A DEMISSÃO DAS CANAVIEIRAS DA USINA CATENDE S/A (1973)

Renata Borba Cahú Siqueira1

Resumo: O presente artigo pretende, por meio de análise de documentos do judiciário das décadas de 1960-1970, apresentar as dificuldades e discriminações impostas ao desenvolvimento das atividades das trabalhadoras rurais da Usina Catende S/A, localizada no município de Catende, . Umas das maiores indústrias açucareiras da América Latina, abrigava um grande número de trabalhadores e trabalhadoras. Mesmo com as transformações ocorridas no período, em função do Golpe de 1964 e de todos os incentivos à expansão da produção açucareira, as relações trabalhistas e sociais não foram profundamente alteradas. Pelo contrário, essas relações permaneceram complexas, e os trabalhadores e trabalhadoras continuavam vivendo em condições degradantes. Nessa configuração histórica as canavieiras de Catende buscaram ocupar e defender seus espaços enquanto assalariadas. Palavras-chave: Usina Catende S/A; Trabalho das Mulheres; Zona da Mata Sul de Pernambuco. Abstract: This article intends to present, through an analysis of documents from the judiciary of the 1960s and 1970s, the difficulties and discriminations imposed on the development of the activities of the rural workers of Catende´s Mill (Pernambuco). One of the largest sugar industries in Latin America, it hired a large number of workers. Even with the changes that occurred during the period, due to the 1964 Coup and all the State´s incentives to expand sugar production, labor and social relations remained complex, and the workers continued to live in degrading conditions. In this historical configuration Catende´s female rural workers sought to occupy and defend their place as wage workers. Keywords: Usina Catende S/A; Woman Work; Zona da Mata Sul de Pernambuco.

A região Nordeste brasileira recebeu, desde a colonização, no que diz respeito às relações econômicas, a função de grande exportadora de açúcar. A Zona da Mata Pernambucana figura como um dos locais que foi transformado pela sacaricultura, tendo sua paisagem, vida social e cultural moldada por essa atividade. A implementação da manufatura de açúcar foi rápida e de características duráveis, entre elas sobressaem o monopólio das terras em mãos dos plantadores e a monocultura da cana: Portugal impôs a sacaricultura como condição à instalação dos colonos: apenas aqueles dispondo de capital e competência técnica necessários ao bom funcionamento dos engenhos eram donatários e sesmeiros, gozando dos direitos sobre a terra que desembocariam na propriedade completa no século XIX com a Lei de Terras.2 Tal contexto histórico imprimiu na região uma estrutura fundiária singular, de extrema concentração de terra. Os dados referentes a esse problema não possuem uma série histórica precisa, em sua tese Moradores de Engenho, Christine Dabat apresentou

1 Bacharelanda em História na UFPE. Orientadora: Christine Rufino Dabat. 2 DABAT, Christine Rufino. Açúcar e Trópico: Uma Equação „Natural‟ Justificando um modelo social perene. In: Cadernos de História. : UFPE, 2010, p. 42 -71.

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essa dificuldade, além de algumas informações que traçam o perfil da região. Segundo a pesquisadora, através de avaliações feitas por diferentes autores, a Zona da Mata possuía, na década de noventa, uma população de 1.997.895 habitantes, 17.865 eram proprietários, ou seja, 0,9% (contra 3,6% no Agreste e 3,7% no Sertão). Os proprietários de menos de 100 ha representavam 89,5% do total e ocupavam apenas 8,9% da área; os de 100 até menos de 200 ha (1,9 do total dos proprietários) ocupavam 3,8% da área; e os latifundiários de 220 ha e mais (8,6% do total dos proprietários ocupavam 87,3% da área).3 O primeiro órgão a realizar o cadastramento mais sistemático dessas informações foi o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Manuel Correia de Andrade em sua obra A Terra e o Homem no Nordeste, ao tratar do caráter essencialmente comercial da agricultura na região e suas consequências, no que diz respeito à concentração fundiária, destacou os números oferecidos pelo INCRA a fim de sublinhar o grave problema local. Ao enumerar os imóveis rurais dos anos de 1972 - 1978 nos oferece de modo mais nítido as dimensões dessa questão. Tabela 1 - Número de imóveis rurais no Nordeste (1972-1978) 4

Categoria do imóvel 1972 1978

Nº % Nº %

Minifúndio 2.347,0 72,0 2.038,6 67,3

Empresa rural 162,8 4,0 112,9 3,7

Latifúndio por exploração 787,2 24,0 875,6 29,0

Latifúndio por dimensão 0,2 - 0,3 -

Não cadastrado - - - -

O INCRA também disponibiliza dados sobre a Zona da Mata Sul de Pernambuco. No ano de 1986, os números em relação à área rural ocupada pelas grandes propriedades são os seguintes: 99,25% em , 96,76% em Serinhaém, 96,25% em , 95,73% em Palmares.5

3 DABAT, Christine Rufino, Moradores de Engenho. Estudo sobre as relações de trabalho e condições de vida dos trabalhadores rurais na zona canavieira de Pernambuco, segundo a literatura, a academia e os próprios atores sociais. Recife: EDUFPE, 2012, p. 66. 4 ANDRADE, Manuel Correia. A Terra e o homem no Nordeste. São Paulo: Cortez, 2005, p. 65. 5 Idem, p. 69.

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Todo esse monopólio das terras sempre esteve acompanhado das ações do Estado, tanto nos anos da colonização quanto no momento da Independência e República. A produção açucareira estava estritamente ligada ao poder público, sendo incentivada e protegida pelo mesmo. Como explicou Manuel Correia de Andrade, na obra Modernização e Pobreza: No Império, foi muito grande o interesse do Estado, quando, para modernizar o processo industrial e melhorar a qualidade do açúcar exportado, estabeleceu a política de implantação dos engenhos centrais, financiando as primeiras unidades. Na primeira República, os governadores e presidentes foram grandes financiadores da implantação de usinas, concedendo empréstimos para a sua instalação, construção de estradas de ferro, privadas etc.6 Entre os municípios com grande concentração de terra está o de Catende, localizado a 142 km do Recife, com uma população, na década de noventa, de 31.519 habitantes. Próxima ao rio Pirangi encontra-se a Usina Catende S/A, a princípio denominada Usina Correia da Silva, quando fundada no antigo Engenho Milagre da Conceição, em 1829. A não prosperidade desse primeiro empreendimento acarretou sua venda ao grupo Mendes Lima & Cia no ano de 1907. Todavia, a Cia não estava interessada no comércio de açúcar e vendeu a Usina para o grupo Costa Oliveira & Cia. Foi no ano de 1927, sob a administração do senhor Antônio Ferreira da Costa Azevedo, conhecido como “Seu Tenente”, que a indústria alcançou grande prosperidade.7 Sendo considerada na década de trinta, uma das maiores usinas da América Latina, chegando a possuir 43 propriedades agrícolas e uma via férrea de 140 quilômetros. Frutos dos incentivos do Estado para modernização da produção açucareira do país, as Usinas refletiam e representavam a inovação tecnológica. Diversas medidas por parte do governo foram realizadas, entre elas: financiamento para instalação das mesmas, empréstimo de capital para custear a safra, construção de estradas de ferro e a concessão de moratórias para os inadimplentes. Em Pernambuco, governadores como o Barão de Lucena (1872-1875), Barbosa Lima (1935-37), Correia da Silva (1890-1891), Correia de Araújo (1947-48 e 1958-59) e Sigismundo Gonçalves (1899-1900 e 1904-1908) foram “grandes distribuidores de benesses aos usineiros, alegando que sua atividade econômica era substancial ao

6 ANDRADE, Manuel Correia. Modernização e Pobreza: a expansão da agroindústria canavieira e seu impacto ecológico e social. São Paulo, UNESP, 1994, p. 222. 7 RABELO, Guilherme de Brito. Catende: um exemplo de autogestão. In: Trabalhos acadêmicos apresentados por alunos do curso de História a partir dos arquivos do TRT 6ª Região 2006 – 2009. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2009, (mimeo), p. 252.

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desenvolvimento do estado.”8 Todavia, tais mudanças não chegaram a gerar transformações no âmbito das relações trabalhistas, a modernização deixou incólume a estrutura social da indústria tradicional do açúcar.9 As relações e condições de trabalho das pessoas que exerciam atividades na produção açucareira, ainda estavam inseridas nas estruturas sociais e econômicas de seus antecessores, a população escravizada. Como explicitado por Peter Eisenberg: "Nos primeiros anos após a abolição, quando abruptamente 40 mil ex-escravos tornaram-se assalariados potenciais, os salários reais caíram a níveis inferiores aos de 1850".10 Permanecendo nas terras dos senhores de engenho, pois, não possuíam terras, não tinham para onde ir e não existia a mínima assistência por parte do governo, a maioria desta população constituiu os chamados "moradores de condição". Viviam nos engenhos com permissão para derrubar trechos de matas, realizarem pequenos roçados e dar aos donos dois, três dias de trabalho semanal por baixo custo, ou até mesmo sem nada ganhar em espécie. Foram eles que formaram a maior parte da força de trabalho no campo na segunda metade do século XIX e na primeira metade do XX. Os avanços na produção açucareira não tiveram aspectos positivos para os trabalhadores, os mesmos se viram em condições de extrema pobreza e oprimidos pelo patronato. Como destacado pela pesquisadora Christine Rufino Dabat: Os aspectos mais chocantes deste atraso nas relações trabalhistas no setor encontram-se no trabalho infantil e na violência patronal impune. Exercida contra os canavieiros pelos empregadores e seus prepostos, seus episódios mais graves ocorrem sobretudo em razão de questões de serviço e acesso à terra.11 Os contrastes e tensões entre as classes eram fortes, havendo não apenas a opressão do patronato para com os trabalhadores. Esses últimos, também se organizaram e buscaram a partir de suas necessidades mais urgentes melhores condições de trabalho e de vida. Na década de sessenta, Miguel Arraes de Alencar esteve à frente do governo de Pernambuco e agiu de forma a garantir aos camponeses o direito de reivindicação e de greve, de acordo com a legislação recém-promulgada: o Estatuto do Trabalhador Rural (1963). Esta proporcionava aos trabalhadores e trabalhadoras do campo garantias legais como: estabilidade no emprego após um ano de trabalho; salário mínimo; descanso

8 ANDRADE, Manuel Correia. Modernização e Pobreza. Op. cit., p.106. 9 EISENBERG, Peter L. Modernização sem mudança: a indústria açucareira em Pernambuco, 1840- 1919, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 132. 10 Idem, p. 205. 11 DABAT, Christine Rufino, Moradores de Engenho. Op. cit., p. 26.

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semanal e férias remuneradas; aviso prévio; indenização por tempo de serviço; entre outros. O governador possibilitou também maior atuação de Sindicatos de Trabalhadores Rurais, compondo importantes frentes de luta. Apesar de seu governo ter durado apenas 400 dias, as movimentações e reivindicações elaboradas pelos trabalhadores e trabalhadoras no período promoveram notáveis ganhos. Contudo, a promulgação do conjunto de leis não era garantia do cumprimento das mesmas. O Estado brasileiro tinha, no que diz respeito às questões trabalhistas, uma atitude de conciliação entre as classes. Com a política inaugurada por Getúlio Vargas desde trinta (promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho, 1943), os esforços se davam sempre no sentido de controlar os problemas, evitando constantemente a luta de classes. Ainda na era Vargas, em 1932, foram criadas as Juntas de Conciliação e Julgamento, pelo decreto lei 22.132. Representantes de sua política tinham como objetivo o acordo entre empregadores e empregados, o seu princípio era o da conciliação entre as partes, cabendo ao presidente, realizar propostas para o entendimento dos envolvidos. Outro fator que impedia o correto cumprimento do ETR era a própria complexidade das relações trabalhistas da Zona da Mata de Pernambuco: Essas relações de trabalho, profundamente marcadas pela herança escravista, mantiveram-se sob o formato da „morada‟, garantindo aos plantadores a permanência dos canavieiros nos locais de trabalho. A categoria compreendia doravante a maioria dos trabalhadores nas plantações de senhores de engenho e usineiros.12 Os trabalhadores se encontravam fortemente inseridos no universo de influência de seus patrões, situação que dificultava o cumprimento das leis estabelecidas pelo Estatuto do Trabalhador Rural. Com o golpe civil-militar de 1964, todas as esferas da vida social e política do país sofreram mudanças. No campo, o governo passou a promover perseguições aos líderes de movimentos sociais, aos grupos e organizações que discordavam de seu projeto político e de sua ideologia. As conquistas e organizações dos trabalhadores e trabalhadoras rurais foram atingidas e sua condição de vida piorou. Como constatou a pesquisadora Marcela Bezerra: As oligarquias rurais mesmo estando submetidas ao poder político e econômico da burguesia, conseguiram manter sua dominação no meio rural. Com a extinção das Ligas Camponesas e com a intervenção nos sindicatos de

12 Idem, p. 91.

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trabalhadores rurais, o movimento camponês ficou desestabilizado e as classes patronais intensificaram a exploração e repressão aos trabalhadores.13 Os Sindicatos de Trabalhadores Rurais sofreram intervenções, em Pernambuco, segundo a historiadora Maria do Socorro de Abreu e Lima, a maioria dos sindicatos experimentou interferência, incluindo os sob influência do SORPE. Dos 66 sob o seu controle, apenas quatro não sofreram intervenção: Vicência, Timbaúba, Nazaré da Mata e .14 Apesar das fortes repressões, o trabalho sindical da Igreja continuou. A permanência desses órgãos teve importante papel de resistência: "Os esforços dos sindicatos sobreviventes visavam salvar o que fosse possível das conquistas anteriores ao regime militar: salário mínimo, repouso remunerado e férias garantidos pelo Estatuto do Trabalhador Rural; posteriormente, a aposentadoria e assistência médica do FUNRURAL".15 A mobilização dos trabalhadores e trabalhadoras do campo em busca de melhorias para suas existências foi constante, sobretudo na década de 70, com o ressurgimento do movimento sindical. Muitos canavieiros e canavieiras articularam-se politicamente. Os anos setenta foram palco também de esforços por parte do Estado para impulsionar o sistema de economia capitalista, processo este analisado por Manuel Correia de Andrade: Esta política estatal, que conserva uma situação de injustiça social, se consubstanciou de várias formas e em várias ocasiões. Assim, nos primeiros anos da década de 1970, foi oficialmente dado grande apoio à política de reequipamento da indústria açucareira, com a finalidade de torná-la competitiva com a do Sudeste, tendo por base a grande demanda de açúcar no mercado internacional e a necessidade de garantia de empregos à mão de obra que nela trabalhava.16 Expoente da produção de açúcar em Pernambuco, a Usina Catende S/A contava com um grande contingente de força de trabalho que incluía homens, mulheres e por vezes crianças. Durante seu período áureo, a usina era detentora de uma linha férrea de mais de 140 km, onze locomotivas e duzentos e sessenta e seis vagões, onde o transporte do açúcar era efetivado pela Great Western. Ademais, a empresa possuía a capacidade de produzir um milhão de sacos de açúcar e ser responsável pela primeira destilaria de álcool anidro do país (década de 30).17

13 BEZERRA, Marcela Heráclio. Mulheres (des) cobertas, histórias reveladas: relações de trabalho, práticas cotidianas e lutas políticas das trabalhadoras canavieiras na zona da mata sul de Pernambuco (1980-1988). Recife: UFPE PPGH. Dissertação, 2012, p. 37. 14 ABREU e LIMA, Maria do Socorro de. Construindo o sindicalismo rural. Lutas, partido, Projetos. Recife: EDUFPE, 2012, p.122. 15 DABAT, Christine Rufino. Moradores de Engenho. Op. cit., p.138. 16 ANDRADE, Manuel Correia. A Terra e o homem no Nordeste. São Paulo: Cortez, 2005, p.238. 17 RABELO, Guilherme de Brito. Catende. Op. cit., p.253.

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As relações entre empregadores, empregados e empregadas, em Catende, encontravam-se distantes das definições defendidas pela história oficial, que propagavam a existência de uma confraternização entre as classes. Na obra de João Albuquerque Maranhão, intitulada História da indústria açucareira no Nordeste: o papel social de Catende encontra-se o seguinte trecho: "As chamadas Leis Trabalhistas, de que tanto se ufanam os criadores do defunto Estado Novo, para os Diretores da Usina Catende SA não precisariam existir".18 Ainda na mesma obra, de tom hagiográfico, o autor defende a imagem pública constituída pela empresa, inclusive na grande imprensa, ao longo dos anos: Para ceder à onda das queixas infundadas, raiou a luz da verdade sobre a malsinada transformação através de depoimentos valiosos e espontâneos de brasileiros ilustres que visitaram e continuam a visitar a obra monumental de Costa Azevedo. Graças à condenada transformação laboram, hoje em dia, alegres e felizes em 56 Engenhos satélites da Usina Catende 6.000 trabalhadores rurais ou seja a média superior a 100 homens por engenho, habitando com suas famílias casas higiênicas em substituição a mucambos imundos e recebendo ótima alimentação fiscalizada no peso, na qualidade e no preço pela Usina, para evitar exploração contra os operários.19 No entanto, em documentação da Junta de Conciliação e Julgamento de Palmares, contida no anexo do arquivo do TRT 6ª Região - UFPE, localizado no quarto andar do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Federal de Pernambuco. Foi possível encontrar vinte e sete processos trabalhistas, do ano de 1973, que versavam sobre reclamações de trabalhadoras rurais contra a referida usina.

Tabela 2 - Processos Nº dos Ano Reclamante Engenho Demissão Processos 295 1969 M. F. A Boas Novas Julho 1967 714 1973 L. M. B Lajedo 1967 715 1973 S. M. S Lajedo Dezembro 1967 733 1973 M. L. R. N Lajedo Julho 1967 735 1973 M. C. S Lajedo Setembro 1967 736 1973 J. M. L. S Lajedo Setembro 1967 747 1973 M. L. S Sumidouro Agosto 1967 750 1973 M. A. S Sumidouro 1967

18 MARANHÃO, João Albuquerque. História da indústria açucareira no Nordeste: o papel social de Catende. Rio de Janeiro: Briguiet, 1949. p. 75. 19 Idem. p. 89.

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866 1973 M. J. S Humaitá Junho 1967 811 1973 M. J. S Campinas Julho 1967 815 1973 M. L. V Humaitá Julho 1967 814 1973 M. J. C Humaitá Agosto 1967 415 1973 M. L. S Limão 1967 416 1973 M. A. F. S Limão 1967 417 1973 O. M. S Limão 1967 667 1973 M. T. S Lajedo Setembro 1967 673 1973 C. F. S Lajedo Junho 1967 694 1973 I. M. F Lajedo Setembro 1967 679 1973 A. M. S Lajedo Maio 1967 680 1973 M. D. S Lajedo Setembro 1967 681 1973 J. D. B. S Lajedo Outubro 1967 696 1973 Q. F. S Campinas Agosto 1967 695 1973 T. M. L Lajedo Julho 1967 685 1973 D. C. S Sumidouro Setembro 1967 684 1973 J. A. S Sumidouro Agosto 1967 683 1973 M. G. S Lajedo Agosto 1967

As principais reivindicações das canavieiras eram as seguintes.

Tabela 3 – Reivindicações trabalhistas Pagamento do décimo terceiro salário Pagamento de férias Anotação da carteira profissional Pagamento de diferença salarial Reintegração com salários vencidos e vencendos

O primeiro ponto a ser ressaltado em relação a esse conjunto de documentos é o elevado número de mulheres trabalhando no campo. Ao longo da história, entre as classes menos abastadas, as mulheres sempre exerceram atividades laborais, sendo responsáveis pela suposta complementação da renda familiar e produção de bens. As canavieiras da Zona da Mata Sul de Pernambuco, como as demais, também exerceram importante papel dentro das relações capitalistas. Contudo, suas atividades eram vistas

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como complemento da renda familiar, fenômeno recorrente no modo de produção capitalista, que foi explicado pela autora da obra Mulheres e Trabalho, Verena Stolcke: ...a participação das mulheres na „produção‟ era determinada sempre pelas necessidades da família e, além disso, era considerada uma atividade secundária ao nascimento e criação dos filhos, antes de – como no caso dos homens – ser vista como um atributo inerente.20 O trabalho feminino tem um histórico de lutas por espaço e prestígio, seja para as trabalhadoras do campo quanto das cidades. Situação essa sublinhada por Marcela Bezerra: A despeito de ocupar uma posição de dependência em relação ao homem, culturalmente reconhecido como chefe da família, conforme apresentado anteriormente, as mulheres, mesmo não se reconhecendo nem tampouco sendo reconhecidas, via de regra, como trabalhadoras autônomas, desempenharam, ao longo da vida, uma série de atividades fundamentais para a manutenção familiar. 21 Alguns problemas envolvendo questões de gênero, como por exemplo, as atribuições de características que seriam naturais às mulheres (fragilidade, necessidade de proteção, papel primordial de gerar e criar os filhos) influíram diretamente na divisão de tarefas a serem praticadas por homens e mulheres. Dessa maneira, cabia aos primeiros o desenvolvimento de atividades no espaço fora da casa, público, enquanto às mulheres estavam incumbidas dos cuidados com o espaço privado, de dentro de casa. Essa divisão de papéis ocorria também na área rural, segundo constatou a historiadora Maria do Socorro de Abreu e Lima: Dada a sua vinculação à maternidade e ao lar, o ideal de trabalho das mulheres no campo é que o exerçam na casa e no roçado. No caso de trabalharem na produção, isto se constituiria enquanto mão de obra familiar, auxiliar do marido e sob sua supervisão, de preferência, de forma eventual e não constante.22 Após o golpe de 1964, com a redução das áreas de sítio e com a pauperização ainda maior da população trabalhadora, verificou-se um grande recrutamento da mão de obra feminina na produção sucroalcooleira. Elas estão presentes nas atividades agrícolas da Usina Catende S/A, exercendo as mais variadas funções, tais como: adubar a terra para o plantio, semear a cana, limpar o mato para o corte da cana, cortar a mesma. Algumas funções, no entanto, eram proibidas: cambitar, cortar cana de semente, encher o carro com os feixes de cana, roçar o mato, encoivarar, trabalhar com o machado, abrir valetas, cavar e cobrir sulcos,

20 STOLCKE, Verena. Mulher e Trabalho. São Paulo: Editora Brasileira de Ciências, 1971, p. 104. 21 BEZERRA, Marcela Heráclio. Mulheres (des) cobertas, histórias reveladas. Op. cit., p. 22. 22 ABREU e LIMA, Maria do Socorro de. Construindo o sindicalismo rural. Op. cit., p. 201.

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carrear, pois, eram tarefas entendidas como muito duras e só podiam ser executadas por homens. Contudo, apesar de poder exercer e de fato cumprir as funções que lhes cabiam, as canavieiras que trabalhavam para a usina Catende enfrentaram problemas para conseguir desenvolver suas atividades plenamente. As vinte e sete reclamações trabalhistas de 1973 versam sobre uma mesma questão: mulheres, solteiras e casadas, que exerciam suas atividades no campo, possuindo carteira de trabalho assinadas, devidamente fichadas, têm seus contratos de trabalho rescindidos no ano de 1967. Enquanto os homens, alguns deles seus maridos, permaneceram trabalhando com registro, fichados. Fato declarado por várias trabalhadoras em diferentes documentos, tais como:

Processo 750.73 M.A.S, brasileira, solteira, trabalhadora rural, residente no engenho Sumidouro. Declaração: “Que desde 1967 sempre trabalhou com os empreiteiros durante a época da limpa do mato; que sendo clandestina não assinava folhas de pagamento, ou recibo, não tinha frequência controlada pela reclamada, que os empreiteiros só trabalham com pessoal em situação trabalhista irregular na Usina; que seu marido trabalha na reclamada sendo devidamente registrado, ocorrendo idêntica situação com os maridos de suas colegas de trabalho”. Processo 811.73 M. J. S, solteira, trabalhadora rural, residente no engenho Campina. Declaração: “Que teve seu contrato de trabalho rescindido em 1967 e teve a rescisão homologada na Justiça do Trabalho, ocasião em que idêntico fato ocorreu com todas as mulheres casadas dos engenhos que ela conhece; que não obstante isso continuou prestando serviços para a Reclamada, no mesmo engenho Campinas, através de seus empreiteiros”. Processo 417.73 O. M. S, casada, trabalhadora rural, residente no engenho Limão. Declaração: “Que trabalhou para a reclamada até 1967, quando foi despedida, havendo recebido a importância de Cr$ 250,00, pagamento este realizado nesta JCJ; que não sabe a que direitos correspondia aquela importância, pagamento este realizado nesta JCJ; que antes de ser despedida pela reclamada prestava serviços no engenho Limão, e, posteriormente, ao ser despedida, continuou no engenho Limão, trabalhando para diversos empreiteiros”.

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Processo 736.73 J. M. L. S, casada, trabalhadora rural, residente no engenho Lajedo. Declaração: “Que teve homologada na Justiça do Trabalho a rescisão do seu contrato de trabalho com a Reclamada em 1967; que nesta ocasião idêntico fato ocorreu com as mulheres casadas dos engenhos que ela conhece, que recebeu da Reclamada a importância de Cr$ 430,00 relativo aos seus direitos; que entretanto passou apenas duas semanas parada, retomando a prestar serviço no engenho Lajedo para a Reclamada, através de seus empreiteiros”.

Após a homologação da rescisão de seus contratos, essas canavieiras continuaram a prestar serviços, doravante como clandestinas – isto é, sem carteira de trabalho assinada - para a Usina em questão por meio de seus empreiteiros. Seguiram realizando suas tarefas, todavia, perderam o registro de um importante documento, visto que, foi a partir dele que muitos trabalhadores e trabalhadoras tiveram seu primeiro registro civil, passaram a ter uma existência legal. Não possuir mais o registro de sua carteira profissional tinha implicações expressivas. Direitos garantidos por lei, tais como: 13º salários, férias, repouso remunerado, eram restringidos. Ademais, a percepção da própria trabalhadora em relação a sua situação sofria alterações. Em sua obra Os Clandestinos e os Direitos: Estudo sobre Trabalhadores da cana-de-açúcar de Pernambuco, Lygia Sigaud analisou esta situação: A remuneração que um clandestino recebe pela execução de uma determinada tarefa numa jornada de trabalho é classificada como ganho. Este era o termo que os trabalhadores empregavam para designar sua remuneração antes do aparecimento dos direitos e que se caracterizava por ser a remuneração que o proprietário se dispunha a pagar e que estava totalmente sujeita a seu arbítrio.23 E conclui: “Distingue-se do salário não porque sejam grandezas diferentes pois podem até mesmo coincidir que não serão confundidas: a mesma remuneração recebida por um fichado (morador ou não) e por um clandestino será classificada respectivamente de salário e ganho, por ambos. O que separa o ganho do salário são os direitos. Para os que não têm direitos, o ganho; para os que têm o salário”.24 Apesar do Estatuto do Trabalhador Rural conter em seu artigo 11, no Título II – Das Normas Gerais de Proteção do Trabalhador Rural, Da Identificação Profissional, a seguinte premissa: “Art. 11. É instituída em todo território nacional, para as pessoas

23 SIGAUD, Lygia. Os clandestinos e os direitos: estudo sobre trabalhadores da cana-de-açúcar de Pernambuco. São Paulo: Duas Cidades, 1979, p. 158. 24 Ibidem.

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maiores de quatorze anos, sem distinção de sexo ou nacionalidade, a Carteira Profissional de Trabalhador Rural, obrigatória para o exercício de trabalhador rural”.25 As mulheres que trabalhavam para a Usina Catende exerceram suas funções de trabalhadoras rurais sem possuir o documento de identificação obrigatório. As mesmas, depois de rescindir o contrato trabalhista tiveram suas atividades interrompidas por breves períodos de tempo, como a trabalhadora declarou, em interrogatório: ...que o nome do 1º empreiteiro para quem trabalhara logo após ter sido despedida pela reclamada foi o senhor José Augusto da Silva com o qual ficou durante cerca de três a quatro anos; que entre a data da despedida da reclamante; 18.07.67 e o reinício de suas atividades no engenho Limão, com o senhor José Augusto da Silva, houve um intervalo de apenas três semanas.26 Era comum entre as usinas, em função do ciclo agrícola da cana de açúcar, realizar empreitadas no período de limpa do mato e moagem da cana (setembro a abril). As empreitadas eram realizadas pela administração da usina, que contratavam alguns de seus próprios trabalhadores (cabos, administradores, etc.), para chefiar um grupo de trabalho. Os empreiteiros negociavam com a administração da mesma o preço total do serviço, seu papel é mobilizar trabalhadores, dirigi-los ao local de trabalho, distribuir tarefas a serem cumpridas, fiscalizar o trabalho feito (medindo e pesando) e pagar os trabalhadores com o dinheiro que recebe do proprietário.27 No fenômeno aqui analisado, quando as trabalhadoras rurais da usina Catende, no ano de 1967, tiveram seus contratos de trabalho rescindidos, passaram a prestar serviços para mesma (sem carteira profissional assinada), por meio de alguns funcionários do local. Nos depoimentos contidos nos processos trabalhistas, percebeu-se que, os empreiteiros, para os quais as canavieiras trabalhavam, eram cabos dos engenhos. Estes realizavam o pagamento dos salários das mesmas aos sábados com numerário proveniente do escritório da referida usina. Das atas de instrução dos processos, constam os locais onde as trabalhadoras prestavam serviço: Boas Novas, Limão, Lajedo, Sumidouro, Campinas e Humaitá. Todas foram demitidas destes engenhos sem nenhum tipo de justificativa legal. Em suas reclamações as canavieiras solicitavam o pagamento de seus direitos trabalhistas perdidos, além da reintegração ao seu posto de trabalho com a assinatura de sua carteira profissional. Ainda nesta parte dos processos aparece que as mesmas se encontravam

25 ESTATUTO DO TRABALHADOR RURAL. Brasília: Ministério da Agricultura, 1963. 26 TRT 6ª Região, JCJ Palmares. Processo 416.73. 27 SIGAUD, Lygia. Os clandestinos e os direitos. Op. cit., p. 144.

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acompanhadas de seu órgão de classe, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Palmares. Por sua vez, em sua defesa, a Usina, representada por seu preposto, o senhor Jaime do Rego Maciel, declarava que as reclamações deveriam ser consideradas improcedentes, visto que, no ano de 1967, as mulheres tiveram a rescisão de trabalho devidamente homologadas, não mais prestando serviços à reclamada. Apesar dos depoimentos das trabalhadoras indicarem que os empreiteiros eram cabos dos engenhos do local, a reclamada afirma não conhecer os mesmos, são ditos como incertos e “não sabidos” pela mesma. Na mencionada defesa, a usina inicia sua argumentação com a frase: "Conforme aconteceu à diversas congêneres, a Reclamante viu, nessa mesma junta, homologada sua rescisão de trabalho no ano de 1967..." 28 A frase evidencia o fato de, no ano de 1967, ter ocorrido a demissão de diversas mulheres, situação sabida e declarada pela maioria dos trabalhadores locais, como podemos observar nas alegações das testemunhas dos processos: ... que conhece a reclamante desde menina, morando no Engenho Sumidouro; que há cerca de 10 a 12 anos a reclamante mora e trabalha no engenho Limão; que a reclamante foi despedida pela reclamada desde 1967, quando esta despediu todas as mulheres do engenho que ele depoente conhece; que depois de despedida, todavia, continuou a reclamante trabalhando no mesmo engenho Limão com os empreiteiros.29 Declaram também: ...que trabalha para a reclamada, no engenho Lajedo, há cerca de doze anos; que quando ele depoente chegou no Lajedo já se encontrava trabalhando, onde permanece até a presente data; que mesmo depois de 67, quando a reclamante fez acordo com a reclamada, continuou no referido engenho, trabalhando com empreiteiros com quem a reclamante trabalhou pode mencionar os nomes dos seguintes: Sr. José Chico, Amaro Severino, Jaime, Moisés, José Campinas.30 ...que trabalha para a Reclamada no engenho Lajedo há cerca de 16 anos; que conhece a Reclamante por igual tempo, trabalhando no mesmo engenho; que a Reclamante não obstante ter feito acordo com a Reclamada em 1967, rescindindo o seu contrato de trabalho, continuou trabalhando para esta, através de serviços prestados aos seus empreiteiros.31 Ainda nas afirmações dos canavieiros, foi aludido um possível acordo idealizado pela usina, efetuado entre patronato e empregadas, como no seguinte trecho: ...que, em 1967, a reclamada rescindiu amigavelmente os contratos de trabalho de muitas mulheres do engenho Lajedo, inclusive o contrato da reclamante, tendo sido homologada a rescisão na Justiça do Trabalho, pelo que é de seu conhecimento; que, no entanto, a reclamante, mesmo após a

28 Idem. 29 TRT 6ª Região, JCJ Palmares. Processo 415.73. 30 TRT 6ª Região, JCJ Palmares. Processo 667.73. 31 TRT 6ª Região, JCJ Palmares. Processo 683.73.

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rescisão do contrato, continuou no engenho Lajedo, trabalhando para a reclamada, através de serviços prestados dos empreiteiros dela.32 O acordo teria sido realizado apenas entre a usina e as mulheres que para ela trabalhavam, ficando essa questão mais clara na declaração dada pela canavieira em seu processo: Que teve o seu contrato de trabalho rescindido em 1967 e devidamente homologada a rescisão na Justiça do Trabalho, tendo recebido a importância de Cr$ 500,00; que nessa ocasião foi efetuada a homologação da rescisão de contrato de grande parte das mulheres, suas colegas do engenho Lajedo; que depois de rescindido o contrato com a reclamada, continuou morando e trabalhando no mesmo engenho Lajedo para empreiteiros da reclamada.33 E continua: “...que as outras mulheres do engenho que não fizeram acordo não trabalham no engenho porque não tinham trabalhos para elas; que ela reclamante juntamente com as outras fizeram acordo por sugestão da usina em 1967”.34 Os documentos de número 680.73 e 733.73 contem o depoimento de testemunhas da reclamante mencionando o referido acordo. No primeiro o trabalhador rural dizia: Que trabalha para a reclamada no engenho Lajedo desde 1955, conhecendo a reclamante de igual data, também trabalhando no mesmo engenho; que não obstante ter feito acordo com a reclamada em 1967, juntamente com outras mulheres, rescindindo o contrato de trabalho continuou prestando serviços para a reclamada através de empreiteiros; que entre os empreiteiros com quem a reclamada trabalhou pode citar: José Francisco da Silva, Jaime Pereira da Silva, José Campinas, José Antônio, Amaro Severino, José Jerônimo.35 A testemunha do segundo processo (733.33) declarava: Que trabalha para a reclamada no engenho Lajedo há cerca de 15 anos, conhecendo a reclamante naquele mesmo engenho há cerca de 12 anos; que em 1967 a reclamante fez acordo com a reclamada, rescindindo o seu contrato, tendo sido homologado a rescisão na Justiça do Trabalho, ocasião em que idêntico fato ocorreu com diversas mulheres daquele e de outros engenhos que ele conhece; que a reclamante, entretanto, continuou prestando serviços para a reclamada no engenho Lajedo, trabalhando com empreiteiros seus.36 Os acordos realizados entre patrões e empregados não significava benefício para ambas as partes. Ao contrário, em muitos momentos, esses tratos não beneficiavam os trabalhadores. No que diz respeito ao trabalho no campo, as ações do patronato para evitar o justo cumprimento das leis trabalhistas apresentaram-se das mais diversas formas: elevar o número de tarefas a serem cumpridas, pois há um número humanamente

32 TRT 6ª Região, JCJ Palmares. Processo 736.73. 33 TRT 6ª Região, JCJ Palmares. Processo 669.73. 34 Idem. 35 TRT 6ª Região, JCJ Palmares. Processo 680.73. 36 TRT 6ª Região, JCJ Palmares. Processo 733.73.

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impossível de ser cumprido, forçando o pedido de demissão; aumentar a jornada de trabalho; suspensões injustas; não permitir o acesso ao sítio; estabelecer o cumprimento de serviço longe do local de moradia do trabalhador rural; ameaçar de expulsão da casa onde vivem o canavieiro e sua família, etc. As conciliações nem sempre apresentam de maneira explícita esses conflitos entre as classes, como ressaltou o pesquisador José Marcelo Marques em sua monografia intitulada Direitos Conquistados, Discretas Esperanças: As leis, os canavieiros e os conflitos na Justiça do Trabalho (Escada, 1963-1969). Assim, do ponto de vista estritamente jurídico, as conciliações eram a expressão do êxito da Justiça, já que a mesma se propunha a tal, porém elas não mostravam as diferenças entre as classes, mas também as escondiam, revelando – não uma harmonização conciliação entre as classes, mas – que a história dos trabalhadores rurais na Zona da Mata Pernambucana era, antes de tudo, um ponto de tensão entre contrários: entre o capital e o trabalho; o social e o econômico; o tradicional e o moderno; entre a imparcialidade e a tomada de posição.37 O acordo mencionado entre as trabalhadoras de Catende é uma das faces desses conflitos trabalhistas. A usina deixava de pagar encargos sociais e obrigações legais para vinte e sete funcionárias, não mais tendo responsabilidades sobre as mesmas, enquanto as trabalhadoras perdiam direitos garantidos por lei. Ao retirar das mulheres seu vínculo formal de trabalho, o patronato impedia que as mesmas obtivessem o gozo dos direitos trabalhistas, como também desvalorizavam e não reconheciam a atividade das mesmas. As assalariadas exerciam as mais diferentes tarefas no campo, desde moagem, limpa de mato à corte de cana. Todas estas fundamentais para a produção do açúcar e de difícil execução, pois exigiam certo grau de técnica e força. Manuel Correia de Andrade assinalou o valor que havia no cumprimento destes trabalhos. Na época da moagem uma atividade de grande importância é o corte de cana, que é a sua própria colheita. É um serviço pesado que só os melhores trabalhadores, os mais dispostos, executam; este trabalho é pago à razão de „cento de feixe‟ de cana cortado e amarrado.38 Mesmo exercendo funções essenciais para a produção sucroalcooleira, trabalhando em locais iguais e executando tarefas iguais aos dos homens, as trabalhadoras rurais não recebiam o mesmo tratamento, relativos ao cumprimento das leis trabalhistas: foram impedidas de seguir realizando suas atividades dentro da legalidade, perdendo diversos direitos.

37 FERREIRA Filho, José Marcelo Marques. Direitos Conquistados, Discretas Esperanças: As leis, os canavieiros e os conflitos na Justiça do Trabalho (Escada, 1963-1969). Recife: UFPE, Depto de História, 2009, p. 85. 38 ANDRADE, Manuel Correia. A Terra e o homem no Nordeste. Op. cit., p. 135.

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Ao longo dos anos, a contenção ao trabalho feminino ganhou diferentes contornos de acordo com a época e relação de produção específica. A socióloga Evelyne Sullerot realizou estudo sobre o trabalho feminino e percebeu como em todos os períodos foram produzidos diferentes mecanismos de desvalorização do trabalho das mulheres: Em todas as épocas, vemos as mulheres serem privadas do reconhecimento, pela sociedade, das suas atividades e, sobretudo, da participação na construção dessa mesma sociedade. Elas trabalhavam, época após época, sofriam, produziam, mas nunca recebiam verdadeira consideração social pelas atividades que exerciam.39 Entre as diferentes formas de depreciação do trabalho feminino, salários mais baixos, ter o trabalho reconhecido como ajuda ao complemento salarial da família, o evento vivido pelas trabalhadoras rurais da Usina Catende configura-se como mais uma manifestação dessas limitações. No processo de número 295.93, uma das testemunhas da trabalhadora rural declarou o seguinte: “Que conhece a reclamante trabalhando no engenho Boas Novas desde 1955; que a reclamante foi afastada do serviço em julho de 1967 pelo próprio reclamado porque este não quer mulheres trabalhando no serviço de campo”.40 O argumento utilizado por parte do empregador diz respeito à categoria de sexo: foi por serem mulheres que as mesmas tiveram seu contrato de trabalho rescindido, passando a prestar serviços como clandestinas. Em declarações das canavieiras localizamos os seguintes pontos: ...que desde 1967 sempre trabalhou com empreiteiros durante a época da limpa do mato; que sendo clandestina não assinava folha de pagamento, ou recibo, nem nenhuma frequência controlada pela reclamada; que os empreiteiros só trabalham com pessoal em situação trabalhista irregular na Usina; que seu marido trabalha na reclamada sendo devidamente registrado, ocorrendo idêntica situação com os maridos de suas colegas de trabalho.41 As demissões se basearam em antigas práticas e preconceitos das relações de gênero existentes na zona canavieira pernambucana. Nos estudos realizados pela professora Maria do Socorro de Abreu e Lima são apresentados os limites impostos às mesmas: Nos anos 70, mulheres não podiam cambitar, encher carro, trabalhar com o machado, abrir valeta, cavar sulco, carrear, entre outras coisas. Ao exercerem tarefas não estritamente femininas, como o corte da cana, costumavam fazê- lo ao lado do homem da família, marido, pai, filho.42

39 SULLEROT, Evelyne. A mulher no Trabalho. Rio de Janeiro: Expressão Cultural, 1970, p. 22. 40 TRT 6ª Região, JCJ Palmares. Processo 295.73. 41 TRT 6ª Região, JCJ Palmares. Processo 750. 73. 42 ABREU e LIMA, Maria do Socorro de. Construindo o sindicalismo rural. Op. cit., p. 202.

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Estas vinte e sete mulheres perderam seus direitos trabalhistas no ano de 1967 e, em 1973, procuraram a Junta de Conciliação e Julgamento de Palmares com o intuito de retomar todas as suas garantias. A maioria das reclamações foi reconhecida pela Junta de Conciliação e Julgamento como procedentes em parte, devendo a usina pagar os direitos trabalhistas devidos e reintegrá-las em suas funções com a carteira profissional devidamente assinada. Três delas tiveram como resultado a decisão da Junta de considerar a reclamação improcedente. Nos processos não são apresentados as razões pelas quais foi decidido pela não procedência dos pedidos. Mesmo em um período de forte autoritarismo e em uma sociedade de características patriarcais, essas trabalhadoras rurais conscientes de sua importância e da relevância de suas tarefas, procuraram garantir que as leis existentes fossem verdadeiramente cumpridas. As contribuições femininas, nas tarefas desenvolvidas no campo, contribuíram de modo significativo para a reprodução da força de trabalho e para a atividade sucroalcooleira da Usina Catende S/A. Como exposto acima, as trabalhadoras rurais estavam presentes nas diversas áreas do trabalho agrícola desempenhando importantes papéis. Os documentos aqui analisados permitem uma maior percepção das mulheres que trabalhavam na lavoura canavieira. Suas capacidades de atuação na área de trabalho e na Justiça (procurando a garantia de seus direitos) demonstram como as relações trabalhistas na Zona da Mata Sul de Pernambuco eram constituídas por uma diversidade de sujeitos, mulheres e homens. Mesmo em um espaço de opressão e forte ideologia patriarcalista, as mulheres desempenharam significativas funções e buscaram conquistar seus espaços como trabalhadoras assalariadas.

Referências Bibliográficas: ABREU e LIMA, Maria do Socorro de. Construindo o sindicalismo rural. Lutas, partido, Projetos. Recife : EDUFPE, 2012. ANDRADE, Manuel Correia. A Terra e o homem no Nordeste. São Paulo: Cortez, 2005. ANDRADE, Manuel Correia. Modernização e Pobreza: a expansão da agroindústria canavieira e seu impacto ecológico e social. São Paulo: UNESP, 1994. BEZERRA, Marcela Heráclio. Mulheres (des) cobertas, histórias reveladas: relações de trabalho, práticas cotidianas e lutas políticas das trabalhadoras canavieiras na zona da mata sul de Pernambuco (1980-1988). Recife: UFPE PPGH, 2012. DABAT, Christine Rufino, Moradores de Engenho. Estudo sobre as relações de trabalho e condições de vida dos trabalhadores rurais na zona canavieira de Pernambuco, segundo a literatura, a academia e os próprios atores sociais. Recife: EDUFPE, 2012.

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DABAT, Christine Rufino. Açúcar e Trópico: Uma Equação „Natural‟ Justificando um modelo social perene. In: Cadernos de História. Recife: UFPE, 2010, p. 42 -71. EISENBERG, Peter L. Modernização sem mudança: a indústria açucareira em Pernambuco, 1840-1919. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. ESTATUTO DO TRABALHADOR RURAL. Brasília: Ministério da Agricultura, 1963. FERREIRA FILHO, José Marcelo Marques. Direitos Conquistados, Discretas Esperanças: As leis, os canavieiros e os conflitos na Justiça do Trabalho (Escada, 1963-1969). Recife: Monografia – Universidade Federal de Pernambuco. Depto de História, 2009. MARANHÃO, João Albuquerque. História da indústria açucareira no Nordeste: o papel social de Catende. Rio de Janeiro: Briguiet, 1949. RABELO, Guilherme de Brito. Catende: um exemplo de autogestão. In: Trabalhos acadêmicos apresentados por alunos do curso de História a partir dos arquivos do TRT 6ª Região. Universidade Federal de Pernambuco, 2006 – 2009. SIGAUD, Lygia. Os clandestinos e os direitos: estudo sobre trabalhadores da cana-de-açúcar de Pernambuco. São Paulo: Duas Cidades, 1979. STOLCKE, Verena. Mulher e Trabalho. São Paulo: Editora Brasileira de Ciências, 1971. SULLEROT, Evelyne. A mulher no Trabalho. Rio de Janeiro: Expressão Cultural, 1970. Artigo recebido em 30 de outubro 2016. Aceito em 19 de dezembro 2016.

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