Trovadores diaspóricos: tensões civilizatórias entre o sertão e a cidade na Música Popular Brasileira (1964-1985) ANDRÉ ROCHA LEITE HAUDENSCHILD1

Introdução

E se você examinar direito, de onde vem esse contingente de criadores? [...] Eles já comeram tudo e já chegam aqui prontos pra explodir, mesmo. É aqui que começa a batalha. [...] Os caras chegam nômades, entram na tua cozinha pra comer, devorar o que tiver lá. E os assentados querem que você peça licença, que tenha paciência, que tenha vergonha de pedir, seja humilde, entendeu? Mas já não somos como na chegada de Caetano, calados e magros esperando o jantar. Este pessoal que chega pensa muito melhor que o pessoal que já tá aqui. Chega de todo lugar, Minas, Bahia, Manaus, Recife, Pernambuco. Chega de tudo quanto é interior. Chega como nuvem de gafanhoto devorando tudo (CAPINAN, 2008, p. 127).

O depoimento do poeta e compositor baiano José Carlos Capinan, realizado em 1972, é oportuno para refletirmos sobre o impacto da chegada de toda uma geração de cantores e compositores nordestinos ao tão almejado “Sul maravilha”, durante as décadas de 1960 e 70.2 Sua indagação sobre “de onde” vêm esses “criadores” que “já comeram de tudo e já chegam aqui prontos pra explodir”, alude antropofagicamente ao conceito de locus de enunciação (BHABHA, 2005, p. 37-38), o qual constata que a construção do sujeito discursivo não é apenas uma relação entre um “eu” e um “outro”, mas se dá através de um processo de hibridização entre as diferentes culturas do sujeito “colonizador” e do “colonizado”, criando um “terceiro espaço” ambivalente inerente ao próprio ato de tradução cultural do discurso criativo. Ora, não seria o terreno de nossa canção popular ao longo do século XX, um terceiro espaço discursivo entre as culturas rurais provindas do campo (de certo modo, “colonizado”) e as metropolitanas gestadas pelo mundo urbano (“colonizador”), local dá onde emerge o hibridismo de diversas identidades poético-musicais em trânsito?3

1 Professor com doutorado em Literatura pela UFSC/Universidade Federal de Santa Catarina atuando em projetos de pesquisa voltados ao universo da História Social e da Música Popular Brasileira. Realiza atualmente estágio de pós-doutorado, com apoio do CNPq, junto ao Programa de Pós-Graduação em História da UFU/Universidade Federal de Uberlândia, sob a supervisão do Prof. Dr. Adalberto Paranhos. 2 A expressão “Sul maravilha”, cunhada pelo cartunista mineiro Henfil no jornal “O Pasquim”, em meados dos anos 1970, alude ao imaginário social de toda uma geração de migrantes provindos, majoritariamente, das regiões Norte e Nordeste do país. Sujeitos em trânsito que se transladavam para as capitais do Sudeste movidos pelo desejo de condições melhores de sobrevivência e pela atração da propaganda desenvolvimentista do regime militar nesse período. 3 O processo de constituição da identidade abarca múltiplas interpretações de pesquisadores contemporâneos, tais como Stuart Hall, que afirma que “na situação da diáspora, as identidades tornam-se múltiplas” (HALL, 2008, p. 27) por serem, socialmente e culturamente, “celebrações móveis” (HALL, 2001, p. 13). Nesse sentido, deve-se entender a fecunda versatilidade destes cantores-compositores nordestinos como tradutores de múltiplas identidades, pois assim como os mediadores culturais afrodescendentes advindos das novas diásporas criadas

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A afirmação de Capinan de que “já não somos como na chegada de Caetano, calados e magros esperando o jantar”, alude à experiência diaspórica de toda uma geração de músicos e compositores nordestinos, fazendo referência a dois dos principais clássicos do disco- manifesto Tropicália ou panis et circenses (Philips, 1968), as canções: “Panis et circensis”, de e , e “Miserere nobis”, de sua própria autoria em parceria com Gilberto Gil. A primeira delas tem como pano de fundo uma refeição doméstica embalada pelo tilintar de pratos, talheres e pela conversa em família. Uma ambientação que remonta ironicamente ao cotidiano das famílias brasileiras de classe média deste período histórico, acomodadas na zona de conforto de suas próprias vidas privadas (“Mas as pessoas na sala de jantar/ São ocupadas em nascer e morrer”), quando, logo em seguida, seus versos irão transgredir violentamente essa situação de conformidade (“Eu quis cantar/ Minha canção iluminada de sol/ Soltei os panos sobre os mastros no ar/ Soltei os tigres e os leões nos quintais), Uma canção cujo sujeito discursivo pretende se rebelar contra o “pão e o circo” de cada dia, ao implodir o conformismo romântico das relações afetivas (“Mandei fazer/ De puro aço luminoso um punhal/ Para matar o meu amor/ E matei”) e semear sua vontade de transformação desta realidade (“Mandei plantar/ Folhas de sonho no jardim do solar/ As folhas sabem procurar pelo sol/ E as raízes procurar, procurar”), enquanto a passividade familiar se perpetua dialeticamente pela repetição dos versos iniciais (“Mas as pessoas na sala de jantar/ São ocupadas em nascer e morrer”).4 Já a segunda canção, “Miserere nobis”, faixa inaugural deste álbum antológico, aparenta ser uma resposta à composição anterior. Ao ouvirmos seu refrão entoado melancolicamente por Gilberto Gil: “Miserere nobis/ Ora pro nobis (“Tende misericórdia de nós/ Orai por nós”)/ É no sempre será, ô iaiá/ É no sempre, sempre serão”, e em seguida: “Já não somos como na chegada/ Calados e magros, esperando o jantar/ Na borda do prato se limita a janta/ As espinhas do peixe de volta pro mar”, reconhecemos que esses versos revelam a difícil realidade da “chegada” destes mediadores culturais - em trânsito diaspórico entre as duas principais metrópoles do país ( e de São Paulo) e, ao mesmo

pelas migrações pós-coloniais, eles “devem aprender a habitar, no mínimo, duas identidades, a falar duas linguagens culturais, a traduzir e negociar entre elas” (Idem, ibidem, p. 89). 4 Persiste um propalado sentimento de resistência do sujeito poético-musical nas canções de protesto deste período, que se manifesta como uma forma soteriológica de se acreditar coletivamente nos dias melhores que ainda “virão” em meio à total supressão dos direitos civis imposta pela ditadura militar instaurada neste período, o propalado “Dia-que-virá” (cf. GALVÃO, 1976, p. 95).

3 tempo, apontam para alguns dos princípios da “Estética da fome” (1965) de Glauber Rocha.5 Canção que denuncia a necessidade de alimento cultural, assim como de uma emergente e necessária utopia revolucionária em total sintonia com os preceitos glauberianos. Afinal, os tropicalistas (e Capinan era, por excelência, um deles) queriam aguçar a relação entre arte, política e sociedade, ao levar ao limite as possibilidades de se fazer música popular em nosso país e de se produzir significações que não eram imediatamente consumíveis por seus ouvintes (FAVARETTO, 2003). Como alude de forma alegórica o seu final enigmático: “Bê, rê, a: bra/ Zê, i, lê: zil/ Fê, u: fu/ Zê, i, lê: zil/ Cê, a: ca/ Nê, agá, a, o, til: nhão/ Ora pro nobis”, formando cifradamente as palavras “Brasil, fuzil, canhão”, ao som intermitente de canhões de guerra.

Antecedentes históricos e musicais

“Vou me embora pro sertão/ Oh viola meu bem, viola... Que eu aqui não me dou bem/ Oh viola meu bem, viola... Sou empregado da leste/ Sou maquinista do trem”

(“Viola meu bem”, Samba de roda de domínio público)6

O processo de industrialização nacional no decorrer do século passado foi marcado por um intenso movimento migratório em direção às principais capitais do Sudeste. Desde o final do século XIX, os habitantes rurais das regiões Norte e Nordeste do país foram gradativamente desalojados de suas terras pelas condições precárias de subsistência (a estagnação econômica, a perpetuação do coronelismo político e as constantes secas), enquanto eram atraídos pela prosperidade econômica de outras regiões do território nacional. Tais

5 Segundo Glauber, a “fome latina” não é apenas um sintoma, ela “é o nervo de sua própria sociedade”. Sendo que a “trágica originalidade” do Cinema Novo diante do cinema mundial está no fato de que “nossa originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida” (ROCHA, 1981, p. 30). Como ele ainda explica: “De Aruanda a Vidas Secas, o cinema novo narrou, descreveu, poetizou, discursou, analisou, excitou os temas da fome: personagens comendo terra, personagens comendo raízes, personagens roubando para comer, personagens matando para comer, personagens sujas, feias, descarnadas, morando em casas sujas, feias, escuras; foi esta galeria de famintos que identificou o cinema novo com o miserabilismo tão condenado pelo Governo, pela crítica a serviço dos interesses antinacionais, pelos produtores e pelo público – este último não suportando as imagens da própria miséria. [...] Estes são os filmes que se opõem à fome, como se, na estufa e nos apartamentos de luxo, os cineastas pudessem esconder a miséria moral de uma burguesia indefinida e frágil ou se mesmo os próprios materiais técnicos e cenográficos pudessem esconder a fome que está enraizada na própria incivilização” (Idem, ibidem, p. 30-31). 6 Gravado por Dona Edith de Oliveira, mas sendo mais conhecida como “Dona Edith do Prato” (em VELOSO, Caetano. LP Araçá Azul, Philips, 1973).

4 fatores foram determinantes para a aceleração do processo migratório sertanejo e nordestino a partir das décadas de 1930 e, especialmente, a partir da primeira metade da década de 1950 durante o período do segundo governo Vargas, quando essa migração torna-se ainda mais intensa (SINGER, 1976; DURHAN, 1978). Segundo os dados demográficos, o êxodo rural brasileiro acentua-se a partir da década de 1930 com a dinamização da indústria nacional, quando o número de migrantes nacionais ultrapassa o número de imigrantes estrangeiros e, assim, vai ganhando mais intensidade a partir de meados dos anos 1950, até atingir seu ápice entre as décadas de 1960 e 80. Cabendo ressaltar que no decorrer das décadas de 1960 e 80, mais de 30 milhões de pessoas abandonaram a vida rural para viver nas cidades, sendo que em 1970, mais da metade da população nacional já era urbana.7 Entretanto, a maioria da população camponesa vivia ainda mergulhada na mais absoluta pobreza, enquanto “o grosso dos trabalhadores comuns pode se incorporar, ainda que mais ou menos precariamente, aos padrões de consumo moderno” (MELLO; NOVAIS, 1998, p. 622). O fenômeno da migração rural-urbana foi um elemento transformador da sociedade brasileira como um todo “na medida em que ele se reflete em transformações no nível do comportamento dos sujeitos que vivem esse processo. Em certo sentido, pode-se dizer que o migrante vive e realiza de modo concentrado modificações nos padrões de comportamento e nas relações sociais” (DURHAN, Op. cit., p. 8).8 Sendo assim, o impacto causado pelo êxodo rural acarreta, na maioria das vezes, em detrimento dos sujeitos sociais que precisam se adaptar à nova realidade dos centros urbanos, pois, como sabemos, a experiência urbana é capaz de desagregar os valores conquistados pela práxis coletiva da vida deixada para trás. Como assim irão entoar paradigmaticamente os versos de “Lamento sertanejo” (1975), de e Gilberto Gil, ao explicitarem o sentimento de desassossego destes mediadores culturais ao tomarem consciência de seus próprios desenraizamentos: “Por ser de lá/ Do sertão, lá do cerrado/ Lá do interior do mato/ Da caatinga do roçado/ Eu quase não saio/ Eu quase não tenho amigos/ Eu quase que não consigo/ Ficar na cidade sem viver

7 Conforme as Estatísticas Históricas do Brasil: séries econômicas, demográficas e sociais de 1950 a 1988 (Rio de Janeiro: IBGE, 1990, p 36-7) e o Anuário estatístico do Brasil (Rio de Janeiro: IBGE, 2001, p. 2-15). 8 O êxodo rural gerou estudos da historiografia social brasileira que se tornaram referência para o entendimento de nossas migrações internas, tais como: “A Sociedade Industrial no Brasil” (1971) e “Desenvolvimento e mudança social” (1976), de Brandão Lopes; o artigo de Paul Singer, “Migrações internas: considerações teóricas sobre o seu estudo” (1976) e “A caminho da cidade”, de Eunice Durhan (1978). Tais obras baseiam-se no paradigma histórico-estrutural de que as migrações foram resultados de fatores de expulsão e de atração, expressando as transferências de populações de regiões consideradas “estagnadas” e “arcaicas” para regiões em desenvolvimento.

5 contrariado”. E, também, em “Quero ir” (1971), de e Sérgio Sampaio: “Quero, quero, quero/ Quero ir/ O sol daqui é pouco/ O ar é quase nada/ A rua não tem fim/ Eu volto prá Bahia/ Ou para Cachoeiro de Itapemirim”.9 Como veremos, entre a resistência ao regime militar e a necessidade de adaptar ao novo mundo cosmopolita do “Sul maravilha”, emergirá uma renovada experiência diaspórica vivenciada pelos compositores nordestinos da canção popular brasileira – experiência entendida como trânsito físico e metafórico entre os mundos culturais do “sertão” e da “metrópole”.10 Uma experiência que será determinante para as múltiplas elaborações que irão se estabelecer criativamente em suas obras, pois ao entendermos o modo como que as representações dialéticas dos mundos culturais do “sertão” e da “metrópole” se disseminam na canção popular brasileira desse período, poderemos compreender muitos dos atuais dilemas da nossa cultura contemporânea. Aliás, o conflito entre o campo e a cidade tem sido central para a interpretação da vida social na modernidade ocidental, funcionando como uma chave interpretativa que nos possibilita a “adquirirmos consciência de uma parte central de nossa experiência e das crises de nossa sociedade” (WILLIAMS, 2011, p. 471): uma antinomia crucial que está atrelada ao próprio modo de produção capitalista que vem transformando a paisagem cultural do mundo há alguns séculos. Neste sentido, entendemos a experiência diaspórica nordestina como uma prolífera tensão civilizatória entre as regiões supostamente arcaicas do Norte/Nordeste e as principais capitais desenvolvimentistas do Sudeste. Tensão que, por sinal, remonta a uma tradição temática bastante longeva em nosso cancioneiro popular, como comprovam os versos da “Canção da seca” (1928), do poeta e cantador potiguar, Jorge Fernandes: “Entrou janeiro e o verão danoso/ Sempre aflitivo pelo sertão.../ As cacimbas secas nem merejavam.../ E o moço triste disperançado/ Fez uma trouxa de seus trens.../ De madrugada, sem despedida/ Foi pra cidade// Foi pra São Paulo/ Pras bandas do sul.../ Foi pra São Paulo/ Foi pra um São Paulo/

9 Essa canção, gravada por seus próprios autores, foi lançada como última faixa do lado A, do inusitado LP Sociedade da Grã-Ordem Kavernista apresenta Sessão das 10 (CBS, 1971), cujo grupo homônimo era integrado pelo cantor, dançarino e artista plástico baiano, Edy Star, a cantora paulistana Míriam Batucada, o cantor e compositor soteropolitano, Raul Seixas, e o cantor e compositor capixaba, Sérgio Sampaio. 10 A origem epistemológica do termo é grega, diasporein, cuja palavra significa “semear” e está relacionada à “dispersão”. O termo define o deslocamento migratório de grandes massas populacionais originárias de uma zona determinada para várias áreas de acolhimento distintas (BONNICI, 2005, p. 23), sendo que chamamos de “diáspora intracontinental” o movimento migratório produzido especialmente pela fome e/ou por melhores condições de vida, como no caso dos retirantes nordestinos brasileiros (Idem, ibidem, p. 30).

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Que ninguém sabe não...”.11 E essa é uma tópica lítero-musical que vai se propagar com propriedade na canção popular brasileira a partir dos anos 1940 e 50, principalmente, através da vasta produção musical do nosso “rei do baião”, o cantor, sanfoneiro e compositor, , que, “circulando no eixo das cidades mais modernas do Brasil, tocando nas emissoras de rádio e gravando discos, entrou com o Brasil sertanejo país adentro” (RISÉRIO, 2013, p. 6) e logrou reinventar a cultura musical nordestina em plena sociedade urbano- industrial brasileira de meados do século passado. Mesmo que para isso, ele precisasse conceber uma representação identitária vinculada a uma romantização de seu próprio tradicionalismo sertanejo (TROTTA, 2010, p. 19).12 Aliás, sua obra soube creditar um olhar renovado aos estereótipos da vida cultural sertaneja propagado há décadas pela literatura regionalista das primeiras décadas do século XX, indo além das mazelas da seca e do coronelismo, almejando cantar a “grandeza natural” do homem sertanejo.13

[...] Assim, como que acompanhando o movimento dos retirantes, no ir-e-vir destes, entre sertão-cidade-sertão, o baião termina por traduzir-se também como um “lá-e- cá”, e, em meio a tais processos, vai incorporando outras linguagens, introduzindo outros valores nesse sertão, afirmando as distintividades do mesmo, enfim, vai construindo interpretações que o distanciam, significativamente, de representações de outros sertões... (VIEIRA, 2005, p. 02).

Como sabemos, o “sertão” é um construto cultural e uma “alteridade geográfica e social” assentada por poderosa tradição narrativa do pensamento social brasileiro (VIDAL E SOUZA, 1997), estando presente no imaginário nacional há muito tempo e fazendo parte da própria invenção de nosso país. A partir de Os sertões (1902), de Euclides da Cunha, obra que pode ser considerada como a pedra fundamental do pensamento social nacional sobre a busca de uma autêntica “brasilidade sertaneja”, estabelecer-se-á a valorização da tipologia do

11 Canção recolhida em Natal, Rio Grande do Norte, em 19 de dezembro de 1928, na segunda viagem etnográfica de Mário de Andrade pelo Norte e Nordeste do país, entre os anos de 1927-29. O comentário do poeta modernista é pertinente para compreendermos a vitalidade desta diáspora nordestina já no início do século XX: “Ultimamente no alto sertão do Rio Grande do Norte, e muito no Ceará também, a emigração pra S. Paulo está grassando. Centenas de homens, do dia para a noite resolvem partir. Partem, sem se despedir, sem contar pra ninguém, partem buscando o eldorado falso que nenhum deles sabe o que é... Vão-se embora, rumando pra sul... Isso Jorge Fernandes está vivendo agora. E isso floresce em poemas de dor, que nem esta marchada” (ANDRADE, 1976, p. 238). 12 Como aludem, por exemplo, os versos de seu xote “No meu pé de serra” (1945), em parceria com : “Lá no meu pé de serra/ Deixei ficar meu coração/ Ai que saudade que eu tenho/ Eu vou voltar pro meu sertão// No meu roçado trabalhava todo dia/ Mas no meu rancho eu tinha tudo que queria”. 13 A obra de Luiz Gonzaga é pródiga em “canções diaspóricas”. Além da canônica, “Asa Branca” (1947), composta também com H. Teixeira, pode-se elencar entre muitas outras: “Pau de arara” (1952), com Guio de Moraes, “Triste partida” (1964), com o poeta Patativa do Assaré, “Vozes da seca” (1953) e “A volta da Asa Branca” (1950), ambas com Zé Dantas (MARCONDES, 2000, p. 342-343).

7 sertanejo como forma de idealização arquetípica, cuja dimensão será considerada apenas no seu aspecto positivo: um sertão bom e genuíno povoado por seres generosos, fortes e puros (tipologias gestadas pelo propalado determinismo social do final do século XIX).14 E esse sertão do homem valente, rude e honrado, onde sopra sempre o vento da liberdade, ficará impresso nos discursos sertanejos ao longo do século XX e, em boa parte, em nossa canção popular (assim como nos “baiões gonzaguianos”) como um sentimento coletivo de saudade de um tempo original, naquilo que é chamado como “o mito do sertão” (PROENÇA, 2004, p. xlii). Aliás, será esse mesmo sertão mítico que vai se propagar na poética musical de nossa canção popular. Desde a clássica toada “Luar do sertão” (1914), cujos versos de Catulo da Paixão Cearense escritos para uma antiga melodia folclórica, recolhida por João Pernambuco, assim entoam: “Ai que saudade do luar da minha terra/ Lá na serra branquejando folhas secas pelo chão/ Este luar cá da cidade tão escuro/ Não tem aquela saudade do luar lá do sertão...”, ao lamento caipira de “Saudade de minha terra” (1966), de Belmonte e Goiá: “De que me adianta viver na cidade/ Se a felicidade não me acompanhar/ Adeus paulistinha do meu coração/ Lá pro meu sertão eu quero voltar...”. Cabendo apontar que a “invenção do sertão” em nosso regionalismo literário da década de 1930 irá contribuir significativamente para a ratificação do estatuto regional de um “território-sertão”, cujas obras O Quinze (1930), de Raquel de Queiroz, São Bernardo (1934) e Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos, irão cristalizar a imagem da seca e propalar os espaços sertanejos como áreas de domínio de homens rústicos, sertanejos brutalizados e animalizados pelo ambiente e, sobretudo, pela miséria e a exploração (LEITÃO JR., 2012, p. 02-07), em total compasso com o referido sertão mitológico. Sendo que, a partir da produção musical de Luiz Gonzaga, o discurso imagético do sertão se potencializará ainda mais como forma de representação identitária de um amplo imaginário social nordestino, como nos informa Jonas de Moraes:

[...] na institucionalização do Nordeste e na criação de uma “identidade” da figura do nordestino que a musicalidade de Luiz Gonzaga torna-se mnemônica, porque produz significados, ganhando concretude na memória coletiva do ouvinte, criando sociabilidades e interagindo no cotidiano como elemento de aprendizagem cultural. Na esteira histórica de suas produções musicais, Gonzaga traz um enunciado de

14 E não é por acaso que nesta obra: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral” (CUNHA, 2001, p. 207). Segundo essa “lógica euclidiana”, há uma antinomia entre o jagunço (o “sertanejo”) e o homem do litoral, pois para o primeiro viver em meio às adversidades da paisagem sertaneja, ele precisa ser “mais tenaz”, “mais resistente”, “mais forte” e “mais duro” do que o homem do Sul (Idem, ibidem, p. 215).

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práticas simbólicas performáticas caracterizadas pelo hibridismo cultural da região Nordeste (MORAES, 2012, p. 89).

Por este viés, podemos compreender os renovados processos identitários das representações culturais a partir do discurso musical desses mediadores culturais nordestinos como “práticas simbólicas” e “performáticas” de sujeitos sociais portadores de uma alteridade (SAID, 2007), que, ao ousarem reinventar as imagens estereotípicas do universo sertanejo, vivenciaram intensamente os dilemas de seus próprios desenraizamentos na tentativa de demarcar suas alteridades como forma de resistência à desagregação de suas próprias identidades.15 Como aludem, por exemplo, os versos de “Disparada” (1965), de Geraldo Vandré e Théo de Barros: “Prepare o seu coração/ Pras coisa que eu vou contar/ Eu venho lá do sertão/ E posso não lhe agradar”, ao exprimirem a vontade deste bravo “sertanejo” – sujeito melopoético da canção – em revelar a total alteridade de seu lugar de origem: o sertão como seu “lugar de memória”.16 Assim como, os versos iniciais de “Morro velho” (1967), de : “No sertão da minha terra/ Fazenda é o camarada que ao chão se deu/ Fez a obrigação com força/ Parece até que tudo aquilo ali é seu”. Aliás, não seria esse “sertão”, mítico e, ao mesmo tempo, real, a própria expressão manifesta de uma experiência diaspórica que insiste em se alojar no cerne do imaginário social brasileiro? Como assim ecoa a voz narrativa de Riobaldo Tatarana: "O sertão está em toda parte...” (ROSA, 2001, p. 24).

“O sul, a sorte, a estrada me seduz...”

O impacto causado pela experiência diaspórica acarretou, na maioria das vezes, em profundas transformações da vida de seus atores sociais que precisavam se adaptar à nova

15 O sentimento identitário de pertencimento ao próprio lugar de origem está onipresente em toda canção popular, desde os sambas de roda como, por exemplo, “Eu vim de lá” (1980), de (“Eu vim de lá/ Eu vim de lá pequenininho/ Alguém me avisou/ Pra pisar nesse chão devagarinho”), ao coco de Jackson e Buco do Pandeiro, “Cantiga do sapo” (1959), (“É tão gostoso morar lá na roça/ Numa palhoça na beira do rio/ Quando a chuva cai e o sapo fica contente/ Que até alegra a gente com seu desafio”) e às modas de viola como, “Encantos da natureza” (1968), de Tião Carreiro e Luiz de Castro (“Deixa a cidade e vem conhecer/ Meu sertão querido/ Meu reino encantado”). 16 O conceito sociológico de “lugar de memória”, nos ajuda a investigar as representações dialéticas do “sertão” a da “metrópole”. Enquanto a “metrópole” pode ser reconhecida como o território real e palpável da modernidade, o “sertão” constitui-se em nossa cultura popular como sendo um “lugar de memória” físico e, principalmente, mítico e imaterial. Pois o lugar de memória é a representação de “toda unidade significativa, de ordem material ou ideal, da qual a vontade dos homens ou o trabalho do tempo fez um elemento simbólico do patrimônio da memória de uma comunidade qualquer" (Pierre Nora apud ENDERS, 1993, p. 133).

9 realidade dos centros urbanos nacionais. Dialeticamente, a experiência urbana nessas metrópoles também exercia uma forte atração social, cultural e financeira, com a necessidade profissional destes artistas se estabelecerem profissionalmente no mercado fonográfico nacional, sediado principalmente no eixo Rio-São Paulo. Neste sentido, é bastante sintomático o nome do primeiro LP do cantor e compositor cearense Ednardo: Meu corpo minha embalagem todo gasto na viagem – Pessoal do Ceará (Continental, 1973), cuja primeira faixa “Ingazeiras”, composta em homenagem ao artista plástico Aldemir Martins, anuncia a vontade de seu enunciador em partir para o Sul: “Nascido pela Ingazeiras/ Criado no ôco do mundo/ Meus sonhos descendo ladeiras/ Varando cancelas, abrindo porteiras/ Sem ter o espanto da morte/ Nem do ronco do trovão/ O sul, a sorte, a estrada me seduz/ É ouro, é pó, é ouro em pó que reluz”.17 Um sentimento diaspórico associado a esperança de uma vida melhor, como também se encontra no LP, O Romance do Pavão Mysteriozo (RCA Victor, 1974), do mesmo cantor e compositor. Esse álbum, inspirado em obra homônima da literatura de cordel nordestina, tem como abertura a canção, “Carneiro”, de Ednardo e Augusto Pontes: “Amanhã se der o carneiro/ O carneiro/ Vou m'imbora daqui pro Rio de Janeiro.../ As coisas vêm de lá/ Eu mesmo vou buscar/ E vou voltar em vídeo tapes/ E revistas supercoloridas/ Pra menina meio distraída/ Repetir a minha voz/ Que Deus salve todos nós/ E Deus guarde todos vós”.18 Sendo que outro disco sintomático da experiência migratória nordestina neste mesmo período é o álbum, O Último Pau-de-arara (Polygram, 1973), primeiro long-play gravado pelo cantor e compositor cearense Raimundo Fagner, onde em sua primeira faixa, "Último Pau-de-Arara", de Venâncio, Corumbá e J. Guimarães, ele nos anuncia a contrariedade trasitória de sua própria experiência diaspórica: “Tomara que chova logo/ Tomara/ Só volto pro meu Cariri/ No último pau-de-arara...”.

17 No texto da capa dupla interna deste mesmo disco, Ednardo e seu parceiro musical Rodger Rogério deixaram um recado aos ouvintes sobre o processo de criação de seu próprio “banquete antropofágico”: “Meu corpo, minha embalagem, todo gasto na viagem. Enfim comemos muito a cultura nacional e sempre querendo que a “comida” fosse melhor. Continuamos nesse banquete, mas, começamos a botar os pratos na mesa para distribuir o nosso angu...”. Palavras que confirmam o depoimento de Capinan, realizado no ano anterior, sobre esse “contingente de criadores” que “chegam nômades”, “de tudo quanto é interior” e entram na tua cozinha pra comer, devorar o que tiver lá. Pois chegam “como nuvem de gafanhoto, devorando tudo” (CAPINAN, Op. cit.). 18 Essa atração pela metrópole também está expressa em “E que Deus ajude” (1979), de autoria de outro “trovador diaspórico”, o cantor e compositor alagoano Djavan: “Eu vou mudar de profissão/ Eu vou ser cantor/ Eu vou pro Rio de Janeiro/ No Expresso Brasileiro/ pelo mês de fevereiro/ Já cansei de ser ferreiro/ Seu doutor, oh seu doutor...”, samba gravado em seu primeiro LP, A voz – O violão – A música de Djavan (Som Livre, 1979).

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Outro “trovador diaspórico” desta geração é o cantor e compositor paraibano, Zé Ramalho, que chegou ao Rio de Janeiro em 1974, para integrar a banda de apoio do compositor pernambucano Alceu Valença, no show “Vou danado pra Catende”, que então estreava no Teatro Tereza Raquel, em Copacabana. Cabendo notar que a inicial sedução das metrópoles do Sul também exerceria uma força contrária nesses mediadores culturais ao se transformar em um relativo estranhamento com a experiência urbana naquilo que podemos denominar de “mal-estar civilizatório”. A canção de Alceu Valença que dá nome a esse show - inspirada no poema modernista “Trem de Alagoas”, do poeta pernambucano Ascenso Ferreira -, explicitam o desassossego de seu anunciador em relação à aceleração da vida cosmopolita: “Ai, Telminha/ Ouça esta carta/ Que eu não escrevi/ Por aqui/ Vai tudo bem/ Mas eu só penso/ Um dia em voltar/Ai, Telminha/ Veja a enrascada/ Que fui me meter/ Por aqui/ Tudo corre tão depressa/ As motocicletas se movimentando/ Os dedos da moça/ Datilografando/ Numa engrenagem/ De pernas pro ar”.19 Assim como, os versos de “Virgem Virgínia”, de Alceu e Geraldo Azevedo: “Virgem Virgínia se acabou/ Essa cidade atropela, atropela, atropela...”.20 Assim como, a “psico-neuro-violência” mental causada pela nova experiência metropolitana, em “Planetário”, de Alceu Valença: “Esperei no planetário o meu amor/ Ela foi ao analista e ainda não voltou/ Esperei no planetário o meu amor/ Ela foi ao analista e ainda não voltou// Os ruídos dos carros/ A moral, a ciência/ A psico-neuro- violência”, ambas registradas no primeiro álbum desta dupla de compositores nordestinos, o LP Quadrafônico (Copacabana, 1972). Conforme comentado, constatamos que foi a partir da produção musical de Luiz Gonzaga (1912-1989), a partir dos anos 1940 e 50, que a experiência diaspórica vai se manifestar com um legado de grande expressão poética-musical em nossa canção popular,

19 O LP Molhado de Suor (Som Livre, 1974), primeiro disco solo de Alceu Valença, foi reeditado no ano seguinte com a inclusão dessa faixa devido à sua participação no Festival Abertura da TV Globo, realizado no Teatro Municipal de São Paulo, em fevereiro de 1975. Neste evento, essa canção conquistaria o inusitado prêmio de “incentivo à pesquisa” ao ser interpretada por Alceu Valença (voz e violão), Zé Ramalho (viola), Lula Côrtes (tricórdio), entre outros músicos nordestinos, em uma formação bastante inusitada para os padrões da MPB na época com muita influência do rock progressivo, naquilo que o próprio Alceu Valença definiria mais tarde como "uma banda de pífanos elétrica". 20 O cantor e compositor pernambucano Geraldo Azevedo nos ajuda a entender a contrariedade de sua chegada ao “Sul maravilha”: “Todo mundo queria vir para o Rio de Janeiro. Porque, naquele tempo, não havia o que há hoje, as gravadoras. Só existia Rio e São Paulo. Rio de Janeiro, então, era um encanto, Copacabana, aquelas coisas todas, e eu não queria vir. Eu só sei que eles [, Teca Calazans e Lizete Margarida] se reuniram, clandestinamente, compraram um enxoval, duas calças, três camisas, uma mala, marcaram minha passagem, me empurraram para dentro do avião. Vim e nunca mais voltei” (entrevista para o programa televisivo, O som do vinil, Canal Brasil, 2010).

11 passando a adquirir novos contornos melopoéticos durante as décadas de 1960 e 1970, através das mãos e da voz de uma safra de músicos - cantores e compositores nordestinos - pertencentes a uma mesma geração, naquilo que podemos chamar como “os herdeiros de Luiz Gonzaga”. Trovadores diaspóricos que migraram e desenvolveram suas carreiras musicais no eixo Rio-São Paulo, entre os anos 1960 e 1970, tais como: Dominguinhos, Geraldo Vandré, Torquato Neto, Ednardo, Belchior, Vital Farias, Zé Ramalho, Geraldo Azevedo, Fagner, Tom Zé, Alceu Valença, Capinan, Raúl Seixas, Sérgio Sampaio, Raimundo Sodré, Djavan, Gilberto Gil, entre tantos outros artistas. Cabendo ressaltar que no processo de constituição desta “diáspora nordestina” haverá sempre uma vinculação estreita entre a experiência diaspórica e a construção das identidades culturais, a partir de significados e posições relacionais em constante transformação (cf. HALL, 2008, p. 33).21

O “mal-estar civilizatório” na canção popular brasileira

A obra freudiana, O mal-estar na civilização (1929), que nos impulsiona a refletir a cerca dos conflitos entre o indivíduo e a sociedade moderna ao apontar para o sentimento de “desconforto” (unbehagen) dos indivíduos inseridos culturalmente na civilização ocidental, como informa seu título original alemão: Das Unbehagen in der Kultur . Para esse autor existem três fontes implacáveis do sofrimento humano: o poder devastador da natureza, a ameaça da deterioração e da fragilidade de nosso corpo, e a insuficiência das normas que regulam os vínculos humanos na família, no Estado e na sociedade. Como ele mesmo explica, “boa parte da culpa por nossa miséria vem do que é chamado de nossa civilização”, pois “tudo aquilo com que nos protegemos da ameaça das fontes do sofrer é parte da civilização” (FREUD, 2011, p. 31). Sendo que essas especulações partem da ideia que há uma hostilidade generalizada à vida civilizada, manifesta pelo conflito entre o “princípio do prazer” - como a busca incessante da felicidade individual - e o “princípio da realidade” - como força

21 E os exemplos musicais desse processo são bastante diversos, como em “Coragem pra suportar” (1964), de Gilberto Gil: “Lá no sertão quem tem/ Coragem pra suportar/ Tem que viver pra ter/ Coragem pra suportar...// Ou então/ Vai embora/ Vai pra longe/ E deixa tudo/ Tudo que é nada/ Nada pra viver/ Nada pra dar/ Coragem pra suportar...”. Assim como, em “Chegança” (1964), composta por e Oduvaldo Viana Filho para integrar o roteiro musical do histórico show Opinião: “Estamos chegando daqui e dali/ E de todo lugar que se tem pra partir/ Trazendo na chegança/ Foice velha, mulher nova/ E uma quadra de esperança...”. Assim como, já na década seguinte, em “Curvas do rio” (1977), de Elomar Figueira Mello: “Vô corrê trecho/ Vô percurá uma terra preu podê trabaiá/ Prá vê se dêxo/ Essa minha pobre terra véia discansá// [...] Tá um aperto/ Mais qui tempão de Deus no sertão catinguêro/ Vô dá um fora/ Só dano um pulo agora/ Em Son Palo/ Triângulo Minêro”.

12 repressiva pautada pelas regras, normas, leis e tabus construídos pela civilização, e capazes de restringir a livre satisfação das pulsões intrínsecas a todos os indivíduos. Portanto, a plena realização do “princípio do prazer” revela-se inalcançável, levando-nos a um crescente sentimento de insatisfação perante a nossa vida civilizada. Mas será que se esse “desconforto cultural” não seria um dos primeiros sintomas da própria crise do projeto moderno de civilização, gestado pelo Iluminismo europeu, no século XVIII, e disseminado, nos dois séculos seguintes, pelo liberal-capitalismo e pelo socialismo?22 De fato, este mal-estar vai se disseminar nos chamados “países periféricos” ao longo do século XX e será prontamente diagnosticado pelas mediações culturais de nossa canção popular como uma progressiva suspeita face ao processo civilizatório nos trópicos. Como, por exemplo, em “Pequeno mapa do tempo” (1977), do cantor e compositor cearense, Belchior: “Eu tenho medo de abrir a porta/ Que dá pro sertão da minha solidão/ Apertar o botão: cidade morta/ Placa torta indicando a contramão”.23 E como uma desconfiança absoluta frente ao progresso material da modernidade, entre o “mar” e o “sertão”. Como expressa o baião, “Sobradinho” (1977), de Sá & Guarabyra: “O homem chega e já desfaz a natureza/ Tira a gente põe represa, diz que tudo vai mudar/ O São Francisco lá prá cima da Bahia/ Diz que dia menos dia vai subir bem devagar/ E passo a passo vai cumprindo a profecia/ Do beato que dizia que o sertão ia alagar// O sertão vai virar mar/ Dá no coração/ O medo que algum dia/ O mar também vire sertão”. O referido diagnóstico freudiano nos interessa na medida em que desvela as contradições do ideal ocidental de modernidade que, ao invés de possibilitar bem- estar e satisfação das necessidades humanas para todos os dos indivíduos, se perpetua em um sistema baseado na produtividade, na ênfase sobre os processos de produção de mercadorias e no consumo, cujas privações materiais impostas às classes menos favorecidas constituem um intenso mal-estar repressivo, como fonte de uma generalizada frustração para a maioria da população mundial (ROUANET, Op. cit. p. 115). Em suma, um pontual sentimento de

22 Conforme alude Rouanet, ao apontar sobre o colapso de nosso atual projeto civilizatório: “Não se trata de uma transgressão na prática de princípios aceitos em teoria, pois nesse caso não haveria crise de civilização. Trata-se de uma rejeição dos próprios princípios, de uma recusa dos valores civilizatórios propostos pela modernidade. Como a civilização que tínhamos perdeu sua vigência e como nenhum outro projeto de civilização aponta no horizonte, estamos vivendo um vácuo civilizatório” (ROUANET, 1993, p. 11). 23 Como notado anteriormente, subexiste uma ambígua contrariedade nesse mal-estar em relação ao universo metropolitano, como no trecho da canção “Como nossos pais” (1976), do próprio Belchior: “Eu vou ficar nessa cidade/ Não vou voltar pro meu sertão/ Pois vejo vir vindo no vento/ Cheiro da nova estação/ Eu sinto tudo na ferida viva/ do meu coração”, canção registrada como terceira faixa de seu segundo LP, Alucinação (Polygram, 1976).

13 distopia e desconfiança em relação ao processo de modernização nacional pautado pela cultura hegemônica dos centros urbanos, como explicitam os versos do já referido baião de Dominguinhos e Gilberto Gil, “Lamento sertanejo” (1975): “Por ser de lá/ Do sertão, lá do cerrado/ Lá do interior do mato/ Da caatinga do roçado/ Eu quase não saio/ Eu quase não tenho amigos/ Eu quase que não consigo/ Ficar na cidade sem viver contrariado”. De modo que a invenção e constante reinvenção de um “sertão mítico” - como um sempre fecundo lugar de memória na canção popular brasileira do século passado - estão pautadas por um sentimento cuja existência individual será movida pelo desejo de um retorno àquela coletividade original da vida sertaneja com a qual nos identificamos, mesmo não sendo sertanejos, por estarmos fadados à barbárie crescente do mundo cosmopolita. Como nos ajuda a entender a marcha, “Retirante” (1976), de Nivaldo Lima e Manoel Pedro, interpretada euforicamente por Jackson do Pandeiro: “Vim do mato, cansado e com fome/ Retirante fugindo ao sertão/ Mas agora choveu lá pra riba/ E eu volto cantando e dançando baião”, assim como, o baião de , “Assentamento” (1995): “Zanza daqui/ Zanza pra acolá/ Fim de feira, periferia afora/ A cidade não mora mais em mim/ Francisco, Serafim/ Vamos embora”. Canções que representam a experiência diaspórica do caminho de volta para o sertão ao inverterem o vetor do êxodo rural para o urbano, expressando a constante errância de seus sujeitos diaspóricos. Afinal, no meio deste mal-estar da civilização mora uma profunda vontade de “voltar para o sertão”.

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