Piracicaba, o rio e a cidade: ações de reaproximação

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Piracicaba, o rio e a cidade: ações de reaproximação

Piracicaba IPPLAP 2011

06515 - 37334001 miolo.indd 3 02/12/11 16:36 © IPPLAP, 2011

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Ficha catalográfica elaborada pela Bibliotecária Melysse Martim – CRB-8/8154

IPPLAP i64p Piracicaba, o rio e a cidade: ações de reaproximação. Piracicaba, SP: IPPLAP, 2011.

ISBN 978-85-64596-01-6

1. Planejamento urbano 2. Paisagismo I. Título.

CDD 711.4 CDU 711.4

Índice para catálogo sistemático: 1. Planejamento urbano 711.4 2. Paisagismo 711 Impresso no Brasil

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06515 - 37334001 miolo.indd 4 02/12/11 16:36 Prefácio

Barjas NegrI

Diante de um cenário mundial em que, os espaços públicos os locais em que se tem em nome do progresso, rios, matas ciliares e direito à cidade, às diferentes vivências, em a natureza de modo geral foram degradadas que as pessoas se encontram, usufruem do ao longo da história, olhar para Piracicaba é seu espaço, debatem, têm lazer, praticam a um alento. A cidade, faz pelo menos 40 anos, vida em sociedade, enfim, são lócus prepon- optou pela preservação, repensando a relação derante da cidadania. com o rio que lhe dá nome. Para além da reapropriação, a requa- Como um processo complexo que é, lificação destas áreas, dotando-as de no- esta preservação e requalificação de espaços vos usos, mas mantendo os consolidados e vem sendo perene, amalgamando ingre- respeitando a história, é que vai alçando o dientes importantes como o envolvimento nome da cidade como referência e garan- da sociedade civil e do poder público. tindo aos seus e aos agregados, a qualidade A ação do poder público, inclusive, de vida que almejam. se torna um diferencial: em Piracicaba são Apesar deste trabalho que pode ser- as diferentes administrações, imbuídas de vir de referência para estudos acadêmicos e espírito público, visão de futuro e boa equi- para planejamento de políticas públicas em pe, que foram permitindo a reapropriação outras municipalidades, estados ou federa- das margens pela municipalidade. ções, havia uma lacuna no registro destas Esta reapropriação é carregada de intervenções. significado, pela relevância dos espaços na Por isso a importância desta publi- constituição da história de uma cidade. São cação, que tenho a honra de prefaciar. Este

06515 - 37334001 miolo.indd 5 02/12/11 16:36 livro tem como objetivo, além de marcar a Nas páginas que se seguem, um efeméride de dez anos de desenvolvimento retrospecto conta um pouco do que foi do planejamento sistêmico de ações para as feito até aqui, como as intervenções fo- áreas ripárias do Piracicaba, que se conven- ram pensadas, as condicionantes de cada cionou chamar “Projeto Beira-Rio”, resgatar época, as peculiaridades de cada espaço, esta memória, preencher a lacuna, revalori- o envolvimento da sociedade, o papel da zar a historia da ação pública, garantir o direi- ação pública, as comparações com outras to às próximas gerações do conhecimento do intervenções em outros municípios. É resultado do que a união de uma sociedade um convite à história do planejamento civil atuante com um poder público cônscio da cidade, que recomendo a leitura a to- e com visão de futuro garantiu a Piracicaba. dos vocês.

Barjas NegrI é Prefeito de Piracicaba em segundo mandato (2005/2012). Doutor em economia pela Universidade de Campinas (Unicamp), lecionou na Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP) e na Unicamp. Sua atuação política inclui cargos (secretário e ministro) nas esferas do poder executivo municipal, estadual e federal, além de mandato como vereador em Piracicaba de 1989 a 1992.

06515 - 37334001 miolo.indd 6 02/12/11 16:36 Apresentação

joão Chaddad

A história nos mostrou, ao longo do Governantes e população começaram a desenvolvimento das civilizações, a im- perceber que os recursos são findáveis e portância das águas para a sobrevivência que é premente a necessidade de preservar do ser humano. As mais antigas cidades do para continuar a viver. mundo e também cidades pequenas ou mé- Em Piracicaba – que, como poucas dias, nasceram às margens de rios e córregos cidades no mundo, tem um rio que corta a e se utilizaram do elemento água para se cidade de forma diagonal e que tem como desenvolverem. prêmio maior uma cachoeira e um salto, Este papel protagonista e essencial tornando-a privilegiada e o maior orgulho da água, porém, não garantiu a gratidão do do piracicabano, como indica pesquisa feita ser humano. Apesar de se utilizar dela para recentemente – esta mudança de paradigma praticamente todas as atividades essenciais tem início na década de 70, quando, tanto a para a sobrevivência, o homem deu as cos- população como o poder público, colocam tas para sua importância e, por séculos a na agenda a importância do resgate do Rio fio, por exemplo, jogou esgoto in natura nas Piracicaba e de suas margens. É a partir des- águas que serviam de bebida para as pessoas te período que tanto a quantidade como a e para os animais, de alimento para a agri- qualidade das águas viram objeto de ações cultura, para a produção da energia, etc. do poder público. Nas últimas décadas, entretan- Digo isto não por ter lido em livros de to, esta visão começou a mudar e vai se história ou fazendo pesquisa em jornais da- aperfeiçoando na direção da preservação. quele tempo, mas sim, com muito orgulho,

06515 - 37334001 miolo.indd 7 02/12/11 16:36 por ter sido ator desta história, tendo pa- da cidade com o rio e ação pública para que pel destacado na elaboração dos primeiros a cidade redesenhasse sua relação com um decretos de desapropriação que garantiram dos maiores e, certamente, o seu mais sim- o caráter público às margens e, à cidade, a bólico patrimônio. certeza de não se amesquinhar, como está Para finalizar, quero externar primei- mencionado no terceiro artigo deste livro. ramente meus agradecimentos ao Prefeito Estas ações, que começam na década Barjas Negri, coautor de parte das ações de 70 e conferem uma mudança substancial de reaproximação de Piracicaba com o a todo entorno das margens urbanas e cen- rio e suas margens. Também agradeço, em trais do rio Piracicaba, atingem seu ponto nome do IPPLAP, a todos aqueles que dis- alto com o início do Projeto Beira-Rio, ponibilizaram de seu tempo para produzir que guarda a singularidade de ter envolvi- textos para esta publicação. Ao arquiteto do, há 10 anos, poder público, técnicos e Estevam Vanale Otero e à engenheira civil sociedade civil num esforço de retomada Maria Beatriz Silotto Dias de Souza, res- de identidade entre o rio e sua cidade. O ponsáveis pelo artigo “A Reconquista das projeto, incluído na pauta das últimas três Margens do Rio Piracicaba: uma recons- administrações, independente de colora- trução histórica à guisa de introdução” – ções partidárias, pensou as intervenções em que versa sobre a constituição do municí- oito trechos que dividem o rio Piracicaba pio de Piracicaba e como se desenhou sua em toda sua extensão urbana no municí- relação com o rio ao longo da história; ao pio. Estas intervenções têm características arquiteto Marcelo Cachioni, que no artigo distintas em cada um deles, respeitando as “O Parque do Mirante”, conta o histórico especificidades e usos consolidados. de uma primeira ação de qualificação das Além do Beira-Rio – desenvolvido margens do Piracicaba; novamente ao ar- à margem esquerda –, a requalificação do quiteto Estevam Vanale Otero, à jornalista Engenho Central – localizado à margem Sabrina Rodrigues Bologna e à Engenheira direita – e a união de ambos por uma nova Arlet Maria de Almeida, auto- passarela (que está sendo construída) li- res de “Parque da Rua do Porto e Área de gando a margem turístico-gastronômica à Lazer do Trabalhador: gênese da reaproxi- margem cultural, vão completando a rea- mação com o rio”, que fala sobre a reativa- propriação das margens do rio pelo poder ção da relação da cidade com o Piracicaba; público para o público. ao arquiteto Marcelo Carvalho Ferraz, au- É disso que esta publicação trata. Ela tor de “O rio e a cidade”, que descreve é um histórico dos anos de reaproximação a importância do Engenho Central como

06515 - 37334001 miolo.indd 8 02/12/11 16:36 patrimônio da cidade e as intervenções periências brasileiras e internacionais de pensadas para o espaço e também as rea- recuperação de margens de rios; e à arqui- lizadas, como o teatro que ora está sendo teta Sandra Soares de Mello, responsável construído; aos arquitetos Renata Toledo pelo texto “Quando a Cidade Reencontra Leme, Fabio Guimarães Rolim e Eduardo o Rio”, que avalia a intervenção desenvol- Dalcanale Martini, autores de “A Piracema vida pelo Projeto Beira-Rio à luz de sua do Projeto Beira-Rio”, que detalha o pro- adequação aos condicionantes ambientais cesso de desenvolvimento, desde as ações e paisagísticos presentes em espaços com iniciais até a efetivação das intervenções essas características. do Projeto Beira-Rio; à arquiteta Maria Importante dizer e já agradecer – para Cecília Gorski, que no artigo “Recuperação efetivamente encerrar esta apresentação – a de Rios Urbanos” explica a importância iniciativa dos funcionários do IPPLAP – da recuperação de frentes aquáticas, com autarquia criada em 2003 para pensar o pla- o propósito da integração dos rios com o nejamento da cidade e também resguardar tecido urbano e estuda a experiência do sua história –, que são os responsáveis pela Beira-Rio comparativamente a outras ex- idealização e organização deste livro.

joão Chaddad é arquiteto e urbanista graduado pelo Mackenzie (1962). desde então desenvolveu diversos projetos arquitetônicos e urbanísticos públicos e particulares. atuou como professor universitário na escola de engenharia de Piracicaba (1972-1977) e no curso de arquitetura da UNIMeP (2001). Foi Coordenador de obras e serviços Públicos da Prefeitura de Piracicaba entre 1972 e 1973, tendo sido secretário de diversas pastas municipais desde então. Foi vice-prefeito de Piracicaba durante o período 1997-2000 e ocupa o cargo de diretor-Presidente do IPPlaP desde 2005.

06515 - 37334001 miolo.indd 9 02/12/11 16:36 06515 - 37334001 miolo.indd 10 02/12/11 16:36 Sumário

1 – A Reconquista das Margens do Rio Piracicaba:

uma reconstrução histórica à guisa de introdução ...... 13

Parte 1 – ações de reaproximação

2 – O Parque do Mirante ...... 47 3 – Parque da Rua do Porto e Área de Lazer do Trabalhador:

gênese da reaproximação com o rio ...... 69

4 – O rio e a cidade ...... 91

Parte 2 – Uma visão sistêmica: o Projeto Beira-rio

5 – A piracema do Projeto Beira-Rio ...... 105

6 – Recuperação de rios urbanos ...... 135

7 – Quando a cidade reencontra o rio ...... 163

Epílogo – O Presente e o Futuro das Ações na Orla do Rio Piracicaba ...... 183

Agradecimentos ...... 191

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A Reconquista das Margens do Rio Piracicaba: uma reconstrução histórica à guisa de introdução

ESTEVAM VANALE OTERO MARIA BEATRIz SILOTTO DIAS DE SOUzA

06515 - 37334001 miolo.indd 13 02/12/11 16:36 estevaM vaNale otero é Arquiteto e Urbanista (2002) e mestre (2009) pela FAUUSP. É professor universitário e atua na Prefeitura de Piracicaba desde 2003, ocupando o cargo de Diretor de Projetos Especiais do IPPLAP – Instituto de Pesquisas e Planejamento de Piracicaba desde esse mesmo ano.

MarIa BeatrIz sIlotto dIas de soUza é Engenheira Civil (1979) pela EEP, Engenheira de Segurança do Trabalho (1992) pela UNICAMP e mestre em Urbanismo (2007) pela UFSCar. Atua na Prefeitura de Piracicaba desde 2001, exercendo a função de engenheira civil no Departamento de Projetos Especiais do IPPLAP desde 2003.

06515 - 37334001 miolo.indd 14 02/12/11 16:36 O rio Piracicaba é formado pela jun- Vergueiro, Piracicaba foi objeto no último ção dos rios Atibaia e Jaguari, no município quarto daquele século de um projeto pio- de Americana. Corta o perímetro urbano da neiro de urbanização, sob coordenação do cidade de mesmo nome onde recebe as águas Alferes José Caetano Rosa, que promoveu do rio Corumbataí, seu principal afluente. um plano de arruamento em malha ortogo- Percorre 250 quilômetros desde sua forma- nal que até hoje caracteriza grande parte da ção até a foz no rio Tietê entre os municípios área central da cidade. Em 1893 foi implan- de Santa Maria da Serra e Barra Bonita. tado o serviço de iluminação elétrica (o Mais do que apenas seu nome, o mu- município foi o segundo da América do Sul nicípio de Piracicaba deve ao rio que cruza a contar com o serviço), por iniciativa do seu centro sua própria identidade. Às suas industrial Luiz de Queiroz, que instalou usi- margens foi estabelecido, em 1767, o povo- na de geração de energia elétrica às margens amento que originou a cidade econômica do rio Piracicaba; em 1887 a cidade já con- e socialmente pujante que hoje conta com tava com abastecimento de água encanada cerca de 370 mil habitantes. e, em 1898, com coleta de esgoto (ELIAS O pequeno povoado assistiu a um NETTO, 2000, p. 41-50). importante desenvolvimento econômico Ao fim daquele século e início ao longo do século XIX, baseado numa agri- do século XX, as margens do Piracicaba cultura diversificada, refletido em seu cres- encontravam-se ocupadas por uma série cimento urbano. Por iniciativa do Senador de atividades que denotam o desenvolvi-

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06515 - 37334001 miolo.indd 16 02/12/11 16:36 mento econômico local: à margem direita Em 1892, as áreas que foram objeto da Figura 1 Mapa de Vila Nova da do rio, área em que historicamente se ve- primitiva ocupação já se configuravam como Constituição (denominação do município de Piracicaba rifica a ocupação por engenhos de açúcar, periferia da cidade em rápida expansão mas, entre os anos de 1822 encontrava-se o Engenho Central, uma das também por isto, lugar de resistência das ma- – quando foi elevada à condição de vila – e 1877, mais modernas instalações industriais para nifestações populares que não encontravam quando voltou a adotar o antigo nome tupi-guarani) o beneficiamento do açúcar do Brasil, e que mais espaço nas áreas mais centrais: no ano de 1823. À época, a cidade restringia-se à utilizava o potencial hidráulico do salto do colina delimitada pelo rio Piracicaba e o córrego rio para sua operação. À margem esquerda A intervenção policial e a proibição pela Itapeva, que corresponde encontrava-se a Fábrica Arethusina, de fia- Câmara Municipal de instalação de luga- ao atual Bairro Centro. Crédito: Arquivo do Estado ção e tecelagem, antiga indústria de Luiz de res para jogos, bebedeiras e orgias, desde de São Paulo. Queiroz e que também fazia uso desse po- 1892, afastou progressivamente do nú- tencial hidráulico, utilizando o excedente cleo urbano central o espaço de conflitos, de energia elétrica produzida para a ilumi- restringindo tais reuniões para os limi- nação da cidade, como já citado. Em 1907 tes do perímetro urbano, principalmen- elas eram, respectivamente, a quarta e a te o largo santa Cruz e a rua do Porto, décima terceira indústrias mais importantes lugares escolhidos para as reuniões popu- do interior paulista em termos de valor de lares nos quais a resistência às iniciativas produção (NEGRI, 1996, p. 46). Ainda à saneadoras da administração pública se margem esquerda do rio Piracicaba existiam faziam mais presentes (PERECIN, 1989, olarias, principalmente à altura do atual p. 126, apud BILAC & TERCI, 2001, p. Parque da Rua do Porto, extraindo argila 98. Grifo nosso). para a produção de tijolos e telhas. Em decorrência desse crescimen- Ainda assim, até a década de 1940, to e desenvolvimento econômico que se nenhum ponto de sua área urbana dista- aproveitava das condições naturais do rio va mais do que 2.500 metros do Largo dos e suas margens como suporte a essa expan- Pescadores. A essa época a cidade apresen- são, a cidade deslocava-se para o topo da tava pouco mais de 75 mil moradores. colina. Piracicaba dava as costas ao rio por Ao mesmo tempo em que apresenta onde os primeiros colonizadores chegaram uma condição natural ímpar, entretanto, o e o sítio onde aportaram, relegando essa rio também representa uma barreira à co- área às atividades industriais. Os residen- nexão dos bairros localizados às suas duas tes dessa área restringiam-se, normalmen- margens. Desde o início do século XIX te, às camadas mais pobres da população, uma ponte realizava essa ligação à altura sobretudo ex-escravos. do Largo dos Pescadores. Arruinada aquela,

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06515 - 37334001 miolo.indd 17 02/12/11 16:36 uma foi construída a montante sucroalcooleiro, em torno especialmente do salto no fim do século XIX, a Ponte do das Oficinas M. Dedini, “grupo que será a Mirante, sob projeto dos engenheiros ir- matriz geradora da indústria local” (BILAC mãos Rebouças. Esta foi alargada na década et al., 2001, p. 53). de 1980, a fim de comportar o tráfego cres- A expansão da cultura da cana e, cente de veículos. Na década de 1960 foram principalmente, do complexo industrial a construídas duas novas pontes urbanas: a do ela direcionado, tornando a cidade o prin- Morato, a jusante, e a do Lar dos Velhinhos, cipal centro fornecedor de maquinaria para a montante daquela(1). o seu beneficiamento, produziu um intenso Ao longo da segunda metade do sé- desenvolvimento econômico, com reflexos culo XX a cidade sofreu uma modificação diretos na urbanização, que crescia a taxas de sua base econômica que teve reflexos em mais altas que a média brasileira à época. sua urbanização. O meio rural, que ante- A sede de progresso, especialmente riormente exibia uma grande diversificação no contexto desenvolvimentista por que de culturas vai, progressivamente, conver- passava o Brasil nas décadas de 1950 e 60, tendo-se num ambiente dominado pela impulsionou uma série de melhoramentos monocultura da cana-de-açúcar. Ainda que urbanos, principalmente aqueles voltados tenha sido historicamente uma região cana- ao principal símbolo do desenvolvimento vieira, a predominância incontestável que do período: o automóvel. Foi a época da (1) Apenas na década de 2000 novas intervenções esta cultura apresenta contemporaneamen- abertura, ampliação ou reforma de algumas foram realizadas para melho- rar as transposições urbanas te teve início nesse período. Esse fato, ao al- das mais importantes vias da cidade até os do rio Piracicaba: as dupli- cações da Ponte do Lar dos terar as bases produtivas no meio rural e, por dias de hoje, como as avenidas Centenário, Velhinhos (2006), da Ponte do Morato (2008) e da Ponte conseguinte, das exigências de mão-de-obra Carlos Botelho, Armando de Salles Oliveira do Mirante (conclusão das obras prevista para 2012), no campo, foi preponderante para o rápido (avenida de fundo de vale, o que levou à na qual será construído um mirante no alto da estrutura esvaziamento populacional desse espaço e a canalização e tamponamento do Córrego estaiada, acessado por meio de um elevador panorâmico. migração para o ambiente urbano, processo Itapeva) e, fundamental para o nosso caso, As denominações oficiais das pontes que transpõem em que se verificou, ainda, uma expressiva da abertura da Avenida Beira Rio (BILAC o Piracicaba em seu tre- cho urbano são: Ponte do concentração fundiária. Essa especialização et al., 2001, p. 106). Mirante – Irmãos Rebouças (antiga) e Arquiteto Caio de Piracicaba, atrelada à monocultura da A Avenida Beira Rio começou a Tabajara Esteves de Lima (nova); Ponte do Morato – cana, impulsionou toda uma cadeia produ- ser implantada em princípios da década Pedro Francisco Prudente [Pedro Chiquito] (antiga) e tiva voltada à produção de açúcar e álcool, de 1960, destinada a ser uma importante Navegador José Luiz Guidotti (nova); Ponte do Lar dos que levou à constituição de todo um com- conexão por meio de uma marginal ao rio Velhinhos – José Antonio de Souza [zé do Prato] (antiga) plexo e importante parque industrial metal- Piracicaba, com duas mãos de direção em e Professor Walter Radamés Accorsi (nova). -mecânico de equipamentos para o setor quatro faixas de rolagem, estacionamento e

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06515 - 37334001 miolo.indd 18 02/12/11 16:36 canteiro central. Deveria acompanhar toda tes com relação à qualidade das águas do rio a frente urbana do rio, tornando-se uma Piracicaba e seus afluentes, fator de degrada- barreira a separar a cidade do rio e suas mar- ção ambiental e deterioração da relação entre gens. Felizmente a obra em sua concepção a cidade e o rio. Em março de 1973 o Jornal de original jamais foi concluída. Piracicaba registrava o “espetáculo” do rio co- Essa ênfase rodoviarista promoveu berto de espuma, decorrente da concentração uma radical alteração no padrão urbano de poluição (JP, 24 de março de 1973). da cidade, sobretudo a partir da década de A intensa expansão industrial que se 1960, período de intenso crescimento de- observou em toda a bacia do Piracicaba es- mográfico, quando pecialmente a partir dos anos 1970, acom- panhada de um crescimento populacional a cidade de Piracicaba começa a se ex- anual de 5,1%, superior tanto à da Região pandir de forma fragmentada e atingir Administrativa de Campinas – 4,4% – áreas distantes da ocupação dos 200 anos quanto ao do Estado de São Paulo – 3,5% anteriores de sua história, por intermédio ao ano – ao longo dessa década, foram os da abertura de novos loteamentos públi- principais responsáveis pela degradação da cos e privados. Este processo foi acompa- qualidade das águas da bacia devido ao in- nhado pela extensão progressiva do pe- cremento na carga poluidora (TERCI et al., rímetro urbano, viabilizando legalmente 2005, p. 95). Se em 1977 o rio Piracicaba, o espraiamento da malha da cidade e ao cruzar o trecho urbano do município, favorecendo a especulação imobiliária era enquadrado como apresentando quali- (INSTITUTO PÓLIS, 2003, p. 19). dade Classe 2, segundo o Decreto Estadual 10.755/77, em 2003 o mesmo trecho apre- Entre 1940 e 1970, a população de sentava águas com qualidade “Pior que Piracicaba dobrou de tamanho, atingindo Classe 4”, inadequadas para qualquer tipo pouco mais de 150 mil habitantes, aos quais de interação ou contato humano (Plano de vão se acrescentar outros 150 mil até o ano Bacia Hidrográfica 2000-2003 – Síntese do 2000. No mesmo período seu perímetro ur- Relatório Final in PMP, 2003). bano multiplicou-se aproximadamente por O final da década de 1970 e início 20 (OTERO et al., 2007). de 80 foi uma época de luta sem tréguas Esses dois processos combinados e contra a poluição do rio Piracicaba, com intrinsecamente articulados de acelerada intensa mobilização popular. A cidade che- expansão urbana com intenso crescimento gou até a inaugurar oficialmente uma Praça econômico, produziram impactos relevan- do Protesto Ecológico, localizada à mar-

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06515 - 37334001 miolo.indd 19 02/12/11 16:36 20 Piracicaba, o rio e a cidade: ações de reaproximação

06515 - 37334001 miolo.indd 20 02/12/11 16:36 gem esquerda do rio Piracicaba, próximo canismos conjuntos para consultas, estu- Figura 2 Mapa da evolução da à cabeceira da Ponte do Mirante (ELIAS dos, execuções, fiscalização e controle de mancha urbana de (2) Piracicaba. Em azul, o rio NETTO, 2000, p. 319 e 322) . atividades que interfiram na qualidade das Piracicaba; em cinza, área A questão da poluição das águas do águas” (SEMUPLAN, 1992, p. 99). ocupada pela mancha urbana em 1940, 1960, rio passou a figurar dentre as preocupações O cenário, especialmente no último 1980 e 2000 (da esquerda para a direita, de cima para centrais da municipalidade, sendo ponto de quarto do século XX, era desolador: à degra- baixo). Elaboração: IPPLAP. destaque no Plano Diretor elaborado em dação de suas águas e privatização de suas 1992 que, entretanto, jamais chegou a ser margens, somava-se um progressivo afasta- aprovado e posto em execução. A despeito mento do berço de nascimento da cidade de de ser um importante contribuinte à polui- Piracicaba, decorrente de uma política de ção da bacia, o município não era um de ocupação urbana absolutamente predatória. seus maiores poluidores. No início dos anos É neste momento que se dá a inflexão 1990, o rio Piracicaba já adentrava o mu- no processo de apartação entre a cidade e o nicípio bastante degradado, especialmente rio, dando-se início ao resgate de suas mar- pela contribuição dos esgotos residenciais gens e à reapropriação desse espaço funda- das demais cidades da bacia, que a essa épo- mental à própria identidade local. Um pro- ca tratavam quantidades ínfimas de esgoto, cesso em curso e que talvez jamais implique ao passo que os efluentes industriais come- numa conclusão, porque vivo e dinâmico, çavam a ser controlados. mas que é produto de um desejo coletivo da A compreensão de que os proble- sociedade piracicabana a fim de estabelecer mas da qualidade das águas transcendiam uma relação mais harmônica e saudável com o município, impactando diretamente a o rio que lhe batiza. E essa relação mais quali- relação entre a cidade e o rio, conduziu à ficada entre a cidade e o rio podia ser encon- constituição de parcerias entre as demais trada em antecedentes não muito distantes cidades da bacia, levando à formação do no tempo na própria história piracicabana. Consórcio Intermunicipal das Bacias dos Rios Piracicaba e Capivari, em outubro de Antecedentes históricos 1989, na cidade de Americana. Dentre os (2) O artista popular pira- cicabano Elias Rocha bem objetivos do consórcio estavam “planejar, A despeito da progressiva e, aparen- representou seu sentimento de assistir à “morte” do rio adotar e executar projetos e medidas con- temente, inexorável apartação entre o rio e Piracicaba. Por meio de seus bonecos representando juntas destinadas a promover e controlar as a população piracicabana, podemos encon- pescadores colocados nas margens do rio, confeccio- condições de saneamento e uso das águas”, trar antecedentes de uma relação outrora nados com sucatas, varas na mão e em tamanho natural, bem como “promover formas articuladas mais harmoniosa e qualificada. As lembran- homenageava uma época em que havia pesca farta e o rio do desenvolvimento regional, criando me- ças dessa outra relação, de uma outra forma não era poluído.

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06515 - 37334001 miolo.indd 21 02/12/11 16:36 Figura 3 de interação entre o rio e a cidade se pre- Mas essa relação não se resumia a es- Margem do rio Piracicaba à altura da Rua Prudente servaram, e acabaram por se constituir num ses aspectos contemplativos, uma vez que o de Moraes, provavelmente da década de 1950, antes desejo coletivo de restabelecer essa qualida- rio e suas margens também se configuravam da construção da atual de perdida, realizar as ações necessárias para como uma das mais importantes áreas de Avenida Beira Rio. Pode-se observar o trampolim de a reconquista das margens do Piracicaba. lazer da cidade. Dentro do rio, à altura do mergulho ainda no rio. Ao fundo, as olarias na região Desde fins do século XIX o rio e o salto Largo dos Pescadores existiu, até a segun- da Rua do Porto. Crédito: Acervo IHGP. constituem-se em importantes áreas de lazer da metade do século XX, um trampolim de à população local, tendo sido objeto de ações mergulho, defronte ao antigo (e já extinto) públicas e particulares para dotar essa área de “Clube de Natação e Regatas Piracicaba”, uma infraestrutura turística e de lazer. Lindeiro que a partir dos anos 1920 tornou-se o mais ao salto foi implantado um pioneiro mirante importante local de recreação e esportes pelo Barão de Rezende no fim daquele sécu- da cidade (ELIAS NETTO, 2000, p. 129). lo, bem como um parque público, que tinha Com a degradação da qualidade das águas por finalidade oferecer aos cidadãos locais um as atividades esportivas e de lazer dentro do ponto para a contemplação do magnífico es- rio foram muito reduzidas, mas não desapa- petáculo representado pela queda d’água, por receram. Mesmo no momento mais crítico entre a mata ciliar. Este primitivo mirante deu de poluição das águas, o rio Piracicaba con- origem a todo o complexo que hoje se cons- tinuou palco de inúmeras atividades: nos titui no Parque do Mirante, conjunto de ala- dias mais quentes do verão ainda é possível medas, canais e equipamentos públicos, que encontrar muitas pessoas, sobretudo crian- se debruça sobre o salto e se abre a uma im- ças, refrescando-se nas águas do rio; este foi ponente visual do rio. O conjunto de instala- palco durante muitos anos do tradicional ções que compõem o complexo do Parque do Passeio de Boias, em que ocorria a descida Mirante representa o primeiro espaço público do rio ao longo de 20 quilômetros a partir significativo nesta área, antecedente impor- do centro, e que chegava a reunir mais de tante que surgiu em função da beleza natural 500 pessoas; no início de fevereiro ainda do salto e que compõe o primeiro trecho pre- ocorre, anualmente, um passeio de barcos; servado ao acesso público. O resgate da histó- nos períodos isentos de interdição devido ria do Parque do Mirante, desde sua fundação à piracema, as margens são tomadas por à transformação num dos principais compo- pescadores da cidade e de fora que, varas à nentes da imagem projetada pelo município mão, ocupam a barranca do rio em pescarias além de suas fronteiras é tratado neste livro que congregam famílias inteiras. no artigo “O Parque do Mirante”, de autoria Este se manteve, ainda, como o espaço do arquiteto Marcelo Cachioni. da principal manifestação cultural piracicaba-

22 Piracicaba, o rio e a cidade: ações de reaproximação

06515 - 37334001 miolo.indd 22 02/12/11 16:36 A Reconquista das Margens do Rio Piracicaba: uma reconstrução histórica à guisa de introdução 23

06515 - 37334001 miolo.indd 23 02/12/11 16:36 Figura 4 Passeio de boias no rio Piracicaba, que se realizava no mês de janeiro. Crédito: Henrique Spavieri.

Figura 5 Passeio de barcos, realizado em fevereiro. Crédito: Justino Lucente.

Figura 6 Imagem da Festa do Divino 2011. Crédito: Benedito Adilson Zavarize.

24 Piracicaba, o rio e a cidade: ações de reaproximação

06515 - 37334001 miolo.indd 24 02/12/11 16:36 na, a Festa do Divino Espírito Santo, realizada desde 1826, todos os anos, na segunda quin- zena de julho. A referida festa apresenta ca- racterísticas muito particulares em Piracicaba, sendo o ponto alto da festa a procissão fluvial, com o encontro dos barcos dos devotos no meio do rio, desembarcando na margem e re- alizando-se os ofícios religiosos no Largo dos Pescadores. A própria identidade da cidade se confunde com essa manifestação religiosa e folclórica às margens do rio. A permanência dessas manifestações e interações, ainda que muito afetadas pelo próprio processo de intensa urbanização que a cidade viveu ao longo do século XX, man- tiveram presente na memória coletiva local que outras possibilidades de relacionamen- to eram possíveis, permitindo vislumbrar um outro cenário para esta frente fluvial. Sobretudo a partir dos anos 1970, contrapor- -se ao processo de degradação e reconquistar as margens do Piracicaba ao interesse da co- letividade passaram a ser as ideias centrais de uma série de ações e políticas públicas volta- das à requalificação da área.

O Início da Reconquista das Margens do Rio

Além da degradação das margens, historicamente a cidade convive com as cheias do rio, cujos eventos ocorrem de ma- neira contumaz. Segundo informações do Departamento de Água e Energia Elétrica

A Reconquista das Margens do Rio Piracicaba: uma reconstrução histórica à guisa de introdução 25

06515 - 37334001 miolo.indd 25 02/12/11 16:36 Figura 7 (DAEE) – em Piracicaba há o transbor- nada pelo arquiteto João Chaddad, iniciou Foto aérea com perímetro da área a ser damento do rio, na altura do Largo dos à época os trabalhos de levantamento da desapropriada conforme definido pelo Decreto Pescadores, quando este atinge uma vazão área com o intuito de instruir o decreto de Municipal de Utilidade de 715m³/s. utilidade pública do prefeito Homero Paes Pública 1.552/73 (em rosa). Perímetro tracejado: O Banco de Dados Fluviométricos do de Athayde, definindo a destinação da área efetivamente desapropriada. Em laranja, Estado de São Paulo (SIRGH) e o DAEE – área à implantação do então denominado áreas que já eram públicas à época, oriundas do São Paulo disponibilizam as vazões máximas “Grande Parque Municipal”, que represen- loteamento “Chácara Nazareth”. Elaboração: mensais do rio Piracicaba, e por meio destes taria a maior área verde do perímetro ur- IPPLAP. dados constata-se que as três últimas maio- bano. Este seria destinado, genericamente, res inundações das margens do rio ocorre- ao lazer e ao turismo, podendo contar com ram nos meses de janeiro/fevereiro de 1970 “áreas específicas para restaurante, locais (vazão de 1.041,30/1.054,10m³/s, respecti- para práticas esportivas, play-ground (sic), vamente), fevereiro de 1983 (1.126,70m³/s) concertos ao ar livre (...), estacionamentos e janeiro de 2011 (1.129,18m³/s). e áreas de descanso” (COSU/PMP, 1972, Na ocorrência da cheia no ano de mimeo). Em matéria veiculada em abril de 1970 vários lotes e ruas do projeto de lo- 1972 tem-se notícia de que esse era um teamento Chácara Nazareth, aprovado em “plano acalentado por muitos”, devendo 18/12/1967, ficariam sob as águas se tives- prestar-se esta ação também a resolver o sem sido implantados, assim como ocor- “problema das enchentes, que vez por outra reu com os imóveis da Rua do Porto e da assolam toda a rua do Porto e suas imedia- Avenida Beira-Rio entre a Avenida Alidor ções” (JP, 5 de abril de 1972). Pecorari e a Rua São José. Para efetivar a desapropriação foi ela- A recuperação ambiental e do acesso borado e publicado o Decreto Municipal às margens do Piracicaba engendrou uma 1.552, de 25 de maio de 1973, declarando série de reflexões e ações com o intuito de de utilidade pública ampla área na várzea do produzir um espaço qualificado, franqueado rio Piracicaba, para desapropriação amigável à população piracicabana. O processo de de- ou judicial, destinada à ampliação de logra- sapropriação da vasta área de 23 hectares à douros, execução de planos de urbanização e margem esquerda do rio, iniciado em 1972, construção de obras públicas e de saneamen- chama a atenção pelo fato de que àquele to. Este decreto foi fundamental para propi- momento não havia uma proposta definida ciar o resgate do convívio com o rio. sobre a forma de ocupar a nova área pública. Os imóveis declarados de utilidade A COSU – Coordenadoria de Obras pública para desapropriação envolveram e Serviços Urbanos de Piracicaba, coorde- todos aqueles com frente para a atual Rua

26 Piracicaba, o rio e a cidade: ações de reaproximação

06515 - 37334001 miolo.indd 26 02/12/11 16:37 A Reconquista das Margens do Rio Piracicaba: uma reconstrução histórica à guisa de introdução 27

06515 - 37334001 miolo.indd 27 02/12/11 16:37 do Porto, vários lotes e áreas do loteamento poderiam ser integradas dentro de um “sis- Chácara Nazareth (abrangendo área onde tema de lazer e áreas abertas”. Essa proposta foi edificado o Centro Cívico e lotes no previa a implantação de “parques e campos entorno, hoje área do Parque da Rua do de jogos” ao longo do rio e adjacentes às Porto, Área de Lazer do Trabalhador e siste- áreas de preservação permanente, incenti- ma viário), bem como três quadras da atual vando, ainda, a prática de esportes aquáti- Avenida Beira Rio, entre a Avenida Alidor cos (GUEDES, 1974, p. 111). Pecorari e Rua Moraes Barros. Contudo, este plano jamais se Tendo em vista a extensa área decre- transformou em lei. O mesmo foi retoma- tada de interesse público, o tema desapro- do em 1984 pelo CEMUPLAN – Centro priação foi assunto daquele momento, de Municipal de Planejamento, órgão muni- tal maneira que em abril de 1974 ocorreu cipal, que o revisou e preparou nova ver- concorrida reunião para o debate do tema são do Plano Diretor, finalmente aprova- (JP, 25 de abril de 1974). do em 1985, por meio da Lei Municipal Posteriormente, os Decretos 1.906/74 2.644/85. Nesta peça já é evidente que a e 1.927/75 reduziram a área declarada de área deixou de ser encarada tão somente utilidade pública do decreto original de por seu potencial para o lazer e a ques- 1973, excluindo alguns imóveis de futura tão ambiental ganhou grande relevân- desapropriação(3). cia. Dentre os objetivos enunciados pelo Além das ações destinadas propria- Plano, logo em seu artigo 8º, este definia mente à incorporação dessas vastas áreas ao a necessidade de “corrigir os desníveis patrimônio público, o processo de planeja- de atendimento nas áreas de recreação, mento em curso no município passou a iden- esporte e lazer”, detalhando logo depois, tificar nessas margens todo o potencial para a no inciso XIII, que isto seria indissociável formação de um complexo de lazer, cultural e da necessidade de se “manter as melhores esportivo ambientalmente equilibrado. condições do meio ambiente, dando ên- O primeiro Plano Diretor do muni- fase à preservação dos recursos naturais e (3) Outros decretos foram cípio, elaborado em 1974 pelo arquiteto paisagísticos, à criação de áreas verdes, ao publicados retificando e/ou alterando as áreas a serem ex- Joaquim Guedes e equipe, praticamente combate à poluição e à proteção dos ma- propriadas, a saber: 2.789/79, 2.838/79, 2.839/79, 2.840/79, concomitante ao processo de desapropria- nanciais hídricos”. 2.841/79, 2.856/79, 2.857/79, 2.858/79, 2.859/79, 2.860/79, ção, identificava nesse local o potencial A preservação das margens do rio 2.861/79, 2.872/79, 2.927/80, 2.935/80, 2.936/80, 2.937/80, para a formação de um grande parque, por Piracicaba, ai incluída a área do Engenho 2.938/80, 2.951/80, 2.952/80, 3.713/83, 4.265/86, 4.485/87, ele denominado de “1º Nível”, ou seja, pela Central, configurava-se como uma das dire- 4.486/87, 4.487/87, 4.488/87, 4.694/88 e 7.942/98. incorporação das áreas já existentes e que trizes do Plano, tendo por objetivo

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06515 - 37334001 miolo.indd 28 02/12/11 16:37 Promover a urbanização do parque da na área de extração de argila das antigas Rua do Porto e área do Engenho Central, olarias, paisagismo, ancoradouro para bar- em caráter prioritário, com vistas à sua cos, teleférico conectando as duas margens, transformação em centros de lazer e con- kartódromo, centro cultural, bem como trolar a ocupação das margens do Rio lanchonetes e sanitários, numa proposta Piracicaba e outros mananciais, evitando ambiciosa. Pouco restou desse projeto além usos inadequados e ameaçadores à quali- da foto da maquete publicada no Jornal de dade da água (Lei 2.644/85, Artigo 12, Piracicaba em 17 de março de 1974. inciso XIV). Além de não ter sido efetivada, algu- mas das premissas dessa proposta passaram Toda a área compreendida pelas a ser seriamente questionadas. Sobretudo a duas margens do Piracicaba em seu trecho que dizia respeito à continuidade do sistema central (entre as pontes do Mirante e do viário ao longo da margem esquerda, con- Morato), em larguras que variavam de 100 figurando uma via marginal que represen- a 300 metros da margem, foi definida pelo taria, se implantada, uma barreira ao con- Plano Diretor de 1985 como zIT – zona tato direto com as águas. Institucional, a qual previa que, indepen- Em busca da vocação para esta dente da titularidade relativa à proprie- área, a equipe de arquitetos piracicabanos dade, os usos e atividades aí estabelecidos Dulcinéia Gobeth, Luiz Gobeth Filho e deveriam obedecer ao interesse público Egídio Simoni desenvolveu, em 1977, pro- (Art. 98). E em seu artigo 172, previa-se posta intitulada “O Parque do Piracicaba”. explicitamente a implantação definitiva de Esta consistia de diretrizes de intervenção um parque na região da Rua do Porto, con- de forma a qualificar toda a orla urbana do cretizado poucos anos depois, bem como a rio, detendo-se especificamente no trecho desapropriação e implantação de um parque representado pela área recém-desapropria- público no Engenho Central. da, elencando uma série de premissas que Um primeiro projeto para a implan- acabaram fundamentando a primeira ação tação de parque na área foi apresentado em efetiva e que condicionaram o desenvolvi- 1974, prevendo-se o início da implanta- mento das futuras intervenções para o local. ção para o ano seguinte. A referência era Dentre estas talvez a mais importante diga o projeto para o Aterro do Flamengo, de respeito à diretriz de afastar o sistema viário Affonso Eduardo Reidy. Previa-se, segundo estrutural da margem do rio, preservando a seu autor, o arquiteto Manoel de Carvalho, frente aquática ao pedestre. A concepção a urbanização com a implantação de lago da Área de Lazer do Trabalhador, primeiro

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06515 - 37334001 miolo.indd 29 02/12/11 16:37 dos parques implantado à beira-rio, é fruto 15 anos para se concretizar com a implan- desse trabalho pioneiro. tação do atual Parque da Rua do Porto, a Ao longo de fins dos anos 1970 e da reconquista da margem direita também década seguinte, levou-se a cabo a implan- teve que aguardar um longo tempo até ver tação da atual configuração do Parque da reincorporada toda aquela frente fluvial ao Rua do Porto. A proposta definitiva é de patrimônio da população piracicabana. autoria do escritório PROPLASA, elabora- A margem direita, em seu trecho cen- da em 1987 e implantada no ano seguinte. tral, historicamente foi ocupada por enge- O processo completo de implantação do nhos de açúcar e álcool, até o ano de 1974. Parque da Rua do Porto, da desapropriação Este é o ano de encerramento das atividades à consolidação deste como um dos mais im- do Engenho Central, então de propriedade portantes espaços de lazer da cidade é apre- da UBASA – Usinas Brasileiras de Açúcar sentado neste livro no artigo “Parque da Rua S/A, do empresário José Adolpho da Silva do Porto e Área de Lazer do Trabalhador: Gordo. O complexo do Engenho foi edifica- gênese da reaproximação com o rio”, de do sucessivamente desde o século XIX, adap- autoria do arquiteto Estevam Otero, da jor- tando-se às novas tecnologias que o benefi- nalista Sabrina Rodrigues Bologna e da en- ciamento da cana-de-açúcar demandava. genheira florestal Arlet Maria de Almeida. Jamais faltaram propostas de interven- A implantação desse espaço foi o primeiro ção para o imponente conjunto representado e decisivo passo para a reconquista de toda pelos diversos pavilhões do Engenho Central. a frente fluvial do rio Piracicaba em seu tre- Estas propostas variavam muito, tanto quanto cho central. Dificilmente seria possível o ao programa de necessidades definido, quanto cenário atual desse grande espaço público à relação que estabeleciam entre a preserva- às margens do rio Piracicaba se, no início ção do conjunto edificado existente e a pro- dos anos 1970, a cidade não tivesse decidi- positura de novas edificações. do se reapropriar dessas áreas. A primeira proposta para o Engenho Central é de fins dos anos 1970, de autoria de Reconquistando a Margem Direita: o Oscar Niemeyer, sob encomenda da adminis- Engenho Central tração municipal com vistas à implantação do Centro Cívico no local. A proposta con- Se o processo de retomada da mar- sistia na demolição de praticamente todos os gem esquerda, iniciado com a desapropria- edifícios existentes, preservando-se apenas ção da área das antigas olarias e de lotes da os antigos pavilhões da refinaria e da fábrica, Chácara Nazareth em 1973, levou cerca de respectivamente os edifícios 7A e 7B, bem

30 Piracicaba, o rio e a cidade: ações de reaproximação

06515 - 37334001 miolo.indd 30 02/12/11 16:37 Figura 8 Complexo do Engenho Central com a identificação dos edifícios. Elaboração: IPPLAP.

como a antiga sede administrativa. O espaço to daquele ano foi decretado o tombamento seria ocupado por um conjunto de novos edi- do conjunto histórico (Decreto Municipal fícios projetados por Niemeyer para sede dos 5.036, de 11 de agosto de 1989) e, em se- diversos órgãos da administração municipal. tembro, foi decretada a utilidade pública Dessa proposta ainda se guarda uma maquete da área de 75.865 m², com edificações to- na Prefeitura Municipal. A intervenção pro- talizando 11.695 m² construídos, dando iní- posta pelo arquiteto previa ainda a construção cio ao processo de desapropriação judicial de uma nova ponte aproximadamente à al- (Decreto Municipal 5.054, de 29 de setem- tura do Largo dos Pescadores, conectando as bro de 1989), atendendo ao definido pelo duas margens. Apesar da iniciativa do poder artigo 172 do Plano Diretor então vigen- público na elaboração do projeto a essa época te, que previa a transformação da área em o Engenho Central ainda era propriedade parque público (Lei Municipal 2.641/85, privada. Artigo 172, §2º). Com a garantia da pos- Em 1989 a municipalidade empreen- se, as instalações da SEMAC – Secretaria deu as ações decisivas para a incorporação Municipal de Ação Cultural foram transfe- dessa área ao patrimônio público. Em agos- ridas para o local no ano de 1992.

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06515 - 37334001 miolo.indd 31 02/12/11 16:37 A desapropriação foi questionada geográfica, arquitetônica e urbanística da judicialmente pelo antigo proprietário, cidade e da região, detendo-se sobre as ca- a UBASA, tornando precária a ocupa- racterísticas espaciais do próprio Engenho. ção da área. Contudo, o Engenho Central Além disso, procedeu-se a uma série de consolidou-se como importante espaço de entrevistas com personalidades locais, de lazer e cultura. Além de sediar a SEMAC modo a subsidiar a elaboração de um ques- e suas atividades, este se tornou um mag- tionário, aplicado posteriormente a 200 ha- nífico parque público, sediando inúmeros bitantes da cidade, com o intuito de “traçar eventos em seus pavilhões e áreas livres, um perfil da população, em termos do tipo de como o Salão Internacional do Humor, as lazer preferido e de suas expectativas em re- tradicionais Festa das Nações e Paixão de lação ao Engenho Central” (CARVALHO Cristo, dentre outros. Fundamental à apro- & BATAGLIESI, 1992, p.3). priação da área foi a inauguração, em 1992, O Programa Básico de Ocupação e da Passarela Pênsil, conectando o Engenho Uso definia o Engenho Central como “espa- à área central, por meio de uma estrutura ço privilegiado de encontro da comunidade desenvolvida pelo LAMEM – Laboratório de Piracicaba”, destinado a converter-se em de Madeiras e Estruturas de Madeiras da importante polo turístico. A proposta previa USP São Carlos. Além de permitir a inte- a conversão do espaço com a implantação gração entre as margens, constituindo um de equipamentos recreativos, culturais e de acesso de pedestres a partir do centro de lazer. Para garantir sua viabilidade econô- Piracicaba, a passarela tornou-se um ponto mico-financeira estavam previstos empre- privilegiado para a contemplação do salto, endimentos comerciais diversos, propondo- bem como um novo marco na paisagem. -se a divisão dos equipamentos do Engenho Data do início dos anos 1990 a ela- em três grandes grupos: o primeiro grupo, boração de um extenso estudo para definir de equipamentos culturais e de lazer, a se- as demandas, vocações e possibilidades rem financiados e administrados pelo poder para a ocupação da área, a cargo do escri- público, como o setor administrativo, o mu- tório Battagliesi & Carvalho Arquitetos seu da cana previsto, as praças de eventos Associados, contratados pela administra- e oficinas, uma biblioteca e arquivo públi- ção municipal para a elaboração de um cos, dentre outros; um segundo grupo dizia “Programa Básico de Ocupação e Uso do respeito aos equipamentos administrados Engenho Central”. por instituições de fomento cultural ou de O estudo foi desenvolvido a partir de lazer, tais como cinemas, teatro, academia uma caracterização histórica, econômica, de esportes etc; um terceiro grupo de ativi-

32 Piracicaba, o rio e a cidade: ações de reaproximação

06515 - 37334001 miolo.indd 32 02/12/11 16:37 dades era representado por aquelas a serem enquanto a área mais próxima à ponte do exploradas comercialmente pela iniciativa Morato deveria “ser utilizada como implan- privada, como hotel, restaurante, centro de tação urbana financiadora de toda a obra convenções e escritórios (CARVALHO & – uma nova ponte (...) ligar(ia) a cidade BATAGLIESI, 1992, p.99). ao coração do conjunto” (BRATKE, 1995, A proposta previa a constituição de p.152). Para viabilizar financeiramente o uma fundação para implantar e adminis- empreendimento, propunha-se uma par- trar o complexo cultural e de lazer que se- ceria entre o poder público e a iniciativa ria instalado no Engenho, ao longo dos dez privada (BANCO DE IDEIAS, 1994, p. 3). anos seguintes, ao menos. Esse Programa de Tampouco esta proposta foi implementada. Ocupação e Uso tampouco foi levado a cabo. Deve-se ao imbróglio jurídico em Em junho de 1993 a vocação do torno da desapropriação, que se arrastou ao Engenho Central foi objeto de debate or- longo das décadas de 1990 e 2000, resol- ganizado pela UNIMEP – Universidade vendo-se apenas em 2009, o fato de poucas Metodista de Piracicaba, em que se discu- ações terem sido empreendidas. tiram sua importância como espaço públi- Apenas em 2002 foi realizado novo co e seu valor simbólico para a população, estudo, destinado à implantação de um apontando para propostas de intervenção e Museu de Ciência e Tecnologia, para o qual gestão para o local (AzEVEDO, 1994). foi constituída equipe multidisciplinar para No ano seguinte a empresa de marke- sua elaboração. Em 2004 foi desenvolvido ting empresarial “Banco de Ideias” apresen- um amplo estudo de intervenção denomi- tou um estudo arquitetônico para o com- nado “Anteprojeto de Arquitetura e Plano plexo, denominado “Projeto Engenho de de Uso e Ocupação do Complexo Engenho Piracicaba”, de autoria do arquiteto Carlos Central e Parque do Mirante”, a cargo do Bratke, voltado ao aproveitamento das es- escritório Brasil Arquitetura, prevendo a truturas existentes e à implantação de novos constituição de um complexo de cultura edifícios nas áreas desocupadas. A proposta e lazer, ancorado no Museu de Ciência e visava constituir um novo centro comercial Tecnologia, respeitando os diversos usos já e empresarial nessa área, contando com consolidados, mas ampliando as formas de centro de convenções, auditórios, hotel utilização, integrando eventos e atividades e edifícios de escritórios. Previa-se que os comerciais, de modo a conferir uma susten- edifícios tombados do Engenho seriam uti- tabilidade financeira ao complexo. lizados como um complexo de convenções O projeto propunha a requalificação e exposições, notadamente agropecuárias, de um dos edifícios (14A) para a instalação

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06515 - 37334001 miolo.indd 33 02/12/11 16:37 Figura 9 da administração do parque, a conversão dos dição (...) vai mostrar o diferencial que o Proposta de Carlos Bratke. Crédito: Carlos Bratke. principais edifícios (7A, 7B e 5) no Museu projeto apresenta nestes moldes, a pos- de Ciência e Tecnologia, bem como dos sibilidade de democratização do acesso Figura 10 Proposta de Paulo Mendes edifícios 9 e 10, que se transformariam no ao desenvolvimento cultural e do lazer da Rocha. Crédito: Henrique Spavieri Museu do Papel e Artes Gráficas. Além des- educativo, valores estes tão ausentes e ses grandes equipamentos culturais, deveria descaracterizados na sociedade brasileira ser implantada infraestrutura destinada à ma- (BARBARA et al., 2004, p. 34). nutenção dos grandes eventos cuja presença estava consolidada: o Salão Internacional do Ainda que não tenha sido executada, Humor, Paixão de Cristo, Festa das Nações esta proposta é importante por consistir e SIMTEC – Simpósio Internacional e numa reflexão ampla e integrada a respeito Mostra de Tecnologia e Energia Canavieira, da ocupação do Engenho Central, dando dentre outros (FANUCCI & FERRAz, relevância à questão da sustentabilidade do 2004, p. 1-3). A fim de garantir a viabili- complexo. Além disso, esta proposta foi o dade e sustentabilidade, tanto na implan- ponto de partida para o desenvolvimento tação quanto na gestão dos equipamentos, do estudo que deu origem ao Novo Teatro foi contratada consultoria para analisar sua do Engenho Central, obra de requalifica- viabilidade econômica. A cargo da Barbara ção do edifício 6, elaborado pelo mesmo Consultoria, o estudo tinha por objetivo escritório Brasil Arquitetura, e cujas obras avaliar e “propor usos que possibilitem um serão concluídas em 2012. Uma análise desenvolvimento sustentável, sem tirar mais detida do Engenho, sua relevância o brilho de seus propósitos originais” que, como patrimônio histórico e, especifica- ainda que não apresentassem a mesma “no- mente, acerca do projeto para o Teatro, é breza” das ocupações previstas por usos cul- apresentada neste livro no artigo “O Rio e turais e educacionais, visavam garantir um a Cidade”, de autoria do arquiteto Marcelo equilíbrio entre as diferentes funções. A de Carvalho Ferraz. proposta da consultoria visava Em 2006 foi desenvolvida nova pro- posta para o complexo do Engenho, de au- uma composição de usos equilibrada e toria do arquiteto Paulo Mendes da Rocha, de certa maneira até ampla, de forma a em associação com o escritório Piratininga estimular a atração de um maior volu- Arquitetos Associados. O estudo foi me de pessoas, propiciando o contato e contratado e doado à municipalidade pela a aproximação com estes equipamentos COSAN, empresa originária de Piracicaba de propósitos tão importantes. Essa con- e que é um dos maiores produtores e ex-

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06515 - 37334001 miolo.indd 34 02/12/11 16:37 A Reconquista das Margens do Rio Piracicaba: uma reconstrução histórica à guisa de introdução 35

06515 - 37334001 miolo.indd 35 02/12/11 16:37 36 Piracicaba, o rio e a cidade: ações de reaproximação

06515 - 37334001 miolo.indd 36 02/12/11 16:37 portadores de açúcar e etanol do mundo. da área. O acordo foi firmado no dia 1º de Figura 11 Proposta da Brasil A proposta previa a implantação de vasta agosto de 2009. Arquitetura. Crédito: Brasil infraestrutura e equipamentos com caráter Com isso tornou-se possível e segu- Arquitetura. regional. Duas novas passarelas de pedes- ro à municipalidade investir e implantar tres conectariam as duas margens, sendo toda uma vasta gama de infraestruturas e implantados alguns equipamentos definidos equipamentos necessários à requalificação. como “estruturadores” do projeto: o novo Em fins de 2007 deu-se início às obras de Restaurante do Mirante, o Grande Teatro reforma do Edifício 14, adaptando-o e dan- (edifícios 05/07), Administração (edifí- do-lhe melhores condições para sediar o cio 14A), Exposições (edifícios 09/10, 14, Salão Internacional do Humor. No começo 14B, 15), Restaurante da Esplanada (ed- do ano seguinte iniciaram-se as obras para ifício 17), Hotel (edifício novo), Centro a urbanização do Engenho Central, com a de Convenções (edifícios 14B e 14C) e execução das redes subterrâneas de infraes- Grande Pavilhão de Exposições (também trutura, bem como do novo pavimento de em nova edificação). blocos intertravados de concreto, de modo Além das edificações, a proposta pre- a garantir alguma permeabilidade ao solo. via uma completa urbanização do Engenho, Outra obra executada nesse momen- propondo-se a execução de infraestrutura to foi a reforma e adaptação do Edifício subterrânea e piso adequado à condição 14A, defronte à Passarela Pênsil, destinado de área de preservação permanente que se às instalações da administração do parque configura na área. A despeito de não terem do Engenho e dotado de estrutura de infor- sido executados o programa ou as edifica- mações e acolhimento, além de um espaço ções previstas nesse projeto, as obras de de exposições, configurando uma recepção infraestrutura e o piso recentemente imple- do visitante do parque. mentados na área obedecem às premissas Encontram-se em curso atualmen- estabelecidas por essa proposta. te as duas ações de maior envergadura já O quadro atual traz grande alento às realizadas no Engenho e que, certamente, esperanças pela requalificação do Engenho. terão um grande impacto em sua requalifi- Muito disso se deve ao fato de a pendência cação, visto que serão as grandes “âncoras” jurídica relativa à desapropriação ter sido de sua transformação num complexo cultu- resolvida, com a formalização de um acordo ral, a saber: o Novo Teatro do Engenho, já entre a Prefeitura e o antigo proprietário, mencionado projeto arquitetônico da Brasil definindo valores e prazo de pagamento, Arquitetura, instalado no Edifício 6 e com o que permitiu a definição da propriedade inauguração prevista para 2012; e o Museu

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06515 - 37334001 miolo.indd 37 02/12/11 16:37 Figura 12 do Açúcar, coordenado pelo Instituto Brasil As conclusões da etapa do diagnósti- Áreas públicas às margens do rio Piracicaba em seu Leitor e com projeto arquitetônico de Pedro co motivaram a constituição de uma equi- trecho central. Elaboração: IPPLAP. Mendes da Rocha, nos Edifícios 5, 7A e 7B. pe técnica, condizente com o tamanho do desafio, e a elaboração do PAE – Plano de Uma abordagem global: o Projeto Ação Estruturador, onde foram definidas as Beira-Rio premissas norteadoras das ações na área, en- focando “a preservação do patrimônio cul- A despeito das inúmeras iniciativas tural, considerado como a integração entre e ações empreendidas ao longo dos anos o natural e o construído” (OTERO et al., para a requalificação da orla do rio, apenas 2007, p. 7). Dentre as premissas estabele- no começo dos anos 2000 foi instituído um cidas pelo Plano de Ação Estruturador, e programa com o intuito de conferir organi- que passaram a orientar as ações públicas às cidade às ações da municipalidade, cons- margens do Piracicaba, estão: a prevalência truindo um processo de longo prazo, tendo do pedestre; o tratamento da margem como como objetivo central a reaproximação do espaço público; a preservação e a valoriza- cidadão ao rio Piracicaba. ção do patrimônio cultural; a manutenção O intitulado Projeto Beira-Rio teve dos usos consolidados; a integração com o início em 2001, com a constituição de uma entorno e a re-vegetação da mata ciliar. comissão multidisciplinar, a fim de subsidiar A fim de proceder à recuperação da a elaboração de um diagnóstico “espacial, vegetação nativa ao longo do rio foi ela- social e cultural destinado a identificar as borado estudo pelo LERF-ESALQ/USP características, problemas e potencialidades – Laboratório de Ecologia e Restauração presentes na relação entre a cidade e o rio” Florestal da Escola Superior de Agricultura (OTERO et al., 2007, p. 5). Luiz de Queiroz, a “Proposta de Adequação Este início foi fundamental ao definir Ambiental e Paisagística de trecho urbano que a qualificação da relação entre a cidade do rio Piracicaba e entorno”, definindo as e o rio extrapola, em muito, o escopo tí- diretrizes e técnicas apropriadas ao plantio mido de um projeto paisagístico, devendo e manejo, e servindo de referência ao proje- comportar uma série de ações integradas, to paisagístico. uma vez que o rio confunde-se com a pró- O PAE dividiu, ainda, a orla urbana pria identidade local. Nas palavras do coor- do Piracicaba em oito trechos com caracte- denador do Diagnóstico, Arlindo Stéfani, a rísticas homogêneas, com diretrizes especí- “cultura está no centro da revitalização do rio” ficas de intervenção, definindo-se o Trecho (STÉFANI, 2001, p. 50). 1/Central – área da orla do rio compreendi-

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06515 - 37334001 miolo.indd 38 02/12/11 16:37 A Reconquista das Margens do Rio Piracicaba: uma reconstrução histórica à guisa de introdução 39

06515 - 37334001 miolo.indd 39 02/12/11 16:37 da entre as pontes do Mirante e do Morato avalia a intervenção desenvolvida pelo – como primeiro foco de intervenção. Em Projeto Beira-Rio à luz de sua adequação aos 2004 o Calçadão da Rua do Porto foi ob- condicionantes ambientais e paisagísticos jeto de uma primeira intervenção para sua presentes em espaços com essas caracterís- requalificação. Entre 2006 e 2009 foram ticas, analisando a requalificação de frentes executadas obras ao longo da Avenida Beira fluviais de acordo com esses determinantes. Rio, até a altura do Largo dos Pescadores. Começaram no ano de 2011 novas inter- O cenário contemporâneo e as venções, dando sequência às obras ao longo perspectivas na requalificação das da Avenida Beira Rio, em direção à pon- margens do Piracicaba te do Mirante, privilegiando o pedestre e o contato físico e visual com as águas do Não é exagerado afirmar que uma re- Piracicaba. O Beira-Rio incorporou-se às lação mais harmoniosa, qualificada e respei- rotinas do poder público, vindo sendo de- tosa já está firmemente estabelecida e con- senvolvido pelo Departamento de Projetos solidada entre a população piracicabana. Especiais do IPPLAP desde 2007. Com isso não se quer dizer que esta relação O Projeto Beira-Rio é objeto de aná- é isenta de problemas ou conflitos, mas sim lise detalhada de três artigos que compõem que aquela dinâmica predatória que predo- este livro: seu processo de desenvolvimen- minou até meados dos anos 1970 já não é to, desde as ações iniciais até a efetivação mais aceitável. das intervenções, é apresentado em arti- A preocupação com as condicionan- go dos arquitetos Renata Leme, Eduardo tes em torno do tema da sustentabilidade Martini e Fábio Rolim, intitulado “A socioambiental fazem parte do vocabulário Piracema do Projeto Beira-Rio”. A impor- corrente da sociedade local. A necessidade tância da recuperação de frentes aquáticas, da recuperação das matas ciliares, a preser- com o propósito da integração dos rios com vação do contato visual e físico com as mar- o tecido urbano é analisada em artigo da gens e as águas do Piracicaba, a luta pelos arquiteta Maria Cecília Gorski intitulado investimentos necessários à despoluição do “Recuperação de Rios Urbanos”, em que a rio, já foram amplamente incorporados pela experiência do Beira-Rio é estudada à luz população da cidade. de outras experiências brasileiras e interna- Por parte do poder público, ações cionais de recuperação de margens de rios. vêm sendo empreendidas no sentido de O artigo “Quando a Cidade Reencontra o garantir a qualificação e valorização dos es- Rio” da arquiteta Sandra Soares de Mello paços públicos às margens do rio. Ao passo

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06515 - 37334001 miolo.indd 40 02/12/11 16:37 que se cumprem dez anos de implementa- móveis, pela implantação de uma pista de ção do Projeto Beira-Rio, com o início das caminhadas e ciclovia num trecho de apro- obras de intervenção ao longo da Avenida ximadamente dois quilômetros. Beira Rio , encontra-se em construção uma Na Região Norte da cidade, uma das nova passarela conectando o Engenho que mais cresceu em termos populacionais ao Central à área da Rua do Porto, garantindo longo dos últimos anos, encontra-se em im- novo acesso aos pedestres e estabelecendo plantação um parque municipal com cerca de um circuito conectando as duas margens e 50 hectares à altura da foz do rio Corumbataí, estes importantes equipamentos aí locali- principal afluente do Piracicaba. zados, além de possibilitar uma nova visual Ao mesmo tempo, empreendem- ao rio. Prevê-se, à altura desse novo acesso -se ações no sentido de tratar a totali- ao Engenho, a requalificação da praça que dade dos esgotos domiciliares do muni- marca simbolicamente o sítio original de cípio, atendendo a um TAC – Termo de fundação da cidade, à margem direita, a im- Ajustamento de Conduta, firmado entre plantação de equipamentos e infraestrutura a Prefeitura Municipal e o Ministério a fim de tornar o bosque aí existente um Público Estadual, cujo horizonte se proje- novo parque público. ta para o ano de 2012. Além dessas ações, outras podem ser Todas essas ações visam, além de ga- observadas ao longo do trecho urbano do rantir condições ambientais mais equilibra- Piracicaba, adotando as mesmas premissas das, promover a qualificação de espaços pú- de reaproximação entre os munícipes e o blicos às margens do Piracicaba, estabele- rio. Ao longo da Avenida Cruzeiro do Sul, cendo uma relação mais harmoniosa entre marginal de baixo tráfego à margem direita a população e o rio, a qual é indissociável optou-se em 2009, em detrimento dos auto- da própria identidade local.

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06515 - 37334001 miolo.indd 41 02/12/11 16:37 Referências Bibliográficas

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42 Piracicaba, o rio e a cidade: ações de reaproximação

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A Reconquista das Margens do Rio Piracicaba: uma reconstrução histórica à guisa de introdução 43

06515 - 37334001 miolo.indd 43 02/12/11 16:37 06515 - 37334001 miolo.indd 44 02/12/11 16:37 Parte 1

Ações de Reaproximação

06515 - 37334001 miolo.indd 45 02/12/11 16:37 06515 - 37334001 miolo.indd 46 02/12/11 16:37 2

O Parque do Mirante

MARCELO CACHIONI

06515 - 37334001 miolo.indd 47 02/12/11 16:37 MARCELO CACHIONI é Arquiteto e Urbanista (1995), Especialista em Patrimônio Arquitetônico (1999), Mestre (2002) pela PUC Campinas e Doutorando pela FAUUSP. É professor universitário e atua na Prefeitura de Piracicaba desde 2003, ocupando o cargo de Diretor do Departamento de Patrimônio Histórico do IPPLAP – Instituto de Pesquisas e Planejamento de Piracicaba desde esse mesmo ano.

06515 - 37334001 miolo.indd 48 02/12/11 16:37 A ocupação do território piracica- A economia agrícola, desde o prin- bano ocorreu em função do seu principal cípio diversificada, mas com predomínio da rio – o Piracicaba. A abundância de sua cana-de-açúcar, evoluiu para a agroindus- água e a espessa vegetação às suas margens trial instalada nas imediações dos rios. atraíram colonizadores em busca de madei- A proximidade da indústria com o ra para fabricar batelões – meio de trans- rio Piracicaba poderia ter trazido apenas a porte fluvial utilizado na época – além da degradação da área ribeirinha, mas a ação fertilidade das terras e a força motriz das dos pioneiros na industrialização piraci- águas para funcionamento de pequenos cabana preservou partes da mata nativa e engenhos de cana. criou praças e parques que foram destinados Antes mesmo de sua fundação oficial ao uso público. o território já era conhecido e frequentado por ser caminho de tropas de monçoeiros e Ocupação territorial de Piracicaba bandeirantes a caminho de Cuiabá. A ocupação definitiva se deu às Assim como a maioria das povoações margens do rio Piracicaba. Primeiramente decorrentes de doação de sesmarias pela na margem direita, onde se ergueu o pri- Coroa Portuguesa, as terras de Piracicaba meiro núcleo urbano e, posteriormente, somente foram ocupadas quando serviram na margem esquerda, sítio definitivo de a algum interesse. As principais justificati- ocupação territorial. vas para povoar oficialmente um local há

06515 - 37334001 miolo.indd 49 02/12/11 16:37 muito já conhecido foram: garantir o ouro Em 1784 foi escolhido e demarcado de Cuiabá e a defesa do Forte de Iguatemi, o local onde seria levantada a nova Matriz, na fronteira com os territórios espanhóis. à margem esquerda do rio Piracicaba, lugar Apesar da determinação do Capitão escolhido para a nova povoação se estabele- General de São Paulo, o Morgado de cer. No ano seguinte foi terminado o deline- Matheus, para fundar a nova povoação em amento da nova povoação de Piracicaba, na outro lugar que fosse mais estrategicamente margem esquerda do rio (GUERRINI, 1970). cercado de rios, o povoador destinado para A Freguesia de Santo Antônio de a função – Antônio Corrêa Barbosa – esco- Piracicaba foi erigida a vila em 10 de agosto lheu outro terreno de sua preferência, onde de 1822 como recompensa ao seu notório fundou o povoado em 1° de agosto de 1767. progresso. No entanto, passou a ter a de- Os dois locais faziam parte da mes- nominação de Vila Nova da Constituição, ma freguesia, mas a paisagem escolhida como homenagem à nova Constituição pelo povoador era muito mais interes- Portuguesa (NEME, 1936). Apesar de ter sante sob vários aspectos: abundante em sido designada nos documentos oficiais materiais naturais, com solo fértil e loca- por Constituição, o povo sempre preferiu o lizado mais próximo da estrada para Itu, nome de origem, Piracicaba (que voltou a reunia mais condições de salubridade. Se denominá-la em 1877). inicialmente desenvolveu-se, ainda que Segundo Perecin (1990), no ano de maneira tímida, como entreposto de de 1836 Constituição já contava com cer- abastecimento de Iguatemi, seu maior ca de 10.291 habitantes, mais 78 enge- crescimento se deu quando da destruição nhos de açúcar e oito fazendas de criação. do Forte. O período seguinte foi caracte- A sua expressiva produção de açúcar e rizado pela instalação de uma bem-suce- aguardente tomava a direção do porto de dida economia agrícola. Santos, buscando os negócios do mercado Em 1774, com pouco mais de 200 internacional. habitantes, Piracicaba foi elevada à condi- A maior parte da sua população urba- ção de Freguesia de Santo Antônio, num na ainda se concentrava na Rua da Praia e período em que uma revolução econômica no largo, atuais Avenida Beira Rio e Largo se dava no Centro-Oeste paulista propor- dos Pescadores, respectivamente, onde se cionada pela expansão da lavoura cana- dava o convívio público. Junto a uma ven- vieira acompanhada da multiplicação dos dinha localizada nessa área, os cavaleiros engenhos e da exportação do açúcar para o e tropeiros provenientes do sertão abaste- Porto de Santos (PERECIN, 1990). ciam-se ou trocavam as suas mercadorias e

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06515 - 37334001 miolo.indd 50 02/12/11 16:37 depois aproveitavam para descansar antes uma Casa de Câmara e Cadeia, um Teatro, de partir para Itu ou Santos. Geralmente, duas pontes, além de quatro pátios e dezes- neste local que na verdade se configura seis ruas alinhadas, sendo oito paralelas e como o primeiro Largo civil da população, oito perpendiculares ao pátio da Matriz. eram ouvidas modinhas de violas, dançava- Agora, na categoria de cidade, -se cateretê ou partia-se para os desafios e as Constituição, que havia perdido os terri- rodas de caruru. Este Largo dos Pescadores tórios referentes a Araraquara e Limeira foi durante muito tempo o verdadeiro co- – reduzindo consideravelmente seu espaço ração da comunidade transladada para a físico – intensificava a produção de café e margem esquerda do rio Piracicaba, dando algodão à medida que a lavoura de cana-de- a entender que os antigos povoadores não -açúcar perdia território. Além disso, o imi- pretendiam sair das proximidades do Salto grante europeu trazia pequenas alterações (PERECIN, 1990). no ‘modus vivendi’ da região e leis contra o Na segunda metade do século XIX tráfico diminuíram o número de escravos e a paisagem rural de Piracicaba apresenta- a porcentagem de negros escravos na popu- va sensíveis modificações. Tendia a dimi- lação (TORRES, 1975). nuição da produção açucareira ao mesmo tempo que aumentava a produção cafeeira Industrialização à beira do Piracicaba e a lavoura algodoeira progredia. A vila não mudou muito na questão agrária entre 1822 A cidade de Piracicaba foi pioneira e 1836, onde persistia o regime de posse no processo de industrialização e na na- de terras devolutas, embora não houvesse vegação fluvial, em São Paulo, mas aguar- mais concessão de sesmarias, sendo que em dou por certo tempo a ferrovia. À medida 1836 já não havia mais terras devolutas no que a produção agrícola de Constituição município de Vila Nova da Constituição crescia, a população também se desenvol- (TORRES, 1975). via, especialmente quando da intensifica- Em vista do seu relativo desenvol- ção das correntes migratórias. Os suíços e vimento, a Vila Nova da Constituição foi alemães foram os primeiros, sendo que os elevada à categoria de cidade com o mesmo suíços montaram a primeira casa indus- nome, por lei provincial de 24 de abril de trial de Piracicaba: a Krähenbühl, à beira 1856. Desenvolvimento este que não ex- do córrego Itapeva. Consequentemente, cluía problemas de toda a ordem, mas que outras empresas surgiram e começaram a apresentava uma pequena cidade equipa- configurar um aspecto industrial na cidade. da com quatro Igrejas ou capelas católicas, Geralmente próximas aos mananciais, que

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06515 - 37334001 miolo.indd 51 02/12/11 16:37 Figura 1 Acima: Engenho Central; nº 1: Empresa Hidráulica; nº 2: Usina Elétrica; nº 3: Fábrica de Tecidos Santa Francisca. In: (RAVACHE, 1916).

Figura 2 Planta do Parque do Barão de Rezende em 1916.

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06515 - 37334001 miolo.indd 52 02/12/11 16:37 eram o Itapeva e o Piracicaba, quase forma- sua residência, concentrando seus esforços (1) Em 7 de outubro de (1) vam fileiras industriais na Rua do Porto. em torno da montagem desta . 1897 a Santa Francisca foi vendida para o Banco A primeira companhia de navegação Em frente à fábrica de tecidos, foi ins- da República do Brasil. Em 1902, os bens foram a atuar em São Paulo – a Companhia de talado o terceiro grande estabelecimento in- comprados por Rodolpho Miranda e passou a se Navegação Fluvial Paulista – sob a orien- dustrial de Piracicaba – o Engenho Central, denominar Fábrica de Tecidos Arethusina. Em tação do senador Francisco Antônio de numa época em que a economia agrária 1912 a Fábrica foi vendida para a Sociedade Anônima Souza Queiroz, João Luiz Germano Bruhns estava cada vez mais ligada à industrializa- Manufactora Piracicabana e em 18 de março de 1918 e Joaquim Soares Franco tinha o objeti- ção. Foi fundado em 1881 pelo Dr. Estevão passou a pertencer aos irmãos Boyes e Cia, socie- vo de explorar a navegação comercial a Ribeiro de Souza Rezende, futuro Barão de dade composta pelos irmãos Herbert James Singleton vapor dos rios Piracicaba e Tietê, no tre- Rezende, na Fazenda São Pedro. O comple- Boyes e Alfred Simeon Boyes (GUERRINI, 2010). cho do Piracicaba ao Porto da Colônia de xo industrial deveria processar toneladas de (2) No ano de 1907 foi Avanhandava (MONTEIRO, 1997). cana-de-açúcar com muito mais rapidez que fundada a sociedade anô- nima ‘Societé de Sucrerie A Fábrica de Tecidos Santa Francisca os artesanais engenhos movidos à força de Brèsilliennes’, com a presi- dência de Maurice Allain, foi a segunda grande casa industrial de mula, dando conta de uma enorme produção o qual a presidiu até 1932, sendo sucedido por Pierre Piracicaba, fundada em 1873 e movida pela que seria alimentado por canas compradas de Allain. Com os franceses, passou a ser a maior empresa força hidráulica do rio Piracicaba na anti- pequenos e grandes fornecedores. Em função do estado em produção e a mais importante do país, ga Fazenda Engenho d’Água que, adquirida das más condições do mercado e pela insufici- quando da incorporação à ‘Societé de Sucrerie pelo Barão de Limeira, após sua morte foi ência de matéria-prima, o Engenho Central Brèsilliennes’ que compreen- dia seis usinas, com produção passada por herança ao seu filho, Luiz de estagnou e sem alcançar maior sucesso, o anual de 100 mil sacas de açúcar e três milhões de Queiroz. O primeiro passo para a instalação Barão de Rezende se decidiu pela venda em litros de álcool. No entanto a partir da década de 1950, a da fábrica foi o pedido de concessão para 1899 para três franceses: Durocher, Fernand concorrência do açúcar dos outros países latino-america- montar uma usina de força no rio Piracicaba. Doré e Maurice Allain, passando à denomi- nos privilegiados pelos EUA no mercado internacional, a Em 1874, começaram as obras, com o lan- nação “Sucrèrie de Piracicaba”(2). dificuldade de manutenção das peças importadas, e de çamento da pedra fundamental. O empre- Consta também, anterior a 1887, mão-de-obra especializada fizeram a produção decair sário importou o maquinário da Inglaterra, a existência de três fábricas de cerve- em todos os engenhos centrais, transformando-os técnicos especializados da Bélgica e o cons- ja em Piracicaba, localizadas próximo em usinas. Os engenhos menores também ofereciam trutor da Inglaterra. Como não havia cultu- ao Salto. As fábricas pertenciam a Jacob concorrência por serem mais numerosos e de mais ra de algodão disponível, passou a plantar Wagner, Sachs & Filhos e Manoel Barbosa fácil manejo. O processo de urbanização da Vila Rezende e comprar de outros pequenos produtores, Gomes e os proprietários tinham acordo no decorrer do século XX também impossibilitou de os quais ele incentivou a produzir (KIEHL, de preço único a 18$000 por cem garrafas certa forma o funcionamento do processo operacional. Em 1976; GUERRINI, 2010). (GUERRINI, 2010). Todavia, estas são as 1970 a usina foi vendida para a empresa ‘Usinas Brasileiras Após a decisão de fundar a Escola únicas informações que possuímos sobre es- de Açúcar’, de propriedade de José Adolpho da Silva Agrícola, na fazenda São João da Montanha, sas empresas, cujos edifícios que as abriga- Gordo, tendo funciona- do até 1974, data de sua Luiz de Queiroz resolveu vender a Fábrica e ram já desapareceram. desativação.

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06515 - 37334001 miolo.indd 53 02/12/11 16:37 Os industriais pioneiros que se esta- Por sobre essa parede de pedras pendem beleceram nas margens do rio Piracicaba parreiras, samambaias e vegetação nati- (Figura 1) destinaram parte de suas terras va. Daquele lado, tem-se uma visão me- para a configuração de praças-parque na lhor da cachoeira e a vista da cidade e virada entre os séculos XIX e XX, as quais das colinas ao fundo é muito interessan- tinham como objetivo atividades de la- te. Abaixo da cachoeira, onde os barcos zer para a população, além da contempla- atracam as águas são tão calmas que se ção da natureza exuberante daquela área pode ver as colinas e o céu refletidos em próxima ao Salto – a Praça Ermelinda sua superfície. O salto tem tanta potência Ottoni (Boyes), os Parques Sachs, Barão de que tem sido utilizado para movimentar Rezende e do Mirante. uma tecelagem(3). Essa indústria tem um A área ribeirinha, no início da indus- gerente inglês e emprega muitos homens, trialização de Piracicaba, com a vista para mulheres e jovens. Algodão pesado de o Salto, encantou a missionária americana boa qualidade é produzido aqui. Um en- Martha Watts: genho de açúcar está sendo construído bem em frente à tecelagem(4) (WATTS, Toda a paisagem nas proximidades é mui- 24/09/1881 In MESQUITA, 2001). to bela, especialmente próximo ao rio. O salto do rio é lindo. Um pouco acima da cidade começa a correnteza e quando ela Os Jardins públicos na margem se aproxima das rochas as águas correm esquerda mais rapidamente e então se precipitam e rugem furiosamente quebrando-se em es- Na área central de Piracicaba, além puma à medida que vai encontrando seu da esplanada da Matriz que configurou na caminho sobre as rochas e entre as elas. época três praças, alguns largos se formaram Há uma ilha bem no meio do rio, um belo naturalmente: como o Largo do Gavião, local para se apreciar a natureza. Quando devido ao declive do terreno; o da Fábrica se está na ilha você fica fascinado, olhan- (Santa Francisca; Boyes), pela proximidade do a água espalhar-se pelas fendas das pe- com a própria fábrica e outros acabaram se dras aqui, ali, por toda a parte. As águas configurando por conta dos edifícios impor- (3) A Fábrica de Tecidos Santa Francisca, de Luiz de parecem desdenhar todo e qualquer obs- tantes que lhes faziam vizinhança: o Largo Queiroz. táculo a sua frente. Do outro lado do rio do Mercado, os dois Largos da Ituana (1° (4) Era o Engenho Central que se estava construindo há uma parede natural de pedras como se e 2° Estações), e da Igreja São Benedito. pelo Barão de Rezende. mãos habilidosas as tivessem empilhado. Houve casos, como os Parques Sachs, Barão

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06515 - 37334001 miolo.indd 54 02/12/11 16:37 de Rezende e Mirante, que foram construí- o ensombram, e pela confusão de sons que Figura 3 Trecho do Parque Barão de dos para tanto, pela iniciativa privada. se esecuta da fabrica e do salto, da indus- Rezende em 1911. O primeiro passeio público de tria e da natureza (CAMARGO, 1899). Piracicaba, não constituído em adro ou largo de edifício oficial, remonta à data de 1878, Na continuidade do passeio de André quando André Sachs requereu à Câmara Sachs, o Barão de Rezende abriu mão de par- Municipal o aforamento de “umas ilhas logo te de suas terras na margem esquerda do rio abaixo da ponte sobre o rio Piracicaba”, as e criou uma grande praça arborizada, com quais desejava aformosear, “afim de propor- desenho bem cuidado de passeios e can- cionar mais um agradável passeio ao públi- teiros, com coreto e bancos para descanso. co desta cidade”. Sachs pediu mais autoriza- Apesar de a foto (Figura 3) expor um jardim ção “para levantar um kiosque nas margens muito bem cuidado, com canteiros aparados do rio Piracicaba, entre este rio e a beirada “à Francesa”, Camargo (1899) descreve a que vai da dita ponte à fábrica de tecidos praça como: “largo da Ponte.Acha-se este do sr. Queiroz”. Surgia assim, um dos locais situado entre o rio e as ruas da Palma, Nova, mais apreciados pelos habitantes da cidade, e do Rosário. Não tem de notavel, sinão o entre o final do século XIX e começo do sé- tamanho. É o segundo depois do Cemitério” culo XX, principalmente para passeios nos (CAMARGO, 1899). domingos à tarde. Possivelmente a área es- tava próxima à cervejaria da família Sachs (GUERRINI, 1970). Próximo a este espaço e junto à tece- lagem, Luiz de Queiroz destinou uma área para a formação de uma praça/bosque – a atual Praça Ermelinda Ottoni, mais conhe- cida como Praça da Boyes. Camargo (1899) descreveu esse passeio no “Almanak de Piracicaba para 1900” como

Largo da Fabrica. – Entre o canal desta e a rua Luiz de Queiroz, e por outra parte, entre as ruas do Salto e Treze de Maio. É baixo, sem grande tracto, entretanto é lo- gar agradavel pelas frondosas árvores que

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06515 - 37334001 miolo.indd 55 02/12/11 16:37 Muitos desses espaços públicos aca- serão colocados junto ao marco, em um baram sendo considerados pelas adminis- cilindro, para que fique guardado para a trações municipais como espaços de vazio posteridade, e segundo os organizadores da urbano. Como estavam em áreas centrais, promoção, ‘será para mostrar às gerações foram usados para edificações e perde- futuras a preocupação da cidade de hoje, ram seu caráter original. Por exemplo: o com relação ao futuro do rio Piracicaba’ bosque do Barão de Serra Negra foi des- (JP, 1º de agosto de 1979). matado e o espaço transformado em es- tádio esportivo, na década de 1960. Na Na praça foi instalado um marco pelo mesma década, o Largo do Rosário (São Lions Clube com a seguinte inscrição: Benedito) foi transformado num Centro Cívico onde foram construídos novos edi- Este marco representa o protesto de um fícios para Prefeitura, Câmara Municipal povo em defesa de um bem que, dado por e Fórum. No início da década de 1970, Deus, foi conspurcado pelos homens: o em parte da área do tradicional Parque do Rio Piracicaba! É o protesto contra: a Barão de Rezende, foi construído o edifí- Ineficiência e incompetência dos órgãos cio que serviria como hospital, no entanto saneadores e fiscalizadores; a apatia dos um hotel foi instalado; e anos mais tarde governos; a ganância do poder econô- a área remanescente recebeu a construção mico; aqueles que, de uma forma ou de da Escola “Mimi Fagundes” e ainda recen- outra, contribuem para poluir o meio temente, a nova Biblioteca Municipal, ambiente. 01/08/1979. inaugurada em 2010. Piracicaba perdeu áreas verdes e públicas de qualidade no O marco desapareceu há alguns anos, centro da cidade em nome do progresso e o destino dos documentos nele depositado (CACHIONI, 2002). é desconhecido. Uma fatia remanescente desta área foi batizada de “Praça do Protesto O Mirante Ecológico”. No dia 1º de agosto de 1979 foi A primeira informação sobre o inaugurada a Praça do Protesto Ecológico, Mirante foi registrada no Diário da Princesa na nova praça rotatória da ponte do mi- Isabel em 1884, no qual se refere a uma visita rante, onde foi erigido um marco de már- ao quiosque no Salto, passeio o qual gostou more, que registrará o acontecimento. muito (MOURA, 1998. p.238). Em 1886 o Diversos documentos e jornais da cidade local do parque foi citado pela primeira vez

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06515 - 37334001 miolo.indd 56 02/12/11 16:37 na Câmara Municipal, quando foi determi- pécie de torre. Uma escada à direita e pe- nado que a margem do rio fosse roçada de- los fundos levava os visitantes ao nível in- vendo ser mantidas somente as árvores de ferior. Embaixo do alpendre aberto, onde grande porte, para oferecerem boa sombra. estava uma espécie de observatório, havia Tal quiosque, o antigo mirante do Salto, o outro fechado por uma arcada, que fazia Barão de Rezende mandou construir em suas frente para uma escadaria irregular acom- terras para usufruto de sua família. Em 1890 panhando o relevo do terreno e chegava sua área conhecida como ‘parque belvedere’ à beira do rio Piracicaba abaixo do Salto, ou ‘passeio do salto’ foi desapropriada pela onde começavam as primeiras ondas, com Câmara, sendo que já era franqueada ao pú- fortes evaporações. blico pelo Barão de Rezende. Segundo Vitti (1988) o Mirante des- Remodelado com mais um pavimen- de o início era considerado um dos orgulhos to, entre 1906 e 1907, por Carlos zanotta de Piracicaba, havendo esforços para sua (Figuras 4 e 5), o Parque do Mirante, cuja conservação. Na ata de uma sessão realiza- área compreendia o trecho da margem di- da na Câmara Municipal a 21 de janeiro de reita da Ponte do Mirante ao Engenho 1929, sob a presidência de Coriolano Ferraz Central, era acessado pela Avenida dos do Amaral, o Mirante foi o tema de uma das Bambus (atual Maurice Allain) e por uma principais indicações do dia: entrada no meio de sua extensão. O canal do Engenho que percorria É um dos mais aprazíveis logradouros pú- o parque era ultrapassado por uma ponte blicos de Piracicaba, constitui o ponto assoalhada. A edificação com um belve- obrigatório de visita dos forasteiros que dere integrado apresentava aspectos do vem a esta cidade, e nesse passeio pú- Neoclássico, com arcada, pináculos nas blico o caminho principal é constituído extremidades da platibanda e janelas em pela banqueta da margem esquerda do arco pleno. No nível térreo, havia um al- canal do Engenho Central. Assim sendo, pendre com cobertura de folha de flandres a estabilidade da referida banqueta inte- importada da Europa, composta de duas ressa não somente à Municipalidade, no águas nas extremidades e quatro águas no tocante à conservação de um dos mais meio, formando uma pirâmide sustentada notáveis elementos do patrimônio esté- por finas colunas metálicas. Anexa, uma tico da cidade, mas também é da máxima sala que servia como depósito, que com- importância para o Engenho Central, a posta com a do pavimento inferior, onde que serve a água do canal como elemen- foi aberto um barzinho, formavam uma es- to motor de seus maquinismos.

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06515 - 37334001 miolo.indd 57 02/12/11 16:37 Figura 4 Antigo Mirante do Salto. Postal do início do século XX. Crédito: Acervo PMP

Figura 5 Antigo Mirante do Salto em 1958. Crédito: Manuel Lopez Alarcon/Acervo IHGP

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06515 - 37334001 miolo.indd 58 02/12/11 16:37 O autor conta que ficou decidido o e o belvedere, resultando em pagamento por início urgente de obras para a conservação do parte da Prefeitura (PROVÍNCIA, 07 a 13 Mirante uma vez que no ano anterior, a gerên- de outubro de 1988, p.9). cia do Engenho Central já se disponibilizara a Na revista publicada pela Prefeitura cobrir as despesas “de todo o caminho prin- Municipal em 1959 – “PIRACICABA: cipal, alterando o nível e pavimentando com Município de Maior Progresso do Brasil”, lajes de pedra para evitar o transbordamento de propaganda do Governo Guidotti, o do canal” (VITTI in: A PROVÍNCIA, 02 a Salto e o antigo Mirante são citados como 08 de setembro de 1988). local de passeio. Vitti reforça que outros cuidados eram necessários, como evitar o desmoro- O SALTO é um dos mais belos recan- namento de grandes massas de terras que tos da “Noiva da Colina”. Ponto obri- poderiam ocorrer em épocas de chuva: gatório de visitação para aqueles que “Obriga desta forma a obras urgentes de vem conhecer a cidade. O rumorejar reparação imediata e de proteção ao canal das águas dispersando sobre as pedras, para limitar o prejuízo, o que será em bene- o bucolismo da paisagem, tudo enfim fício do Patrimônio Público e do Engenho contribui para fazer do ‘Mirante’ e do Central” (VITTI in: A PROVÍNCIA, 02 a Salto locais de recreação e turismo. 08 de setembro de 1988). Infelizmente, até o momento, a natu- Entre as décadas de 1910 e 1930 os reza não recebeu muito auxílio da mão piracicabanos passaram a frequentar o local do homem, já que, a rigor, o único me- para realização de “convescotes” (piqueni- lhoramento do local é o “Mirante”, de ques) e para caminhadas ao longo dos passeios construção antiguíssima. De qualquer à direita, até ao canal do “Véu da Noiva”. “Era forma, porém, vale a pena um passeio ao também muito comum, pessoas que vinham salto, localizado há 100 metros da ponte de outras cidades, organizarem piqueniques: que une o centro da cidade ao populoso chegavam, à ‘Estação da Paulista’, apanha- bairro de Vila Rezende (PMP, 1959). vam o bonde até o centro e daqui se utiliza- vam da Vila Rezende. Ao regresso agiam de No ano seguinte, na Revista ‘Mirante’ igual maneira” (A PROVÍNCIA, 07 a 13 de de julho de 1960, temos a informação sobre outubro de 1988, p.9). demolição do antigo Mirante, destacado na Anos mais tarde, em 1941, no Governo publicação oficial acima reproduzida: “Este José Vizioli, houve uma Ação de Posse de mirante já pertence ao passado. Foi famo- parte do terreno do “Mirante”, entre a ponte so, fez história, mas agora cedeu o seu lugar

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06515 - 37334001 miolo.indd 59 02/12/11 16:37 Figura 6 Passeio do Mirante recém- construído em 1962. Crédito: Arquivo PMP.

Figura 7 Novo Parque do Mirante recém-construído em 1962. Crédito: Arquivo PMP

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06515 - 37334001 miolo.indd 60 02/12/11 16:38 a outro mais moderno que virá. Assim é a construída uma fonte artística e todo o vida...” (MIRANTE, 1960). logradouro e a própria cachoeira deve- O motivo da demolição do tradicio- rão receber iluminação adequada, a gás nal Mirante foi o projeto do novo Parque do néon e lâmpadas fluorescentes. (...) A Mirante, de concepção moderna, pelo en- nova entrada do logradouro, que será genheiro agrônomo Odilo Graner Mortatti, construída no local onde existiam as com vários níveis de passeios. A principal velhas casas do Engenho Central, for- manchete do Jornal de Piracicaba em 1º de mará um grande largo ajardinado com maio de 1960 trazia informações sobre as disposições para estacionamento de ve- obras do parque, já iniciadas: ículos, tendo ao centro, sobre pedestal de granito e em grande porte, a figura Quem visitar hoje o Salto pouco verá do em bronze de um índio guarani(6), que que antes ali existia. Os barrancos desnu- dominou os territórios de Piracicaba, dos, os caminhos esburacados pela erosão, empunhando uma lança, em atitude a expressão de abandono, tudo desapa- característica de um índio (JP, receu, nos preparativos para o plano que 1º de maio de 1960). transformará aquele logradouro em uma visão esplendente. (...) Os passeios, alar- Sua inauguração ocorreu na gestão gados e nivelados, serão revestidos de mo- do prefeito Salgot Castillon, no dia 1° de saico português(5), com desenhos caracte- agosto de 1962, aniversário de Piracicaba, rísticos. Escadas, gradis, bancos e pérgulas, com a presença do então governador de feitio artístico, embelezarão os trechos Carvalho Pinto, a despeito das obras ain- apropriados. No local do antigo ‘Mirante’ da não haverem sido concluídas. Neste será construído um largo patamar, avança- dia foi inaugurada a iluminação do bosque do sobre o rio, por cima do grande canal e do Mirante e a programação contou com dominando o famoso ‘Tombador’. Ao lado, quatro grupos de músicos e cantores pira- também sobre as suas águas apoiado em pi- cicabanos, distribuídos em vários pontos lotis plantados nas margens e uma pequena do bosque, compondo assim o fundo mu- ilha ali existente, será erguido belo prédio, sical da festa de inauguração: (5) Na execução o mosaico de paredes de vidro, com instalações para português foi substituído pelas placas cimentícias. restaurante e salão de bailes, além de largas Foi feita a remodelação completa do (6) A estátua não foi reali- varandas deitando para a imponente ca- belo e querido recanto à margem do zada e teria sido um erro, pois o povo indígena que habita- choeira. No local da ‘biquinha’, existente Salto. As obras encontram-se em fase va o território piracicabano era o Paiaguá. na base do enorme barranco do rio, será de conclusão. Centenas de metros

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06515 - 37334001 miolo.indd 61 02/12/11 16:38 Figura 8 Planta do Parque do Mirante em sua atual configuração. Elaboração: IPPLAP.

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06515 - 37334001 miolo.indd 62 02/12/11 16:38 quadrados de gradis e de concreto e mu- a cidade oferece aos seus visitantes. (...) ros de arrimo de pedra foram construídos. Constitui uma verdadeira atração turísti- Alamedas e caminhos pavimentados com ca o fato da cidade de Piracicaba ter um lajes de concreto, avenida de acesso asfal- rio com um salto que a corta quase pela tada, com as calçadas pavimentadas em metade. Mas a mão do homem também mosaico português, fonte luminosa e pér- contribuiu no embelezamento do local, gulas; recuperação completa do bosque, construindo espaçosos passeios, artistica- protegendo-o da erosão; ajardinamento mente arborizados e muito bem ilumina- e plantio de novas árvores: construção dos à noite, oferecendo atraente acesso de arrojadas plataformas; mirante de con- ao Mirante” (Álbum Piracicaba, 1963). creto sobre o rio; moderno restaurante em balanço sobre a cachoeira; mais de Em 1968 Piracicaba foi incluída no 300 focos de luz mista de mercúrio, etc. plano turístico do Estado de São Paulo, num conjunto de extraordinária beleza, graças às suas belezas naturais. Além de di- que desperta a admiração de todos os que vulgação por meio de cartazes e folhetos, a visitam e que envaidece o piracicabano Secretaria de Cultura, Esportes e Turismo tão amante de seu lendário Salto. O lo- autorizou a Phillips do Brasil a iluminar o gradouro foi ampliado com grande área Salto de Piracicaba com 90 projetores para de terreno, desapropriado do Engenho a iluminação a cores à longa distância. Central” (JP, 1º de agosto de 1962, p.1). Havia também um projeto para instalação de um bondinho, que não foi implantado No “Álbum Piracicaba – Progresso (JP, 15 de agosto de 1968, p.3). da Paulista!”, publicação oficial de 1963, o A concepção modernista de projeto prefeito Alberto Coury destacou o Parque do Parque fica evidente na praça com co- do Mirante como uma das atrações de bertura em “ameba” e espelho d’água além Piracicaba: dos espaços que foram destinados ao res- taurante. O funcionamento do restaurante Para melhor apreciar a importância do com vista para o Salto inclusive contribuiu salto do rio Piracicaba, a municipalida- para atrair maior número de turistas ao de construiu a seu lado um mirante (...). Mirante; no entanto sua localização no iní- Debaixo deste terraço localiza-se um res- cio do parque deixou de ser um incentivo às taurante que serve peixe e outros pratos caminhadas e à frequência das outras áreas característicos da região. Este é um dos do parque, onde anteriormente as famílias recantos mais pitorescos e aprazíveis que faziam seus piqueniques.

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06515 - 37334001 miolo.indd 63 02/12/11 16:38 Figura 9 Mural de Mosaico da História da Cidade, Clemência Pizzigatti. Crédito: Marcelo Cachioni

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06515 - 37334001 miolo.indd 64 02/12/11 16:38 Para Vitti (1988) o Mirante e o Pizzigatti (1935-2005), auxiliada por nove es- Engenho Central, pela proximidade, fun- tudantes de Artes Plásticas da UNIMEP, PUC cionavam praticamente ligados, até a desa- Campinas e E. E. ‘Melo Moraes’. Construído tivação deste último. Depois disso, passou com 52 tipos de pedras (vindas também de a ser uma das grandes reivindicações da Goiás e ) sobre fundo monolíti- cidade que o (Parque do) Mirante fosse re- co, o Mural do Mirante simboliza, no seu lado formado (VITTI in: A PROVÍNCIA, 02 a esquerdo a Piracicaba antiga com o Capitão 08 de setembro de 1988). O canal, a partir Antonio Corrêa Barbosa, a Casa do Povoador da desativação do Engenho Central entre e um Batalhão da Guerra do Paraguai. No 1970/71, foi inteiramente abandonado pe- centro está caracterizada a “Noiva da Colina” las administrações municipais e os serviços com o rio Piracicaba, e o lado direito simboli- de manutenção. As comportas abandonadas za a cidade moderna com signos da indústria davam vazão a um volume de água superior à canavieira, comércio e a lavoura. A figura da capacidade do canal que, aliado ao acúmulo cana-de-açúcar está presente em todo o mural de entulho e detritos, causavam a obstrução (KANNI, 2002). do canal e a inundação do parque no período Anteriormente um ponto de en- de cheias, provocando erosão, fazendo com contro para passeios e piqueniques das que árvores caíssem no canal e no passeio. famílias piracicabanas e também de tu- Na administração Herrmann Netto ristas por várias décadas, na década de foi desenvolvido um programa conhecido 1980 o parque deixou de ser um atrativo. como PEP – Programa de Embelezamento Com problemas relacionados à falta de de Piracicaba, liderado pela primeira dama conservação e considerado um local “mal Maria Cláudia Ranzani Herrmann, no qual frequentado”, o parque passou a ser visto foi contratada a equipe da arquiteta Esther como perigoso para a realização de pas- Gudfreund Stiller para instalar luminárias seios, pelo risco de assaltos. em todos os setores do parque “realçando A abertura do Parque do Engenho as belezas naturais de toda a área”. Também Central em 1989 passou a atrair a popula- previa a reforma da parte da vegetação e re- ção interessada no lazer às margens do Rio paros na fonte (JP, 21 de março de 1980). Piracicaba, substituindo o Parque do Mirante Como parte dos projetos do PEP, em no gosto popular, de certa forma mantendo a setembro de 1978, ao lado direito da entrada área da margem direita como local de passeio principal, foi entregue o mural de mosaico com e lazer para moradores e turistas. 36m de comprimento e 4m de largura de auto- Neste mesmo ano de 1989 a Prefeitura ria da artista plástica piracicabana Clemência decidiu promover obras de infraestrutura no

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06515 - 37334001 miolo.indd 65 02/12/11 16:38 canal do Parque, com base num laudo do 2005, juntamente com a recuperação de IPT – Instituto de Pesquisas Tecnológicas sanitários, balaustrada e passeios, além do do Estado de São Paulo. Após vistoria técni- melhoramento na iluminação, instalação ca realizada em 1987 para avaliar as condi- de câmeras de vigilância e sinalização trou- ções de estabilidade geológico-geotécnicas, xe melhorias no aspecto geral do parque, constatou-se que o excessivo volume de reconquistando, aos poucos, os visitantes. água e o estado precário do canal adutor, Após a desativação do restaurante entre outros fatores, colocavam em risco a na área primitiva do parque a Prefeitura de- estabilidade do parque. cidiu destinar o espaço para o uso público, Em 1989 foram iniciadas as obras instalando o NEA – Núcleo de Educação com levantamento técnico das condições Ambiental da SEDEMA – Secretaria de reais da estrutura do parque e acompanha- Defesa do Meio Ambiente e o Núcleo de mento técnico, as quais foram paralisadas Apoio Técnico ao Turismo da SETUR – por uma ação judicial promovida por am- Secretaria de Turismo. Pretende-se instalar bientalistas temerários quanto a eventuais um Aquário naquela área com finalidade riscos que as obras poderiam causar ao par- turístico-pedagógica, e se planeja estabe- que(7). As obras foram concluídas apenas em lecer uma interligação entre os Parques do maio de 1992 com reforma no calçamento, Mirante e Engenho Central, uma iniciativa peitoris, pintura e nova iluminação, além que poderá restabelecer a integridade origi- de novos sanitários e gradeamento. No en- nal da área. tanto as obras do canal ainda estavam para- O Parque teve seu reconhecimen- das esperando ordem judicial para que fos- to oficial como Patrimônio Cultural de sem terminadas. Nesta ocasião o mural de Piracicaba por meio do Decreto Municipal mosaico foi recuperado pela própria autora 10.020, de 13 de setembro de 2002, 20 anos e uma guarita da guarda civil foi construída após a abertura do processo de tombamen- na entrada do parque. Apenas em 1994 as to pelo Conselho de Defesa do Patrimônio obras do canal, que consistiram na drena- Cultural de Piracicaba. Sua preservação gem, impermeabilização e construção de para as gerações futuras não se garante ape- uma estrutura para evitar desmoronamen- nas por força da lei, mas pela garantia de sua tos e erosões, foram retomadas. função social, ou seja, deve ter garantido o (7) Na mesma época houve a intenção de se construir um A baixa frequência aliada ao grade- uso cotidiano por parte da população aten- hotel na área privada lin- deira ao parque entre a Av. amento acabou por provocar maior degra- dendo às demandas de lazer e turismo além Maurice Allain e a Travessa Maria Maniero, também dação do parque. A retirada das grades em da preservação ambiental. interrompida pela ação dos ambientalistas.

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06515 - 37334001 miolo.indd 66 02/12/11 16:38 Referências Bibliográficas

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06515 - 37334001 miolo.indd 67 02/12/11 16:38 06515 - 37334001 miolo.indd 68 02/12/11 16:38 3

Parque da Rua do Porto e Área de Lazer do Trabalhador: gênese da reaproximação com o rio

ESTEVAM VANALE OTERO SABRINA RODRIGUES BOLOGNA ARLET MARIA DE ALMEIDA

06515 - 37334001 miolo.indd 69 02/12/11 16:38 estevaM vaNale otero é Arquiteto e Urbanista (2002) e mestre (2009) pela FAUUSP. É professor universitário e atua na Prefeitura de Piracicaba desde 2003, ocupando o cargo de Diretor de Projetos Especiais do IPPLAP – Instituto de Pesquisas e Planejamento de Piracicaba desde esse mesmo ano.

saBrINa rodrIgUes BologNa é Jornalista (2001) pela UNIMEP. Atua na Prefeitura de Piracicaba desde 2002.

arlet MarIa de alMeIda é Engenheira Florestal (1973) pela ESALQ/USP. Atuou na Prefeitura de Piracicaba entre 1976 e 1979 e entre 1985 e 2010.

06515 - 37334001 miolo.indd 70 02/12/11 16:38 O potencial paisagístico, turístico e A área onde hoje se localiza o Parque para o lazer do rio Piracicaba e de sua orla da Rua do Porto, pela sua própria condi- sempre foi reconhecido, mas não foi de todo ção geográfica, apresenta uma condição aproveitado até o fim do século XX, care- inadequada à urbanização. O vale do rio cendo de ações efetivas para dotá-lo de uma Piracicaba, a essa altura, abre-se numa área necessária infraestrutura. A única exceção relativamente plana, conformando uma am- era o Parque do Mirante, que desde fins do pla várzea, ocupada pelas águas do rio quan- século XIX constituía um espaço único para do de seus recorrentes transbordamentos. a contemplação do salto. Talvez nisso resida o motivo para que O crescimento da cidade, associado à o local, apesar de constituir um dos primei- consequente carência de espaços esportivos ros pontos de ocupação do território do mu- e de lazer, acabou fazendo com que os olha- nicípio desde o período colonial, tenha per- res se voltassem à grande área desocupada manecido praticamente sem urbanização na várzea do rio, próxima ao centro, para a até a segunda metade do século XX. A ci- constituição de um grande parque público. O dade, cujo marco de fundação encontra-se primeiro Plano Diretor da Cidade, elaborado não muito distante daí, expandiu-se se afas- pelo arquiteto Joaquim Guedes em 1974, já tando desse sítio, ficando essa área relegada previa utilizar as áreas desocupadas na orla à ocupação por pescadores de subsistência, para a constituição de um “sistema de lazer e oleiros, ex-escravos, dentre outros repre- áreas abertas” (GUEDES, 1974, p. 111). sentantes das classes populares, habitantes

06515 - 37334001 miolo.indd 71 02/12/11 16:38 Figura 1 de uma região relativamente desvalorizada rio Piracicaba desde 1929, [... ficando] todas Olaria Elias Cecílio, à altura da atual Casa do Artesão. do tecido urbano. as casas da Rua do Porto, a partir do Clube Crédito: Acervo IHGP. Nessa região encontravam-se instala- de Regatas [...] parcial ou totalmente sub- Figura 2 das algumas olarias, que se aproveitavam da mersas” (JP, 20 de janeiro de 1970). Os de- Olaria da família Nehring, a partir da margem oposta. condição de planície aluvial para a extração sabrigados foram alojados provisoriamente Em primeiro plano, o prédio onde atualmente está da argila necessária ao fabrico de tijolos e no Ginásio Municipal de Esportes, restrin- instalado o Casarão do telhas cerâmicas. gindo-se a “apenas” 47 famílias moradoras Turismo. Crédito: Acervo Família Nehring. Lindeiras à barranca do rio Piracicaba da Rua do Porto e Avenida Beira Rio, tota- alinhavam-se pequenas casas, geminadas, lizando 236 pessoas (JP, 24 de fevereiro de ocupadas tanto por pescadores que tiravam 1970). Caso já houvesse sido implantado o seu sustento das águas do rio quanto por loteamento o número de desabrigados seria, funcionários das olarias(1). evidentemente, muitíssimo mais elevado. Em 1965 deu entrada na Prefeitura um As condições impróprias à urbaniza- grande projeto de urbanização para essa área ção tornavam esta uma área de despejo. Até (1) As antigas casas em ren- desocupada existente entre o centro e a vár- princípios dos anos 1970 a área se prestava, que da área que faziam frente para a Rua do Porto abrigam, zea do rio. A proposta previa a urbanização de ainda, a ser depósito de entulho de constru- atualmente, os restaurantes e bares ali instalados, além de aproximadamente 105 hectares contíguos às ção e areia de fundição. Escombros do edifício poucos pescadores que ainda residem e pescam aí. Dentre olarias, num total de 1.575 novos lotes. O lo- Comurba(2), ruído em 1964, foram removidos os remanescentes das antigas olarias que ainda podem teamento denominado “Chácara Nazareth”, para o local no começo daquela década. ser observados no local destacam-se as três chaminés, de propriedade de João Pacheco e Chaves, e que passaram por projeto de restauro pelo Projeto foi aprovado pela Prefeitura Municipal em Desapropriação e (re)apropriação Beira-Rio (ver Capítulo 4: A Piracema do Projeto 18 de dezembro de 1967. Parte significativa Beira-Rio), bem como o atual Casarão do Turismo, desses novos lotes estava localizada justamen- Em virtude da evidente incompatibili- posto da SETUR – Secretaria de Turismo na área, e que é te nas áreas ocupadas pelo leito maior do rio dade entre a situação de várzea daquele sítio a antiga sede da Olaria do Porto. Piracicaba, e que por isso haviam permaneci- e sua urbanização, aliada às suas condições (2) O edifício Luiz de do desocupadas até então. naturais que lhe conferiam um grande po- Queiroz, mais conhecido por COMURBA, foi edificado na No ano de 1970 deu-se uma das tencial para o lazer e o turismo, usos que já praça José Bonifácio, centro de Piracicaba, no começo da maiores enchentes do rio Piracicaba, cujo se desenvolviam em outros pontos ao longo década de 1960. Consistia num edifício de 15 andares, transbordamento levou à inundação de do rio Piracicaba, foi elaborada a proposta de de uso misto, com residên- cias, comércios, serviços grande parte da área em que se previa a im- desapropriação da área para a implantação de e um cinema com 1.300 poltronas, já parcialmente plantação desses lotes residenciais, demons- um grande parque público, atendendo a uma concluído e em funciona- mento em 06 de novembro trando a inadequação da região à ocupação demanda não só local como também regional. de 1964, dia em que o prédio ruiu, vitimando imediata- urbana. Segundo o Jornal de Piracicaba da- A partir de 1972 a municipalidade em- mente 19 pessoas (ELIAS NETTO, 2000, p.276-7). quele ano, tratou-se da “maior enchente do preendeu um grande levantamento do local, a

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06515 - 37334001 miolo.indd 73 02/12/11 16:38 74 Piracicaba, o rio e a cidade: ações de reaproximação

06515 - 37334001 miolo.indd 74 02/12/11 16:38 fim de subsidiar o decreto de desapropriação e mente, pontos de atração dos inúmeros Figura 3 Foto aérea com a incorporação ao patrimônio público de cerca visitantes que recebe a Noiva da Colina sobreposição do perímetro do loteamento de 230 mil m². O levantamento, a cargo da (JP, 16 de junho de 1973) “Chácara Nazareth” COSU – Coordenadoria de Obras e Serviços aprovado em 1967 (em amarelo), indicadas em Urbanos, apontava alguns indicativos de uso, Ainda assim, o decreto não dá pis- hachuras brancas as áreas públicas definidas mas não chegava a traçar uma proposta de tas sobre quais seriam essas intervenções no projeto aprovado. A linha contínua branca ocupação para a área. O minucioso levanta- viárias, de urbanização ou saneamento. identifica o perímetro da área a ser desapropriada mento subsidiou o decreto de utilidade pú- Para levar a cabo a intervenção foi de- segundo o Decreto blica para a desapropriação da área (Decreto senvolvido projeto urbanístico a cargo Municipal 1.552/73 e, em linha tracejada branca, Municipal 1.552, de 25 de maio de 1973). Ao do arquiteto Manoel de Carvalho, sob a área efetivamente desapropriada. Elaboração: longo da década de 1970 o decreto de desa- demanda da Prefeitura. Sua contratação IPPLAP. propriação ainda seria retificado diversas ve- se deu pouco mais de um mês após o de- zes(3), excluindo do perímetro original pratica- creto de desapropriação, uma vez que a mente a totalidade dos imóveis já edificados, primeira menção à elaboração do estudo mas apropriando-se das imensas áreas vazias surge na imprensa local no início de ju- que existiam no local. lho, onde se lê que o enfoque do projeto Nesse decreto justificou-se a desapro- será a transformação da Rua do Porto em priação com o fim de realizar obras de “am- “recanto turístico”. Para tanto, os “planos pliação de logradouros, execução de planos de embelezamento” deveriam prever uma de urbanização e construção de obras públi- ampla gama de equipamentos, com a im- cas e de saneamento” (Art. 1º). A iniciati- plantação de lago, aquários, restaurantes va do poder público municipal foi saudada e lanchonetes, museu e teatro de arena pela imprensa local, de cujo texto podemos entre outros; o casario, preservado, de- inferir que se tratava de ação há muito de- veria ser convertido em “vila típica para batida (e acalentada) pela sociedade local: turistas, com casas de ‘souvenirs’” (JP, 08 de julho de 1973). Há muito tempo comenta-se a necessi- Pouquíssimos detalhes restaram dessa dade da declaração de utilidade pública proposta, limitada a registros na imprensa (3) O decreto Municipal 1.552/1973 foi alterado e/ou da rua do Porto e boa parte da área ad- local. Em 10 de novembro daquele ano foi retificado pelos seguintes de- cretos posteriores: 2.789/79, jacente, com a finalidade do aproveita- registrado que a municipalidade já tinha em 2.838/79, 2.839/79, 2.840/79, 2.841/79, 2.856/79, 2.857/79, mento do potencial turístico oferecido mãos o projeto. Em março do ano seguinte 2.858/79, 2.859/79, 2.860/79, 2.861/79, 2.872/79, 2.927/80, pela bucólica e tradicional via pública a proposta foi apresentada publicamente, a 2.935/80, 2.936/80, 2.937/80, 2.938/80, 2.951/80, 2.952/80, ribeirinha, com todos seus logradouros e qual contava com maquete das interven- 3.713/83, 4.265/86, 4.485/87, 4.486/87, 4.487/87, 4.488/87, paisagens pictóricas, que são, inegavel- ções a serem realizadas. 4.694/88 e 7.942/98.

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06515 - 37334001 miolo.indd 75 02/12/11 16:38 O estudo previa a implantação de um Mudança de paradigma: a conquista grande parque público, onde seria instala- da margem ao pedestre do teleférico destinado a conectar a área ao Parque do Mirante, à margem oposta do rio. A proposta do arquiteto Manoel de Um “trenzinho” percorreria os equipamen- Carvalho, especialmente seu enfoque rodo- tos da área, lanchonetes e sanitários. Previa- viarista, passou a ser amplamente questionada. se um grande complexo de equipamentos es- O projeto jamais chegou a ser implantado, a portivos, nos moldes do existente no Aterro despeito das previsões de início das obras, e a do Flamengo, no Rio de Janeiro. Seria im- área, já totalmente desapropriada, permane- plantado um “parque florestal, [...com] vi- ceu desocupada até a segunda metade da dé- veiro de plantas, centro cultural, comercial, cada, quando se tornou objeto de novo estudo. discotecas, restaurantes e outros melhora- Desenvolvido e oferecido à Prefei- mentos” (JP, 08 de março de1974). Previa- tura pelo grupo de arquitetos piracicabanos se, ainda, a implantação de um kartódromo Dulcinéia Gobeth, Luiz Egídio Simoni e no local, próximo à cabeceira da Ponte do Luiz Gobeth Filho em 1977, a proposta “O Morato, aproximadamente onde hoje está Parque do Piracicaba” estabeleceu novas di- implantada a Área de Lazer do Trabalhador. retrizes para toda a área a partir de uma outra O ponto central da proposta, con- relação desejada entre a população piracica- tudo, residia na reformulação do sistema bana e o rio. A proposta surgiu, justamente, viário da área e sua articulação com o res- de uma reflexão alternativa àquele projeto tante da cidade. Previa-se a implantação do começo da década, partindo de uma con- de uma nova via, dando prosseguimento à cepção que procurava uma conexão entre a Avenida Beira Rio, marginal implantada cidade e a orla do rio, em lugar daquela que na década de 1960 ao longo da margem es- privilegiava a circulação rodoviária. Mais do querda. Se executada esta proposta, esta- que um plano detalhado de intervenções, a ria configurada uma grande via marginal, proposta buscava definir as vocações para as conectando a citada avenida à Estrada do áreas localizadas à beira-rio. Bongue, que se configuraria numa impor- Este foi o primeiro estudo a considerar a tante via estrutural do município, conso- orla do rio como um sistema de áreas públicas, lidando a ruptura com o rio e sua margem. para o qual se deveria instituir diretrizes de in- Paradoxalmente, a implantação desse gi- tervenção para políticas de longo prazo. Para gantesco parque poderia ter definido uma isso dividia a orla urbana do rio Piracicaba, barreira definitiva a uma melhor relação metodologicamente, em sete setores distin- entre a cidade e seu rio. tos, entre as pontes do Morato, à jusante,

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06515 - 37334001 miolo.indd 76 02/12/11 16:38 e do Lar dos Velhinhos, à montante, cada vias marginais ao leito de rios e córregos. Esta qual com propostas adequadas às suas condi- se tornou diretriz fundamental ao projeto, ções e características específicas: I – Casa do ao alterar a própria lógica das intervenções Povoador; II – Rua do Porto; III – Mirante; viárias que a municipalidade vinha imple- IV – Engenho; V – (onde se lo- mentando ao longo das décadas anteriores caliza, atualmente, o Shopping Piracicaba); (GOBETH et al., 1977, p.6). VI – Clube de Campo; e VII – Ilhas (apro- Estas diretrizes genéricas definidas para ximadamente o atual Museu da Água e seu toda a orla urbana do rio foram desenvolvi- entorno) (GOBETH et al., 1977, p.8). das de forma mais detalhada para o Setor II A proposta estabelecia uma série de – Rua do Porto, resultando num estudo de diretrizes básicas, correspondendo tanto às intervenção destinado à implantação de um caraterísticas quanto às demandas identifica- grande complexo cultural, esportivo e de la- das para cada um dos setores. Devido ao seu zer em toda a área. O projeto para este setor perfil definido como “predominantemente fundamentava-se nas seguintes premissas: urbano”, foram propostos para o novo par- que uma série de equipamentos, de modo Afastamento de marginal para a criação do a “assegurar seu uso efetivo”. Esses equipa- espaço contínuo do parque; conservação e mentos deveriam responder a duas escalas de restauração do casario existente para pre- atendimento: os moradores do entorno (para servação das tradições histórico-culturais os quais se propunham pavilhões comunitá- do ambiente peculiar da rua do Porto, atri- rios, playgrounds, passeios para pedestres e buindo-lhe novas funções; manutenção do ciclistas) e a população da cidade com um lago em execução; criação de um sistema todo (dispondo de anfiteatro, equipamentos de circulação exclusivo para pedestres e esportivos, locais para piquenique, pesquei- ciclistas; formação de bosques; e estaciona- ros, conjuntos culturais, dentre outros). mento ao longo de toda a marginal propos- Propunha-se, ainda, a implantação de ta (GOBETH et al., 1977, p.11). um paisagismo arbóreo, resultando na cons- tituição de bosques a partir do plantio de Para seu detalhamento, o Setor II – espécies adequadas, obedecendo “a critérios Rua do Porto foi subdividido em seis áreas de ordem técnica, estética e cultural”, assim distintas, cada qual dotada de características como se previa a necessidade de repensar o próprias e que, por isso, deveriam ser objeto “modelo de intervenção” ao longo dos cur- de soluções diferenciadas. O referido setor sos d’água e afluentes. Para tanto, o projeto compreendia, grosso modo, o perímetro ob- propunha alterar a lógica de implantação de jeto da desapropriação no início da década.

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06515 - 37334001 miolo.indd 77 02/12/11 16:38 Figura 4 Projeto “O Parque do Piracicaba” – Setorização da área. Crédito: GOBETH et al., 1977.

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06515 - 37334001 miolo.indd 78 02/12/11 16:38 Para a Área 1, que pode ser vista na do sem, contudo, uma utilização ou aproveita- Figura 5, identificava-se uma vocação dire- mento específico. Para a Área 6 propunha-se cionada ao lazer e ao turismo, notadamente a implantação de equipamentos comerciais e o gastronômico; a proposta para essa área culturais com características urbanas, devido conferia-lhe um caráter de parque urbano, à configuração original do local, integrada ao valendo-se de grande parte do casario exis- tecido urbano consolidado e mais próxima tente para a implantação de equipamentos do centro da cidade; esta área não chegou a e infraestrutura de suporte ao conjunto. A ser desapropriada, uma vez que o decreto de proposta para a Área 2 comportava uma sé- desapropriação foi posteriormente retificado rie de equipamentos esportivos. e grande parte dos imóveis aí localizados per- As duas áreas correspondem, respecti- maneceram propriedades particulares. vamente, aos atuais Parque da Rua do Porto e De fundamental importância para Área de Lazer do Trabalhador, tendo obedeci- o conjunto da proposta foi a diretriz de do, de maneira geral, às premissas estabeleci- afastamento da via marginal, permitindo a das para esses locais àquela época. As outras circulação de pedestres entre o parque e a quatro áreas que faziam parte desse setor ti- margem do rio ao eliminar o obstáculo que veram desenvolvimentos diferentes das pre- representaria uma via de tráfego rápido à li- missas que o projeto apresentava. Para a Área gação entre estes dois espaços. 3, correspondente à encosta do morro do Seguindo essa diretriz foi aberta, no Castelinho, propunha-se a implantação de um fim dos anos 1970, a Rua Antonio Correa bosque, além de anfiteatro, restaurante e mi- Barbosa, estabelecendo a ligação entre a rante; nesse local observa-se, atualmente, uma Estrada do Bongue e a região oeste da Cidade arborização ainda não totalmente implantada, ao Centro, afastando-se definitivamente da além de uma creche municipal e o IPASP – margem ao ser implantada a cerca de 300 Instituto de Previdência e Assistência Social metros de distância do rio Piracicaba. Isto al- dos Funcionários Municipais de Piracicaba. terou por completo a lógica viária deste tre- Para a Área 4 previa-se a manutenção de uma cho da cidade, ao relegar a um segundo pla- grande esplanada livre para a instalação de no a Avenida Beira Rio que, com isso, per- estruturas e eventos temporários; nessa área deu seu caráter estrutural e ficou para sempre encontra-se implantado atualmente o Centro restrita à função de via local, uma verdadeira Cívico. Na Área 5 previa-se o aproveitamen- “via parque”, que se prestava mais à contem- to da mata existente para a implantação de plação da área e acesso aos equipamentos um viveiro de espécies nativas, com caráter turísticos e gastronômicos que aos grandes educativo; esse bosque manteve-se preserva- deslocamentos intraurbanos.

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06515 - 37334001 miolo.indd 79 02/12/11 16:38 Figura 5 Projeto “O Parque do Piracicaba” – Proposta para o Setor II – Rua do Porto. Crédito: GOBETH et al., 1977.

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06515 - 37334001 miolo.indd 80 02/12/11 16:38 Além da via, à mesma época, foi im- cal. Como se pode ver nas Figuras 9 e 10, a plantada a Área de Lazer do Trabalhador, área ainda carecia de uma infraestrutura ne- conjunto de equipamentos esportivos inau- cessária a seu pleno funcionamento. Além gurados em 22 de setembro de 1978. Com disso, a realização de uma exposição agro- aproximadamente 150 mil m² gramados e pecuária no local em princípios dos anos arborizados, o novo parque contava com 1980 acabou por comprometer boa parte do quatro quadras poliesportivas, campo de fu- paisagismo já implantado. tebol e vestiários e sanitários públicos. Com Até meados da década de 1980 a área isso dotou-se a área do primeiro parque à ainda não havia se firmado como destino margem esquerda do Piracicaba, em área de esporte e lazer da sociedade piracicaba- alagadiça até então utilizada como depósito na. Em parte, devido à própria condição de entulhos e areia de fundição. de desconexão com o Centro – apesar de Na área do atual Parque da Rua do sua proximidade –, em parte pelo fato de Porto foi dada forma ao atual lago, com a es- não haver aí uma infraestrutura condizen- cavação e composição de suas margens com te com as necessidades de um parque urba- a configuração que até hoje ali se observa. no. Permaneciam o complexo esportivo da Um primeiro plantio de espécies arbóreas va- Área de Lazer do Trabalhador, o lago e o riadas também foi realizado a essa época. O novo sistema viário, tão fundamental na es- prefeito responsável por estas intervenções truturação de todo aquele trecho. que acabaram por condicionar a configura- ção de todo esse trecho da cidade até os dias A segunda implantação de hoje, João Herrmann Neto, atualmente batiza o Parque da Rua do Porto. Em fins da década de 1980 um fato Contudo, a despeito da veiculação veio alterar completamente a relação des- pela imprensa local de que eram iminen- sa região com o restante da cidade, e defi- tes as obras para a constituição do “Parque niu a ocupação e consolidação da área. A Turístico da Rua do Porto” (JP, 25 de junho essa época foi definida a transferência do de 1978, p.2), a consolidação desse trecho conjunto do Poder Executivo municipal como um dos mais importantes parques do para esse local, dentro da área desapropria- município ainda precisaria de mais tempo da pelo Decreto de Utilidade Pública de para ocorrer. A despeito dessas ações sig- 1973. O projeto ficou a cargo do escritório nificativas, mas incipientes, ainda não se PROPLASA – Projetos e Planejamento poderia considerar a implantação e confor- S.A., coordenado pelo arquiteto e professor mação completa de uma área de lazer no lo- da FAUUSP Geraldo Gomes Serra. A pro-

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06515 - 37334001 miolo.indd 81 02/12/11 16:38 Figuras 6, 7 e 8 Ilustrações da proposta para a área da Rua do Porto, apresentadas no Projeto “O Parque do Piracicaba”. Crédito: GOBETH et al., 1977.

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06515 - 37334001 miolo.indd 82 02/12/11 16:39 posta previa a construção de um edifício de turado por longos períodos do ano, a definição 14 andares no local, a fim de concentrar as das espécies adequadas à sua arborização foi diversas secretarias municipais que à época um grande desafio. Especialmente devido ao estavam espalhadas por vários edifícios na fato de haver um mercado restrito com relação área central da cidade(4) . à oferta de espécies que atendessem essas con- Além do prédio do Centro Cívico, o dições, em termos tanto de variedade quanto projeto também detalhou proposta urbanís- de quantidade (e qualidade). Para essa espe- tica e paisagística para um parque público cificação contou-se com o valioso auxílio do na área compreendida entre a Rua Antonio professor Dr. Eduardo Luis Martins Catharino, Correa Barbosa e a Rua do Porto. do Instituto de Botânica de São Paulo. Previu-se e executou-se a eliminação Compunham a proposta, também, do tráfego de veículos pela Rua do Porto com um anfiteatro ao ar livre, espelho d’água e a implantação de um calçadão no local, privi- brinquedos infantis, além de sanitários pú- legiando os pedestres e o acesso visual e físico blicos e uma iluminação específica de todo à barranca do rio. Foi realizada a recuperação o conjunto. O projeto ainda propunha, no da Avenida Alidor Pecorari, com a implan- ponto mais alto do terreno, uma lanchone- tação de diversos bolsões de estacionamento. te que seria um mirante para o parque e o Esses fatos acabaram por consolidar a voca- vale do rio Piracicaba(5). ção gastronômica da área, que viu multiplicar As obras foram realizadas ao longo do o número de bares e restaurantes, atividade ano de 1988, dando origem ao atual Parque que teve início com a inauguração, em 1969, da Rua do Porto, representando a atual do histórico Restaurante Arapuca, no local configuração desse que é o mais importante ocupado pelo antigo Armazém Pecorari, de parque urbano da cidade. propriedade da família de mesmo nome. No início de 1989, devido a diver- Para a área compreendida entre a gências acerca de a qual setor da Prefeitura Avenida Alidor Pecorari e a Rua Antonio caberia a responsabilidade por sua adminis- (4) O Centro Cívico Correa Barbosa, foi projetado um parque pú- tração (à Secretaria de Turismo ou à extinta encontra-se implantado em área definida como Sistema blico de aproximadamente 250 mil m², tendo Secretaria de Serviços Públicos), o recém- de Lazer do Loteamento Chácara Nazareth, aprovado por elemento central o lago já existente na -implantado parque foi fechado e deixou de em 1967. área. Uma série de pistas de caminhada per- receber manutenção. Parte importante das (5) No prédio originalmen- te previsto para o funciona- corria todo o parque, em meio a um bosque espécies arbóreas que ali tinham sido plan- mento da lanchonete/miran- te encontram-se instalados, conformado pelo plantio de diversas espécies tadas chegou a ser perdida. atualmente, o SEMPEM – Serviço Municipal de arbóreas. Devido às condições do sítio, suscetí- Outra questão fundamental, que ali- Perícias Médicas e o SASS – Serviço de Assistência Social vel a inundações recorrentes, e tendo o solo sa- mentou o impasse com relação à abertura ao Servidor.

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06515 - 37334001 miolo.indd 83 02/12/11 16:39 Figura 9 Parque da Rua do Porto; à direita, Avenida Alidor Pecorari. Crédito: Sinval Sarto, março de 1982.

Figura 10 Parque da Rua do Porto, a partir da encosta do Castelinho; em primeiro plano, rotatória da Avenida Dr. Paulo de Moraes. Crédito: Sinval Sarto, março de 1982.

Figura 11 Área de Lazer do Trabalhador. Crédito: Sinval Sarto, março de 1982.

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06515 - 37334001 miolo.indd 84 02/12/11 16:39 do parque, dizia respeito às divergências rogeneidade dos públicos que os frequentam, de concepção acerca do caráter da área. como já previsto na proposta “O Parque do Essas divergências advinham do conflito Piracicaba” (GOBETH et al., 1977, p.6). entre aqueles que compreendiam o espa- Em 1991 foi construída pista de ska- ço como um parque urbano, e aqueles que te na Área de Lazer do Trabalhador, reco- enxergavam na área apenas a condição de nhecida à época como uma das melhores e APP – área de preservação permanente, mais completas do país, garantindo ao es- independente de seu contexto histórico e paço público cativo: os amantes de esportes urbano. Estes defendiam que a área deveria radicais. No ano de 2010 foi realizada uma ser objeto de uma intervenção com caráter intervenção no espaço para sua atualização eminentemente “ambiental”, recompondo e ampliação, com a remodelação da pista. a vegetação nativa por meio de seu com- Uniram-se aos skatistas, os ciclistas. pleto reflorestamento e isolamento. Além de acolher a primeira pista de Felizmente, a defesa do caráter de skate da cidade, a área abriga, ainda, a prá- parque urbano para a área acabou prevale- tica do gateball, esporte praticado, sobre- cendo e o local consolidou-se como o mais tudo, pela comunidade nipo-brasileira, que importante espaço esportivo e de lazer para representa importante colônia na cidade. a população piracicabana(6). No Parque da Rua do Porto as atua- lizações ocorreram em maior número. Na As intervenções contemporâneas e última década o parque recebeu diversas os usos que se consagraram intervenções, sempre com o fito de ampliar as possibilidades de utilização e apropriação (6) É bastante presente o A implantação do complexo represen- de seus espaços. Desde 2006 o parque vem conflito entre as perspectivas ambientais e urbanas em in- tado pela Área de Lazer do Trabalhador e o recebendo equipamentos, levando em con- tervenções voltadas à requa- lificação de frentes aquáticas. Parque da Rua do Porto é, até hoje, um pro- sideração a heterogeneidade do público fre- Com vistas a estabelecer uma abordagem integrada entre as cesso em construção, devido à transformação quentador do espaço e a diversidade de usos. funções ambientais e urbanas desempenhadas pelos corpos das formas como a população piracicabana Ao longo do tempo foram realizadas d’água, Sandra Mello indica que o grau de proteção destes vem se apropriando e interagindo com esses correções e melhorias no paisagismo, com está diretamente relacionado ao valor que lhes atribui a espaços. A partir das concepções delineadas um progressivo enriquecimento arbóreo por população, sendo resultado do grau de urbanidade do nos anos 1970, esses parques passaram por meio de sucessivos plantios. Bosques foram trecho, decorrente das possibilidades de interação inúmeras intervenções, inclusive recentes, conformados e novas espécies foram im- que as pessoas estabelecem com o meio. Nesse sentido, para atualizá-los e garantir que correspondes- plantadas, adequadas às condições do local. o isolamento não garantiria – podendo mesmo preju- sem às necessidades e expectativas contempo- Em 2006 foi construída uma gara- dicar – a preservação do corpo d’água e suas margens râneas, exigindo respostas contínuas à hete- gem de barcos contígua ao lago, destinada (MELLO, 2008).

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06515 - 37334001 miolo.indd 85 02/12/11 16:39 Figuras 12, 13 e 14 Parque da Rua do Porto em obras, 1988. Crédito: José Flávio Leão.

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06515 - 37334001 miolo.indd 86 02/12/11 16:39 a abrigar os barcos dos praticantes de remo fundamentais para a própria definição de uma e canoagem da cidade. O lago do Parque identidade da cidade e de sua área central. é o local de treinamento da equipe local, Hoje, é impossível desvincular a imagem do onde são ministradas, ainda, aulas abertas município desse imenso parque que acompa- e gratuitas aos interessados nessa prática nha todo o trecho urbano do rio Piracicaba, esportiva pela ASCAPI – Associação de sobretudo quando cruza o centro da cidade. Canoagem de Piracicaba. Este complexo é resultado de um Com vistas a atingir variados públicos longo processo, amadurecido no decorrer e suas diferentes demandas, foram realizadas de décadas, e cuja origem remonta às ini- ações específicas. Foi implantado um grande ciativas de apropriação pelo poder público equipamento destinado à recreação infantil, do extenso território localizado à margem congregando diversos brinquedos bastante esquerda a partir do início dos anos 1970. concorridos, especialmente aos fins de sema- O complexo turístico, esportivo e de na. Para o público da 3ª idade foram cons- lazer representado pelo Parque da Rua do truídos equipamentos de ginástica em uma Porto e pela Área de Lazer do Trabalhador, academia ao ar livre. A pista de caminhada e que hoje é indissociável da própria identi- foi totalmente refeita, sendo bastante utiliza- dade local, é resultado e, ao mesmo tempo, da todos os dias da semana pelos adeptos desse o ponto de partida desse processo. Ali teve esporte e da corrida. O caráter de espaço privi- início a reconquista da orla do rio. Dali a legiado para a prática esportiva ainda pode ser cidade partiu para recobrar os espaços que observado nas diversas atividades desenvol- o “progresso” havia lhe tomado, e que hoje vidas periodicamente, caso das aulas de ioga, são tão caros à população piracicabana. alongamento e ginástica localizada. Outros Não poderemos jamais saber qual espaços do parque também receberam melho- seria a configuração dessa extensa orla se ramentos, como o lago, que passou a contar aquelas inciativas de 1973 não houvessem com pedalinhos aos fins de semana e feriados. ocorrido, se os esforços de longos 15 anos para a implantação do parque tivessem sido Considerações finais em vão. Só podemos, para nosso próprio bem, especular que, muito provavelmente, As ações empreendidas pela muni- os espaços públicos generosos e de alta qua- cipalidade no sentido de se reapropriar das lidade que hoje temos nesse trecho se te- margens urbanas do Piracicaba, convertendo riam amesquinhado grandemente. E a ima- áreas anteriormente degradadas e abandona- gem que Piracicaba tem de si e que projeta das em espaços públicos qualificados, foram para fora, igualmente, se amesquinharia.

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06515 - 37334001 miolo.indd 87 02/12/11 16:39 Figura 15 Vista área do Parque da Rua do Porto, 2011. Crédito: Justino Lucente.

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06515 - 37334001 miolo.indd 88 02/12/11 16:39 Referências Bibliográficas

COSU – Coordenadoria de Obras e Serviços ______“Rua do Porto Urbanos. “Área Declarada de Utilidade declarada de utilidade pública”. 16 de Pública, Rua do Porto”. Piracicaba: junho de 1973, página 01. COSU/PMP, 1972. Mimeo. ______“Cidade vê maior ELIAS NETTO, Cecílio. “Almanaque 2000: enchente”. 24 de fevereiro de 1970, Memorial de Piracicaba – século XX”. página 04. Piracicaba: IHGP; JP; UNIMEP, 2000. ______“É a maior enchen- GOBETH, Dulcinéia; GOBETH FILHO, Luiz; te: poderá ser a última”. 20 de janeiro de SIMONI, Luiz Egídio. “O Parque do 1970, página 01. Piracicaba”. Piracicaba, 1977. MELLO, Sandra Soares de. “Na Beira do Rio GUEDES, Joaquim (Coord.). “Plano de tem uma Cidade: urbanidade e valoriza- Desenvolvimento Urbano de Piracicaba ção dos corpos d’água”. Brasília: Tese de – Volume 1”. Piracicaba: PMP, 1974. doutorado, PPG/FAU-UnB, 2008. JORNAL DE PIRACICABA. “Rua do Porto PIRACICABA. “Decreto Municipal 1.552, começa a ser transformada em uma de 25 de maio de 1973 – Declaração de grande área de lazer”. 25 de junho de Utilidade Pública para desapropriação 1978, página 02. amigável ou judicial, imóveis destinados ______“Maquete mostra à ampliação de logradouros, execução a futura rua do Porto”. 08 de março de de planos de urbanização e construção 1974, página 02. de obras públicas e de saneamento”. ______“Urbanização da PMP. “Piracicaba: passado e presente”. Rua do Porto e Plano Viário: Projetos já Piracicaba: PMP, 1988. estão com o Prefeito”. 10 de novembro PROPLASA – Projetos e Planejamento S.A. de 1973, página 01. “Projeto de Paisagismo da Rua do ______“Ante-projeto para Porto”. Piracicaba, 1987. embelezamento da Rua do Porto”. 08 de julho de 1973, página 03.

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06515 - 37334001 miolo.indd 89 02/12/11 16:39 06515 - 37334001 miolo.indd 90 02/12/11 16:39 4

O rio e a cidade

MARCELO CARVALHO FERRAz

06515 - 37334001 miolo.indd 91 02/12/11 16:39 MarCelo Carvalho Ferraz é arquiteto, formado pela FAU USP (1978). Sócio fundador do escritório Brasil Arquitetura (1979), com vários projetos premiados no Brasil e no exterior. Dentre eles destacam-se: o Bairro Amarelo, em Berlim, Alemanha, o Museu Rodin Bahia, em Salvador, BA, a Villa Isabella, em Hanko, Finlândia e o Museu do Pão, em Ilópolis, RS. Foi colaborador de Lina Bo Bardi de 1977 a 1992. Lecionou na ‘Washington University in Saint Louis’, EUA, como professor convidado. Publicou em 1992 o livro Arquitetura Rural na Serra da Mantiqueira, em 2005, o livro Brasil Arquitetura – Francisco Fanucci e Marcelo Ferraz, e acaba de lançar o livro Arquitetura Conversável, uma coletânea de artigos e entrevistas.

06515 - 37334001 miolo.indd 92 02/12/11 16:39 São poucas as cidades brasileiras que te divulgado. E nossas cidades, via de regra, conservam uma relação saudável com seus para absorver todo esse contingente de no- rios. Piracicaba é uma delas. Pequena, mé- vos moradores vindos da zona rural, não to- dia ou grande, toda cidade – e são mais de maram os menores cuidados com seus rios. cinco mil – possui seu rio, ribeirão, córre- Para crescer, poluíram as águas; sufocaram go, açude ou lagoa. A escolha de um sítio os rios transformando-os ora em canais fe- para qualquer assentamento humano, desde chados com vazão limitada, ora em esgotos a pré-história, sempre se deu em função da a céu aberto ou carreadores de lixo; elimi- existência da água nas proximidades, e aqui naram as várzeas – piscinões naturais regu- não foi diferente. No Brasil, a ocupação do ladores das cheias; construíram vias auto- território contou fundamentalmente com motivas marginais ou mesmo sobre os rios; as vias hídricas como meio de penetração enfim, trataram um de nossos mais precio- e conquista de novas terras. Mas, com o sos bens – a água – como matéria descartá- passar do tempo, voltamos nossas costas vel e de segunda importância, como se fosse para os rios, relegando-os a meros canais de inesgotável. Não é preciso dar exemplos de serviço sujo. Com o acelerado crescimen- desgraças ou desastres advindos dessa pos- to urbano, sobretudo nas últimas décadas, tura, já que quase todos os cerca de cinco o que vimos foi a degradação dessa relação. mil municípios têm o seu. Parece uma regra: Temos hoje 84% de nossa população viven- desenvolvimento urbano com preservação do em cidades, segundo censo recentemen- dos rios é uma equação impossível.

06515 - 37334001 miolo.indd 93 02/12/11 16:39 Figura 1 Piracicaba público para pedestres. Outros fatores que Imagem aérea onde se destaca o Complexo do contribuíram decisivamente para a libera- Engenho Central à margem direita do rio Piracicaba, Mas como disse no início, existem ção de áreas marginais do Rio Piracicaba incluindo o Parque as exceções. Voltemos a Piracicaba. Apesar foram eminentemente político/administra- do Mirante e bosque. Elaboração: IPPLAP. da água poluída – o que é possível reverter tivos. Muitas áreas ribeirinhas foram com- com alguma facilidade –, o Rio Piracicaba pradas pelo poder público para instalação corta o centro da cidade com boas áreas de de parques de lazer, como a Área de Lazer respiro, respeito e reserva pública em suas do Trabalhador e o Parque da Rua do Porto, margens, o que dá a possibilidade de se de- ou para atividades turístico-gastronômicas, senvolver algo exemplar no que toca a vida como a Rua do Porto. Nesse processo a opi- e o conforto urbanos. Exemplar, pelo menos nião pública foi despertada pela atuação po- em nosso país, uma vez que existem inúme- lítica de muitos agentes governamentais ou ros casos brilhantes de desenvolvimento ur- da própria sociedade civil e passou a defen- bano com a integração das áreas ribeirinhas der esse tesouro que corta a cidade em seu mundo afora. Olhando para trás podemos coração e empresta seu nome a ela. Um rio dizer que muitos fatores contribuíram para a que não mais divide terras, mas une pessoas. preservação das margens do Rio Piracicaba, deixando-as livres da ocupação urbana er- As ações rônea – legal ou ilegal –, como ocorre em muitos casos. Alguns desses fatores são con- A criação e implantação do chama- tingenciais ou históricos, como é o caso do do Projeto Beira-Rio foi um primeiro passo Engenho Central. Uma antiga indústria de para a consolidação de um uso que já era açúcar e álcool já desativada, instalada às tradicional: o encontro para o peixe assado margens do rio e ocupando uma grande área, regado a cerveja, a conversa solta, crianças é desapropriada pelo poder público e pas- brincando, tudo embalado pelo murmu- sa a ser parte da vida dos habitantes como rinho das águas do Piracicaba. Foi a ins- principal centro de lazer e cultura. Ou seja, titucionalização (no bom sentido) do uso não fosse toda a história da decadência, fa- tradicional. Com a liberação de parte da lência e abandono do Engenho, seguida de margem ribeirinha aos pedestres, bares, res- apropriação pública, seria impossível, nos taurantes e pistas para caminhadas, servidas dias de hoje, ter uma área ribeirinha livre de bolsões de estacionamentos, a cidade se tão grande e confortável como esta. Muito equipou de algo absolutamente necessá- provavelmente estaria ocupada por cons- rio na vida urbana agitada de nossos dias. truções quaisquer ou autopistas, sem uso Ganhou áreas para o lazer e para a ocupa-

94 Piracicaba, o rio e a cidade: ações de reaproximação

06515 - 37334001 miolo.indd 94 02/12/11 16:39 O rio e a cidade 95

06515 - 37334001 miolo.indd 95 02/12/11 16:39 ção do tempo livre dos moradores, carência ção de açúcar e álcool que vigorou entre maior de nossas cidades. meados do século XIX a meados do século XX. Cem anos, portanto, de vida produti- A geografia va, transformação e adaptação tecnológica até cair em desuso e ser fechado, superado O Engenho Central está implantado por novos artefatos industriais. De seu ma- na margem direita do Rio Piracicaba. Tem quinário nada, ou quase nada restou. Mas ao seu fundo uma belíssima mata preservada suas inúmeras e variadas construções – seu que se conecta longitudinalmente ao Parque “casco histórico” como dizem os espanhóis do Mirante e, à sua frente, do outro lado do – estão lá, e em bom estado de conservação rio, está o centro urbano da cidade. Seus vo- de modo geral. E o mais importante desse lumes avermelhados em tijolo aparente ofe- patrimônio, além de sua sábia implantação, recem uma visão impressionante para quem é justamente a relação espacial entre as vá- passa pela outra margem do rio que, logo rias construções, que nos ajuda a desvendar após superar as corredeiras, retoma a calma a lógica da produção e suas transformações e espelha as luzes do Engenho. Um cenário ao longo desses 100 anos de vida, aqui- singular da paisagem urbana de Piracicaba. lo que poderíamos chamar de “urbanismo O conjunto mantém-se com a integridade de industrial”. São galpões e casas de escalas quando foi desativado, como cidadela resis- variadas, quase todos em tijolos à vista – tente às grandes mudanças por que passou o linguagem universal da indústria do século seu entorno nas últimas décadas. Portanto, XIX. Numa gleba de terra de cerca de 75 não nasceu como está. Pelo contrário. Ao mil m², com aproximadamente 12 mil m² longo de sua vida foi recebendo acréscimos, de área construída, essa verdadeira “cida- reformas, demolições e guarda registro de vá- dela” é hoje um tesouro urbano destinado rias épocas. Neste processo, coisas belas per- à convivência democrática, aberta a todo deram-se e outras foram sendo incorporadas cidadão, sem discriminação de classe social para formar aquilo que talvez corresponda a ou faixa etária e, o que é muito importan- seu melhor valor: a cidadela. te, livre do automóvel. Atenção, este não é um detalhe: um espaço exclusivo para pe- A cidadela destres. Seu potencial de uso é inestimável: usos que podem se multiplicar a depender, O conjunto do Engenho Central é é claro, da criatividade e da capacidade ad- um dos maiores e mais importantes teste- ministrativa dos seus gestores. Mesmo sem munhos arquitetônicos do modo de produ- as reformas e adaptações necessárias – ora

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06515 - 37334001 miolo.indd 96 02/12/11 16:39 Figura 2 Vista aérea geral do Complexo do Engenho Central. Crédito: Christiano Diehl Neto.

Figura 3 Plano Diretor para o Engenho Central, Brasil Arquitetura, 2002. Crédito: Brasil Arquitetura.

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06515 - 37334001 miolo.indd 97 02/12/11 16:39 em andamento – o Engenho Central tem Engenho, associado a outros usos consolida- recebido milhares de visitantes nos shows dos, vem sendo, em certa medida, contem- musicais, no consolidado e respeitado Salão plado pelas ações em curso. Exemplos disso Internacional de Humor, nas festas da Paixão são as propostas para o Museu do Açúcar e de Cristo e das Nações, bem como feiras e do Álcool e para o Novo Teatro do Engenho exposições, como o SIMTEC – Simpósio Central. Este último é um projeto de nosso Internacional e Mostra de Tecnologia e escritório desenvolvido dentro das premissas Energia Canavieira. Enfim, já está mais do delineadas no plano. Este plano, entretanto, que claro que ali temos o que há de melhor não é congelado e estático; mudanças sem- em um centro de convivência: passado e fu- pre serão necessárias e bem vindas, com no- turo vividos no dia a dia. vas demandas que, certamente, surgirão.

O plano A praça

Em 2002 elaboramos em nosso escritó- Dentro do plano diretor identifica- rio, Brasil Arquitetura, junto a um grupo de mos a praça central do conjunto como seu arquitetos de Piracicaba – Dirceu Rother Jr., coração, centro de convergências de todos André Blanco e outros –, um plano diretor os acessos – passarela pênsil, entrada e es- para todo o conjunto do Engenho Central, tacionamento pelo acesso superior, a partir incluindo o Parque do Mirante. Este plano da Avenida Maurice Allain, ou pela Ponte visava, justamente, dar um rumo e balizar do Morato. Em torno dela está o galpão do todas as futuras intervenções que fossem fei- Salão de Humor e exposições, a Secretaria tas ali. Avaliamos a história e o potencial de de Ação Cultural, um outro galpão – edi- cada construção, o potencial da relação espa- fícios 9 e 10 – destinado a feiras e eventos cial entre elas e cruzamos tudo isso com as de- variados e, num futuro próximo, o Teatro mandas do momento (e futuras imagináveis) do Engenho. Em função da importância para formatar um programa afeito àquele dessa praça, elaboramos um projeto de re- locus, com as peculiaridades e originalidades forma que possa evidenciar estas relações e espaciais e construtivas da “cidadela”. abrigar novos usos, como shows musicais e Este plano foi submetido ao de dança (será implantado um palco ao ar CODEPAC – Conselho de Defesa do livre), quermesses, festas, ou simplesmente Patrimônio Cultural de Piracicaba, que o uma “praça sala de estar” de toda essa vizi- recebeu favoravelmente. O caráter de com- nhança nobre. Manteremos seu piso cheio plexo cultural que o plano desenhava para o de marcas, construído com vários materiais

98 Piracicaba, o rio e a cidade: ações de reaproximação

06515 - 37334001 miolo.indd 98 02/12/11 16:39 Figura 4 Praça central do Engenho Central, 2002. Crédito: Brasil Arquitetura.

Figura 5 Proposta para Novo Teatro do Engenho Central (à esquerda) e praça central, 2009. Crédito: Brasil Arquitetura.

O rio e a cidade 99

06515 - 37334001 miolo.indd 99 02/12/11 16:39 – pedra, tijolos, cimento – como respeito e valorização de sua história, sua longa e va- riada vida como centro do engenho.

O teatro

Num dos mais belos e antigos de todos os galpões projetamos o Teatro do Engenho. Uma arquitetura que vai pelas entranhas do edifício transformando vazios em hall público, salas acusticamente equi- padas, plateia, palco, galerias, bar e restau- rante, salas de ensaio, camarins, salas técni- cas de apoio, tudo que um teatro moderno carece para funcionar em sua plenitude. Claro que existem limitações em se tra- tando de um “casco” existente e histórico, tombado como patrimônio. Mas são limita- ções que devem ficar na dimensão do tea- tro, em sua lotação (aproximadamente 500 lugares), mas não nos recursos cênicos e de conforto, guardadas suas proporções. Com um palco “dupla face” que se abre também para a praça central, o teatro será um im- portante equipamento de fomento e apoio às festas abertas, ao ar livre. Este deverá ser um teatro contemporâneo multiuso já

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06515 - 37334001 miolo.indd 100 02/12/11 16:39 investido de história. Sim, o antigo galpão Figura 6 Vista externa do prédio 6 era um grande depósito de tonéis gigantes e do Engenho Central, 2008. uma destilaria de álcool. Essa memória está Crédito: Brasil Arquitetura. nas dimensões industriais de seu pé direito Figura 7 Vista interna do vão central de 18 metros de altura, em seu grande vão do prédio 6, 2008. Crédito: central, nos materiais empregados em sua Brasil Arquitetura. construção – tijolos, telhas de barro, ferro Figura 8 Vista interna de sala que e concreto, que nos impressionam e nos abrigará restaurante, 2008. levam a refletir sobre os artefatos humanos Crédito: Brasil Arquitetura. construídos no passado. Neste caso, um an- Figura 9 Proposta para Novo Teatro tigo local de trabalho árduo e duro, de sofri- do Engenho Central, com palco que se abre mento de muitos, um testemunho do traba- para praça central, 2009. lho humano, sem apagar sua vida pregressa, Crédito: Brasil Arquitetura. será transformado em fábrica de diversão e Figura 10 Maquete eletrônica do criação, celebração e convivência. palco e platéia do Novo Teatro do Engenho Central, 2009. Crédito: Brasil O futuro Arquitetura. Figura 11 Maquete eletrônica do Aos cidadãos de Piracicaba cabe le- restaurante do Novo Teatro do Engenho Central, 2009. var adiante essa obra, feita por muitos e Crédito: Brasil Arquitetura. para todos, que é a construção de uma re- lação saudável, de respeito e amigável com seu rio e seu patrimônio. Uma experiência que deve ser observada com muita atenção, um bom exemplo do que pode ser uma ci- dade rica, moderna e democrática, sem des- truir sua história e seu rio.

O rio e a cidade 101

06515 - 37334001 miolo.indd 101 02/12/11 16:39 Referências Bibliográficas

FANUCCI, Francisco & FERRAz, Marcelo. “Teatro Engenho Central”. São Paulo: Brasil Arquitetura, 2009. ______“Anteprojeto de Arquitetura do Parque do Engenho Central e Mirante”. São Paulo: Brasil Arquitetura, 2004.

102 Piracicaba, o rio e a cidade: ações de reaproximação

06515 - 37334001 miolo.indd 102 02/12/11 16:39 Parte 2

Uma visão sistêmica: o Projeto Beira-Rio

06515 - 37334001 miolo.indd 103 02/12/11 16:39 06515 - 37334001 miolo.indd 104 02/12/11 16:39 5

A piracema do Projeto Beira-Rio

RENATA TOLEDO LEME FABIO GUIMARãES ROLIM EDUARDO DALCANALE MARTINI

06515 - 37334001 miolo.indd 105 02/12/11 16:39 RENATA TOLEDO LEME é Arquiteta e Urbanista da Secretaria Municipal de Planejamento da Prefeitura de Santa Bárbara d’Oeste. Formada pela PUC Campinas, com especialização em Gerenciamento Ambiental, Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz / USP, mestranda em Engenharia Urbana pela UFSCAR; realizou a Coordenação Geral do Projeto Beira-Rio entre 2002 e 2004.

FABIO GUIMARãES ROLIM é Arquiteto e Urbanista do IPHAN/RJ. Formado pela EESC/USP, com especialização em Jornalismo Científico pela UNICAMP; integrou a equipe do Projeto Beira-Rio entre 2002 e 2005 como editor e organizador.

EDUARDO DALCANALE MARTINI é Arquiteto e Urbanista pela FAU/USP, titular do escritório EDM ESTÚDIO, integrou a equipe do Projeto Beira-Rio, de 2002 a 2006, como coordenador técnico.

06515 - 37334001 miolo.indd 106 02/12/11 16:39 Diante do padrão errático ainda Municipal. Se assim não fosse, seria impen- hoje característico das ações das municipa- sável a continuidade por todo este tempo, lidades brasileiras, nas quais o planejamento atravessando dez anos de gestão municipal, quase sempre se reduz a momentos pontuais de um projeto de perfil notadamente proces- e interrompidos ao sabor das mudanças ad- sual, que não tem necessariamente um ter- ministrativas, é fácil identificar como uma mo e cujas escalas e abordagens de atuação exceção feliz e alvissareira o caso do Projeto sucessivas e interdisciplinares apontam para Beira-Rio, em Piracicaba/SP. ações a curto, médio e longo prazo. Isto pelo fato de o Projeto com- Arriscamos a vislumbrar que parte pletar dez anos de existência e continuar desta institucionalização deva ser atribuí- adiante em sua implementação, tendo da ao papel desempenhado pela sociedade se concretizado a requalificação de dois piracicabana, que identificou no Projeto trechos de sua escala setorial urbana na Beira-Rio algo a ser definitivamente in- margem esquerda do Piracicaba, junto ao corporado à pauta do Município. As razões berço da cidade, e um terceiro estar em para tanto são certamente diversas, mas vias de se efetivar com recursos próprios provavelmente remontam àquele espírito da municipalidade(1). de mobilização nos anos 1970 em prol de Esta permanência excepcional é cer- um rio livre de esgotos, avançando à efe- tamente reflexo de uma institucionaliza- tiva participação de diversos setores na (1) Ver Epílogo a respeito da continuidade dos projetos ção do Projeto Beira-Rio pelo Executivo gestação do Projeto, cerca de três décadas e obras do Projeto Beira-Rio

06515 - 37334001 miolo.indd 107 02/12/11 16:39 depois, passando ainda por momentos mais inserido num macro-plano de diretrizes para ou menos emblemáticos, como a criação do ações no território a manter a integridade consórcio intermunicipal das bacias hidro- conceitual e a conexão programática em to- gráficas do Piracicaba e Capivari, no final das suas frentes e etapas – desenvolvimento dos anos 1980. que resultou numa filiação metodológica ao A análise daquelas conjunturas sociais, Planejamento e Desenho Ambientais, ine- culturais e políticas operantes nas últimas dé- xoravelmente ampliando e redirecionando cadas do século XX em Piracicaba deve ser determinadas diretrizes já sugeridas pela eta- objeto de estudos mais amplos e ultrapassa o pa anterior. O foco do primeiro projeto de objeto deste artigo; no entanto, parece evi- intervenção foi a Rua do Porto – a arquetí- dente identificar como a grande beneficiária pica borda fluvial piracicabana, cuja escolha deste processo a retomada de uma relação era praticamente inevitável. identitária entre cidade e rio – e, nesta rela- Permeando todo aquele processo, ção, a possibilidade concreta de construção aprofundou-se um forte vínculo entre o de um modelo diferenciado de uso e ocupação Projeto e grande diversidade de institui- das bordas d’água fluviais e espaços culturais e ções e entidades, podendo-se citar: a Escola ambientais a ela associados. Superior de Agricultura Luiz de Queiroz/ De fato, a par da institucionalização Universidade de São Paulo, com projeto e de sua característica transversalidade, o de adequação ambiental e paisagística a fa- Projeto Beira-Rio pauta-se por um desen- zer parte do programa de ações e subsidiar volvimento caracterizado pela dimensão o projeto paisagístico na Rua do Porto; no participativa. âmbito de um espaço de discussão entre co- Em seus primeiros momentos, bus- munidades e o Projeto, a participação da cou-se diretamente dos cidadãos as memó- Associação dos Moradores e Comerciantes rias, sinestesias e expectativas definidoras da da Rua do Porto/Amoporto na elaboração relação rio/cidade, mediante a identificação e acompanhamento das obras naquele lo- de um amplo (por seu alcance) e profundo gradouro; e aqui, a conjugação de esforços (por seu envolvimento) panorama antropo- com a OSCIP “Piracicaba 2010”, que re- lógico deste relacionamento, sob a forma da cebeu e administrou os recursos financei- Comissão Beira-Rio, formada por represen- ros aportados pela Petrobras para a obra, tantes da Prefeitura e sociedade civil. num incremento da institucionalização do Num segundo momento, foi decodifi- Beira-Rio (a organização fora a responsável cado aquele diagnóstico antropológico e ela- pela formatação do documento “Piracicaba borado um projeto urbanístico emblemático, 2010-Realizando o Futuro”, no qual o

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06515 - 37334001 miolo.indd 108 02/12/11 16:39 Projeto havia sido incorporado como uma Ainda que sejam estes os desafios que das ações para a Agenda 21 local). se colocam ao Projeto Beira-Rio, eles vêm No âmbito mais propriamente técnico, sendo equacionados pela municipalidade, é importante ressaltar que o desenvolvimento que agora aloca recursos próprios para uma do Projeto logrou promover algo fundamen- terceira etapa, aos quais se vem somar novo tal: a manutenção de uma coerência concei- aporte de patrocínio da Petrobras. Ainda que tual característica, expressa por um arcabouço o desenvolvimento do Projeto tenha um lon- de princípios, premissas e diretrizes com alto go caminho a ser percorrido em busca de uma grau de articulação entre seus instrumentos matricialidade, é sintomático que outras ações definidores (diagnóstico, plano de ação, pro- empreendidas recentemente reforcem suas jeto da Rua do Porto e estudos para os demais diretrizes, como a consolidação do Engenho trechos da escala setorial urbana, dentre as Central enquanto espaço destinado à educa- demais diretrizes) e com as demandas cons- ção, à cultura e à ciência (tal como corrobo- truídas com as comunidades e sociedade civil. rado e incorporado pelo Projeto Beira-Rio em Acreditamos que a institucionaliza- seu Plano de Ação Estruturador). ção pela municipalidade, a transversalidade As possíveis interpretações de como entre seus conceitos e diretrizes e a quali- se deu a institucionalização do Projeto dade da abordagem metodológica fizeram a Beira-Rio, a construção de seus conceitos sustentação do Projeto e o mantêm em ação. definidores e os limites a ele interpostos são Obviamente, tal desenrolar não é de todo os objetos deste artigo. sucessivo e de homogêneo encadeamento. Subsistem aspectos e elementos a serem Caracterização da abordagem – O continuamente trabalhados, seja pela pró- Diagnóstico pria natureza diretiva conferida ao Projeto, especialmente em suas macro e meso escalas Duas características definiram o desen- de abordagem, seja pelas dificuldades ine- volvimento do Projeto Beira-Rio, pautando rentes à consolidação de um trabalho que, as definições do Plano de Ação Estruturador/ como referimos, é marcadamente processu- PAE e dos projetos da escala setorial urbana: al e mesmo matricial e gerencial – somadas a transversalidade programática e conceitual à competição promovida pelas demais (e e a consideração pela identidade local ma- muitas) demandas a que a municipalidade nifesta pelo rio e pelos espaços ambientais e é chamada a responder, invariavelmente culturais a ele associados. enfrentando insuficiências de prazo, corpo Tais aspectos foram definidos nos pri- técnico e recursos financeiros. meiros momentos do Projeto, quando dos

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06515 - 37334001 miolo.indd 109 02/12/11 16:39 preparativos para os trabalhos que resulta- os maus-tratos sofridos pelo rio, Stefani re- ram no Diagnóstico “A cara de Piracicaba” sume o mosaico, “herança paradoxal (rica – processo de cunho antropológico capi- e desastrosa ao mesmo tempo)” a que a taneado pelo coordenador daquela etapa, municipalidade se propunha a debruçar e Arlindo Stefani, com a Comissão Beira-Rio estruturar. O antropólogo articula aquelas e que veio a embasar o desenvolvimento do relações em três contextos. Projeto em suas linhas mestras. Num processo constante de retro- 1. Contexto geográfico – as funções do cor- alimentação entre objeto intentado e sua po d’água na rede econômica do territó- própria definição (que parece sempre aban- rio, tendo como consequência o fato de o donar uma definição apriorística em prefe- Projeto abranger muito mais que as beiras: rência de uma contínua construção), nos primeiros momentos do trabalho não se (...) ao tratar das beiras, definidas como evitava ou mesmo se permitia uma sobrepo- fronteira comum ou como interface vital sição de atribuições e de definições progra- entre cidade, município e rio, o projeto máticas que confluíam numa indissociável se entrosa com o vasto sistema da água mão-dupla de construção criativa do con- do município e do vale. Abre oportu- ceito e alcance do Projeto. nidade de colaboração de todas as pro- Como objeto básico, Stefani iden- fissões e componente da comunidade, tificava geograficamente o eixo ponte como com todas as disciplinas do conhe- do Caixão-Monte Alegre, passando pelo cimento científico, técnico, literário e Engenho Central e Rua do Porto, num outro (STEFANI, 2001b). “polo” e “circuito” a ser valorizado. O dia- pasão terminológico se aproximava da in- 2. Contexto do tempo histórico e da me- tervenção mais propriamente arquitetôni- mória – as diversas e sucessivas camadas co-urbanística, se bem que apontando para memoriais e históricas de apropriação do ações singelas a consolidar o existente, con- rio e de suas margens. jugada a ações de preservação e educação. 3. Contexto dos ritmos – a alternância de Como ferramenta, a diversidade de forma- fluxos do rio, relacionada aos aspectos ções propiciada pelo conhecimento huma- sociais, culturais, econômicos e agrícola- no e a participação social. -industriais da cidade. Ao discorrer sobre os diversos e su- cessivos contextos pelos quais passou a re- Por fim, Stefani coloca que estes três lação memorial do par rio/cidade, inclusive contextos (que são da vida do rio, da cida-

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06515 - 37334001 miolo.indd 110 02/12/11 16:39 de e do vale) “servirão de referência para grupo e a pé, como forma de reconheci- a realização do programa do Projeto Beira- mento do lugar em seus muitos aspectos), rio, seus objetivos, métodos, organização para depois confrontar os documentos e e calendário”(2); e “Neste projeto, o maior confirmar o que se levantou através dos aliado da Prefeitura é a população, pois ela depoimentos e investidas – foi marco im- não esperou pelos poderes públicos para se portante na construção desse olhar, da adaptar à nova realidade e contexto do rio cumplicidade na valoração dos elementos e suas beiras.” a nortear qualquer intervenção de qualifi- Caracterização exemplar da identi- cação da margem e da beira d’água e onde dade que o Projeto veio a assumir encontra- cujo conteúdo fosse compartilhado e am- -se na definição destes conceitos: pliado pelo uso continuado. “Reconhecer- se” coletivamente foi o grande salto qua- Conceito federador: (...) Não há separa- litativo alavancado pelo diagnóstico “A ção mecânica do Projeto Beira-Rio e dos Cara de Piracicaba”; mas tão ou mais outros projetos municipais. Todos estão importante que isso, compôs-se de ma- globalmente ligados entre si e se apoiam neira sólida o fórum de discussão onde se reciprocamente; (...) Conceito ético e alinhavariam as decisões de desenvolvi- estratégico: participação da comunida- mento do Projeto. Este encaminhamento de, isto é, sinergia entre a comunidade trouxe à discussão uma riqueza subjacente. de habitantes e associações, em nível Aquilo que a cidade tinha, mas não sabia individual e coletivo, por um lado, e os que lhe pertencia. serviços municipais e profissionais com- Quando, então, da conclusão do prometidos com o projeto beira-rio, por Diagnóstico, as características definidoras outro lado (STEFANI, 2001b)”. do que veio ser denominado Projeto Beira- Rio já estavam formadas: a representativida- Assim, desde o início buscou-se tra- de do processo construído pela participação balhar com critérios de transversalidade, social e comunitária, não apenas em termos interdisciplinaridade e participação, o que de apontamento de demandas pontuais e veio a se dar efetivamente e que, como afir- diretrizes, mas na própria identificação do mamos, configurou-se como elemento de quadro a ser trabalhado; e a abordagem diferenciação do Projeto Beira-Rio. sistêmica da relação corpo d’água/tecido A metodologia utilizada – reconhe- urbano e social. Na abertura do texto, um cendo antecipadamente os itinerários, va- poema-síntese composto pelo coordenador (2) Ainda se referindo ao trabalho que então se lores e fatos históricos (quase sempre em ilustrava o espírito do Projeto: iniciava.

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06515 - 37334001 miolo.indd 111 02/12/11 16:39 O índio veio aonde o peixe pára. conceitual (e mesmo ética) face ao proble- O industrial veio aonde o peixe pula. ma: o rio como origem histórica da cidade, Nós vamos aonde o . lugar de memória e caminho coletivo ligan- O peixe criou o índio, do passado, presente e futuro. Um objeto, O salto criou o industrial, portanto, indissociado e não-passível de O rio, conosco, cria Piracicaba fragmentação por recortes estanques e con- (STEFANI, 2001a) dicionados a uma visão mais conservadora do conhecimento profissional e acadêmico. Assim, tratar a margem como espaço públi- Plano de Ação Estruturador/PAE co deveria pressupor qualidade da água no corpo d’água principal e seus tributários, co- Como sequência ao Diagnóstico, a bertura florestal recuperada, um dinamismo elaboração de um plano geral de ações fi- a garantir sustentabilidade econômica e am- liado à lógica do Planejamento Ambiental biental à cidade e região, dentre outros as- e à criação de Cenários Ambientais, que pectos. Como estofo da intervenção urbana, veio a denominar-se PAE – Plano de Ação vislumbrava-se a ação da municipalidade em Estruturador e que teve coordenação e re- outras diferentes frentes e recortes de traba- dação final pela Profa. Maria de Assunção lho – sem os quais a requalificação pretendi- Ribeiro Franco(3). da correria o risco de não atingir uma pleni- A primeira escala de abordagem foi tude e limitar-se a aspectos de embelezamen- o trecho da orla fluvial urbana localizado to solucionador de problemas pontuais. entre as pontes do Mirante e do Morato. Com a passagem Diagnóstico-Plano No início do desenvolvimento do PAE, ao de Ação Estruturador deu-se a sistematiza- focar-se neste trecho, ainda se visualizava ção desta abordagem e sua consecução em a região da cabeceira da ponte do Mirante diretrizes e projetos. Nesta segunda etapa, na margem esquerda como uma espécie de a transição de um discurso focado na inter- “porta de entrada” a um grande parque ou venção arquitetônico-urbanística para uma sistema de parques à beira-rio. abordagem mais ampla e regional (instru- O debruçar-se sobre o objeto, no en- mentalizada pelo Planejamento e Desenho tanto, facilmente conduziu à impossibilida- Ambiental) definiu-se com a adoção de cri- de do não-enfrentamento das limitações e térios próximos aos de “zonas-gradiente” ou (3) Arquiteta e Urbanista e professora dificuldades encontradas. Estendia-se, assim, “zonas-tampão”. Estas áreas teriam a função titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo continuamente o foco de abordagem, na de amenizar o impacto desempenhado pela da Universidade de São Paulo\FAUUSP. busca pela manutenção de uma integridade cidade (e mesmo por sua região, tendo em

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06515 - 37334001 miolo.indd 112 02/12/11 16:39 vista os desdobramentos das ações antró- cruzando o rio em direção à Vila Rezende picas, principalmente quando relativos ao e avançando por sobre os vales e bacias de Meio Ambiente) nas áreas consideradas de drenagem contribuintes da calha principal maior fragilidade e sensibilidade ambiental, do Piracicaba (como o Itapeva, o Enxofre, paisagística e cultural – as bordas fluviais ur- o Piracicamirim e mesmo o Corumbataí). banas, precisamente as áreas-foco do Projeto. E, mais além, identificando possibilidades O motivador das “zonas-gradiente” de conexão conceitual e programática com seria, assim, a integridade das áreas-foco; áreas e fluxos que tivessem relação direta seu instrumento principal, os cuidados com ou indireta com o objeto e as condições de os aspectos de drenagem e arborização ur- trabalho para com ele – como Unidades de bana e de mobilidade, calcada no pedestria- Conservação numa proximidade de 100 nismo e na adoção de sistemas de transporte quilômetros, os aglomerados urbanos, leitos alternativos e em intermodalidade. ferroviários, rotas ecoturísticas em operação É neste contexto de aproximação ou implementação, dentre outros. que surgiram as expectativas (depois sinte- Identificadas e delimitadas as áreas-fo- tizadas como diretrizes no PAE) de conso- co e gradiente, e definidos em linhas gerais lidação de vínculos com a escala regional. seus circuitos articuladores em escalas local, O desenvolvimento do PAE, precisamente setorial e regional, passou-se à sua qualifica- a transição local-regional, passou pela di- ção. Dando ênfase e vida a estes fluxos viá- ficuldade inerente ao estabelecimento de rio-ecológicos a serem recuperados e requali- um recorte rígido (ou mesmo improprieda- ficados, áreas passíveis de usos e atribuições, de, em se tratando da dimensão urbana). consolidaram-se as proposições de: Como exemplificava Maria de Assunção, • diretrizes gerais para projetos de se, a princípio, pensava-se num ponto (por Arquitetura e Urbanismo; exemplo, uma intervenção pontual), o ra- • equipamentos a conjugar lazer, desen- ciocínio espacial sobre ele logo conduzia a volvimento e educação; uma linha, cuja elucubração, confrontada • apropriações turísticas focadas no ca- com novos elementos, questões e interfaces, ráter educativo, ambiental e cultural, remetia por sua vez a uma pequena superfí- como indicação de rotas já existentes cie; e assim sucessivamente, até o momento ou a serem criadas, romarias religiosas em que se idealizou uma rede de circuitos a e ênfase na navegação fluvial (como o (4) O Caminho do Sol é a (4) interligar as bordas fluviais às suas áreas ime- Caminho do Sol e possíveis rotas para rota turística entre Santana de Parnaíba e São Pedro que diatamente adjacentes e ao tecido urbano Tanquã etc); vem sendo operada desde 2001. (http://www.cami- mais amplo, subindo as encostas do Centro, • fomento do transporte coletivo e não- nhodosol.org).

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06515 - 37334001 miolo.indd 113 02/12/11 16:39 -poluente (ciclovias, ciclofaixas, bon- A criação de vários cenários em esca- des, etc); las sucessivas, da regional à setorial urbana e • um caráter geral de prevalência do pontual, prende-se a premissas como: a in- pedestrianismo; corporação de faixas públicas e privadas com • ações de recuperação da cobertura ve- edificações de relevante interesse às margens getal, principalmente nos talvegues imediatas ou expandidas; a execução de in- contribuintes do Piracicaba e na própria terceptores de esgoto visando à manutenção calha do rio; da qualidade da água; os sistemas de coleta e • necessidade de aglutinação de forças destinação dos resíduos sólidos; os sistemas entre diversas entidades e instituições de transporte urbano multimodal; a implan- (Executivo Municipal, Universidades, tação de programas de educação ambiental; ONGs etc), tendo em vista a consecu- as parcerias com as instituições de ensino; a ção de objetivos de acordo com as dire- compatibilização com os demais planos em trizes gerais do Projeto. desenvolvimento pelo município. • incorporação ao Plano de Ação Além da orientação pelas premis- Estruturador do Projeto Beira-Rio dos sas supracitadas, as intervenções de proje- projetos e programas municipais relati- to devem remeter-se conceitualmente aos vos ou incidentes nas faixas lindeiras às princípios de: preservação das águas doces margens do rio. (saneamento, gestão da água, despoluição, preservação do aqüífero e dos lençóis freá- Assim, ainda que o foco seja a beira- ticos); cinturão meândrico como faixa de -rio, atinge-se sua ampliação e seu espraia- proteção (em alternativa à tradicional medi- mento conceitual e geográfico, tendo em da em proporção direta à largura dos corpos vista a própria sustentabilidade do objeto. d’água); ordenação urbana a partir dos rios Como resultado pretendido pelo PAE: a (os corpos d’água tendo prevalência no de- partir de uma paisagem determinada e con- senho e planejamento urbano); o rio como dicionada pelo par viário/transporte (como caminho (ênfase na navegação fluvial); con- foi a tônica de transformação das paisagens servação da paisagem natural e construída urbanas brasileiras a partir das décadas de de Piracicaba; e corredor ecossocial (espaços 1950-60 com o privilégio conferido ao au- lineares de convívio e compartilhamento de tomóvel), a requalificação de fluxos e luga- fluxos entre corredores biológicos e viários, res possibilita uma nova leitura e apreensão como fundos de vale) (PMP, 2003, p.42). da cidade tendo como foco a relação identi- Tal entendimento do objeto a ser tra- tária com a paisagem ribeirinha. balhado (resultado direto do patamar deli-

114 Piracicaba, o rio e a cidade: ações de reaproximação

06515 - 37334001 miolo.indd 114 02/12/11 16:40 Figura 1 Escala Urbana do Projeto Beira-Rio. Crédito: PMP, 2003.

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06515 - 37334001 miolo.indd 115 02/12/11 16:40 neado pelo Diagnóstico) redundou na con- (entre esta ponte e a do Mirante) – que sideração de sucessivas escalas geográficas e reúnem as condicionantes de prevalência níveis de interesse. São as escalas: do pedestre, preservação e recuperação • Regional – Em que cidade e município das margens, proposição de circuitos eco- constituem-se em focos estratégicos sob turísticos e integração destas áreas com o os aspectos ecológico, econômico, tecno- tecido urbano envoltório mediante tra- lógico, cultural e turístico, com propos- vessias longitudinais e transversais. tas de estabelecimento de zoneamento • Pontual – Trata-se da primeira área Ecológico-Econômico regional, elabo- de intervenção, na Rua do Porto, cuja ração de programa de educação ambien- elaboração deu origem ao projeto e tal com municípios vizinhos, criação de à obra de requalificação daquele lo- polo de pesquisa em Meio Ambiente, gradouro, mantendo-se os princípios fomento do ecoturismo (rotas terrestres norteadores do diagnóstico e do PAE e fluviais), dentre outras. (PMP, 2003, p.45-56). • Municipal – Com as propostas de cria- ção de Áreas de Proteção Ambiental/ Vozes e composição do diálogo APAs municipais, tais como do cinturão meândrico da área urbana do Piracicaba, Em todo o desenvolvimento do PAE do Corumbataí, Guamium e Jiboia. e dos estudos para a escala setorial efetiva- • Urbana – Proteção das faixas marginais ram-se intensas articulações e diálogos com ao rio, sob o entendimento dos três lei- as mais diversas fontes e instâncias. tos (a calha média do corpo d’água ao O diálogo institucional com órgãos de longo do ano; as cotas das grandes en- alguma atribuição com o corpo d’água (de fis- chentes; e o chamado “terceiro leito”, calização, proteção ambiental, Defesa Civil ou seja, os espaços de paisagem relacio- etc), que em graus diversos adquiriram maior nados ao rio, independente da situação ou menor protagonismo no processo, efeti- imediatamente marginal). A escala ur- vou-se na medida das necessidades crescentes bana distingue oito áreas de intervenção de instrução e subsídio da equipe projetista. ao longo de todo o curso do Piracicaba Tome-se como exemplo uma constante no no município. desenvolvimento dos projetos de implanta- • Setorial – Abrange os dois setores cen- ção de infraestrutura (notadamente quanto à trais da sub-divisão da escala urbana – trilha à beira-rio na Rua do Porto): a identifi- Beira-Rio Central (entre as pontes do cação da série histórica de vazões e enchentes Mirante e Morato) e Lar dos Velhinhos do rio Piracicaba ao longo de 35 anos.

116 Piracicaba, o rio e a cidade: ações de reaproximação

06515 - 37334001 miolo.indd 116 02/12/11 16:40 Outros diálogos foram estabelecidos Vale ressaltar que, com a criação – e, em seus temas específicos, referenda- do IPPLAP, a possibilidade de se agrupar dos – com as áreas de Trânsito (com con- temática e fisicamente esses projetos pos- tínuo acompanhamento da SEMUTTRAN sibilitou contribuições variadas dos di- – Secretaria Municipal de Trânsito e versos profissionais e equipes envolvidos, Transportes e parecer sobre alterações do com questionamentos, sugestões e avalia- sistema viário e circulação propostas pelo ções. Nisso verifica-se a importância da Projeto, do arquiteto e especialista em segu- sincronicidade entre desenvolvimento de rança de trânsito Eduardo Junqueira Reis), projetos, como o Beira-Rio, e a instalação Patrimônio Cultural (com parecer do arqui- do Instituto enquanto organismo de pla- teto e historiador Carlos Alberto Cerqueira nejamento que se inicia em pleno exercí- Lemos); além de buscas pela viabilização cio de sua missão. em Piracicaba do Projeto Oficina-Escola Os principais exemplos podem ser de Artes e Ofícios/POEAO de Santana de apontados nos seguintes processos: Parnaíba/SP, a fim de congregar recuperação • A elaboração dos planos diretores do patrimônio construído com capacitação de Mobilidade e Rural e a revisão do de mão-de-obra de crianças e adolescentes Plano Diretor de Desenvolvimento em em situação de risco. (2003/2004). Em relação a uma articulação de ca- • O “Plano de Adequação Ambiental e ráter mais interno ao organograma admi- Paisagística do trecho urbano das mar- nistrativo, importa ressaltar a busca pelo gens do rio Piracicaba” (cujo foco geo- Projeto Beira-Rio de subsídios de outros gráfico de ação incluía a Rua do Porto e planos e projetos então promovidos e ca- que se efetivou juntamente com aquele pitaneados pela Prefeitura de Piracicaba. projeto) desenvolvido pelo Laboratório Elemento fundamental para esta articula- de Ecologia e Restauração Florestal ção foi a criação do IPPLAP – Instituto de da Esalq/USP, a cargo dos professores Pesquisas e Planejamento de Piracicaba em Ricardo Ribeiro Rodrigues e Ana Maria 2003, para cuja estrutura o Projeto Beira- Liner Pereira Lima; Rio foi de imediato transferido e no qual • Projetos e estudos preliminares de equi- terminou por atuar como um fórum espe- pamentos públicos diversos e situados cial, ainda que não formal, de arregimen- geograficamente na borda d’água, como, tação de discussões internas quanto aos de- por exemplo, o projeto para o Engenho mais planos e projetos em andamento, no- Central de Piracicaba à época em elabo- tadamente os incidentes na borda d’água. ração pelo escritório Brasil Arquitetura;

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06515 - 37334001 miolo.indd 117 02/12/11 16:40 Figura 2 Escala Setorial do Projeto Beira-Rio. Crédito: PMP, 2003.

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06515 - 37334001 miolo.indd 118 02/12/11 16:40 • O Plano de Ação para Reabilitação aplicação pioneira na Rua do Porto e, na Urbana da Área Central (desenvolvido se quên cia, ao longo da Avenida Beira Rio. em 2004 pelo IPPLAP sob a coordena- A seguir, listam-se alguns exemplos ção geral da professora e arquiteta Sarah de diretrizes, organizadas de acordo com Feldman) desenvolvido em parceria seus movimentos geradores: com a ACIPI – Associação Comercial e I – Estabelecimento de conexões Industrial de Piracicaba. transversais e longitudinais entre áreas e edificações existentes na borda d’água e Em graus variados de aproximação e entorno (terceiro leito) – por vezes, áreas integração, cada um destes planos e projetos não distantes fisicamente (ou mesmo contí- foi acompanhado pela definição de premis- guas), mas separadas por barreiras e inaces- sas, princípios e diretrizes do Projeto Beira- síveis entre si(5): Rio. Este processo enriqueceu sobremaneira 1. Criação/adequação de acessos entre o o Projeto e conferiu substância às suas dire- Engenho Central e o Parque do Mirante trizes para além da transversalidade intra- e entre o Parque do Mirante e a margem -administração já identificada neste artigo. direita à montante da ponte, ao lado da Avenida Juscelino Kubitschek (transpo- Estudos e propostas para a escala sição de pedestre em desnível com rela- setorial urbana – trecho entre pontes ção à Avenida Barão de Serra Negra). Mirante e Morato 2. Criação/adequação de circulação entre o encontro das Ruas Ipiranga e Antônio Anteriormente à definição da Rua Corrêa Barbosa e a margem esquerda no do Porto como o local inaugural para a re- Engenho, cruzando o Parque da Rua do qualificação urbana proposta pelo Projeto Porto e o rio, de chata ou balsa (deno- (tornando-a, assim, o foco dos esforços em minado como eixo SESC-Ciaporanga, direção a projetos executivos de arquitetu- aproveitando-se das possibilidades de arti- ra e complementares), e simultânea e in- culação entre a agenda cultural do SESC ternamente ao desenvolvimento do Plano com a dinâmica de lazer da Rua do Porto). (5) Ação de projeto em pontos de afastamento que de Ação Estruturador, desenvolveu-se um 3. Adequação dos acessos e cruzamento dificultam a visão do rio como organismo contínuo, amplo estudo preliminar do trecho entre do Parque da Rua do Porto através do como uma leitura e apreen- são contínua e, consequen- as pontes do Mirante e do Morato. Desta eixo Chácara Nazareth-Travessa Luiz temente, como um passeio e fruição contínuos. E, nos caracterização e parametrização amadure- Thomazi, no calçadão. casos de impossibilidade na transposição de barreiras, o ceram-se os partidos arquitetônicos de todo 4. Adequação dos acessos e cruzamento do entendimento e a considera- ção destas barreiras como um o trecho, grande parte dos quais teriam Parque da Rua do Porto através do “eixo benefício ao projeto.

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06515 - 37334001 miolo.indd 119 02/12/11 16:40 Paço Municipal” (adequação de acessos, garantir a liberação das visuais do salto transformação da península do lago em e do Engenho Central a partir da che- ilha e criação de passarelas). gada das Avenidas Armando de Salles 5. Criação de acessos e conexão entre o Oliveira e Renato Wagner. calçadão e Parque da Rua do Porto com 4. Criação de belvedere na quadra entre a a Área de Lazer do Trabalhador. Avenida Beira Rio e as Ruas São José e 6. Conexão transversal entre a Praça da Prudente de Moraes, lateral ao Palacete Boyes e o Engenho Central através do Luiz de Queiroz. espaço contíguo à escada d’água do ca- 5. Criação de praça na já citada “Ladeira nal da Fábrica Boyes (identificado no das Flores”. Trata-se de um dos pontos- PAE como “Ladeira das Flores”, em fun- -chave do Projeto Beira-Rio neste tre- ção do potencial florístico definido pela cho Mirante-Morato: é uma das poucas inclinação e insolação propícias). áreas do terceiro leito que permite uma 7. Como diretriz para a construção de novas conexão transversal entre a margem e as pontes, a manutenção das margens con- cotas mais elevadas do centro; possibilita tínuas, garantindo a não-interrupção dos leituras simultâneas da Praça da Boyes, corredores ecológicos representados pelas da Fábrica Boyes, do Engenho e do rio e margens e promovendo a conexão longi- do Palacete Luiz de Queiroz; e, de quebra, tudinal de ambos os lados por sob a ponte. constitui-se provavelmente num dos últi- mos locais desta área tão antropizada da II – Manutenção dos espaços livres margem esquerda no Centro que ainda existentes, associada à sua requalificação guarda potenciais informações arqueoló- paisagística: gicas, fundamentais para o conhecimen- 1. Recuperação/criação de lagoa na margem to científico dos processos de ocupação direita, imediatamente à jusante dos últi- humana na cidade, desde períodos pré- mos grandes galpões do Engenho Central. -coloniais até a fase da industrialização 2. Recuperação da cobertura vegetal das entre os séculos XIX e XX. ilhas dos Amores e dos Namorados, em 6. Recuperação e tratamento da cobertura consonância aos projetos elaborados vegetal de ambas as margens com espé- pelo SEMAE – Serviço Municipal de cies nativas ao longo de todos os percur- Água e Esgoto. sos entre as pontes do Lar dos Velhinhos 3. Recuperação e tratamento da cobertu- e do Caixão. ra vegetal da margem esquerda junto à 7. Requalificação paisagística da área verde cabeceira da Ponte do Mirante, visando entre as Ruas Maria Maniero e Maurice

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06515 - 37334001 miolo.indd 120 02/12/11 16:40 Allain, diretriz considerada pelo es- 2. Manutenção e redesenho da tradicional critório Brasil Arquitetura à época da área de afluxo e concentração de pessoas apresentação do Museu de Ciência e para a visualização do encontro das ban- Tecnologia com a incorporação e conti- deiras durante a Festa do Divino; nuidade até o Parque do Mirante. 3. Manutenção e redesenho da margem na Rua do Porto como local de pesca, III – Aproveitamento e incremento sem prejuízo aos usos gastronômico e do existente, corrigindo-lhe os vícios e po- contemplativo. tencializando suas virtudes: 4. Manutenção e redesenho dos pontos tra- 1. Recuperação do canal do Engenho no dicionais de concentração de pessoas e trecho paralelo à Avenida Juscelino usuários na margem da Avenida Beira Rio. Kubitschek, conjugado a projeto paisa- gístico e de trilhas para pedestre ao longo V – Reorganização da geometria vi- deste percurso, chegando até o Shopping ária de circulação de veículos, objetivando Center Piracicaba, à montante. a prevalência do pedestre (o cidadão a pé é 2. Requalificação do Largo dos Pescadores, mais frágil): rampa de barcos, Praça dos Artistas, 1. Redesenho da geometria viária nas das margens no Calçadão, da Casa do cabeceiras das pontes do Morato e Povoador e do acesso ao Museu da Água. do Mirante. No caso da ponte do 3. Implementação de mirante/belvedere Mirante, considerando-se as possibi- público no terraço da Prefeitura. De uso lidades oferecidas pela localização do público e acesso externo, um elevador Hotel Beira Rio e do Clube de Campo conduziria ao terraço do edifício, levan- de Piracicaba. Especificamente em do o cidadão e o turista a compartilha- relação ao ginásio coberto deste últi- rem com o poder público uma das me- mo, a potencialidade de um novo de- lhores visuais que se tem de toda a orla senho de acessos associados a ajustes urbana do Piracicaba, num gesto simbó- administrativos, poderia proporcionar lico de grande ganho. à cidade usos independentes dos do clube privado, configurando-se como IV – Consideração do dado cultural um equipamento de peso nos casos como elemento condicionante de projeto: de shows e jogos, dinamizando aquela 1. Manutenção e redesenho dos pontos área do encontro das Avenidas Renato tradicionais de atracação de barcos na Wagner e Armando de Salles (até hoje Rua do Porto. um lugar de passagem que se busca

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06515 - 37334001 miolo.indd 121 02/12/11 16:40 abandonar rapidamente ao sinal verde lecimento de parcerias até negociações de do semáforo); prioridades. 2. Alterações geométricas no traçado da Desta forma, os desenvolvimentos Avenida Beira Rio, com adoção de sen- dos dois primeiros projetos de intervenção tido único Mirante-Morato, alargamen- urbana (na Rua do Porto e na Avenida to de calçadas, estacionamento ao longo Beira Rio até o Largo dos Pescadores) eco- do leito carroçável e adoção de elemen- aram as vozes do Diagnóstico e espelharam tos moderadores de tráfego – tudo asso- as múltiplas interfaces da relação entre rio ciado à requalificação paisagística geral e cidade por meio de sedimentação das di- daquele trecho, tendo como foco a libe- retrizes apontadas na conceituação geral ração espacial do Largo dos Pescadores do Plano de Ação Estruturador do Projeto e da Casa do Povoador (cuja atual im- Beira-Rio, tais como: plantação em relação à via é de absoluto • A prevalência do pedestre no espaço desrespeito com um dos mais importan- urbano; tes representantes da arquitetura verná- • O elemento cultural como dado defini- cula colonial ainda existente na cidade). dor de projeto; • A manutenção de usos consolidados; Projetos e obras • A recuperação e preservação dos recur- sos e patrimônios naturais e construídos; O fato de o projeto para a Rua do • A tão desejada reaproximação do cida- Porto ter sido gestado basicamente pela dão com o rio, física e subjetivamente. mesma equipe técnica e em período con- comitante ao da elaboração do PAE ga- Muito embora fruto de exaustivas rantiu ao processo não apenas coerência análises, de toda a complexidade dos in- de abordagem e preservação de sua repre- teresses envolvidos nas áreas de projeto e sentatividade, mas oportunidade de apro- do engenho das soluções que costuraram fundamento da conceituação por meio atendimentos das demandas políticas, so- de: novas leituras, mais intrinsecamente ciais, físicas e territoriais, a simplicidade ligadas aos objetos da intervenção; do apa- das intervenções contrastam com o rei- recimento de demandas concretas tanto nante desejo de utilização de arquiteturas da administração como da população; do de equipamentos públicos ou privados levantamento de restrições de caráter jurí- como fixação ostensiva de uma imagem, dico e ambientais; e da paulatina transfor- sedução de multidões e “transformação” mação do diálogo institucional em estabe- de cidades.

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06515 - 37334001 miolo.indd 122 02/12/11 16:40 Figuras 3 e 4 Margem do rio Piracicaba à altura da Avenida Beira Rio, antes das intervenções (2004). Crédito: Fábio Guimarães Rolim

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06515 - 37334001 miolo.indd 123 02/12/11 16:40 Figuras 5 e 6 Deques de restaurantes na Rua do Porto, antes das intervenções (2004). Créditos: Sabrina Rodrigues Bologna

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06515 - 37334001 miolo.indd 124 02/12/11 16:40 Neste sentido, os projetos nada mais desde as mais públicas até as privadas, das fizeram que identificar as potencialidades, coletivas às individuais, das recreativas às corrigir excessos e incentivar as próprias comerciais, das técnicas às sociais. virtudes dos locais de intervenção. E, tal Estas obras, ainda, renderam home- como em todo o processo, sempre valori- nagem às mais simples ou tradicionais ma- zando muito mais os palcos e seus atores que nifestações populares, artísticas, culturais e seus autores. religiosas que desses espaços se apropriaram, De forma quase singela, os projetos pois cada qual a seu modo não faz menor buscaram a reaproximação das pessoas com celebração ao rio, mesmo que inconsciente, o rio; criaram situações favoráveis ao pas- do que todo o esforço do projeto. seio, ao estar e à contemplação, além de estimular o convívio entre os distintos pú- Descrição das intervenções blicos que fazem uso dos locais: moradores e comerciantes, transeuntes e comensais, rua do Porto pescadores e turistas. A área de abrangência desta primei- Como coroamento de todo o pro- ra obra se estendeu por 800 metros de uma cesso iniciado anos antes, e ultrapassando região marcada por um contínuo processo os limites dos mandatos de diferentes ad- de ocupações distintas e sobrepostas: área ministrações municipais, as obras das duas de grande possibilidade de concentração de primeiras etapas de intervenção lograram agrupamentos humanos pré-coloniais; ber- boa parte dos anseios apontados desde a ço de moradias de pescadores; sítio de ex- fase de Diagnóstico. Propiciaram momen- tração de argila e sede de olarias; hoje, uma tos de incomum e sensível costura física e zona de uso misto, onde a função habitacio- histórica como a da adaptação e revisão do nal ainda resiste ao crescente comércio de projeto executivo para o reaproveitamento bares e restaurantes. de estruturas sob os barrancos das margens A localização de dois grandes parques de obra urbana (iniciadas à época da aber- públicos (Parque da Rua do Porto e Área tura da Avenida Beira Rio e ocultas havia de Lazer do Trabalhador) faz da região um décadas). Demonstraram a viabilidade de importante polo de lazer. Somam-se, ainda, recuperação de parte do espaço público festividades municipais, como a tradicional “roubado” pelas vias de tráfego, sem signi- Festa do Divino e os passeios de barcos e de ficar uma perda de fluxo viário. Permitiram, boias, que transformam ciclicamente as mar- estimularam e equilibraram toda uma gama gens do rio em praia do piracicabano. Palco de interesses e superposições de demandas, de feiras de artesanato e apresentações de

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06515 - 37334001 miolo.indd 125 02/12/11 16:40 Figura 7 música de raiz, o local seduz turistas e patrí- extenso projeto de paisagismo das áreas Ilustração da proposta de intervenção para cios e continua a atrair grandes levas de pes- verdes e de recuperação da margem com Requalificação da Rua do Porto (2003). Crédito: Fran cadores anônimos nas temporadas de pesca. vegetação nativa (antes dominada por Cavallari À região foi proposta uma série de espécies invasoras), a cargo do já citado pequenas intervenções de caráter público LERF-ESALQ/USP. e interesse coletivo: alteração dos acessos Das possibilidades pela paisagem ofe- e consequente melhor definição das rela- recidas e do componente simbólico da apro- ções entre o Calçadão da Rua do Porto ximação ao rio, foram construídas defronte e o Parque lindeiro; melhorias da acessi- a um remanescente de olaria (o Casarão do bilidade dos pedestres e pessoas com ne- Turismo, hoje sede do poder público no lo- cessidades especiais; reforma, criação ou cal) uma passarela de pedestres ao longo de ampliação de estruturas de apoio (sanitá- arrimo existente, associada a uma estrutura rios, vestiários, área de lazer, equipamen- de concreto que se comporta como banco, tos urbanos etc); incremento de vagas de palco e mirante. Este conjunto oferece vá- estacionamento; substituição e melhora rios níveis de observação do rio, qualidade dos sistemas de drenagem e iluminação multiplicada à razão das centenas de pessoas pública; elaboração e implementação de que comparecem anualmente naquele pon-

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06515 - 37334001 miolo.indd 126 02/12/11 16:40 Figuras 8, 9, 10 e 11 Fotos da Rua do Porto com as obras recém- concluídas. Créditos: Eduardo Dalcanale Martini (Foto 8), Sabrina Rodrigues Bologna (Foto 9), Fábio Guimarães Rolim (Fotos 10 e 11).

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06515 - 37334001 miolo.indd 127 02/12/11 16:40 to para acompanhar o encontro dos barcos, O recurso utilizado foi o de reorgani- clímax da Festa do Divino. zar a ocupação da margem pela alternância Outra proposta, fundamental na in- de planos e níveis. Desta forma, o projeto tenção do projeto, é a reorganização dos reaproximou as pessoas do rio, criou situa- elementos componentes da estreita faixa ções favoráveis ao passeio e ao estar, ao tra- de 20 metros entre a testada do casario e balho e à contemplação. a água, buscando convidar, abrigar e esti- mular um rico convívio entre moradores largo dos Pescadores e comerciantes, transeuntes e comensais, Diferentemente da obra na Rua do contempladores, pescadores e turistas, áreas Porto, onde a soma de pequenas inter- construídas e áreas verdes. venções se uniram para obtenção do re- O antigo “calçadão” não incentivava sultado desejado, neste segundo projeto, sua apropriação pelos pedestres, tanto de- parcialmente executado(6), a utilização vido à calha de rua mantida intacta quan- dos recursos se concentrou principalmen- do de sua criação, como pelo desrespeito à te no uso de uma ferramenta principal: a proibição de tráfego motorizado além, ain- manipulação do sistema viário. Esta pos- da, das guias, sarjetas e estreitos passeios tura se justifica pelo fato dele próprio ser remanescentes daquela condição e de sua razão de grande parte dos problemas ali ocupação indiscriminada por mesas dos diagnosticados. bares e restaurantes; a margem do rio, por Fruto das desenvolvimentistas déca- sua vez, mantinha-se oculta e inacessível, das de 1950 e 1960, a Avenida Beira Rio tomada por avanços irregulares de deques, recolocou a área ribeirinha no mapa da lajes e platôs artificiais dos restaurantes. cidade, mas, como a maior parte das inter- O novo calçadão foi inteiramente re- venções deste período, com ênfase excessi- feito com base em mudanças do piso e geo- va no trânsito motorizado em detrimento metria, com dimensões mais apropriadas ao dos espaços públicos. passeio; a margem foi liberada ao acesso em O Largo dos Pescadores, antigo en- seu trecho menos íngreme, a partir da defi- treposto e porto fluvial do “picadão de nição de arrimos recuados das novas áreas Cuiabá”, tinha suas dimensões amputadas em deques, britas e pisos vegetados. Foi, e seu contato com o rio isolado pelas duas (6) O trecho não executado então, aberta uma trilha para pedestres na faixas de rolamento da avenida. Da mesma desta etapa refere-se ao en- torno da Casa do Povoador, margem, em cuja estrutura foi incorporada forma, um antigo e importante exemplar de entre as Ruas São José e Prudente de Moraes. As a base existente do antigo arrimo em pedras arquitetura vernacular em taipa (Casa do obras já estão em andamento desde outubro de 2011. que jazia oculto sob o talude. Povoador) foi quase soterrado pela presença

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06515 - 37334001 miolo.indd 128 02/12/11 16:40 Figura 12 Ilustração da proposta para a margem do rio, privilegiando a circulação dos pedestres. Crédito: Fran Cavallari

Figura 13 Ilustração da proposta para a Avenida Beira Rio. Crédito: Fran Cavallari

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06515 - 37334001 miolo.indd 129 02/12/11 16:40 Figura 14 Ilustração da proposta para o entorno da Casa do Povoador. Crédito: Fran Cavallari

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06515 - 37334001 miolo.indd 130 02/12/11 16:40 Figura 15 Largo dos Pescadores após a execução das obras de requalificação. Crédito: Justino Lucente.

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06515 - 37334001 miolo.indd 131 02/12/11 16:40 esmagadora do muro de arrimo de sustenta- Este recurso possibilitou uma melhor ção das referidas pistas. apreensão visual do rio, antes fragmentada O passeio público lindeiro ao rio es- pela distância e pelos obstáculos entre o premia-se entre as guias da avenida e um Largo e as margens. contínuo guarda-corpo de proteção e isola- Local de acontecimentos de várias mento em relação às margens. festividades que contam com o fechamento Baseada em contagens de veículos e do fluxo de veículos durante suas realiza- análises de mobilidade da região, foi pro- ções, no Largo foi utilizado o mesmo piso posta a transformação do trecho final desta dos grandes níveis moderadores de tráfego avenida em via de mão simples num trecho a ele lindeiros. Estes resultam, no dia-a-dia, de apenas quatro quadras entre as Ruas numa prevalência do pedestre naquele en- Prudente de Moraes e Rangel Pestana. contro de fluxos e, durante as festividades, O projeto se utilizou do ganho espa- numa extensão da praça à população, sem a cial gerado pela exclusão de uma das pistas presença de guias e sarjetas. para articular uma série de mudanças nos Ao restante do percurso foi aplicado espaços públicos. Entre o Largo e a Casa um alargamento dos passeios, em especial do Povoador (ainda não implantado) foi da calçada junto às edificações; na face planejado um eixo diagonal que conduz a marginal ao rio, a adequação da largura do alterações simultâneas nestes espaços e na piso e a retirada dos guarda-corpos, com a relação entre ambos. implantação de um talude gramado ao lon- Com o recuo da pista, a Casa do go dos desníveis existentes. A retirada das Povoador, hoje museu municipal, ganhará barreiras e a atração natural e visual desper- visibilidade com uma encosta mais suave, na tadas pelas águas são um convite ao passeio qual foi proposta uma arquibancada de estar na orla ou ao pouso descompromissado sob e acesso, convidando à entrada na casa-mo- a sombra das árvores no percurso. numento ou à mera contemplação do rio e do salto, visíveis logo abaixo. Espera-se que Conclusão o local, hoje quase despercebido, ganhe mais vitalidade e se torne um polo de atração. O primeiro grande desafio para o Em relação ao Largo, as mudanças vi- Projeto Beira-Rio já teve uma consequência saram claramente recuperar parte do espaço positiva, dada a continuidade da execução perdido para o viário. Foi proposto o nive- do projeto na margem esquerda, atingindo lamento de todo seu piso, resultando num já duas etapas concluídas e em vias de uma destaque em relação ao nível do leito viário. terceira ter início.

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06515 - 37334001 miolo.indd 132 02/12/11 16:40 Assim, subsistem outras dimensões sociais, dentre outros, em associação com do Projeto a serem equacionadas e imple- o poder público em suas distintas esferas e mentadas, como a gestão dos espaços públi- instâncias, com atribuição de gerir a conti- cos requalificados e a natureza matricial do nuidade programática do Projeto Beira-Rio Projeto. e garantir-lhe sua matricialidade. Em relação ao primeiro ponto, é pre- Os objetivos de tal fórum poderiam, ciso ter claro que a própria noção de espaço então, ser divididos em três grupos, tendo- público é marcada por conflitos, muitas ve- -se sempre como focos e limites os conceitos zes entendido de modo falho, fragmentado emanados pela evolução Diagnóstico-PAE: e eivado de vícios privatizantes. Na região • desenvolvimento e refinamento das di- da Rua do Porto, a antiga prática de con- retrizes e implementação de ações pre- siderar o espaço público próximo aos esta- vistas pelo Plano de Ação Estruturador, belecimentos comerciais como extensão nos mais diversos âmbitos de atuação e natural das propriedades particulares deve escala – Educação Ambiental, interven- ser combatida para que os problemas ante- ções arquitetônico-urbanísticas, recu- riores ao Projeto não retornem, prejudican- peração e preservação de patrimônios do todo o esforço investido. estratégicos (tanto naturais como cons- Quanto à natureza matricial do truídos), etc; Projeto, diversos de seus aspectos ou valo- • promoção da articulação e transversali- res devem gradativamente nortear todas as dade entre as diversas esferas em que se intervenções relacionadas ao rio, ainda que compõem o Executivo (instituto de pla- não sejam do escopo específico do Projeto, nejamento, autarquia de água e esgoto, a fim de não ocasionar prejuízos e riscos à secretarias de meio ambiente, trânsito, rica paisagem ribeirinha piracicabana. transportes, cultura, esportes, educa- Tais questões apontam para uma ne- ção etc) e entre a diversidade de atores cessidade já sentida quando do desenvol- institucionais com ingerência no corpo vimento do Projeto: a constituição de um d’água (órgãos de proteção ambiental e fórum permanente de discussão e proposi- cultural, secretarias estaduais, comitê e ção que promova a articulação e transver- consórcio de bacias hidrográficas, prefei- salidade entre os diversos segmentos que turas de outros municípios etc); atuam no contexto ribeirinho, ampliando a • promoção da participação e envolvi- participação e controle social. Essa estrutu- mento comunitários e da sociedade or- ra deveria promover a articulação de seto- ganizada nos desenvolvimentos das duas res acadêmicos, empresariais, movimentos frentes de trabalho supracitadas.

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06515 - 37334001 miolo.indd 133 02/12/11 16:40 A consecução desta empreitada – que, concentrado numa mesma direção para o afinal, já teve início com a maturação de seus enfrentamento de uma decisiva mudança conceitos, o fortalecimento de instrumentos paradigmática. Processo bastante possível de de análise, a interlocução e a definição de ser comparado simbolicamente ao confronto premissas e a continuidade das obras – re- dos peixes com o obstáculo do salto quando quer sem dúvida grande esforço coletivo e de seu percurso rio acima – a piracema.

Referências Bibliográficas

LERF – Laboratório de Ecologia e Restauração STEFANI, Arlindo. “Projeto Beira-Rio. Florestal/ESALQ. “Plano de Adequação Diagnóstico. Prefeitura do Município Ambiental e Paisagística do trecho de Piracicaba – A cara de Piracicaba”. urbano das margens do rio Piracicaba”. Relatório Final. Issy: 2001a. Piracicaba: LERF-ESALQ/USP, 2003. ______“Projeto Beira-Rio – Prefeitura PMP. “Projeto Beira-Rio: Plano de Ação de Piracicaba/SP. 2001-2005. Proposta Estruturador”. Piracicaba: PMP, 2003. Provisória”. Issy: 2001b. Mimeo.

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Recuperação de rios urbanos

MARIA CECÍLIA BARBIERI GORSKI

06515 - 37334001 miolo.indd 135 02/12/11 16:40 MARIA CECÍLIA BARBIERI GORSKI é sócia diretora da empresa Barbieri + Gorski Arquitetos Associados que desenvolve trabalhos de planejamento e projetos paisagísticos e projetos na área de recreação em vários estados do Brasil. É autora do livro “Rios e Cidades: Ruptura e Reconciliação” publicado em 2010 pela Editora Senac São Paulo.

06515 - 37334001 miolo.indd 136 02/12/11 16:40 A condição dos rios, de modo geral, atividades extrativistas, como a pesca, e evoluiu de base de assentamento de núcleo para a mineração de areia, argila e pedras. de urbanização a empecilho para o desen- Os cursos d’água são também marcos volvimento urbano. referenciais e demarcadores de território. Os cursos d’água se constituíram, por Muitas das divisas entre estados brasileiros séculos, em ambientes atraentes para a cria- foram estabelecidas pelo traçado dos rios. ção de assentamentos assegurando a subsis- O traçado de eixos viários, ferrovias e de- tência de homens e animais, a possibilidade pois rodovias coincidem muitas vezes com de permanência no sítio e a organização de os eixos fluviais. várias civilizações. O desequilíbrio entre o desenvolvi- Em certas regiões do Brasil, as mento socioeconômico e a qualidade am- populações ribeirinhas tiveram, e ain- biental do meio físico passa a se acentuar a da têm seu cotidiano associado aos rios partir da segunda metade do século XX. e córregos. Assim, a água é utilizada na Dentre as principais ações antrópi- habitação, na ativação de engenhocas, cas, características do desenvolvimento como o monjolo ou roda d’água, e está urbano que impactam os sistemas fluviais, presente em espaços de lazer, como o fu- podemos citar a supressão das matas ciliares tebol de várzea. e redução das florestas, as alterações morfo- O leito fluvial serve, ainda, para o lógicas no leito dos cursos d’água, nos ba- deslocamento, para lavagem de roupas e nhados e nos deltas, o impacto do crescente

06515 - 37334001 miolo.indd 137 02/12/11 16:40 volume dos deflúvios lançados nos canais áreas lindeiras. A situação de ruptura nas fluviais decorrente da contínua imperme- relações entre as cidades e os cursos d’água abilização do solo urbano e a invasão das e o surgimento de planos de recuperação várzeas pela pressão dos sistemas ferroviário dos corpos d’água no ambiente urbano são e rodoviário. o tema central deste artigo. No Brasil, acrescem-se às interferên- A partir da exploração e do enten- cias elencadas, a situação de desigualdade dimento de seis casos de recuperação de social e o déficit habitacional que propiciam rios urbanos, três deles brasileiros e três a ocupação irregular das APPs – Áreas de localizados na América do Norte, buscou- Proteção Permanente – dos córregos e rios. -se uma metodologia que possibilitasse A precariedade do saneamento básico, a au- extrair quais os princípios relevantes por sência de planos diretores de drenagem ur- eles adotados. bana e a falta de integração entre as diversas Neste artigo serão expostas as cate- esferas e setores de gestão agravam o quadro gorias de abordagem e de análise dos proje- de deterioração da rede hidrográfica brasi- tos de recuperação de rios urbanos. Sendo leira, assim como as abordagens setoriais e o Projeto Beira-Rio um dos três casos bra- unidisciplinares que privilegiaram por déca- sileiros estudados, busca-se aqui posicio- das a geração de energia sem a devida ava- ná-lo em relação às categorias de análise liação dos impactos ambientais envolvidos. apresentadas. Os prejuízos aos sistemas fluviais mais evidentes são a degradação da qualidade da Planos de Recuperação água e alterações nas condições hidrológi- de rios urbanos cas do rio, afetando seu leito, capacidade de drenagem e fluxo. Este quadro tem implica- Para estabelecer o termo adequado do em aumento das inundações, em escassez a ser aplicado na requalificação dos cursos do volume de água e deterioração de sua d’água buscaram-se as definições adotadas qualidade enquanto recurso hídrico para pelo programa da Comissão Europeia – abastecimento urbano. A fauna e flora nas URBEM (Urban River Basin Enhancement áreas do entorno dos córregos são profun- Methods) que se dedica ao estudo de bacias damente afetadas, tendendo a se extinguir. hidrográficas urbanas. O ambiente de esportes, turismo e As intervenções são assim definidas: lazer proporcionado pelas orlas ribeirinhas • restauração – restabelecimento da con- desapareceu do cenário de nossas cidades dição original do curso d’água no tocan- ocorrendo em geral a desvalorização das te às suas características físicas, quími-

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06515 - 37334001 miolo.indd 138 02/12/11 16:40 cas e biológicas, ou seja, um retorno de para resolução dos problemas ambientais e cunho funcional e estrutural ao estado a abordagem ecológica de preservação da pré-antropização; natureza e dos recursos naturais. • reabilitação – retorno parcial às con- dições funcionais e/ou estruturais do Os Movimentos mundiais de estado original ou pré-degradação do qualidade do meio ambiente curso d’água ou resgate do equilíbrio favorecendo o surgimento de planos funcional; de recuperação de rios urbanos. • renaturalização – recriação naturalísti- ca de um ecossistema fluvial, sem, con- É importante situar o advento dos tudo, restabelecer o traçado original do planos de recuperação urbanos na esteira da curso d’água. reflexão que os movimentos mundiais sobre • recuperação – melhoria do estado do cur- a qualidade do Meio Ambiente promove- so d’água e seu entorno, tendo como obje- ram, de forma determinante, para a cons- tivo uma valorização geral das dimensões cientização da importância da qualidade do ecológica, social, econômica e estética. Meio Ambiente no planeta, considerando- -se os impactos ocasionados pelo desenvol- O termo recuperação pareceu ser o vimento econômico e pela intensificação mais adequado aos propósitos dos planos da urbanização. que vêm sendo desenvolvidos da década A Conferência da ONU – de 1990 em diante, em que se propugna a Organização das Nações Unidas sobre o integração dos rios com o tecido urbano Meio Ambiente que se realizou em junho buscando um equilíbrio entre o desenvolvi- de 1972, em Estocolmo, foi um marco fun- mento econômico-social e a preservação do damental, a partir de quando se começa- meio ambiente. ram a desenvolver a legislação, os minis- Essa temática está intimamente vin- térios e entidades comprometidas com as culada ao planejamento da paisagem e do questões ambientais. território, envolvendo a gestão do sítio Vinte anos mais tarde, a Conferência, urbano e dos recursos naturais. Os valores conhecida como Cúpula da Terra, Rio 92 ou ambientais, paisagísticos, estéticos e cultu- Eco 92, reuniu cerca de 178 nações em tor- rais emanados da sociedade em geral ou de no da equação meio ambiente e desenvol- grupos específicos podem contribuir para vimento, resultando em cinco importantes as tomadas de decisão e oscilam entre a documentos: Convenção sobre Mudança credibilidade na engenharia ou na técnica Climática, Convenção sobre Diversidade

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06515 - 37334001 miolo.indd 139 02/12/11 16:40 Biológica, Princípios para Manejo e Categorias de abordagem por parte Conservação de Florestas, Declaração do dos planos de recuperação de rios Rio e a Agenda 21. urbanos A Constituição Federal de 1988 e a Constituição Estadual de São Paulo de Como mencionado anteriormente, 1989 já consideravam a água como um bem para entender os planos de recuperação de público e, a bacia hidrográfica, como a uni- rios urbanos, sua abrangência e os princí- dade territorial de planejamento e gestão. pios que os têm norteado, selecionaram-se Regulamentada a Constituição de para estudo os seguintes casos: 1989, o governo instituiu pioneiramente 1. Rio Don localizado em Toronto no Estado de São Paulo, por meio da Lei – Canadá; Estadual 7.633/91, a Política Estadual de 2. Rio Los Angeles localizado em Los Recursos Hídricos e o SIGRH – Sistema Angeles – EUA; Integrado de Recursos Hídricos em São 3. Rio Anacostia localizado em Paulo, composto pelos Comitês de Bacia, Washington – EUA; CRH – Conselho Estadual de Recursos 4. Projeto Beira-Rio, desenvolvido em Hídricos e FEHIDRO – Fundo Estadual de Piracicaba, São Paulo; Recursos Hídricos(1). 5. Rio Cabuçu de Baixo, tributário do rio Os Comitês de Bacia Hidrográfica fo- Tietê na cidade de São Paulo; ram definidos como as instâncias descentra- 6. Parque Mangal das Garças, situado na lizadas de gestão das bacias hidrográficas nas orla do Rio Guamá, em Belém do Pará. 22 UGRHIs – Unidades de Gerenciamento Não cabe aqui aprofundar o estudo dos Recursos Hídricos, em que foi dividido desses casos, mas sim apontar os princípios o território paulista, sendo constituídos de gerais que foram observados e extraídos nos forma tripartite – isto é, com a participação planos, classificados em cinco categorias de equitativa de representantes do Estado, dos atuação dos planos de recuperação dos rios municípios e da sociedade civil. O CRH é urbanos. São elas: a instância central deliberativa de recur- sos hídricos em causas que ultrapassem os 1 – Recuperação e proteção do limites das UGRHIs ou sejam de interesse sistema fluvial do Estado. O FEHIDRO constitui-se em suporte financeiro do sistema de gestão das Ao tratar da recuperação e proteção (1) FEHIDRO disponível águas com caráter descentralizado no âmbi- do sistema fluvial, é necessário entender o em http://fehidro.sigrh. sp.gov.br/fehidro/index.html to de cada Comitê de Bacia. rio como unidade ecológica e funcional,

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06515 - 37334001 miolo.indd 140 02/12/11 16:40 Figura 1 Grande Biorregião de Toronto, localização da Bacia Hidrográfica do rio Don. Adaptada pela autora de HOUGH (1995, p. 52). Desenhada por Ricardo Gusmão.

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06515 - 37334001 miolo.indd 141 02/12/11 16:40 142 Piracicaba, o rio e a cidade: ações de reaproximação

06515 - 37334001 miolo.indd 142 02/12/11 16:41 Figura 2 Meandros originais do rio Don, desconfigurados pela canalização. Adaptada pela autora de imagem de arquivo do escritório du Toit Allsopp Hillier, cedida por Bryce Miranda. Desenhada por Felipe Bracco.

Figura 3 Bacia do Los Angeles, que deságua no Oceano Pacífico no Porto de Long Beach. Adaptada pela autora a partir de Google Earth. Acesso em 16 nov. 2007. Desenhada por Ricardo Gusmão.

Figura 4 Foto aérea do trecho central da área de revitalização do rio Los Angeles. Crédito: LARRMP (2007, cap. 6, p. 6/23). Disponível em . Cedida por Mia Lehrer & Associates, Landscape Architecture (www.mlagreen.com).

Figura 5 Bacia Hidrográfica do rio Anacostia. Adaptado pela autora de “The Anacostia Waterfront Framework Plan – District of Columbia Office of Planning” disponível em http://www. planning.dc.gov/planning/ frames.asp?doc=/planning/ LIB/planning/project/ anacostia_waterfront/ framework-pdf 2003, p.26). Desenhada por Ricardo Gusmão.

Figura 6 Bacia do rio Cabuçu de Baixo no contexto da RMSP. Adaptada pela autora de BARROS (2005, caderno de anexos, p. 14). Desenhada por Ricardo Gusmão.

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06515 - 37334001 miolo.indd 143 02/12/11 16:41 Figura 7 Localização da área de implantação do Parque Mangal das Garças. Adaptado pela autora a partir de Google Earth. Acesso em 16 nov. 2007. Desenhada por Ricardo Gusmão.

Figura 8 Parque Mangual das Garças a) Aspecto da área antes da intervenção: terreno beira-rio isolado da várzea por muro de fechamento; b) Aspecto da área depois da intervenção implementada. Crédito: Arquivo Rosa Grena Kliass.

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06515 - 37334001 miolo.indd 144 02/12/11 16:41 dentro do contexto da bacia hidrográfica – terrando, não as compactando e mantendo- nascentes, tributários, planícies de inunda- -as revestidas por vegetação; b) interceptar ção e alterações estruturais – e caracterizá- fontes de poluição, pontual ou difusa, por -lo ao longo de sua extensão, identificando meio da coleta e do tratamento do esgoto as características dos trechos compreendi- e do gerenciamento e tratamento das águas dos na área urbanizada. Com isto, é possível pluviais; c) promover a coleta seletiva do subdividi-los em segmentos a serem trata- lixo e dos resíduos sólidos oriundos da cons- dos de acordo com suas especificidades, sem trução civil. perder a noção do continuum. No Brasil 60% dos domicílios são li- Essa categoria está intimamente asso- gados a redes de esgoto, sendo que apenas ciada à caracterização do sítio e dos ecossis- 40% do esgoto é tratado. Assim sendo, os temas a ele associados – aquáticos, anfíbios e rios como fontes de abastecimento urbano terrestres – e subdivide-se nos seguintes temas: são afetados a ponto de não se prestarem mais para este fim. Qualidade da água O município de Piracicaba, em fun- Relaciona-se às nascentes, às cabe- ção da poluição do rio Piracicaba, prove- ceiras, aos córregos tributários, aos banha- niente dos municípios à montante, recor- dos ou alagados, às várzeas ou planícies de re ao rio Corumbataí. Entre os objetivos inundação, à presença da vegetação ripá- contemplados no PAE – Plano de Ação ria ou não e à contribuição de poluentes Estruturador consta a recuperação da quali- e resíduos. dade da água, tendo como diretrizes a con- Trata-se de um dos objetivos mais clusão dos interceptores paralelos ao rio e complexos a serem atingidos pelos planos, construção de ETE – Estação de Tratamento os quais estabelecem horizontes de longo de Esgoto. Constam ainda a coleta seletiva, alcance. O prazo demandado para recupe- a reciclagem do lixo e a industrialização dos ração das águas se justifica pela dificuldade resíduos sólidos. de atuação na escala da bacia hidrográfica, Nos estudos de casos norte-america- pelo montante de investimentos requerido, nos, como o saneamento básico está equa- pelo monitoramento constante que se faz cionado, o foco de atenção se concentra necessário e pela abrangência de diversos no combate à poluição difusa, que inclui fatores que afetam a qualidade da água. as cargas tóxicas contidas nas áreas que an- Para a melhoria da qualidade da água, teriormente abrigavam indústrias e aterros a abordagem comum entre os planos consis- sanitários (denominados brownfields), ou te em: a) proteger as nascentes, não as so- provenientes dos leitos carroçáveis das vias. Recuperação de rios urbanos 145

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06515 - 37334001 miolo.indd 146 02/12/11 16:41 Figura 9 (a, b, c) Características hidrológicas e morfológicas O rio Piracicaba apresenta um dife- Etapas de tratamento do canal do rio Los do rio, que se referem ao ciclo hidrológico, rencial pelo fato de seu curso ser próximo Angeles com ênfase na vegetação ripária e no à dinâmica do curso d’água, com seus do traçado original, mantendo o meandro. acesso ao rio. Crédito: processos de erosão e sedimentação, e à Portanto, as diretrizes e propostas concen- LARRMP (2007, cap.4, p. 4/4 – 4/5). Disponível forma natural do leito fluvial; tram-se na proteção, preservação e manuten- em . Cedida por Mia gicas e morfológicas dos rios, grandes estragos gação fluvial como forma de valorizar o rio. Lehrer & Associates, ocorreram por meio de intervenções da en- O Sistema Cantareira de abasteci- Landscape Architecture (www.mlagreen.com). genharia, no entusiasmo do tecnocentrismo. mento de água para a região metropolitana Hoje, intervenções tais como canalização ou de São Paulo, importando água da bacia do tamponamento de cursos d’água são alvos de Piracicaba, trouxe impactos hidrológicos à críticas contundentes, pois ocasionam danos região como stress hídrico na época da es- radicais aos ecossistemas, ao comportamen- tiagem e ameaça de inundações durante a to hidrológico do sistema fluvial e à paisa- estação das chuvas, quando as comportas do gem urbana, além de não solucionarem a sua reservatório do sistema têm que ser abertas. principal meta – conter inundações. As propostas relativas à hidrologia e ecossistema e biodiversidade à morfologia englobam a recriação de me- Este tema está diretamente relacio- andros onde for possível. Incluem, ainda, o nado às matas ripárias e à conectividade en- tratamento paisagístico das margens, a re- tre fragmentos de vegetação, o que poderá cuperação dos fundos de vale, a manuten- assegurar a diversidade da fauna. ção do traçado original do rio, a ampliação A recuperação da biodiversidade e a da capacidade de inundação por meio da proteção ou reintrodução dos ecossistemas remoção de sedimentos, a diminuição da são objetivos de grande relevância nos pla- velocidade do fluxo aplicando as medidas nos analisados. As diretrizes fundamentais de remoção do tamponamento do canal, a abarcam a proteção e a valorização das pai- remoção das paredes de contenção de con- sagens naturais remanescentes, bem como a creto e a implantação da vegetação ripária. recuperação dos habitats naturais, dos deltas Propõem-se também a redução do impacto e das funções ecológicas. Assim, as propos- do volume das águas pluviais sobre os lei- tas decorrentes visam à recomposição da tos dos canais fluviais, por meio dos planos vegetação ripária com espécies nativas. de micro e macro drenagem, por meio da O Projeto Beira-Rio propõe a criação construção de bacias ou lagoas de deten- de corredores biológicos, com o plantio de ção e retenção. vegetação adequada a esse contexto, bus- Recuperação de rios urbanos 147

06515 - 37334001 miolo.indd 147 02/12/11 16:41 cando associar as questões ambientais aos evidentes: desconcentrar os deflúvios por usos urbanos consolidados. meio da alocação de espaços livres vege- tados na macro e micro escalas e adotar Controle de inundação, drenagem e propostas de infiltração. permeabilidade do solo Outro aspecto que se nota nos planos O controle de inundação é um dos internacionais é que adotam, com freqüên- principais elementos motivadores da ela- cia, soluções de drenagem associadas ao boração dos planos. Os problemas causa- tratamento paisagístico, como os jardins de dos pelas inundações estão intimamente chuva, bacias de detenção vegetadas e ba- relacionados à falta de equacionamento da nhados construídos, estacionamentos com drenagem e à impermeabilização do solo pisos drenantes e arborização, entre outras, urbano. Várias medidas em relação à drena- proporcionando ao ambiente urbano múlti- gem estão em desacordo com as abordagens plas funções de infraestrutura, áreas de ame- contemporâneas mais associadas ao uso e nização do ambiente e recreação. ocupação do solo nas áreas de várzea e áreas No Brasil, foram adotados os pis- lindeiras aos cursos d’água. cinões, que, apesar de atuarem como mi- Nota-se que todos os casos estuda- tigadores nas enchentes, representam um dos, anteriormente mencionados, empre- transtorno em termos de qualidade do am- gam planos de drenagem que adotam pre- biente urbano. dominantemente medidas não-estruturais O Projeto Beira-Rio contempla o in- e estruturais não convencionais, tais como: cremento da captação das águas pluviais na alargamento das várzeas; proteção ou cria- macro e na micro escalas. Na micro escala ção de alagados ou banhados; retenção das estão previstos o uso de pisos drenantes e o águas pluviais nas escalas do lote ou bairro, plantio de árvores. do sistema viário e na expansão das áreas de várzea; aumento de áreas verdes livres e 2 – Articulação com as políticas de recreação; racionalização de áreas pavi- urbanas mentadas e aumento da permeabilidade do solo urbano por meio de lagoas ou bacias O uso e ocupação do solo e as políti- de detenção, retenção ou jardins de chuva; cas de desenvolvimento econômico se rela- introdução de biovaletas e redução da velo- cionam às diretrizes a serem adotadas pelos cidade do fluxo das águas pluviais. planos de recuperação de rios urbanos. Duas medidas fundamentais para Esse aspecto está relacionado às vá- garantir a eficiência da drenagem ficam rias esferas jurisdicionais de decisão gover-

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06515 - 37334001 miolo.indd 148 02/12/11 16:41 namental, federal, estadual e municipal, reintegrá-lo por meio de conexões transver- tendo como bases os marcos regulatórios sais, longitudinais e também prover acesso e as negociações entre as várias instâncias atraente e seguro para as orlas. governamentais e os atores integrantes do Esse princípio subdivide-se nos se- processo de desenvolvimento do plano. guintes temas: O princípio da articulação com a po- lítica urbana, portanto, subdivide-se em: Conexão intraurbana Trata-se da integração entre bairros, Planejamento do uso e ocupação do solo bem como das conexões no sentido trans- e os ecossistemas fluviais versal ao rio – pontes, passarelas e balsas – São estratégias que envolvem a articu- e, longitudinal – sistema de navegação arti- lação do plano às políticas urbanas, particu- culado ao sistema viário estrutural. larmente em relação à definição de usos, aos Quanto à conexão intraurbana, os critérios de parcelamento do solo, aos índi- planos propõem predominantemente ações ces de ocupação, às áreas destinadas ao lazer, diretas, tais como a introdução de pontes, aos equipamentos públicos e à infraestrutura. passarelas e balsas para cruzamento do rio, conectando-o ao sistema viário estrutural e Metas de desenvolvimento econômico aos bairros adjacentes; a introdução ou re- integradas às metas ecológicas cuperação da navegação, inserindo-a num São políticas envolvendo geração sistema de transportes intermodal, e a cria- de emprego e renda que se integram dian- ção de áreas públicas verdes e de recreação te dos ecossistemas, aqui entendidos como de acesso fácil e seguro. sistemas fluviais. No campo econômico, po- O Projeto Beira–Rio, sob esse aspec- líticas de desenvolvimento urbano aliadas to, propõe a exploração do rio como um ca- a oportunidades de geração de emprego e minho e a valorização de percursos a serem renda são essenciais para atuar em conjunto realizados a pé. com a recuperação do meio físico. acesso ao rio e a atividades de lazer 3 – Inserção do rio no tecido urbano Identificar nos planos a presença de áreas públicas verdes de lazer, com acesso Na medida em que o rio é encara- fácil e seguro. do como obstáculo, que segmenta o tecido A partir das últimas três ou quatro urbano e apresenta a orla isolada e desvin- décadas do século XX, os rios nas áreas ur- culada das áreas urbanizadas, é necessário banizadas têm sido encarados, de modo ge-

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06515 - 37334001 miolo.indd 149 02/12/11 16:41 Figura 10 Bacia do rio Cabuçu de Baixo – Programa de Ação 1: Controle de cheias/ Medidas em rua de fundos de vale, Caminhos Verdes. Crédito: BARROS (2005, p. 227 – 230). 10a – Levantamento fotográfico da autora, out. 2009. 10b – Adaptada pela autora, desenhada por Flávio Ventura.

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06515 - 37334001 miolo.indd 150 02/12/11 16:41 Figura 11 Bacia do rio Cabuçu de Baixo – Programa de Ação 2: Preservação e Recuperação Ambiental – Situação atual. Crédito: BARROS (2005, p. 281 – 284). 11a – Levantamento fotográfico da autora, out. 2009; 11b – Adaptada pela autora, desenhada por Flávio Ventura.

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06515 - 37334001 miolo.indd 151 02/12/11 16:41 Figura 12 Bacia do rio Cabuçu de Baixo – Parque Linear do Bananal. Tratamento das margens e criação de passarelas adequadas à travessia de pedestres. Crédito: BARROS (2005, p. 305 – 308). 12a – Levantamento fotográfico da autora, out. 2009; 12b – Adaptada pela autora, desenhada por Flávio Ventura.

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06515 - 37334001 miolo.indd 152 02/12/11 16:41 Figura 13 Plano estratégico para o Baixo Don – compartimentação e categorização dos segmentos, e respectivas propostas. Adaptada pela autora de imagem de arquivo do escritório du Toit Allsopp Hillier., cedida por Bryce Miranda, desenhada por Felipe Bracco.

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06515 - 37334001 miolo.indd 153 02/12/11 16:41 ral, como obstáculos. Assim sendo, todos parques, corredores verdes e espaços abertos os planos apresentam propostas de conec- urbanos; exploração do potencial dos ele- tividade e mobilidade, que se traduzem em mentos pontuais reconhecidos pela popula- reconectar os corpos d’água e a população ção como patrimônios culturais, ambiental ao rio, integrá-los num sistema intermodal e de lazer, de modo a facilitar a visualização de transportes que inclua a navegação ou a do rio como elemento de referência urbana. travessia por balsa, além do cruzamento do rio para pedestres, bicicletas e veículos em 4 – Valorização da identidade local e geral. O plano de Anacostia, por exemplo, do sentido de cidadania incluiu mais uma modalidade de transpor- tes – o de veículo leve sobre trilhos. De acordo com Leccese et al (2004), Essas medidas de integração po- todo rio tem uma história e uma relação dem ocorrer por meio de ações diretas ou com a cidade muito particulares, que devem indiretas. ser entendidas e valorizadas, pois se trata de As ações diretas implicam em reali- um significativo fator de identidade, asso- zação de obras nos espaços públicos, como ciado a atividades culturais, recreacionais, parques, lineares ou não, incremento dos esportivas, produtivas, religiosas e outras. sistemas viário e de transportes públicos e Esse tema apresenta grande potencial de tratamento das margens dos rios de maneira motivação para adesão a movimentos de a acolher a população. preservação ou recuperação de rios urbanos. As ações indiretas são medidas de A valorização da identidade local e indução às transformações no espaço priva- do sentido de cidadania subdivide-se em: do, que podem ocorrer por meio de campa- nhas, educação ambiental, normatização e recuperação e proteção do patrimônio incentivos. cultural e ambiental Quanto ao acesso ao rio, os planos Neste caso são identificados valores estabelecem duas modalidades de ações, materiais e imateriais a serem preservados. com propostas que incluem: remoção de Entre os casos estudados, nota-se que barreiras; acesso seguro e atraente para os áreas degradadas são tidas como ambientes pedestres e ciclistas, atentando para a qua- ameaçadores, sendo que, efetivamente, pas- lidade do projeto e do mobiliário urbano, sam essa sensação pela condição de abando- para assim incentivar as atividades de lazer no e pela falta de acesso à segurança. nas orlas fluviais nos períodos diurno e no- A valorização da identidade local e turno; conexão entre a orla e um sistema de do sentido de cidadania foi aqui analisada

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06515 - 37334001 miolo.indd 154 02/12/11 16:41 sob a ótica de dois temas: recuperação e ainda, a manutenção dos usos históricos e proteção do patrimônio cultural e ambien- consolidados, como a atividade de pesca. tal e sensibilização e participação da socie- dade civil na elaboração do plano. sensibilização e participação da sociedade De modo geral, os planos propõem civil na elaboração do plano a revitalização dos vales, ressaltando a im- A meta de envolver a população da portância da bacia hidrográfica e realizando cidade ou das vizinhanças do rio está pre- ações que visam reforçar o patrimônio cul- sente em todos os planos, sendo esse en- tural. Dentre essas ações, destacam-se: res- gajamento encarado como fundamental gate das lembranças do passado do rio; pre- para o desenvolvimento do plano, sua im- servação das atividades consolidadas, como plementação e monitoramento. Um fator a pesca, procurando manter a população no bastante valorizado é a participação dos local; apresentação da paisagem da cidade atores nas reuniões de desenvolvimento vista do eixo do rio, valorizando-a; forma- do plano, quando se discutem as propostas, ção de parcerias com instituições de ensi- bem como na fase de captação de recursos e no, pesquisa, esporte, cultura, sejam elas definição de estratégias de implementação, governamentais, não governamentais ou da em que a transparência das decisões e a re- iniciativa privada, de modo a promover o dução de conflitos de interesses contribuem nível sociocultural da população local. positivamente. O Projeto Beira-Rio propõe a valo- Nos casos brasileiros, a participação rização do patrimônio histórico-cultural as- da comunidade também tem sido funda- sociado ao patrimônio ambiental. Entende mental no processo, principalmente em que a paisagem da cidade a partir do eixo função do atual modelo de gestão dos recur- do rio é uma experiência a ser incentivada. sos hídricos, que se dá de forma tripartite e Assim, procura estabelecer diretrizes para paritária. A intervenção no rio Piracicaba as formas de ocupação da área, evitando é um exemplo significativo, em que a par- impactar o conjunto das quadras tomba- ticipação da sociedade se deu no processo das, adjacentes à Rua do Porto. Da mesma como um todo. forma, busca valorizar e qualificar os pa- As principais iniciativas para obten- trimônios edificados encontrados na área, ção dessa meta são: como, por exemplo, o entorno da Casa do • Promover o rio como elemento essencial Povoador, que será todo remodelado, bem para a cidade e para a sociedade; como a restauração das chaminés remanes- • Promover o envolvimento da comuni- centes de antigas olarias. Procura valorizar, dade por meio do desenvolvimento de

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06515 - 37334001 miolo.indd 155 02/12/11 16:41 156 Piracicaba, o rio e a cidade: ações de reaproximação

06515 - 37334001 miolo.indd 156 02/12/11 16:41 Figura 14 Projeto do Parque Mangual das Garças – planta geral. Crédito: Arquivo Rosa Grena Kliass.

Figura 15 Vista aérea do Parque Mangal das Garças no primeiro plano e do rio Guamá ao fundo. Crédito: Arquivo Rosa Grena Kliass.

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06515 - 37334001 miolo.indd 157 02/12/11 16:41 projetos educacionais e recreacionais sin- Plano de recuperação do sistema fluvial tonizados com as funções naturais do rio; no contexto da bacia hidrográfica • Promover a conscientização da popula- Apesar de a bacia ser considerada ção para ações do cotidiano que contri- unidade de gestão, verifica-se que, dian- buam para a saúde do ambiente natural; te da dificuldade de articular as gestões • Revitalizar a orla do rio como espaço de municipais num âmbito regional, nem celebração e eventos especiais da agenda sempre é possível abarcar essa escala de regional; intervenção. • Valorizar o desenho das obras de arte (pontes, passarelas e outros) e do mo- viabilidade econômica biliário urbano sob o aspecto projetual, A estratégia de viabilidade se dá como elementos de valorização do am- pela hierarquização das etapas a serem im- biente urbano; plantadas, o que possibilita estabelecer as • Inserir instalações ou elementos artísti- metas correspondentes de captação de re- cos no ambiente ribeirinho; cursos por meio de conselhos plurijurisdi- • Inserir referências características do cionais ou comitês para o gerenciamento de ecossistema, tanto nos projetos relativos investimentos. ao rio como aos de seu entorno; • Acolher as reivindicações da comunida- Monitoramento e gestão de incluindo moradores, comerciantes, Essa fase se inicia junto com a imple- empresários e turistas; mentação do plano e não tem prazo para • Assegurar a vitalidade do sistema de áre- terminar, podendo mudar de jurisdição e de as verdes urbanas, tornando-o atraente grupos gestores. para a população; • Promover a capacitação para a indústria Considerações finais do turismo e do ecoturismo criando ro- tas terrestres e fluviais de apreciação da De acordo com o relatório WP2 da paisagem. URBEM, a média de duração da fase de concepção de um plano de recuperação de 5 – Implementação, monitoramento rios urbanos é de 2,6 anos; o tempo médio e gestão dos planos para levantar os fundos é de 1,7 anos e o período de implementação, 2,9 anos. Esses As estratégias de implementação, mo- números, porém, variam de acordo com a nitoramento e gestão são subdivididas em: complexidade dos planos; assim, um plano

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06515 - 37334001 miolo.indd 158 02/12/11 16:41 Figura 16 Bacia do rio Cabuçu de Baixo – Programa de Ação 3: Parque Linear do Bananal. Programa de Ação 4: Remoção da população de áreas de risco para edificações verticalizadas e recuperação do leito fluvial e das áreas de várzea.. Crédito: BARROS (2005, p. 305 – 308). 16a – Levantamento fotográfico da autora, out. 2009; 16b – Adaptada pela autora, desenhada por Flávio Ventura.

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06515 - 37334001 miolo.indd 159 02/12/11 16:41 que abarca a bacia hidrográfica terá duração bacia – desde o poder municipal, represen- bem mais longa que os planos pontuais. tado por diversas prefeituras, até as esferas O mesmo relatório observa que, no estadual e federal – defende-se a atuação na meio urbano, os componentes do triângu- microescala quando se trata da recuperação lo de sustentabilidade, que consistem nas dos rios na paisagem urbana, começando dimensões ecológica, social e econômica, pela proteção das nascentes localizadas estão mais próximos. Isso significa que, ao dentro dos limites do município e, atuan- se implementar um plano de recuperação do ao mesmo tempo nas áreas mais frágeis, de cursos d’água urbanos, o incremento como os deltas dos rios. Um conjunto de conferido ao rio se refletirá na valoriza- intervenções pontuais tem representado es- ção dos espaços envoltórios do corredor tratégias eficientes. fluvial e na elevação do padrão social. Por Por meio da concretização desse esse motivo, a avaliação da recuperação tipo de iniciativa, desde que com qualida- de um curso d’água não pode se ater, ape- de projetual e enriquecida pela inclusão da nas, aos fatores ecológicos, devendo levar dimensão estética, o efeito pode ser multi- em conta também as transformações eco- plicador, levando a adesões de parceiros, os nômicas e sociais. quais podem contribuir para a viabilidade Essas constatações trazem um alerta econômica e na consecução das etapas sub- para a ocorrência da gentrificação, e ressal- seqüentes, tal como ocorreu com o Projeto tam a necessidade de um plano de inclusão Beira-Rio, em que a Petrobras atuou na im- social que objetive prover condições de mo- plementação das duas etapas como parceira radia, trabalho e integração social, incluin- do município de Piracicaba. do programas de capacitação. Sob a pressão da legislação, da Assim como a recuperação de um conscientização da sociedade civil, da sistema no meio urbano traz vitalidade, desvalorização de áreas degradadas em uma área degradada está muito identifi- regiões lindeiras aos cursos d’água, das cada à violência e insegurança. Ao enfo- disfunções rios-cidades que resultam em car essa questão, os planos internacionais inundações e, por outro lado, sob a ins- mencionam como fator de segurança a piração de projetos bem-sucedidos de iluminação pública eficiente e a transpa- recuperação de sistemas fluviais em mu- rência da vegetação, a fim de não serem nicípios brasileiros, e com a presença de criados nichos escondidos. agências financiadoras, a perspectiva é Dada a dificuldade de coordenar as de multiplicação de casos de recuperação diversas instâncias de poder atuantes na de rios e córregos no Brasil.

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06515 - 37334001 miolo.indd 160 02/12/11 16:41 Referências Bibliográficas

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06515 - 37334001 miolo.indd 161 02/12/11 16:41 RILEY, Ann L. “Restoring streams in cities: Gulbenkian e Fundação para a Ciência a guide for planners, policymakers, e Tecnologia, 1999. and citizens”. Washington D.C.:Island URBEM – BEST PRACTICE GUIDANCE Press, 1998. FOR CITIzEN INVOLVEMENT IN SARAIVA, Maria da Graça Amaral Neto. “O RIVER RESTORATION. Disponível rio como paisagem: gestão de corredores em . Acesso em território”. Lisboa: Fundação Calouste 10/05/2008.

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SANDRA SOARES DE MELLO

06515 - 37334001 miolo.indd 163 02/12/11 16:41 SANDRA SOARES DE MELLO é Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília – PPG/ FAU/UnB. Auditora de Atividades Urbanas da Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação, Governo do Distrito Federal. Nos últimos anos vem se dedicando à abordagem integrada entre o planejamento urbano e a gestão ambiental.

06515 - 37334001 miolo.indd 164 02/12/11 16:41 Visitamos Piracicaba em outubro O processo realizado em Piracicaba de 2006, após tomar conhecimento sobre reúne os principais fatores de uma adequa- a experiência exitosa do Projeto Beira-Rio, da intervenção de qualificação de espaços desenvolvido pelo IPPLAP – Instituto de urbanos ribeirinhos(2). O texto que se segue Pesquisas e Planejamento de Piracicaba. visa a explicitar esses fatores, à luz de uma Fomos recebidos pela equipe do IPPLAP/ breve contextualização sobre o tema e do Prefeitura Municipal de Piracicaba – referencial teórico adotado no desenvol- Estevam Vanale Otero, Arlet Maria de vimento da referida tese doutoral, que ex- Almeida, Maria Beatriz S. D. Souza, Caio plora os princípios básicos de intervenção Tabajara E. de Lima – e por Renata Leme, em espaços urbanos às margens de corpos coordenadora do Projeto Beira-Rio entre d’água (córregos, rios, lagos, lagoas). Trata- 2001 e 2004. Todos nos dispensaram espe- se de tema complexo e polêmico, tendo em cial atenção, empenhando-se em apresentar vista as relações dicotômicas envolvidas e a o projeto e acompanhando-nos em visitas de abordagem transdisciplinar demandada. (1) Tese desenvolvida junto ao Programa de Pesquisa e campo. O conhecimento mais aprofunda- O Projeto Beira-Rio Piracicaba é Pós-graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, do sobre a experiência revelou-se rico refe- uma das raras experiências brasileiras de- Universidade de Brasília – PPG/FAU/UnB, sob a orien- rencial prático para a tese “Na beira do rio senvolvidas sob este enfoque integrado, tação do Prof. Dr. Frederico de Holanda (MELLO, 2008). tem uma cidade: urbanidade e valorização merecendo ser amplamente divulgada (2) Uma análise so- dos corpos d’água”, que desenvolvi junto à como referência para um movimento que bre o projeto Beira-Rio Piracicaba encontra-se em Universidade de Brasília (MELLO, 2008)(1). toma corpo em nosso país, de requalificação MELLO (2010).

06515 - 37334001 miolo.indd 165 02/12/11 16:41 dos frontais aquáticos como elementos de urbana reveste-se, entretanto de grande valorização da paisagem urbana e integra- complexidade, assumindo frequentemente ção entre cidade e natureza. caráter paradoxal. O conceito de Área de Preservação Desafios da gestão dos espaços em Permanente embute o que denomino princí- beira d’água pio de intangibilidade: a vedação não apenas à retirada de vegetação, mas a qualquer forma O planejamento dos espaços em de uso e ocupação. Este dispositivo legal, margens de corpos d’água apresenta-se voltado para a preservação das funções am- como um dos grandes desafios da pauta de bientais dos espaços em beira d’água, não gestão ambiental urbana contemporânea. incorpora também as múltiplas funções ur- A abordagem do tema implica o enfrenta- banas e o efeito de atração que estes espaços mento das relações dicotômicas afetas aos exercem sobre as pessoas. espaços ribeirinhos localizados em áreas ur- Constata-se em todo o país a prá- banas. Por um lado, a proximidade da água tica irregular da ocupação em margens de orienta a estruturação da cidade ao longo corpos d’água urbanos. Dentre os vários da história e os espaços em beira d’água fatores que contribuem para o desrespeito sempre desempenharam múltiplas funções às regras relativas às Áreas de Preservação urbanas. Por outro, as zonas ripárias – que Permanente, há que se destacar a inade- constituem os ecossistemas próprios das quação da legislação ambiental ao contexto áreas marginais aos corpos d’água – são as urbano. O idealismo das regras na maioria áreas mais dinâmicas da bacia hidrográfi- das vezes não carrega as condições para sua ca, em termos hidrogeológicos e ecológicos aplicação nas cidades e frequentemente (LIMA, 1996), desempenhando funções acaba por ter efeito inverso à proteção. ambientais essenciais. A necessidade de reavaliação das As margens de corpos d’água são de- disposições relativas às APPs urbanas moti- finidas como APPs – Áreas de Preservação vou, juntamente com outros aspectos, pro- Permanente, pelo Código Florestal cessos de discussão no âmbito do Conselho Brasileiro (Lei Federal 4.771, de 1965). Nacional do Meio Ambiente – CONAMA Trata-se de um mecanismo legal criado para e no Congresso Nacional, que continuam proteção das áreas ambientalmente sen- em pauta. A Resolução Conama n° 369, de síveis, como encostas íngremes, topos de 28 de março de 2006 é um marco importan- morro, mangues, dunas, margens de rios e te nesse processo, por prever alternativas de lagos. A questão das faixas de APP em área utilização sustentável das APPs, o que se tra-

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06515 - 37334001 miolo.indd 166 02/12/11 16:41 Figura 1 Cortes esquemáticos indicando comportamentos de transporte de sedimentos e erosão, mais acentuados em margens em declive (croqui inferior). Crédito: Sandra Soares de Mello.

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06515 - 37334001 miolo.indd 167 02/12/11 16:41 duz num atenuante ao princípio de intangi- tuar as lógicas que se apresentam como bilidade. O texto da resolução, fruto de uma relevantes para responder a esta questão, extensa negociação envolvendo interesses identificando as principais funções am- e visões conflitantes, apresenta, entretanto, bientais das margens de corpos d’água, uma série de elementos questionáveis e res- apresentadas a seguir. trições que dificultam sua aplicação(3). 1ª Função: receptar e conter os se- Muitas das polêmicas surgidas nas dimentos de toda a bacia. Sendo a última discussões sobre as APPs urbanas refletem área receptora dos sedimentos da micro- a fragilidade da fundamentação teórica e bacia hidrográfica, a manutenção das fei- técnica sobre o tema, o que inspirou o de- ções naturais e da cobertura vegetal da senvolvimento da pesquisa. No cerne da zona ripária atenua a sedimentação no questão reside a desarticulação entre a ges- leito e os riscos de assoreamento do corpo tão ambiental e a gestão urbana. d’água. (Figura 1). No quadro paradoxal relativo à ges- 2ª Função: garantir a flutuação natu- tão das margens de corpos d’água urbanos ral dos níveis d’água. Em períodos de chuvas subjazem dois paradigmas unidimensionais intensas, a água pode extravasar o canal, antagônicos: por um lado, a visão estritamen- cobrindo os terrenos do entorno. É im- te ambientalista, de que a gestão dos corpos portante resguardar espaços cobertos por d’água deve se basear apenas nos aspectos vegetação e livres de ocupação para permi- ambientais, à revelia das peculiaridades do tir a absorção natural dessa dinâmica, que meio urbano; por outro, a visão estritamente ocorre em ciclos e intensidades extrema- urbanística, que se apresenta como imposi- mente variáveis. ção da ação do homem, à revelia das condi- 3ª Função: reter as águas na micro- cionantes da natureza. A adequada aborda- bacia. As zonas ripárias funcionam como gem do tema passa pela reversão desse an- grandes “esponjas” responsáveis pela reten- tagonismo e pela consideração das funções ção da água na bacia. Por um lado, a manu- ambientais e urbanas dos espaços urbanos tenção da vegetação nessas zonas saturadas em beira d’água. de água é essencial para garantir o desem- penho do papel de regulação hídrica. Por As funções ambientais e urbanas outro, como são áreas onde o solo é pouco das margens de corpos d’água consistente, as edificações sobre as margens (3) Uma análise crítica tornam-se vulneráveis. mais pormenorizada sobre o texto da Resolução Conama Por que é importante proteger as 4ª Função: promover a estabilidade n°369/2006 encontra-se em MELLO (2007). margens dos corpos d’água? Procurei pon- das bordas do corpo d’água. O desempe-

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06515 - 37334001 miolo.indd 168 02/12/11 16:41 nho desta função condiciona, sobretudo, cas de caráter prático. Os aspectos utilitários a manutenção da vegetação, cujas raízes evidenciam-se pela multiplicidade de fun- estruturam as barrancas laterais, evitando ções desempenhadas pelos corpos d’água e o deslizamento de terra e o assoreamento suas margens, ao longo da história urbana: do leito do corpo d’água. abastecimento, higiene, pesca, recreação, 5ª Função: permitir as migrações la- irrigação, demarcação territorial, circula- terais dos cursos d’água. Os processos cícli- ção, transporte, defesa e ataque, práticas cos de variação de velocidade, direção da esportivas, geração de energia, extração de correnteza, transporte e deposição de par- minérios e material de construção, recep- tículas alteram gradualmente o padrão dos ção de esgoto doméstico e industrial. Os as- cursos d’água. A manutenção de faixas mar- pectos econômicos subjazem na exploração ginais livres de ocupação é importante para imobiliária dos espaços em orlas aquáticas e viabilizar o desenvolvimento dessas altera- no avanço da cidade sobre as zonas ripárias. ções naturais do leito. Quanto aos aspectos sociológicos (relativos 6ª Função: proteger a biodiversidade e aos encontros e esquivanças interpessoais), as cadeias gênicas. Os corpos d’água e suas o efeito de atração exercido pelos corpos margens constituem um meio extrema- d’água sobre as pessoas responde pela prá- mente rico e diversificado em termos bió- tica, comum a várias culturas, do encontro ticos. As zonas ripárias constituem habitats cotidiano ou de realização de eventos fes- primários da vida silvestre. Os nutrientes tivos nos espaços de suas margens. No que produzidos nessas áreas úmidas são o funda- concerne aos aspectos topoceptivos(5), os (4) Assinalo que o enuncia- mento dos ciclos ecológicos, funcionando corpos d’água localizados nas cidades são do das seis principais funções ambientais das margens dos como elos primários em cadeias alimentares elementos referenciais privilegiados, cujas corpos d’água, aqui apre- sentadas, se traduz em uma responsáveis pela manutenção, reprodução peculiaridades podem responder fortemen- simplificação da complexida- de de fatores envolvidos. Essa e movimento da fauna(4). te às expectativas humanas de orientação e discriminação foi estruturada tendo em vista subsidiar Para a investigação das funções ur- identificação espacial. a análise de como devem condicionar o planejamento banas desempenhadas pelos espaços à beira Na sequência, analiso o segundo con- da ocupação urbana. d’água, foram adotados, como parâmetros junto de aspectos de desempenho do espaço, (5) Neologismo criado por Maria Elaine Kohlsdorf de análise, os aspectos de desempenho da con- de caráter expressivo. No que se refere aos (1996); os aspectos topo- ceptivos dizem respeito às figuração espacial propostos por Frederico aspectos estéticos, rios e lagos são preciosos potencialidades específicas do lugar, de ser apreendido de Holanda, distinguidos pelo seu caráter componentes de qualificação da paisagem pelos indivíduos, no sen- tido da “orientabilidade” prático ou expressivo (HOLANDA, 2010). urbana, capazes de estimular os sentidos hu- – a qualidade do lugar em indicar onde se está – e Abordo inicialmente os aspectos de manos. Quanto aos aspectos bioclimáticos, da “identificabilidade” – o caráter próprio do lugar, que desempenho dos espaços em orlas aquáti- evidenciam-se os efeitos benéficos da pre- o diferencia de outros.

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06515 - 37334001 miolo.indd 169 02/12/11 16:41 sença da água e da vegetação ripária sobre o vertente caracteriza, infelizmente, a maior conforto ambiental. Os aspectos simbólicos parte das configurações de margens em ci- relacionados à água ocupam lugar central dades brasileiras. em diversas manifestações culturais e ritua- As configurações que integram a lísticas, como o batismo, a purificação, os ri- primeira vertente – valorização dos corpos tos de passagem; os lugares em beira d’água d’água – caracterizam-se pela apropriação residem frequentemente na memória e no das orlas aquáticas como espaços privile- imaginário das pessoas. No que concerne giados de qualificação do cenário urbano e aos aspectos afetivos, os corpos d’água são referenciais de utilização pela população. A capazes de afetar o estado emocional das partir da segunda metade do século XX, a pessoas, provocando sensações diferencia- redescoberta do valor dos espaços em beira das em função de suas peculiaridades. d’água passou a ocupar as agendas urbanas. Intervenções de qualificação dos frontais A abordagem dos espaços urbanos aquáticos passaram a ser implementadas em em orlas aquáticas cidades de todo o mundo, constituindo um intenso movimento representativo dessa Identificam-se duas vertentes básicas vertente. de relações entre as cidades e corpos d’água. Apenas recentemente as cidades bra- Na primeira, o corpo d’água é valorizado e sileiras passaram a integrar o movimento de incorporado à paisagem urbana. Na segun- valorização dos corpos d’água na paisagem da, o corpo d’água é desconsiderado, trata- urbana. Estas iniciativas têm se dado em do como subproduto urbano. cidades que originalmente não tinham liga- Na vertente de desvalorização dos cor- ção com seus corpos d’água e naquelas onde pos d’água, as edificações e lotes lindeiros as relações se perderam ao longo do tempo, ficam de costas para a água, as margens vi- como no caso de Piracicaba. ram espaços degradados, depósitos de lixo, Ressalto que, na grande maioria das são invadidas por edificações; frequente- vezes, os projetos de intervenção em orlas mente os cursos d’água de menor porte são aquáticas são concebidos sob o enfoque recobertos, tornando-se dutos de esgoto. Se estritamente urbanístico, desconsiderando olharmos, de maneira global, a história dos as funções ambientais das zonas ripárias. assentamentos humanos, é possível iden- Predominam intervenções que se caracte- tificar um longo ciclo, moldado pelo vetor rizam pela artificialização dos espaços das de progressiva desvalorização dos espaços margens: ausência de vegetação, imper- às margens de corpos d’água urbanos. Essa meabilização das margens, canalização ou

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06515 - 37334001 miolo.indd 170 02/12/11 16:41 Figura 2 Sydney Harbour, Austrália. Crédito: Ana Christina Oliveira.

Figura 3 Puerto Madero, Buenos Aires, Argentina. Crédito: Sandra Soares de Mello.

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06515 - 37334001 miolo.indd 171 02/12/11 16:41 retificação do curso d’água, predomínio de Urbanidade e valorização dos soluções técnicas, materiais e elementos ar- corpos d’água tificiais (Figuras 2 e 3). Nesse sentido, as duas vertentes No desenvolvimento da pesquisa, têm apresentado similaridades quanto ao trabalhei com a hipótese de que configura- desempenho ambiental. A ausência de crité- ções dos espaços das margens com atributos rios ambientalmente sustentáveis de uso e de urbanidade promovem a valorização do ocupação das zonas ripárias acarreta sérios corpo d’água pela população, fator estraté- impactos ao meio ambiente: altera subs- gico para sua proteção. tancialmente a dinâmica do curso d’água, Urbanidade é definida como aqui- provocando desequilíbrios diversos, como a lo que qualifica a vida urbana, no sentido intensificação de processos erosivos, inun- da promoção do encontro social e da inte- dação das áreas adjacentes, assoreamento ração harmônica entre as pessoas e o meio do leito, morte de nascentes. (HOLANDA, 2002, MELLO, 2008). Na A grande diferença diz respeito ao investigação sobre o tema em tela, busquei desempenho de urbanidade da configuração evidenciar os atributos das configurações espacial. Na primeira vertente, as inter- espaciais que qualificam a vida urbana, no venções contribuem para a qualificação da sentido da interação entre as pessoas e destas paisagem urbana, para a promoção do con- com os corpos d’água, ou seja, sob a ótica de vívio social e a relação amigável da popula- seu desempenho de urbanidade. A análise ção com o corpo d’água, o que caracteriza apoiou-se no referencial teórico desenvol- o conceito de urbanidade, fio condutor da vido por Holanda (2002, 2010), embasado abordagem aqui adotada. na Teoria da Sintaxe Espacial, concebida por A integração da abordagem dos as- Bill Hillier e Julienne Hanson (1984). pectos ambientais e urbanísticos relativos Para a identificação do desempenho às margens de corpos d’água urbanos é um de urbanidade dos espaços em beira d’água, (6) A cidade de Curitiba, Paraná, destaca-se pelo pio- tema ainda pouco abordado nas iniciativas foram consideradas as dimensões global e neirismo na abordagem do tema no Brasil. Integrando urbanas contemporâneas, em especial, no local de análise da cidade. Na dimensão uma política maior de par- (6) ques urbanos, criaram-se os caso brasileiro . Aí reside um dos principais global, são analisadas as relações do corpo Parques Lineares ao longo dos cursos d’água, que pro- méritos do Projeto Beira-Rio Piracicaba: d’água com o todo do sistema urbano. Na porcionam espaços de lazer, cultura, encontro e eventos ao tempo que foi pautado pelas dinâmicas dimensão local, são analisados os atributos sociais, funcionando também como reguladores da vazão naturais envolvendo a bacia hidrográfica, de cada trecho de margem. das águas de chuva e como estratégia para evitar a degra- adota configurações espaciais que reúnem Na análise global, o atributo mais re- dação, a deposição de lixo e a ocupação indevida. fortes atributos de urbanidade. levante para a caracterização da urbanidade

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06515 - 37334001 miolo.indd 172 02/12/11 16:41 diz respeito ao grau de centralidade do corpo pulação com o corpo d’água, na qual se d’água. Orlas aquáticas localizadas próxi- avalia se ela: sabe se existe, sabe onde mas ao centro urbano (ou subcentros, no fica, conhece o corpo d’água, frequenta caso de cidades de maior porte) propiciam os espaços de suas margens. A segunda melhor desempenho de urbanidade. categoria diz respeito às relações que as Na dimensão local, cinco catego- pessoas possuem com o corpo d’água, que rias de análise caracterizam os espaços se referem aos aspectos práticos, como as ribeirinhos com desempenho de urbani- atividades humanas, e expressivos, que dade: espaços de domínio público (também englobam os sentidos, significados, envol- chamados espaços abertos); espaços cons- vimento emocional (HOLANDA, 2010). tituídos, ou seja, quando as entradas de A terceira categoria de análise refere-se edifícios e lotes se dão diretamente para ao grau de identidade que as pessoas têm ele; espaços de fácil acessibilidade física, o com o corpo d’água, que se expressa pelo que é viabilizado pela quantidade de vias “sentimento de pertença” (consciência que permitem a sua conexão com a cida- de que é um bem coletivo) e o desejo de de; espaços de fácil acessibilidade visual, ou protegê-lo. seja, visíveis a partir de outras áreas da Os resultados da pesquisa demons- cidade e que permitem a visibilidade da tram que nas cidades cujos espaços ribei- água, em função da inexistência de bar- rinhos reúnem quantidade e intensidade reiras visuais; espaços com destinação defi- maiores dos atributos de urbanidade, a nida, o que se refere ao uso do próprio es- população possui maior familiaridade, re- paço aberto de beira d’água e dos espaços lações mais estreitas e maior identidade que o contornam, que devem promover a com seu rio, confirmando a dedução inicial atração e o encontro de pessoas. (MELLO, 2008). A noção de valor de um dado elemen- to ou lugar pode estar relacionada a várias Princípios de planejamento e dimensões, como a econômica e a ambien- intervenção em espaços urbanos de tal. Na esfera da pesquisa, o valor atribuído beira d’água pela população ao corpo d’água é abordado segundo a dimensão composta por uma trí- A urbanidade se expressa por carac- ade de categorias de análise: familiaridade, terísticas semânticas do espaço – relativas à relações e identidade. sua gestão, significado e regras de utilização A primeira categoria de análise – e características sintáticas, relativas à sua refere-se ao grau de familiaridade da po- configuração física.

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06515 - 37334001 miolo.indd 173 02/12/11 16:41 Dentre as primeiras, destaca-se a Para a análise das condicionantes atuação do Poder Público na esfera local. ambientais, adoto como parâmetro básico Sendo responsável pela coordenação da o grau de sensibilidade ambiental. Este parâ- produção do espaço e pelo controle das metro é avaliado segundo dois critérios que, práticas sociais sobre ele, a prefeitura com base no referencial teórico desenvol- municipal é a entidade competente para vido por Sueli Faria (2004), referem-se à o planejamento dos espaços ribeirinhos, susceptibilidade do meio biofísico a danos bem como pelo seu cuidado. A gestão dos decorrentes do uso e ocupação, bem como corpos d’água urbanos transcende a visão ao “valor de existência” de certos recursos estática da preservação, que se fundamen- ambientais, indicando a necessidade de sua ta na adoção de instrumentos de comando proteção. A avaliação do grau de sensibi- e controle. Sua eficácia implica a busca de lidade ambiental envolve múltiplos escalas instrumentos dinâmicos de planejamento e fatores: regionais (como padrões climáti- e gestão, baseados no envolvimento da cos), relativos à bacia hidrográfica (como população e na sensibilização para a sua ecossistemas, relevo, características hidro- valorização. geológicas) e às especificidades do corpo O foco da pesquisa voltou-se princi- d’água (como padrão, largura, profundida- palmente para o segundo conjunto de as- de, inclinação, velocidade da água). pectos, relativos à configuração do espaço Como o grau de centralidade urbana físico. Os elementos trazidos à luz a partir do corpo d’água foi identificado como o das investigações realizadas permitem a atributo configuracional mais importante, identificação de princípios de projeto e do desempenho de urbanidade na dimensão intervenção em margens de corpos d’água global, este é o parâmetro adotado para a urbanos, apresentados a seguir. O enfoque análise urbanística. Existem várias técni- bifurca-se nas duas dimensões de aborda- cas de leitura do grau de centralidade dos gem do espaço urbano: global e local. espaços urbanos. O objetivo da análise é a Na dimensão global, faz-se necessária identificação dos espaços abertos de beira- a adoção de técnicas conjugadas de leitura -rio mais ou menos integrados ao sistema da cidade e sua inserção na região, que per- urbano global, ou seja, de maior grau de mitam a identificação das condicionantes centralidade (MELLO, 2008). atuantes no sistema. Isso envolve aspectos No modelo proposto, o cruzamento biofísicos – as dinâmicas naturais – e aspec- dos resultados da abordagem global inte- tos urbanísticos, as dinâmicas socioculturais grada permite a identificação do grau de e as características configuracionais. sensibilidade ambiental e do grau de cen-

174 Piracicaba, o rio e a cidade: ações de reaproximação

06515 - 37334001 miolo.indd 174 02/12/11 16:41 Figura 4 Espaço constituído; Porto, Portugal.

Figura 5 Tigre, Argentina. Créditos: Sandra Soares de Mello.

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06515 - 37334001 miolo.indd 175 02/12/11 16:41 tralidade urbana dos diferentes trechos de das da leitura integrada da cidade (dimen- margem. A partir dessa análise, definem-se são global), cada trecho de orla aquática diretrizes para a configuração e o tratamen- reunirá quantidade e intensidade diferentes to adequados para cada trecho de margem dos atributos espaciais que caracterizam a (dimensão local). A configuração espacial a urbanidade. ser adotada em cada lugar pode apresentar A investigação sobre o tema revelou múltiplas conjugações, resultantes da pon- que o aspecto mais relevante na caracteriza- deração entre esses fatores. ção da urbanidade, no nível local, é o domí- Para as áreas urbanas de maior sensi- nio do espaço. Espaços abertos, apropriados bilidade ambiental indicam-se configurações pela população, promovem o sentimento de de maior naturalização, caracterizada pela pertença e o desejo de proteção do conjunto predominância de feições naturais: manu- formado pelo corpo d’água e suas margens. tenção ou reposição da vegetação, ausência O segundo atributo espacial que ca- de edificações, manutenção da permeabilida- racteriza a urbanidade é a sua constituti- de do solo, da configuração natural do leito vidade, que se refere às transições – entra- e margens do corpo d’água. Áreas de maior das: portas, portões – entre o espaço aberto centralidade requerem atributos que carac- (público) e os espaços fechados (privados). terizem maior grau de urbanidade: espaços O espaço aberto às margens de um corpo abertos, de domínio público, de fácil acesso d’água é tanto mais constituído quanto físico e visual, onde as pessoas possam reunir- mais aberturas (dos lotes e edifícios lin- -se, conversar, realizar eventos festivos. deiros) houver voltadas para ele (como no Na dimensão local, dois princípios exemplo da Figura 4). básicos devem nortear o planejamento Associadas às duas primeiras catego- dos espaços às margens de corpos d’água rias de análise da urbanidade encontram- urbanos: 1. configurações espaciais que -se a acessibilidade física e a acessibilidade promovam a urbanidade; 2. tratamentos visual. Na dimensão local, a acessibilidade que favoreçam o desempenho das funções física diz respeito à presença de vias – de ve- ambientais. ículos e pedestres – que permitam o acesso aos espaços das margens, nos sentidos: lon- Urbanidade em beira d’água gitudinal, quando a via é localizada entre o espaço aberto frontal ao corpo d’água e O desempenho de urbanidade deve as edificações lindeiras (como no exemplo caracterizar todas as configurações de mar- da Figura 5); perpendicular, quando há vá- gens urbanas. A partir das diretrizes oriun- rias vias estabelecendo ligações até o espaço

176 Piracicaba, o rio e a cidade: ações de reaproximação

06515 - 37334001 miolo.indd 176 02/12/11 16:41 aberto das margens; transversal, quando as Baixo grau de artificialidade duas margens são interconectadas por meio de pontes. A acessibilidade visual local é O segundo princípio de intervenção, garantida pela inexistência de elementos – na dimensão local, consiste na adoção de construídos (como edificações, muros) ou configurações de baixo grau de artificialida- vegetais (como matas densas) – que impe- de, visando a minimizar os impactos sobre çam a visibilidade da d’água. o desempenho das funções ambientais das A última categoria de análise refere- margens de corpos d’água. A medida de ar- -se à destinação. No planejamento da orla tificialidade envolve o tratamento dado: à aquática é fundamental a definição de des- vegetação, ao solo e ao corpo d’água. tinação para cada espaço. Áreas sem uso A identificação das funções ambien- definido tornam-se “terra de ninguém”, tais desempenhadas pelas zonas ripárias re- mais suscetíveis a processos de invasão. A vela-se importante ferramenta para a defini- destinação deve variar de acordo com os ção do tratamento a ser adotado para cada resultados advindos da análise global, sen- trecho de margem. A discriminação dessas do viabilizadas diferentes intensidades de funções se mostra relevante, na medida utilização de cada trecho de margem, em em que cada uma delas é afetada de formas função do seu grau de centralidade urbana. distintas pela ocupação urbana (MELLO, Nas áreas de maior sensibilidade ambiental 2008). O grau de sensibilidade ambiental é estratégico deixar clara a destinação com de cada local, identificado na análise glo- fins de proteção, como a criação de parque bal, implica soluções técnicas distintas e urbano. A destinação também se refere ao cuidados mais ou menos rigorosos. uso dos lotes e quarteirões do entorno do Atualmente, vários países dão prio- espaço aberto às margens de corpos d’água. ridade a operações de conservação e res- A urbanidade é promovida quando os es- tauração dos corpos d’água e suas margens, paços em orla aquática são animados por de forma a preservar as dinâmicas biofísi- atividades diversificadas, que se caracteri- cas naturais. No Brasil existem ainda pou- zam por promoverem o encontro e a con- cas iniciativas neste sentido, demandando vivência de pessoas. frentes importantes de pesquisa científica A urbanidade independe do grau de aplicada, o que se reveste de considerável artificialidade da configuração espacial. É complexidade, tendo em vista a grande di- possível um bom desempenho de urbanida- versidade hidrogeológica e biológica dos de em configurações espaciais que reúnam distintos biomas e ecossistemas brasileiros. características de naturalização.

Quando a cidade reencontra o rio 177

06515 - 37334001 miolo.indd 177 02/12/11 16:41 A relevância da experiência de conhecimento, segundo o qual, a ação do Piracicaba homem deve se dar a partir da considera- ção das dinâmicas naturais e socioculturais, Todo o processo realizado em tendo como referência as bacias hidrográfi- Piracicaba e os resultados configuracionais cas (PMP, 2003). obtidos congregam os elementos chave da Para a elaboração do plano, foram re- adequada intervenção em espaços ribei- alizadas análises das condicionantes físicas rinhos urbanos, apresentados no tópico (geológicas, hidrológicas, ecológicas, pai- anterior. sagísticas), socioeconômicas e culturais do Primeiramente, há que se desta- município e da bacia hidrográfica. As aná- car a prioridade atribuída pela Prefeitura lises cobriram diversas escalas territoriais, Municipal ao projeto, garantindo as con- subsidiando diretrizes e propostas para cada dições políticas e técnicas para subsidiar a uma delas. Na escala urbana, o PAE esta- empreitada. As intervenções foram antece- belece oito áreas de projeto, ou “trechos”. didas por um competente processo de pla- O Trecho 1 – Beira-Rio Central é compos- nejamento. Inicialmente, foi desenvolvi- to de três etapas, sendo que a primeira a do o Diagnóstico Participativo, intitulado ser implementada foi o Projeto da Rua do “A cara de Piracicaba”, por uma comissão Porto, identificada pela equipe como o cuo- composta de representantes de institui- re do Beira-Rio. ções governamentais e não governamen- A abordagem global viabilizou a di- tais, sob a coordenação de Arlindo Stefani versidade de configurações espaciais em (STEFANI, 2001). Além da contribuição cada trecho de beira-rio. Alternam-se espa- técnica advinda do perfil interdisciplinar ços com configuração de maior naturaliza- da comissão, o processo criou um vórtice de ção, com manchas vegetais densas emoldu- envolvimento da comunidade local, fator rando o rio (Figura 6) e espaços que reúnem essencial não apenas para subsidiar o pla- mais atributos de urbanidade, estreitando a nejamento da ação, mas para o sucesso nas conexão entre a cidade e a água (Figura 7). fases seguintes. A preocupação ecológica permeou De posse dos resultados do diag- todo o processo. Soluções paisagísticas fo- (7) O Desenho Ambiental nóstico, foi elaborado o Plano de Ação ram acompanhadas por soluções hidráu- é uma linha de trabalho desenvolvida por Franco Estruturador – PAE – do Projeto Beira-Rio, licas, como o controle da vazão hídrica, a (1997), baseada na visão eco- lógica de mundo, iniciada na coordenado por Maria de Assunção Franco, implantação de rede de captação de águas década de 1960, nos Estados Unidos, por Ian McHarg e L. tendo como referencial básico o desenho pluviais e de comportas de regulação hídri- Halprin, inspirados na obra de Eugene Odum. ambiental(7), um campo interdisciplinar de ca. Para evitar a impermeabilização do solo,

178 Piracicaba, o rio e a cidade: ações de reaproximação

06515 - 37334001 miolo.indd 178 02/12/11 16:41 Figura 6 Margens do Piracicaba: configurações de naturalização.

Figura 7 Rua do Porto, Piracicaba: configurações com atributos de urbanidade. Créditos: Sandra Soares de Mello.

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06515 - 37334001 miolo.indd 179 02/12/11 16:41 o projeto orientou-se pela reconstituição de tempo, a cidade foi dando as costas para o áreas vegetadas e, nas áreas pavimentadas, Piracicaba; as margens acabaram por tor- pela adoção de materiais permeáveis, dife- nar-se degradadas, parte foi invadida por renciados em função da sua destinação. edificações precárias; as barrancas enche- Entre os estudos específicos que ram-se de lixo; a insegurança e o desleixo embasaram o projeto, consta a Proposta afastavam a comunidade. Por meio de uma de Adequação Ambiental e Paisagística série de estratégias, o projeto favoreceu com do Trecho Urbano do Rio Piracicaba e que as edificações lindeiras voltassem nova- Entorno, desenvolvida por uma equipe mente suas entradas principais para os espa- da Escola Superior de Agricultura Luiz ços qualificados de beira-rio. de Queiroz – ESALQ-USP. A abordagem A acessibilidade física é outro forte baseou-se na proposição de “módulos pai- atributo de urbanidade da configuração es- sagísticos” diversificados, concebidos em pacial dos espaços ribeirinhos de Piracicaba. função das características de cada trecho de Na dimensão global, destaca-se a Avenida margem. Foram aplicadas pesquisas sobre Beira-Rio, que acompanha a margem es- espécies vegetais próprias dos ecossistemas querda do Piracicaba, ladeada por antigos ribeirinhos locais. quarteirões. Na dimensão local, foram cria- Os múltiplos espaços que compõe o dos vários caminhos de pedestres, longitu- Beira-Rio Central apresentam conjugações dinais ao rio, como o calçadão localizado diversificadas de atributos de urbanidade. na parte superior da barranca e a trilha, na O primeiro desses atributos diz respeito à borda d’água. escala global, face ao seu grau de centra- A questão da acessibilidade visual lidade urbana. No nível local, ressalta-se foi amplamente explorada no projeto. Na inicialmente o domínio público: o projeto dimensão global, uma das diretrizes adota- previu uma sequência de espaços abertos das foi a restituição de “ângulos de visão” mirando o rio, que ora se estreitam e ora se do cenário do rio, em pontos estratégicos, alargam. A “Praça dos Artistas”, uma praça evidenciando marcos visuais importantes, central de maiores dimensões, assume papel como as chaminés de antigas olarias. No de destaque, estabelecendo conexões com o plano local, foram adotadas configurações entorno, promovendo o encontro social e a espaciais diversificadas no que se refere à realização de eventos festivos. visibilidade do leito d’água, por meio de A configuração de constitutividade uma abordagem paisagística que orientou a é uma marca importante da urbanidade localização de espécies vegetais forrageiras, do Projeto Beira-Rio Piracicaba. Com o arbustivas e arbóreas. A praça central é o

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06515 - 37334001 miolo.indd 180 02/12/11 16:41 local que permite maior integração visual integra as funções ambientais e urbanas do com o rio. conjunto formado pelo rio e suas margens. No Projeto Beira-Rio, foi definida Entretanto, além da apropriada con- a destinação para cada trecho de margem, cepção técnica interdisciplinar, o sucesso outro atributo importante de urbanidade. da empreitada depende da sua manutenção, Há espaços de maior naturalização, como da gestão continuada, o que implica essen- os parques públicos localizados na margem cialmente ter a comunidade como partí- direita. Na Rua do Porto, o casario abriga cipe. Trata-se de uma jornada que não se atividades diversificadas, como bares e res- concretiza de um dia para o outro, nem em taurantes, que garantem a animação dos uma mesma gestão administrativa. O pro- espaços abertos às margens do Piracicaba. cesso participativo transformou o Beira-Rio em um projeto da sociedade de Piracicaba, Conclusões mais do que um projeto de governo. Isso viabilizou o seu prosseguimento nas gestões O processo de requalificação dos municipais posteriores. frontais aquáticos urbanos implica mu- A iniciativa de realização desta pu- dança de paradigmas, que, como procurei blicação é oportuna não apenas para ali- demonstrar, envolve aspectos sintáticos e mentar o sentimento de pertença da popu- semânticos. Foram aqui ressaltadas as qua- lação de Piracicaba, como para a divulgação lidades configuracionais do projeto, que, da experiência, que reúne os ingredientes criando espaços com baixo grau de artifi- essenciais para o sucesso da jornada de re- cialidade e fortes atributos de urbanidade, encontro entre a cidade e seu rio.

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06515 - 37334001 miolo.indd 181 02/12/11 16:41 Referências Bibliográficas

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182 Piracicaba, o rio e a cidade: ações de reaproximação

06515 - 37334001 miolo.indd 182 02/12/11 16:41 Epílogo

O Presente e o Futuro das Ações na Orla do Rio Piracicaba

06515 - 37334001 miolo.indd 183 02/12/11 16:42 06515 - 37334001 miolo.indd 184 02/12/11 16:42 A reaproximação da cidade ao rio a de permanente revisão na formulação das que esta publicação se dedica, com a recon- propostas. quista e qualificação de suas margens, é um Visto que o Beira-Rio parte da cul- processo aberto, em curso, com permanente tura ribeirinha local para fundamentar suas necessidade de atualização. Jamais podere- ações, é evidente que o Projeto também mos considerar que esse intento tenha se impactaria nas formas como a população cumprido por completo, nem que esteja se apropriaria desses novos espaços recon- imune às revisões críticas que as próprias figurados, num processo dialético. A ava- transformações sociais que Piracicaba atra- liação altamente positiva que a sociedade vessa ao longo do tempo lhe impõem. piracicabana teve (e tem) do processo, dos O Projeto Beira-Rio, compreenden- projetos e das obras promovidos pelo Beira- do a interação entre a cidade e o rio como Rio, levou à incorporação de suas diretrizes um sistema, sempre procurou estabelecer para a sequência das ações de qualificação uma concepção essencialmente dinâmica da orla. Consolidaram-se suas premissas, acerca das ações a serem implementadas constituindo um novo padrão de interven- nessa região. As novas demandas surgidas ção nesse contexto urbano. com o passar dos anos deveriam nortear Coerente com as premissas já apon- o projeto, assim como as novas formas de tadas em seu Plano de Ação Estruturador, apropriação que fossem estabelecidas pela teve início há pouco a construção de uma população, incorporando esses princípios nova passarela exclusiva para pedestres à

06515 - 37334001 miolo.indd 185 02/12/11 16:42 186 Piracicaba, o rio e a cidade: ações de reaproximação

06515 - 37334001 miolo.indd 186 02/12/11 16:42 altura da rua Rangel Pestana. No PAE já 1960, com a circulação dos automóveis Figura 1 Nova passarela se observava a necessidade de uma nova cada vez mais privilegiada em detrimento de pedestres para transposição do rio transposição do rio conectando as duas dos pedestres. Piracicaba. Crédito: Fran margens, àquela época por meio de uma A etapa “Largo dos Pescadores” do Cavallari. balsa puxada por cabos. Essa nova ligação Projeto Beira-Rio recuperou parte destes criará mais um acesso ao Engenho Central espaços perdidos, com restrição à circulação a partir da área central do município, per- de automóveis, em via de mão única. Esta mitindo a ampliação dos circuitos de cir- sequência do projeto virá para complemen- culação de moradores e turistas ao longo tar o trecho faltante da Avenida Beira Rio, das margens do Piracicaba e entre os diver- seguindo as premissas anteriormente deli- sos complexos de lazer aí existentes, esta- neadas, com o ganho espacial gerado pela belecendo uma conexão direta entre a Rua exclusão de uma das pistas e o expressivo do Porto e o Engenho. alargamento das calçadas. Além desse, foram desenvolvidos Com essa ênfase na circulação dos os estudos para a sequência das obras ao cidadãos a pé será melhorado, inclusi- longo da avenida Beira Rio, a partir da ve, o acesso a importantes equipamen- rua Prudente de Moraes até a Ponte do tos públicos aí localizados, como a Casa Mirante, complementando e consolidando do Povoador, a Passarela Pênsil (um dos a requalificação. principais acessos ao Engenho Central e, O projeto reúne os conceitos- atualmente, o único a partir do Centro) e -chave do Projeto Beira-Rio, já aplica- o Museu da Água (antiga estação de cap- dos no Calçadão da Rua do Porto e na tação e tratamento de água do município, Requalificação do Largo dos Pescadores: convertida em espaço cultural). a prevalência do pedestre, o dado cultural Como no Calçadão da Rua do como elemento definidor de projeto, a re- Porto, o projeto de paisagismo desta nova cuperação dos patrimônios natural e cons- etapa busca uma recomposição florestal truído, a manutenção dos usos consolidados da margem e de seus espaços adjacentes. e o acesso físico e visual. Enfim, a reaproxi- Referenciando-se no estudo elaborado mação física e subjetiva do cidadão ao rio. pelo LERF-ESALQ/USP – Laboratório de Parte considerável dos problemas Ecologia e Restauração Florestal da Escola urbanísticos relativos à fruição da margem Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, o decorrem do sistema viário representado projeto define a supressão de árvores mor- pela marginal que acompanha o Piracicaba, tas, infestadas por pragas ou inadequadas a Avenida Beira Rio, aberta na década de ao ambiente ribeirinho e sua fauna, so-

O Presente e o Futuro das Ações na Orla do Rio Piracicaba 187

06515 - 37334001 miolo.indd 187 02/12/11 16:42 Figura 2 Acesso à Passarela Pênsil pela Avenida Beira Rio, 2011. Crédito: Henrique Spavieri

Figura 3 Projeto Beira-Rio: Proposta de remodelação da Avenida Beira Rio à altura da Ponte Pênsil. Crédito: Fran Cavallari

188 Piracicaba, o rio e a cidade: ações de reaproximação

06515 - 37334001 miolo.indd 188 02/12/11 16:42 Figura 4 Avenida Beira Rio à altura do Museu da Água, 2011. Crédito: Henrique Spavieri.

Figura 5 Projeto Beira-Rio: Proposta de remodelação da Avenida Beira Rio à altura do Museu da Água. Crédito: Fran Cavallari.

O Presente e o Futuro das Ações na Orla do Rio Piracicaba 189

06515 - 37334001 miolo.indd 189 02/12/11 16:42 mada ao plantio de árvores nativas. A in- Mirante, têm início previsto para janeiro tenção é potencializar situações de estar e de 2012, contando com recursos de patro- contemplação do rio e da paisagem e, ao cínio da Petrobras. mesmo tempo, adaptar-se à nova geome- O Projeto Beira-Rio não se encerrará tria viária, preservando ao máximo a arbo- com mais esta intervenção. Aliás, ele jamais rização existente. poderá ser concluído, uma vez que sua visão As obras de requalificação dessa sistêmica comporta mais que um plano de etapa, para o trecho compreendido entre obras a ser executado. Verdadeiramente, o a rua Prudente de Moraes e a Passarela Beira-Rio é a abertura de um novo capítulo Pênsil, tiveram início em outubro de 2011, nesse processo de décadas de reaproxima- com aporte de recursos da Prefeitura de ção entre o rio e a cidade, objetivando uma Piracicaba. As obras no trecho subsequen- relação mais qualificada destes que formam, te, entre a Passarela Pênsil e a Ponte do em Piracicaba, um par indissociável.

190 Piracicaba, o rio e a cidade: ações de reaproximação

06515 - 37334001 miolo.indd 190 02/12/11 16:42 Agradecimentos

Esta publicação só foi possível devi- dedicaram-se a analisar, sob variadas for- do à colaboração e dedicação de inúmeras mas, as ações para a qualificação da orla pessoas que dividiram conosco seu tempo, urbana do Piracicaba: Marcelo Cachioni, arquivos pessoais e reminiscências histó- Arlet Almeida, Fábio Rolim, Renata Leme, ricas, viabilizando a reconstrução desse Eduardo Martini, Sandra Mello, Maria processo pouco documentado, mas cujo Cecília Gorski e Marcelo Ferraz. conhecimento é imprescindível à com- Agradecimentos também devem ser preensão da realidade urbana contempo- prestados aos funcionários do IPPLAP que, rânea de Piracicaba. de variadas formas, envolveram-se e contri- Agradecemos ao prefeito Barjas Negri buíram em diferentes etapas de sua produ- pelo apoio e incentivo na construção desse ção, especialmente Rosalina Castanheira, processo. Idnílson Perez e Erika Perosi. Importância fundamental deve ser Aos estagiários do IPPLAP, responsá- reconhecida ao arquiteto João Chaddad, veis por grande parte do levantamento bi- diretor-presidente do IPPLAP, grande in- bliográfico, iconográfico e produção gráfica: centivador desse levantamento histórico e, Rosana Morais, Joana Yashimoto, Douglas sem o qual, esta publicação não existiria. Graciano e Sofia Puppin Rontani. Fundamentais foram as contribui- Aos funcionários da SEDEMA – ções prestimosas de todos os autores que, Secretaria Municipal de Defesa do Meio a partir de seus conhecimentos específicos, Ambiente Lídia Martins, Márcio Maruko

06515 - 37334001 miolo.indd 191 02/12/11 16:42 e Sinval Sarto, que empreenderam exten- cipal José Flávio Leão; o técnico agrícola so levantamento dos arquivos tanto da se- da Prefeitura Sinval Sarto; o arquiteto e cretaria quanto pessoais a fim de localizar ex-secretário municipal Antônio Lázaro processos, projetos e fotos originais de in- Aprilante; o arquiteto Luiz Egídio Simoni; o tervenções na área. engenheiro civil e ex-prefeito de Piracicaba Aos funcionários do Centro de Adílson Maluf; e a engenheira florestal Comunicação Social, Justino Lucente, Arlet Maria de Almeida. Henrique Spavieri, Tarciso Chiarinelli, Ana Ao arquiteto e desenhista gráfico Teresa Inforçato Poppi, Cristiane Lopes Daniel Yuhasz, responsável pela arte grá- Fernandes, Adilson Franco Cardoso, Fábio fica da capa. Grecchi e também ao funcionário do Centro À bibliotecária Melysse Martim, pelo de Informática, Daves de Jesus Ribeiro. apoio no processo de catalogação. Ao IHGP – Instituto Histórico e A todos os que cederam direitos de Geográfico de Piracicaba e a Fábio Bragança, utilização de imagem, possibilitando a pre- historiador da Câmara de Vereadores de sença das tantas ilustrações fundamentais Piracicaba, pela abertura e disponibilização presentes neste livro. de seus acervos. E a todos aqueles que, apesar de não Àqueles que cederam seu tempo nominados individualmente, participaram e arquivos pessoais a valiosas entrevistas da construção não só desta publicação, mas para a reconstrução dessa rica história: o desse longo e difícil processo de reconquistar engenheiro agrônomo ex-secretário muni- e requalificar a orla urbana do rio Piracicaba.

06515 - 37334001 miolo.indd 192 02/12/11 16:42 REALIzAÇãO

Barjas Negri joão Chaddad Prefeito Municipal Diretor-Presidente do IPPLAP

06515 - 37334001 miolo.indd 193 02/12/11 16:42 06515 - 37334001 miolo.indd 194 02/12/11 16:42 CRÉDITOS

Organização / Coordenação editorial estevam vanale otero sabrina rodrigues Bologna Maria Beatriz silotto dias de souza

Revisão estevam vanale otero Maria Beatriz silotto dias de souza sabrina rodrigues Bologna

Ilustrações originais – IPPLAP rosana Morais

Ilustração e projeto da capa daniel Yuhasz

Projeto gráfico e diagramação ricardo Ferreira

Tratamento de Imagens josé Carlos da silva

formato 220 x 205 mm número de páginas 196 tiragem 1000 tipologia Goudy Oldstyle Std, Helvetica Neue LT Std miolo couchê fosco 120g/m² capa cartão triplex 250g/m²

06515 - 37334001 miolo.indd 195 02/12/11 16:42 06515 - 37334001 miolo.indd 196 02/12/11 16:42