LITERATURA

A ESCRITORA DAS ENTRELINHAS Colóquio internacional, filmes, peça teatral e livros evidenciam permanência da obra de nos 100 anos de seu nascimento

Ana Paula Orlandi INSTITUTO MOREIRA SALLES INSTITUTO

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MADALENA SCHWARTZ MADALENA s vésperas do cente- rante a graduação começou a trabalhar nário de Clarice Lis- como jornalista, época em que também pector (1920-1977), a publicou contos em revistas. “Clarice foi ser celebrado em 10 de uma das primeiras jornalistas brasileiras dezembro, uma série em um tempo em que as mulheres não de eventos vem home- estavam nas redações”, observa Yudith nageando a autora de Rosenbaum, professora de literatura bra- clássicos como A ho- sileira da FFLCH-USP, que estuda a obra ra da estrela (Livraria da autora pelo viés da psicanálise desde José Olympio, 1977) e a década de 1990. A paixão segundo G.H. Em 1943, ano de sua formatura, a edi- (Editora do Autor, tora A noite lançou Perto do coração sel- 1964). “Muita gente acha que Clarice vagem, primeiro romance de Lispector, ganhou fama agora, mas ela é uma das que mereceu o seguinte comentário do Àpoucas escritoras brasileiras que foram crítico literário Antonio Candido (1918- reconhecidas em vida – e traduzida para 2017), à época: “Tentativa impressionan- o francês já na primeira metade dos anos te para levar nossa língua canhestra a 1950. Em 2010 eram 180 as traduções domínios pouco explorados, forçando-a de suas obras, do Oriente ao Ocidente”, a adaptar-se a um pensamento cheio de diz Nádia Battella Gotlib, professora mistério para o qual sentimos que a fic- aposentada de literatura brasileira da ção não é um exercício ou uma aventura Faculdade de Filosofia, Letras e Ciên- afetiva, mas um instrumento real do es- cias Humanas da Universidade de São pírito”. O livro, que acompanha sem fio Paulo (FFLCH-USP). “Talvez uma boa cronológico os passos da protagonista forma de homenageá-la agora seja ficar Joana, teve uma “recepção esplendo- em silêncio e reler seus livros.” rosa”, relembra João Camillo Penna, da Nascida na Ucrânia, Lispector chegou Faculdade de Letras da UFRJ, e rece- ao Brasil em 1922 com os pais e duas ir- beu críticas favoráveis, como as do poe- mãs para fugir do antissemitismo e da ta Sérgio Milliet (1898-1966). Uma das miséria. Primeiro, a família de origem vozes dissonantes foi Álvaro Lins (1912- judaica aportou em Maceió (AL), onde 1970), do jornal Correio da Manhã, que moravam alguns parentes. Três anos mais não gostou da narrativa fragmentada, tarde, mudaram-se para Recife (PE). “Cla- justamente o aspecto inovador da obra. rice, cujo nome de nascença era Haia, “De qualquer forma, Clarice ganhou viveu uma infância muito pobre”, pros- projeção imediata com o livro, em que segue Gotlib, autora da primeira biografia já estão colocados aspectos que seriam sobre a escritora, Clarice, uma vida que recorrentes em sua obra, como a questão se conta, resultado de sua tese de livre- feminina e a metafísica”, relata Penna. -docência, lançada pela editora Ática em Ainda em 1943 Lispector casou-se com 1995 e atualmente no catálogo da Edusp. um colega de faculdade, o futuro diplo- “No Recife, aprendeu a ler e se apaixonou mata Maury Gurgel Valente (1921-1994), pela literatura. Chegou a mandar algumas com quem teve dois filhos, Pedro e Pau- histórias para a página infantil do jornal lo. Por causa da profissão do marido, ela Diário de Pernambuco, que nunca foram moraria em lugares como Inglaterra e publicadas, e também escreveu uma peça Estados Unidos. Em Nápoles, na Itália, de teatro. Foi o início de tudo.” finalizou seu segundo romance, O lustre Na década de 1930, após a morte da (Agir, 1946) ), e, mais tarde, na Suíça, “em mulher, Pedro Lispector decidiu levar meio ao silêncio aterrador das ruas de as filhas para estudar no Rio de Janei- Berna”, como registrou em carta para as ro. A caçula, Clarice, escolheu o curso irmãs, concluiu A cidade sitiada (A noite, de direito. Em 1939, ingressou na antiga 1949). Os três primeiros livros da autora Universidade do Brasil, hoje Universi- foram relançados no final do ano passado dade Federal do (UFRJ). pela Rocco e abriram a série de publica- “Ela era muito preocupada com a ques- ções prevista pela editora carioca para tão social e dizia que optou pelo direito seu centenário. “Serão ao todo 18 títulos, Registro de para tentar melhorar o sistema prisional entre romances, coletâneas de contos e Clarice Lispector brasileiro, mas nunca exerceu a profis- crônicas”, diz o editor Pedro Karp Vas- em 1976, ano em que também se são”, conta o poeta Eucanaã Ferraz, da quez. “Ao final de cada volume trazemos dedicou à pintura Faculdade de Letras da UFRJ. Já du- um posfácio assinado por especialista

PESQUISA FAPESP 296 | 83 para que funcione não como um guia de inéditas estão cerca de 50 cartas enviadas de Lispector como Gotlib, Rosenbaum, leitura, coisa que desagradaria a Clarice, para interlocutores como José Miguel Wisnik e Franklin Leopoldo mas como um instrumento de expansão [1913-1990], Otto Lara Resende [1922- e Silva. “Eles nos ajudaram a entrar no das possibilidades de interpretação.” 1992], Mário de Andrade [1893-1945] e universo clariciano, onde é preciso ler No projeto gráfico do designer Victor ”, aponta Teresa por trás das palavras”, conta Dalboni. Burton, as capas são pinturas feitas pela Montero, doutora em Letras pela Pon- “Clarice é uma autora das entrelinhas.” própria escritora já no final da vida, entre tifícia Universidade Católica do Rio de No longa-metragem ainda sem data 1975 e 1976. “Clarice não tinha pretensão Janeiro (PUC-RJ) e estudiosa da obra de estreia e inspirado no romance ho- de ser artista plástica: o ato de pintar era clariciana há três décadas. “Na corres- mônimo de Lispector, a atriz Maria Fer- uma forma livre de expressão”, opina Ri- pondência para João Cabral de Melo Ne- nanda Cândido interpreta uma esculto- cardo Iannace, professor do Programa de to [1920-1999], por exemplo, ela reflete ra de classe média alta que, ao visitar o Pós-graduação em Estudos Comparados sobre o fazer literário e seu estado de es- quarto de Janair, a empregada doméstica de Literaturas de Língua Portuguesa da pírito diante daquela espécie de exílio em demissionária, passa por uma profun- USP. No livro Retratos em Clarice Lis- Berna, quando acompanhava o marido.” da experiência existencial em que che- pector: Literatura, pintura e fotografia ga a comer uma barata. “É uma história (Editora UFMG, 2009), desdobramento esponsável pelo prefácio e as incomodamente atual e de uma potên- de sua tese de doutorado naquela univer- 510 notas que contextualizam cia revolucionária avassaladora que, na sidade, o pesquisador reuniu 22 pinturas o material reunido na obra, maioria das vezes, costuma ser lida pelo produzidas pela escritora que estavam Montero prepara para o ano que viés filosófico e psicológico, invisibili- depositadas nos acervos da Fundação vem a edição ampliada de seu zando inúmeras camadas estruturais Casa de Rui Barbosa e do Instituto Mo- livro Eu sou uma pergunta: Uma do romance, como a luta de classes e o reira Salles (IMS) e na casa de uma de Rbiografia de Clarice Lispector,lançado preconceito racial”, observa Carvalho. suas amigas mais próximas, a escritora originalmente em 1999. Também pela “No livro, o processo de tomada de Nélida Piñon. “Com exceção de uma te- Rocco está previsto para 2021 o lança- consciência de G.H. acontece de forma la, os trabalhos são feitos sobre madeira mento de G.H. – Diário de um filme, título densa, rápida e impactante”, consta- com tinta, vela derretida, caneta esfero- provisório do livro escrito e organiza- ta a pesquisadora Ludmilla Carvalho gráfica e até mesmo esmalte de unha. É do por Melina Dalboni, roteirista de A Fonseca, que em sua tese de doutorado uma técnica mista, da ordem sobretudo paixão segundo G.H, dirigido por Luiz comparou esse processo a outro simi- do abstrato, que traz grande correspon- Fernando Carvalho. Segundo Dalboni, lar em Les belles images, publicada em dência com a literatura clariciana.” a ideia foi mapear o passo a passo da 1966 pela francesa Simone de Beauvoir Um dos títulos mais aguardados por produção cinematográfica e também o (1908-1986). Defendida em julho na Fa- pesquisadores foi lançado em setembro. diálogo entre literatura e cinema. Antes culdade de Ciências e Letras da Uni- O livro Todas as cartas reúne 284 corres- do início das filmagens, em 2018, parte versidade Estadual Paulista (Unesp), pondências escritas por Lispector entre da equipe frequentou oficinas teóricas campus de Assis, na tese Fonseca busca as décadas de 1940 e 1970. “Dentre as ministradas por especialistas na obra entender como as duas protagonistas desses romances escritos na década de 1960 modificaram o próprio modo de pensar sobre a condição social na qual estavam inseridas e também sobre a con- dição existencial feminina. Outra produção cinematográfica em curso é O livro dos prazeres. O filme, li- vremente inspirado em Uma aprendi- zagem ou O livro dos prazeres, romance de Lispector lançado pela editora Sabiá em 1969, narra a história de amor entre o filósofo Ulisses, interpretado por Javier Drolas, e a angustiada professora Lóri, papel de Simone Spoladore. “O enredo foi adaptado para os dias de hoje e trata da jornada de investigação íntima de Lóri e seu embate com o afeto e a autorreali- zação numa sociedade ainda patriarcal, mesmo 50 anos após o lançamento do li- A autora de vro. Lóri aprende a amar enfrentando a A paixão própria solidão”, analisa a cineasta Mar- segundo G.H. em seu apartamento, cela Lordy, diretora do longa-metragem, ARQUIVO DA FAMÍLIA DE CLARICE FAMÍLIA ARQUIVO DA LISPECTOR no Rio de Janeiro, com estreia prevista para o ano que vem.

na década de 1960 “É um livro escrito após o AI-5, no auge FOTOS

84 | OUTUBRO DE 2020 da ditadura militar [1964-1985], onde Lóri toma as rédeas da própria vida. Clarice promove uma revolução feminista para o lado de dentro.” Em mesa com a psicanalista Maria Lú- cia Homem, a cineasta vai falar sobre o filme no Colóquio Internacional: Cem Anos de Clarice Lispector, organizado pelas professoras Rosenbaum e Cleusa Rios Passos, também da FFLCH-USP. Previsto para acontecer entre 19 e 21 de outubro, a programação do evento, virtual em decorrência da pandemia da Covid-19, terá a participação de especialistas do Brasil, de Portugal, dos Estados Unidos e da França, e reflete o crescente alcance mundial da obra clariciana, na opinião de Rosenbaum. “A permanência de uma obra não depende apenas da excelência do autor, mas das várias leituras que se fazem dela”, constata a autora de Meta- morfoses do mal: Uma leitura de Clarice Lispector (Edusp/FAPESP, 1999). “E isso hoje Clarice tem de sobra. O resultado é que surge renovada a cada leitura.” As várias leituras suscitadas pela obra clariciana também estão presentes no livro Visões de Clarice Lispector: Ensaios, entre- vistas e leituras, lançado neste ano pela Imprensa Universitária da Universidade Bilhete enviado por Federal do Ceará (UFC). Organizada por Lispector, pouco Fernanda Coutinho e Sávio Alencar, a pu- antes de sua morte, para a escritora blicação reúne trabalhos de 24 estudiosos Lygia Fagundes que refletem sobre o legado da escritora, Telles, em incluindo as tradutoras de sua obra para o novembro de 1977 italiano, alemão, espanhol e iídiche. “Clari- ce estava em permanente indagação e sua Parte dessa produção foi reunida no livro tora. Prevista para estrear em dezembro, escrita, de desenho inquieto e perturba- A descoberta do mundo (Nova Fronteira, a mostra deve ser aberta em julho do ano dor, conseguia dizer o indizível ao tratar 1984), organizado pelo filho caçula, o eco- que vem, em São Paulo. “A ideia é reunir de temas como o feminino e a animalida- nomista e escritor Paulo Gurgel Valente. não apenas material biográfico da home- de”, constata Coutinho, do Programa de A mulher desse período de retorno ao nageada, mas também obras de artistas Pós-graduação em Letras da UFC. “Acho Brasil, em torno dos 40 anos de idade, visuais contemporâneas a Clarice, co- que por isso é tão contemporânea e seduz se encontra com a quase sexagenária no mo Djanira [1914-1979], Fayga Ostrower novas gerações de leitores.” espetáculo Ao redor da mesa, com Clarice [1920-2001] e Maria Bonomi”, explica Lispector, escrito e dirigido por Clarisse Eucanaã Ferraz, curador da mostra com m 1959, separada do marido, Lis- Fukelman, professora da Faculdade de a escritora Verônica Stigger e também pector voltou ao Rio de Janeiro Comunicação da PUC-RJ e especialis- organizador do site Clarice Lispector, do com os dois filhos pequenos, após ta na obra clariciana. A peça, que en- IMS. “Queremos tentar descobrir o que 16 anos fora do Brasil. Para se sus- trou em cartaz no Espaço Sesc, no Rio inquietava essas mulheres em uma época tentar, voltou a publicar contos, de Janeiro, em março, teve suas sessões ainda marcada pela submissão feminina dessa vez na revista Senhor, e lan- interrompidas por causa da pandemia. e, assim, estabelecer laços entre elas.” n Eçou o livro Laços de família (Livraria Fran- Convertida em uma série de 9 episódios, cisco Alves Editora, 1960), que a insere agora sob o título Ao redor da tela, com Projeto novamente no circuito literário carioca. Clarice Lispector, durante o mês de ou- Estilhaços de paixão e beleza: A tomada de consciência “Além disso, a produção de contos a revela tubro o espetáculo está disponível na em A paixão segundo G.H. (1964), de Clarice Lispector, para um público mais amplo”, observa Plataforma Sesc RJ no YouTube. e Les belles images (1966), de Simone de Beauvoir (nº Penna, da UFRJ. Público que vai se ex- O contexto de pandemia também afe- 16/13683-7); Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesqui- sadora responsável Daniela Mantarro Callipo (USP); pandir quando Lispector passa a escrever tou a exposição Constelação Clarice, do Bolsista Ludmilla Carvalho Fonseca; Investimento R$ crônicas para o Jornal do Brasil em 1967. IMS, que detém parte do acervo da escri- 152.405,89.

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