei todas as vestes e me ofereci a ele [...] pois me foi inspirado que se queria ir até a cruz devia me desnudar para ser mais rápida, e desnuda fui à cruz, isto é, perdoando todos os que me haviam ofendido, me despojando de todas as coisas terrenas, de todo homem e mulher, amigos e parentes e de todos os demais, de minhas posses e de mim mesma [...] (ANGELA di Foligno, [s.d.], p. 12-13).

É claro que a desnudez de Angela di Foligno não ficou só no sentido metafórico espiritual, uma vez que, logo após o episódio de Assis, ela abandonou a vida mundana, vendeu tudo que tinha e deu-o aos pobres. A segunda parte da obra traz as demais visões de Angela di Foligno de 1291 a 1297, as quais, embora tivessem como efeito positivo o encontro ou a contemplação de Cristo, simbolizando a ação redentora de Cristo, eram marcadas, tanto quanto as anteriores, por fortes experiências de histerismo (gritos) e pela extrema alegria que elas provocavam. Esta parte é centrada, 152 | Mulheres Intelectuais na Idade Média principalmente, na meditação do mistério da paixão de Jesus Cristo, nas atividades de oração e na prática da caridade. Além dessa obra, outras produções de Angela di Foligno, como cartas, sermões, etc., fruto de suas atividades como mestra formadora, foram reunidas em outros dois volumes intitulados, respectivamente, Instruções e Trânsito. Essas duas obras não foram escritas pelo frade Arnaldo, que faleceu em 1300, mas por outros redatores, por isso têm um estilo literário completamente diferente do Memorial. Inclusive, muitos textos das Instruções foram escritos após a morte da visionária. Angela di Foligno faleceu na mesma na cidade onde nasceu, no dia 4 de janeiro de 1309, e foi enterrada na Igreja de São Francisco di Foligno. Em pouco tempo seu túmulo passou a ser cenário de muitos prodígios e graças. Assim, o atributo da santidade emergiu naturalmente em relação àquela considerada pelos devotos como a padroeira das viúvas e a protetora das crianças que morriam prematuramente. E, embora tivesse sido descrita como Santa por vários pontífices, a exemplo de Paulo III, em 1547, foi Inocêncio XII quem a tornou beata, em 1693. Mais recentemente o Papa Pio XI a mencionou também como Santa em uma carta datada de 1927. Do ponto de vista intelectual, segundo Nilda Guglielmi, já em vida, em torno de Angela di Foligno

se congregaram inúmeros discípulos que a elegeram como ‘mestra’ (em suma, exerceu a direção espiritual em uma espécie de cenáculo). Entre aqueles que tiveram uma influência profunda encontra-se Ubertino di Casale, o teólogo fraciscano partidário do rigorismo na observância da pobreza por parte dos membros da ordem (2007, p. 29-30).

Victória Cirlot e Blanca Garí, depois de confirmarem a influência de Angela di Foligno sobre Ubertino, acrescentam:

Desde Ubertino, citado por Dante na sua Comédia, até Georges Bataille, fora da religião porém abismado com a experiência Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 153

interior, esta dama das trevas e senhora da noite escura tem exercido, entre os mais absolutos ouvidos, imensa admiração e fascinação, pois as suas palavras são próprias de quem alcançou a sabedoria (1999, p. 220).

Ao que completa Contardo Miglioranza, em sua introdução à edição espanhola da obra de Angela di Foligno: “Por seu magistério tem sido objeto de grande admiração por parte de santos, doutores, sumos pontífices e escritores da estatura de São Francisco de Sales, Bossuet, Fénelon, Santo Afonso de Ligório, Bento XIV [...]” (In: ANGELA di Foligno, [s.d.], p. 2).

Marguerite Porete (1250-1310)

Fonte: http://www.goodreads.com/

Da vida de Marguerite de Hainault ou Marguerite Porete174 como era mais conhecida (em português, Margarida Porete) pouco se sabe, apenas o que consta nos autos de sua condenação, como, por exemplo, que fora uma beguina175 e que fora queimada na fogueira,

174 Segundo BORGES, 2006, nota 2, p. 1, o nome ‘Porete’, “no século XIII designa uma espécie de cebola que cresce muito”. 175 SARANYANA, 2007, p. 115, assim a descreve: “A beguina Margarida Porete, nascida em data incerta, seguramente entre 1250 e 1260, natural da região de Hainault, agora sudoeste da Bélgica, entre Brabante e a fronteira francesa, cuja capital era, por aqueles anos, a cidade de Valenciennes, morreu na fogueira em 01 de junho de 1310, na Place de Grève, centro de Paris”. Igualmente diz AGUADÈ, 2010, p. 26: “Se Margarita provém, tal como dizem as crônicas, do condado de Hainaut, 154 | Mulheres Intelectuais na Idade Média como herética, na Place de Grève, no coração de Paris, em 01 de junho de 1310, por causa de seus escritos, especialmente pela obra Mirrouer des âmes simples et anéanties et qui seulement demeurent en vouloir et désir d’amour (Espelho das almas simples e aniquiladas que permanecem somente na vontade e no desejo do amor)176, que, embora tenha aparecido anonimamente em 1296, lhe foi atribuída177. Nessa obra, com 138 capítulos, escrita em francês, ora em prosa, ora em versos, ora em diálogo, Marguerite Porete expressa sua antropologia filosófico-teológica, que consta de uma descrição da condição humana, em que a Alma (principal personagem da trama, ao lado do Amor e da Razão), que com a queda perdeu sua condição de imagem e semelhança de Deus, busca o retorno ao estado primitivo, por um processo espiral dialético ascendente de autossuperação, negação ou mortificações, até atingir a nadificação final ou aniquilamento, momento em que se dá a união definitiva com Deus, ou, em linguagem alegórica, a união entre o amante e o Amado, no Amor - Deus. Esse processo passa por sete degraus, estágios ou estados, conforme sintetiza Ceci Baptista Mariani: que isto dizer que procede de um dos grandes centros de movimento beguinal do século XIII. Segundo se deduz dos dados disponíveis, teria nascido em meados do século XIII, mais provavelmente entre 125- e 1260. Poderia ser originária da cidade de Valenciennes, lugar onde se encontrava o grande beguinato de Santa Isabel e na qual a presença organizada de beguinas era muito importanta, ‘terra de beguinas’, é como chama Marie Bertho a Velenciennes do século XIII”. Schwartz, 2005, p. 28, por sua vez, baseada em comentários de Bernard Mc Ginn, diz que, porque demonstrava alto nível intelectual, é possível que Marguerite Porete fosse oriunda de classe nobre. 176 Segundo SARANYANA, 2007, p. 116, “o original da obra de Porete, hoje perdido, foi escrito em picardo, provavelmente a língua materna de Porete e de toda região [...]. Todavia, ainda em vida de Margarida, foi traduzida para o latim, da qual temos uma versão crítica de 1986 [...]. Do picardo se fizeram também três versões depois que queimaram Margarida, em médio-inglês, que remetem, respectivamente, a 1330 e a 1350-1370 [...]; outra em médio-francês, em data incerta, da qual se conserva um manuscrito de final do século XV (entre 1450 e 1530), e outra para o italiano, da qual se conservam quatro manuscritos, que remontam ao final do século XIV e início dos anos XV [...]”. 177 RICHARDS, 1993, p. 73, confirma a informação de que Marguerite Porete tenha sido condenada e morta principalmente por seu envolvimento com as beguinas, adeptas da “heresia do Espírito Livre”: “O medo provocado por esta heresia [O Espírito Livre] cristalizou-se em torno da figura de Margarida Porete, uma beguina itinerante que escreveu um livro chamado The mirror of simple souls. Acusada de heresia, recusou-se a retratar-se, e foram, ela e seu livro, queimados numa fogueira em 1310”. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 155

O aniquilamento é seu grande tema. Ele é, para ela, fruto de um processo que implica várias mortes. Marguerite vai distinguir, nesse caminho, sete estados: ao longo dos quatro primeiros se dá a libertação da alma que se encontra embaraçada pelo pecado, pela escravidão da natureza, pela escravidão da razão e pela escravidão do desejo. O quinto estado será para Marguerite um marco fundamental. Depois de morta para o pecado e morta para a natureza, a alma que se dispôs a empreender esse caminho experimenta a morte para o espírito, porta de entrada para a vida de glória que será plena somente quando da união definitiva com o amado “LoinPrès”. O quinto estado é o da “liberdade da caridade”; a alma aí se encontra desembaraçada de todas as coisas. O sexto é o estágio em que a alma tem a visão (provinda do sétimo estágio) da glória que Deus quer para ela, é o estado em que a alma é pura e iluminada. Aí a alma não conhece nada, não ama nada, não louva nada que não Deus, porque sabe que não existe nada que seja fora dele. Nesse estado a alma iluminada não vê nem a Deus nem a ela mesma, mas Deus se vê por ele mesmo nela, por ela, sem ela. Vê tudo o que é por bondade de Deus e sua bondade doada é Deus mesmo, a bondade é o que Deus é. No sexto estado, portanto, a Bondade na alma se vê por sua bondade, se vê na transformação de amor que opera na alma. O sétimo estado é aquele que Amor reserva para a glória eterna. O itinerário descrito no Mirrouer é o movimento que o amado “LoinPrès” – que não é outro senão a Trindade mesma – opera na alma para a manifestação de sua glória. Enfim, a alma aniquilada, amorosa de Deus, lançando-se ao nada, recebe tudo, mais saber do que o contido nas Escrituras, mais compreensão do que a que está ao alcance da razão, ganha a liberdade perfeita e torna-se capaz de experimentar a “paz de caridade” (2012, p. 59)178.

178 A mesma comentadora considera haver uma estreita relação entre esse processo de aniquilamento de Marguerite Porete e a “Teologia Negativa” do Pseudo Dionísio Areopagita: “a influência da teologia negativa de Dionísio, o Areopagita, é inegável. Marguerite se soma a essa teologia que assume como caminho a negatividade e pede despojamento, renúncia dos sentidos, das operações intelectuais, de todo o sensível e o inteligível, enfim, que pede que se deixe de lado o entender, no esforço de subir o mais possível até a união com aquele que está além de todo ser e de todo saber” (Ibid). Igualemtne diz AGUADÉ, 2010, p. 16-17: “Porete segue a linha intoduzida pelo Pseudo-Dionísio Areopagita (s. V-VI) que intenta conciliar o neoplatonismo de Plotino, Proclo e o cristianismo [...]. Nesta autora se interrelacionam e se influem mutuamente a espiritualidade das beguinas e a teologia apofática de tradição dionisiana”. 156 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Traduzindo, ou trazendo para a realidade, alegoricamente, a exemplo de Santo Agostinho que divide a humanidade em dois tipos de sociedade: a “cidade de Deus” – dos homens que amam a Deus acima de tudo, e a “cidade terrena” – dos homens soberbos que amam a si mesmos em detrimento de Deus, Marguerite Porete divide as almas em dois tipos de comunidade: a das “almas livres”, ou a “grande Igreja” ou “verdadeira Igreja”, daqueles que alcançam a liberdade ou a “verdadeira felicidade”, e a comunidade dos fiéis guiados pela hierarquia eclesiástica, que é a das “almas complexas”, a “pequena Igreja”. Mais ainda: a Igreja das “almas livres” é chamada de “simples” (daí o título de sua obra Mirrouer des âmes simples et anéanties (Espelho das almas simples e aniquiladas), que significa, além de “não complexa” ou “una”, filosoficamente, monista, ao contrário da Igreja hierárquica, que é complexa ou dualista, por pregar uma dicotomia existencial entre o querer e o fazer, o querer e o poder, a vida ativa e a vida contemplativa, ao que Marguerite Porete chama de “conflito entre o interno de si e o externo de si”, pelo qual uma das partes sente uma espécie de falta de alguma coisa (de si mesma) e a necessidade de ir buscar lá fora – na Igreja hierárquica. E essa falta nos faz sofrer. Na “pequena Igreja”, o homem busca suprir essa necessidade ou a sua perfeição fora de si, no fazer, na Igreja hierárquica, onde não se encontra e vive a sofrer179. Já na “grande Igreja”, a das “almas livres”, o homem busca suprir a necessidade da perfeição em si mesmo, na sua própria natureza, através das boas obras e de uma vida regrada e controlada pela vontade livre. Nesta segunda Igreja, a alma busca e encontra o bem dentro de si mesmo, na vida contemplativa, sem, no entanto, negar a vida ativa ou o fora de si,

179 A esse respeito diz Schwartz, 2005, p. 34: “Em seus polêmicos diálogos entre a Razão e o Amor, implicitamente entre a pequena Igreja e a grande Igreja, Marguerite Porete combate a racionalidade patriarcal que prevalecia na igreja hierárquica, a qual, em todas as oportunidades, a autora mostra como inadequada e estúpida”. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 157 como diz Chiara Zambini, comentando as ideias de Marguerite Porete:

A chave religiosa para compreender as almas complexas e as almas simples é esta. As almas complexas são as almas que buscam a Deus, que é Amor, fora de si, isto é, nas obras boas e nos comportamentos virtuosos. As almas simples coincidem com a unidade simples, que é Deus dentro de si e não fora de si, ao que chamamos de Amor (1997, p. 35)180.

Assim, dentro do princípio de que não há necessidade de se seguirem as regras da Igreja hierárquica para se alcançar a perfeição, mas tão somente a própria natureza ou a vontade livre, Marguerite Porete diz que a “grande Igreja”, das “almas livres”, não se regula pela lei, porque não há necessidade de se indicarem os comportamentos justos, distinguindo-os dos errados. Basta que as almas simples sigam a própria natureza, que coincide com o Ser, movendo-se pelo amor. Por isso, Chiara Zamboni afirma que as personagens principais do pensamento de Margarida Porete são “a alma, o amor, e a razão ou a vontade” (1997, p. 38). A razão ou vontade, movida pelo amor, torna-se sujeito moral, havendo uma identidade ou unidade entre eles, tornando-se “una”. Tal estado corresponde ao que chama de “alma simples” (alma nova), centrada em si mesma, a qual, por sua vez, se identifica com o próprio Amor ou Ser de Deus, havendo uma espécie de anulação da própria alma complexa (alma velha), centrada no dualismo, uma vez que não há mais diferença entre amor e vontade, mas apenas Amor. Trata-se de um salto da experiência empírica do agir para a experiência mística do amor, em que a alma vivencia o próprio Ser de Deus - com um único problema: a união ou identificação da alma com Deus se dá pela razão ou vontade livre,

180 Igualmente BORGES, 2006, p. 11, afirma que “Margarida concebe todo o processo de realização de si como um processo de ‘aniquilamento’. A alma deve passar por três mortes: primeiro, a do ‘pecado’, da qual nasce a ‘vida da graça’; depois, a da ‘natureza’, da qual nasce a ‘vida do espírito’; finalmente, a do próprio ‘espírito’, pela qual passa a viver da ‘vida divina’”. 158 | Mulheres Intelectuais na Idade Média uma espécie de “luz da razão” que ilumina internamente a inteligência. Uma luz que se vê com o olhar (uma experiência) da alma, pela razão, semelhante à “sombra da luz vivente”, de que fala Santa Hildegard von Bingen. Daí o caráter pagão ou racionalista (portanto, herético) da mística de Marguerite Porete, conforme acentua Nelson Omegna:

Margarida Porete, uma adepta da seita dos Irmãos do Espírito Livre, que chegou a sentir uma anulação de sua alma, confundida no coração de Cristo, inferiu que, desde que a alma se fundia na essência do Senhor, não tinha mais qualquer resquício de vontade, e o que viesse a anelar deixava de ser pecado. Assim, pensava ser emanação da vontade divina o que aspirasse a alma absorvida em Deus, mesmo que demandasse a satisfação dos mais torpes apetites carnais (1969, p. 103).

Portanto, os homens não precisam de um guia fora de si, na Igreja hierárquica, por exemplo, para alcançar a salvação, mas precisam tão somente seguir a própria vontade ou razão. Em síntese, segundo Chiara Zamboni, o pensamento de Marguerite Porete centra-se em dois pontos básicos:

1. a não necessidade da observância das virtudes [teologais, ou cardeais, ou cristãs], que eram apontadas pela Igreja como condição para se alcançar a salvação; 2. a possibilidade de se seguir livremente a própria natureza em qualquer situação (1997, p. 31-32).

Esses pontos ficaram conhecidos como “princípios da alma livre”, e se opunham radicalmente à ideia de uma comunidade de fiéis guiados por uma hierarquia eclesiástica. Daí chamar a atenção Sílvia Schwartz para o fato de que

a maioria dos textos compostos por ou sobre as místicas medievais ancoravam sua autoridade, ao menos em parte, em visões diretamente dadas por Deus. A maioria das mulheres medievais, incluindo Macthild de Magdeburg e Hildegarda de Bingen, utilizam o topos da fraqueza feminina: Deus escolhe as Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 159

coisas fracas – as mulheres – para confundir os fortes – os homens. Isso não ocorre no Mirrouer de Marguerite Porete, que não contém nenhum recital visionário, chegando mesmo a ser hostil às visões. Além disso, em nenhum momento Marguerite Porete se desculpa por ser mulher e dá a sua obra a autoridade de uma nova forma de evangelho. Porete explicitamente resiste ao masculino, ao latim e ao escolástico, ao domínio das instituições eclesiásticas e mesmo à faculdade da razão. E fala em sua própria voz, com a autoridade das almas aniquiladas, pois não tinha amparo eclesiástico algum para sua proteção (2005, p. 28).

Por conta disso, Marguerite Porete recebeu diversas sanções e proibições, que culminaram com sua morte na praça pública de Paris, em 1310181. Primeiro, num processo de caráter estritamente diocesano, entre 1296 e 1306, quando, sob a coordenação do bispo de Cambrai, Gui de Colmieu, seu livro foi condenado e um exemplar queimado na praça pública de Valenciennes. Além disso, a autora foi proibida de escrever, difundir e pregar suas ideias, sob pena de excomunhão. Mas, apesar da proibição,

Margarida Porete continuou a pregar sua doutrina e a difundir sua obra, tendo enviado exemplares para a avaliação de três autoridades teológicas, que a aprovaram, apesar de algumas ressalvas: Goffredo de Fontaines (faculdade teológica da Sorbonne), Franco (um cisterciense da famosa abadia brabantina de Villers) e John di Querayn (um franciscano inglês) (Schwartz, 2005, p. 35)182.

181 Segundo TEIXEIRA, 2013, p. 5, Marguerite Porete “foi a primeira mulher a ser queimada por heresia, apesar de seu texto não conter tantas ideias inovadoras e subversivas”. 182 TEIXEIRA, 2010, reforça essas informações ao dizer: “A advertência que Marguerite Porete recebeu e a condenação de seu livro pelo bispo de Cambrai em 1306 não surtiram efeito. Porete continuou seus esforços para disseminá-lo e aprová-lo. Após a 1ª condenação de seu livro, Marguerite Porete o enviou a três autoridades eclesiásticas que o aprovaram. O primeiro era um franciscano chamado John de Quaregnon, o segundo, um cisterciense, Dom Franco, da abadia de Villers, monastério famoso por sua direção e suporte às beguinas, e o terceiro, o teólogo secular Godfrey de Fountains, um dos mais importantes filósofos escolásticos de Paris, de 1285 a 1306”. O comentador SARANYANA, 2007, p. 115-16, por sua vez, além de reforçar esses nomes, acrescenta a informação de que alguns comentadores 160 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Devido a essa sua atitude, dois anos depois, em 1308, foi condenada à prisão pelo novo bispo de Cambrai, Philippe de Marigny, e enviada a Paris para ser investigada pelo inquisidor geral do reino, o dominicano Guilherme Humbert, que se tornara famoso por ter julgado e condenado os Templários, que tiveram alguns de seus membros executados na mesma praça em que Marguerite Poerete haveria de ser queimada. Guilherme Humbert reuniu uma junta de 21 teólogos e cinco canonistas especialistas em Direito, os quais, dois anos depois (tempo em que Marguerite ficou presa), em 31 de maio de 1310, após terem analisado a obra, apontaram 15 pontos em desacordo com as Escrituras, declarando serem heréticas a obra e a autora. Marguerite Porete, instada a responder às acusações e/ou a retratar-se, preferiu silenciar, recusando-se a cooperar, sendo coerente com aquilo em que acreditava e que escrevera em sua obra, quando, por exemplo, o Amor, a ela se referindo (à Alma ou à própria Marguerite, que se identificam na obra), afirma:

Essa Alma, do Amor, é livre, mais que livre, libérrima, transcendentemente livre [...]. A herança dessa Alma é a mais pura liberdade [...]. Ela não responde a ninguém a menos que queira, se ele não é de sua linhagem, pois um nobre não se digna a responder a um vilão que o chama ou intimida no campo de batalha. Portanto, aquele que intimida uma tal Alma não a encontra; seus inimigos não conseguem dela nenhuma resposta (apud Schwartz, 2003, p. 123).

Aliás, são a altivez e a insubordinação que tornam Marguerite Porete diferente das demais místicas, as quais,

chegaram a relacionar o nome de John de Quaregnon ao famoso filósofo franciscano João Duns Scoto. Informação confirmada por VALLARSA, [s.d.], nota 435, p. 108, que diz: “para Guarnieri poderia tratar-se de João Duns Scoto: também ele estava em Paris, com Eckhart e Godfrey de Fountains, no final de julho de 1303, ano em que ela se transferira para Colônia para defender sua doutrina que vinha sendo usada de forma errônea pelos agases do Livre Espírito”. Cf. também, BRUNN, Émilie Zum. Margarita Porete (†1310). In: ÉPINEY-BURGARD ; BRUNN, p. 206. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 161 contrariamente a esta forma de proceder, se apresentavam como mulheres humildes, fracas, defensoras e praticantes de ações resignatórias. Em Marguerite Porete, na sua crítica ao que chama de “pequena igreja”, “está implícita uma crítica às formas medievais de piedade monástica – a vida de jejuns, orações, devoções, sacramentos, práticas ascéticas e martírios [...] que chama de ‘vida infeliz’” (Schwartz, 2005, p. 33). Diante do exposto, diz Émilie Zum Brunn,

não restava, pois, a Guilherme mais que reunir em Assembleia solene, na Igreja de Saint-Mathurin, os teólogos mais ilustres da Universidade de Paris, em número de vinte e um, entre os quais estava Juan de Gante e Nicolau de Lira, que condenaram por unanimidade o Epelho e a sua autora (In: ÉPINEY-BURGARD ; BRUNN, p. 207-208).

Marguerite Porete foi, então, entregue ao braço secular, sendo queimada viva, como herética reincidente, juntamente com sua obra, na Place de Grève de Paris, em 01 de junho de 1310183.

Morte de Marguerite Porete, na fogueira

Fonte: http://www.wikideep.it/suor-margherita/

183 Segundo Sílvia Schwartz, além dos autos da inquisição, uma segunda fonte segura que narra o longo processo de condenação e o momento em que foi queimada na fogueira na praça pública de Paris são as Crônicas de Nangis, escritas por um monge beneditino anônimo da abadia St. Denis, que se refere pejorativamente a Marguerite Porete como uma pseudo mulier (cf. 2005, p. 35-36). Cf. também, BRUNN, Émilie Zum. Margarita Porete (†1310). In: ÉPINEY-BURGARD ; BRUNN, p. 204. 162 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Mas, como acentua M. Huot de Longchamp, na introdução a sua tradução francesa da obra de Marguerite Poreta, “a história do Espelho não se acaba com a morte da autora. Seu dossiê teológico é então transferido para Viena, no Delfinado, onde vai acontecer em 1311-1312 o famoso Concílio que condenará massivamente a mística nórdica, especialmente a do Mestre Eckhart e a do Espelho, genericamente confundida com os desvios das seitas do Livre Espírito” (LONGCHAMP apud BRUNN, In: ÉPINEY-BURGARD ; BRUNN, p. 210). O Concílio de Viena condenava definitivamente não só a obra de Marguerite Porete, mas o movimento beguinas como um todo, o qual, segundo Sílvia Schwartz, continha três erros contrários à ortodoxia católica:

1. que o homem podia alcançar um estado de perfeição terrena no qual era incapaz de pecar; 2. que, para tal, o homem não precisaria orar e jejuar, porque em seu estado de perfeição a sensualidade está subordinada à razão, de forma que ele pode garantir livremente seu autocontrole; 3. também não necessitaria obedecer a leis humanas e da Igreja, pois “onde o espírito do Senhor está, há liberdade (Schwartz, 2005, p. 38).

Cinco anos depois, a voz de Marguerite Porete ainda ressoava o que leveria o papa João XXII a promulgar o decreto “Cum de quibusdam mulieribus”, no qual, referindo-se a ela, diz: “nós temos decidido e decretado, com a aprovação do Concílio, que seu modo de vida tem de ser proibido definitivamente e excluído da Igrrja de Deus” (apud AGUADÉ, 2010, p. 35). Apesar de tais condenações, a obra de Marguerite Porete continuou sendo lida, influenciando pensadores, especialmente místicos, ao longo dos séculos, como relata Marco Vannini:

O livro de Marguerite, embora condenado, continuou a ser lido, mais ou menos ocultamente. Seguramente foi conhecido por santa Catarina de Gênova, assim também pela milanesa Isabella Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 163

Berinzaga, cujo Breve compêndio Sulla perfezione cristiana, traduzido ao francês no fim do século XVI, está na base do extraordinário florescimento místico do século XVII na França. Simone Weil (sempre se trata de mulheres!) também o leu e o amou, mesmo que no fim de sua breve vida, e hoje me parece que ele é unanimemente reconhecido em toda a sua extraordinária profundidade (VANNINI, 2012, p. 9)184.

Mas, provavelmente o pensador cronologicamente mais próximo e que mais sofreu influência da obra de Marguerite Porete foi o Mestre Eckhart, segundo afirma Ceci Baptista Mariani:

Marguerite e Mestre Eckhart habitaram o mesmo mundo. O Movimento Beguinal esteve sob a orientação espiritual das ordens mendicantes: os franciscanos se dedicaram aos begardos, e os dominicanos, às beguinas. Marguerite participa da tradição renana. No tema da relação entre aniquilamento e nobreza, por exemplo, que é um tema nuclear na obra de Marguerite, encontramos um claro paralelo em escritos de Mestre Eckhart. Para ambos os autores, a nobreza é condição que nos vem do aniquilamento. No sermão O Homem Nobre, Mestre Eckhart vai descrever o homem nobre como aquele que avança no caminho do desprendimento, degrau a degrau, até ‘despojar-se da imagem (humana) para revestir a imagem da eternidade divina, pelo esquecimento total e perfeito da vida transitória e temporal, de tal modo que, feito filho de Deus, e atraído por Deus, o homem se transmude em imagem de Deus’ (2012, p. 62)185.

A tese de que o Mestre Eckhart tenha entrado em contado com a obra de Marguerite Porete se apoia em duas hipóteses:

184 Igualmente diz BRUNN, Émilie Zum. Margarita Porete (†1310). In: ÉPINEY-BURGARD ; BRUNN, p. 209: “Longe de cesar com a morte de Margarida, as repercussões da Inquisição permitiram lograr de algum modo os avanços do Espelho na Europa dos séculos XIV e XV. O texto quebrava, com efeito, as barreiras linguisticas como nenhum outro escrito místico em língua vulgar. É isto o que testemunha as seis versões que tem chegado até nós, em francês antigo, italiano antigo, inglês médio e latim (a versão germânica, se é que tenha existido, não se tem localizado). São atualmente acessíveis em uma quinzena de manuscritos, havendo que se assinalar outros, aqui e ali, para desaparecer misteriosamente”. 185 Cf. também, Schwartz, 2012, p. 68. Bem como, AGUADÉ, 2010, p. 16. 164 | Mulheres Intelectuais na Idade Média primeiro, “que tenha conhecido a obra em sua permanência em Paris entre 1302-1303, através de Goffredo de Fontaines, teólogo e colega da Sorbonne, que deu uma das aprovações do Miroir” (VALLARSA, [s.d.], p. 118); segundo, pela “convivência do Mestre dominicano com o inquisidor e confrade Guilherme Humbert no convento dominicano de Saint Jacques, durante o segundo magistério parisiense (1311-1313), isto é, apenas um ano depois da execução de Porete” (RASCHIETTI, 2010, p. 297).

Gertrudis von Helfta, a Grande (1256-1302)

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Gertrudes_de_Helfta

Das origens de Gertrudis von Helfta (em português Gertrudes de Helfta), amplamente conhecida como (die Grosse) a Grande186, uma das chamadas místicas de Helfta, pouco se sabe,

186 A princípo, o cognome a Grande é para diferenciá-la das demais Gertrudes existentes na sua época, tais como: Gertrudes de Hackeborn (a Velha), abadessa de Helfta, mosteiro onde Santa Gertrudes, a Grande, habitava (1241-1297); a beata Gertrudes de Altenberg (1227-1297) e Santa Gertrudes de Delft, falecida em 1358, etc. Das três monjas, Santa Gertrudes, a Grande, foi a única que escreveu suas obras em latim, o que faz presumir que as outras duas não dominavam tal língua. As outras escreviam em alemão, o chamado médio-alto-alemão (Cf. SARANYANA, 1999, p. 248, nota 110). Mas, é claro que o cognome a Grande não foi só para diferenciá-la das demais Gertrudes, mas faz jus a sua grandeza como santa, mística e escritora, conforme chama a atenção Ana Laura Forastieri: “Não resta dúvida de que santa Gertrudis seja uma santa, e que seja uma grande mística, a que a tradição designou de Magna” (2013, p. 3), daí o Papa Bento XVI ter dito em uma de suas preleções que ela foi “a única da Alemanha que recebeu o apelativo ‘Grande’, pela estarura cultural e Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 165 apenas que nasceu em 06 de janeiro de 1256, na Turíngia – Alemanha. Em 1261, aos cinco anos de idade, chegou ao mosteiro cisterniense feminino de Helfta, que naquela época estava sob os cuidados dos Dominicanos, onde seria educada pela mestra Santa Matilde de Hackeborn, de quem se tornou grande amiga187. Em seus primeiros anos de educação conventual conheceu e se deixou levar pela cultura profana, provavelmente oferecida pelos Dominicanos, uma vez que a orientação espiritual/educacional do mosteiro estava entregue a eles. Nesta fase, “a pupila de Helfta, Gertrudis recebeu a educação clássica de seu tempo: o trivium e o quadrivium, o que lhe assegurou uma sólida cultura literária, filosófica, teológica e musical” (FORASTIERI, 2013a, p. 107). E os reflexos desta primeira fase da formação de Gertrudes, a Grande, fizeram-se presentes nas suas obras da maturidade, nas quais, segundo Joseph-Ignacio Saranyana, há sinais da “riqueza do Dionísio Pseudo-Aeropagita e da precisão de Santo Tomás” (1999, p. 248). Mas, em 27 de janeiro de 1281, depois de uma crise interior eu durou cerca de um mês, Gertrudes, a Grande, teve uma visão de Cristo, nerrada por ela no seu Memorialis Adundantia Divinae Pietatis (Memorial da Abundâcia da Divina Piedade), que no final, lhe dizia: "Não temas, te salvarei, te livrarei [...] Volve-te para mim e eu te embriagarei com a torrente de meu divino regalo" (II, 1,2), o que a faz mudar radicalmente o direcionamento de seus esforços intelectuais, comforma esta escrito em sai biografia:

Desde então reconhecu ter estado longe de Deus, na região da diferença, quando se apegava demasiando aos estudos liberais, descuidando em adquar a agudeza de sua mente e a inteligência a luz espiritual e, aderindo ávidamente as deleições da sabedoria humana, se privava do gosto suavíssmo da verdadeira sabedoria. evangélica: com sua vida e pensamento, erla incidiu de modo singular a espiritualidade cristã” (BENTO XVI. Audiência geral, 2010, p. 1). 187 Além de Santa Matilde de Hackeborn, Santa Gertrudes conviveu também com Santa Matilde de Magdeburg, e, juntas,, formariam o famoso trio das místicas de Helfta. 166 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

A partir daquele momento, começou por si mesma a deesprezar tudo que é exterior [...]. Pelo que, deste então, da gramática se voltou para a teologia, devorando sem fadiga todos os livros inspirados que em qualquer cisrcunstância pudesse ter ou adquiri [...] (apud FORASTIERI, 2013a, p. 113).

Convertida, segundo Joseph-Ignacio Saranyana, “se empenhou em levar uma vida de oração e contemplação, acompanhada de experiências místicas: deixou os estudos clássicos e se centrou nas Sagradas Escrituras, nos textos dos Padres e teólogos” (999, p. 248). Ou seja, como acentua o comentador J. Doyère o que caracteriza a conversão de Getrudes “não é uma volta a Deus de uma alma dada ao pecado ou somente cega pela indiferença de distrações frívolas: é a sua passagem do intelectualismo à visa mística” (apud CARVALHO, 1981, p. 12 - destaque nosso), de forma que ela “continuará, contudo, um severo trabalho intelectual centrado no estudo da Escritura Sagrada, o que fará de si um bom representante da ‘teologia monástica’ tal como era concebida por S. Bernardo” (Ibid., 13). Gertrudes desenvolveu esse trabalho intelectual de tradutora e comentadora dos textos sagrados principalmente no período de 1281 a 1289. Seguindo a linha de sua mestra, Matilde de Hackeborn, Gertrudes, a Grande, desenvolveu grande devoção ao Sagrado Coração de Jesus e à Eucaristia, dedicando-se à organização da liturgia e das festas religiosas. Em 1289 Gertrudes, a Grande, recebeu a missão de colcoar por escrito suas visões. Num primeiro monento relutou, mas acabou escrevendo, de próprio punho, num documento que viria a se chamar Memorialis Adundantia Divinae Pietatis (Memorial da Abundâcia da Divina Piedade), que, posteriormente, foi incluído, como Livro II, na sua obra maior chamada Legatus divinae pietatis (Legado da piedade divina), que consta de cinco livros, dos quais apenas o Livro II, com dissemos, foi escrito por ela mesma, sendo os demais fruto de compilações feitas pelas irmãs (ou confidentes) Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 167 de seu mosteiro, a partir de anotações deixadas por ela. Em suma, a obra tem a segunte estrutura:

O livro I é uma espécie de Vita Prima, redigido pela compiladora, em que recolhe testemunhos sobre a santidade de vida, as virtudes, carismas e privilégios divinos concedidos a santa; o livro II, em 24 capítulos, é o Memorial da Abubdância da Divina Piedade, que é único escrito pela própria Gertrudes, a Grande, e pode considerar-se autobigráfico; os livros III a V foram escritos com base nas confidências da santa, durante seus últimos vinte anos da santa, e reúnem: visões e revelações diversas em torno da Eucaristia, do Coração de Jesus, da Paixão do Senhor e outras devoções (livro III – em 89 capítulos), visões por ocasião das festas litúrgicas (livro IV) e as revelações sobre o destino final de alguns defuntos (livro V) (FORASTIERI, 2013a, p. 108, nota 9).

A supracita obra foi publica pela primeira vez em 1505, em alemão, com tradução do dominicano Paul Weida, com o título: Das Busch des Botschaft der göttlicher Güttigkeit, mas não teve grande circulação. Somente em 1536 foi feita uma edição latina da obra, por Dirck Loer e Johannes Lanspergius, monge cartuxo de Colônia, quando recebeu o título de Legatus ou Insinuationes divinae pietatis (Legado ou Insinução a piedade divina), que acabou dicandp conhecido ou citado simplesment por Lagatus. A grande edição de 1536 fazia parte do movimento de contrareforma, fazendo frente ao monge Martinho Lutero. A partir dai a obra adquiriu fama e difusão, de forma que, segundo José Adriano Cavalho, até começo do século XVIII foram feitas cerca de cinquenta edições, o que mostra a força que teve a teologia mística de Gertrudes neste período, inclusive foi neste período que foi acrescentado ao seu nome o cognome “a Grande” (cf. CARVALHO, 1981, p. 36). Gertrudes, a Grande, escreveu também, outra obra chamada Exercitia Spiritualia (Exercícios Espirituais), dirigida as monjas, cuja finalidade é reavivar o fervor religioso mediante a meditação, com sete exercícios que correspondem aos momentos mais importantes da vida de uma monja: batismo, conversão, 168 | Mulheres Intelectuais na Idade Média consagração virginal, profisão monástica, louvor divino e morte, entendida como um encontro com o divino Esposo. Além disso, escreveu outras obras menores, em alemão, mas que se perderam. A sua espiritualidade está centrada na piedade divina, tendo como principal referencial teórico as Sagradas Escrituras, corroborada pela literatura da tradição eclesiástica, da qual se destacam os santos Padres da Igreja. E, dentre as fontes da tradição eclesiásticas que influenciaram Gertrudes, a Grande, temos, Santo Agostinho, Gregório Magno e Bernardo de Claraval. Também a Regra de Sãon Bento, Beda, o Venerével, Jerônimo, Leão Magno, Hugo de São Victor, Guilherme de Saint Thierry e outros padres cistercienses. Além do franciscano Boaventira e dose dominicanos Alberto Magno e Tomás de Aquino. E como metodologia,

a origalidade da doutrina gertrudiana radica na reelaboração pessoal destas fontes a partir de sua experiência espiritual. Esta se expressa em forma de orações - fundamentalmente nos Exercícios - e de visões - nos Legados - , em uma linguagem prevalentemente simbólica e evocativa, rica de imagens e metéforas de forte resonância afetiva. Apela aos sentidos corporais, a linguagem das emoções humanas, para expressar diversos aspectos da ânsia e a percepção da presença divina em seu interior. Prevalece à simbólica e o campo semântico do desejo e da intimidade conjugal. O âmbito simbólico da experiência é o coração, lugar da resonância da Palavra, da memoria Dei, sede do affectus, da devoção, da intimidade e comunhão com o Senhor (FORASTIERI, 2013b, p. 6).

Esta é a mensagem ou o Legado que recebeu e que deve ser transmitir a todo mundo, daí o título de sua principal obra Legatus divinae pietatis (Legado da piedade divina). Dezemos recebeu, porque, a exemplo de tantas outras místicas visionárias da Idade Média, Gertrudes, a Grande, considerava que as verdades contidas em suas obras não pertecniam a ela, não era fruto de um esforço intelectual pessoal, mas as recebeu através de suas experiências Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 169 místicas. Tinha conciência de que ela era apenas uma humilde portadora da vontade Daquele que as transmitiu, conforme vemos num techo de sua biografia:

A humildade a fazia considerar-se totalmente indigna dos dons recebidos: parecia-lhe impossível que fosse por seus méritos recebê-los; se considerava canal pelo qual os secretos desígnios de Deus fazia passar a graça a seus eleitos [...]. Isto fazia pela fidelidade para com Deus [...] (apud FORASTIERI, 2013b, p. 8).

Gertrudes, a Grande, morreu em Helfta, Saxônia, em torno de 1302. Sua festa é celebrada em 16 de Novembro, mas a data exata confunde-se com os registros da morte da abadessa Gertrudes de Hackeborn, a Velha, irmã de Mechthild von Hackeborn. Foi canonizada pelo Papa Clemente XII no ano de 1677.

Christine Ebner (1277-1356)

Fonte: http://www.heiligenlexikon.de/

Christine Ebner (em português, Cristina Ebner), filha de Patricio Ebner Seyfried e sua esposa, Elisabeth Kuhdorf, nasceu na cidade imperial de Nürnberg - Alemanha, em 26 de março de 1277. Em 1289, com a idade de 12 anos, entrou para o Mosteiro de São João Batista, em Engelthal, da Ordem dos Dominicanos, que tinha sido fundado pelas beguinas cerca de cinquenta anos antes. Menos de um ano após sua admissão, Christine Ebner adquiriu uma misteriosa enfermidade, que se repetiu três vezes por ano, pelo resto de sua vida. A partir de então começou a ter frequentes visões místicas, que seriam relatadas ao confessor, o 170 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Frei Conrado de Füssen, que a encorajou a escrever. Por volta de 1317 ela começou, pois, a escrever seu primeiro livro Gnadenleben (A vida da graça), que só veio a concluir em 1324. A partir de 1338, por intermédio do padre secular Henrique de Nördlingen, Christine Ebner começar a se corresponder com Margaret Ebner, que era uma religiosa dominicana envolvida ativamente no movimento espiritual da época; Dois anos depois, em 1340, Christine Ebner começou a compilar as visões místicas e experiências de vida de outras monjas de seu mosteiro, que seriam publicadas em uma obra chamada Livro de Irmãs. Entre 1344 e 1352, escreveu mais um livro, intitulado Offenbarungen (Revelações), em que relata os acontecimentos históricos, políticos e sociais da época, como os motins e o terremoto em Nürnberg (1348), o surto da Peste Negra e as procissões de flagelados em 1349, bem como a longa briga entre o sacro imperador Luís IV (Luís da Baviera) e a Santa Sé. Nessa obra Christine Ebner não se limita ao papel de um mero espectador. Ela desenvolve suas próprias opiniões sobre os eventos e até mesmo tenta influenciar o seu curso. Por esse tempo, sua reputação se espalhou amplamente pelo norte da Europa. Em 1350, o próprio Imperador Luís IV veio visitá-la no mosteiro, buscando sua orientação e suas orações. Finalmente, após sua morte, em 1451, os manuscritos de outro trabalho - o Von der Gnaden Überlast (Sobre o ônus da graça), escrito provavelmente entre 1328 e 1346 -, lhe foram atribuídos. Christine Ebner morreu em seu mosteiro, em Engelthal, no dia 27 de dezembro de 1356, aos 67 anos de idade. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 171

Margaret Ebner (1291-1351)

Fonte: http://saints.sqpn.com/saintm2y.htm

Margaret Ebner nasceu em 1291, na cidade de Donauworth - Suábia - Alemanha. Por ser oriunda de uma rica família, desde cedo recebeu uma educação clássica completa. Em 1306 entrou para o Mosteiro de Maria Mãe de Jesus (Maria-Medingen), dos dominicanos da Segunda Ordem, perto de Dillingen. Por ter contraído uma doença grave, entre 1312 e 1322 foi mandada para casa a fim de recuperar-se, momento em que começou a ter visões místicas, nas quais dizia receber a visita do Menino Jesus. Ao retornar ao convento, em 1332, passou a ser orientada espiritualmente pelo sacerdote secular Henrique de Nördlingen, que foi seu confessor pelo resto da vida. A pedido do referido confessor espiritual, escreveu em dialeto suábio um relato completo de suas experiências místicas, uma espécie de Diário espiritual (Revelationes) de cunho autobiográfico, no qual relata suas conversas com o Menino Jesus, motivo pelo qual ficou conhecida pelo título de “Mãe Mística”. Além dos relatos de suas visões, Margaret Ebner manteve extensa correspondência com o notável teólogo e pregador dominicano Johannes Tauler, líder de um movimento leigo espiritual conhecido como os “Amigos de Deus”. 172 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Morreu em 20 de julho de 1351, em Medingen, Alemanha, e foi beatificada em 24 de fevereiro de 1979 pelo Papa João Paulo II , a primeira beatificação de seu pontificado.

Brigida Birgersdotter (da Suécia) (1303-1373)

Fonte: www.ficscaminodesantiago.com/.../Santa+Brígida+d...

Brigida Birgersdotter (ou Brígida da Suécia), nasceu na fazenda Finsta188, em Nörrtälje, província da Uppland, Suécia, em 1303, sendo filha do aristocrata Birger Persson de Finsta e de Ingeborg Bengtsdotter, segunda esposa de seu pai. Quando a mãe de Brigida estava grávida dela, seus pais fizeram uma viagem à ilha de Öland, quando, “durante a travassia foram surpreendidos por um forte temporal, e o barco no qual navegavam encalhou num penhasco [...]. Durante a noite Ingeborg teve um sonho: um anjo lhe apareceu e disse: ‘seguirás sã graças à filha que levas no ventre. Deus te deu de presente, educa-a no amor a Deus’” (Acta et processus Canonizacionis Beste Birgitte. p. 615 In: ALMAZÁN, 2000, p. 27). Tempos depois, no local d tragédia

188 Segundo JAMES, 2012, “Finsta era a residência da família Finsta, e pertenceu durante certo tempo (porém não na época do nascimento de Brígida) a seu pai, Birger Persson. Seu pai era juiz de Uppland, e seu avô paterno, seu avô materno e seu irmão também exerceram essa profissão. Seu esposo também viria a ser juiz e um filho seu exerceria igualmente a mesma atividade. Seu avô materno era primo de Magnus Ladulás, de modo que Brigida tinha parentesco com a família real sueca”. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 173 foi erguida uma cruz de pedra, para marcar o acontecimento, e até hoje os merinheiros costumam ir a esse local para prestar louvores a santa. Segundo consta na Acta et processus Canonizacionis Beste Birgitte (p. 625), quando chegou o dia do nascimento de Brígida, aconteceu outro fato inusitado:

Quando chegou a hora do seu nascimento o sacedote da paróquia da cidade vizinha se encontrava em oração e viu uma nuvem brilhante e nela a Virgem sentada com um livro na mão. Ante a admiração do sacerdote lhe falou a Virgem: ‘Nasceu a filha de Birger cuja voz admirável será ouvida em todo o mundo’ (Ibid.).

Além de Brígida, o casal teve mais seis filhos, dos quais sabemos apenas o nome de um deles, Israel, que era o único do sexo masculino. A exemplo de Hildegard von Bingen, já na infância Brígida teve suas primeiras experiências místicas e/ou visionárias, assim,

certa noite, quanto Brigida tinha sete anos, despertou, e viu ante sua cama um altar, e nele a Virgem com uma coroa nas mãos, que lhe disse: ‘Vem, Brígida, queres usar esta coroa?’ Brígida sentiu o contaro em sua cabeça e jamais duvidou daquele momento. Mais tarde, quando tinha dez anos, ficou envejosa ao ouvir um sermão acerca da Paixão do Senhor, e à noite viu a Jesus na cruz que lhe disse: ‘Olha, como sofro! ‘Meu doce Senhor’ – exclamou Brigida – ‘quem te fez isto?’ ao que respondeu Jesus Cristo: ‘Os que me desdenham e duvidam de meu amo’. Cristo crucificado, a Virgem Maria e o caráter de juiz e do tribunal serão os temas de suas visões e revelações (Ibid .).

Brigida ficou órfã de mãe quando tinha apenas dez anos de idade, fato que levou seu pai entregá-la aos cuidados de uma tia materna de nome Catarina, casada com Knut Jonsson, homem rico e influente tanto quanto o pai de Brígida. Quando Brígida tinha treze anos, seu pai e seus tios (ou pais adotivos) escolheram um dos filhos deste casal, ou seja, seu meio 174 | Mulheres Intelectuais na Idade Média irmão, para ser seu esposo. Brígida se casou com Ulf Gudmarsson189, de dezoito anos de idade, com quem viveu feliz por vinte e oito anos e juntos tiveram quatro filhos e quatro filhas, a saber: Gudmar (1320), que morreu jovem; Märta (1322), que veio a se casar com Sigvid Ribbing, mas depois da morte do marido passou a viver no Convento de Vadstena, fundado por sua mãe; Carlos (1324), que foi cavalheiro do Senhor de Ulfasa; Ingebord (1326), que se tornou monge cistercense, em Riseberga; Catarina (1331), que chegou a se casar com o nobre Eggart von Kyren, mas os dois fizeram votos de nunca viverem como marido e mulher, depois tomou conta da Ordem religiosa fundada por sua mãe e hoje é venerada com o nome da Santa Catarina da Suécia; Binger (1331), que tembém veio a se casar; Bengt (1334), que foi professor na escola cistercense de Alasatra, mas também morreu jovem; e Cecilia (1338), que mais tarde se fez dominicana em Skänninge. Em 1330, em meio a uma convulsão política que atigiu a Suécia, a família de Brígida acabou saindo beneficiada, tendo Ulf, seu marido, sido eleito membro do Conselho do Reino. Por intermédio de seus pais adotivos e de seu marido, Brígida passou a ter uma vida ativa, frequentando os círculos políticos e eclesiásticos mais influentes da Suécia de seu tempo, tendo sido chamada em 1355, pelo rei Magno Erikson II, para servir de dama de honra [preceptora ou mestra] da rainha Branca de Namur, que ao casar-se com o rei desconhecia a língua do país. As relações de Brígida com corte rederam-lhe grandes frutos: primeiro, teve acesso a biblioteca da real, quando, além da Bíblia, que conduziu consigo pelo resto da vida, segundo Vicente Almazán, “provavelmente chegou a conhecer os escritos dos Santos Padres, principalmente as obras de São Bernardo, Santo

189 Acerca do esposo de Brigida, diz Vicente Almazán: “Ulf, marido de Brigida, era um jovem de caráter nobre, muito justo e sério. Em toda sua vida foi um homem bondoso, um bom pai de família. Em seus trabalhos legislativos sempre contou com a ajuda de Brígida apesar de sua jovem idade. Ulf a amava muitíssimo e a respeitva com ternura. Por toda a comarca eram conhecidos como um casal ideal” (2000, p. 30). Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 175

Agostinho e São Jerônimo (v. cap. IV). Até os escritos de Aristóteles parace terem sido conhecidos. Examinando seus escritos se detecta igualmente um conhecimento - difícil de saber até que ponto - de Tomás de Aquino e de São Boaventura” (ALMAZÁN, 2000, p. 39)190. Em segundo lugar, mais tarde, quando pensou em construir o Convento de Vadstena, recebeu do Rei as terras e os recursos necessários para tal, dentre outras ajudas. Mas, as relações diplomáticas entre Brígida e a corte de Magno Erikson II nem sempre foram boas ou amistosas, ou não perduraram por muito tempo, uma vez que a ele foram dirigidas várias cartas, através das quais fazia chegar suas visões em forma de orientações, advertências e críticas ante as ações políticas da corte. Estes textos “políticos” foram reunidos depois em um Livro ou ocupam um Livro inteiro de suas Revelações (Livro VIII – O livro dos Reis e Imperadores), no qual 57 capítulos, ou seja, quase a metade dos 116 capítulos, são destinados ao rei Magno Erikson II. É um livro eminentemente de cunho político, onde Brígida transmite aos Reis e Imperadores, conselhos sobre como devem comportar-se, e embora justifique ou fundamente suas orientações e críticas em experiências místico-viosionárias, os conteúdos das mensagens reveladas demonstram que há uma forte influência da literatura filosófico-teológica política em moda em seu tempo, nomeadamende dos manuais que ficaram conhecidos pelos nomes de Exemplum e/ou Speculum, que era um estilo literário muito comum desde os gregos e que ganhou força na tradição cristã,

190 E o mesmo comentador dá-nos notícias de que na Biblioteca da Univerdidad de Uppsala há um livro com uma nota na primeira página, escrita em latim, que diz: “Esta livro, chamado Doutrina de São Bernardo, levava Brigida sempre em seu alfoje”. E os investigadores Isak Collijn e Andreas Lindblom defendem que “este livro foi adquirido provavelmente por Brígida durante sua peregrinação a Compostela” (cf. Ibid., p. 63). Bem como, na p. 80, diz que, “das fontes de autores místicos anteriores à época de Santa Brigida, podemos citar pelo menos Mestre Echart, Johannes Tauler e Enrique Suso. Já se fala no capitulo VI [das Revelações] (Santa Brigida e o misticismo) destes três místicos”. E, ainda, na p. 83: “Entre as fontes literárias que a santa empregou para sua obra temos que levar em conta igualmente obras de literatura profana, coisa fácil de reconhecer ao ler seus escritos. Na época de Brigida existiam já na Suécia obras que chamaríamos hoje ‘enciclopédicas’”. 176 | Mulheres Intelectuais na Idade Média principalmente com Gregório Magno, que chegou a ser considerado “o pai do exemplum medieval” (HARTO TRUJILLO, 2011, p. 514), que fazia das vidas dos santos um instrumento catequético-pedagógico de educação do povo. Ou seja, “o exemplum é uma série de histórias (compilatio), geralmente curtas, que servem para induzir a pessoa que as escuta ou lê a seguir o modelo apresentado” (LEITE, 2008, p. 22). E há fortes indícios que Brigida tenha entrado em contato com essa literatura, uma vez que seu confessor e mestre Matias havia colecionado uma série de exemplos numa obra a que veio a se chamar Copia exemplorum, na qual reunia trechos das obras Speculum virginum e do Liber de modo bene vivendi, de Gregório Magno, do Policratus (1159), de Jean de Salisbury; do Eruditio filiorum nobilium (1246), de Vincent de Beauvais; do Eruditio regum et principum (1259), de Gilbert de Tournai; e, principalmwnte, do De regimine principum, de Tomás de Aquino e o De regimine principum (1287), de Egídio Romano. E dentre os conselhos e admoestações mais comuns entre as visões que Brígida fez chegar até os Reis, através de suas cartas, estão aqueles em que exorta os Reis a renderem obediência ao Papa, já que nos últimos tempos muitos deles resolveram aderir ao movimento adversário ao hierocracismo papal, rejeitando a tese de que o Papa detinha a plenitude do poder, espirital e temporal. Igualmente em relação à Igreja, inclusive ao papado, há cartas severas frente ao comportamento de certos eclesiásticos, que praticavam vários tipos de pecados, movidos pela avareza e sede do poder. Um exemplo, desse discurso áspero encotra-se logo no início das Revelações, quando, referindo-se ao Papa [Clemente VI], teria dito Cristo a Brígida:

[...] agora declaro meu desgosto contigo, cabeça de minha Igreja [Clamente VI], tu que te sentas em minha cátedra. Concedi esta cátedra a Pedro e seus sucessores para que sentem com uma tríplice dignidade e autoridade: primeiro, para poderem ter o poder de atar e desatar as almas do pecado; segundo, para puder Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 177

abrir o Céu aos penitentes; terceiro, para que fechem o Céu aos condenados e àqueles que me desprezam. Porém tu, que deverias estar libertando almas, és realmente um assasino de alma. Designei a Pedro como o pastor e o servente de minhas ovelhas, mas tu as dissipas e as perde, és pior que Lucifer. Ele tinha inveja de mim e não pretendia matar a ninguém além de mim, de forma que pudesse governar em meu lugar. Mas tu és pior, visto que, não só me matas ao apartar-me de ti por teu mau trabalho, senão que, também matas as almas devido o teu mau exemplo. Eu redimi almas com meu sangue e as encomendei a ti como um amigo confiável. Mas tu as devolves ao inimigo de quem eu as redimi. És mais injusto que Pilatos. Ele tão somente me condenou a morte. Mas tu não só me condenas como se eu fosse um pobre homem indigno, senão também condenas as almas de meus eleitos e deixas libres os culpados. Mereces menos misericórdia que Judas. Ele tão somente me vendeu. Mas tu, não só me vendes, senão que também vendes as almas de meus eleitos em troca de teu próprio proveito e vã reputação. Tu és mais abominável que os judeus. Eles tão somente crucificaram meu corpo, mas tui crucificastes e castigastes as almas de meus eleitos, para quem tua maldade e transgresão são mais afiadas que uma espada. Assim, posto que és como Lucifer, mais injusto que Pilatos, menos digno de misericórdia que Judas e mais abominável que os judeus, minha ira para contigo está justificada (BRÍGIDA, Santa. El libro de las revelaciones celestiales, I, 41, 2016, p. 64-65).

Mas, em meio, ou apesar dos compromissos políticos, Brigida continuava com suas visões de Nossa Senhora e Jesus Cristo crucificado, bem como, levava uma fervorosa vida religiosa, indo à missa todos os dias, confessando-se uma vez por semana, etc, além de uma ativa vida de caridade junto aos pobres. Vida esta que acabou por envolver também seu marido, que não só lhe seguia nas atividades religiosas, mas lhe ajudava financeiramente a concretizar seus trabalhos de socorro aos pobres. E assim, o casal acabou por colocar Cristo no centro de sua vida matrimonial. Na Vita escrita por Pedro de Skänninge, incluída na Acta do seu processo de canonização de Brígida, encontramos um trecho 178 | Mulheres Intelectuais na Idade Média significativo sobre a influência dela na espiritualidade de seu marido:

Quando Brigida tinha feito grandes progressos em virtude, ganhou a seu marido para Deus. Mesmo sendo ele uma pessoa poderosa e influente no Conselho do Reino, se dedicou, seguindo o conselho de sua esposa, a ler as horas e livros sobre a Santíssima Virgem Maria, e além disso se esforçou em cumprir com justiça a lei. Tanto o marido como a mulher ardiam em amor a Deus, e para livrar-se ainda mais das coisas mundanas, deixaram o lugar e a família, seguindo o exemplo de Abrahão, e fizeram com grandes esforços e gastos, uma peregrinação a Santiago de Compostela (Acta et processus Canonizacionis Beste Birgitte. In: ALMAZÁN, 2000, p. 134).

Em 1339, seguindo uma tradição de família, Brígida, acompanhada do marido Ulf e de amigos, resolveu fazer uma peregrinação a Santiago de Compostela - Espanha, pois segundo Francisco Singul, “já seu pai, Biger Peterson, havia peregrinado a Santiago em 1321, igualemtne tinha feito seu avô, seu bisavô, seu tetravô [...]” (SINGUL, 2016, p. 61 ), de forma que como bem observa Vicente Almazán, “o sentido da peregrinação está bem claro na mente de Santa Brigida. O tema, e, sobretudo, a prática da peregrinação aparece com grande frequência nas Actas, nas Revelações, e em quase todos os trabalhos escritos sobre ela” (2000, p. 57), de forma que podemos dizer que ela era a Santa da Peregrinação, ou como a chamou Anderson Aron, “a santa peregrina dos peregrinos” (apud ALMAZÁN, 2000, p. 370). A caminho da Espanha, em 1341, na cidade francesa de Arras, seu marido Ulf adoeceu, e, em meio à doença, prometeu que, caso sobrevivesse, se consagraria à vida religiosa. Por estes dias, diz a tradição popular, que São Dionísio apareceu a Brigida e prometeu-lhe que seu marido não morreria nessa ocasião. De volta à Suécia, em 1342, ela e o marido se consagraram como oblatos no Mosteiro Cisterciense de Alvastra, mas Ulf se encontrava cada vez mais enfermo e acabou falecendo em 12 de Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 179 fevereiro de 1344. Foi enterrado no Mosteiro de Alvastra, vestido no hábito cisterciense, embora não tenha chagado a ser um monge propriamente dito, mas apenas um oblato. Após a morte do marido, Brigida, com apenas quarenta e dois anos de idade, repartiu seus bens entre os herdeiros e os pobres, passando a viver de maneira simples nas imediações do convento de Alvastra, onde estava enterrado seu marido, dedicando-se penitência e oração, momento em que Cristo a escolheu como esposa, conforme narra em uma de suas visões místicas:

Escolhi-te e te atraí ao meu lado como esposa para poder revelar- te meus segredos segundo a minha vontade. Também tu, já que, em regra, me pertences, já que após a morte do teu marido me entregaste a tua vontade, já que ele está morto, queres fazer-te pobre por mim e dar-me todas as tuas coisas [...]. Tu, portanto, minha esposa, se não há nada que desejes a não ser a mim, se desprezas todas as coisas por mim, não só filhos e pais, senão honras e riquezas, te darei uma recompensa doce e preciosa: não te dou ouro nem prata, senão a mim mesmo como marido (BrIgida, Santa. El libro de las revelaciones celestiales, I, 2, 2016, p. 2-4 ).

Além da supracitada visão, muitas outras vieram, numa das quais, Brígida recebe a missão dee fundar uma Ordem religiosa. Para tal, em 1346, tendo recebido do Rei a doação de uma propriedade nas proximidades de Vadstena, resolve contruir ali um Convento, com uma igreja de três naves. Além da propriedade, o Rei lhe dou 6.000 marcos para construção do Convebnto, que segundo Vicente Almazán, “foi o obséquio mais esplêndido que se conhece na história do norte da Europa” (2000, p. 34). Além disso, muitas outras doações vieram de forma que em poucos anos o Convento eatava erguido. Faltava agora regularizar ou reconhecer a Ordem, que num primeiro momento foi autorizada pelo arcebispo, necessitava da aprovação do Papa. 180 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Em 1349, Brigida partiu para Roma, com o propósito de tomar parte na celebração do jubileu de 1350 e obter permissão do Papa Celestino VI para fundar uma nova ordem religiosa, que se chamaria Ordem de São Salvador. Foi, acompanhada de sua filha Catarina, do filho Binger e de seu confessor, o prior Peter Olafsson, o qual, mais terde, além de traduzir, do sueco antigo para o latim191, parte de suas visões (as últimas partes), que seriam publicadas como acrescimos a obra Revelações, foi um dos principais responsáveis pelo levantamento da documentação necessária ao processo de canonização dela junto à Curia romana, a chamada Acta et processus Canonizacionis Beste Birgitte. Brígida e sua comitiva atravessaram quase toda a Europa exatamente no período em que ali assolava a peste negra. Entretanto, na ocasião o Papa residia em Avignon e, além disso, a Igreja havia proibido o estabelecimento de novas ordens religiosas. Brigida permaneceu em Roma, residindo perto da Basílica de San Lorenzo in Damaso, até que, em 1368, tendo o papa Urbano V regressado a Roma, entregou-lhe as Regras192 de sua Ordem de São Salvador, as quais foram aceitas em 05 de julho de 1370, mas, para tal, como o Concílio de 1215 havia proibido a criação de novas ordens religiosas, teve de ser modificada em alguns pontos, de forma a adaptar-se a uma já existente, neste caso a Regra de Santo Agostinho. Só em 1377, a Regra da Ordem de São Salvador foi revista, aproximando-se da versão original, e,

191 Além de confessor, Peter Alafsson fora também professor de latim de Brígida, e segundo Vicente Almazán, “nas Actas, lemos nas declarações de vários textos no processo de caninização que a santa lia e compreendia bem o latin” (2000, p. 37), mas, provavelmente não escrevia, de forma que foi necessária a tradução de suas visões para o latim por parte de Peter Alafsson. Mais adiante, na p. 78, Vicente Almazán volta ao assunto e diz: “Pelos escritos importantes que teve de consultar, é de supor que Brígida conhecesse bem o latim [...]. E durante o tempo que Brígida passou na Suécia recebeu lições de latim de seu preceptor Petrus Olavi (Peter Alofsson)”. Além disso, acrecenta o comentador: “Pelos muiotos anos que viveu em Roma, não há dúvida que também teve bons conhecimentos do italiano”. 192 De acordo com Vicente Almazán, as Regras da Ordem de São Salvador, que Brígida entegou ao Papa Urbano V, ”era composta de 3 capítulos introdutórios, 27 que constituiam a Regra, e outros 4 conclusivos” (2000, p. 121). Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 181 finalmenmte, em 03 de dezembro de 1378, aprovada pelo Papa Urbano VI. Durante sua estadia em Roma, num albergue para peregrinos193, junto aol Campo dei Fiori, ao lado da igreja de San Lorenzo em Damaso, foi procurada por pobres e doentes, mas também peregrinos e autoridades civis e eclesiásticas, que lhe procuravam em busca de conforto espiritual, dada a sua fama de santidade e visionária. Quando tinha aproximadamente sessenta e oito anos, no final de 1371, em uma visão, Brigida recebeu a missão de realizar mais uma peregrinação, desta vez à Terra Santa, quando a Virgem Maria lhe aparece e disse:

Ó filha. Eu sou a Rainha do céu, e posto que tu me amas com tão grande amor, te anuncio que irás em peregrinação a santa cidade de Jerusalém, quando for vontade de meu Filho, e dali passarás a Belém, onde oportunamente te direi como dei à luz meu filho Jesus Cristo, pois assim é a vontade Dele (BRIGIDA, Santa. El libro de las revelaciones celestiales, VII, 1, 2016, p. 521).

Atendendo ao anúncio, na manhã do dia 25 de nobvembro de 1371, Brigida partiu na acompanhia de um grupo de amigos e familiares, a saber: seus filhos Catarina, Carlos e Birger, o confessor Peter Olafsson, o seu outro confessor e mestre Pedro de Skänning, o bispo espanhol Alfonso Pecha Hernández, da diocese de Jaén, o prior do Mosteiro de Vadsten Magnus Petri, o capelão Gudmar Fridirici e as espanholas Praxédes e Elvira. Ao retornar a Roma, uma enfermidade a debilitou de tal forma que no dia 23 de julho de 1373 veio falecer. Não sem antes (cinco dias antes) receber uma última visão na qual Jesus Cristo, sentado num altar, apaerceu-lhe com um rosto alegre, anuncia que

193 A casa onde Santa Brígida morou em Roma “existe até hoje e se chama ‘casa de Santa Brígida’ e possui igualmente uma residência para as monjas brigidinas e um albergue para peregrinos, junto ao célebre palácio Farnese, hoje em dia embaixada da França” (ALMAZÁN, 2000, p. 38). 182 | Mulheres Intelectuais na Idade Média o dia mais importate de sua vida estava por acontecer, dia em que ela se uniria definitivamente ao seu Esposo – Jesus Cristo:

Tenho feito contigo como costuma fazer o noivo no dia do casamento, que se oculta de sua esposa, para que esta o deseje ainda mais; assim eu não tenho te visitado com frequência durante estes tempos, porque era o tempo de tua prova. Mas agora caminha e prepara-te, porque já é tempo de que se cunmpra o que eu havia te prometido, pois em cinco dias te vestirás de Religiosa194 e serás consagrada diante de meu altar, e desde então serás considerada não só como minha esposa, senão como monja e religiosa de Vadstena (BRIGIDA, Santa. El libro de las revelaciones celestiales, VII, 21, 2016, p. 548).

E assim, cumprindo-se a vidão, na manhã do dia 23 de julho, após a celebração da santa missa, “se confessou, recebeu a extremaunção e lhe pusseram o círio da morte em suas mãos, e Jesus Cristo lhe apareceu pela última vez. A quem exclamou: ‘Senhor Jesus Cristo, em tuas mãos encomendo o meu espirito’ e deu o seu último suspiro” (ALMAZÁN, 2000, p. 43). De forma que nunca mais retornou, em vida, a sua terra natal. Seu corpo foi enterrado na igreja romana de San Lourenzo di Panisperna. Mas, atendendo a um pedido, que havia manisfesta ainda em vida, de que queria ser enterrada na Suécia, em 1381 foi feita a transferência de seus restos mortais para o Convento de Vadstena, sendo colocados na mesma tumba em que se encontravam também os restos mortais de sua filha Santa Catarina da Suécia. A partir daí, com a presença das relíquias de duas santas, mãe e filha, Vadstena passaria a ser o centro de peregrinações mais frequentado da Suécia, o que faria jus a Brígida ser chamada de “a santa peregrina dos pereginos”, conforme vimos anteiormente.

194 Por isso, estando hospedadas no Convento das Irmãs Clarissas por ocasião de sua morte, Brígida pedia que fosse enterrada vestida em um hábito de freira, embora não pertencesse a esta Ordem. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 183

O processo de canonização de Brigida começou em 1377 e durou até 07 de outubro de 1391, quando foi declara santa pelo papa Bonifácio IX, passando a ser padroeira da Suécia, daí ficar conhecida pelo nome de Santa Brígida da Suécia. Em 1999 foi elevada, junto com Santa Catarina de Sena e Santa Teresa Benedita da Cruz (Edith Stein), a co-patrona da Europa. A Ordem de Santa Brígida da Suécia perdura até nossos dias sob o nome de Ordem de São Salvador (Ordo Sancti Salvatoris), chamada comumente de Ordem Brigidina. Em 1377, por ordem do bispo Alfonso Pecha Hernández, da diocese de Jaén, fora publicada uma primeira parte das visões de Santa Brigida, as quais foram passadas do sueco antigo para o latim por seu primeiro confessor Pedro de Skänning. Esta primeira edição, com oito livros, e um prologo do mestre Matias, foi intitula simplemente de Revelacões. Mais tarde, seu segundo confessor, Peter Alafsson, acrescentou outros livros, passando a obra a se chamar Revelacões extravagantes e adicionais. Em 1857-1884, saiu uma versão para o sueco antigo, para as monjas brigidinas que desonheciam o latim. E só em 1957-1959 tivemos uma tradução completa em língua suec moderna, feita por Teyggve Lundén. Esta edição,

com muitas ilustrações é, com muito poucas objeções, uma obra excelente para a maioria dos leitores suecos e de outros países que conhecem a língua sueca. A edição, além das Revelações, contém a vida de Santa Brígida e da abadessa Margareta Claudotter, as regras da Ordem do Santíssimo Salvador, o Sermo Angelicus, as quatro orações, a vida de Santa Catarina (filha de Brigida), milagres de Santa Brigida e a bula da canonização, além de índices de pessoas e lugares (Ibid., p. 75).

A obra literária de Santa Brigida não chama a atenção pela erudição, ou pelo conhecimento que demonstra ter da tradição, muitas vezes citadas diretamente por ela em seus escritos, mas pelo peso da piedade e religiosidade com que relata com ardor suas 184 | Mulheres Intelectuais na Idade Média experiências místico-visionárias, afinal ela mesma, a exemplo de tantas outras místicas visionárias da Idade Média, não considerava que os conhecimentos que transmitia em seus escritos pertencessem a si mesma, ou fossem fruto de seu esforço ou conhecimento intelectual, mas que os recebia em suas experiências místico-visionárias, que ela era apenas uma portavoz Daquele que falava através dela. Algumas das mensagens eram para ela mesma, mas muitas estavam direcionadas a outras pessoas, a quem deveria fazer chegar, dente as quais, autoridades civis e eclesiásticas, o justificava sua atuação político-missionária junto a Papas, Reis, Bispos, Abades, etc. De qualquer forma, afora as desconfianças ou preconceitos, pelo fato da obra ser fruto de experiências místico- viosionárias, os grandes críticos da literatura sueca, e até de outros países, reconhecem que, pelo vocabulário, pelas alegorias, pelas metáforas e outras figuras retóricas, Santa Brigida foi, como bem resume o grande escritor sueco Henrik Schück, “o maior gênio poético da Suécia na Idade Média”.

Juliana Norwich (1342-1430)

Fonte: http://dignicats.blogspot.com.br/

Da vida de Juliana Norwich pouco se sabe, principalmente dos anos que antecedem sua vida religiosa, quando viveu como anacoreta ou eremita reclusa em um anexo na parte leste do Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 185 cemitério da Igreja de Santa Juliana, pertencente ao mosteiro das monjas beneditinas de Carrow, em Norwich - Inglaterra195. Mas, pelo que deixou escrito em sua obra Revelações do amor divino, em que narra suas visões, que, segundo ela, aconteceram em 13 de maio de 1373, quando tinha trinta anos e meio de idade, conclui-se que seu nascimento remonta ao fim de 1342 (cf. CIRLOT; GARÍ, 1999, p. 256). Ou seja, aos 31 anos de idade, repentinamente Juliana Norwich encontrou-se gravemente doente. Acreditando-se que ela estava prestes a morrer, suas companheiras se desesperaram e chamaram um padre para oferecer-lhe a extrema-unção. Enquanto ele balançava um crucifixo ao seu redor, ela teve 15 visões do sofrimento Jesus Cristo, que aconteceram num período de cerca de cinco horas. Uma última visão aconteceu um dia depois (14 de maio de 1373), quando ela já estava fora de perigo, ou seja, quando milagrosamente a doença desapareceu (cf. Ibid., p. 256). Logo após as visões, ela escreveu uma primeira e breve versão do que havia visto, e que é conhecida pelo nome de texto curto. Vinte anos depois (1393), após muitas reflexões, voltou a escrever uma segunda versão, esta mais extensa, buscando dar uma interpretação teológica às suas visões, páginas que ficariam conhecidas como texto longo. Essas duas obras foram posteriormente reunidas numa obra maior chamada Revelations of divine love (Revelações do amor divino), que é considerado o primeiro livro no idioma inglês escrito por uma mulher. Embora Juliana Norwich, a exemplo de muitas místicas medievais, não se apresente como mestra, mas como uma "simples criatura analfabeta", o que diz não vem de si mesma, mas daquele

195 Segundo BERTELLI, 2005, p. 120, “Juliana viveu como eremita e reclusa, junto à Igreja de Santa Juliana. Em sua época muitas pessoas viviam como eremitas, desenvolvendo uma espiritualidade não monástica. De seu eremitério ela podia olhar o interior da igreja. A comunicação com o exterior era mediante uma janela, por onde recebia comida. Ali também acolhia pessoas em busca de orientação espiritual. Cultivava uma horta e um jardim. Tinha como companhia seu gato de estimação”. Daí a presença de um gato em boa parte das pinturas medievais que a retratam. 186 | Mulheres Intelectuais na Idade Média que lho revelou, conforme escreve nos primeiros Livros de sua obra Revelações do amor divino:

Deus me proíbe que diga que sou uma mestra, pois não é assim nem nunca foi minha intenção; pois sou uma mulher ignorante, débil e frágil. De forma que o que estou dizendo o tenho recebido por revelação daquele que é o mestre soberano[...] (JULIANA NORWICH. Revelações do amor divino, VI, 40-43).

A Enciclopédia Católica Eletrônica New Advent diz que

nos anos decorridos entre a visão e a composição do livro, ela evidentemente havia adquirido algum conhecimento de teológica fraseologia, e seu trabalho aparece para mostrar a influência de Walter Hilton, bem como das analogias neoplatônicas, o que provavelmente deriva do autor anônimo do Cloud "Divina Ignorância” (NEW ADVENT, 2012).

Assim sendo, segundo Victoria Cirlot e Blanca Garí,

longe de ser uma mulher inculta, Juliana demonstra em seu texto um profundo conhecimento das fontes patrísticas, bíblicas e medievais, um uso ágil e fluido de retórica, e uma capacidade extraordinária de argumentação teológica expressa com grande audácia em inglês (1999, p. 259).

E, ainda segundo as supracitadas comentadoras, “a reclusa de Norwich exercia efetivamente as funções de uma autêntica mestra [...]. Pois, é verdade que nada diz Juliana a esse respeito, mas possuímos o testemunho extraordinário de que assim era na autobiografia de Margery Kempe” (Ibid), de quem Juliana Norwich aparece como conselheira intelectual. De qualquer forma, é provável que o beneditino Adam Easton - cardeal da Inglaterra - tenha sido o diretor espiritual de Juliana Norwich e editor do seu livro Revelações do amor divino. Nessa obra, Juliana Norwich conseguiu reconciliar a bondade de Deus com o imenso sofrimento do mundo (especialmente Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 187 aqueles do seu tempo, uma vez que viveu no auge da “peste negra”). Para isto, dando um caráter otimista à sua teologia, “via na paixão de Jesus, fisicamente: sofrimento e dor; e, espiritualmente: via a profundidade do amor e bondade de Deus, que também sofreu para vencer o mal. Frente a essa misteriosa imensidão da bondade de Deus o mal é impotente” (BERTELLI, 2005, p. 122). E assim, influenciada pela teologia de Orígenes que acreditava que a humanidade caminhava para a perfeição (apokastatasis panton), diz que, em Cristo, todo sofrimento se converte em alegria. Daí sua teologia ser simplificada historicamente em suas palavras: “O fim de todas as coisas será bom”. Juliana Norwich faleceu em 1416 e é venerada pelos anglicanos e luteranos, mas nunca foi oficialmente canonizada, ou sequer beatificada pela Igreja Católica. Após sua morte, sua obra continuou influenciando e encantando outros pensadores ao longo dos séculos, atingindo inclusive nomes da contemporaneidade, como Aldous Huxley e, principalmente, Tomas Merton, que em sua obra Mística e Zen escreve:

Madame Juliana é a maior dos místicos e místicas de língua inglesa. E não só isso, é ademais uma das grandes teólogas inglesas no sentido antigo da palavra [...]. De fato encontramos em Juliana de Norwich uma admirável síntese de experiência mística e de reflexão teológica, que vai das “visões corporais” da Paixão de Cristo às “visões intelectuais” da Trindade, e das reflexões sobre a Criação e a providência às intuições que penetram no mais profundo segredo da redenção e da misericórdia divina. Em uma palavra, Juliana de Norwich possui um corpus doutrinal coerente e sistematicamente construído, que só recentemente tem começado a ser estudado como merece (apud CIRLOT; GARÍ, 1999, p. 280)196.

196 Segundo BERTELLI, 2005, p. 120, Tomás Merton “chega a considerá-la como a maior mística de todos os tempos, acima de São Bernardo e São João da Cruz”. 188 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Catarina di Siena (1347-1380)

Fonte: http://fraternidadesaogilberto.blogspot.com.br/

Catarina Benincasa (ou de Siena)197 nasceu em Siena – Itália (motivo pelo qual alguns a chamam de a Joana D’Arc da Itália), no dia 24 de março de 1347. Foi a 24ª filha do humilde tintureiro de roupas Giacomo (ou Jacopo) di Benincasa e de Lapa Piacenti (filha do poeta Puccio di Piacente), com quem ele se casou em segundas núpcias. Sua família era extremamente pobre, de forma que na infância não teve chance de aprender a ler nem a escrever e esteve sempre debilitada e enferma. Aos 06 anos de idade teve suas primeiras experiências místicas e, aos 16 anos, depois de uma visão com São Domingos de Gusmão, entrou para a Ordem Terceira das Penitentes de São Domingos, tornando-se Montellata, nome dado às mulheres que se consagravam a esta Ordem, por usarem sobre as vestes brancas um manto negro (montellato). Segundo Bernard Sesé,

foi na Cappella delle Volte, em San Domenico in Camporeggio, no final do ano de 1374, ou início de 1375, que se deu a cerimônia, diante da prioresa e de toda a congregação. Das mãos do mestre da congregação, frei Bartolomeo Montucci, Catarina recebeu o

197 Catarina de Siena nasceu prematuramente e sua irmã gêmea, que receberia o nome de Giovanna, morreu com poucos dias de vida. Dois anos depois, segundo Marsden, 2010, “sua mãe deu à luz uma 25ª criança, outra menina, que se chamaria Giovanna”, que também faleceu com apenas um ano de idade. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 189

traje branco, símbolo da pureza, e o grande manto negro, símbolo da humildade, das terciárias de São Domingos (2008, p. 28).

A partir de então, Catarina di Siena passou a viver em regime de reclusão, no qual se incluíam rigorosas práticas de ascetismo: mortificações do corpo198, extremo jejum, chegando a passar vários dias tendo como único alimento a santa eucaristia199, e fuga do sono200, sem se retirar da sela senão para assistir à missa e receber a eucaristia. Mas em 1370, época em que a epidemia da “peste negra” devastava a Europa, Catarina di Siena teve uma segunda e forte experiência mística, quando uma violenta e misteriosa doença a atingiu deixando-a por treze horas em aparente estado de morte, a ponto das irmãs de Ordem prepararem seu velório e sepultamento, uma vez que fora tida como morta. Quando, porém, menos se

198 Vanessa Marsden (2010) dá-nos notícias de que, a partir de então, “ela passou a vestir até a morte uma camiseta/camisola de correntes que lhe feria a carne, a dormir em um banco de madeira com uma pedra por travesseiro/almofada e a martirizar-se 3 vezes ao dia por uma hora com uma corrente de aço: uma vez por seus pecados, uma pelos pecados dos vivos e uma pelos dos mortos”. Já UNDSET, 1956, p. 31, confirma tais informações e acrescenta que, desde criança, fase em que teve várias visões, Catarina di Siena buscava o isolamento em um quarto vazio “e ali se flagelava, em segredo, seus ombros frágeis com uma corda”. Igualmente, “ao contrário das demais crianças em fase de crescimento, fez-se mais silenciosa e passou a comer menos”. 199 Por ter adotado um extremo regime alimentar, com longos períodos de jejum, a supracitada comentadora (Marsden, 2010) diz que, “segundo pesquisadores e estudiosos, Catarina di Siena sofria de anorexia mirabilis, que significa ‘falta de apetite milagroso’. Essa condição parece referir-se quase que exclusivamente a mulheres e adolescentes da Idade Média que jejuavam, muitas vezes, até a morte, em nome de Deus. O fenômeno também é conhecido como inedia prodigiosa (jejum prodigioso)”. Além disso, segundo José Baile Ayensa, Catarina di Sena “também praticava o que em nossos dias denominaríamos um comportamento com traços bulímicos, dado que introduzia galhos de madeira na garganta para provocar vômitos depois de alimentar-se” (2012, p. 81). Para uma maior compreensão do fenômeno da anorexia de Catarina de Siena ver o capítulo IV da tese de doutorado de NASCIMENTO, 2011, p. 165, mais especificamente o tópico 4.1 Anorexia mirabilis “santa anerossia” e o artigo: “Anorexia nerviosa en el siglo XIV: el caso de Catarina de Siena” (BAILE AYENSA, 2012). 200 SESÉ, 2008, p. 22, diz que “Catarina privava-se do sono de um modo que alcançaria proporções assustadoras (meia hora de sono a cada duas noites)”. Já UNDSET, 1956, p. 32, justifica que, “como era com o céu que devia manter relações, o tempo dedicado ao sono parecia-lhe realmente como perdido”. 190 | Mulheres Intelectuais na Idade Média esperava, ela deu um suspiro e retornou aos sentidos, experiência que ficou conhecida como “morte mística”. Dezoito anos mais tarde, ao ser interrogada por seu biógrafo, Raimundo de Cápua, se naquele momento ela havia experimentado a morte, se havia sentido a separação entre alma e corpo, respondeu que, de fato,

a alma separou-se do corpo e eu vi os mistérios divinos, que não podem ser escritos por nenhum vivente, pois a memória não os conserva, nem haveria palavras capazes de dizer coisas tão sublimes. E acrescentou: enquanto a alma via todas essas coisas, o eterno Esposo [...] me disse: vês de quanta glória estão privados e com que tormentos são punidos aqueles que me ofendem? Retorna, pois, à vida e faze-os compreender seu erro e o perigo da condenação [eterna]. Como a minha alma se mostrasse contrariada, o senhor disse: a salvação dos homens exige que retornes à vida. Mas não viverás mais como até agora. O pequeno quarto não será mais a tua costumeira moradia: pelo contrário, para a salvação das almas deverás sair da tua cidade. Estarei contigo sempre, na ida e na volta. Levarás o louvor do meu nome e a minha mensagem a pequenos e grandes, os leigos, clérigos e religiosos. Colocarei em tua boca uma sabedoria à qual ninguém poderá resistir. Conduzir-te-ei diante de papas, bispos e governantes do povo cristão, a fim de por meio dos fracos, como é do meu feitio, eu humilhe a soberba dos fortes (apud SESÉ, 2008. p. 40).

Com esse chamado ou intimação, a partir daí deixou o claustro e assumiu uma vida pública de profetisa. Primeiro, dedicou-se aos cuidados das pessoas atingidas pela epidemia, socorrendo os enfermos, principalmente no Hospital de Santa Maria della Scala. Mais tarde, em 1376, mudou-se para Roma, onde lutou infatigavelmente com orações, exortações e cartas para acabar com o grande Cisma do Ocidente, até persuadir autoridades civis a aderirem às Cruzadas, e o Papa Urbano VI, a voltar para Roma. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 191

Por essa época, voltou a ter visões, agora de Jesus, Maria, São João, São Paulo e do rei Davi. Em uma delas a Virgem Maria apresentou-a a Jesus, que com ela firmou compromisso nupcial, colocando sobre ela um anel de ouro com quatro pérolas em um círculo e um grande diamante no centro, dizendo-lhe: "Declaro-te minha noiva para a eternidade, na fé perfeita que te conservará pura e imaculada até que na alegria festejemos nossas bodas no céu" (CATARINA di Siena apud UNDSET, 1956, p. 49)201. Por isso se refere a Cristo sempre como seu Noivo divino, motivo pelo qual, embora não fosse cobrado voto de castidade aos membros da Ordem Terceira, Catarina di Siena vivia em estado de castidade, guardando-se para seu prometido, Cristo, conforme relata:

Tu, que escolheste uma virgem para ser Tua Mãe Imaculada, bem sabes o quanto uma boa reputação é valiosa para todas as jovens. Vem, pois, no meu auxílio, meu Senhor, meu Deus, a fim de que a serpente não me afaste de um encargo que assumi por Teu amor (apud UNDSET, 1956, p. 74).

Tamanha era a ligação entre ela e seu Noivo que, a partir de então, passou a sentir em seu corpo as dores de Cristo. Além disso, às vezes, quando orava, chegava a levitar e, uma vez, quando se preparava para receber a Sagrada Comunhão, o padre sentiu a hóstia tornar-se viva, movendo-se e voando de seus dedos para a boca de Catarina. Em 1375, durante uma visita a Pisa (Itália), depois de receber a comunhão, na pequena igreja de Santa Christina, enquanto meditava e agradecia orando frente a um crucifixo, entrou em êxtase; seu corpo levitou202 e sobre ele raios de luz desceram e

201 Aliás, o próprio Sidrid Undset, noutra ocasião (p. 43), ressalta que, diferentemente de outras místicas medievais, Catarina de Siena relata suas visões não simplesmente como uma realidade suprassensível, extática, por exemplo, mas como experiências sensíveis, nas quais não só via Cristo, mas tmbém com Ele dialogava e caminhava fisicamente. 202 Aliás, a prática da levitação era muito frequente na vida de Catarina di Siena, que até mesmo no cotidiano apresentava sinais deste dom, conforme relata seu confessor Raimundo de Cápua: “De fato, como sua mãe me contou diversas vezes, pedindo-lhe em seguida confirmação em segredo, ela 192 | Mulheres Intelectuais na Idade Média atingiram suas mãos e pés, e todos puderam ver nela os estigmas ou chagas de Cristo. Logo após o acontecido, relata frei Raimundo de Cápua, seu confessor:

Ela me chamou e me disse em voz baixa: Saiba, padre, que pela misericórdia do Senhor levo no corpo esses estigmas [...]. Vi o Senhor pregado na cruz vir até mim em meio a uma grande luz. O arrebatamento da minha alma, desejosa de ir ao Criador, foi tamanho que meu corpo foi obrigado a subir. Daí essas cicatrizes de suas santas chagas; vi descer na minha direção cinco raios de sangue, dirigidos para minhas mãos, meus pés no céu e meu coração [...] (apud SESÉ, 2008. p. 59).

As marcas dos estigmas permaneceram para sempre em Catarina di Siena e até mesmo após sua morte ficaram bem visíveis em seu corpo incorrupto, quando este foi desenterrado em 1383. Além disso, na Vida de Santa Catarina, a Madre Francisca Raphaela, uma de suas biógrafas, relata que, quando estava em transe, a Santa era imune ao fogo. Ela conta que, certa vez, Catarina di Siena caiu em um fogo na cozinha e, apesar do fogo ser grande, quando foi retirada dele por outros membros presentes, nem ela nem suas roupas estavam sequer chamuscadas. Embora analfabeta203, Catarina di Siena ditou 381 cartas endereçadas a papas, reis e líderes políticos, nas quais deixa transparecer sua luta pela unificação da Igreja e a pacificação dos reinos204. Além disso, entre 1377-1378 escreveu, ou melhor, ditou não pôde negar; às vezes, ou melhor, na maior parte do tempo, ao subir ou descer a escada da casa, ela sentia erguer-se no ar, sem que seus pés tocassem os degraus. Sua mãe assegurou-me sentir-se tomada de uma grande angústia ao vê-la subir tão velozmente a escada” (RAIMUNDO de Cápua, apud SESÉ, 2008. p. 15). 203 Como tantas outras místicas medievais, Catarina de Siena mostrava-se uma mulher humilde e analfabeta, mas Raimundo de Cápua, um de seus confessores e principal escriba de suas obras, bem como seu primeiro biógrafo, conta que ela conseguia ler em latim e italiano. Outro biógrafo seu, Tommaso Caffarini, afirma que ela sabia escrever, mas confirma que as cartas e o Diálogo foram ditados. 204 Para nossas pesquisas usamos aqui a versão crítica italiana: CATARINA di Siena. Lettere. Ed. crítica curata da Dupré-Rheseider. Roma: Istituto Storico Italiano dal Medioevo, 1940. João Batista do Nascimento, em sua tese de doutorado, diz que “as cartas se destacam pela eloquência, clareza de Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 193 uma obra, intitulada Diálogo, fruto de suas experiências místicas, o qual foi impresso pela primeira vez em Bolonha, em 1472, e depois, reeditado diversas vezes, quando recebeu vários outros títulos como: Diálogo da divina providência – Livro da divina revelação - Livro da divina doutrina, etc205. O certo é que ainda hoje tal obra é considerado um dos maiores testemunhos da mística cristã e uma exposição clara das ideias teológicas de Catarina di Siena. Catarina di Siena faleceu em 29 de abril de 1380, em Roma, com apenas 33 anos de idade206. Seu corpo foi enterrado no altar principal da Igreja de Santa Maria Sopra Minerva. Três anos depois, em 1383, frei Raimundo de Cápua mandou abrir a tumba, tendo sido o corpo encontrado incorrupto e conservado. Segundo Bernard Sesé, sua cabeça foi separada do corpo e transportada para Siena, sua terra natal, onde foi colocada num relicário na Cappella delle Volte, em San Domenico in Camporeggio, local em que fez a sua consagração religiosa, em 1374 (cf. 2008, p. 146)207. Catarina di Siena foi canonizada pelo Papa Pio II, em 29 de junho de 1461. Em 1866 foi declarada segunda padroeira de Roma, pelo Papa Pio IX, e, em 04 de outubro de 1970, o Papa Paulo VI

raciocínio, o tom inspirado e pela caridade, mas eram, ao mesmo tempo, incisivas, decididas, demonstrando que Catarina era segura de si”. E, mais adiante, conclui: “O estilo é profundamente pessoal: ora simples ora audaz”, o que levou o escritor Johannes Jeorgesen a dizer que se tratava de “uma alma viril num débil corpo de mulher” (apud Nascimento, 2011, p. 50). 205 Baseamo-nos aqui na versão crítica italiana: CATARINA di Siena. Dialogo della divina provvidenza ou Libro della divina dottrina. 5. ed. crítica curata da G. Cavallini. Roma: Ed. Cateriniane, 1995. 206 Por ter Catarina falecido aos 33 anos de idade, Vanessa Marsden (2010) levanta a hipótese de que, “dado que Jesus aparentemente morreu com a mesma idade e que Maria Madalena, ídolo de Catarina, aparentemente jejuou por 33 anos, há indícios de que sua morte tenha sido um suicídio passivo por desnutrição”. 207 Já Rainer Sousa acrescenta a informação de que “a morte de Santa Catarina de Siena provocou uma tenebrosa disputa pela posse de seu corpo. A solução encontrada foi realizar a extração de seu pé direito, que acabou parando na cidade de Veneza, e da cabeça, que ficou como principal relíquia de sua cidade natal. Atualmente, o resto de seu corpo está depositado na cidade de Roma, capital da Itália” (2012). 194 | Mulheres Intelectuais na Idade Média declarou-a Doutora da Igreja208, sendo a única leiga e umas das quatro mulheres a obter esta distinção na história209. Finalmente, em 1999, o Papa João Paulo II declarou-a copadroeira da Europa, juntamente com Santa Brígida da Suécia e Santa Teresa Benedita da Cruz (Edith Stein) e, em 1939, foi eleita copadroeira da Itália junto com São Francisco de Assis.

Dorotea de Montau (1347-1394)

Fonte: http:// hagiopedia.blogspot.com

Dorotea de Montau (em polaco: Dorota z Matowów), filha do rico fazendeiro Willem Swartz, nasceu em Gross Montau, região da Prússia, no dia 6 de fevereiro de 1347. Aos dezesseis anos se casou com Adalberto de Dantzig, rico artesão de armas, com quem teve nove filhos, dos quais quatro

208 Segundo NASCIMENTO, 2010, nota 26, p. 8, “Doutor da Igreja Católica (em latim, Doctor Ecclesiae) significa que foi um teólogo cujos pensamentos, escritos e forma de vida, para a Igreja romana, na sua generalidade, progrediram de forma excepcional”. 209 Informação confirmada por TEIXEIRA, 2012, p. 15, que diz: “Recentemente, o Vaticano anunciou que Bento XVI pretende declarar Hildegarda de Bingen doutora da Igreja, título detido por apenas outras três mulheres em toda a história: Teresa de Jesus, Catarina de Sena e Teresa de Lisieux”. Da mesma forma, o Instituto Humanitas – Unisinos, em mensagem postada no dia 28 de abril de 2012, afirma: “A Igreja reconheceu até hoje 33 ‘doutores’, trinta dos quais são homens. As mulheres da lista são apenas três: Teresa de Ávila, Catarina de Sena e Teresinha de Lisieux, as duas primeiras proclamadas por Paulo VI, em 1970, a última, por João Paulo II, em 1997”. Tal declaração aconteceu em 10 de maio de 2013, junto com sua canonização, conforme veremos mais adiante. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 195 morreram ainda criança, e quatro durante a prega de 1383, só restando uma filha, de nome Gertrudes, que ainda jovem entrou para vida religiosa, no Mosteiro Beneditino de Colônia. Quando tinha 31 anos, Dorotea de Montau teve suas primeiras visões (êxtases), o que levou a ser maltratada pelo marido, um homem muito temperamental e de caráter violento. Mas, com pasciência e perseverança, aos pouco acabou consquistado a confiança e compreensão do marido, que acabou aceitando e apoiando a esposa. E juntos fizeram várias peregrinações religiosas a várias cidades, dentre elas Colônia, Aachen e Eisiedeln. Em 1390, o casal resolver emprender uma viagem de peregrinação a Roma, para visitarem os túmulos de Pedro e Paulo. Mas, impelido por uma enfermidade repentina, Adalberto de Dantzig acabou não viajando, e um ano depois, quando Dorotea de Montau retornou a sua cidade natal seu marido já havia falecido. Com amorte do mariado, Dorotea de Mantau resolveu mudar- se para Marienwerder, onde conheceu o frade João de Marienwerder (1343-1417), da Ordem Teutônica. Um sábio teólogo e professor, que logo viria a ser seu diretor espiritual, além de escriba de suas visões. O texto com as visões de Dorotea de Montau, escrito em latim, rcebeu o nome de Septililium. Além disso, João de Marienwerder escreveu uma biografia da Santa, em quatro capítulos. Em 1392, com a permissão da Ordem Teutônica, Dorotea de Montau ergeu uma pequena cela na lateral da Catedral de Marienwerder, de onde, vivendo uma vida de extrema austeridade, por uma janela, diariamente assistia as missas e recebia a eucaristia. Além de, pela mesma janela, receber peregrinos que o pracuravam em busca de conselhos. Dorotea de Montau faleceu em Marienwerder no dia 25 de junho de 1394, e logo passou a ser venerada como Santa e Patrona da Ordem Teutônica e da Prússia. O Septililium, e a “Vida de Santa Dorotea”, do confessor João de Marienwerder, vieram à luz entre 1395 e 1404, editadas pelo Bolandistas, como elementos em prol do processo de canonização 196 | Mulheres Intelectuais na Idade Média da Santa. Mas, em 1414, o processo foi suspenso e só retornou em 1955, quando, finalmente, em 25 de junho de 1976, Dorotea de Manau foi beatificada pelo Papa Paulo VI.

Bartolomea Riccoboni (1369-1440)

Bartolomea Riccoboni, nascida em 1369, entrou para o convento dominicano de Corpus Domini em 1394, com a idade de 25 anos. Em torno de 1415, começou a escrever uma Crônica de seu convento210, em dialeto veneziano, a qual compreendia dezoito capítulos: onze descrevem a história do Convento e os outros sete registram os acontecimentos em torno do cisma papal, no qual metade das religiosas do seu convento seguiram o papa Gregório XII, de Roma, e outra metade, o papa Alexandre VI, de Pisa. Bartolomea Riccoboni faleceu em 1440.

Marjery Kempe (1373-1438)

Fonte: http://www.luminarium.org/medlit/margery.htm

Marjery Kempe (ou Marjery Brunham) nasceu em Lynn Rei (então Lynn Bispo), Norfolk, Reino da Inglaterra, em 1373. Seu

210 As edições recentes da obra trazem o seguinte título: Vida e morte de um convento veneziano. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 197 pai, John Brunham, comerciante de lãs em Lynn, fora cinco vezes prefeito da cidade, tendo sido até membro do Parlamento inglês. Na idade de 20 anos, Margery Brunham casou-se com John Kempe Norwich, com quem teve 14 filhos. Durante sua última gravidez, Marjery Kempe ficou gravemente doente, momento em que teve várias experiências de delírios, o que fez pensar que ela estaria possuída pelo demônio. Por conta disso, foi considerada uma ameaça à sociedade, motivo pelo qual passou seis meses acorrentada e isolada numa sala. Nesse período teve suas primeiras visões ou visitas de Jesus, em uma das quais, conforme ela mesma descreve:

Em forma de homem, o mais belo e formoso e amável que jamais se tinha visto; levava uma túnica e se sentou ao lado de minha cama, e olhando-me com uma expressão tão bendita me disse as palavras: ‘filha, por que tens me abandonado se eu nunca abandonei a ti?’ E, tão logo disse estas palavras, vi o céu abrir-se como um relâmpago: e Ele subiu ao céu, não com pressa, senão lenta e graciosamente, para que eu pudesse vê-lo no céu até que se fechasse novamente (apud DRPIC, 1999, p. 2).

Passada a crise, Marjery Kempe, que sempre ajudou ao marido nos negócios da família, resolve abandonar sua vida profissional e dedicar-se aos assuntos espirituais, para os quais se sentia chamada em suas visões. Para isso, depois de celebrar um pacto de abstinência sexual com seu marido, tornando-se ambos celibatários, inicia uma peregrinação religiosa pela Europa e Ásia, visitando, entre outros locais sagrados, Roma, Jerusalém e Santiago de Compostela. Entre 1413 e 1420, Marjery Kempe visitou importantes figuras religiosas da Inglaterra, dentre as quais Philip Repyngdon, Bispo de Lincoln, Chichele Henry, Arcebispo de Cantuária, e a mística Juliana Norwich. Em 1416 esteve em Roma, hospedando-se no Colégio Venerável Inglês. Finalmente, na década de 1430, foi à Noruega, onde visitou a relíquia do Santo Sangue Wilsnack. 198 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Suas visões e experiências de peregrinações foram ditadas e registradas pelos copistas em uma obra, de cunho autobiográfico, que ficou conhecida pelo nome de O livro de Marjery Kempe, concluído provavelmente no final dos anos 1430, pouco tempo antes do seu falecimento, que aconteceu em 1438. Os manuscritos de O livro de Marjery Kempe ficaram perdidos por muitos anos e só em 1934 a Senhorita Esperança Emily Allen identificou a cópia na biblioteca do coronel Butler- Bowdon de Pleasington Old Hall, em Lancashire, Inglaterra.

Juliana Berners (1388-146?)

Fonte: http://www.google.com.br/imgres?

Juliana Berners (ou Barnes ou Bernes), nascida, provavelmente, em 1388, e que veio a ser prioresa do Convento Sopwell, perto de St. Albans - Inglaterra, é autora de um importante tratado sobre a pesca, intitulado Treatise of fishing with an angle (Tratado de pesca com um anzol), que foi a primeira obra em língua inglesa sobre o assunto escrita por uma mulher. Não só a primeira, mas, segundo Andrew N. Herd, a mais importante:

O Treatise é a obra de referência mais completa desde o início da pesca da mosca. O texto inclui instruções sobre como fazer uma vara, linha, anzóis, instruções sobre doze tipos de mosca e dicas sobre como pegar as variedades comuns de peixes. O Treatise Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 199

destaca-se entre obras do período não menos importantes, porque é o primeiro livro impresso em pesca com mosca, mas também porque defende a pesca, colocando-a no mesmo plano que a caça. A caça era o esporte dos reis e nobres, e reivindicar o Treatise deve ter causado algumas sobrancelhas levantadas na época. No entanto, a influência da Treatise foi imensa. Trata-se de um trabalho popular e reimpresso muitas vezes ao longo do século que se seguiu à sua primeira publicação. Não houve obra mais importante sobre a pesca com mosca por mais de dois séculos [...] (HERD, 2012).

A obra foi publicada pela primeira vez como texto aditivo à 2ª edição do livro de caça The Book of Saint Albans, em 1486, e seria a grande referência no assunto por mais de duzentos anos, até Izaak Walton escrever o clássico The Complete Angler (O completo pescador com linha), em 1653. Ao longo dos séculos saíram várias edições do Treatise, sendo ele ainda hoje uma obra de destaque, conforme comenta Robert Lee Petri:

Treatise permanece uma obra notável pelos seus detalhes e visão. Guia completo para os pescadores de seu tempo, o livro contém informações substanciais sobre os destinos da pesca Rod e da construção da linha, seleção de iscas naturais e artificiais, curativos preferenciais, moscas categorizados pela época de sua utilidade ideal. Talvez o mais notável sejam os ensaios sobre as virtudes de conservação, respeitando os direitos dos proprietários de terras ribeirinhas e a etiqueta do pescador. Esses conceitos não viriam a ser comumente aceitos e defendidos no mundo até 400 anos após a publicação do Treatise, mas hoje eles encarnam o fundamento ético da pesca esportiva (PETRI, 2012).

A data precisa do falecimento de Juliana Berners não é conhecida, mas Andrew N. Herd, baseado em relatos de John Bale em seu Catálogo de Escritores Ilustres da Grã-Bretanha (1559), dá- nos notícias de que, em 1460, ela ainda estava viva, devendo ter falecido pouco tempo depois211.

211 Cf. BALE apud HERD, 2012: “Ela floresceu no ano do Senhor de 1460, no reinado de Henrique VI”. 200 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Catarina di Bologna (1413-1463)

Fonte; http://oamorsedeixaencontrar.blogspot.com.br/

Catarina di Bologna (em português, Catarina de Bolonha), ou Catarina di Vigri, como também é conhecida, filha do diplomata Giovanni Vigri e de Benvenuta Manolini, nasceu em Bolonha - Itália, em 08 de setembro de 1413. Foi educada na corte de Ferrara, como dama de companhia de Margarida, filha de Nicolau III, marquês D’Este, a serviço do qual estava seu pai. Aos treze anos de idade, tendo ficado órfã de pai, decide-se pela vida religiosa, ingressando num mosteiro de Terciárias Agostinianas. Mas, percebendo que a comunidade na qual ingressara não vivia com radicalidade evangélica sua opção, lutou para, junto com suas companheiras, passarem a viver a Regra de Santa Clara, sob a orientação dos Observantes, cujo testemunho de vida sempre a impressionara. Depois de inúmeras dificuldades e vicissitudes, as irmãs adotam finalmente a Regra própria de Santa Clara. O Papa Eugênio IV, em uma bula de abril de 1431, enviou algumas Clarissas de Mântua para que compusessem a nova comunidade clariana, estimulando-as à exata observância da Regra no seu primitivo rigor, atendendo assim às santas aspirações de Catarina di Bologna e de suas companheiras. Após algum tempo de Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 201 aprofundamento nesse estilo de vida - considerado como o seu noviciado - Catarina di Bologna professou em 1432, aos dezenove anos, a Regra de Santa Clara, pela qual tanto lutara. Em 1456 foi transferida para o Mosteiro de Corpus Domini, em Bolonha, onde logo adquiriu fama de santidade, atraindo para o Mosteiro muitas mulheres, dentre as quais a própria mãe e sua irmã, que se fizeram clarissas, de forma que em pouco tempo o referido Monastério se tornou um verdadeiro centro espiritual e cultural da região. Catarina di Bologna jamais aceitou o ofício de abadessa e, embora tenha sido mestra de noviças por longos anos, dedicou-se sempre aos trabalhos manuais do Mosteiro, especialmente como padeira e enfermeira. Mas, por ter tido uma boa formação intelectual desde a infância, destacou-se como grande escritora, poetisa, pintora e mística do renascimento italiano, notadamente por sua principal obra - As Sete Armas Espirituais212 -, que é uma síntese belíssima de sua pedagogia espiritual, na qual, como o próprio título sugere, encontram-se as sete armas espirituais a serem usadas pelo cristão para combater o mal no mundo:

1 - procurar solicitamente cumprir o bem; 2 - acreditar que, sozinhos, não poderemos jamais fazer algo de verdadeiramente bom; 3 - confiar em Deus e, por amor a Ele, nunca temer a batalha contra o mal, tanto fora como dentro de nós mesmos; 4 - meditar muitas vezes sobre os fatos e as palavras da vida de Jesus, sobretudo a sua paixão e morte; 5 - recordar-nos de que temos de morrer; 6 - manter viva na mente a lembrança dos bens do Paraíso; 7 - ter familiaridade com a Sagrada Escritura, trazendo-a sempre no coração, para que oriente todos os nossos pensamentos e ações.

212 Além da presente obra, no Mosteiro Corpus Domini de Bolonha encontram-se conservadas até hoje, as demais obras de Catarina di Bologna. Além disso, existe no Museu do Vaticano uma tela da autora retratando Jesus nos braços de Maria, que é a descrição de uma de suas visões, no Natal de 1456. 202 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

A partir de 1461, Catarina di Bologna passa por períodos sucessivos de graves doenças, até sua morte em 09 de março de 1463. Seu corpo foi enterrado sem caixão. Dezoito dias depois, devido ao odor de perfume que exalava de seu túmulo, este foi aberto e seu corpo foi encontrado incorrupto e flexível. A santa foi vestida como uma pobre Clarissa, com um livro, uma cruz sobre o peito e descalça, e foi colocada, sentada numa cadeira, revestida por barras de vidros, numa capela especial da Igreja do Mosteiro Corpus Domini – Bolonha, onde se encontra em perfeito estado de conservação e flexibilidade até hoje. Catarina di Bologna foi canonizada pelo papa Clementino XI, em 22 de maio de 1712. É padroeira da Academia de Arte de Bolonha, dos pintores e das artes liberais. A festa de Santa Catarina é celebrada pela Igreja católica no dia 09 de março.

Teresa de Cartagena (1425-????)

Fonte: http://inclusiveblog.blogspot.com.br/

Teresa de Cartagena, filha de Pedro de Cartagena e Maria de Saraiva, nasceu em Burgos - Espanha - em 1425, em meio a uma rica e influente família de judeus conversos, que teria exercido grande influência na sua formação intelectual. Seu avô paterno, Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 203

Rabi Selomó ha-Levi, converteu-se ao cristianismo em torno de 1390, tendo recebido no batismo o nome de Pablo de Santa Maria. Doze anos depois, em 1412, tornou-se bispo de Cartagena - ocasião em que a família recebeu o sobrenome de “Cartagena” e/ou “Santa Maria” -, e, a partir de 1414, bispo de Burgos213. Em sua primeira obra - Arboleda de los enfermos (Bosque dos enfermos) - Teresa de Cartagena diz que na juventude “assistiu os estudos de Salamanca”, o que, segundo Maria del Mar Cortês Timoner, “supõe-se que se refira à Universidade salamantina, onde estudaram seus tios Gonzalo, Alonso y Alvar García Sanchez de Santa Maria, ou então a uma escola vinculada às ordens religiosas” (2004, p. 379)214. Em 1440, entrou para o Mosteiro Franciscano de Santa Clara, em Burgos, tornando-se religiosa. Mais tarde, em 1449, foi transferida para o Mosteiro Cisterciense de Las Huelgas, onde, entre 1453 e 1459, ficou surda, fato que iria influenciar profundamente a supracitada obra. Arboleda de los enfermos (Bosque dos enfermos) é uma análise em primeira pessoa (autobiografia espiritual) da dor, solidão e isolamento social decorrentes da doença (surdez). Mas, longe de ter um caráter negativo, segundo Rilova Perez, “é um tratado sobre os benefícios espirituais do sofrimento físico, com base na experiência da escritora, ou seja, a surdez” (2010)215, o que

213 A esse respeito comenta VIDAL, 2010, p. 1: “A sua pertença à família Cartagena-Santa Maria influiu enormemente na produção literária de Teresa, pois chegou a vincular-se a famílias como a de Gómez Manrique, a cuja mulher dedica a segunda de suas obras [...]. Ademais, resulta evidente ter recebido uma esmerada educação: pode vislumbrar-se do conhecimento dos autores clássicos, inclusive uma instrução das letras latinas”. 214 Igualmente reforça essa informação VIDAL, 2010, p. 1: “Segundo seus escritos, sabemos que estudou em Salamanca com tutores da Universidade (possivelmente trata-se de uma educação assistida com professores da Universidade de Salamanca, pois não há registro de que Teresa tenha adquirido a dita instrução em nenhuma turma de aulas)” e ARAUZ MERCADO, 2007, p. 12. 215 Por isso diz Maria-Milagros Rivera Garretas: “Não se trata de um conjunto de fórmulas para aguentar, para sobrelevar a desgraça, mas de uma proposta de saúde espiritual e de paz, de recuperação da vontade de viver: da recuperação do desejo (que ela chama de ‘desejo em Deus’), que agora se projeta ao infinito, abrindo-lhe as vias da liberdade desconhecidas até então” (1999, p. 757). E conclui: “Hoje chamaríamos este livro de autoajuda ou autocura” (p. 758). 204 | Mulheres Intelectuais na Idade Média dá à obra um caráter autobiográfico-teológico ou de autoconsolação, uma vez que a autora interpreta sua condição existencial como obra da providência divina. Por isso, ao invés de lamentar-se acerca de sua enfermidade, Teresa de Cartagena apresenta o fato como um benefício concedido por Deus, que lhe deu o privilégio de privar sua alma do contato com os prazeres mundanos, do convívio social, elevando-a a um plano superior, espiritual. Daí afirmar Luis García que “esse isolamento devido à sua enfermidade cria as condições propícias para que surja o que Marichal tem chamado com acerto uma ‘perspectiva interiorizadora’ na literatura” (1989, p. 97). Mas, logo após sua publicação, a obra sofreu severas críticas por parte dos intelectuais do sexo masculino, que, por não admitirem que tivesse sido escrita por uma mulher, levantaram a suspeita de tratar-se de um plágio da obra de Pedro de Luna - Libro de las Consolaciones de la Vida Humana -, à qual certamente ela teve acesso. Em resposta às criticas misóginas, Teresa de Cartagena escreveu uma segunda obra, intitulada Admiración operum Dei (Admiração das obras de Deus), dedicada a Juana de Mendonza, esposa do poeta Gómez Manrique, a quem Teresa de Cartagena chama de “virtuosa mulher”, e dirigida aos “prudentes varões” ou “grandes homens”, que haviam acusado sua primeira obra de plágio. Seguindo a mesma estratégia da primeira obra, transforma a suposta fragilidade feminina numa qualidade ou vantagem em relação aos homens, especialmente no que se refere à arte de escrever, e, mais uma vez, coloca tal vantagem como um dom de Deus. Por isso, depois de refutar a acusação de plágio em relação à sua primeira obra, justificando que o “Deus da verdade sabe que eu não escuto a outro mestre nem me aconselho com nenhum outro letrado, nem transladei de livros, como algumas pessoas com sua maliciosa admiração ousam dizer, senão que tudo que ali escrevi recebi de Deus” (II, 131) (apud GARCÍA,1989, p. 98), inicia a segunda obra em defesa da mulher com a mesma argumentação: Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 205 que Deus, na sua divina sabedoria e bondade, concedeu à mulher o dom da escrita, daí o título da obra “Admiración operum Dei (Admiração das obras de Deus), que alguns chegam a traduzir por “Maravilha das coisas de Deus”, por ter Deus dotado a mulher, naturalmente, ou ontologicamente, deste maravilhoso dom, que passa, paradoxalmente, pela sua suposta “condição de inferioridade”. Assim, depois de chegar à conclusão de que o que diferencia radicalmente o homem e a mulher é a maior força física daquele, o que a rigor não é um sinal de superioridade, senão que Deus assim fez para complementar ou manter o equilíbrio de sua criação, afirma:

O fato de Deus ter feito o sexo viril ou varonil robusto e valente e o feminino frágil e de pequeno vigor não é de crer que o fez para dar mais vantagem e excelência a um estado do que a outro, mas somente, eu creio, pelo que já foi dito, a saber: para que, ajudando um ao outro, fosse conservada a natureza humana e advertisse as maravilhosas obras de sua onipotência, sabedoria e bondade (II, 118) (Ibid.).

Para Teresa de Cartagena, a força física dá ao homem tão somente uma maior habilidade para as coisas exteriores, relacionadas aos sentidos sensoriais, como, por exemplo, ao governo das coisas terrenas. A mulher, ao contrário, domina o espaço interior, da alma, relacionado com as realidades espirituais, com a intelectualidade, daí ocupar ela um lugar privilegiado na relação de complementaridade com o homem216, conforme explica em sua metáfora da árvore, onde compara o homem e a mulher com a casca e o miolo dos caules das árvores, respectivamente:

Se olhares bem os caules das árvores, vereis que as cascas de fora são muito rígidas e fortes e sofredoras das tempestades [...].

216 Daí afirmarem NAVAS OCAÑA; TORRE CASTRO, 2011, p. 102, que “Teresa de Cartagena subverte a tese patrística que relaciona o espiritual com o homem e a mulher com o carnal [...] e vê nesta subversão uma sutil afirmação da superioridade feminina”. 206 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Estão assim feitas para conservar e ajudar o miolo que está dentro [...]. O miolo que é fraco e delicado está imbuído, interiormente, de fornecer os nutrientes às cascas, e assim um com o outro se conservam [...]. E assim por este mesmo motivo creio eu que o soberano Senhor quis e quer na natureza humana estas duas oposições, a saber: o estado varonil forte e valente e o feminino, frágil e delicado [...] para que ajudando um ao outro fosse conservada a natureza humana (apud QUISPE, 1995, p. 93).

Igualmente, ao interpretar o versículo bíblico que narra a criação da mulher (Eva), afirma haver ali uma indicação da superioridade da mulher em relação ao homem, pois, se as Escrituras nos dizem que Deus criou Eva para ajudar Adão, deduz a “escritora” que Adão é o “ajudado” e Eva, “a que ajuda”, do que “se poderia arguir a quem pertence o maior mérito, ao ajudado ou à que ajuda: e vedes o que responde a razão” (II, 118) (apud GARCÍA,1989, p. 98). Essa superioridade da mulher em relação ao homem se revela pela sua destreza para com a escrita, o que em si é mais nobre que a habilidade para com as coisas terrenas. Daí dizer-se que “mais vale a mulher ser eloquente do que ser forte [...] e mais excelente lhe será usar da pena do que da espada” (Ibid. p. 99.). E, finalmente, argumenta que o fato de historicamente os homens terem dominado mais a escrita do que as mulheres não se deve a uma disposição natural, mas à força dos costumes, já que, ao longo dos tempos, as mulheres foram privadas do acesso ao saber, daí ter causado tanta admiração aos homens de seu tempo que Teresa de Cartagena tivesse escrito uma obra. Por tudo isto, embora se inscreva na chamada “literatura de consolo ou consolação”, também chamada de “teologia da paciência ou resignação espiritual”, muito usada pela misoginia da época para conformar ou consolar as mulheres por sua condição natural de inferioridade, para muitos críticos a obra Admiración operum Dei (Admiração das obras de Deus) é o primeiro trabalho Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 207 feminista escrito por uma mulher espanhola em defesa da mulher como ser intelectual217. O certo é que

com sua decisão de responder por escrito aos seus detratores, Teresa de Cartagena participou plenamente da Querela das Mulheres. Ela defendeu sua liberdade e seu talento singular para pensar e fazer ciência e, também, reivindicou estes talentos como qualidades próprias das mulheres (RIVERA GARRETAS, 1999, p. 763).

Teresa de Cartagena faleceu em data incerta e suas obras, escritas em prosa, chegaram até os leitores modernos através de um único manuscrito completo, transcrito em 1481 pelo copista Pero López del Trigo, o que prova que gozavam de grande prestígio na época, pois, como acentua Alejandro Oviedo, “em um tempo em que a Europa não conhecia a imprensa, os exemplares que circulavam eram copiados a mão, daí que um livro devia gozar de muita estima para merecer o esforço de copiá-lo completamente a mão” (OVIEDO, 2011, p. 3). Dentre os autores cujas obras seriam influenciadas posteriormente por Teresa de Cartagena, podemos citar Juana Inês de la Cruz218 e Juan de Ávila219.

217 A esse respeito diz Luis Miguel García: “Esta obra se converte no primeiro tratado em defesa da mulher como intelectual, escrito por uma mulher e dirigido a outra mulher, a esposa do famoso poeta Gómez Manrique” (1989, p. 97). Igualmente diz OVIEDO, 2011, p. 1: “A qualidade dos argumentos que usa a autora deste livro permite considerá-la como uma pioneira do discurso feminista (e em qualquer caso o primeiro escrito de tal gênero devido a uma mulher)”. 218 A propósito, Luis Miguel García, estabelecendo uma relação entre Teresa de Cartagena (1425) e a renascentista Juana Inês de la Cruz (1651), diz: “Não consta, pelo que sabemos até hoje, que Juana Inês de la Cruz tenha lido diretamente Teresa de Cartagena, a primeira monja e a primeira mulher também a escrever em espanhol com afã literário. Sem embargo, entre ambas as escritoras há um tema comum obsessivo: a defesa da mulher como ser intelectual” (1989, p. 95). 219 Cf. o artigo: RODRIGUÉZ RIVAS, 2011. 208 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Isabel de Villena (1430-1490)

Fonte: http://www.famososvalencianos.com/sor-isabel-de-villena/

Eleonor Manuel [Isabel de Villena], filha adotiva do poeta e compositor Infante Enrique de Villena - não se sabe os nomes dos pais verdadeiros, apenas que ficou órfã aos quatro anos de idade, quando foi adotada pela família Villena), que pertencia à família dos reis de Aragão e Castela (casa Trastámara - nasceu em Valencia – Espanha, em 1430. Assim, Eleonor Manuel foi criada em meio à corte, onde desde a infância recebeu uma boa formação educacional. Aos 15 anos de idade, Eleonor Manuel professou os votos no convento da Santíssima Trindade, das Irmãs Clarissas de Valencia, tornando-se religiosa e passando a ser chamada Isabel de Villena. Mais tarde, em 1463, foi nomeada abadessa do referido convento, ficando no cargo até sua morte, em 1490. Como religiosa, além da vida contemplativa, Isabel de Villena dedicou-se à intelectualidade, tendo escrito varias crônicas e tratados sobre a vida religiosa, dos quais sobreviveu apenas um, o Vita Christi (Vida de Cristo), com uma série de comentários ao Evangelho, em que dá capital importância às personagens femininas do Evangelho (especialmente Maria, Marta e Madalena) na Vida de Cristo. Por isso algumas traduções intitularam a obra de Protagonistas Femininas da Vita Christi. O livro foi escrito para as Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 209 religiosas do convento, mas acabou ganhando reconhecimento universal, embora só tenha sido publicado após sua morte, em 1497, graças aos esforços de sua sucessora, a abadessa Aldonça Montsoriu220. A comentadora Cláudia Costa Brochado insere Isabel de Villena num movimento intelectual feminino antimisógino na Baixa Idade Média, posteriormente conhecido como Querelle des Femmes, que tem sua maior expressão na italiana Cristina di Pisan, com sua célebre obra A Cidade das Mulheres. Isabel de Villena seria, por assim dizer, a versão ibérica desse movimento221. Daí a afirmação da comentadora de que o Vita Christi (Vida de Cristo) foi escrito como resposta ao livro Espill o Llibre de les Dones (Espelho ou Livro das Mulheres), da autoria de Juame Roig, médico do convento em que Isabel de Villena era abadessa, que assume deliberadamente uma posição de hostilidade para com as mulheres (cf. BROCHADO, 2001b, p. 31). Além disso, em 1761, foi descoberta uma segunda obra de Isabel de Villena, intitulada Speculum animae (Espelho da Alma), cujos originais se encontram atualmente arquivados na Bibliothèque Nationale, em Paris. Ela foi a primeira religiosa escritora em língua catalã, ficando conhecida especialmente por revelar a situação da mulher religiosa no final da Idade Média, frente aos escritos misóginos. Isabel de Villena faleceu em Valencia, em 02 de julho de 1490.

220 Rosanna Cantavella Lluïse Parra, na introdução de sua tradução/edição do Protagonistes féminines à la "Vita Christi", de Isabel de Villena, diz: “A Vita Christi foi escrita por Isabel de Villena, abadessa, e dada à imprensa pelo seu sucessor, Aldonça Montsoriu, a pedido da rainha Isabel, e o alvo imediato do mesmo foram as freiras do seu convento. As ofertas de trabalho, com a abundância de personagens femininas do Evangelho, defendem abertamente a superioridade moral das mulheres sobre os homens” (1987, p. vii). 221 A esse respeito diz BROCHADO, 2001a, p. 5-6: “Percebemos nos últimos séculos medievais um crescimento no volume de obras cujos conteúdos expressam abertamente hostilidade às mulheres. Acreditamos que esta tendência, que culmina no movimento denominado Querelle des Femmes (debate literário ocorrido principalmente na França, em finais da Idade Média, criado em conseqüência da dialética entre os textos a favor e contra as mulheres), surgiu, principalmente, após a discussão em torno ao Roman de la Rose, texto de caráter extraordinariamente misógino e que envolverá principalmente a escritora Christine di Pizan”.. 210 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Catarina di Genova (1447-1510)

Fonte: http://alexandrinabalasar.free.fr/

Catarina di Genova (ou de Fieschi, como também é conhecida), filha caçula do casal de nobres Giacopo Fieschi e Francesca di Negro, nasceu em Genova – Itália, em 1447. Aos 12 anos teve sua primeira visão do amor de Deus, na qual Jesus dividiu com ela alguns sofrimentos da sua Santa Paixão. Aos 13 anos decidiu abraçar a vida religiosa no convento das irmãs de Nossa Senhora das Graças, onde sua irmã Limbânia era já religiosa. Falou com o diretor da Ordem, mas não aceitavam meninas muito jovens na Congregação. Embora ela aspirasse à vida religiosa, aos 16 anos foi obrigada a casar-se com Juliano Adorno não por amor, mas por condicionamento financeiro, uma vez que seu pai havia falecido e a família precisava manter o status de nobres. O casamento não foi feliz, pois Juliano era de temperamento colérico, volúvel e extravagante. Ao contrário de Catarina, amava as pompas, o luxo e os prazeres. Com isso, concebeu verdadeira aversão à esposa, desprezando-a e ultrajando-a de muitos modos. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 211

Jogador contumaz, Juliano Adorno acabou dilapidando no jogo toda a fortuna da família, que no final ficou reduzida à miséria. Mas, depois de muita oração, Catarina di Genova conseguiu converter o marido, que se tornou irmão da Ordem Terceira de São Francisco, concordando com ela em viverem como irmãos e em estrita continência. Com a conversão do marido, em 1479, o casal passou a trabalhar no hospital de Pammetone, do qual Catarina di Genova se tornou diretora em 1490. Naquele mesmo ano, Dom Cattanneio Marabatto passou a ser seu conselheiro espiritual. Em 1497 Juliano veio a falecer, após receber os Sacramentos. Como fruto de suas visões, ela escreveu dois textos: Diálogo entre alma e corpo e o Tratado sobre o purgatório, ambos reverenciados como notáveis livros sobre misticismo. No segundo e mais famoso Diálogo, Catarina di Genova descreve o purgatório, dividindo-o em dois níveis ou espaços:

1. Visão do grande purgatório Vi, com os olhos da alma, um fogo que causava horror sem limite nem forma, que queimava sem nunca variar, em um silêncio absoluto [...]. Vi nesse fogo milhões de pobres almas apertadas umas contra as outras, mas sem poderem se comunicar, senão aquele mesmo fogo. Este grande Purgatório é como o inferno, com a eternidade das penas e o ódio perante Deus e as outras almas, além do desespero. Se não me engano, vi que elas nesse estado eram mais purificadas que consoladas, mais queimadas que iluminadas: é um estado terrível. 2. Visão do médio purgatório Vi, com os olhos da alma, um mar de fogo abrir-se na minha frente. Ele fazia rumor, imensas chamas claríssimas se reproduziam e se desfaziam incessantemente. E aqui, milhões de almas estendem as mãos, submersas no fogo e nas chamas que se levantam com uma força impetuosa. É como um movimento da alma, um início de caminho através do Céu, mas sem o mínimo desejo pessoal; é como um impulso 212 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

interior que a leva ou a impele até Deus. Vêm certamente purificadas, através de muito sofrimento, mas também iluminadas, o que as consola e lhes permite glorificar a Deus não somente abandonando-se ao seu Puro Querer, mas também assumindo uma quase iniciativa de agradecimento. Frequentemente, depois do juízo particular, a alma vai para o Grande Purgatório; ela fica como atordoada e sem forças, porque para ela é a descoberta do pecado, da sua gravidade, dos seus efeitos, das suas implicações. Nesse período a alma fica como que paralisada: imóvel, ela contempla tanto a justiça de Deus que se exerce nela, como sua Misericórdia, graças à qual ela se salvou. Depois coloca-se em movimento em direção a Deus, que a atrai, que a transporta através do seu amor infinito: é então que ela passa para o Médio Purgatório.

No Médio Purgatório, a alma se afronta com o Amor, mas ao mesmo tempo, ela contempla esse Amor infinito que a atrai. Nele, a alma sai de si mesma e descobre o que significa a sua participação na Igreja. Catarina di Genova faleceu no dia 14 de setembro de 1507, dia da Exaltação da Cruz. Seu corpo foi sepultado no hospital onde serviu por mais de 40 anos. Alguns anos mais tarde, abriram sua sepultura e suas vestes não apresentavam sinais de decomposição. Seu corpo estava intacto, igual ao dia em que foi sepultada. Em 1694, seu corpo incorrupto foi colocado num relicário de prata e cristal, sob o altar-mor da igreja erigida em sua honra no bairro de Portória, em Genova. O local passou a ser ponto de peregrinação e vários milagres lhe foram creditados ao longo dos séculos. Catarina di Genova foi canonizada em 1737, pelo Papa Clemente XII. Em 1943, foi proclamada "Padroeira dos Hospitais Italianos". Além disso, é protetora das esposas com problemas e dos casamentos com dificuldades. Sua festa é celebrada pela Igreja Católica no dia 15 de setembro. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 213

Antonia Pulci (1452-1501)

Fonte: http://crrs.ca/publications/ov07/

Segundo Fabio Contu, Antonia Tanini, filha do banqueiro Francesco d'Antonio Tanini e de Jacoba di Torello, nasceu em Firenze – Itália, em 1452. Em 1470 casou-se com Bernardo Pulci, de respeitada família de literatos, sendo seu irmão o poeta Luigi Pulci (cf. CONTU, 2009, p. 82). Influenciada pelo ambiente familiar, entre 1483 e 1490 Antonia Pulci escreveu uma antologia de dramas, que constava de um jogo de peças que ficariam conhecidos pelo nome de Sacre rappresentazioni (Sacras representações), a saber: Rappresentazioni di Santa Domitilla (Representações de Santa Domitila), Rappresentazioni di Santa Guglielma (Representações de Santa Guilherma), Rappresentazioni di San Francesco (Representações de São Francisco) e Rappresentazioni di Giuseppe figlio di Giacob (Representações de José, filho de Jacó). Em 1488 faleceu seu marido e, embora sua família desejasse que ela se casasse novamente, preferiu viver sozinha, juntando-se a um grupo de terciários agostinianos (leigos filiados à Ordem dos Agostinianos). Em 1502 Antonia Pulci fundou um convento, dedicado a Santa Maria da Misericórdia, passando a viver ali com mais sete mulheres, também da Ordem Terceira dos Agostinianos. Nesse ano escreveu outras peças: uma sobre o Filho Pródigo - Rappresentazione figliolo prodigo (Representação do filho pródigo) 214 | Mulheres Intelectuais na Idade Média e outra sobre Saul e David - Distruzione di Saul e il pianto di David (Destruição de Saul e o pranto de David). Além disso, três outras peças que apareceram anonimamente nesse período lhe foram igualmente atribuídas, em razão da análise estilística: Sant’ Antonio Abate (Santo Antão Abade); Festa di Rosana (Festival de Rosana) e Festa di Santa Teodora (Festival de Santa Teodora), escritas provavelmente para seu convento. Segundo um contemporâneo seu, ela também compôs Laudi (hinos com música popular), os quais, porém, não foram conservados. Antonia Pulci faleceu em 1501 e foi enterrada na Capela de Santa Mônica, na Igreja de San Gallo.

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Escritoras laicas ligadas às artes liberais

Hipátia de Alexandria (370-413 d. C)

Hipátia de Alexandria

Fonte: http://greciantiga.org/

Hipátia (ou Hipácia - em grego Υπατία), filha de Teão [Teon], renomado filósofo [neoplatônico], matemático, astrônomo e diretor no Museu de Alexandria (do qual mais tarde Hipátia se tornou diretora), nasceu em Alexandria – Egito em 370 d. C. (cf. GLEICHAUF, 2010, p. 20). Por influência de seu pai, Hipátia teve uma esmerada educação na Academia de Alexandria, tendo estudado arte, ciência, literatura e filosofia, oratória e retórica, o que lhe permitiu ser, mais tarde, a primeira mulher especialista em matemática de que se tem conhecimento, tendo sido equiparada a Ptolomeu (85 - 165), 216 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Euclides (c. 330 a. C. - 260 a. C.), Apolônio (262 a. C. - 190 a. C), Diofanto (século III a. C.) ou Hiparco (190 a. C. - 125 a. C.). Além disso, na adolescência, viajou para Atenas, para estudar filosofia na Academia Neoplatônica, na época em que o jovem filósofo Plutarco ali lecionava acerca de Platão e Aristóteles, onde não demorou a se destacar pelos esforços em unificar a matemática de Diofanto com o neoplatonismo de Amónio Sacas e Plotino, isto é, aplicando o raciocínio matemático ao conceito neoplatônico do Uno. Ao retornar a sua terra natal, seria professora na Academia de Alexandria, ocupando a cadeira que fora de Plotino. E aos 30 anos de idade já era diretora da Academia de Alexandria. Assim, ganhara fama, também, como filósofa, conforme nos dá notícias Nicéforo Calixto em sua obra História Eclasiástica, XIV, 16:

Em Alexandria houve uma mulher, Hipátia, que tinha por pai o filósofo Téon. Bem instruída por ele, sobressaiu tanto nos saberes que não só superou os filósofos de sua época, senão também a todos os que a ela haviam precedido. Sucedeu a Plotino na escola platônica por ele fundada e estava disposta a oferecer o conhecimento dos saberes a todos os etudiosos. Por conseguimte, todos os que tinham interesse pel filosofia recorriam a ela não só pela honesta e digna liberdade no dizer que lhe era intrínseca, senão também se dirigia aos homens casta e prudentemente. Não parecia um ato indecoroso o fato de apresentar-se em meios os homerns. Todos a reverenciavam e a respeitavam por seu excelente pudor (apud MÉNAGE, 2009, p. 79)1.

1 Igualmente, Hesíquio, o hebreu, aluno de Hipátia, assim diz acerca dela: “Vestida com o manto dos filósofos, abrindo caminho no meio da cidade, explicava publicamente os escritos de Platão e de Aristóteles, ou de qualquer filósofo a todos os que quisessem ouvi-la… Os magistrados costumavam consultá-la em primeiro lugar para administração dos assuntos da cidade" (HESÍQUIO apud HIPÁTIA de Alexandria, 2012). E, na atualidade, diz NASCIMENTO, 2012a, p. 9: “Provavelmente Hipátia fez parte do seleto grupo de iniciados que estudou com Plutarco. E não demorou muito para que essa jovens de extraordinária beleza e talentosa professora da matemática fosse reconhecida e distinguida nas ruas pelo seu manto de filósofa. De inquestionável capacidade científica, assumiu o posto de maior relevância em ciência que já existiu em todos os tempo: a direção do Museu de Alexandria. Pois, trata-se da mais completa Universidade que existiu até a Era moderna”. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 217

Como professora e filósofa, Hipátia, que era uma linda mulher, teria assumido uma vida ascética seguindo a tradição platônica, privando-se dos prazeres matérias, inclusive sexuais, motivo pelo qual foi alvo de uma controvérsia amorosa envolvendo seu nome, a qual chegou até nós através de Damásio, que foi um de seus colegas de estudos na Academia Ateniense, que assim disse da filósofa:

Costumava pôr seu manto de filósofa e passear pela cidade interpretando publicamente a Platão e Aristóteles, e as obras de alguns outros filósofos para quem desejasse escutá-la. Além de sua habilidade de ensinar, destacava-se pela grandeza de virtude. Era justa e casta e permaneceu sempre virgem. Era tão bela e bem constituída que um de seus discípulos se apaixonou por ela e ao ser incapaz de controlar-se a si mesmo, mostrou um sinal de seu encantamento. Hipátia, tentou, sem conseguir, acalmá-lo, mediante a música. Na realidade, ela pegou uns panos que havia manchado com a menstruação e disse: ‘isto é o que tu amas, jovem, e isto não é belo’. Ele se sentiu tão envergonhado e assustado ante a horrível visão que experimentou uma mudança em seu coração e se converteu rapidamente em um homem melhor. Assim era Hipátia, tão inteligente e eloquente em seus discursos como cortes em suas atuações. A cidade inteira a queria sem soma de dúvida e lhe tinha grande veneração, mas os governantes a odiaram desde o princípio, coisa que frequentemente ocorria também em Atenas (apud GONZALÉZ SUÁREZ, 2010, p. 21).

Dos trabalhos escritos por Hipátia pouco chegou até nós. Alguns tratados foram destruídos com a Biblioteca de Alexandria. Sabemos que desenvolveu um estudo sobre a álgebra de Diofanto, intitulado Comentário a Aritmética de Diofanto, que escreveu um tratado sobre as secções crônicas de Apolônio, intitulado Sobre as Crônicas de Apolônio, e alguns comentários sobre os matemáticos clássicos, incluindo Ptolomeu, conhecido por Corpus Astronômico2. E, em colaboração com o seu pai, escreveu um tratado sobre Euclides.

2 Segundo Amalia González Suárez, os comentários de Hipátia a obra astronômica de Ptolomeu acabou por influenciar ou contribuir para Revolução Científica na modernidade, quando Corpênico 218 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Além disso, por intermédio do notável filósofo Sinésio de Cirene (370 - 413), que foi seu aluno e escrevia-lhe frequentemente pedindo-lhe conselhos sobre o seu trabalho, sabermos que Hipátia inventou alguns instrumentos para a astronomia (astrolábio e planisfério) e aparelhos usados na física, dentre os quais um hidroscópio, um hidrômetro e um densímetro, que é um aparelho que mede a massa específica de um líquido, um astrolábio e um planisfério, que são instrumentos astronômicos usados para medisse as posições das estrelas e dos planetas. Mas, por viver numa época de luta entre o paganismo e o cristianismo, Hipátia acabou sendo vítima de uma trama político- religiosa que a levou a um trágico fim, que teve início a partir de 412, com a ascensão de Cirilo (Patriarca de Alexandria) ao poder. Um cristão fanático, árduo defensor da Igreja e acirrado adversário daqueles que ele considerava serem hereges. Por ser uma mulher pagã, seus ideais científicos converteram-se em alvo fácil para Cirilo, que convenceu os cristãos a elegê-la como bode expiatório. Assim, em 4153, quando ela regressava do Museu, onde lecionava, foi atacada em plena rua pelos seguidores de Cirilo, os quais, enfurecidos, arrastaram-na para o interior de uma Igreja e lá, “seu corpo foi ultrajado e espalhado por toda cidade [...]. Uma multidão de homens mercenários e ferozes, que não temiam castigo divino, nem vingança humana, matou a filósofa, e assim cometeram um monstruoso e atroz ato contra a pátria (DAMASIO apud GONZÁLÉZ SUÁREZ, 2010, p. 23)4. Tinha entre 60 a 65 anos de idade quando foi assassinada. os encontrou na Biblioteca dos Medicis, em Florença, e os utilizou em suas teorias acerca dos astros (cf. 2010, p. 20). 3 Já Gilles Ménage indica a data de falecimento de Hipátia como sendo 415 d.C. (cf. 2009, p. 78) 4 Informação igalmente confirmada por Nicéforo Calixto em sua obra História Eclasiástica, XIV, 16, que assim narra a morte de Hipátia: [...] alguns dos fervorosos e apaixonados seguidores de Cirilo, entre os quais um tal de Pedro, que, certo dia, ao observarem que Hipátia regressava en sua carruagem, a retiraram dali e a levaram a força a uma igreja que tem o nome de César, e ali, esquartejando suas vestes com fragmentos de cerâmica, a torturaram até matá-la. Depois de Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 219

Além matá-la, aos poucos destruíram suas obras, de sorte que, como observs Ingeborg Gleichauf,

já não se pode reconsttiuir qual seria sua interpretação da filosofia platônica. Seguramente, tinha uma posição positiva da teoria de Platão acerca das ideias como lugar real onde reside a verdade. Como astrônoma, se dedicou a investigação do céu, e tinha uma atenção especial para as coisas que não são observáveis pela visão. O mesmo se poderia dizer com respeito as matemáticas, já que tinha relação com coisas qu estão fora do que se pode perceber pelos sentidos (2010, p. 21).

Mas, apesar de ter sido vítima de um surto de intolerância religiosa, Hipátia seria imortalizada pela posteridade, sendo citada como cientista ao longo dos séculos, como, por exemplo, pelo renomado cientista americano Carl Sagan, que, em 1943, em sua obra Cosmos (que foi transformada em uma premiada série de televisão), disse:

Hipátia distinguiu-se na matemática, na astronomia, na física e foi ainda responsável pela escola de filosofia neoplatônica - uma extraordinária diversificação de atividades para qualquer pessoa daquela época. Nasceu em Alexandria em 370. Numa época em que as mulheres tinham poucas oportunidades e eram tratadas como objetos, Hipátia moveu-se livremente e sem problemas nos domínios que pertenciam tradicionalmente aos homens. Segundo todos os testemunhos, era de grande beleza. Tinha muitos pretendentes mas rejeitou todas as propostas de casamento (apud HIPÁTIA de Alexandria, 2012).

Além disso, conforme veremos na foto abaixo, Hipátia é a única filósofa a aparecer na famosa tela intitulada A Escola de Atenas, esquartejá-la a levaram a um lugar que se chama Cinaron e la queimaram”(apud MÉNAGE, 2009, p. 80). E por Sócrates Escolástico, um contemporâneo de Hipátia, segundo o qual, “diversos exaltados, encabeçados por monjes, conspiraram entre eles e atacaram a mulher por ocasião do regresso à sua casa. Arrancaram-na de sua carruagem e a arrrastaram para uma igreja que se conhece pelo nome de Kaisarion. Ali a despojaram de suas roupas e esquartejaram seu corpo com cacos de conhas marinhas. Despedaçaram a mulher membro a membro e levaram os pedaços a um lugar chamado Kikaron para queimá-los” (apud GLEICHAUF, 2010, p. 21-22). 220 | Mulheres Intelectuais na Idade Média do pintor renascentista Rafael, a qual, na foto, encontra-se de pé e vestida de branco (n. 09), ao lado do filósofo Parmênides (n. 11):

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Escola_de_Atenas

Trotula di Ruggiero (1050-1097)

Fonte: http://www.crazywolfy.com/

Dado o preconceito ou tabu de que não convinha a uma mulher ser examinada por um homem, era comum, na Idade Média, assim como ainda hoje em alguns meios populares, as mulheres se procurarem umas às outras quando de suas “doenças femininas”, especialmente aquelas ligadas à sexualidade, o que levou certas mulheres a se tornarem “especialistas” ou “práticas” na arte da medicina, a qual envolvia os mais diversos aspectos: identificação ou diagnóstico, cura ou tratamento, confecção ou preparo de medicamentos, acompanhamento da gravidez e realização de partos, etc. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 221

Devido a tal preconceito ou tabu, e apesar das proibições de que mulheres não podiam exercer a profissão de médica5, começou a aparecer na Baixa Idade Média - nomeadamente na Escola de Medicina de Salerno, Sul da Itália, na costa do Mediterrâneo -, mulheres destinadas ao estudo da medicina para melhor servir à sua classe, especialmente no que se refere às chamadas “doenças femininas”. Foi o caso, por exemplo, de Trotula di Ruggiero6, que, na segunda metade século X, participou da Escola de Medicina de Salerno – Sul da Itália7. E a própria Trotula, no Prólogo de uma de suas obras, o De passionibus mulierum curandorum ante, in, post partum (Sobre a cura dos sofrimentos das mulheres antes, durante e depois do parto), narra os motivos que a fizeram exercer a profissão de médica:

Como as mulheres são naturalmente mais frágeis do que os homens, estão mais frequentemente sujeitas às doenças, especialmente nos órgãos envolvidos nas tarefas destinadas pela natureza. Uma vez que tais órgãos estão colocados em partes íntimas, as mulheres, por pudor e por reserva inata, não se atrevem a revelar a um médico homem o sofrimento infligido por estas doenças. Por isso a compaixão por esse infortúnio feminino e, principalmente, por solicitação de uma mulher da nobreza, levou-me a examinar mais detalhadamente as disposições que mais frequentemente afetam o sexo feminino (apud SIMONI, 2010, p. 4).

5 Margarida del Valle Garcia nos faz lembrar que, contraditoriamente, “desde o inicio da Alta Idade Média, o execício da profissão médica, era proibido para a mulher – e assim seguirá, salvo isoladas ocasiões, até o século XIV - , mas , pelo contrário, a prática da obstetrícia e os cuidados as crianças em seus primeiros meses, os encontramos já, quaee que exclusivamente, em mãos femininas” (2009, p. 31). 6 Embora pouco se saiba acerca da vida de Trotula, a ponto de alguns autores defenderem que ela sequer existiu, conforme veremos mais adiante, estudos recentes falam a seu respeito como uma mulher oriunda da cidade de Ruggiero – Sul da Itália, que, por ser de família nobre, pôde estudar, chegando a frequentar a Escola de Medicina de Salerno, onde mais tarde, veio a ser Mestre (magistra). Fala-se que ela se casou com o médico salernitano Giovanni Platearius, o Velho, com quem teve dois filhos: Giovanni Platearius, o Jovem, e Matteus Platearius, que também foram médicos e professores de prestígio em Salerno. Trotula aparece na literatura médica como uma mulher sapientíssima ou Sapiens Matrona, com ideias inovadoras para seu tempo. 7 Margaria del Valle Garcia diz que “Salerno será a primeira escola médica não regida por religiosos [...]. Por conta disso – completa a comentadora – “a Escola de Salerno seria o primeiro centro que permite o livre acesso de mulheres a formação médica, e a sua titulação, e não limitaria seu campo de ação as enfermidades da mulher e aos cuidsos dos lectantes, senão quea ampliaria ao campo da medicina geral” (2009, p. 31) 222 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Trotula di Ruggiero destacou-se em meio às demais mulheres de sua época que faziam medicina na Escola de Salerno não só por estudar e cuidar de suas companheiras, mas também por ensinar e divulgar, ou escrever para o mundo, aquilo que fazia, conforme destaca Chiara Zamboni:

Trotula, portanto, não é uma exceção na Escola de Salerno: outras mulheres se ocupavam daquilo com que ela se ocupava. Exceção é o fato dela ter escrito ou feito escrever os seus ensinamentos, pondo-os ao alcance de um saber transmissível. Os seus escritos são interessantes. Falam dela, além dos conselhos que ela dá às mulheres. Dizem da sua grande capacidade de olhar com destaque os fatos, ligá-los entre si, de trazer indicações práticas de cura (1997, p. 19)8.

Trotula di Ruggiero legou-nos três obras, que mais tarde seriam reunidas num único compêndio, a ser chamado de O Trotula, o qual foi objeto de muitas controvérsias nos séculos posteriores, conforme veremos mais adiante. O primeiro tratado, intitulado De passionibus mulierum curandorum ante, in, post partum (Sobre a cura dos sofrimentos das mulheres antes, durante e depois do parto), com setenta e três capítulos, versa sobre ginecologia, obstetrícia e puerpério (pós- parto). Nessa obra, seguindo fontes como Hipócrates, Galeno, Oribásio e Dioscórides, dentre outros, Trotula explica a menstruação, a concepção, a gravidez, o parto, o puerpério, o controle da natalidade, as doenças do útero e das vias urinárias

8 Segundo SANTUCCI apud SIMONI, 2010, p. 3, além de Trotula, têm-se notícias de outras mulheres que também escreveram sobre medicina na Escola de Salerno: “Abella, que escreveu os tratados Sulla bile nera (Sobre a bíles negra) e Sulle natura del seme umano (Sobre a natureza do sêmen humano); Rebecca Guarna, autora de Sulle febbri (Sobre as febres), Sulle orine (Sobre as urinas) e Sull’embrione (Sobre o embrião) e Mercuriade, que compôs Sulla peste (Sobre a peste), Sulla cura delle ferite (Sobre a cura das feridas) e Sugli unguenti (Sobre os unguentos), dentre outras”. Além disso, a Enciclopédia Livre Wikipédia dá-nos notícias de mais uma mulher médica na Escola de Salerno. Trata-se de Constance Calenda (cerca de 1415), cirurgiã italiana especializada em doenças dos olhos, filha de Salvator Calenda, decano da Faculdade de Medicina de Salerno e mais tarde Reitor da Faculdade, em Nápoles (cf. http://en.wikipedia.org/wiki/Constance_Calenda). Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 223

(especialmente as sexualmente transmissíveis), e, do ponto de vista prático, recomenda ou aconselha a proteção do períneo e a sutura das rasgaduras (cf. PAMO-REYNA, 2007, p. 110). Além disso, como ela descreve as suas experiências particulares, a obra deixa transparecer que Trotula di Ruggiero praticou também cesariana e usou ou recomendou o emprego de opiáceos como anestésicos durante o parto, para aliviar as dores das mulheres, contrariando os ensinamentos da Igreja Católica da época, que sustentava que as mulheres deviam sofrer o parto sem qualquer alívio. Estabelecendo relação entre a reprodução e as doenças sexualmente transmissíveis, descreveu as manifestações externas da sífilis e apresentou essa doença como causa tanto da esterilidade masculina como da feminina. Mais ainda: por trás de suas experiências teórico-práticas de medicina, a obra introduz uma reflexão filosófica acerca do corpo, especialmente do corpo feminino, e é isto que a torna diferente das demais mulheres médicas da Escola de Salerno, o fato de ser uma “filósofa naturalista”. Para tanto, baseada no pensamento de Galeno, médico famoso do período imperial de Roma (cerca de 200 d. C.), descobre a relação existente entre a natureza (corpórea) da pessoa e o universo ou o cosmo como um todo. Com outras palavras, Trotula di Ruggiero aplicou-se à descoberta da relação entre o macro e o microcosmo, ressaltando ser o corpo humano um microcosmo no qual, internamente, existe uma interrelação entre suas características físicas particulares (o micro) e o todo (o macro). Em suma, Trotula di Ruggiero buscava explicar o ser humano segundo uma visão orgânica do todo, devendo estar as partes relacionadas harmonicamente para a garantia da saúde. Este modo de pensar é sintetizado por Karine Simoni nos seguintes termos:

Para a médica, os órgãos e sistemas do corpo humano estavam interligados, fato que deveria ser considerado sob pena de não se alcançar a cura ou de não impedir a morte do paciente. Em outras palavras, o bem-estar dependeria do funcionamento harmônico de vários fatores como saúde, beleza, cuidados e 224 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

afetos. Este, parece-me, é o fio condutor de toda obra de Trotula, e está presente inclusive nos escritos sobre a gestação, o parto e os cuidados para com o recém-nascido (2010, p. 5).

Trotula irá escrever outras obras, uma das quais sobre o uso de cosméticos, por parte das mulheres, como instrumento de cura. Aqui, a beleza aparece como sinônimo de um corpo saudável, tema sobre o qual voltaremos a tratar. Dentro dessa perspectiva, Trotula di Ruggiero estudava e tratava as doenças, especialmente as “doenças femininas” ligadas à sexualidade, de forma filosófico-naturalista, sem nenhuma conotação religiosa ou moral. Tanto é assim que, indo de encontro à moralidade de sua época, em que era tabu falar de certos assuntos sexuais, em capítulo intitulado “Como restringir a vagina de modo que, mesmo violada, pareça virgem”, prescreve, ou diz, como aliviar o desejo sexual das mulheres que por razões diversas não podem manter relações sexuais:

Existem mulheres que estão proibidas de ter relações sexuais, ou porque fizeram voto de castidade, ou porque estão vinculadas a uma condição religiosa, ou porque ficaram viúvas. Para algumas, não é permitido mudar de condição e, apesar de quererem a relação sexual, não a praticam, porque se sujeitam a graves doenças. Para estas sugere-se o seguinte: pegue algodão embebido em óleo de musgo ou de hortelã e aplique-o sobre a vulva. No caso de não dispor desse óleo, pegue um pouco de vinho quente e aplique-o sobre a vulva, com o bastão de algodão ou lã. Isso é um bom calmante e amortece o desejo sexual, aplacando a dor e o prurido (apud SIMONI, 2010, p. 6).

Além disso, segundo Chiara Zamboni, nos ensinamentos práticos de Trotula di Ruggiero, tais como os referentes a “remédios, ervas medicinais, sugestões de posições mais justas para o parto, a sua atenção vai também para a beleza do rosto, dos cabelos e em geral para a beleza do corpo” (1997, p. 20). Daí sua segunda obra - De ornatu mulierum (Sobre a beleza das mulheres) -, traduzida, Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 225 geralmente, simplesmente por Sobre os Cosméticos, em que prescreve o uso de cosméticos como instrumento terapêutico. Essa preocupação não tem um sentido frívolo, mas faz parte de sua “Filosofia Médica”, ligada a uma “Filosofia da Natureza” maior, na qual adota a máxima de que “a beleza é sinal de um corpo saudável”. De fato, para Trotula di Ruggiero, “cuidar da beleza é um modo de reencontrar a harmonia do corpo, o que significa também reencontrar-se com a natureza como um todo, dada a ligação entre o ser humano e o universo” (Ibid.). Finalmente, é-lhe atribuída a autoria de uma terceira obra, intitulada De aegrituinum curatione (Sobre a cura das doenças), referente a tratamentos e medicamentos. A obra é rica na indicação de remédios à base de ervas, especiarias, óleos, etc., associados às regras de higiene, alimentação equilibrada e exercícios físicos. Por tudo isso, do século XI ao XVI Trotula foi referência obrigatória nas melhores escolas de medicina da Europa. Não obstante, com o passar dos tempos, após a morte da autora, o machismo predominou na Escola de Salerno, a ponto dos médicos dessa Escola, apesar de usarem seus textos, passarem a defender a ideia de que ela sequer existiu, que não passava de uma figura fictícia9, ou então mudarem sua identidade, que passou a ter nome, ou melhor, cognome de homem - “Trotula, o Médico”, ou ainda a atribuírem sua obra a um autor do sexo masculino de nome Trottus (cf. SIMONI, 2010, p. 7). Aliás, essa era uma prática comum entre os estudiosos do início da modernidade que, por admitirem a presença de mulheres intelectuais da Idade Média,

9 Nesse sentido diz DEPLAGNE, 2008: “Bastante difundida sua obra durante o medievo, traduzida em vários idiomas, Trotula teve, no entanto, sua identidade questionada, no século da invenção da imprensa, pelo seu primeiro editor, em 1544. Período de intensa misoginia, o renascimento negou a autoria dessa obra a uma mulher, alegando o elevado grau de cientificidade impossível para a sabedoria feminina da época. Apenas pesquisas recentes do final do século XX é que vão devolver a Trotula o reconhecimento da autoria de sua obra De passionibus mulierum”. Cf. também, BOIS, 2012 e ARAUZ MACEDO, 2005, p. 207-208. 226 | Mulheres Intelectuais na Idade Média atribuiam a homens a autoria de suas obras, conforme diz Caroline Walker Bynum, citando Peter Dronke:

Ademais, conforme Peter Dronke ressaltou, não há nenhuma escritora importante oriunda da Idade Média cujas obras os estudiosos modernos não tenham atribuído (frequentemente com muito pouca prova) e um homem (apud BYNUM In: DILDERGARDA, 2015, p. 10).

E há ainda quem atribua a autoria de suas obras a outros nomes, conforme narra Jennifer Drew:

Quando Kasper Wolff de Basileia publicou uma edição impressa do Tratado Trotula, em 1566, atribuiu o trabalho a um autor do sexo masculino, Eros Juliae, um médico greco-romano que viveu séculos antes de Trotula. Esta publicação foi usada como prova por alguns historiadores posteriores para defender a tese de que o Trotula não tinha sido escrito por uma mulher, mas era na verdade o trabalho de um médico do sexo masculino. Da mesma forma, no século XX, o médico alemão Karl Sudhoff, intentando diminuir o estatuto de “As Damas de Salerno”, alegou que estas não teriam sido médicas, mas apenas parteiras e enfermeiras. Daí, por não serem médicas, significava que Trotula não poderia ter escrito o Passionibus mulierum, uma vez que era muito detalhado, para além do escopo e especialização de uma “simples parteira” (apud SIMONI, 2010, p. 7)10.

E, finalmente, há aqueles que confundem ou relacionam o nome da autora Trotula com o título do supracitado compêndio O Trotula, afirmando tratar-se apenas de uma obra, e não do nome de uma mulher.

10 Igualmente, diz NATANSOHN, 2005, p. 298: “O primeiro tratado de ginecologia foi escrito por uma mulher, Trotula de Ruggiero, expoente da escola médica salernitana do século XI [...], mas a partir do século XVI duvidou-se até mesmo da existência da autora, e, sobretudo, do seu sexo. A edição de 1566 do tratado foi atribuída (trocando o sexo e também o milênio de nascimento da autora] a Eros Juliae, um escravo liberto do tempo de Augusto, e muitas edições posteriores levam o nome Trottus ao invés de Trotula”. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 227

Mas, a partir do século XVIII, com a descoberta de parte dos manuscritos de O Trotula, nomeadamente da obra De passionibus mulierum curandorum ante, in, post partum (Sobre as doenças das mulheres antes, durante e depois do parto), muitos estudiosos foram levados a defender que pelo menos esta obra é da autoria de Trotula di Ruggiero, de forma que, a partir de então, passaram a dividir a obra em duas partes, ou a usar duas nomenclaturas para O Trotula: a primeira, composta pelo De passionibus mulierum curandorum ante, in, post partum, de autoria reconhecida, que levaria o nome de Trotula maior, e a segunda, composta pelas obras De ornatu mulierum e De aegrituinum curatione, que formariam o Trotula menor, por terem autoria duvidosa. Além disso, estudos recentes mostram que, com o passar dos tempos, houve ainda a incorporação da obra, ou pelo menos de parte da obra de Trotula di Ruggiero, a obras posteriores, como, por exemplo, ao Se’ar yusub, tratado médico escrito em hebraico, dedicado aos cuidados das doenças e beleza das mulheres, composto na segunda metade do século XIII pelo médico hebreu Jacob, no qual fica clara a recepção e transmissão do Trotula no mundo hebreu11. Apesar destas controvétrsias,

Os manuscritos desta especialista em medicina foram copiados desde o final do século XII; no XIII se leva a cabo uma versão de sua obra em versão latina, e no XIV e XV se realizarão traduções irlandesas, inglesas , francesas, catalãs, alemãs e flamengas, entre outras, o que nos indica que, pelo menos durante a Baixa Idade Média, as contribuições médicas de Trotula chegaram a ser levadas à prática cotidiana, extendendo-se os ditos saberes aos ofícios de parteiras e enfermeiras (não duvidemos que os medievais e, sobretudo, entre as mulheres, davam um papel decisivo a transmissão dos costumes mediante a oralidade) e contituiram assim mesmo uma fonte de estudo para os médicos

11 Para uma maior compreensão das relações entre O Trotula e o Se’ar yusub, indicamos o brilhante artigo: CABALERRO NAVAS, 2006, p. 381-425. 228 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

da época - especialmente, se partirmos do fato da falta de conhecimento em torno do corpo feminino por parte daqueles. Assim, pois, tanto Trotula como sua obra seguem constituindo um dos casos mais controvertidos e por sua vez fascinantes não só da história medieval, senão também da história da medicina (ARAUZ MACEDO, 2005, p. 210).

Anna Komnēnē (1083-1153)

Fonte: http://www.zimbio.com/

Anna Komnēnē (translação do grego Άννα Κομνηνή), nascida em Constantinopla em 01 de dezembro de 1083, foi uma princesa bizantina, filha primogênita do imperador Aleixo Comneno I, com Irene Ducaina. Apesar de ainda na infância ter sido prometida em casamento a Constantino Ducas, filho do imperador Miguel Ducas VII e Maria de Alânia, como o enlace não aconteceu, Ana Comnena acabou se casando, aos 14 anos (1097), com o estadista, general e historiador Nicéforo Briénio, filho de uma família aristocrática, com quem viveu durante quarenta anos e teve quatro filhos. Quando seu pai faleceu, em 1118, seu irmão John tornou-se imperador. Nessa ocasião, Anna Komnēnē e sua mãe conspiraram como derrubar o irmão e substituí-lo por seu marido, mas a trama foi descoberta e Ana Comnena foi obrigada a renunciar às suas propriedades e ao estatuto de família imperial, tendo de refugiar- se, juntamente com sua mãe e sua irmã Eudóxia, no mosteiro da Virgem cheia de graça, que sua mãe havia ajudado a fundar. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 229

No mosteiro, Anna Komnēnē, que desde cedo fora educada pelos eunucos da corte, dedicou-se aos estudos, passando a reunir- se com intelectuais eminentes de seu tempo. Por ter uma grande bagagem intelectual, em pouco tempo tornou-se educadora no mosteiro e só no final da vida veio a ser monja. Anna Komnēnē era versada em filosofia, história, literatura, gramática, teologia, astronomia e medicina, e seus contemporâneos, por exemplo o bispo Georgios Tornikes, de Éfeso, a viam como uma pessoa que atingira o cume da sabedoria, tanto secular como divina. Daí a afirmação do historiador medieval Choniates Niketas de que Anna Komnēnē era "a rainha de todas as ciências, foi educada em todos os campos" (apud ANNA Komnēnē, 2012). Seu marido, Nicéforo Briénio, ao falecer em 1137, deixou incompleto um ensaio intitulado Material para a história, centrado no reinado de Aleixo Comneno I. Anna Komnēnē, que na época tinha 55 anos de idade, decidiu concluir a obra, passando a intitulá- la Alexíada, que se tornaria uma das principais fontes sobre a história política do Império Bizantino no final do século XI e início do século XII, principalmente das Primeiras Cruzadas. Além disso, por narrar a história do reinado de seu pai, a obra acabou tornando-se autobiográfica. A Alexíada, escrita em grego e contando com 15 livros ou capítulos, foi concluída em 1148. Influenciada por Tucídides, Políbio e Xenofonte, o estilo literário de Anna Komnēnē revela uma linguagem arcaica e artificial, com abundantes referências à Ilíada de Homero e aos pensadores Sófocles, Eurípides e Demóstenes. Embora não se saiba exatamente a data do seu falecimento, todos os comentadores afirmam ter sido em 1153. 230 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Beatriz (ou Condessa) de Dia (1140-1180)

Fonte: http://www.lastfm.com.br/music/Beatriz+De+Dia

Beatriz de Dia (ou Condessa de Dia), filha do Conde Isoardo II, de Dia, cidade junto ao rio Drôme, nasceu no condado de Provença, em 1140. Foi a mais famosa trovadora do pequeno grupo das trobairitz, versão feminina de trovadores homens12, que escreveram canções de amor durante os séculos XII e XIII13. Desposada com Guillaume de Poitiers, conde de Viennois, cultivou, durante muito tempo, uma paixão proibida, mas não muito secreta, pelo trovador Rimbaud de Orange, a quem dedicou seus poemas. Das quatro canções que escreveu - "A chantar m’er de so q’ieu non volria", "Ab joi et ab joven m’apais", "Estat ai en greu cossirier" e “Fin ioi me don'alegranssa” -, a primeira é a única peça trovadoresca medieval de autoria feminina cuja música sobrevive intacta até hoje. Eis a primeira estrofe dessa canção:

12 Versos dialogados (tensons) cantados ou trocados entre duas mulheres, a exemplo dos desafios entre repentistas ou cantadores de viola nordestinos. Para maiores informações sobre as trobairitz ver DEPLAGNE, 2010, p. 193-205. 13 Além da Condessa de Dia, a Enciclopédia Documenta Catholica Omnia traz a seguinte relação (em ordem alfabética) de trobairitz que escreveram poesia na Idade Média, a saber: Alais, Iselda, Carenza, coautoras de um Occitan tenso; Alamanda de Castelnau (final do séc. X1I); Almucs de Castelnau (1140-1184); Azalais de Porcairagues (final do séc. XII); Bieiris de Romans (início do séc. XIII); Castelloza (início do séc. XIII); Clara d'Anduza (início do séc. XIII); Guillelma de Rosers (1235- 1265); Lombarda (1217-1262); Garsenda de Forcalquier (1180-1242); Gormonda de Monpeslier (1226-1229) e Tibors de Sarenom (1130-1198) (Cf. http://www.documentacatholicaomnia.eu/ 03d/sine-data,_Absens,_List_Of_Medioeval_Authors,_EN.doc). Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 231

Ponho-me a cantar o que não queria Queixo-me tanto de quem sou a ‘amiga’ Pois amo-o mais que tudo nesta vida: Nada mais o toca: dó, nem cortesia, Nem n’alma, veleza e valores tantos. Por ele sou enganada e traída, Assim como se me faltassem encantos (apud DEPLAGNE, 2008, p. 4).

As canções de Beatriz de Dia foram reproduzidas ou encenadas como peças de Teatro ao longo dos séculos até os dias de hoje, e, atualmente, nas páginas da Internet podemos encontrar algumas delas14.

Marie de France (séc. XII)

Fonte: http://lucy3621.tripod.com/

Do nascimento e vida de Marie de France pouco se sabe. Mas, a julgar pelo que escreveu no primeiro poema de uma de suas obras, dedicado ao rei Henrique II, da Inglaterra, no qual diz “Marie ai num, si sui de France" (Meu nome é Marie, e eu sou da França), deduz-se ter sido uma poetisa que nasceu provavelmente na Normandia - França, mas que viveu na Inglaterra durante o

14 Dentre as muitas interpretações/encenações das obras de Beatriz de Dia postadas na Internet, ver: e . 232 | Mulheres Intelectuais na Idade Média século XII, na Corte do rei Henrique II, da Inglaterra (1154-1189). Escreveu em dialeto francês anglo-normando, e, além disso, foi proficiente em latim e inglês, tendo inclusive lido grandes obras da literatura greco-romana, como, por exemplo, os escritos de Ovídio, os quais teriam grande influência em suas obras, conforme veremos mais adiante15. Sua obra principal - Lais16 -, que ficaria conhecida por Lais de Marie de France17, foi composta entre 1160 e 1178 e está conservada em diversos documentos antigos, sendo o mais completo o Harley 978, manuscrito do século XIII pertencente à Biblioteca Britânica. Nele, os 12 poemas do Lais, perfazendo um total de 5.876 versos, têm como tema comum o amor, e estão distribuídos na seguinte ordem: 1. Guigemar; 2. Equitan; 3. Le Fresne (A árvore de cinzas); 4. Bisclavret (O lobisomem); 5. Lanval; 6. Les Deux Amants; 7. Yonec; 8. Laustic (O rouxinol); 9. Milun; 10. Chaitivel (O Infeliz); 11. Chevrefoil; 12. Eliduc18.

15 A esse respeito diz PEREIRA, 2006, p. 2-3: “Dentre as mulheres que, na Idade Média, ‘usaram a pena’ como veículo de expressão de suas ideias destaca-se Marie de France. Marie, assim como a maioria das poetisas, pertencia à nobreza e provavelmente tenha vivido na corte dos reis ingleses de Platagenetas. Dedica-se à escrita de Lais, pequenos contos, correntes na cultura do Languedoc, no século XII, como expressão tipicamente feminina. Além dos Lais, são atribuídos a Marie de France algumas fábulas e a narrativa da viagem de São Patrício ao Purgatório”. Para Cristina Maria Teixeira Martinho, “Marie de France, a primeira escritora medieval de ficção [...], foi uma das primeiras vozes femininas na literatura medieval, fazendo algo de diferente da pesada literatura de gesta que começou a ser ouvida e publicada por toda a Europa do século XII, como a Canção de Roland, o Poema do Cid, os Cantos de Nibelungen, a que se seguiram outras até o Renascimento” ( 2009, p. 41). 16 Segundo CARVALHO, 2008, p. 1, “a palavra Lai tem sua origem na palavra celta Laid, que designa um cântico semilírico e seminarrativo, em versos octossílabos, composto a fim de perpetuar a recordação de um sucesso notável, de uma aventura, cantado pelos jograis da Idade Média com acompanhamento de harpa, alaúde e flautas”. Ao que acrescenta FURTADO, 2012: “Os textos, constituídos de versos de oito sílabas rimadas aos pares, são curtos em comparação com os dos romances em versos, que também seguiam esse mesmo esquema de métrica e rima [...]. Nos Lais, assim como nos romances [...], os heróis são invariavelmente descritos como belos, bravos e generosos em dar ricos presentes (a virtude da “largesse”), as heroínas são de uma beleza nunca vista, e tudo o que eles e elas possuem é incrivelmente valioso [...]”. 17 No Brasil, temos uma tradução da referida obra, a saber: MARIE de France. Lais de Maria de França. Trad.e introd. de Antônio L. Furtado. Prefácio de Marina Colasanti. Petrópolis: Vozes, 2001. 18 MARTINHO, 2009, p. 42, diz que “Marie coloca um título em todas as histórias, prática desconhecida na época. Dos doze, nove são nomeados a partir de seu personagem principal. E alguns Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 233

Na época em que Marie de France viveu a mulher era vista como deflagradora do desequilíbrio ou desordem social, que por conta se sua natureza fraca e inclinada aos prazeres mudanos, colocavam em perigo a sociedade, denigrindo a imagem da família e, principalmentge, do esposo. E dentre os males mais temidos praticas pela mulhesres estva o adultério, daí segundo Kátia Rosane Pereira, “na época em que foram escritos os Lais de Marie de France, as mulheres da nobreza viviam sob o domínio da cultura misógina dos clérigos, que apregoavm o controle da mulher pelo poder masculino tanto na esfera pública como privada” (PEREIRA, 2006, p. 3). Esse é o tema principal do Lais de Equitan, Equitan e do Bisclavret, onde de fato o adultério acontece. Diante de tal perigo, os maridos encacerravam suas mulheres, como um tesouro, pois disso dependia a honra e a linhagem da família. Isso é o que retrata o poema Guigemar, em que Marie de France denuncia a situação da esposa de um rico e ciumento senhor, que vivia aprisionada em seu quarto, vigiada por um velho padre que não tinha a genitália (um eunuco):

Dentro desse recinto ele me encerrou Só há uma entrada Cuja porta um velho padre guarda [...] Noite e dia estou presa E munca ouso Sair daqui a não ser que ele ordene (MARIE de France, Guigemar, vv. 309-3510).

Frente a este contexto, ou diferentemente da literatura romancesca da época, na nova literaruta cortêz de Marie de France as mulheres são apresentam capazes de mudar algumas atitudes do mundo dos homens. São mulhesres portadoras de

são apresentados com o título em inglês e em linguagem celta. Título, época e verossimilhança são dados que ela se sente no dever de fornecer, a fim de garantir a veracidade de suas histórias em termos literários”. Também informa que “a própria autora não emprega a palavra lai para qualificar seus poemas, mas a tradição crítica tem sido unânime, se servindo deste termo genérico” (Ibid.). 234 | Mulheres Intelectuais na Idade Média atitudes nobres, que lhes garante poder. Por exemplo, “em Lanval e Laüstic elas são belas, inteligentes e práticas. A fada de Lanval não é apenas bonita fisicamente, mas também é descrita pela palavra cointise, que cobre uma variada gama de significações – sabedoria, sagacidade, conhecimento, habilidade, refinamento, elegância” (MARTINHO, 2009, p. 46-47). Por suas obras, Marie de France refuta a ideologia reinante de que a distinção entre homem e mulher é a difença entre mente e corpo, de que “a mente, racional, superior, espiritual está ligada ao homem, enquanto que o corpo, carnal, irracional, ligase à mulher” (Ibid., p. 52). Homens e mulhesres são colocados lado a lado, como constutores de uma única e mesma realidade. Além dos Lais, Marie de France traduziu do inglês médio para o francês anglo-normando, 103 fábulas de Esopo, às deu o nome de Isopet, adaptando-as à sua realidade social, e, do latim para o francês, a lenda Tractatus de Purgatorio Sancti Patricii (Le Purgatoire de Saint Patrice - O Purgatório de São Patrício), do monge cisterciense Henry de Saltrey, que seria dedicado a William Longsword, filho bastardo do rei Henrique II, da Inglaterra. Recentemente, a ela tem sido atribuída uma biografia, La vie de Saint Audree (A vida de Santo Audrey). Da mesma forma que não se sabe a data do nascimento de Marie de France, também se desconhece o dia do seu falecimento. Sabe-se, apenas, como vimos anteriormente, que pertenceu ao século XII, por ter vivido na corte do rei Henrique II, da Inglaterra (1154-1189), e porque suas obras se situam entre 1160 e 1215. Outra informação que remonta ao período em que Marie de France viveu são as menções ao seu nome e à obra Lais, feitas pelo poeta inglês Denis Piramus, em sua obra Vida de Santo Edmund, o Rei, escrita por volta de 1180. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 235

Bettisia Gozzadini (1209-1261)

Fonte: http://collezioni.genusbononiae.it/

Bettisia Gozzadini, filha de Amadore Gozzadini e Adelasia de Pegolotti, nasceu em Bolonha – Itália, em 1209. Desde criança foi uma exímia estudante, e na juventude sua inteligência impressionou os mestres Giacomo Baldavino e Tancredi Arcidiacono, da Universidade de Bolonha, que a incentivaram a estudar Direito, recebendo o título de Doutora em Direito em 1236, muito embora, para isso, dado o preconceito da época de que não convinha a uma mulher estudar, teve de frequentar as aulas travestida de homem. A partir de então passou a lecionar, inicialmente em sua residência e nas escolas da sua região, e, finalmente, a convite do Bispo Enrico della Fratta, na Universidade de Bolonha. Segundo Umberto Eco, por ser muito bonita,

lecionou na Universidade envolta em um véu ou protegida por uma tela para não distraír seus alunos com sua extraordinária beleza física, lenda esta que, cem anos mais tarde, recairá igualmente sobre a professora Novella d’Andrea (In: ENCICLOPEDIA delle donne, 2013).

Ela foi, provavelmente, a primeira mulher no mundo a assumir formalmente o cargo de educadora universitária. 236 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Sua fama de oratória era tal que em 1242 foi escolhida para proferir as últimas palavras no funeral de Enrico della Fratta, bispo de Bolonha. Bettisia Gozzadini morreu em novembro de 1261, em consequência de ferimentos recebidos por causa da destruição de sua residência, situada nas barrancas do rio Ídice.

Compiuta Donzella (cerca de 1240-????)

Fonte: http://historicalfictionresearch.blogspot.com.br/

Compiuta Donzella é o pseudônimo de uma mulher florentina que viveu no século XIII, talvez a primeira poetisa italiana a compor versos em língua vernácula. Embora em alguns momentos sua existência tenha sido questionada por alguns estudiosos, outros a confirmam a partir do testemunho do mestre Torrigiano, proeminente médico de Florença, antes professor da Universidade de Paris, que a chama de “divina sibila”, em um soneto a ela dedicado com o título de “Per la Compiuta Donzella di Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 237

Firenze”, e do poeta Guido Guinizzelli, que também lhe dirige um soneto (cf. FLORÉZ, 2012, p. 37). Além disso, há uma carta a ela dirigida, datada de 1263, de Guittone d'Arezzo, considerado por muitos como o poeta mais prolífico e influente do vernáculo italiano antes de Dante Alighieri (Cf. Ibid., p. 38). À Compiuta Donzella são atribuídos três sonetos existentes no Cancioneiro Vaticano Lat. 3793 (Cf. DOMÍNGUEZ FERRO, 2014): La stagion che'l mondo foglia e fiora (Na estação em que o mundo se adorna de folhas e flores)19, em que reclama da escolha de um marido para ela por parte de seu pai; o segundo, Lasciar vorria lo mondo e Dio servire (Gostaria de deixar o mundo para servir a Deus), no qual lamenta o estado do mundo: a falta de nobreza, a mesquinhez de espírito e a desonestidade. Enquanto ela deseja entrar num convento, seu pai a obriga a casar-se20; e, finalmente, no soneto Ornato di gran prègio e di valenza (Ornamento de grande valor e serventia)21, há um duelo com um poeta anônimo, que alguns críticos identificam como sendo Chiaro Davanzati, membro de uma família florentina proeminente do Palazzo Alessandra, o qual afirma ser Compiuta Donzella “mulher de grande cultura e famosa na arte de trovejar” (FLORÉZ, 2012, p. 39). Compiuta Donzella faleceu em data desconhecida22.

19 Eis o soneto na íntegra, traduzido por CAMBEIRO, 2014, p. 56: “Na estação em que o mundo se adorna de folhas e flores/aumenta a alegria dos finos amantes,/ juntos vão para os jardins/ enquanto os pássaros cantam docemente// As pessoas de alma nobre se enamoram/ abrem-se ao serviço do amor/ e toda dama fica feliz;/ em mim dominam a tristeza e o pranto// Porque meu pai me deixou em grande pena,/ quer-me dar à força um marido/ que não desejo nem quero/ vivo as horas atormentada/ por isso não me alegram nem as flores nem as folhas”. 20 Por seu caráter de rebeldia contra as normas sociais da época, FLORÉZ, 2012, p. 10 e 22, inclui Compiuta Donzella na famosa Querelle des Femmes. E, baseando-se nos comentários de Jolanda De Blasi, diz que “Compiuta Donzella anuncia o Renascimento com a afirmação do seu eu individual, contra as exigências sociais” (p. 42). Já CAMBEIRO, 2014, p. 56, a considera uma trobairitz. 21 Há uma versão espanhola dos três sonetos de Compiuta Donzella na obra: NADALES, 2012, p. 88-92. 22 Além de Compiuta Donzella, Mercedes Arraiga Floréz dá-nos notícia doutra poetisa italiana do final do século XIII, chamada Gaia de Camina de Treviso (1270-13011), que é mencionada por Dante no Purgatório da Divina Comédia (Cf. 2012, p. 18 e 25). 238 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Nina Siciliana (cerca de 1290-????)

Fonte: NADALES, 2012, p. 81.

Nina Siciliana foi uma poetisa italiana autora de um famoso soneto que só veio à tona em 1780, juntamente com 74 outros poetas, no Étrennes du Parnasse: Choix de poésies (Estreias do Parnasso: Seleção de poesias). Francesco Trucchi foi o primeiro a atribuir-lhe o soneto Tapina in me, c'amava uno sparviero (Infeliz de mim, que amava um gavião)23, no qual, “ao comparar o amado com um pássaro fugitivo, no caso, um gavião propenso a inúmeras conquistas amorosas, a dor do eu lírico feminino está em tê-lo perdido, depois de ter-lhe ensinado a maestria do cantar” (CAMBEIRO, 2014, p. 55). Nina Siciliana foi a musa inspiradora dos poemas de Dante da Maiano, que se apaixonou por ela apesar de nunca a ter conhecido pessoalmente, o que levou Mercedes Floréz a dizer que ela “está unida a Dante da Maiano a ponto de ser conhecida e citada muitas vezes como ‘a Nina de Dante’” (FLORÉZ, 2012, p. 19).

23 Eis o soneto na íntegra, traduzido por CAMBEIRO, 2014, p. 55: “Infeliz sou eu que amava um gavião/ amava-o tanto que me sentia morrer./ Agora voou com tanta altivez/ mais altivo do que precisava,/ está sentado em outro jardim/ e outra mulher o tem a seu lado./ Meu gavião, eu te nutri,/ um guizo de ouro te dei para levar,/ para que fosses mais agudo no teu cantar,/ mas quebraste os elos e fugiste,/ quando eras seguro no teu cantar”. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 239

Jacqueline Félicie (1290-1340)

Fonte: http://www.womenpriests.org/

Segundo Morales, “Jacqueline Félicie, também conhecida como Jacoba Félice no Charlutarium Universitarias Parisiensis”24, foi uma parteira francesa de origem germânica nascida em local incerto, acusada de praticar ilegalmente a medicina em Paris, numa época em que oficialmente era vedada às mulheres a prática de qualquer tipo de cura25. Como era uma mulher sábia e versada na arte de visitar com decência uma mulher doente e investigar-lhe os segredos e as partes íntimas, tornou-se muito querida entre as mulheres. Muitas delas, que antes preferiam morrer, com vergonha de revelar seus segredos, ser tocada em suas intimidades e ser até explorada em suas fraquezas por médicos homens, encontraram nela uma pessoa em quem podiam confiar sem constrangimento ou risco de humilhações. Ela mesma fabricava suas porções medicamentosas. Sua eficiência como médica ganhou notoriedade, mas passou a incomodar a sociedade machista dominante naqueles tempos.

24 Igualmente FERRER, 2013, reforça que “Jacoba seria de origem alemã e pertencia a uma classe social privilegiada, pois é a única mulher que aparece em um processo judicial com o tratamento de Domina”. 25 A esse respeito diz PAMO-REYNA, 2007, p. 111: “Na França e Inglaterra, no século XIII, as leis proibiram às mulheres o exercício da medicina. As juntas de médicos e cirurgiões se preocupavam em não admitir mulheres entre seus membros. Tal foi o caso de Jacoba Felícia, que havia aprendido a arte da medicina, e que em 1322 foi denunciada pela Faculdade de Paris pelo exercício da profissão e que, apesar de demonstrar competência, lhe foi proibido tal exercício”. 240 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Em 1322 foi acusada pela Faculdade de Medicina da Universidade de Paris, especialmente por John de Pádua, médico do Rei Felipe IV, da França, de praticar medicina26. Foi presa e processada na Corte da Inquisição Francesa, em Paris, embora os registros confirmem o seu conhecimento da arte da cirurgia e da medicina mais que qualquer mestre ou doutor em Paris. Apesar dos diversos testemunhos a seu favor por muitos dos seus pacientes, inclusive uma criada do próprio bispo encarregado do caso, a qual fora desenganada por outros médicos que antes a haviam examinado, Jacqueline Félicie foi considerada culpada e excomungada, tornando-se um caso paradigmático e bem documentado que consta no processo de intolerância religiosa cristã então reinante na Europa, especialmente no que dizia respeito às mulheres no exercício da medicina. A sentença condenatória foi aprovada por um corpo de jurados altamente conservador, que a consideraram uma criatura carnal incapaz de razão, ligada com o diabo. Foi excomungada como bruxa e proibida de continuar suas curas sob risco de ser queimada na fogueira. Faleceu, provavelmente em Paris, por volta de 1340.

26 Confirma esta informação COSTA, 2008, p. 291, ao dizer: “Assim como outras mulheres, Jacoba é condenada, com base em lei de 1270, por prática de charlatanismo, e acusada, em 1322, de cuidar de doenças tanto de mulheres quanto de homens, tratar de suas feridas, examiná-los e prescrever medicamentos e, sobretudo, cobrar por esses cuidados”. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 241

Giovanna Bianchetti (cerca de 1310-????)

Fonte: http://collezioni.genusbononiae.it/

Segundo Mercedes Arriaga Floréz, “Giovanna Bianchetti viveu na primeira metade do século XIV e pertenceu a uma nobre família de Bolonha. Era filha de Matteo dei Bianchetti de S. Donato e casou-se com o jurista Bonsignore, dos Bonsignori de Bolonha” (2012, p. 66-67), com quem teve quatro filhos. Sabe-se que era uma mulher culta, “especialista em direito canônico e civil, a ponto de a chamarem de “celeberrima jure” (FLORÉZ, 2014, p. 02). Além disso, tinha uma vasta experiência em ciências filosóficas e línguas antigas, conforme consta na crônica de Bartolomeo della Pugliola, contemporâneo seu, que narra sua visita a Mântua, acompanhando a corte de Carlos IV, em 1234. Aí consta que, junto com a esposa do Rei, “viajava uma venerável bolonhesa que sabia falar bem o alemão e o boêmio, e tinha por nome Giovanna, filha de Matteo dei Bianchetti de S. Donato, e era viúva” (apud FLORÉZ, 2014, p. 02). Giovanna Bianchetti faleceu em data desconhecida27.

27 Além de Giovanna Bianchetti, Mercedes Arraiga Floréz dá-nos notícias de duas outras poetisas italianas da passagem do século XIII ao XIV, a saber: Selvaggia dei Vergiolesi (1308-????), citada pelo poeta Cino da Pistoia em soneto a ela dedicado (cf. 2012, p. 19, 27 e 28).

242 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Novella d’Andrea Calderini (1333-1366)

Fonte: http://indulgy.com/

Novella d’Andrea Calderini, filha de Giovanni d'Andrea Calderini, professor de Direito Canônico da Universidade de Bolonha, nasceu em Bolonha em 1333 (cf. FLORÉZ, 2014, p. 01). Educada por seu pai, mais tarde assumiu suas aulas de Direito na Universidade de Bolonha28. Tamanha era a beleza física de Novella Calderini que, segundo a tradição (ou a lenda), ela dava aulas “coberta por um véu, ou, de acordo com outros, por trás de uma espécie de cortina” (ECO In: ENCICLOPEDIA delle donne, 2013), para não distrair os alunos com sua beleza física. Novella d’Andrea Calderini chegou a se casar com o advogado Giovanni da Legnano, mas morreu ainda muito jovem, em 1366, sem deixar filhos. Pouco tempo depois, o pai recolheu os comentários da filha aos Decretos do Papa Gregório IX e publicou- os sob o nome de Novellae, em memória ao seu nome.

28 Segundo FLORÉZ, 2014, p. 01, “parece que também sua irmã Bettina Calderini se casou com um professor (John Sangiorgi) da Universidade de Pádua, e que o substituía quando este estava ausente”. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 243

Bartolomea Mattugliani (1350-????)

Fonte: http://www.lib.uchicago.edu/

Mercedes Arraiga Floréz diz que Bartolomea Mattugliani (ou Mattuiani) “pertenceu a uma nobre família bolonhesa. Foi esposa de Michele di Pietro di Nicolò Mattugliani, membro do “Conselho dos Anciãos”, em 1379, e do “Conselho dos Quatrocentos”, em 1387” (FLORÉZ, 2012, p. 68)29, e faleceu em 1411. Daniele Cerrato diz que no Almanaque Estatístico de Bolonha (1838) “Bartolomea Mattugliani é apresentada como mulher de grande cultura, capaz de competir e superar todas as mulheres de seu tempo, e também muitos homens”, por isso a chamam de “a bela Mattuiani” (CERRATO, 2014, p. 104-105). Em Bolonha, manteve boas relações com Elisabeth Cino Sampieri, esposa de John Bentivoglio de Bolonha e autora da obra De claris legum interpretibus, que lhe confiou a educação de sua filha Giovanna Bentivoglio Malvezzi, sob cuja orientação se tornou grande conhecedora das obras de Dante e Petrarca. Sua única obra nasceu como resposta à Carta que lhe fora dirigida por Charles Cavalcabó, marquês de Cremona, grande amante da poesia, na qual elogia não só sua beleza física, mas também suas qualidades morais e seu estilo literário. Para refutar

29 Cf. também, FRATI, 1908, p. VII. 244 | Mulheres Intelectuais na Idade Média os galanteios de Charles Cavalcabó, Bartolomea Mattugliani escreve uma Epístola30 poética, em rima de terça, tomando como modelo a obra De Claris Mulieribus, de Boccaccio, inclusive trazendo para seu texto diversas das mulheres ilustres por ele elencadas31, uma espécie de genealogia feminina, antecipando assim o que faria, em breve (1406), Christine de Pizan em sua Cidade das Mulheres. Além de Boccaccio, o texto de Bartolomea Mattugliani demonstra que ela possuía um grande conhecimento dos clássicos contemporâneos seus, especialmente de Dante e Petrarca. Charles Cavalcabó faleceu em 24 de julho de 1406 sem responder à Epístola de Bartolomea Mattugliani.

Leonora della Genga (1360-????)

Fonte: http://blog.libero.it/

Leonora della Genga, filha de Contuccio, Conde della Genga, província de Ancona, nasceu em Fabriano - Itália, em 1360 (cf. FLORÉZ, 2012, p. 58).

30 Há uma tradução espanhola da Epístola de Bartolomea Mattugliani em NADALES, 2012, p. 104-107. 31 A esse respeito diz CERRATO, 2014, 104-105: “Arachne, Lucretia, Nicostrata de Carmente, Pentesileia, Camilla, Penélope, a vestal Cláudia, Márcia, esposa de Sulpicia Fulvio Flacco, definida como ‘a mais casta das matronas romanas’, são apenas algumas das personagens femininas que Bartolomea toma como testemunhas e que já estavam presentes na obra de Boccaccio”. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 245

Era uma mulher de forte personalidade, não convencional para sua época, defensora dos direitos das mulheres. Em seu primeiro soneto, com título emblemático Tacete, oh maschi, a dir che la natura (Guardai-vos, ó homens, de dizer que a natureza), sustenta enfaticamente que as mulheres "sabem manejar espadas e sustentar impérios". Além do supracitado soneto, escreveu mais três, intitulados Compite, oh muse, di color funebre (Realizai, ó musas, de cor fúnebre) , Del suo amor sospinto Dio (Pelo seu amor é Deus impelido ou: Deus é impelido pelo seu amor), Di esmeralde, di perle e di diamante (De esmeraldas, pérolas e diamantes)32. Leonora della Genga faleceu muito jovem em data desconhecida33.

32 Há uma versão espanhola dos quatro sonetos de Leonora della Genga em NADALES, 2012, p. 94-99. 33 Além de Leonora della Genga, Mercedes Arraiga Floréz (2012, p. 49) nos traz notícias doutra poetisa italiana da segunda metade do século XIV, chamada Ortensia de Guglielmo (1350-????), que escreveu quatro sonetos: “Io vorrei pur levar queste mie piume”; “Ecco signor, la greggia tua d’intorno”; “Tema e speranza entro il mio cor fan guerra”; “Vorrei talhor dell´intelletto mio”, dos quais há uma versão espanhola em NADALES, 2012, p. 92-93 e 100-101. 246 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Leonor López de Córdoba (1362-1430)

Fonte: http://cordobapedia.wikanda.es/

Leonor López (de Córdoba), filha de Martín López, grande mestre das ordens de cavalaria de Calatrava e Alcântara, e de Sancha Carrillo, sobrinha de Afonso I, pai de Pedro I de Castela, nasceu na corte de Pedro I de Castela (Pedro, o Cruel), em Calatayud (Zaragoza), em 1362 (cf. BELLO, 2006, p. 243 e ARAUZ MERCADO, 2207, p. 7). Depois da morte precoce da mãe, seu pai deu-a em casamento a Ruy Gutiérrez de Hinestrosa, filho de Juan Fernández de Hinestrosa, chefe de D. Pedro Valet e mordomo-chefe da Rainha Branca (Blanche de Bourbon). Após o casamento, a família de Leonor López mudou-se para Carmona, no sul da Espanha, perto de Sevilha. Enquanto moravam lá, Pedro I foi assassinado por seu meio-irmão, que assumiu a coroa como Enrique II. O pai de Leonor - Martín López, - que era partidário do antigo rei, foi decapitado em 1371, na Piazza San Francisco, em Sevilha, e sua família, presa nos Atarazanas (estaleiros) de Sevilha (cf. Ibid., p. 246). Na prisão, morreram todos os parentes de Leonor, exceto ela e seu marido, Ruy Gutiérrez. Mas, finalmente, depois de oito anos de dificuldades (1371 a 1379), o casal foi libertado por uma disposição de Enrique II. Livres, Leonor López e o marido pediram Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 247 abrigo na casa de sua tia María García Carrillo, em Córdoba (cf. AMASUNO, 1999, p. 45-46). Com a ajuda da tia, em 1390 compraram um pequeno terreno ao lado do Mosteiro de Santo Hipólito, onde mais tarde construíram uma casa e uma capela. Em 1392, quando a “peste negra” atingiu Córdoba, Leonor López e sua família fugiram para Santa Ella e, posteriormente, para Aguilar, onde um de seus filhos morreu de peste. Em 1403 a família voltou para Córdoba, passando a habitar na corte de Enrique III e sua rainha Catalina de Lancaster, de quem Leonor se tornou conselheira. No entanto, por volta de 1412, por ter-se envolvido numa briga política entre a rainha Catalina e um cunhado corregente, Leonor López foi banida da corte, sob ameaça de ser queimada na fogueira. Mesmo assim, continuou em Córdoba até sua morte, em 143034. Após ter caído, mais uma vez, em desgraça, exilada em uma pequena casa onde veio a construir uma capela, Leonor López resolveu escrever aquilo que ela e sua família viveram, obra que receberia o nome de Memórias, que são, provavelmente, a primeira autobiografia escrita em língua castelhana35. O manuscrito original está perdido, mas foi transcrito e publicado36 a partir de uma cópia atualmente encontrada na Biblioteca Colombina, em Sevilha. Pela abundância de termos jurídicos, muitos comentadores chegaram a pensar que não fora escrita por Leonor, mas ditada por ela e transcrita por um notário (um escrivão).

34 Analisando a conturbada vida de Leonor López, diz BELLO, 2006, p. 263: “A vida de Leonor López de Córdoba é, pois, uma constante intercalação de períodos de luzes e períodos de sombras, sendo abundantes os de sombra, com dramáticas cores e fortes rupturas. Tanto sua autobiografia, como os documentos que podem trazer maior luz sobre sua personalidade e suas ações, assim como os episódios que se vão sucedendo em sua vida, nos mostram um marco de grandes contrastes”. 35 A esse respeito diz STANTON In: LOUREIRO (org.), 1994, p. 77: “As Memórias de Leonora López de Córdoba, no século XV, não era apenas a primeira obra conhecida de uma escritora publicada na Espanha, mas a primeira autobiografia do país”. Cf. também, Ayerbe-Chaux, 1977, p. 11-33. 36 Segundo NAVAS OCAÑA, 2011, “as Memórias de Leonor López de Córdoba a editou pela primeira vez José María Montoto em 1875 e não haviam transcorridos dez anos desde a edição quando Feliciano Ramírez de Arrelano [...] a incluiu em sua Coleção de documentos inéditos para a história da Espanha (1883)”. 248 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Embora não se saiba exatamente a data do falecimento de Leonor López, Juan Bello conclui a narrativa de sua vida dizendo que

em 03 de Julho de 1430 ela ditou um documento em que deixa dito o que há de ser escrito na inscrição que se colocará na capela – edificada a pedido dela37 – da Igreja de São Paulo, de Córdoba, onde será enterrada nesse mesmo ano. Tinha Leonor no momento de sua morte 68 anos (2006, p. 270-271)38.

Cristina di Pisano (1363-1430)

Fonte: FLORÉZ, 2012, p. 11.

Cristina di Pisano (em português, Cristina de Pisa) ou Christine de Pizan, em Francês, língua adotada na qual escreveu

37 Trata-se da Capela dedicada à Trindade, na nave esquerda da Igreja de São Paulo, de Córdoba, construída a pedido de Leonor López em 1409, onde já havia sido sepultado seu filho Gutiérrez e suas duas netas Beatriz e Catalina. 38 Já RODRIGUÉZ ÁNGEL, 2012, assim fala da data de falecimento de Leonor López de Córdoba: “Desde 1412, a notícia sobre Dona Leonor é rara. Você só pode certificar-se de que ela voltou para Córdoba, onde passou seus últimos anos até sua morte, que ocorreu entre 03 de julho de 1430, quando deu o aditamento à sua vontade, em 11 de julho, em que o funcionário inventariante a cita como falecida. São extremamente curiosas algumas disposições testamentárias da senhora, como seu desejo de que seu corpo fosse assistido por duas senhoras durante o dia em que ela morresse e fosse sepultada no mosteiro de St. Paul, onde ela havia construído um túmulo e em que, ainda hoje, podem ser encontrados vários túmulos e inscrições sobre o que deve ter sido algo de um jazigo da família”. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 249 suas obras, filha de Tommaso di Benvenuto Pisano, médico, astrólogo e professor da Universidade de Bolonha, nasceu em Veneza – Itália, em 11 de setembro de 1365. Em 1368, seu pai foi nomeado secretário de Carlos V, rei da França. Assim,

quando sua filha tinha três anos, a família se transferiu para Paris, e desde então a pequena Cristina começou a ter contato com a Corte, com a família real e com a burocracia de palácio, tendo acesso a grande biblioteca do mesmo e a produção de livros que se realizavam para o monarca. Ali conheceu não só os clássicos, senão que as primeiras traduções ao francês de alguns autores que posteriormente exerceriam grande influência em suas obras, como foi o caso de Boccaccio. Assim, pois, a infância e adolescência de Cristina de Pizan transcorreram em meio a este ambiente erudito, tendo como respaldo a influência e ajuda de seu pai, que a colocou em contato com os círculos intelectuais da época, ainda que sem o consentimento de sua mãe (ARAUZ MACEDO, 2005, p. 215)39.

Em 1380, aos 15 anos de idade, casou-se com um jovem dez anos mais velho do que ela, denominado Etienne Castel, que, em 1386, um ano após o casamento, assumiu a função de secretário da chancelaria do Rei Carlos V. Sete anos depois, Cristina di Pisano perde o pai, e, três anos depois, em 1390, morre seu marido, fatos que a deixaram,

39 A esse respeito diz WUENSCH, 2012, p. 5: “De seu avô materno recebeu as primeiras lições científicas do corpo humano, aprendendo a admirar a sua natureza e beleza, e afastando-se dos preconceitos da medicina tradicional da época; de seu pai, as lições de astronomia e astrologia então se complementavam. Foi ele quem providenciou que sua filha aprendesse letras (italiano, francês e latim), bem como poesia (história) e retórica [...]. Eustache Descamps, poeta famoso em sua época, entre outros, e amigo de seu pai, orientou-a no estudo das artes liberais e da teologia”. Igualmente diz LIMA, 2011, p. 11: “Em seu pai, Christine encontrou incentivo para estudar e deleitar-se nos livros e manuscritos da biblioteca real, à qual ela tinha livre acesso”. Ao contrário de sua mãe, segundo Daniele Souza, “que embora fosse filha de um homem instruído, o anatomista Mondino de Luzzi, se opunha duramente à instrução da filha em matérias que não se referissem às tarefas domésticas. Ela refletiu o pensamento da grande maioria das pessoas de sua época, de que os estudos corrompiam as mulheres, sendo então impróprio esse tipo de educação ‘masculina’ a uma jovem” (SOUZA, 2008, p. 14). Cf. também, SOUZA, 2013, p. 21 e FONSECA, 2011, p. 555. 250 | Mulheres Intelectuais na Idade Média juntamente com os demais familiares, numa delicada situação financeira. É então que Cristina de Pisano decide dedicar-se às letras, numa tentativa de sustentar a si, a mãe, os dois irmãos, os três filhos e uma sobrinha que tinha a seu encargo40. E assim,

em pouco tempo, Christine, detentora de erudição singular, produziu obras bastante diversificadas como poemas, tratados de educação, morais e políticos, entre outros, mas todos com destaque à temática frequente do universo feminino e à exposição pioneira da noção de que as diferenças entre homens e mulheres não se encontravam em questões biológicas, ínsitas à própria natureza dos gêneros, mas em construções de origem religiosa, cultural e social (NERI, 2013, p. 71).

Começou a escrever, em 1394, uma obra que seria intitulada Livre des cent ballades (Livro das cem baladas), sob a encomenda das esposas dos príncipes41. A obra teve boa aceitação na época. Nela, em forte tom de lirismo melancólico, a autora se autorretrata ou externa seus sentimentos em relação aos últimos e difíceis tempos que estava vivendo, a ponto de desejar a morte, como vemos, por exemplo, em algumas estrofes das baladas V, VIII e IX:

Maldita vida que dura tanto, Pois, nada mais me apetece,

40 Muitos comentadores ressaltam que Cristina di Pisano foi a primeira mulher a viver ou ganhar a vida como escritora, ou a fazer da arte de escrever uma profissão. Nesse sentido, para LIMA, 2011, p. 12: “Pizan inovou porque fugiu aos padrões femininos vigentes em seu tempo e, mais ainda, sustentou-se de seu trabalho como escritora, algo incomum para uma mulher medieval”. E, mais adiante, completa: “[...] para manter-se e a sua família continuou escrevendo, direcionando-se por literaturas que tratavam da arte da guerra, da administração real e, sobretudo, da defesa da mulher” (p. 18). Mais ainda, para Luciana Calado Deplagne, Cristina di Pisano não foi só a primeira mulher a sobreviver da arte de escrever, mas, o mais curioso, a “viver de uma escrita ‘feminista’ em defesa da mulher, como uma doce voz na amarga misoginia da época” (2006, p. 25). Cf. também, LEITE, 2008, p. 12. 41 Por ter-se dedicado à vida literária para sobreviver, Cristina di Pisano, além de escritora, foi também copista e artista plástica, conforme relata SOUZA, 2013, p. 28: “Cristina de Pìzán foi copista e dedicou-se a escrever influenciada pelas necessidades que vieram com a viuvez, tornando-se uma escritora profícua, que também fazia as iluminuras de suas obras, reconhecida ainda em vida graças ao apoio da corte francesa devido às suas relações pessoais”. E assim, sob encomenda de princesas e príncipes, copiou e escreveu diversas obras, dentre as quais biografias de famílias reais. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 251

Apenas morrer, continuar vivendo não tem mais sentido Depois que morreu aquele que me deixava em vida (Balada V, 5-8). Para qualquer lado que me vire, Não vejo nada que me pareça importante, Eis as razões de minhas lamentações (Balada VIII, 12-14). E tu, Morte, eu te peço, inscreve-me em teu livro E faze com que eu veja em breve tal mensagem Que meus males queixosos sejam por ti aliviados (Balada IX, 26-28) (apud DEPLAGNE, 2006, p. 27).

Mas, o que lhe garantiu o estatuto de escritora ou a notoriedade alcançada foram os escritos em resposta ao famoso poema Roman de la rose (Romance da rosa)42, um dos livros mais populares em toda Europa no século XIII, de cunho misógino, pelo menos na sua segunda parte43, representando as mulheres como nada mais que sedutoras, numa mordaz sátira às convenções do amor cortês. Em 1401, inicia suas obras antimisóginas, criticando o referido poema, que, segundo ela, era infundado e servia apenas para denegrir a função natural e própria da sexualidade feminina.

42 As reações/polêmicas em torno do Roman de la rose (Romance da rosa), incluindo aí as obras de Cristina de Pisano, receberam, mais tarde, o nome de Querelle des Femmes. Segundo WUENSCH, 2012, p. 7, “por meio de suas correspondências, ela [Christine] reúne aliados para sua causa, tanto da nobreza – como o duque de Orléans, e a própria rainha da França, Isabel da Baviera – quanto da universidade, como o teólogo Jean Gerson, que escreve, em 1402, um tratado contra a versão do Roman de Jean de Meung, em favor de Christine de Pizan”. Cf. também, SOUZA, 2013, p. 31. Já do lado contrário, temos “alguns intelectuais e personalidades ligadas ao rei, como Pierre Col e Jean de Montreuil, que, contrários às opiniões da escritora, além de criticarem sua obra, pedem, em duas epístolas, que ela retire as críticas que fez sobre o Roman de la Rose” (DEPLAGNE, 2013a). Cf. também, SOUZA, 2013, p. 31. 43 Segundo LIMA, 2011, p. 12, o Roman de la Rose foi escrito por dois autores: “a primeira parte da obra foi escrita por Guilherme de Lorris, em 1230; nela a mulher era enaltecida e o amor se expressava embalado em poemas românticos; a segunda parte foi escrita por Jean de Meung, em 1280. Esse autor impôs um caráter depreciativo na obra no que diz respeito à mulher, ridicularizando-a, diminuindo-a na sua condição de gente”. Segundo SARANYANA, 2007, nota 8, p. 117, “sem competidor algum, foi a obra mais popular e influente no Baixo Medievo”. Há uma versão brasileira da primeira parte desta obra, traduzida por Sonia Regina Peixoto, Eliane Ventorim e Ricardo da Costa, disponível na página: http://www.academia.edu/2997637/O_Romance_da_Rosa. 252 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

No poema Épître au Dieu d'amour (Epístola ao Deus de amor), por exemplo, diz:

Que não me acusem de desatino, de arrogância ou presunção, de ousar, eu, mulher, opor-me e replicar um autor tão sutil, nem de reduzir o elogio devido à sua obra, quando ele, único homem, ousou difamar e censurar sem exceção todo o sexo feminino (apud RÉGNIER-BOHLER, 1990, v. 2, p. 530).

Assim, por criticar a misoginia presente no meio literário da época e defender o papel das mulheres na sociedade, Cristiana de Pisano é considerada, ainda hoje, precursora do feminismo moderno. Mas, as duas obras antimisóginas de Cristina de Pisano de maior repercusão foram: Livre de la cité des dames (Livro da cidade das mulheres) e Livre des trois vertus (Livro das três virtudes). A primeira - Livre de la cité des dames (Livro da cidade das mulheres) -, escrita em 1405, em 03 livros, dividida em 138 capítulos, nasceu após a leitura de Lamentations (Lamentações), da autoria de Matheolus, obra do século XII traduzida para o francês em 1370 por Jean Le Fèvre, que provocou grandes inquietações na leitora, conforme ela mesma relata no início de sua obra:

Um dia, estava eu, como de hábito, e com a mesma disciplina que rege o curso de minha vida, recolhida em meu gabinete de leitura, cercada de vários volumes, tratando dos mais diversos assuntos. Com a mente cansada por ter passado um bom tempo estudando sentenças complexas de tantos autores, levantei a vista do texto, decidindo deixar, por um momento, assuntos mais sutis para deleitar-me com a leitura de alguma poesia. E, com esse intuito, procurando à minha volta algum livreto, caiu entre minhas mãos um certo opúsculo que não me pertencia, mas que alguém havia deixado ali, com outros volumes, por empréstimo. Abri-o, então, e observei no título que se tratava de Monteolo44 [...]. Pus-me a lê-lo.

44 Outras obras bastante citadas pela literatura misógina da época, bem como por Cristina de Pisano, foram A Arte de Amar, de Ovídio, e o De Secretis Mulierum (Sobre os segredos das mulheres), “um aberrante tratado de ginecologia de grande circulação no século XIII, que denega, seguindo a tradição de Aristóteles e de Santo Isidoro de Sevilha, os efeitos corruptos da menstruação” (FONSECA, [s.d.] Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 253

Avancei um pouco a leitura. Mas, o assunto, parecendo-me pouco agradável -, aliás, para qualquer um que não se deleita com calúnias -, e sem contribuir em nada à edificação moral nem à virtude, considerando ainda a distorção da linguagem e dos temas por ele tratados, folheei-o aqui, ali, li o final, e, em seguida, abandonei-o para voltar a outros estudos mais sérios e de maior utilidade. Porém, a leitura daquele livro, apesar de não ter nenhuma autoridade, suscitou em mim uma reflexão que me atordoou profundamente [...] (CHRISTINE de Pizan, I, 1, 2012, p. 57-58)

E continua:

Perguntava-me quais poderiam ser as causas e motivos que levavam tantos homens, clérigos e outros, a maldizer as mulheres e a condenar suas condutas em palavras, tratados, escritos [...]. Filósofos, poetas e moralistas [...] todos parecem falar com a mesma só voz para chegar à conclusão de que a mulher é profundamente má e inclinada ao vício (Ibid., p. 58).

Nas palavras de Pedro Barbosa, como reação à referida obra, ou

para provar que as mulheres não eram seres inferiores, esta letrada, um dos espíritos mais cultos do seu tempo, vai compilar as vidas de um conjunto de outras mulheres que se tinham notabilizado, desde a bíblica Rute até Branca de Castela, mãe de S. Luís, passando por Penélope, mulher de Ulisses, e Agripina a Maior (BARBOSA, 2001, p. 182).

Para isso, tomando como referência a obra A Cidade de Deus, de Santo Agostinho45, ainda que para contextar46, Cristina de atribuído ao Pseudo-Alberto Magno. Sobre ele diz Verônica Roldós: “mais de 50 edições foram impressas no século XV, e ao redor de mais de 70, no século XVI”. 45 Lucimara Leite, ao falar da estrutura da obra, diz que “a idéia e o título usados por Christine revelam uma cidade alegórica, provavelmente inspirada em A Cidade de Deus, de Santo Agostinho. Já a divisão em três partes foi influenciada por Petrarca e outros” (2008, p. 101). 46 A esse respeito diz FONSECA, 2011, p. 556: “E nesse sentido dialetico de construir desconstruindo que Christine constroi o seu polemico O livro da cidade das damas (Le livre de la cite des dames), talvez como uma replica a Cidade de Deus que Santo Agostinho havia escrito em contraposicao a cidade deste mundo. Portanto, mais do que a ostensiva Cidade de Santo Agostinho, a Cidade de 254 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Pisano irá contruir uma cidade utópica constituída de mulheres, tendo como exemplos47 mulheres virtuosas de todos os tempos, que viveram em mundos feitos por e para homens48, as quais são reinterpretadas a partir ou em proveito das mulheres49, ou seja,

Christine e uma construcao defensiva: e construida sobre a reputacao de ulheres, historica e lendariamente, conspicuas em todo o campo de empreendimento ou moralidade; uma verdadeiramente nova fortaleza para oferecer protecao ao sexo indefeso contra correntes sucessivas de discriminação e ultraje misóginos”. Mas, para o mesmo comentador, Agostinho não era o alvo principal de suas críticas, “os piores ofensores sao diretamente nomeados, como e o caso de Ovidio, Cecco d’Ascoli, Cicero e Catao, o Jovem (PIZAN, 2006, p. 136-139). Ainda ofensas contra as mulheres sao referidas em relacao a passagens da literatura classica misogina e, inclusive, em referencia a passagens da propria Biblia8 (PIZAN, 2006, p. 140-146 e passim). Mas Christine escolhe diretamente como seu principal perturbador misogino o volumoso livro As lamentacoes de Mateolo (c.1371-1372), provavelmente na traducao de Le Fevre do poema autobiografico em latim intitulado Livro das lamentacoes de Mateolo (Liber lamentationum Matheoli) (c. 1295), de Mathieu de Bologne” (Ibid., p. 556-557). Além, disso, completa, o referido comentsdor, “pode-se deduzir, em confronto com outras passagens da Cidadedas damas, que a releitura de Christine e de raizes antigas. Aristoteles, no seu livro Sobre a geracao dos animais (De generatione animalium) (seculo IV a. C.) e Galeno, no seu livro Sobre a utilidade das partes do corpo (De usu partium) (do seculo II), expondo uma anatomia e fisiologia deformadas nas mulheres, inquiriam se elas contribuiam com alguma coisa a mais para a geracao alem servirem de simples lugar ou especie de incubadeira para tal geração (ARISTOTLE, 1963, p. 91-93, 97, 101-103, 173-175, 185, 459-461; GALLEN, 1968, p. 630-632)” (Ibid., p. 557). Além é claro, “o virulento libelo misogino intitulado Sobre os segredos das mulheres (De secretis mulierum), um aberrante tratado ginecologico de grande circulacao no seculo XIII, que denega como corrompedora a menstruacao, na esteira da mais fiel tradicao misogina exposta por Santo Isidoro de Sevilha nas suas Etimologias (Etymologiae)” (Ibid., p. 558). 47 Segundo LEITE, 2008, p. 08, para a construção desta obra Cristina di Pisano usou como modelo o exemplum, que era um estilo literário muito comum desde os gregos e que ganhou força na Tradição cristã, que fazia das vidas dos santos um instrumento catequético-pedagógico de educação do povo. Ou seja, “o exemplum é uma série de histórias (compilatio), geralmente curtas, que servem para induzir a pessoa que as escuta ou lê a seguir o modelo apresentado” (p. 22). “Em La cité des dames, Christine faz uso do exemplum, pois, nessa obra, ela elenca uma série de mais de cem exemplos, pequenas histórias de mulheres com vida digna de imitar” (p. 23). Partilha da mesma ideia NERI, 2013, p. 69. Christiane Klapisch-Zuber, por sua vez, acrescenta que “o modelo de muitos dos retratos femininos da sua Cidade das Damas tinha-o Cristina encontrado em Bocácio, que por sua vez o tinha plagiado dos autores antigos e das lendas familiares, de forma a erigir o corpus das suas Mulheres Ilustres, espelhos das virtudes desejáveis e dos excessos do caráter feminino” (1990, v. 2, p. 10). Sobre o que pondera FLORÉZ, 2012, p. 17-18: “Não duvidamos de que Boccaccio seja o direto inspirador de La ciudad de las damas de Christine de Pizan. Existem códigos comuns entre ambos os autores, ainda que esteja claro que a distância entre ambos é abismal: a nível ideológico, Cristine se coloca na linha de valorização das capacidades morais e intelectuais das mulheres, eliminando as partes misóginas ou demasiado sensuais dos textos de Boccaccio. Ademais, como assinala Ana Vargas, Cristine coloca as mulheres na ordem social, extraindo-as do imobilismo da ordem natural em que as coloca o autor do Decameron”. Diferença igualmente ressaltada por DEPLAGNE, 2013b, p. 124. 48 Segundo Marion Guarinos, “Christine usava uma pedagogia de exemplos para colocar em cena mulheres que por si próprias chegaram ao conhecimento por meio de sua coragem, de sua força e de suas virtudes. Dessa forma, as mulheres tomavam consciência do que elas também podiam fazer e Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 255

recorrendo às origens, Christine redefine alguns mitos, e transforma a sua obra em uma verdadeira enciclopédia de mitos femininos, criando uma versão diferente para alguns mitos construtores da imagem deformadora do feminino. Assim, mitos históricos, mitos cristãos – em particular, o mito da origem, o mito do pecado original - e figuras míticas, legendárias da mitologia clássica e da Bíblia, encontraram nova roupagem nas versões narradas por Christine em La cité des dames (DEPLAGNE, 2006, p. 83).

E dentre os pontos que tornam Cristina de Pisano diferente das fontes de que bebeu, podemos citar sua visão positiva ou otimista da natureza humana, da história e da ciência, exposta claramente em sua obra:

É verdade que alguns autores, especialmente o poeta Bocácio, de onde essas histórias foram contadas, diziam que o mundo era melhor quando se vivia de glandes e frutas selvagens, e vestia-se com peles de animais, ignorando todas as técnicas que nos permitem viver mais confortavelmente [...]. E se a humanidade faz mal uso dos bens que Deus lhe prometeu e lhe acordou para conveniência e benefício dos homens e das mulheres, transformando em maldade e perversidade, não é porque a coisa em si não seja vantajosa e excelente, se usada de maneira lícita (apud DEPLAGNE, 2006, p. 85).

não se deixavam influenciar pela imagem negativa que lhes era apresentada pelos homens” (GUARINOS apud LEITE, 2008, p. 69). 49 Vale ressaltar que, apesar da obra de Cristina de Pisano estar fundamentada na sua maioria em dados da empiria, ou seja, histórias de mulheres virtuosas que viveram em determinado tempo histórico, em muitos pontos encontramos uma verdadeira fundamentação filosófico-ontológica, quando trata, por exemplo, da natureza humana, em que reinterpreta a criação (bíblica) da mulher a partir do homem de forma a estabelecer uma relação de igualdade entre ambos os sexos. No caso aqui citado, por exemplo, diz que, por ter sido criada da costela do homem, a mulher traz na sua essência a mesma centelha da luz divina que o homem, o qual, por sua vez, foi feito à imagem e semelhança de Deus, daí a mulher ser tão inteligente quanto o homem. 256 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

E acreditava que nesse processo de construção de um mundo melhor, pela via da razão, não só os homens, mas também as mulheres estavam aptas a contribuir:

Deus, que não fez nada sem justificativa, quis mostrar aos homens que não subestimou o sexo feminino em relação ao deles. Diga-se a propósito, Ele achou por bem conceder às mulheres uma inteligência tão brilhante, que elas podem não somente aprender e assimilar ciências, mas também inventar novas ciências de maior utilidade e benefício à humanidade, que dificilmente poderíamos encontrar mais necessárias (Ibid. p. 74).

Por isso faz da educação o principal meio de ascensão da mulher na sociedade50, que ela acredita ser tão capaz quanto o homem51, afinal é um animal raciobnal tanto quanto o homem, transformando suas obras em um instrumento pedagógico a serviço da humanidade, em especial da mulher, semelhante ao papel desempenhado pelo filósofo no mito da caverna de Platão, que volta à caverna para libertar os homens da alienação em que viviam. Na cidadela de Cristina de Pisano as mulheres estariam protegidas de toda sorte de dissabores, infortúnios e maledicências próprias das cidades utópicas projetadas pelos homens52.

50 A esse respeito comenta LEITE, 2011, p. 171: “Em Cité des dames, apresenta exemplos de mulheres sábias, mulheres que se destacaram porque tiveram a chance de estudar, mulheres que exerceram importantes papéis na política [...]”. 51 Em determinada ocasião diz: “se fosse um hábito mandar as meninas à escola e ensinar-lhes as ciências, como o fazem com os meninos, elas aprenderiam as sutilezas de todas as artes e de todas as ciências tão perfeitamente quanto eles” CHRISTINE de Pizan apud DEPLAGNE, 2006, p. 91) 52 Mais do que um projeto utópico do feminino, a obra de Cristina de Pisano assume um caráter profético de denúncia da condição da mulher na sociedade, principalmente no casamento, conforme vemos em uma passagem de sua obra A Cidade das Mulheres, falando a Deus: “[...] como tu bem sabes, há muitas mulheres que vivem uma existência infeliz, por estarem casadas com um marido brutal que as faz sofrer as maiores penitências, sendo mais maltratadas do que os escravos sarracenos. Oh Deus, quantas mulheres boas e decentes têm sido espancadas sem razão, fustigadas de insultos, obscenidades e ameaças, e sujeitas a todo tipo de baixezas e indignidades, sem proferirem sequer um mumúrio de protesto! E quantas outras ainda, sobrecarregadas com grande número de filhos e que vivem na penúria e na miséria, enquanto os maridos frequentam locais de deboche ou passam as noites nas tabernas!” (CHRISTINE de Pizan apud SOUZA, 2013, p. 54-55). Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 257

Para tal, transforma alegoricamente os exemplos de mulheres por ela escolhidas em elementos constitutivos de uma cidade segura, virtuosa, ética, sábia, etc, em síntese, uma cidade perfeita, “onde [as mulheres] possam ser reconhecidas como seres humanos e em igualdade com os homens, nas várias instâncias da vida cotidiana” (DEPLAGNE In: CHRISTINE de Pizan, 2012, p. 23). Assim, por exemplo, no que se refere à constituição física, para os alicerces da cidade é colocada como primeira pedra de fundação ou de base, por sua coragem, a guerreira Semíramis. Em seguida, como pedras de elevação dos altos muros, são escolhidas mulheres sábias, como Carmente, dentre outras. As pedras das torres com as quais são erguidas as torres e os palácios são escolhidas entre as profetisas da Bíblia e as sibilas. E assim por diante. Para as funções ou instituições constitutivas de uma cidade perfeita são escolhidas, igualmente, mulheres virtuosas. Assim, as atividades da vida prática são representadas nas figuras de Vénturie, Clotilde, Minerva, Ceres, Ísis, dentre outras. Para representantes das atividades políticas e de poder são extraídas, dentre as rainhas, mulheres que foram capazes de administrar suas casas e/ou propriedades quando da ausência dos maridos, e aí aparecem Nicole, Gaia, Cecília, as rainhas Jeane e Blanche, e outras. Quando trata das atividades do conhecimento científico, cita Probe, Mântoa, Medeia, Hortência, e a própria Cristina de Pisano. Finalmente, para não nos alongarmos muito nos exemplos, ao tratar das qualidades ético- morais próprias dos habitantes da cidade, como fidelidade, honestidade, caridade, bondade, castidade, etc., traz figuras de mulheres como Júlia, Xantipa, Paulina, Sarah, etc. Todas elas são guiadas por três virtudes capitais - Razão, Retidão e Justiça -, três figuras metafóricas femininas que, juntamente com Cristina de Pisano, são as protagonistas da obra. Essas três virtudes aparecem na obra como independentes, mas, ao mesmo tempo, unidas e inseparáveis entre si, analogamente às três pessoas da Santíssima Trindade, que formam a perfeição: Deus. Mas, como Cristina de Pisano precisava representar 258 | Mulheres Intelectuais na Idade Média simbolicamente o último estágio, o da perfeição, numa figura feminina, entra aí a figura da Virgem Maria, responsável pelo comando das três referidas virtudes, por ser a maior, a mais sábia, a mais virtuosa, etc. de todas as mulheres53. A segunda obra - Livre des trois vertus (Livro das três virtudes ou O espelho de Cristina)54, escrita em 1406, debate questões ético-morais a serem vividas em sociedade, principalmente pela mulheres, de tal forma que muitos a consideram como uma continuidade da obra anterior. Inclusive ela é escrita em torno das mesmas três virtuosas senhoras: Razão, Retidão e Justiça, as quais, “personificam as principais virtudes que as mulheres deveriam seguir, oferecendo seus conselhos para que, visando o afastamento da mulher das tentações que os pecados representam, possam alcançar o bem viver em sociedade e o paraíso final no final de suas vidas eternas” (KARAWEJCZYK, 2007, p. 159). Entretanto, enquanto o Livre de la cité des dames (Livro da cidade das mulheres) foi construído segundo o modelo do exemplum, o Livre des trois vertus (Livro das três virtudes) é inspirado no speculum ou miroir (espelho), outro estilo literário muito próximo do exemplum, também muito usado desde os gregos e fortemente difundido na Tradição cristã, que “apresenta modelos de comportamento que devem ser refletidos e copiados, desde os atos mais simples do cotidiano até aqueles que estavam voltados a uma formação mais ampla e geral” (LEITE, 2008, p. 22), transformando-se numa espécie de manual de moral. E, dentre as obras que influenciariam o Livre des trois vertus (Livro das três virtudes) de Cristiana de Pisano, estaria o chamado Speculum principi (Espelho de príncipe), escrito por vários

53 Alguns comentadores dizem que esta foi a forma encontrada por Cristina de Pisano para representar a Trindade – Deus, de uma forma feminina, ou, como diz Daniele de Souza, de “revelar o lado feminino de Deus” (2008, p. 27). 54 Acerca desta segunda tradução diz KARAWEJCZYK, 2007, p. 149: “O Espelho de Cristina é uma edição fac-símilada editada pela Biblioteca Nacional de Lisboa no ano de 1987. Esta obra é a versão portuguesa do manuscrito francês de 1405, intitulado Le Livre des trois vertus, cujo original se encontra na Biblioteca Nacional da França”. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 259 pensadores antigos e medievais, e com títulos diversos55. As várias versões do Speculum são simplesmente escritos político- pedagógicos dirigidos a homens que ocupavam o governo ou se achavam em situação de sucessão56. A comentadora Lucimara Leite diz que

o ponto comum entre essas obras é a construção de um modelo de governante que segue atributos tais como: submeter-se aos desígnios de Deus, pois dele provém o seu poder; defender a Igreja e os seus membros; procurar pautar sua vida pelas virtudes (justiça, paciência, generosidade e temperança); servir de exemplo a ser seguido por seus súditos; aconselhar-se com homens sábios, honrados e honestos; evitar os bajuladores, assim como a avareza e a luxúria (2008, p. 29).

E são justamente esses pontos que aparecem principalmente nos livros I e II do Livre des trois vertus (Livro das três virtudes) de Cristina de Pisano, no qual ela instrui as mulheres sobre como exercer o governo da cidade quando da ausência de seus maridos. Além do Espelho de príncipe, de caráter ético-político- pedagógico, houve outros tipos de Espelhos que influenciaram a obra de Cristina de Pisano, como os de cunho ético-moral, a exemplo do Miroir des vierges57. Esta obra, de autoria anônima, que apareceu na França no século XII, tem, na quarta e sétima partes, grande afinidade com o Speculum principi de Cristina de

55 Dentre os diversos Speculum principi de cunho político-pedagógico, que certamente chegaram ao conhecimento de Cristina de Pisano, podemos citar: o Policratus (1159), de Jean de Salisbury; o Eruditio filiorum nobilium (1246), de Vincent de Beauvais; o Eruditio regum et principum (1259), de Gilbert de Tournai; o De regimine principum, de Tomás de Aquino e o De regimine principum (1287), de Egídio Romano. 56 Por isso diz MUNIZ, 2003, p. 24, que os Speculum eram “manuais de formação não só de reis e príncipes, mas também de senhoras de variada estrutura social, bem como de religiosos, que se serviam de seu prolixo conteúdo ético-político”. 57Além dessa obra, outros exemplos de Speculi de cunho ético-moral-religioso que influenciaram Cristina de Pisano, podemos citar: Miroir de l’Église (1140), de Honorius Augustodunensis; Le miroir des simples âmes (O espelho das almas simples), de Marguerite Porete; Speculum dominarum (Espelho das donas de casa) de Durand de Champagne, e o Miroir des dames (Espelho das mulheres), de Watriquet de Couvin. 260 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

Pisano. Baseada na personagem bíblica Judith, trata do fundamento das virtudes e dos vícios, do orgulho e da humildade, aconselhando as mulheres sobre o modo de se comportarem numa sociedade na qual o papel da mulher é determinado pelas diferenças de classes. Relação completa das obras de Cristina de Pisano:

• Livre des cent balades - Livro das cem baladas (1399) • Épître au Dieu d'amour - Epístola ao Deus de amor (1399) • Débat de deux amants - Debate entre dois amantes (1400) • Livre des trois jugements amoureux - Livro dos três julgamentos amorosos (1400) • Livre du dit de Poissy - Livro do falado em Poissy (1400) • Enseignemens moraux - Ensinamentos morais (1400) • Proverbes moraux - Provérbios morais (1400) • Épître d'Othéa - Epístola de Othéa (1400) • Épîtres du débat sur Le Roman de la Rose I - Epístolas do debate sobre o Romance da Rosa I (1401-1403) • Cent ballades d'amant de dame – Cem baladas do amante da mulher (1402) • Le dit de la Rose – O conto da Rosa (1402) • Oraison à Notre Dame – Oração a Nossa Senhora (1402) • Livre du long chemin d’étude – Livro do longo caminho de estudo (1403) • Livre de la mutation de fortune - Livro da mudança de sorte (1403) • Dit de la pastoure – Dito sobre a pastora (1403) • Une épître à Eustache Moureal (1403) - Uma epístola a Eustache Moureal • Livre du Duc des amants vrais - Livro do Duque dos amantes verdadeiros (1404) • Livre des faits et bonnes meurs du sage roi Charles V - Livro dos feitos e das boas maneiras do sábio rei Carlos V (1404) • Livre de la cité des dames – Livro da cidade das mulheres (1405) • Livre des trois vertus ou Trésor de la cité des dames – Livro das três virtudes ou Tesouro da cidade das mulheres (1405) • La vision Christine – A visão de Cristina (1405) • Épître à la reine Isabelle – Epístola à rainha Isabel (1405) • Livre de la prudence – Livro da prudência (1405-1406) • Livre du corps de police - Livro do corpo de policiamento (1407) • Psaumes allegorisés – Salmos alegorizados (1410) • Une contemplation amoureuse - Uma contemplação amorosa (1410) Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 261

• Livre des faits d'armes et de chevalerie - Livro dos feitos das armas e da cavalaria (1410) • Lamentation sur les maux de France - Lamentação sobre os males da França (1411 - 1412) • Livre de la paix – Livro da paz (1413) • Épître de la prision de la vie humaine - Epístola da prisão da vida humana (1418) • Contemplation des heures sur la passion de Notre Seigneur - Contemplação das horas da paixão de Nosso Senhor (1420) • Ditié de Jeanne d'Arc - Canção em honra a Joana D’Arc (1429)

Desconhece-se a data exata da morte de Cristina di Pisano, mas tudo indica que faleceu em torno de 1430, no mosteiro de Poissy - França, onde viveu os últimos anos de sua vida, embora sem nunca ter sido freira. Por tudo isso, concluiremos com as palavras de Diana Arauz Macedo, de que,

para esta inigualével escritora não foi suficiente rebater as acusações proferidas contra o gênero feminino, senão que também contibuio para corrigir a tradição pejorativa formada historicamente contra elas; as mulheres - independentemente de sua condição – necesitavam educar-se desde cedo fora dos âmbitos dos ámbitos privados, pois estavam capacitadas igualmente aos homens para receber, produzir e transmitir sabedoria, razão pela qual a autora se encarregou de valorizar as contribuições femininas no campo das técnicas, das ciências e das artes, através de suas personagens. Uma mente tão lúcida que proprõe soluções para crise política e religiosa de sua época e que, por sua vez, levantava os direitos das mulheres baixomedievais como parte integrante dessa cotidianidade, não teria aceitação em uma sociedade que tradicionalmente vinha marcando os espaços determinados a cada gênero, e o das mulheres correspondia de forma exclusiva ao âmbito privado, ao lado de seus familiares, ou recolhidas em oração. Apesar disto, o discurso das composições poéticas, das obras alegóricas, políticas e éticas desta grande erudita retomariam dentro das novas concepções do século XVI, dando lugar ao movimento conhecido como a «querela das mulheres», e influenciando, por sua vez, na execução de algumas 262 | Mulheres Intelectuais na Idade Média

obras concretas como sería o caso do Heptamerón de Margarita de Navarra (1492-1549) (ARAUZ MACEDO, 2005, p. 219-220).

Elisabetta Trebbiani (1397-????)

Fonte: http://www.liceostabilitrebbiani.it/

Elisabetta Trebbiani, filha de Meliaduso Trebbiano d'Ascoli, prefeito de Florença, no período do Duque de Atenas (Walter VI de Brienne), foi uma importante poetisa e espadachim da cidade de Ascoli Piceno. Jacinto Carboni Cantalamessa, no livro "Memórias em torno dos literatos e artistas na cidade de Ascoli Piceno", diz que Elisabetta Trebbiani teve um marido amante das armas, chamado Paulino Grisanti, a quem seguia, armada e vestida de homem (como espadachim)58, durante as noites pelas ruas da cidade de Ascoli, protegendo-o de seus inimigos. Segundo a história, por sua habilidade no uso de armas foi muitas vezes superior à maioria dos homens que foram colocados contra ela. Elisabetta Trebbiani não era apenas uma guerreira feroz, adorava, também, poesia. De todos os seus poemas conservou-se apenas um soneto, intitulado “Trunto mio, che le falde avvien che hacie”, dirigido a sua amiga e poetisa Livia del Chiavello (1380-

58 Cf. CANTALAMESSA apud FLORÉZ, 2012, p. 51, que diz: “ela era experta no manejo das armas, e acompanhava o jovem marido, Paulino Grisanti, vestida de homem, como em guarda-costas”. Marcos Roberto Nunes Costa; Rafael Ferreira Costa | 263

????)59, da cidade de Fabriano, no qual, segundo Mercedes Arraiga Floréz, “mescla política e religiosidade, para denunciar uma sociedade que vive das espadas e dos ensinamentos de Jesus Cristo” (FLORÉZ, 2012, p. 62).

Alessandra Macinghi (1407-1471)

Fonte: http://www.medievalists.net/

Alessandra Macinghi (ou Strozzi), filha de Filippo de Nicholas e Catherine Bernardo Alberti, nasceu em Florença, Itália, em 1406. Em 1422, casou-se com Matteo di Simone Strozzi, um nobre pertencente a uma família de comerciantes e diplomáticos de Florença. Em 1434, suspeito de oposição à família Medici, Matteo di Simone Strozzi foi condenado ao exílio, indo para Pesaro, junto com a mulher e seus oito filhos: três homens e cinco mulheres. Matteo di Simone Strozzi faleceu no exílio, em 1436, e Alessandra Macinghi voltou a Florença, passando a viver em péssimas condições econômicas. Para completar, em 1445 seus três filhos foram exilados como pagamento de dívida deixada por seu pai, o que levaria Alessandra Macinghi a escrever-lhes várias

59 Há uma versão espanhola dos sonetos de Lívia del Chiavello intitulados: Veggio di sangue umana tutte le strade (Vestígios de sangue humano em todas as estradas) e Rivolgo gli occhi spesse volte in alto (Volto os olhos muitas vezes para o alto), em NADALES, 2012, p. 102-103. 264 | Mulheres Intelectuais na Idade Média cartas, das quais 73 foram preservadas e publicadas por Cesare Guasti, em 1877, com o título de Cartas de uma dama florentina do século XV aos filhos exilados 60. Esta coletânea de Cartas, escritas em dialeto Toscano, datadas entre 1447 a 1470, lançam luz sobre a vida social na Itália do século XV, especialmente sobre a vida dos membros do sexo feminino em uma casa. Alessandra Macinghi faleceu em 02 de março de 1471.

60 Há uma tradução dessa obra na internet, no endereço: http://www.lib.uchicago.edu/efts/IWW/texts/htmlfiles/A0024-T001/. Além disso, as cartas foram reeditadas ao longo dos séculos com outros títulos, como: Cartas seletas de Alessandra Macinghi Strozzi; Cartas de uma Gentil Dama Florentina; Cartas Strozzinas, etc.

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