Anne Rice PANDORA
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Anne Rice, criadora do vampiro Lestat, das bruxas Mayfair e dos incríveis mundos em que vivem esses seres sobrenaturais, lança agora Pandora, o primeiro volume de uma nova série de crônicas vampirescas, cujos protagonistas estão ligados ao vampiro novato David Talbot, designado para ser o cronista de seus companheiros mortos-vivos. Em um café de Paris, David se encontra com Pandora. Nossa heroína tem dois mil anos e é uma Filha dos Milênios, a primeira vampira criada pelo grande e poderoso Marius. A intenção de David é convencê-la a narrar a história de sua vida através dos séculos. Relutante a princípio, Pandora acaba cedendo ao convite e se vê presa à narrativa cada vez mais apaixonada e envolvente de sua lenda mesmerizante, que nos transporta no tempo, da Roma Imperial à França do século XVIII e às cidades de Paris e Nova Orleans do século XX. Ela nos faz recuar até sua infância mortal no mundo de César Augusto, um mundo retratado por Ovídio e Petrônio. É nessa época da Roma Imperial que Pandora conhece e se apaixona pelo ainda mortal Marius, um homem belo, carismático e alegre. É dessa Roma que ela se vê obrigada a fugir para não ser assassinada pelos conspiradores que mataram sua família e pretendem dominar a cidade. Nós a acompanhamos em sua viagem para o exótico porto de Antioquia, na Síria, onde acontece o seu reencontro com Marius, já imortal e atormentado por sua natureza vampiresca. É ele quem concede a Pandora o "Dom das Trevas", quando se lançam na fantástica aventura de um casamento conturbado que duraria dois séculos. Anne Rice PANDORA Novos contos vampirescos Tradução de ADALGISA CAMPOS DA SILVA Dedicado a Stan, Christopher e Michele Rice a Suzanne Scott Quiroz e Victoria Wilson A memória de John Preston aos irlandeses de Nova Orleans que, na década de 1850, edificaram em Constance Street a grande igreja de Sto. Afonso, legando-nos, através da fé, da arquitetura e da arte, um monumento esplêndido à "glória que foi a Grécia e à grandeza que foi Roma". Sobre a Sra. Moore e o eco nas cavernas de Marabar: ... mas o eco foi minando de forma indescritível seu controle sobre a vida. Chegando num momento em que ela estava cansada, o eco conseguiu murmurar: — Pathos, piedade, coragem — essas coisas existem, mas são idênticas, e a sujeira também. Tudo existe, nada tem valor. E. M. Forster Passagem para a Índia Crês que há um só Deus. Fazes bem. Também os demônios crêem e tremem. Epístola de São Tiago 2:19 Como é ridículo e sem experiência aquele que se surpreende com qualquer coisa que acontece na vida. MARCO AURÉLIO Meditações Outro aspecto desta nossa mesma crença é que muitas criaturas são condenadas; por exemplo, os anjos expulsos do paraíso por orgulho, e que agora são demônios; e os homens na terra que morrem afastados da Fé da Santa Igreja, especificamente os pagãos; e também aqueles que são batizados mas vivem uma vida não-cristã, e assim morrem sem amor — todos esses serão condenados ao inferno eterno, como me ensina a crer a Santa Igreja. Sendo assim, achei impossível tudo acabar bem, como Nosso Senhor estava me mostrando. Mas não tive o que responder a essa revelação senão: "O que é impossível para vós não é impossível para mim. Honrarei minha palavra em todos os aspectos, e farei tudo terminar da melhor forma possível.” Assim me ensinou a graça de Deus... JULIAN DE NORWICH 1 Não faz nem vinte minutos que você me deixou aqui no café, que recusei o seu pedido, dizendo que jamais escreveria para você a história de minha vida mortal, como me tornei uma vampira — como só encontrei Marius anos depois de ele ter perdido a vida humana. Agora, aqui estou eu com seu caderno aberto, usando uma das canetas de ponta fina e tinta indelével que você me deixou, encantada com a pressão sensual da tinta negra no papel caro, branco e imaculado. Naturalmente, David, você me deixaria uma coisa sofisticada, uma página convidativa. Este caderno de capa de verniz escuro, não é?, lavrado com um desenho de rosas exuberantes, sem espinhos mas com uma bela folhagem, um desenho que só em última análise significa Desígnio porém revela uma autoridade. Os escritos contidos nessa bela e pesada encadernação contarão, diz esta capa. As páginas grossas têm linhas azul-claras — você é prático, pensa em tudo, e deve saber que nunca pego da pena para escrever coisa alguma. Até o barulho da caneta tem seu encanto, o ranger agudo que lembra bastante aquele das melhores penas da Roma antiga quando eu as usava nos pergaminhos para escrever cartas a meu pai, quando eu registrava num diário os meus lamentos... ah, aquele barulho. Só o que está faltando aqui é o cheiro da tinta, mas temos a boa caneta de plástico que durará muitos volumes, deixando uma marca tão fina e profunda quanto eu quiser fazer. Estou pensando em seu pedido para escrever. Você vê que conseguirá algo de mim. Vejo-me cedendo, quase como uma de nossas vítimas humanas cede a nós, talvez descobrindo enquanto a chuva continua caindo lá fora, enquanto continua o vozerio aqui no café, que acho que isso pode não ser a agonia que imaginei — recordar mais de dois mil anos — mas quase um prazer, como o próprio ato de beber sangue. Agora quero alcançar uma vítima que, para mim, não é fácil de dominar: meu passado. Talvez essa vítima fuja de mim numa velocidade equiparável à minha. Seja como for, agora estou procurando uma vítima que jamais enfrentei. E há aí a emoção da caçada, isso que o mundo moderno chama de investigação. Se não, por que veria eu agora esses tempos de forma tão viva? Você não tinha para me dar nenhuma poção mágica que soltasse meus pensamentos. Só há uma poção mágica para nós, o sangue. Você disse a certa altura quando estávamos indo para o café: — Você se lembrará de tudo. Você, que entre nós é tão jovem e no entanto era tão velho e tão culto quando mortal. Talvez seja natural que tenha tanta garra para tentar coligir nossas histórias. Mas por que tentar explicar aqui essa sua curiosidade, essa coragem diante da verdade sanguinolenta? Como você pôde ter acendido em mim esse desejo de voltar atrás quase exatamente dois mil anos — para contar meus dias mortais na Terra, em Roma, e como fiquei com Marius, e como ele teve pouca chance diante do Destino. Como origens tão recalcadas e há tanto tempo negadas poderiam de repente acenar para mim? Uma porta se abre. Uma luz brilha. Entre. Estou sentada no café. Escrevo, mas paro e olho em volta para as pessoas aqui nesse café parisiense. Vejo os tecidos unissex sem graça dessa época, a americanazinha ingênua com sua farda verde-oliva, levando tudo o que possui dentro de uma mochila pendurada no ombro; vejo o velho francês que vem aqui há décadas só para olhar as pernas e os braços nus das moças, para alimentar-se dos gestos como se fosse vampiro, para ficar esperando por aquele momento precioso e exótico em que uma mulher dá uma risada e se recosta na cadeira com um cigarro na mão, e o tecido sintético de sua blusa fica esticado no busto, revelando os mamilos. Ah, velho. Ele é grisalho e veste um paletó caro. Não ameaça ninguém. Vive inteiramente do olhar. Hoje, voltará para um apartamento modesto mas elegante que ele tem desde a última Grande Guerra, e assistirá a filmes da jovem beldade Brigitte Bardot. Ele vive pelos olhos. Não toca numa mulher há dez anos. Não estou à deriva, David. Vou ancorar aqui. Pois não quero que minha história saia como se contada por um oráculo bêbado. Estou vendo esses mortais com mais atenção. Eles são tão inexperientes, tão exóticos e no entanto tão deliciosos para mim; têm o mesmo aspecto que deviam ter os pássaros tropicais quando eu era criança; tão cheios de vida, vibrantes, rebeldes, eu queria agarrá-los para ter isso, fazer suas asas baterem em minhas mãos, capturar o vôo e possuí-lo e compartilhá-lo. Ah, aquele momento terrível na infância em que acidentalmente se esmaga um pássaro vermelho e se lhe tira a vida. No entanto, alguns desses mortais são sinistros em seus trajes mais escuros: o indefectível traficante de cocaína — e eles estão por toda parte, nossas melhores presas — aguardando o contato na esquina, a jaqueta comprida de couro criada por um estilista italiano famoso, cabelo rapado dos lados e com um tufo no alto para lhe dar um ar diferente, e dá mesmo, embora não seja necessário, considerando seus grandes olhos negros e a dureza do que a natureza pretendia que fosse uma boca generosa. Ele faz aqueles gestos rápidos e impacientes com o isqueiro na mesinha de mármore, a marca do viciado; fica se contorcendo, se virando, não consegue estar confortável. Não sabe que jamais voltará a sentir-se confortável. Quer sair para satisfazer o vício e dar uma cheirada, mas precisa aguardar o contato. Seus sapatos estão brilhando demais, e suas mãos esguias nunca envelhecerão. Acho que esse homem morrerá hoje. Aos poucos, vai crescendo em mim o desejo de matá-lo pessoalmente. Ele alimentou muita gente com esse veneno. Seguindo-o, envolvendo-o em meus braços, eu nem teria de cercá-lo de visões. Eu o faria saber que a morte estava chegando na forma de uma mulher branca demais para ser humana, muito amaciada pelos séculos para ser outra coisa além de uma estátua viva. Mas os homens que ele está esperando planejam matá-lo.