Exacta ISSN: 1678-5428 [email protected] Universidade Nove de Julho Brasil

Henriques Librantz, André Felipe; Roos, Darius; Correia, Expedito; Dutra, Júlio César Ozires Silva. Engenharia, indústria aeronáutica e pioneirismo no centenário da aviação Exacta, vol. 4, núm. 1, janeiro-junho, 2006, pp. 15-32 Universidade Nove de Julho São Paulo, Brasil

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Ozires Silva Engenharia, indústria aeronáutica e pioneirismo no centenário da aviação

Nascido em (SP), em 1930, Ozires Silva formou-se oficial aviador e piloto militar pela Escola de Aeronáutica do Campo dos Afonsos, no (RJ), em 1951; graduou-se em Engenharia Aeronáutica pelo Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), em 1962, e concluiu o mestrado em Ciências Aeronáuticas no Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech), nos Estados Unidos, em 1966. Doutor honoris causa pela Queen’s University, da Irlanda, foi professor do ITA, na cadeira de Ensaios em Vôo, e liderou o grupo que criou a Empresa Brasileira de Aeronáutica S. A. (), em 1970. Dirigiu a empresa desde sua fundação até 1986 e, posteriormente, de 1991 a 1995, quando conduziu o processo de privatização. Entre 1986 e 1988, foi presidente da Petróleo Brasileiro S. A. (), ministro da Infra- Estrutura, em 1990 e 1991, e presidente da Viação Aérea Rio-Grandense S. A. (), de 2001 a 2003. Detentor de várias condecorações no Brasil e no exterior, ocupa cargos em conselhos de administração de diversas empresas e associações e é presidente da Pele Nova Biotecnologia S. A. Seus livros publicados são A decolagem de um sonho (Lemos, 2002) e Cartas a um jovem empreendedor (Alegro, 2005).

Exacta: O senhor se formou numa época em que tanto o ensino quanto a pesquisa de ponta no país, não ape- nas no setor aeroespacial, concentravam esforços e recursos governamentais, sempre com a ativa parti- cipação dos militares. Assim, foram criados institutos e centros tecnológicos de excelência, tais como o ITA, o Centro Técnico Aeroespacial (CTA), a Petrobras Química S. A. (Petroquisa) e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Naquele momen- to político, as conquistas tecnológicas eram, em tese,

Exacta, São Paulo, v. 4, n. 1, p. 15-32, jan./jun. 2006 15 patrimônio da nação e respondiam a de- mente interessante: o financiamento de pesquisa mandas de Estado, a conceitos de “sobe- e o desenvolvimento de produtos, por meio de rania”. Hoje, a pesquisa de ponta é cada contratos governamentais; e foi a partir daí que a vez mais financiada pelo setor privado, e pesquisa ganhou enorme impulso, tanto que, para seu resultado, obviamente, é por ele co- este ano, o orçamento dos Estados Unidos prevê lhido. O Estado vem-se demitindo dessa que 80 bilhões de dólares sejam direcionados à tarefa. No caso da pesquisa aeronáutica, inovação na indústria – temos aí, portanto, o Es- atualmente, a Embraer privatizada desen- tado, efetivamente, alocando recursos em proces- volve seus próprios setores de pesquisa. sos inovadores. E as idéias básicas que orientam Como o senhor vê esses novos tempos, em as pesquisas, as inovações, a busca de respostas que o ensino superior público e a pesquisa às perguntas técnicas, tecnológicas ou científicas nos institutos de excelência vivem um pe- vêm das empresas e dos organismos de produção. ríodo de “vacas magras”, com orçamen- Uma estatística apresentada recentemente sobre tos cada vez mais reduzidos? Que efeitos o Instituto de Tecnologia de Massachussets (em tem esse direcionamento da pesquisa e inglês, Massachusetts Institute of Technology da busca da excelência para o mercado? [MIT]) – a instituição de ensino e pesquisa dos Qual o papel do Estado hoje? Estados Unidos que mais produz inovação para o campo produtivo – mostra uma participação de Ozires Silva: A pesquisa, em geral, nasce da 15% do esforço de pesquisas e desenvolvimento cabeça do indivíduo. Se olharmos cem anos para no total da participação daquele país. Essa é uma trás, poderemos verificar que a pesquisa era orien- demonstração muito clara de que o trabalho de tada mais pelas pessoas do que, efetivamente, por pesquisa e desenvolvimento tem origem prática e qualquer coletividade. De um ponto de vista ma- está destinado ao organismo produtivo. Embora croscópico, pode-se afirmar que essa apreciação existam esforços isolados, ainda não se consoli- não variou muito ao longo do século XX; o mes- dou no Brasil uma cultura semelhante, apesar de, mo não pode ser dito em relação ao processo de do ponto de vista burocrático, constar que o país financiamento da pesquisa, que mudou muito no gasta muito com pesquisa. Há o Ministério de mesmo período. Sabemos, por exemplo, que Tho- mas Edison inventou a lâmpada elétrica, mas não Ciência e Tecnologia, as Secretarias Estaduais e quem inventou o computador, a internet etc. Não vários órgãos estatais ligados à área. Porém, são existe mais aquele esforço romântico, individual, reduzidas as possibilidades de financiar o setor que trabalhava com os capitais possíveis, às vezes privado, no qual, pode-se dizer, talvez não ocorra somente com o dinheiro da família para atingir plenamente o processo científico, mas, certamente, objetivos de realização pessoal. Alberto Santos- nele se efetivará a aplicação tecnológica decorren- Dumont e suas conquistas são exemplos categó- te do avanço da ciência; afinal, é por meio das em- ricos desse tipo de financiamento. Nos Estados presas que um produto chega ao mercado. Desde Unidos, a partir das décadas de 1930 e 1940, so- 2005, com a regulamentação da Lei de Inovação, bretudo no período adjacente à Segunda Guerra é possível que contratos de pesquisas com o setor Mundial, houve uma gigantesca reciclagem da privado sejam instituídos por órgãos públicos. De indústria estadunidense para produzir material minha experiência pessoal, posso citar o exemplo bélico. Criou-se uma cultura nesse país, extrema- da Embraer, que no seu início esteve muito ligada

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ao Estado brasileiro e hoje desenvolve, interna- resposta para isso é um pouco mais intrincada. mente, boa parte da pesquisa de que precisa. Como disse anteriormente, a inovação surge de uma necessidade, de um requisito qualquer; é uma E.: O binômio que deu origem à Embraer – um idéia que o indivíduo, profissional ou não, traduz instituto de ensino de excelência e um em procedimentos e determina o que deve ser fei- centro tecnológico que, trabalhando em to. Nos dias correntes, vemos, diante de nós, uma conjunto, lançaram as bases do que viria variedade de itens tecnológicos – a filmadora, a a ser uma indústria aeronáutica de suces- lâmpada que nos ilumina, o monitor de TV que so – poderia ser um modelo viável hoje em acompanha a entrevista; enfim, uma grande quan- dia? Seria aplicável tidade e variedade de pro- em instituições priva- “[...] o trabalho dutos que foram fabricados das de ensino, como por empresas. Os conceitos o Centro Universitário de pesquisa usados por essas empresas, Nove de Julho (Uni- e desenvolvimento porém, podem não ter sido nove), que desejas- desenvolvidos por elas mes- sem atingir um nível tem origem prática mas. No centro tecnológico, de excelência, por e está destinado se tivermos a visão pragmá- exemplo, em diferen- tica de planejar a distância, tes especialidades ao organismo de avaliar os eventos que das engenharias? produtivo.” poderão acontecer e qual o O senhor considera caminho a seguir, uma vez investimento em um centro tecnológico que se está entre a pesquisa científica e o desen- e no ensino de excelência fundamental volvimento tecnológico, certamente o modelo vai para gerar uma “massa crítica” e atingir se impor; agora, se me perguntasse, por exemplo, um nível de excelência, ou essa foi uma se a Embraer, hoje, depende do CTA, eu diria que experiência isolada que deu certo? não; mas depende do ITA, tanto que a maioria dos convênios da Embraer firmados com o instituto O.S.: Ao contrário da cultura brasileira, eu visa, na questão de formação, a priorizar aquilo diria que a “massa crítica” é gerada dos recursos que, justamente, pode ser considerado fundamen- humanos. No Brasil, há uma tendência de pensar tal para gerar a real “massa crítica”: os recursos que tudo vem do dinheiro; não é assim, como se humanos. O próprio CTA vem buscando uma pode apreender da experiência dos países de su- vocação nova, daí seu interesse na indústria aero- cesso. Na realidade, a Embraer nasceu do ITA espacial; enveredou por essa área, porque a aero- – uma escola que, efetivamente deu o necessário náutica já está coberta quase integralmente pela embasamento à futura empresa. Sem esse impul- Embraer, à exceção daqueles conhecimentos ou so inicial, arrisco-me a dizer, a Embraer não teria serviços de longo prazo, como homologação de ae- existido; afinal, a educação está na base de tudo. ronaves, pesquisa e desenvolvimento de materiais Mas a pergunta é mais abrangente, trata da im- compostos. Exemplos de novas tecnologias, como portância de existir também um centro de desen- matérias-primas essenciais, muito provavelmente volvimento de tecnologia, no caso o CTA. Se o não poderiam ser desenvolvidos numa empresa, CTA não existisse, poderia existir a Embraer? A mas, sem dúvida, sua aplicabilidade e sua trans-

Exacta, São Paulo, v. 4, n. 1, p. 15-32, jan./jun. 2006 17 formação em produto caberiam, efetivamente, ao precisa ser satisfeito; se, de alguma maneira, isso processo produtivo. Hoje, está emergindo no mun- puder ser levado aos estudantes em geral, estou do o conceito de parque tecnológico, não com o certo de que será vantajoso. É obrigação da so- simples propósito de atender à indústria – ele pode ciedade expor a criançada e a juventude a todas e deve atender às empresas –, mas também de olho as experiências possíveis, para despertar as voca- na competitividade e na qualidade do ensino. É ções. É para isso que existem museus, mostras, ex- consagrada a tese de que a pesquisa contribui para posições e coisas desse gênero, para que as novas que os professores evoluam em conhecimentos e gerações conheçam os horizontes da ciência, da habilidades. Não é fácil encontrar soluções que técnica, do conhecimento. Meu exemplo pessoal: sirvam de paradigmas, que apontem com toda a nasci em Bauru, interior do Estado de São Paulo. certeza “não faça isso, que não funciona”, ou “vá Razões de meteorologia levaram a Força Aérea por aqui, que dá certo”; estamos falando de seres Brasileira (FAB) a treinar lá os pilotos da Força humanos e, nesse caso, as decisões podem variar Expedicionária Brasileira que iriam lutar na Itá- bastante. Não há dúvida, porém, de que os três lia. Os meninos da minha geração foram expostos itens – ensino, pesquisa e indústria – compõem um a esse mundo novo, o dos pilotos e suas aerona- tripé poderoso que, dependendo da maneira como ves. Aqueles vôos por cima da cidade motivaram é montado, faz com que, efetivamente, o produto a todos, em particular o presidente da Estrada de final possa ser sustentado. Ferro Noroeste do Brasil, cuja sede era em Bauru, a construir uma escola de aeromodelismo. Eu e E.: Insistindo nesse caminho da pesquisa, muitos colegas começamos então a fazer aeromo- assistimos ao vídeo com imagens do ae- delos. Foi o início de muitas vocações, em meados romodelo da Uninove que participou da da década de 1940. Não havia televisão, a telefo- edição 2005 do projeto SAE-Aerodesign, nia era precária e nem se sonhava com internet, competição anual que envolve estudan- computador – eu e um amigo, com quem discu- tes dos cursos de engenharia e afins para tia muito sobre isso, percebemos que tudo que se a construção e a realização de vôos de usava nos aeromodelos vinha dos Estados Unidos: aeromodelos. Projetos educacionais des- a cola, a madeira, a tela e os dispositivos de con- se gênero incentivam a pesquisa nacio- trole. Absolutamente tudo. E, então, eu cheguei nal? Existe um elo entre esse projeto de a perguntar ao meu professor: “O que aconteceu pesquisa na universidade e o mercado conosco, esse tal de Estados Unidos não foi des- profissional para os recém-formados? No coberto junto com o Brasil? Colombo chegou lá mundo “globalizado”, que lugar ocupa em 1492 e Cabral chegou aqui em 1500. O que a pesquisa nacional, sabendo-se que as aconteceu nesses 500 anos, que eles fabricam tudo empresas tendem a “deslocalizar” os pro- e nós não fabricamos nada?”. Evidentemente, a fissionais que contratam? Como precisar o resposta do professor foi insatisfatória, mas aquilo papel das instituições de ensino nesse ce- incutiu algo na minha cabeça – não que eu imagi- nário complexo? nasse que, anos mais tarde, seria protagonista da fabricação de aviões no Brasil, de maneira alguma O.S.: Tudo que puder ser feito nesse campo –, mas, sem dúvida, aquilo marcou, definiu a vo- tem um retorno espetacular, porque, basicamen- cação tanto minha quanto do meu amigo. Infeliz- te, as pessoas têm um espírito investigativo que mente, ele sofreu um acidente e morreu cedo, e tive

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de tocar o barco sozinho, apesar da enorme falta um requisito. O pior é que a população brasileira que ele nos fez, a todos. Essa disposição adquirida aceita isso muito bem; no resto do mundo, nada é na infância foi decisiva. E digo mais, quanto mais aceito sem que seja discutido pela sociedade. Os informações pudermos oferecer às crianças nessa requisitos e necessidades de profissionais devem fase em que elas são como esponjas, absorvendo ser conseqüência mais de uma demanda do setor tudo, certamente estaremos despertando voca- privado do que, efetivamente, dos governos e das ções. É aquela história, esta- autoridades. Nos Estados mos atirando no que vemos “[...] está emergindo Unidos, as regulamenta- e tentando obter resultados ções nesse campo são mui- daquilo que ainda não vi- no mundo o conceito to amplas, e não é comum mos. Atualmente, São José de parque tecnológico, o governo interferir tanto. dos Campos (SP) dispõe Quanto aos cursos cita- de museus, um memorial, não com o simples dos na pergunta, chamam- enfim, de instituições que, propósito de atender se ciências aeronáuticas, além de preservar a memó- mas não são bem ciências; ria, ajudam a trabalhar essa à indústria – ele destinam-se mais ao pessoal disposição infantil, mas que pode e deve atender de operação e manutenção, é muito importante para o e não à ciência ou ao proje- futuro. às empresas –, mas to de aeronaves. No entan- também de olho na to, no âmbito relacionado E.: E quanto às institui- às engenharias acredito ções superiores de competitividade e na que o horizonte das neces- ensino que preparam qualidade do ensino.” sidades já esteja indicando profissionais do ramo mudanças. Parece que os aeronáutico? São poucas as de engenha- requisitos do futuro vão requerer profissionais fle- ria – o ITA, a Universidade Federal de Minas xíveis com bons conhecimentos fundamentais e Gerais (UFMG) etc. –, mas vem crescendo menos especializados. Recentemente, num debate a oferta de cursos das chamadas ciências com professores e alunos da Universidade de São aeronáuticas, técnicos de nível superior. Paulo (USP), afirmei – sem pretender tomar isto Qual a sua opinião sobre esses cursos? como regra – que, para o futuro, eles deveriam É possível que aumente a demanda por concentrar-se nas matérias que os alunos menos formação superior na área, a exemplo do gostam, porque elas serão, um dia, as mais impor- que está ocorrendo nos Estados Unidos, tantes. Conta-se que, há pouco tempo, Bill Gates com exigência de curso superior para tri- foi paraninfo de uma universidade dos Estados pulações? Unidos e esperava-se dele um enorme discurso, de uma hora ou mais; ele fez um discurso de cinco O.S.: Eu não sei para onde a burocracia minutos e foi aplaudido de pé, por dez minutos, brasileira vai apontar suas baterias desta vez. Sei porque citou 11 regras a que as escolas não dão que nós, como cidadãos, temos pouca importân- a devida importância e terminou dizendo: “Pres- cia para a autoridade pública. No Brasil de hoje, tem atenção naquele pessoal que mais estuda, tudo é decidido nos gabinetes e acaba tornando-se que está ligado nas matérias fundamentais, por-

Exacta, São Paulo, v. 4, n. 1, p. 15-32, jan./jun. 2006 19 que, um dia, eles serão seus chefes”. Acho que é ano passado, 97% da sua produção para fora do exatamente isso que vai acontecer: o engenheiro país. Evidentemente a escala de produção mínima extremamente especializado não será um profis- necessária para a recuperação dos investimentos sional adequado ao futuro. Para qualquer desafio na indústria aeronáutica excede, de longe, o que o será necessário que haja alguém flexível, que tenha mercado brasileiro pode consumir. Na dimensão conhecimentos fundamentais muito sólidos e que macroeconômica, a Embraer encontrou seu nicho possa compreender e trabalhar nas especialidades de mercado e nele começou a se impor. Note-se, requisitadas com desenvoltura. Atualmente, o co- no entanto, que ela se concentrou no avião como nhecimento é essencial e, em qualquer que seja o um todo e foi aí que teve sucesso. No entanto, o curso, a qualidade é primordial. mercado supridor de matérias-primas, de compo- nentes, de peças e de equipamentos não se desen- E.: Pensando sobre oportunidades profissio- volveu no Brasil. Deve-se lembrar que as indús- nais, se a Embraer representa pratica- trias produtoras de aviões são, essencialmente, mente toda a indústria aeronáutica no montadoras. Assim, há um mercado enorme a ser Brasil, então, quem se formar engenheiro explorado: o de empresas supridoras da Embraer, aeronáutico só tem essa perspectiva res- a grande montadora nacional. Neste segmento, trita de mercado dentro do país. Outras tanto os investidores quanto os empreendedores engenharias, porém, teriam ainda menos encontram grandes possibilidades de ganho, uma chances de trabalhar no setor aeronáu- vez que a cadência de produção de aeronaves que tico por aqui. No exterior, provavelmente a Embraer atingiu justifica tais investimentos. É haveria muito mais oportunidades para se bem verdade que há um mercado ocupado pelas trabalhar no setor do que no Brasil. Qual marcas de prestígio internacional, que são os atu- é sua opinião sobre as perspectivas para ais fornecedores da Embraer, mas nada indica que esses profissionais? isso não se possa modificar no futuro. Para esses empreendimentos potenciais, serão necessários O.S.: Do ponto de vista macroeconômico, eu engenheiros aeronáuticos. O futuro engenheiro diria que o Brasil tem falhado na sua política eco- aeronáutico brasileiro pode não conseguir traba- nômica global, sobretudo no sentido de aproveitar lhar na Embraer, mas a economia se globalizou, oportunidades; isso é absolutamente claro em to- gostemos ou não, e ele pode arranjar um emprego dos os setores. Hoje, o mundo está ao alcance do nesse novo segmento com grande potencial dentro consumidor por meio das comunicações instantâ- ou fora do país. Por outro lado, é útil observar o neas e globais; o consumidor se internacionalizou, que ocorre nos Estados Unidos hoje: fora a Boeing quer dizer, ele atravessa a rua e pode comprar e a Lockheed, que se concentram em aviões gran- qualquer tipo de produto fabricado em qualquer des, existem muitas pequenas produtoras de avi- parte do mundo. Creio que nós, brasileiros, pre- ões leves; no Brasil, está havendo um fenômeno se- tendíamos que o inverso também fosse verdadeiro, melhante com os ultraleves. No ano passado, por isto é, que um russo atravessasse a rua e encon- exemplo, o país fabricou cerca de mil ultraleves em trasse um produto brasileiro. A Embraer excedeu 20 companhias, todas pequenas. Quem sabe, uma a tudo o que se poderia sonhar. A empresa, hoje, delas desabroche, descubra um nicho de mercado é claramente muito maior que o Brasil, em termos e possa partir para o processo de obter volumes de horizontes para seus produtos. Ela vendeu, no de produção mais expressivos. Independentemen-

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te disso, haverá oportunidades de emprego, tanto tico, vejo um grande futuro para a aviação geral e aqui quanto no exterior. para o desenvolvimento da empresa. Quem sabe, a Embraer ainda dê origem a um grupo multiem- E.: As grandes empresas aeronáuticas do presarial, entrando em áreas não exatamente li- mundo participam de conglomerados gadas a sua vocação original. Um exemplo seria ainda maiores – The Boeing Company é o da área de armamentos – um ramo da indústria um colosso do qual relativamente rejeitado pela a Boeing Airplane “Para qualquer cultura do povo brasileiro Co., que se dedica – que, mesmo bem menos à fabricação de avi- desafio será necessário importante hoje do que na ões, é uma parte; a que haja alguém época da Guerra Fria, mo- European Aeronautic flexível, que tenha vimenta 1 trilhão de dóla- Defence and Space res por ano. É uma cifra Company (EADS) tem conhecimentos que não se pode ignorar. relação semelhan- fundamentais Em termos do interesse da te com a Airbus In- sociedade e da própria saú- dustrie. Já a Embraer muito sólidos e que de da empresa, a Embraer – embora tenha acio- possa compreender pode, efetivamente, dar nistas externos como início à formação de um a francesa Dassault e trabalhar nas conglomerado financeiro- – não pertence a ne- especialidades industrial ou tornar-se par- nhum grupo empre- te de um já existente, por sarial maior. Isso é um requisitadas com meio do processo associati- fator de fragilidade desenvoltura.” vo; o grande problema desse da empresa ou uma tipo de operação é o merca- forma de ingressar no “campo minado” do de capitais absolutamente fraco no Brasil, além dos poderosos conglomerados com mais da interferência governamental que pode limitar agilidade e competitividade? tanto o crescimento quanto o tipo de associações. E não estou me referindo, neste caso, apenas à O.S.: A Embraer se desenvolveu apoiada no Embraer, mas a um comportamento que já vem de nicho de mercado da aviação regional, que se tem longa data, provocando, de fato, uma redução no mostrado razoavelmente estável. Se perguntarmos número de empreendimentos. A propósito desse a qualquer passageiro de avião o que ele quer, a tema, lancei, recentemente, um livro voltado para resposta é voar com segurança até o destino, no o jovem empreendedor, no qual insisto na questão horário desejado, e isso um grande avião não pode de que o empreendimento é elemento fundamental realizar a preços competitivos. O futuro está indi- para o almejado desenvolvimento econômico. cando que as soluções individuais estão se sobre- pondo às coletivas. Há vários exemplos desse tipo E.: Mudando um pouco o foco, após cem de mudança no comportamento humano, ou seja, anos do primeiro vôo do mais-pesado- da busca por soluções individualizadas. Portanto, que-o-ar, qual o valor de termos tido um se essa for a tendência também no setor aeronáu- brasileiro à frente dessa empreitada? Nos-

Exacta, São Paulo, v. 4, n. 1, p. 15-32, jan./jun. 2006 21 so povo consegue compreender a impor- importante para o país, para a família e para eles tância do feito de Santos-Dumont? próprios, criando uma emulação que, efetivamen- te, estabelecia o desejado diferencial de um em- O.S.: Qualquer brasileiro sabe quem foi preendimento vencedor. Santos-Dumont, um dos pioneiros mais impor- tantes. Este ano temos de comemorar muito os E.: Na condição de uma das maiores fabri- cem anos do 14-bis, até para mostrar quem so- cantes de aviões do mundo, atualmente, mos, que podemos produzir coisas novas e entrar a Embraer recoloca o Brasil em destaque, no campo da inovação, gerando riquezas. Pelo o que condiz com a herança legada por que se sabe, do ponto de vista histórico, e depois Santos-Dumont e sua primazia. O que fez a de conversar por décadas com os mais diferentes empresa ter sucesso ao passo que a maio- especialistas, de muitos países e do Brasil, estou ria esmagadora das tentativas de instalar convencido de que Santos-Dumont foi o pioneiro uma indústria aeronáutica no Brasil no sé- no vôo do mais-pesado-que-o-ar. Isto em nada di- culo passado malogrou? minui a importância de outros inventores, como os franceses, contemporâneos do inventor brasi- O.S.: Se deixarmos de lado a capitalização do leiro, ou como os irmãos Wright que, por exem- Estado – importante e fundamental num país em plo, deram expressivas contribuições pesquisando que não há formação de capitais privados e inves- a aerodinâmica, a estabilidade e os sistemas de timento –, diria que a proposta mercadológica foi controle em vôo; eles foram os primeiros a fabri- decisiva para o sucesso. As demais empresas que car aviões em série e a vendê-los; perceberam que tentaram fabricar aviões no Brasil dedicaram-se só poderia pilotar quem passasse por um curso a modelos equivalentes aos que já eram produzi- de formação; por isso, criaram a primeira esco- dos no mundo, o que, em comparação com países la de pilotagem do mundo. Em suma, cada um que têm formação de capitais mais baratos e mais desses pioneiros deu sua contribuição, mas, se- abundantes, era, de saída – sem querer ofender guindo a lógica do “primeiro lugar”, de afirmar nenhum dos meus predecessores –, uma proposta uma primazia, nós, brasileiros, temos todas as ra- perdedora. Desde que me formei em engenharia zões do mundo para colocar Santos-Dumont “no aeronáutica, comecei a propugnar a idéia de fabri- mapa”, com toda a força que pudermos, isto é, car aviões no Brasil, e de que era preciso encon- “não deixar barato”; temos de demonstrar nos- trar um nicho próprio, para conquistar vantagens so orgulho de brasileiros, de incutir, sobretudo comparativas e competitivas em relação ao que nos mais jovens, esse sentimento de brasilidade, estava acontecendo no planeta, e não meramente de esforço para o desenvolvimento do país, que é reproduzir o que havia lá fora. Existiam no país, absolutamente essencial e se expressa também na até o fim da década de 1950, por exemplo, aviões comemoração dessa data tão importante. Aliás, de dois e de quatro lugares, fabricados em grande não acredito que seja possível conseguir qualquer escala, pelas estadunidenses Cessna, Beechcraft coisa sem entusiasmo, sem fé, sem determinação. ou Piper, a preços bastante competitivos. Naque- Traçando um paralelo com minha experiência, na le tempo, eram pequenas as facilidades oferecidas Embraer sempre se trabalhou para que os funcio- pelo governo brasileiro para os empreendimentos nários da empresa tivessem entusiasmo e se sen- nacionais. Era impossível concorrer com os pro- tissem estimulados à realização de algo que fosse dutores estrangeiros, em face de a tributação local

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ser muito mais expressiva. A Embraer buscou seu das em cada escala. Essas características é que nos diferencial entrando num campo totalmente novo. permitiram entrar no maior mercado do mundo, Nos Estados Unidos, havia algumas empresas de o estadunidense. Daí para a frente, a história é ligação entre pequenos e grandes aeroportos que conhecida. se chamavam commutter airlines, um nicho de mer- “[...] comecei a E.: Os aviões da Embraer cado pouco explorado, mas lograram sucesso muito que tinha potencial. Sobre propugnar a idéia grande mundo afora. Por esse conceito, desenvolve- de fabricar aviões que seus novos jatos não mos a idéia da aviação regio- voam no Brasil? Não há nal, focando sempre o que o no Brasil, e de que era demanda para os regio- consumidor de linha aérea preciso encontrar um nal jets em nosso país? desejava: voar para qualquer lugar e a qualquer hora. E os nicho próprio, para O.S.: A resposta é sim- grandes aviões não tinham conquistar vantagens ples: o Brasil não consegue como atender a essa necessi- comparativas e praticar as maiores taxas dade dos passageiros. Além de juros do mundo impu- disso, todos os fabricantes competitivas em nemente. A disponibilida- mundiais da época estavam relação ao que de de créditos é pequena, projetando aviões cada vez sobretudo para as deman- maiores e mais velozes, bus- estava acontecendo das de longo prazo. Hoje, cando custos operacionais no planeta, e não é razoavelmente conhecido menores por assento. Surgiu o fato de que não se vende então a idéia de projetar, meramente reproduzir avião à vista e que, princi- desenvolver e construir um o que havia lá fora.” palmente no transporte aé- modelo menor, competitivo, reo, os sistemas de leasing com grande capacidade de repetitividade – trechos se transformaram em fórmulas consagradas para de vôo curtos, várias escalas – que respondesse a compra de aviões a prazo em todo o planeta. Na aos requisitos desse nicho do transporte aéreo. O taxa de leasing, no entanto, está embutida a taxa curioso foi que os grandes fabricantes mundiais de juros do país, quer dizer, numa nação com a desprezaram a idéia de que um dia as pequenas maior taxa de juros praticada, as conseqüências cidades teriam de dispor de serviço de transporte negativas se refletirão na atividade econômica. aéreo, deixando livre para a Embraer ocupar esse É uma situação que pode mudar no futuro, não mercado, digamos, marginal. Nosso primeiro mo- sei exatamente em que proporção. Recentemen- delo, o Bandeirante era capaz de operar de forma te, a Embraer criou, na Irlanda, uma companhia totalmente independente: a escada era embutida de leasing aproveitando os incentivos fiscais do na porta, o bagageiro ficava na altura do carre- governo local; depois de quase 30 anos de luta, gador, que podia pegar as malas, dispensando a conseguimos uma razoável isonomia de tributa- empilhadeira e não exigia fonte externa para dar ção entre o avião brasileiro e o importado, tendo a partida – não tinha APU1, mas uma bateria de o governo aprovado uma legislação que permitirá alta capacidade que agüentava bem todas as parti- que, a partir de agora, o nosso avião, fabricado no

Exacta, São Paulo, v. 4, n. 1, p. 15-32, jan./jun. 2006 23 Brasil, possa competir, em termos de preço, com o do barril de petróleo, dos custos de produção de estrangeiro no país. Quem sabe, já a partir deste aeronaves, o que, aliado às nossas taxas de juros ano seja possível ver aviões brasileiros voando por sobre os financiamentos e aos custos aeroportuá- aqui. Existem linhas aéreas nacionais negociando rios cada vez mais “salgados”, acaba por tornar aeronaves da Embraer, como o novo EMB-195, as passagens aéreas crescentemente distantes do para 110 passageiros. Embora a capacidade desse cidadão médio nacional. Nos Estados Unidos, o modelo esteja além do que a maioria das empresas transporte aéreo é responsável pelo deslocamento regionais possa desejar no momento, vale notar o de 800 milhões de passageiros/ano, quase três ve- espírito empreendedor da fabricante de São José zes a população do país; comparativamente, como dos Campos, que se está antecipando ao merca- explicar que apenas 50% da população brasileira do, correndo um risco semelhante ao da Boeing seja transportada pelo ar, anualmente? Pode pare- anos atrás, quando lançou o agora bem-sucedido cer cruel, mas não é a passagem que é muito cara, modelo 737 – que demorou quase sete anos para e sim o poder aquisitivo do brasileiro que é baixo. “decolar” em termos mercadológicos e, apesar O que se faz no Brasil em termos de produtividade disso, atualmente, ainda é o avião mais fabricado no transporte aéreo é algo fantástico, mas não o do mundo. Então, há boas possibilidades para o suficiente para compensar o empobrecimento re- 195, ainda mais que operadores mundiais já co- lativo da população. Em geral, o passageiro faz meçaram a se interessar por ele, como a JetBlue, uma comparação direta do preço da viagem aérea que encomendou mais de uma centena de unida- com o da viagem de ônibus, não levando em con- des do modelo. Mas, do ponto de vista da aviação ta o que recebe em troca, em termos de confor- regional propriamente dita, a demanda mundial to, rapidez etc. Para citar apenas o consumo de ainda está na faixa dos 50 lugares, e muitas com- combustível, a física nos ensina que ele varia com panhias regionais estão querendo aviões eficientes o quadrado da velocidade; quando se voa num e modernos de 30 lugares. avião a uma velocidade dez vezes maior que a de um ônibus, a gente deveria supor que o consumo E.: O número de locais atendidos pelo trans- é muito maior..., mas essa conta não é óbvia para porte aéreo no Brasil vem diminuindo, o passageiro comum. quando, num país do tamanho do nosso, deveria haver expansão. Como se explica E.: O senhor acha correto a Embraer dirigir esse fenômeno contrário/negativo? seus esforços para os very light jets (VLJ), minijatos que transportam poucos passa- O.S.: Isso se deve a condições macroeconômi- geiros com alta eficiência, e estabelecer cas, como a renda per capita do brasileiro, que é o ERJ-195 (110 lugares) como seu “limi- muito baixa. Trocando em miúdos, toda operação te superior”. É certo partir para o ataque tem um custo que deve ser coberto e, ao final, os num nicho de mercado ultracompetitivo preços das passagens aéreas precisam apresentar e completamente diferente do que a em- lucratividade. O custo operacional dos aviões é, presa conhece? por razões intrínsecas de mercado internacional, muito elevado e tem crescido a taxas superiores O.S.: É uma aposta da empresa em direção a à do rendimento típico dos brasileiros. Nos últi- um cenário futuro bastante provável, de tendên- mos anos, temos assistido à escalada dos preços cia maior para a individualização do que para o

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coletivismo no transporte aéreo, como já ocorreu compromisso com toda a comodidade. As corpo- em outras áreas. Esse processo salta aos olhos em rações estão bem conscientes disso. Eu só gosta- todos os segmentos da atividade humana e, se a ria, pura e simplesmente, de que em nosso país a Embraer tiver sucesso em produzir um avião de dificuldade para empreender não fosse tão grande, seis a nove assentos, com preço de aquisição e cus- que a sociedade estivesse organizada de tal forma to operacional relativamente baixos, mas de per- que isso fosse minimizado. Embora risco seja algo formance alta e que apresente grande confiabilida- sempre presente no momento de criar algo novo, de, haverá potencialmente, um mercado mundial os analistas são unânimes em assegurar que no estimado em 120 milhões Brasil ele atinge níveis bem de dólares nos próximos dez “O que se faz no acima dos encontrados nas anos. Qualquer pessoa que Brasil em termos nações de sucesso. visite a Embraer vê uma em- presa com plena capacidade de produtividade E.: Em relação a uma par- de fazer projetos sofisticados no transporte aéreo cela da aviação civil, a e com rapidez, tanto que ela comercial, há um bom já está programando o pri- é algo fantástico, tempo, quando o Bandei- meiro vôo do Phenom2, que mas não o suficiente rante estreou nas linhas foi lançado há seis meses. regionais, houve expan- No passado, quando se pen- para compensar o são das rotas e parecia sava em projetar aeronaves, empobrecimento ser possível a integração era um negócio que demora- do país por avião. Hoje, a va até dez anos para chegar relativo da população.” realidade das “regionais” à linha de produção, a maior é que houve concentra- parte do tempo consumida na fase de projetos. ção de rotas e vôos, elas se tornaram fe- Hoje em dia, em três ou quatro anos o avião está eder liners, alimentadoras das grandes voando. Na fabricação do Airbus A-380, o maior empresas, que, por sua vez, em maior ou avião comercial do mundo, novas marcas de tem- menor grau, estão passando por dificulda- po foram obtidas até o primeiro vôo do gigantesco des financeiras. É apenas um problema de aparelho. O mundo mudou, e a Embraer está in- má gestão do negócio ou, mais grave, de vestindo nisso. Sem dúvida, o mercado dos VLJ é estruturação e regulamentação do setor? difícil e competitivo, com concorrentes fortes, mas A transferência do controle do Departa- a aposta feita é para ganhar tempo, que é uma mento de Aviação Civil (DAC) para uma variável importante no mundo moderno. Imagine agência civil vai trazer mais riscos ou abrir as necessidades de um executivo, um diretor ou possibilidades para que a aviação comer- presidente de uma corporação com centenas ou cial encontre um rumo? Como o senhor vê milhares de subsidiárias pelo mundo: se ele paga o futuro do setor? por uma passagem de linha aérea, mas tem de en- frentar inconvenientes de conexões de vôo, horá- O.S.: Essa pergunta daria um simpósio! rios, filas, pagaria muito mais por um avião que O Bandeirante sofreu muito no Brasil, porque a o esperasse no aeroporto, enquanto resolve seus percepção do passageiro era a de que um avião negócios, e o levasse, em seguida, para o próximo menor devia custar mais barato, o que não é ver-

Exacta, São Paulo, v. 4, n. 1, p. 15-32, jan./jun. 2006 25 dade; além disso, temos de considerar as típicas eficazes na época, essas medidas não conseguem dificuldades que um produto nacional enfrenta responder aos requisitos de 2006. É preciso rever em uma área sofisticada. Atualmente, nos Estados toda a estrutura de custos governamentais, de bu- Unidos, na Europa e na Ásia, onde o transporte rocracia e de tributação, além, é claro, da própria aéreo regional é bastante utilizado, a noção de que regulamentação global, seguramente ultrapassa- o avião menor custa mais caro devido à diluição da. A saída talvez seja o estabelecimento de um dos custos em menor número de assentos já está mecanismo de parceria entre governos e operado- razoavelmente difundida. No entanto, aquela con- res para encontrar novos modus operandi, pois se cepção equivocada prejudicou bastante a entrada trata de um serviço público essencial. Não se pode de aeronaves dessa categoria no mundo todo. Fa- prescindir do transporte aéreo atualmente; muito çamos um exercício simples para esclarecer essa distante do transporte de elite de outrora, hoje ele questão. Tomemos o preço de um avião de 130 é fundamental para o desenvolvimento econômico lugares – esse número é emblemático: o primeiro das nações. No Brasil, esse quadro é ainda mais jato comercial de sucesso, o Boeing 707, tinha 130 alarmante: cerca de 60% dos insumos do trans- lugares e era vendido por cerca de 3,5 milhões de porte aéreo brasileiro são fornecidos pelo governo, dólares; hoje, um modelo com a mesma capacidade direta ou indiretamente, com preços que não são está custando 37 ou 38 milhões de dólares. Fazen- discutidos, mas fixados por decreto. As compa- do uma conta redonda: se dividirmos essa quantia nhias aéreas, então, ficam com uma margem de pelos 130 assentos, concluiremos que cada assen- apenas 40% para economizar no que for possível to custa 320 mil dólares. Certamente, a cadeira e ainda tentar ter lucro. Complicado, não? Com mais cara do mundo! Por outro lado, o problema a criação da Agência Nacional de Aviação Civil fundamental, como já vimos, é que os custos ope- (Anac), o setor espera por mudanças e que elas racionais têm crescido mais rapidamente do que possam atender àquilo que seja necessário. Os re- o aumento do poder aquisitivo dos passageiros. quisitos dos passageiros estão absolutamente cla- E esse não é um problema apenas brasileiro. Re- ros: voar na hora que se quer, para o destino que se centemente, o diretor-geral da Associação Inter- quer, a um preço competitivo e com o máximo de nacional do Transporte Aéreo (Iata), Giovanni segurança. Como é que vamos proporcionar isso, Bisignani, um italiano brilhante e um dos bons considerando o que realmente acontece? Toda presidentes da associação, declarou, num discurso essa situação se mostra particularmente perversa em Genebra, que as 220 companhias associadas quando entram em discussão problemas como o em todo o mundo geraram um prejuízo, entre 2001 da Varig, nossa companhia mais antiga. No Bra- e 2005, de 42 bilhões de dólares; qualquer produ- sil, parece que as empresas aéreas não conseguem to ou tipo de operação que perca tal quantia em envelhecer saudavelmente: quanto mais velha a quatro anos tem um senhor problema; e mais, ele companhia, mais depressa ela vai “pro vinagre”. disse que os dados de 2006, quando forem compu- Já estiveram na linha de tiro a Vasp, a TransBrasil, tados, ainda vão acrescentar alguns bilhões àquele a Real, a Nacional, a Aerovias Brasil, a PanAir do montante, levando a questão da operação a um Brasil... Todas elas foram caindo como um castelo beco sem saída. Bisignani atribui isso, em gran- de cartas, vítimas do mesmo processo que agora de medida, aos governos nacionais que, pasmem, está atingindo a Varig. É que nossa memória é ainda seguem regulamentações estabelecidas na curta. É inegável que podem existir processos de convenção de Chicago, em 1944. Extremamente má administração; mas, com um quadro desses,

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colocar todo o problema nas operações não parece vamos sempre nos projetistas, imaginando quem ser razoável. havia “bolado” tal equipamento, como a invenção e o inventor teriam surgido etc. Na época, não ha- E.: Seu interesse por aviões, desde criança, via preocupações relativas ao mercado, como era não é um interesse qualquer, mas o de fa- próprio de uma academia militar nas décadas de bricar os próprios aviões. A carreira militar 1940-1950. No ano passado, estive na AFA, em permitiu que o senhor Pirassununga, e verifiquei se aproximasse de “Não se pode que já estão dando noções seu sonho? Quando de mercadologia para os ficou claro que ele se prescindir oficiais; em nossa época, realizaria? do transporte não tínhamos nada disso. Três anos depois da forma- O.S.: Eu nasci em uma aéreo atualmente; tura, Zico sofreu um aci- família relativamente hu- muito distante do dente grave e, infelizmente, milde: meu pai era instala- morreu. Confesso que uma dor eletricista. Não vou di- transporte de elite parte de mim morreu com zer que éramos exatamente de outrora, hoje ele ele. Tudo aquilo que, desde pobres, mas não tínhamos criança, nós dois pensavá- o que queríamos, vivíamos é fundamental para vamos juntos se foi com ele. uma situação “apertada”. o desenvolvimento Passei, então, uns três anos Na minha época, o Brasil completamente desligado, não tinha escola de forma- econômico das sem poder sequer pensar ção de engenheiro aeronáu- nações.” no assunto. Mas, um dia tico. Na minha terra natal, – como instrutor do Correio Bauru, não havia sequer universidade, logo, não Aéreo Nacional (CAN) – fui acordado às 3 horas existia a possibilidade de completar cursos de da manhã por um colega, o major Coelho de Sou- nível superior. Mesmo não sabendo exatamente za, e ele me perguntou se eu poderia fazer o vôo o que era ser militar, resolvi, com meu amigo, o de cheque dele, pois tinha de renovar a licença de Zico – o nome dele era Benedito César –, fazer o vôo por instrumentos. Como ele era aluno do ITA concurso para a Academia da Força Aérea (AFA), e não podia perder aulas, concordei. Decolamos e, no Rio de Janeiro (hoje, em Pirassununga [SP]). Fi- durante aquele vôo, tudo voltou à minha cabeça, zemos a prova e fomos mal no primeiro concurso o sonho adormecido acordou de pronto. O colega de admissão, mas fomos aprovados no segundo. começou a falar do ITA – a escola gratuita, que Ingressamos em 1948 e, em 1951, formamo-nos eu mencionei na epígrafe de meu livro3 –, que per- como pilotos militares e como oficiais da FAB. Foi tencia à Aeronáutica. Ele me disse que, se fosse exatamente na Academia, recordando a experi- aprovado no concurso do ITA, eu poderia reque- ência do aeromodelismo, com aquele sentimento rer uma bolsa ao Ministério para cursar enge- estranho de não ver produtos brasileiros nos aero- nharia aeronáutica etc. Olhando para o passado, modelos, que começamos a estudar os aviões. Pelo compreendo hoje que, ao descer daquele avião, eu processo de aprendizagem íamos ficando cada vez estava diferente. Embarquei como aviador e desci mais fascinados com a idéia da fabricação, pensá- como engenheiro. Nesse momento, a vida come-

Exacta, São Paulo, v. 4, n. 1, p. 15-32, jan./jun. 2006 27 çou a mudar e o sonho antigo renasceu. Daí para ao desconhecido; de qualquer maneira, eu estava a frente, tenho a impressão de que o Zico, de algu- na chuva para me molhar, mas para eles foi ainda ma maneira, voltou e se incorporou em mim e foi mais duro. Quando chegou o fim do mês, no dia como se trabalhássemos juntos, somando forças, 29, o diretor financeiro que selecionei e a quem como uma única pessoa. E, assim, se méritos exis- pedi que nos ajudasse naquele início – um velho tem, de bom grado divido com ele. Formado como amigo de Bauru, que trabalhava no Banco do Bra- engenheiro aeronáutico lutei muito, contando sil – entrou na minha sala e disse: “Amanhã va- com uma extraordinária equipe do então Centro mos pagar o salário de todo o pessoal”. Aquilo foi Técnológico da Aeronáutica (hoje Centro Técnico uma enorme festa! Tínhamos conseguido pagar o Aeroespacial [CTA]), para a criação da Embraer. primeiro salário em dia para todos! E houve gente que não entendeu o motivo dessa comemoração... E.: Seu “desembarque” na função de empre- sário, presidente de indústria, foi um tanto E.: Saltando 20 anos no tempo, o senhor tam- inesperado. Foi uma experiência tranqüi- bém esteve presente no momento em que la, para a qual o seu lado empreendedor a Embraer passou por sua maior crise, nos já estava se preparando há algum tempo, anos 1990. Aí, igualmente, deve ter havido ou uma completa novidade formar e pre- um aprendizado sobre como promover a sidir a Embraer? reestruturação de uma companhia, priva- tização etc. Como foi passar por esse perí- O.S.: Não foi nada fácil. Eu não esperava por odo grave tendo o seu sonho já decolado? isso e tive de aprender tudo muito rapidamente. Que lições o senhor tirou desse processo O Ministro da Aeronáutica, brigadeiro Márcio de que pôde utilizar em suas experiências fu- Souza e Mello, me deu a notícia em 22 de dezem- turas na Petrobras, na Varig e na gestão de bro de 1969 e mandou-me constituir a empresa no empresas em geral? dia 27 de dezembro; eu simplesmente não sabia o que era constituir empresa, então, procurei advo- O.S.: De fato, a Embraer entrou numa crise gados para entender do que se tratava, que bicho muito forte, em conseqüência do mercado inter- era aquele, e ver o que eu precisava fazer; afinal, nacional, como resultado da invasão do Iraque eu tinha que definir tudo em cinco dias, com o sobre o Kuwait, no início da década de 1990. Foi Natal no meio. Foi realmente uma corrida contra a primeira vez, desde a Segunda Guerra Mundial, o tempo. Tudo deu certo e a empresa entrou em que o transporte aéreo sofreu decréscimo no vo- operação no dia 2 de janeiro de 1970. Eu sentei na lume de tráfego. Quando os iraquianos fizeram mesma cadeira em que trabalhava, a escrivaninha a invasão, o medo do terrorismo internacional estava no mesmo local, no pequeno prédio que reduziu a demanda e, conseqüentemente, houve tínhamos erguido ao lado do CTA. Comecei do uma severa retração nas companhias aéreas. No zero, mas aprendi depressa. Desde o começo, pro- Brasil, o governo Collor desmontou o sistema de curamos dar à empresa um formato de companhia vendas financiadas de avião. Um dia, em junho de privada. Conseguimos transferir para a Embraer 1991, estava trabalhando no meu escritório em 65 funcionários públicos do CTA que sabiam pro- São Paulo, quando recebi um telefonema do meu jetar e produzir avião, num processo muito difícil, colega de turma e amigo, brigadeiro Sócrates da pois era como se pedíssemos para que se atirassem Costa Monteiro – então ministro da Aeronáutica

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–, dizendo que eu precisava voltar para a empresa ordinário no mercado mundial. Felizmente acer- como presidente com a missão de encontrar cami- tamos a tacada, e essa é uma característica da in- nhos para a recuperação financeira e operacional dústria aeronáutica: é preciso pensar, no mínimo, do empreendimento. Eu não tinha razão nenhuma dez anos à frente quando se lança determinado para voltar à Embraer, mas a situação da empresa produto, pois, se errarmos, a companhia quebra. era demasiadamente difícil e a emoção falou mais O processo de privatização foi muito difícil; entre- alto. Resultado: voltei a me sentar na mesma ca- tanto, valeram os 17 anos que eu havia passado deira em que havia sentado no comando da Embraer. muitos anos antes. Apresen- “[...] é uma Conhecia praticamente to- tei ao governo um planeja- dos os empregados e eles mento estratégico: privatizar característica da tinham confiança na nova a companhia. Tinha ficado indústria aeronáutica: direção da empresa. Não claro que não seria possível nos furtamos a nos reunir ir para o mercado externo, é preciso pensar, com eles, no próprio local com as restrições legais im- no mínimo, de trabalho. Os líderes sin- postas sobre uma empresa dez anos à frente dicais que trabalhavam na estatal. E, pensando à fren- Embraer protestaram, mas te, todos sabíamos quanto a quando se lança a opinião da força de traba- demanda mundial era essen- determinado produto, lho foi o grande sustentácu- cial para garantir as escalas lo que garantiu a sua priva- mínimas de produção. Sem pois, se errarmos, tização. Para convencer as um acesso rápido e práti- a companhia quebra.” autoridades, lançamos a se- co às empresas operadoras guinte proposta aos funcio- estrangeiras, sobretudo às nários: “Sairemos às ruas, dos países desenvolvidos, a Embraer não sairia da para obter 1 milhão de assinaturas e colocar no crise. Portanto, por mais difícil que fosse conven- Congresso Nacional um projeto popular determi- cer o governo, a própria FAB e a comunidade de nando a privatização da Embraer, e temos de fazer São José dos Campos (inclusive os empregados), isso rápido”. Fornecemos papel com espaço para a privatização era necessária. Simultaneamente, o nome do signatário, o RG e o número do título tínhamos de desenvolver um novo produto, um de eleitor, e todos saíram recolhendo assinaturas avião vencedor, que pegasse a companhia recém- no Brasil inteiro, sem perder horas de trabalho. O privatizada e a levasse a bom êxito. No entanto, entusiasmo se multiplicou e, contra todas as di- a legislação não permitia que, durante o processo ficuldades, conseguimos as assinaturas. Um dia, de privatização, se fizessem investimentos; foi aí levei ao Congresso Nacional as 75 mil folhas, cada que concebemos a idéia de vender “pedaços” do uma com 24 assinaturas de eleitores determinan- novo avião – o ERJ-145, jato para 50 passageiros do a privatização da Embraer e, em face disso, o – no mundo inteiro, em troca da participação no presidente Itamar Franco cedeu e assinou o decre- projeto das companhias que aceitassem, para que to autorizando a privatização. Creio que as lições pudéssemos, ainda que indiretamente, capitalizar principais que podemos tirar de tudo é que sem- o desenvolvimento do novo produto sem investir. pre existem alternativas para construir algo; por A opção funcionou e resultou num sucesso extra- mais difícil que seja o cenário, com esforço, fé e

Exacta, São Paulo, v. 4, n. 1, p. 15-32, jan./jun. 2006 29 determinação é possível vencer situações adversas. no caso da Embraer, tivemos de lutar tenazmente Tivemos a felicidade de cumprir tudo o que haví- para remover uma série de dificuldades e obstácu- amos prometido, e a Embraer floresceu de novo. los. Felizmente, em que pese esse quadro hostil, Meu papel – e o da diretoria – tinha sido cumpri- conseguimos, mas é frustrante perceber que isso do novamente e, completado o processo de priva- não se generaliza num país que tem todos os meios tização, pela segunda vez deixei a Embraer. Com para ser muito melhor do que é. Já o meu maior relação a outras empresas, deixar a Petrobras, por orgulho começou a ser arquitetado em Bauru, se- exemplo – experiência anterior à privatização da guiu por uma estrada longa, tortuosa, difícil, e se Embraer – mudou-se a estratégia da companhia do manifesta quando vejo os nossos aviões voando no ponto de vista tecnológico, e deu certo também. mundo inteiro, transportando pessoas e riquezas, Hoje, resultados de prospecção como a descoberta a empresa como um player de peso no mercado in- de gás em Santos (SP) e na Amazônia, de petróleo ternacional, extremamente competitivo, derrotan- na costa de Santa Catarina e do Espírito Santo são do companhias que, no passado, nos diziam: “Será decorrentes dessa mudança estratégica na empre- que as multinacionais vão deixar vocês entrarem sa. Já na Varig, o problema foi mais complicado no mercado internacional?”, e hoje, que estamos por causa da Fundação Ruben Berta. Quando se dentro desse mercado, pode ser que alguém esteja começou a perder aquela cerimônia inicial, perce- perguntando, em sueco, alemão, inglês, francês: bi que realmente eu era o presidente das responsa- “Será que a Embraer vai deixar a gente entrar nes- bilidades, enquanto eles decidiam todo o restante; se mercado?”. Bem, isso é realmente muito, muito tratava-se de um desbalanceamento arriscado e bom de ouvir. impossível de aceitar; num certo momento disse que essa equação não funcionaria – independen- E.: Engenheiro Ozires, professor, ministro, pre- temente da qualidade das decisões deles –, porque sidente, amigo do Zico, o senhor ouviu, não havia sentido em eu ter de responder juridica- com certeza, diversos nãos e alguns sins. mente pela companhia e eles decidirem questões O que o fez continuar na estrada para das quais, muitas vezes, eu tinha notícia pelos jor- conquistar tudo isso? nais. Lamentei, peguei meu boné e fui embora. O.S.: Excelente pergunta. Acho que foi a E.: Qual a grande frustração dessa sua car- vontade; o empreendedor que tem fé e acredita reira cheia de êxitos, e qual o seu maior em algo sempre encontra mecanismos para ir em orgulho? frente. Eu confesso que, algumas vezes, quis de- sistir, mas não o fiz por causa dos outros. Minha O.S.: A maior frustração, sem dúvida nenhu- mãe condenava muito em meu pai o fato de ele ma, é ver no exemplo da Embraer como é possível ajudar mais as pessoas do que era ajudado. Havia o Brasil fabricar produtos competitivos de nível essa crítica permanente em casa. Na minha casa, internacional e ter sucesso... e não ver milhares de hoje, é igual. Minha mulher me recrimina muitas empresas como essa espalhadas pelo país, trazen- vezes por isso, mas, efetivamente, sempre tive essa do riqueza para o povo brasileiro, que certamente determinação. É o que tenho falado permanente- merece. É frustrante continuar vivendo numa na- mente nas minhas palestras, nos livros, estimu- ção essencialmente pobre, apesar de ela ter todas lando as pessoas a sonhar e, mais do que isso, a as condições para ser efetivamente rica. Mesmo acreditar e tentar materializar seu sonho. Se nós

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compararmos dois países que foram descobertos vidade humana que permite fazer as coisas se tor- quase ao mesmo tempo, como Estados Unidos e narem realidade. Isso dá uma motivação extraor- Brasil, há 500 anos, constataremos que esse espí- dinária àquelas pessoas que tenham vocação para rito de lutar e vencer é muito mais acentuado lá enveredar pelos caminhos da descoberta dos itens do que aqui; tenho a impressão de que esse é um intrincados que compõem os produtos fabricados diferencial importante que levou aquele país ao hoje e, extrapolando para o futuro, os projetos dos desenvolvimento e nos deixa para trás. Uma vez, produtos que estarão em contato conosco e serão um colega, fazendo uma observação particular so- cada vez mais valiosos amanhã. Tudo isso preci- bre meu comportamento, dizia: “Você é um sujei- sa e vai ser fabricado, do artigo mais simples ao to que se comporta como se mais complexo, mas, se não só o sim fosse definitivo e o “É frustrante for pela mão do engenheiro, não, transitório”. não vai existir. Finalizando, continuar vivendo gostaria de acentuar que E.: Os alunos de enge- numa nação muitos dos analistas mais nharia, calouros da importantes do mundo mo- Uninove, com certeza essencialmente pobre, derno asseguram que mais lerão esta entrevis- apesar de ela ter todas de 90% do que é fabricado ta, em destaque na atualmente não será mais revista de sua área. as condições para ser produzido dentro de dez Pensando nesses lei- efetivamente rica.” anos. Essa afirmação acena tores, gostaríamos de com enormes oportunidades saber por que decidiu ser engenheiro e o que nós, brasileiros, deveríamos aproveitar. que os estudantes devem esperar dessa opção. E.: Para encerrar nossa entrevista, o que o se- nhor diria aos amantes da aviação, aos fu- O.S.: A engenharia é a atividade do fazer, e turos engenheiros, aos estudantes da Uni- tudo que tem de ser fabricado passa pela mão do nove, como uma palavra final com o mote engenheiro, em qualquer segmento da atividade dos cem anos da aviação e quais são as humana. Li numa entrevista recente de alguma perspectivas para nós, brasileiros? autoridade do MEC que 70 ou 80% dos candi- datos nos últimos vestibulares buscavam cursos O.S.: Gostaria de dizer às pessoas que terão superiores nas áreas sociais, preterindo as ciên- acesso a essa entrevista que nós vivemos num grande cias exatas. Se esse dado estiver correto, será que país, do ponto de vista físico – um país-continente isso corresponde às necessidades do mercado ou –, e que possui um povo realmente extraordinário. mesmo às futuras necessidades do país? A tecno- E podemos fazer o Brasil crescer, desenvolver-se logia de informação, por exemplo, emprega prati- e ser muito melhor do que é agora. Queria pedir camente toda a mocidade atualmente. Contudo, aos nossos leitores que não fiquem contabilizan- os instrumentos da tecnologia de informação e o do as dificuldades, os fracassos, as frustrações da próprio computador somente podem ser constru- realidade, mas que busquem, permanentemente, ídos pelos engenheiros e por outros “fazedores de soluções, ou seja, como fazer melhor; acredito que equipamentos”. A engenharia é, claramente, a ati- isso possa ser feito, e temos vários exemplos, aqui

Exacta, São Paulo, v. 4, n. 1, p. 15-32, jan./jun. 2006 31 mesmo no Brasil, de empreendedores importantes, seus professores, que continuarão a formar outras como Santos-Dumont, no passado, e, hoje, alguns gerações – estaremos juntos para aplaudir o suces- do quilate de um Gerdau ou de um Antonio Ermí- so que terão no futuro. Sem dúvida nenhuma, por rio de Moraes, entre tantos outros que, infelizmen- esse caminho, poderemos construir um país me- te, são poucos diante da grandeza do Brasil e do lhor. Eu escrevi recentemente um livro (Cartas ao que poderíamos ter. É possível fazermos as coisas jovem empreendedor, Alegro, 2005) que termina de modo inovador e sermos melhores, conseguin- com uma pequena história: há muito tempo, um do resultados superiores. Precisamos pôr na ca- rei se teria dirigido aos seus súditos perguntando beça essa pequena expressão: “é possível”. Desde quais as três coisas mais importantes; um deles, que se tenha persistência, perseverança, é possível depois de algum tempo, respondeu que a primeira ir longe, e estamos justamente numa universidade, coisa importante é o momento atual, o agora, nem a instituição cuja especialidade é fabricar o cida- antes, nem depois; a segunda é a pessoa com quem dão para o futuro. Um velho amigo meu, já fale- estamos falando, e a terceira é fazer essa pessoa fe- cido, o brigadeiro Montenegro4, criador do ITA, liz; assim terminei o meu livro e, agora, encerran- e que era um visionário, uma pessoa extraordiná- do a nossa conversa, devemos nos incentivar uns ria, dizia que a universidade tem de informar, mas aos outros para que, unidos com amor no coração também formar. Assim, dentro do espírito dessas e um sorriso nos lábios, busquemos o sucesso. duas missões, que se combinam, é preciso aprovei- tar cada minuto do contato com seus mestres, com (Participaram da entrevista: André Felipe Henriques Librantz, Darius Roos, Expedito Correia e Júlio a escola, com a biblioteca, cada minuto de estudo, César Dutra). pois o resultado desse minuto pode voltar, mais tarde, muitas vezes multiplicado em resultados extraordinários na vida de cada um. Como já dis- Notas se, sonhem; sonhem com a possibilidade de trans- 1 N. Ed.: Auxiliary power unit é uma miniturbina, comum em formar muitas coisas, transformar a realidade, e aviões mais modernos, que fornece energia para a partida com força, acreditando que vocês são capazes, que dos motores da aeronave e outros sistemas. não precisam lançar mão daquele ranço cultural 2 N. Ed.: Nome dado aos VLJ da Embraer. 3 N. Ed.: Na epígrafe de A decolagem de um sonho, lê-se: pernóstico, tão característico da cultura nacional, “Ao meu país, que, por meio da educação gratuita, me fez de delegar aos outros para que o façam. Pensem crescer”. na primeira pessoa, perguntem a vocês próprios: 4 N. Ed.: Casimiro Montenegro Filho, militar de carreira, formou-se engenheiro aeronáutico em 1941, com a primeira o que eu posso fazer? O que eu posso construir? turma do curso de Engenharia de Aviação da Escola Técnica do Exército (hoje, Instituto Militar de Engenharia [IME]), Se puserem isso na cabeça, procurando esmerar- no Rio de Janeiro. Nesse mesmo ano, com a criação do Ministério da Aeronáutica, assumiu a Diretoria Técnica se em cada minuto que estiverem aqui e, saindo de Aeronáutica e se dedicou a criar um centro de ensino da universidade, levar o melhor que puderem, não aeronáutico de nível mundial. Assim surgiu o CTA, em São José dos Campos, com um instituto de pesquisa e uma escola tenham dúvida de que um mundo de vitórias vai de excelência, respectivamente, o Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento (IPD) e o ITA. É o patrono da engenharia esperá-los lá fora. E todos nós – em particular os aeronáutica brasileira.

Para referenciar este texto: SILVA, O. Engenharia, indústria aeronáutica e pioneirismo no centenário da aviação. Entrevista. Exacta, São Paulo, v. 4, n. 1, p. 15-32, jan./jun. 2006.

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