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TRABALHADORES PRESENTE? 1 O lugar do personagem trabalhador na comédia brasileira contemporânea.

Flávia Seligman 2

Resumo: Este texto faz parte da pesquisa, já concluída, Olhares sobre o trabalho no cinema brasileiro: da representação do protagonista ficcional à documentação do personagem real que teve como objetivo discutir a representação do trabalhador no cinema brasileiro da retomada, analisando filmes de ficção do gênero comédia, através dos conceitos de reprodução e representação e inserindo-os num cenário de vinculação entre o cinema brasileiro e o mercado.

Palavras-Chave: Cinema Brasileiro .Trabalhadores. Representação

1. Introdução:

A velha idéia de que filmes podem ser considerados apenas como diversão ou arte, ou eventualmente ambos, é atualmente encarada com crescente ceticismo. É amplamente reconhecido que os filmes refletem também as correntes e atitudes existentes numa determinada sociedade, sua política. O cinema não vive num sublime estado de inocência, sem ser afetado pelo mundo; tem também um conteúdo político, consciente ou inconsciente, escondido ou declarado. (Furhammar & Isaksson, 1976, p.6)

O cinema sempre representa a sociedade na qual está inserido e, mais, a forma como esta sociedade se vê, se classifica e deseja ser representada. A figura do trabalhador enquanto personagem, protagonista ou coadjuvante, está sempre presente. Em todos os gêneros os personagens praticam alguma função considerada como situação de trabalho e, quando não trabalham, existe uma justificativa na trama para isto. No cinema brasileiro, a figura do trabalhador aparece em todos os principais momentos e ciclos, com roupagens e significações diversas.

1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho “Economia Política e Políticas de Comunicação”, do XVII Encontro da Compós, na UNIP, São Paulo, SP, em junho de 2008. Trabalhadores Presente é o título de um documentário sobre os trabalhadores da indústria paulista realizado em 1979 pelo cineasta João Batista de Andrade. 2 Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação – , RS. [email protected].

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Este artigo pretende discutir como um segmento do cinema brasileiro contemporâneo constrói um imaginário sobre o trabalho. O universo abordado é atual, partindo da década de 90 e do início do novo século, período também denominado Cinema da Retomada . Para tanto foram selecionados filmes de longa-metragem de ficção, que tenham sido produzidos em caráter comercial, ou seja, que tenham sido exibidos no mercado de lazer e entretenimento (cinema, televisão e home video ). Segundo a Enciclopédia do Cinema Brasileiro (RAMOS e MIRANDA, 2000) o período da Retomada inicia com a chegada ao poder do Presidente Fernando Collor de Mello, a extinção dos órgãos ligados ao cinema como a Embrafilme - Empresa Brasileira de Filmes S.A.-, o Concine - Conselho Nacional de Cinema - e a Fundação do Cinema Brasileiro e com eles, a participação do Estado no fomento da produção, na legislação sobre distribuição e exibição, enfim, em tudo aquilo que pudesse normatizar e regular a atividade cinematográfica no país. Este corte profundo na relação cinema / estado no Brasil provocou uma queda brutal na produção, seguida por um período quase nulo da história do cinema brasileiro. Segundo Lúcia Nagib em O cinema da retomada “Em 1992, apenas dois filmes de longa-metragem foram lançados no Brasil”, (NAGIB, 2002, p.13) referindo-se a produção nacional. Após o impeachment de Collor, já no governo de Itamar Franco, foi sancionada a Lei do Audiovisual – Lei nº 8.695/93, de 20 de julho de 1993 que permite a financiamento à produção de filmes de longa-metragem através de incentivos fiscais. A partir daí, o conjunto de filmes que se seguiu foi praticamente todo beneficiado por esta lei. Neste período também ocorreram dois concursos, ainda com um saldo de verba da Embrafilme, pleiteados pela classe e lançados pelo Ministério da Cultura, chamados Resgate do Cinema Brasileiro, que premiaram projetos com uma determinada quantia em dinheiro, incentivando a produção de filmes de longa-metragem até que a Lei do Audiovisual começasse a fazer resultados. Nos primeiros títulos aparece o filme considerado como marco da fase em questão: Carlota Joaquina, princesa do (Carla Camurati, 1995), “O primeiro longa-metragem dos anos 90 a conseguir quebrar a apatia do público...” (ORICCHIO, in RAMOS, p.137). Seguindo o ciclo outros filmes conseguiram, até o final dos anos 90, um bom retorno de bilheteria constituindo um período marcado pela diversidade e pela descentralização da produção (com filmes feitos fora do eixo Rio / São Paulo, no Ceará, em Pernambuco, no Rio

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Grande do Sul e em outros estados da Federação) e encaminhando a produção atual para um novo rumo no que diz respeito à temática, e ao relacionamento com o mercado. É este período que se inicia em meados dos anos 90 e se qualifica hoje com uma inserção no mercado vista poucas vezes na história do cinema brasileiro que nos interessa focar. Não por se tratar de um movimento constituído, mas por configurar um momento específico na cinematografia nacional que apresenta novos olhares, sobre a sociedade brasileira e sobre seu povo.

A expressão ‘retomada’, que ressoa como um boom ou um ‘movimento cinematográfico’ está longe de alcançar unanimidade mesmo entre seus participantes. Para alguns o que houve foi apenas uma breve interrupção da atividade cinematográfica com o fechamento da Embrafilme, a seguir reiniciada com o rateio dos próprios recursos da produtora extinta, através do Prêmio Resgate do Cinema Brasileiro (NAGIB, 2002, p.13).

É aqui que se delineia uma nova forma de representação no cinema brasileiro e que se constitui um caminho que agora segue carreira. Neste momento em que o próprio país traçou novos rumos, que culminaram com a eleição de um presidente-trabalhador em 2002, nos interessa entender como que o cinema brasileiro, com uma produção heterogênea, sofisticada em alguns títulos, popular em outros e com uma vinculação explícita com o mercado, constrói um olhar sobre o trabalho e com isto, representa a sociedade na qual está inserido. Antes de qualquer coisa é importante definir o que estamos classificando aqui como trabalho. Segundo Elida Rubini Liedke no Dicionário Crítico Sobre Trabalho e Tecnologia:

Pressupondo-se exclusivamente o trabalho humano, como na acepção de Marx em O Capital (1867/1968), o trabalho é atividade resultante do dispêndio de energia física e mental, direta ou indiretamente voltada à produção de bens e serviços, contribuindo assim para a reprodução da vida humana, individual e social (Marx, 1867/1968; Kumar 1985; Freyssenet, 1994). (LIEDKE, in CATTANI, 2002, P.341)

Assim pesquisamos e formulamos uma conceituação das atividades do trabalho por parte das Ciências Sociais e classificamos nos filmes as situações vividas por trabalhadores braçais ou intelectuais, que fazem parte do mercado de trabalho, assalariados ou não, independentes de sexo e de faixa etária. Nosso foco está nos protagonistas dos filmes, personagens mais desenvolvidos e importantes na condução da trama. Elegemos então o gênero comédia, mais especificamente a comédia de costumes, por ser importante na história do cinema brasileiro e também por ser responsável pelas maiores bilheterias do período.

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A comédia de costumes é um gênero recorrente em importância na história do cinema brasileiro e, no período estudado, cresceu e se estabeleceu no mercado. Diferente do que apresentou em momentos anteriores, a comédia de costumes da Retomada repete um cenário que a telenovela consagrou: histórias que se passam na classe média alta das grandes cidades brasileiras. Este estilo, já conhecido e aprovado pelo público nacional, agrada ao espectador das salas de exibição, com maior poder aquisitivo, e ao espectador da televisão e do mercado de DVD, quando os filmes entram também nestas janelas de distribuição. Para efeito comparativo analisamos duas comédias de costumes Se eu fosse você (Daniel Filho, 2006) e Sexo, amor e traição (Jorge Fernando, 2004). Uma característica comum aos títulos é que ambos têm a participação da Empresa Globo Filmes na sua produção, com um orçamento alto (a média do custo de um filme de mercado hoje no Brasil é de três à seis milhões, sendo que filmes como Tropa de Elite (José Padilha, 2007) e Olga (Jaime Monjardin, 2004) consideradas super-produções, têm um custo bem mais elevado (entre nove e doze milhões de reais), em contraponto com os chamados “baixo orçamento”, como por exemplo O invasor 3 (Beto Brant, 2002), com produção e distribuição mais comedida e custo de até um milhão de reais. São filmes que entram no mercado com diferentes estratégias e apoiados ou não por grandes empresas, como é o caso da Globo Filmes. Segundo matéria da jornalista Ana Paula Souza na Revista de Carta Capital intitulada Uma decepção e algumas lições :

Beto Brant, expoente da nova geração, acha que existem dois universos: o dos filmes que têm comercial na tevê e o dos que não têm. Mesmo que tenha algum dinheiro para o lançamento, você cai numa conta impossível. Preço de comercial na tevê é pra montadora de carro, não é pra produtor de filme, pondera. O diretor acredita que os 108 mil espectadores de seu último trabalho, O Invasor (2002), eram o máximo que o filme poderia ter feito. A distribuidora colocou nas salas certas e a imprensa cobriu amplamente, mas o acesso é só para um público de elite mesmo. Brant está convencido de que, para ter mais de 500 mil espectadores a faixa definida como filme médio, é preciso migrar para um certo lado do mercado. O incômodo é que pra ter condições de fazer sucesso você tem de abrir mão da liberdade de expressão, fazer pesquisa de marketing, ver o que os executivos acham melhor para o elenco. Por esse caminho, de abrir concessões do ponto de vista interno do filme, eu não vou, diz Brant, referindo-se às produções das majors americanas e da Globo Filmes. (SOUZA, 2004)

3 Dois amigos e sócios numa empresa de construção civil planejam a execução do terceiro membro da empresa, ficando, após isto, reféns do matador que haviam contratado.

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A escolha de um lado ou outro do mercado acaba por balizar a postura ideológica do filme frente à sociedade. Certos assuntos e posicionamentos não se encaixam no grande público nem na posterior entrada do filme na grade de programação da TV aberta. Fatalmente, as figuras representativas da sociedade brasileira e a sua discussão ficam limitadas aos fins aos quais o filme se destina.

2. Um pouco de história: O trabalhador no cinema brasileiro:

Nos anos 70, acompanhando o desenvolvimento do movimento sindical no Brasil, começou a emergir a personagem do trabalhador/operário, tanto na ficção quanto no documentário. Antes disto, o operário figurava em filmes institucionais de empresas, onde aparecia feliz e orgulhoso de participar do desenvolvimento do país, ou também como algum personagem folclórico, participante de alguma chanchada ou comédia de costumes. Uma década antes, durante o Cinema Novo, na fase mais política do cinema brasileiro, a abordagem inicial era a do trabalhador rural, o sertanejo, como o vaqueiro Manoel de Deus e o Diabo na terra do sol (, 1964) e o retirante Fabiano, de Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1962), que procuravam alguma saída para a situação de fome e miséria em que se encontravam. Num segundo momento e já refletindo sobre o Golpe Militar, os cineastas politicamente engajados trataram do urbano, do homem da cidade, do intelectual decepcionado e sofrido sem alternativas de mudança, como o jornalista militante Paulo Martins, de Terra em Transe (Glauber Rocha, 1967). A discussão política durou pouco e com a proclamação do AI-5, o que restava de liberdade democrática para a produção cultural brasileira se esvaiu. O cinema nacional passou então por uma longa fase de censura e repressão, encontrando saídas brandas como as comédias de costumes, seguidas das comédias eróticas e dos filmes ufanistas, que buscavam criar no imaginário do espectador um país de glórias e pujança que, na verdade, não existia, como a heróica proclamação da independência do país em Independência ou Morte (Carlos Coimbra, 1972). A figura do trabalhador, no entanto, incômoda na época da ditadura, foi esquecida pelo cinema.

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No final da década, a caminho da abertura política surgem os documentários sobre os trabalhadores e sua reorganização sindical, como Greve e Trabalhadores Presente (João Batista de Andrade,1979 e 1980), Linha de Montagem (Renato Tapajós, 1982) e Braços cruzados , máquinas paradas (Roberto Gervitz e Sérgio Segall, 1979). O operário não mais faria apenas parte de um rol de personagens, mas sim mostraria a sua própria realidade “sem censura”, sem esconder, dentro dos limites que nos impunham os anos finais da ditadura. Fazendo uma busca na história, encontramos com recorrência, uma visão farsesca e jocosa do trabalhador nas comédias de costumes, a começar pela chanchada dos anos 40 e 50, seguida pela pornochanchada dos anos 70 até chegar na comédia contemporânea.

Nos anos 50 no Brasil, o conceito de trabalho ocupava uma posição central na ideologia do Estado. O Governo de Getúlio Vargas, com seu trabalhismo populista e paternalista proporcionou diversas conquistas para os trabalhadores e cooptou o trabalho para seu projeto nacional-desenvolvimentista. Esta atitude, que começou com o fim da República Velha, prolongou-se além do final do Estado Novo (1945), abrangendo o segundo mandato de Vargas, e se estendeu aos cinco anos de governo JK, iniciado com sua posse em janeiro de 1956.

As chanchadas deste período eram simpáticas ao projeto nacionalista e desenvolvimentista e faziam um humor pueril e inofensivo, brincando com a ideologia da época sem macular nada nem ninguém. A figura do trabalhador aparece de forma estereotipada e jocosa contrastando com o “não-trabalhador” e a glorificação da vida “fácil” e sem esforços. Figuras cômicas como Oscarito, e Zé Trindade, viviam personagens que estavam sempre fugindo de suas obrigações, muitas vezes as mais duras da história, como porteiros, faxineiros e serviçais em geral. Já os mocinhos das histórias, galãs como e Cyll Farney tinham funções mais nobres como artistas, cantores, jornalistas, etc.

Nas chanchadas o trabalho era visto como forma de sobrevivência, e os personagens trabalhadores estavam excluídos do sistema desenvolvimentista, vivendo à parte da sociedade moderna e aproveitando apenas aquilo que lhes era possível. Nos finais felizes, estes personagens acabavam numa situação melhor, ou financeira ou afetiva, mas nunca ligada a alguma realização profissional.

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Já nos anos 60 e 70, nas comédias eróticas denominadas pornochanchadas, a figura do trabalhador contrastou com o programa de desenvolvimento dos governos militares. Ao contrário dos brasileiros idealizados do país em desenvolvimento, o protagonista era um malandro que não tinha nenhuma intenção de trabalhar.

O herói da pornochanchada não fugia das determinações impostas pelo drama ou pelo romance, de passar por uma provação até alcançar o bem final, que é conquistar o amor. Porém a este herói era permitida a vagabundagem, mesmo que momentânea. Assim como na chanchada, o protagonista da pornochanchada tinha um final feliz, invariavelmente longe da realização profissional, mas que o encaminhava na vida: um amor verdadeiro redime e transforma um desocupado num chefe de família distinto e quem sabe até um trabalhador eventual. Tanto num ciclo quanto noutro o trabalho representava quase um castigo. O final feliz incluía o bem viver ao lado da mulher amada ou num lugar paradisíaco, mas nunca trabalhando duro, nem ascendendo profissionalmente em alguma atividade que lhe cobrasse esforço, principalmente o esforço físico. Na história do Brasil o trabalho braçal era destinado primeiro aos escravos e depois aos imigrantes pobres e iletrados. Aos filhos das famílias abastadas era destinado o estudo, a administração das propriedades ou as profissões nobres que necessitassem de bom preparo acadêmico (medicina, direito, etc). A comédia popular repete esta classificação do trabalho braçal como um “castigo” e dá como prêmio aos mocinhos da história o ócio e o desfrute de uma vida sem grandes esforços. Numa época de milagre brasileiro, de um país grande e “em desenvolvimento”, o herói que se apresentava na tela fugia complemente do modelo que o governo pregava. Esta atitude não foi, como talvez até possa parecer, um ato de rebeldia; pode ter sido, muito mais, talvez, um ato de catarse, quando o cidadão comum ria do Carlitos moderno que roubava maçãs, ao invés de comprá-las. E o malandro não o fazia por mal, mas porque é simpático, ladino. Quando descoberto, ele conseguia fugir inclusive da polícia, uma glória para épocas de ditadura hostil e de polícia que amedrontava. Pouco se falou nos filmes da pornochanchada sobre a questão política do país. Não era esta a intenção. O cidadão comum era brindado por uma história engraçada, vivida por outro cidadão tão simples quanto ele, capaz de atos cômicos, de desejar a mulher do próximo,

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de perseguir uma vizinha provocante, de não trabalhar e, mesmo assim, poder morar, comer e se divertir e, ainda, ser capaz de se dar bem no final. Este era o legado para o público. A própria escolha do malandro como protagonista da maioria das histórias colocava por terra a versão desenvolvimentista da propaganda do governo. O povo que trabalhava ia ao cinema para ver um povo que não trabalhava, mas que, mesmo assim, era feliz. Os trabalhadores honestos dos filmes, que “suavam a camisa” para garantir um país em desenvolvimento, eram os maridos que, para cumprir sua jornada de trabalho, deixavam as mulheres sozinhas em casa. E, com a saída dos maridos, quem ocupava o lugar de honra na casa eram os amantes. Engraçado, porém, é pensar que estes filmes, tanto chanchada quanto pornochanchada, eram vistos na sua maioria por trabalhadores da classe média baixa e que identificavam no ócio premiado um desejo. Tanto no período da chanchada, quanto na época da pornochanchada, o público do cinema brasileiro era proveniente das classes mais baixas, com pouca cultura, que, frente à escolha entre dois filmes anunciados, um brasileiro e outro estrangeiro, fazia a opção pelo brasileiro, por ser falado em sua língua e se referir ao seu universo. A classe média, à medida que se ilustrava e se tornava letrada, consumia o filme estrangeiro em lugar do brasileiro, seja pela vulgaridade do exemplar nacional (quando comédia erótica), seja por sua dependência como classe social às informações veiculadas pela mídia a respeito do filme estrangeiro, que o tornavam mais atraente às necessidades de entretenimento ou de ilustração. O cineasta cubano Tomás Gutiérrez Alea, refletindo sobre público e popular, diz que o cinema se fez “popular” “não no sentido de ser a expressão de um povo, dos setores mais oprimidos e mais explorados por um sistema de produção alienante, mas porque conseguiu atrair um público indiferenciado, majoritário, ávido de ilusões”.(ALEA, 1984, p.29). Na história do cinema brasileiro não foi diferente: em todos os momentos que o filme nacional conseguiu atrair um número considerável de espectadores utilizou temas de fácil identificação, artistas conhecidos primeiro pelo rádio e depois pela televisão e, quase sempre, do gênero comédia, associado ao musical, ao erótico, etc. É o caso da comédia de costumes, que ridiculariza os modos e aparência de um determinado grupo social ou de uma determinada sociedade. A visão satírica muitas vezes impregna nestas obras um caráter ideológico de fácil acesso, uma vez que o próprio gênero

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comédia já é tradicionalmente simples, para ser apreciado por um público cada vez mais abrangente. Este gênero, tão presente em outros momentos em que o cinema estreitou os laços com o espectador aparece novamente, só que agora revestido de muita sofisticação e tendo como protagonista a classe média alta – tal qual o público que se fez presente nas salas de exibição. Junto com ela, o cinema contemporâneo trás dramas que abordam sem maquiagem a insegurança nacional, em especial o crime ligado ao tráfico de drogas, motor da violência e do poder marginal e umas das maiores e mais doloridas feridas da atualidade.

3. A representação e a diversidade:

Representação é um termo que pode ser utilizado em inúmeros contextos, significando ser a imagem ou a reprodução de alguém ou alguma coisa, um exemplo que ligue a um determinado significado, ou uma substituição que ocupe o lugar de alguma coisa (ou alguém) que esteja faltando. Segundo Jacques Aumont e Michel Marie, no Dicionário Teórico e Crítico de Cinema “No que concerne à representação por imagens a questão principal foi, no mais das vezes, a de decidir se ela punha em jogo atitudes humanas inatas e universais, ou, ao contrário, atitudes culturais, adquiridas e particulares.”(AUMONT e MARIE, 2003, p.256). Já a reprodução para os autores significa “Reproduzir fielmente uma coisa, existente (um documento, uma obra de arte, uma imagem, um som, uma cópia de texto). O cinema utiliza reproduções sonoras e reproduções visuais, e as primeiras são bem mais ‘fiéis’, ou seja, próximas sensorialmente de seu modelo”. (AUMONT, 2003, p.257). A grande diferença é a mediação que faz com que a representação imprima uma idéia do contexto, da ideologia na qual o filme está baseado, uma vez que é definida como uma passagem de um texto à sua materialização, mediada pelo realizador. A representação é sempre uma questão política e ideológica, parte dos princípios e valores daqueles que determinam os fins aos quais o filme é direcionado. A representação, ao contrário da reprodução, confere, segundo Bordwell (BORDWELL in RAMOS, 2005, p.277) “significação a um mundo ou conjunto de idéias”. No estudo sobre cinema clássico hollywoodiano, Bordwell aborda a previsibilidade das tramas e conceituações, encaixando a representação (de situações e personagens) em ícones

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já conhecidos e aceitos pelo espectador, dos quais ele poderá ou não discordar, mas que não se pretendem acionar uma discussão nem uma indagação social. Na composição de um personagem e conseqüentemente na sua significação, o cinema clássico não inova. Reproduz tipos usuais, que através de sua aparência, maneirismo e diálogos, “qualidades e comportamentos” que, segundo Bordwell, identifica no espectador um tipo conhecido, real ou irreal, mas inquestionável. O cinema, mesmo quando prevê a reprodução o mais fiel possível da realidade, como a teoria realista dispõe, acaba por imprimir um determinado ponto de vista, uma mediação pelo olhar do realizador (autor) e/ou do mercado ao qual este filme está destinado. Assim os filmes brasileiros do ciclo da Retomada passam por escolhas particulares ao serem idealizados. Escolhas que passam pela confecção de um produto de mercado, inserido no momento audiovisual em que o país se encontra, aceitando a influência clara e explícita da televisão, para uma maior identificação do público com o filme, ou uma opção estética diferenciada, aproveitando a possibilidade de, através das leis de incentivo culturais, captar recursos que totalizem o orçamento do filme, colocando no mercado um produto pago. Uma das características deste período contemporâneo do cinema brasileiro é a aproximação com o naturalismo e com os temas da atualidade. Na comédia a idéia é reproduzir os conflitos pessoais e afetivos que permeiam as novelas de televisão, com um pouco mais de malícia e liberdade, uma vez que o filme pode ser classificado para maiores de dezoito anos. Nos dramas o assunto recorrente é o da violência nas grandes cidades. Fator campeão da insegurança nacional e onipresente na imprensa. Este assunto é tratado de forma naturalista. “Na literatura do último terço do século XIX (sobretudo na França e depois na Itália), é a tônica dada à natureza humana, observada ‘objetivamente’ e em seus detalhes – detalhes, freqüentemente, escabrosos, embaraçosos, e até mesmo obscenos e miseráveis.” (AUMONT e MARIE, 2003, p.210) Robert Stam, em Introdução à teoria do cinema, cita Sigfried Kracauer refletindo sobre o realismo e sua vinculação com o imaginário coletivo. Estudando o cinema alemão da república de 1919 a 1933,

Kracauer demonstrou como um cinema de Weimar enormemente artificial ‘realmente’ refletia ‘tendências psicológicas profundas’ e a loucura institucionalizada

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na vida da Alemanha. Os filmes conseguiam refletir a psique nacional porque (1) não são produções individuais, mas coletivas e (2) têm como alvo e mobilizam uma audiência de massa, não por meio de temas ou discursos explícitos, mas nos desejos implícitos, inconscientes, ocultos, não verbalizados. (STAM, 2003, p.96)

Ainda refletindo sobre as evidências implícitas e explícitas no discurso cinematográfico da época,

(...)o argumento geral de Kracauer desloca de modo muito interessante a questão do realismo para outro nível, no qual os filmes são vistos como representando, de uma forma alegórica, não a história literal, mas as obsessões profundas, perturbadoras e inconscientes do desejo e da paranóia nacionais.(STAM, 2003, p.97)

Nas comédias a intenção é diferente. Sem tencionar o choque e o questionamento, buscam um público heterogêneo e para tanto se aproximam do padrão de qualidade técnico- narrativo atingido por quase trinta anos de boa televisão (no caso, da Rede Globo, que independente da qualidade intelectual de seu conteúdo conseguiu chegar à um primor técnico sem comparação no cenário audiovisual brasileiro). Sendo assim não apresentam nada de novo e ao mesmo tempo brindam o público num campo diferente (o cinema) com os signos já conhecidos da televisão, a saber, o elenco, o cenário quase sempre a cidade do , transformada em um local idílico, limpo, sem violência, as tramas girando em torno de relacionamentos afetivos com um final feliz, etc.

4. O trabalhador idílico e refinado e a inexistência do cidadão comum:

O refinamento de parte do cinema brasileiro, trabalhando com histórias mais palatáveis e tecnicamente melhor construídas vem de encontro a um mercado acostumado com um alto nível de qualidade audiovisual que a televisão, e principalmente a Rede Globo, grande produtora desta faixa de mercado, consegue atingir. Não é por acaso que filmes destinados ao grande público (O que é grande público quando se trata de cinema brasileiro, nos perguntamos?) são dirigidos por realizadores que têm como escola a televisão ou a publicidade. Tanto Daniel Filho quanto Jorge Fernando foram e são diretores de TV, acostumados com uma linguagem linear e previsível, que dê ao público aquilo que os

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institutos de pesquisa entendem que ele quer, sem provocar surpresas desagradáveis (como um desempenho fraco nas salas de exibição, por exemplo). Esta fórmula nem sempre dá certo, o filme também precisa ser bom, ser bem feito e ter sido lançado com um cuidado que só as grandes empresas com seus departamentos de marketing podem definir. Outro dado importante de ser analisado nesta configuração de filmes é a entrada das empresas norte-americanas no processo de produção nacional (Sony, Miramax, Colúmbia), que acabaram por incluir o filme brasileiro no seu rol de distribuição. Esta entrada não é de graça, o cinema brasileiro distribuído no país pelas companhias estrangeiras está moldado aos ditames destas empresas e focado no mercado em primeiro lugar. Neste cenário as profissões são um reflexo do próprio mercado de trabalho nacional limitado às classes mais altas da população. As funções subalternas aparecem como coadjuvantes ou figuração, nunca como principais. As vezes, os personagens sequer possuem uma profissão e este fator pouco importa na condução da trama, como acontece nas telenovelas, principalmente com personagens femininas, cuja função é meramente de se relacionar com os personagens masculinos. Entre as profissões encontradas, as da mídia e das artes são bastante recorrentes: jornalistas, designers, escritores e publicitários. A publicidade, profissão que está em alta no mercado nacional pela sua visibilidade é recorrente nos filmes. O publicitário trabalha muito, ganha muito e vive (supostamente) num mundo de luxo e glamour, conveniente para o desenvolvimento da maioria das tramas das comédias de costumes, que tal qual as novelas de televisão, sempre têm como âncora um “núcleo rico” protagonista e objeto de desejo e admiração. Como exemplo o filme Sexo, amor e traição , Jorge Fernando, 2004 (2.219.423 espectadores) 4 que conta a história de um casal em crise, Carlos (Murilo Benício) e Ana (Malu Mader) e os amigos / amantes que os cercam, Tomás (Fábio Assumção), amigo e ex-namorado de Ana, Andréa (Alessandra Negrini) e Miguel (Caco Ciocler) que também estão em crise, e Cláudia (Heloisa Perrissé), ex-namorada de Miguel. Ainda há a participação especial de Marcelo Antony como um médico homossexual.

4 Dados no Site da Ancine – Agência Nacional de Cinema: http://www.ancine.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=3010&sid=804 . Acessado em 19 de janeiro de 2008.

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Miguel é o publicitário melhor sucedido de todos. Mora em uma ampla cobertura na Zona Sul carioca e é casado com uma ex-modelo que largou a profissão para ficar com ele. Carlos é um escritor sem grande destaque e igual ascensão social. Sua mulher Ana é fotógrafa e parece estar bem na profissão. Cláudia é zoóloga. Uma personagem exótica que no começo do filme está vindo de uma temporada na África. O publicitário Miguel é sério, bem sucedido, mas estressado, o que dá vazão para os conflitos apresentados na trama. No final as questões afetivas são privilegiadas, deixando todos os conflitos causados pelo trabalho (trabalho demais do publicitário, trabalho frustrado do escritor) quase sem resposta. Na maior parte dos filmes os trabalhadores são os homens. As profissões destinadas às mulheres são charmosas ou fúteis. Outro publicitário de sucesso aparece em Se eu fosse você , também de Daniel Filho, 2006 (3.600.000 espectadores) 5. Se eu fosse você conta novamente com a figura do publicitário bem sucedido, Cláudio (Toni Ramos) que acaba trocando de corpo com a mulher, Helena, professora de música de uma escola infantil (Glória Pires) por conta do “alinhamento dos planetas”. Trata-se de uma família de classe alta provida basicamente pelo trabalho dele. Em uma cena Helena reclama dos afazeres do marido e ele retruca que é por causa do seu esforço que a família leva uma vida boa. A relação com o trabalho braçal praticamente nula. Em Sexo, amor e traição porteiros e motoristas de táxi aparecem quase como parte do cenário, sem falas e sem importância na trama. Fora isto, a história gira em torno dos personagens principais. Num determinado momento da história aparecem três garotas de programa, numa caracterização bastante estereotipada, apenas como escada para a atuação dos personagens masculinos. Em Se eu fosse você aparecem os funcionários da agência de Cláudio e uma empregada doméstica na casa do casal. Figuras totalmente estereotipadas com um desempenho previsível, seguindo a classificação já delineada pelo universo das telenovelas. No caso da comédia fica clara a intenção de aproximar um cinema do público pagante e depois, encaixar o filme numa grade de programação televisiva, no caso, da Rede Globo, participante da produção. Os dois filmes seguem o “padrão Globo de qualidade” e trabalham com o mesmo imaginário que concebe personagens das novelas, inclusive com os rostos conhecidos dos mesmos atores, como, já disse Bordwell, facilitando a identificação da personagem pelos seus traços físicos e conjunto de comportamento.

5 Dados do site Filme B www.filmeB.com.br . Acessado em 19 de janeiro de 2008.

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5. Considerações finais:

Os trabalhadores que se apresentam nestas comédias são aqueles com os quais o público convive nas novelas da televisão. Mocinhos glamurosos têm profissões bonitas e de grande visibilidade. São figuras com as quais o público se diverte e não se preocupa em questionar a situação do país nem de seu povo (Quem não se preocupa com a situação do povo: as figuras ou o público?). As comédias de costumes da Retomada seguem um padrão de qualidade da televisão, e trazem as mesmas histórias contadas na TV, que giram em torno de romances, encontros e desencontros, mas adaptadas a uma narrativa um pouco mais livre. A vida profissional dos personagens masculinos só é importante quando faz parte da história. Enquanto que para as personagens femininas a vida profissional não tem grande importância, deixando a vida afetiva sempre em primeiro lugar. As profissões escolhidas para os protagonistas da história são as de maior visibilidade no país hoje em dia: publicidade, design, artes, jornalismo, etc. Profissões estas que possam emprestar charme aos personagens. A figura do malandro ainda aparece, mas num outro contexto. De mocinho da pornochanchada ele passa a ser o cômico na comédia da Retomada. O não-trabalho é tomado como uma chacota e não como um desejo. Agora o objeto do desejo é uma profissão charmosa, onde se trabalhe muito, mas onde se ganhe muito bem. Dos pequenos apartamentos de Copacabana, onde viviam os personagens da pornochanchada, passamos para as coberturas do Leblon ou para os condomínios fechados da Barra da Tijuca, tal qual as novelas da TV. O desejo do espectador elevou o nível de vida dos personagens principais que passaram à personagens mais ricos, mais bonitos, mais letrados e mais refinados. Durante décadas e passando por quase todos os ciclos da sua história, o cinema nacional balançou sua relação com o público e nunca teceu uma teia estável e duradoura. A Retomada, na verdade, reata a relação com o público que, durante os anos 80 foi se esvaindo até ficar quase nula no início da década de 90, devido à escassez da produção de longa- metragens. Esta relação é diferente da estabelecida nos períodos seguintes: o mercado mudou, os filmes mudaram e o público mudou. E, para ganhar um público distante e receoso,

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nada melhor do que ambientar os filmes num universo conhecido: o da classe alta carioca visto nas telenovelas brasileiras. O desejo está assim exposto para apreciação pública.

Referências

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