A FESTA DE SANTA CRUZ EM DIVINOLÂNDIA: TERRITORIALIDADES E CONFLITOS NA INTERPRETAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL

IV SICCAL

[ GT3 – TERRITÓRIO E CONFLITOS URBANOS ]

Marjorie P. J. de Faria Universidade Federal do ABC (UFABC) Marjorie P. J. de Faria A Festa de Santa Cruz em Divinolândia: territorialidades e conflitos na interpretação do patrimônio cultural 647  

[ RESUMO ABSTRACT RESUMEN ]

O artigo tem como objetivo compreender de que forma o patrimônio cultural, a Festa de Santa Cruz, localizada em um bairro rural da cidade de Divinolândia/SP, permite evidenciar os conflitos entre atores na ocupação das terras nos séculos XVIII e XIX no interior paulista, visto que sua origem guarda relação com a presença de quilom- bolas na região e a continuação de seu culto se dá pelos imigrantes europeus e seus descendentes até os dias de hoje. Dessa maneira, é possível entender, pela celebração mencionada, que a seleção da memória e do esquecimento, assim como a permanência ou o apagamento de marcas identitárias na dinâmica territorial local, se dá por um processo de embranquecimento iniciado no período setecentista pela empresa colo- nial, por meio da desterritorialização da população negra e indígena, perpetuado pelas elites cafeeiras paulistas no século posterior, cujos efeitos são vistos nos dias de hoje. Palavras-chave: Festa de Santa Cruz. Territorialidades. Esquecimento. Identidade Cultural. Patrimônio Cultural.

The article aims to understand how the cultural heritage, the Festa de Santa Cruz, located in a rural area in the city of Divinolândia / SP, shows the conflicts between the players in the occupation of lands in the 18th and 19th centuries in the interior of . Since their origin is related to the presence of quilombolas in the region and the permanence of its cult is given by the European immigrants and their descendants until the present day. In this way, it is possible to understand by the celebration that the selection of memory and forgetfulness, as well as the permanence or erasure of identity marks in the local territorial dynamics occurs through a process of whitening initiated in the eighteenth century by the colonial company, through the deterritorialization of the black and indigenous population, perpetuated by the coffee plantations elites in the later century whose effects are seen nowadays. Keywords: Feast of Santa Cruz. Territorialities. Forgetfulness. Cultural Identity. Cultural Heritage.

El artículo tiene por objetivo comprender de qué forma el patrimônio cultural, la Fiesta de Santa Cruz, ubicada en un barrio rural de la ciudad de Divinolândia / SP, permite evidenciar los conflitos entre actores en la ocupación de las tierras en los siglos XVIII y XIX en el interior paulista, dado que su origen guarda relación con la presencia de quilombolas en la región y la continuación de su culto se da por los inmigrantes europeos y sus descendientes hasta los días de hoy. De esta manera, es posible enten- der por la fiesta que la selección de la memoria y olvido, así como la permanencia o supresión de marcas identitarias en la dinâmica territorial local se da por un proceso de blanqueamiento iniciado en el período setecentista por la empresa colonial, por medio de la desterritorialización de la población negra e indígena, perpetuado por las elites cafeteras paulistas en el siglo posterior, cuyos efectos se ven en los días de hoy. Palabras clave: Fiesta de Santa Cruz. Territorialidades. Olvido. Identidad Cultural. Patrimonio Cultural.

DOI: https://doi.org/10.11606/extraprensa2019.155482

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Introdução1 Dessa maneira, a formação da cidade de Divinolândia, que guarda relação com a formação de Caconde, traz, em sua essência, A Festa de Santa Cruz é considerada a presença de diferentes atores e suas ter- um patrimônio cultural imaterial regional ritorialidades entre os séculos XVIII e XIX, na cidade de Divinolândia, em referên- cujo encontro se dá pela lógica do conflito, cia à vivência comunitária na celebração que faz com que grupos sejam territoriali- e a religiosidade que permeia o ritual, zados, majoritariamente brancos, tais como evidenciando os valores e a identidade sertanistas, fazendeiros e europeus imi- cultural local. Seu culto, nesse sentido, já grantes, outros desterritorializados, como seria objeto de estudo sobre a importân- negros e indígenas. cia de bens culturais e sua relação com o pertencimento comunitário. Na tessitura do presente trabalho que joga luz aos temas da memória, do território Todavia, a Festa de Santa Cruz, em e da identidade, permeando a relação com uma interpretação mais crítica sobre a ori- a festa como patrimônio, foi necessário se gem do patrimônio, destaca as contradições debruçar no apoio teórico. Assim, na com- que cercam a produção de estruturas ter- preensão da relação da festa como patrimô- ritoriais hierarquizantes dinamizadas pela nio, trabalha-se com Itani (2003), Tinhorão lógica colonizadora estabelecida ao longo (2000), Ferreira (2005) e Canclini (1994) e da história do Brasil, haja vista que o local no aspecto conceitual sobre territorialidade onde ocorre a celebração se relaciona com Saquet (2008) e Raffestin (2008). Com a o passado escravocrata da região. intenção de entender a presença quilom- bola e indígena, foram analisados autores A festa tem a capacidade de trazer como Martins (2008) e Ribeiro (2008) e para a atualidade, desde longínquas épo- sobre o entendimento das questões raciais, cas, as experiências culturais vivenciadas Fanon (1978) e Chauí (1989). por uma comunidade (FERREIRA, 2005). É nesaa constatação que o presente trabalho De modo a entrelaçar o aspecto teó- trata de compreender que o patrimônio rico com o objeto de estudo, foi necessário traz na sua formação as contradições do apresentar entrevistas, de modo a eviden- arranjo espacial que se dá pelo conflito de ciar a dinâmica territorial local e as refe- territorialidades. A Festa de Santa Cruz traz rências identitárias acerca da celebração. consigo não só a narrativa religiosa, mas também a conotação política que estruturou Na interpretação do patrimônio, veri- o Nordeste paulista. ficou-se, no decorrer do artigo, como as violências física e simbólica foram estru- turantes para a construção da sociedade

1 Este artigo é um desdobramento da pesquisa rea- brasileira até hoje, perpetuando a desigual- lizada no Mestrado, pelo Programa de Planejamento e dade social como resultado do colonialismo Gestão do Território da Universidade Federal do ABC, imposto. As fissuras encontradas no campo cujo título é “Os silenciados quilombolas e indígenas na formação de Caconde: território como testemunha das desigualdades são inúmeras, dentre do esquecimento” em 2018. elas, o apagamento e o esquecimento de

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populações, processos naturalizados até deve ser entendida também como um os dias atuais. fato social. Como muitas das celebrações festivas vêm sendo mantidas pelos dife- A festa de Santa Cruz tem, na atuali- rentes povos, resistindo às interdições dade, o envolvimento comunitário e o ritual, e imposições, em diferentes momentos que fazem do espaço um lugar sagrado que históricos, elas se tornam igualmente sobeja alegria e fortalece laços de pertenci- fato político (ITANI, 2003, p. 9) mento. Mais do que isso, a atividade festiva tem um significativo debate sobre o apaga- No que concerne às imposições sim- mento e o esquecimento, como consequên- bólicas, as festas, enquanto fato político, cias, de atos de opressão na estruturação retratam as contradições sociais. Isso é per- do território. ceptível na história do Brasil.

Segundo Tinhorão, quando os por- tugueses chegam ao Brasil, não trazem consigo celebrações com características A festa de Santa Cruz festivas, visto que tinham acabado de sair de uma Europa de controle teocrático da sociedade, através do conceito da respon- As celebrações são expressões cultu- sabilidade pessoal diante do pecado, que rais que acompanham o convívio de grupos impunha, aos cristãos, a vigilância contra durante a história da humanidade, pois, os impulsos pagãos (TINHORÃO, 2000, para além da celebração dos eventos, as p. 7). Dessa feita, somente após 200 anos festas são fatos sociais, políticos e históricos. da chegada, o lazer na Colônia se daria por momentos de festividade ligados ao A festa é o tempo e o espaço da cele- poder do Estado e poder espiritual da bração. Dá-se por meio da brincadeira, dos Igreja. (2000, p. 7). jogos, da música e da dança, comemora fatos, a vida e a criação do mundo. Seria, Segundo o autor, “a documentação também, a constituição do espaço de pro- revela que parte das autoridades e colonos dução dos discursos e dos significados e a brancos tinham tendência à reprodução criação pela qual as comunidades parti- dos modelos europeus de hábitos pessoais lham de experiências coletivas. Ademais, é e sociais, e, da parte dos jesuítas eram o momento da experiência prazerosa dessa encarregados da evangelização da gente convivência coletiva, da vivência com o desta terra”. (TINHORÃO, 2000, p. 7) passado e presente, envolvendo cerimônia e brincadeiras. (ITANI, 2003, p. 7-8) A influência de valores europeus se impõe à nova realidade da colônia por meio A Festa está sempre em processo de de uma implantação de forma autoritária, mudança, sendo transformada a cada sem concessão à cultura preexistente das momento pelos grupos sociais e pela pro- populações indígenas ou à africana, que dução de novos significados simbólicos. adviria se estabelecer ao longo de toda costa Comemoração ritualística coletiva, ela e em pontos distantes do interior, após a

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ocupação do estuário do Amazonas (origi- Grande, na região conhecida por , nador do estado do Maranhão e Grão-Pará) onde se encontra uma capela no extremo e das descobertas das minas de ouro e dia- do vale, cuja origem guarda relação ainda mantes nos sertões e campos das Gerais e do período escravocrata. Cuiabá. (TINHORÃO, 2000, p. 8) [ Figura 1 ] Entre os festejos que obedecem a Capela do Pontal ordem teocrática trazida pelos portugue- ses, há a Festa de Santa Cruz, que é tam- bém conhecida como Exaltação à Santa Cruz pelos católicos, sendo uma celebração antiga e tradicional que remonta ao século V, ao menos em Jerusalém. Além disso, em Roma, se celebrava a “Invenção, ou seja, o Encontro da Santa Cruz, no dia 03 de maio”. (CNBB)

Antes do século IV, a cruz não era uma forte referência entre os cristãos. Isso se Fonte: Arquivo pessoal da autora (2014) modifica após a conversão de Constantino que, motivado por sua mãe, Santa Helena, aboliu o suplício da crucifixão, tornando-se A historiadora Orlanda Grespan, de um objeto de veneração. Por isso, a devoção Divinolândia, relata que a capela foi feita à cruz passou a ser motivada e orientada por escravizados e, além do mais, há um pelos pastores até os dias de hoje. (CNBB) grande culto à Santa Cruz devido a um mis- tério lá ocorrido, em que uma lenda relata A Festa de Santa Cruz se difunde pela que um agricultor ateou fogo à igreja: “[...] Colônia por meio dos jesuítas na catequi- a igreja já tinha sido feita, e atearam fogo, a zação dos indígenas no período seiscen- igreja não queimou, então eles passaram a tista. Desse modo, é a demonstração do cultuar isso como um mistério muito grande sincretismo entre elementos católicos e de ela não ter sido queimada. E quando dos próprios silvícolas, adaptados ou trans- depois da queimada foram mexer encontra- formados às condições do lugar e da época ram ossada humana”. (FARIA, 2018, p. 142) (ESCALANTE, 1981, p. 9). Tal festa se inicia no ciclo do solstício de inverno, cultuada De acordo com Marrichi (2006), há pelos católicos em 3 de maio e é o prenúncio outras versões de sua origem no local, das festas Juninas. “Apesar de não haver tais como: “[...] um fazendeiro que subiu intervenção eclesiástica, a Igreja reconhece ao morro com um escravo e lhe pediu que e respeita sua realização, promovendo, voltasse ao rio para buscar água”. A autora inclusive, a missa e orientando a procis- aduz que o escravizado se recusou a descer, são”. (ESCALANTE, 1981, p. 9) pois era muito longe e então o fazendeiro o matou. Dessa maneira, semanas depois, A Festa de Santa Cruz, em Divinolândia, um caçador percorrendo por lá encontrou o localiza-se no bairro rural chamado Vargem corpo do homem em fase de decomposição.

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Assim, chamou algumas pessoas que se esses grupos. A Festa de Santa Cruz, nesse reuniram para enterrá-lo. sentido, para além de encerrar sua impor- tância enquanto celebração, viceja outro Posteriormente, colocaram uma cruz debate, os encontros das territorialidades no local, uma vez que estavam sensibili- na organização territorial local que circun- zados pela dor, pela fome e pela sede que dam o patrimônio religioso. o homem teria passado. Por isso, começa- ram a rezar anualmente, no dia em que encontraram o corpo: três de maio, dia de comemoração da festa. (MARRICHI, 2006 apud FARIA, 2014, p. 36-37). Territorialidades em conflito: notas sobre a formação Consoante comm Marrichi, a Missa territorial local2 de Santa Cruz se origina nessa localidade e tem influência de negros que moravam na região do Pontal e que desapareceram. Todo patrimônio cultural é uma O culto é homenagem à Santa Cruz feita marca que se perpetua na realidade espa- por escravizados que se encontravam con- ço-temporal. Entender a manutenção vertidos ao catolicismo. dessa marca identitária há que se imis- cuir no espaço-tempo, território-memória. O festejo deixou de existir quando os Percebe-se que é a partir do entrelaça- negros, já libertos, mudaram-se com mento do espaço-tempo que se constata suas famílias para outras regiões. Com a confluência entre história e geografia a imigração italiana, o festejo retorna no e entre memória e território nas territo- Vale do Pontal: os imigrantes reformam a rialidades estabelecidas, desencadeando capela e a celebram dentro da influência a sucessão, o movimento. “Movimento do católica, com missa e procissão. Ainda pretérito, do ser e do vir-a-ser, do concreto que a festa abarque tons essencialmente e do abstrato, das relações recíprocas que católicos, existe a compreensão que sua nos dão o real. Movimento do espaço no origem é da cultura negra, o que impulsiona tempo e deste no espaço, em que o pre- um movimento em direção a uma identidade, sente contém o passado, que se realiza no em princípio, exterminada. (MARRICHI, presente”. (SAQUET, 2008, p. 76) 2006 apud FARIA, 2014, p. 37) Faz-se relevante destacar que, Pela reflexão de Marrichi, no que con- Raffestin (2008, p. 26), por sua vez, cerne ao desaparecimento e à mudança das entende que o espaço antecede o terri- famílias negras, é possível verificar que o tório, vez que o território é gerado a par- culto à Santa Cruz tem sua dinâmica modi- tir do espaço, pois advém da ação de um ficada com a variação de atores no territó- ator. “Apropriando-se concretamente ou rio, da população negra para a população branca. Há uma perpetuação da celebração

e da manutenção da capela a despeito da 2 Item analisado por intermédio do trabalho: FARIA diferença das identidades culturais entre (2018).

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abstratamente (por exemplo, através da o que Martins (2008) entende por quilom- representação) de um espaço, o ator o ‘ter- bos, também denominados pelas autori- ritorializa’”. A partir dessa concepção, a dades mineiras, pela presença majoritária representação da Festa de Santa Cruz é da população negra. Com a fuga, os qui- resultado do processo de territorialização lombolas “adentram ainda mais Sapucaí e desterritorialização de atores. abaixo, buscando sertões mais distantes e ampliando as fronteiras do verdadeiro O local onde se dá a Festa de Santa Estado que foi o Quilombo do Campo Cruz tem por característica uma variedade Grande”. (MARTINS, 1995, p. 156) de ocupações no decorrer da história, a qual se pode destacar os séculos XVIII e O Campo Grande possuía 27 núcleos XIX como marcações iniciais de diferen- quilombolas que se alastravam pelo territó- tes atores que se territorializam com suas rio mineiro, entre as décadas de quarenta referências identitárias. Isso é perceptível e cinquenta do período setecentista, tais no estudo historiográfico regional. vilas localizadas nos sertões foram inva- didas por bandeirantes contratados pelas Divinolândia pertencia ao território autoridades mineiras, com a intenção de de Caconde - sendo desmembrada somente realizar um verdadeiro genocídio de seus no século XIX - assim como São José do Rio habitantes. Em 1759, mineiros adentram Pardo, São Sebastião da Grama e . esses sertões do Rio Pardo para dar cabo Caconde é a cidade mais antiga dessa região, ao último núcleo, o Quilombo do Careca, cujo período de ocupação inicial se dá em como sustenta Martins (2008) em sua obra meados do século XVIII, em meio ao ciclo e destaca que sua localização geográfica aurífero presente em . ficaria em Divinolândia, nas proximidades do bairro rural chamado Quilombo3. Nesse período, Minas Gerais tem um importante fato histórico que marca sua Com referência aos apontamentos dinâmica de ocupação das terras por todo de Campanhole (1979) sobre a presença território: o surgimento de uma confede- quilombola, destacam-se trechos dos ração quilombola conhecida pela historio- Documentos Interessantes trabalhados grafia como Quilombo do Campo Grande. pelo autor que relata a presença quilombola (MARTINS, 2008) na ocupação de Caconde em 1765. Aliás, o próprio nome banto “Caconde” corrobora Por todo território mineiro até o com a forte referência africana local, visto Nordeste paulista, grupos de negros e bran- que o nome africano perseverou em relação cos pobres fogem do sistema opressivo da cobrança de impostos sobre a exploração do ouro presentes nas vilas controladas 3 Em pesquisa de campo ainda não foi possível constatar referências ao quilombo, uma vez que isso pela empresa colonial. Fogem rumo ao Sul demanda estudos técnicos arqueológicos, mas, através de Minas Gerais em busca dos Sertões, história oral, é possível verificar, pela memória comu- lugares não desbravados, onde também nitária, a presença de negros fugindo do regime escra- vocrata na região do bairro do Quilombo, o que se pode encontravam ouro de aluvião em córregos supor que havia uma presença quilombola na região, que margeavam matas fechadas fundando, mas ainda sem possibilidade de precisar qual período.

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aos nomes cristãos dados posteriormente4. que os Sertões que os quilombolas busca- Nesse período, é descoberto ouro no córrego vam também eram ocupados pelo gentio, do Bom Sucesso em Caconde e se inicia uma que transitavam tanto pelos os Sertões de disputa pelo metal entre mineiros e paulis- Jacuí quanto os Sertões do Rio Pardo. tas que se encerra na divisão de fronteiras. Segundo José Umbelino, havia a presença A título de esclarecimento, cabe res- de caiapós na região. Carvalho relata que, saltar que, na perseguição de quilombolas, segundo o historiador Ribeiro Nogueira, era comum encontrar ouro nas regiões a etnia indígena Catuá ou Cataguá, do onde habitavam esses atores, haja vista ramo Tupi, habitava a região nas proximi- que eram os africanos que detinham o dades da Grama, na vertente com Poços, saber sobre o domínio das técnicas de Caconde e Sul de Minas. (CARVALHO, exploração dos metais. Assim, na invasão 1998, p. 33). A corroborar com tal enten- e furto das terras, a empresa colonial se dimento, Diogo de Vasconcelos menciona estabelecia nessas localidades, pela funda- os índios Cataguás como aqueles que, no ção de vilas, de modo a explorar o metal: Sul de Minas, mais terror incutiram aos “O colonizador com as fortalezas e pre- paulistas. (RIBEIRO, 2008, p. 366). Desta sídios nas fronteiras, ou com os núcleos feita, destaca-se que as terras ao Sul de urbanos, construção artificial do homem, Minas Gerais em disputa por sertanistas, demarcando as divisões entre o mundo outrora foram ocupadas por quilombolas civilizado e o do selvagem, das matas dos e indígenas. (FARIA, 2018, p. 44) sertões”. (RIBEIRO, 2008, p. 121) Ainda nesse sentido, um exemplar de Percebe-se assim que o deslocamento um jornal histórico, traz, em destaque, a pre- para o Sul mineiro e Nordeste paulista se sença indígena na região de Divinolândia, deu com a formação dessas comunidades, nas proximidades do Pontal. denominadas de quilombos pelas autorida- des mineiras. Contudo, há que se ressaltar [...] os índios Cayapós, avançando do inte- rior de Goyaz, os Tupys e seus afims – Tupynambas, Tupiniquins, Tamoyos, 4 CACONDE – 6 ocorrências; banto. Não diciona- Temininos, que ocupavam, primitiva- rizado no Aurélio. Castro (2001, p. 38) define esse termo como “barranco; enxurrada que cai de lugar mente, os vales do Rio Mogy-Guassu e elevado”. Para Raymundo (1933, p. 112), cacunda é Rio Pardo [...] que estendendo-se até as palavra do ambundo e que dizer “corcova, giba”; já cabeceiras do Rio Tietê [...] Acossados, Renato Mendonça (1973) não menciona esse nome. logo depois, por uma guerra de extermí- Senna (1926, p. 285) afirma: “este toponymo, ao nosso vêr, é de origem africana (relembrando Cacondi, na nio, os valentes e belliscosos e indomá- Africa Occidental e que teria dado a palavra Cacunda, veis Cayapós, dispersaram-se em grupos também usada no Brasil em logar de “dôrso” ou “cos- erradios [...] O coronel Manoel Rodrigues tas”); pois a um rio de Moçambique e a um lugar de Benguella (em Angola) dão as geographias esse da Costa, então fazendeiro nos campos nome de Caconde, que teria sido importado para o de Caldas, referia que pelos annos de Brasil.” No Triângulo Mineiro, Caconde nomeia cór- 1820-1830, nas suas caçadas que fazia rego, fazenda e morro no município de Comendador Gomes; e córrego, fazenda e morro no município de nas cabeceiras e vertentes no Rio do Itapegipe. (LIMA, 2011, p. 2084). Peixe, em terrenos então pertencentes

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à Freguesia de Caconde, por mais de pelos imigrantes europeus, dentre os quais uma vez encontrou grupos de índios se destacam os italianos. (BRIOSCHI, 1999, Cayapós que faziam colheita de pinhão. p. 76 apud DEMINICE, 2015, p. 66). Mesmo nos subúrbios desta cidade, não há muitos annos, foram encontrados Percebe-se que com a agricultura vários artefatos índigenas: trangape- intensificada pela proliferação das fazen- mes, tacapes, pedaços de iguaçabas. Em das, demandou-se mão de obra escrava, suas malocas ou em promiscuidade com cuja presença na região de descendentes os selvícolas viviam os quilombolas – de africanos modifica-se, uma vez que, negros fugidos – que, participantes da a partir de 1880, intensificou-se a imi- mesma condição miserando e reagindo gração europeia para o Brasil. Bem antes contra tyrannia e rigores do Captiveiro, do fim do século passado, os primeiros buscavam alguma liberdade no seio peninsulares já estavam trabalhando em recôndito e ignoto das florestas virgens. Caconde (CAMPANHOLE, 1979, p. 347). (A SENTINELLA, 1924, grifo nosso). Em Almanaque Cultural sobre a cidade de Divinolândia, (2012, p. 12), destaca-se o Com características de mata fechada, nome de 21 fazendas, na época em que a a região do rio do Peixe, nas proximidades cidade era denominada Espírito Santo do do Pontal, serviu de proteção para indí- Rio do Peixe, de 1898 a 1938, segundo dados genas e quilombolas, que se escondiam do site da prefeitura municipal. do contato e do domínio dos brancos, no caso, sertanistas mineiros e paulistas e, Neste ínterim, para ilustrar a con- posteriormente, por fazendeiros. juntura política por detrás da mentalidade da elite paulistana que desenvolve o pro- Essa região do Rio do Peixe e bairros jeto imigrantista em clara finalidade de rurais no entorno de Divinolândia e Caconde embranquecimento do território, Prado têm sua dinâmica novamente modificada já destaca que se torna perceptível um novo no século XIX. Em 1810, os mineiros ocupam movimento na constituição social do país. grande parte das terras, onde existia a antiga A pequena presença de brancos colonos freguesia de Caconde, além de inúmeros no Brasil e a grande presença de afri- requerimentos de sesmarias nessa época canos não era mais considerada desejá- e desentendimentos entre os ocupantes. vel para uma nação que se desenvolvia. (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA A heterogeneidade que resultava de um E ESTATÍSTICA, 1964, p. 3 apud FARIA, tal sistema, tanto racial quanto cultural 2018). Dessa maneira, a ocupação mineira e social, era considerada pelos demais no Nordeste Paulista durou enquanto o como imprópria para um país que se tor- gado e a agricultura do excedente domina- nara sede de uma monarquia europeia. vam a economia regional, em substituição As condições que os dirigentes portu- ao ciclo aurífero. Contudo, em rearranjo gueses encontraram no Brasil quando espacial com a introdução e a expansão da nele instalaram o trono e o governo eram cafeicultura, os paulistas voltam a ocupar mais que inconvenientes. Não foi difícil a região, dessa vez acompanhados por flu- compreender a necessidade de reformas. minenses, originários do Vale do Paraíba, e (PRADO JÚNIOR, 2004, p. 184)

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A vinda da imigração é relevante para territorialidades, com rupturas e continui- o arranjo espacial local, uma vez que há dades de atores, na composição da iden- uma territorialização das famílias europeias tidade cultural regional, cujos elementos na região, principalmente, em Divinolândia, simbólicos diversos trazem a ancestralidade evidente nos dias de hoje. Há também um comum e pertencimento ao território. processo de desterritorialização. A pesqui- sadora Orlanda Grespan relata sobre a saída A evolução da dinâmica espacial tem da população negra da cidade indo para por efeito a sucessão de grupos no espaço, outras cidades: seja pela territorialização e pela desterrito- rialização, opera a produção e apropriação do [...] a gente nota que mesmo os netos (das território, que, em seu nível máximo, de domi- famílias negras) que nós tivemos aqui... nação, se verifica na lógica da colonização. foi pra região de Caconde... Guaxupé... Muzambinho... certo porque... pratica- Tanto os atores indígenas quanto mente os italianos dominaram aqui... certo? os quilombolas são desterritorializados, vieram em grandes quantidades italiano devido à ocupação sertanista paulista e e espanhol aqui [...] (FARIA, 2018, p. 217) mineira, que se territorializa. A tradução desta dinâmica se dá pela fundação da No encontro presente entre distintos Freguesia de Caconde, cuja dinâmica se atores entre Divinolândia e Caconde, no torna mais complexa com a ocupação dos decorrer dos séculos XVIII e XIX, surgem grupos posteriores.

[ Figura 2 ] Análise dos grupos por camadas de ocupação em face da historiografia nos séculos XVIII e XIX

Fonte: FARIA (2018, p. 128)

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[ Figura 3 ] Síntese da dinâmica territorial da região Divinolândia no século XIX5

Fonte: FARIA (2018, p. 121)

Em análise, destaca-se o mapa dos bair- disso, depoimentos, documentos e artefatos

ros rurais de Divinolândia5. A área apontada arqueológicos encontrados, esses últimos sem em vermelho pode ser considerada a região de precisão de data, evidenciam uma presença localização do Quilombo do Careca de acordo indígena sedentária na região. Em percurso com os estudos de Martins (2008). Por meio etnográfico, os moradores das proximidades da toponímia, verifica-se os topônimos bantos dos bairros de Vargem Grande e Quilombo relacionados ao bairro Quilombo e ao cór- rememoram que seus ancestrais falavam de rego Quilombo, assim como a indígena do “índios amoitados”, bem como havia de “tomar topônimo Pirapitinga. Infere-se que tinham, cuidado”, porque “de repente eles te matam”, também, os atores indígenas e quilombolas podendo a pessoa até “encontrar a morte”. presentes no século XVIII, esses últimos tam- bém destacados por Martins (2008). Além No acervo municipal de Casa Branca6, encontram-se documentos relacionados

5 Seguem as referências do mapa, A – Fazenda Fortaleza, B – Fazenda , C – Fazenda Bocaina, D – Fazenda Contendas, E – Bairro do 6 Museu Histórico Pedagógico “Alfredo e Alfonso Quilombo, F – Bairro Pirapitinga , G – Pontal. de Taunay” (Casa Branca, SP)

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às fazendas mais antigas da região estu- são territorialidades distintas que compõem dada, que no caso seriam da Freguesia de a organização socioespacial. Caconde, cujas propriedades se constituem acerca de 1840, intensificando os ato- Quando chegam os imigrantes euro- res fazendeiros/homens livres na região. peus, as fazendas os absorvem como mão de Além disso, o contato com o pesquisador José obra, inserindo-os não só na configuração Armando que tornou possível a confirmação espacial, como também na sociedade. Nos documental de que a fazenda Jaboticabal relatos levantados, as famílias imigrantes surgiu entre 1820 e 1840, assim como a com a capitalização de sua renda, fruto dos fazenda Fortaleza seria aproximadamente trabalhos nas fazendas, compram terras e de 1840. Percebe-se que a ocupação da região isso tem efeito no rearranjo espacial e ten- se modificou sensivelmente em 1840, devido sionalidades nas áreas que se encontram à introdução das mudas de café e a ausência as matas nativas ocupadas pela população de marco legal que regulasse a ocupação negra e indígena, cuja denominação insti- de terras.7 Desta forma, nesta região em tucional seria as terras devolutas. destaque, os pontos laranjas correspondem às fazendas Fortaleza, Jaboticabal, Bocaina Com as flechas azuis, destaca-se a e Contendas. (FARIA, 2018, p. 122) movimentação dos imigrantes para as ter- ras “não ocupadas”, uma vez que não eram As fazendas se localizam no entorno fazendas. Inicia-se uma nova dinâmica nos da região de mata virgem destacada pelas bairros rurais, cujos proprietários atuais são, entrevistas e no percurso etnográfico, pos- em grande parte, descendentes de europeus, sivelmente ocupadas por etnias indígenas os quais relatam a presença de escraviza- e quilombolas, levando-se a cogitar a não dos se deslocando na região, bem como de ocupação total por brancos das terras da patrimônios culturais anteriores à imigração marcação vermelha. No rearranjo espacial é europeia, tais como a capela do Pontal, loca- possível deflagrar a separação entre os ato- lizada no bairro Vargem Grande. res escravizados/quilombolas e imigrantes europeus na disposição do território, pois As matas fechadas não favoreciam o acesso sem dificuldade, acrescentando o privilégio de toda a região, sendo possível

7 Desta forma, a partir dessa data inicia-se um novo verificar características que se adequam período na história da formação de propriedade no à descrição geográfica de quilombos do Brasil que se estende até 1850, quando surge a chamada período da Colônia e Império. Interpreta-se Lei de Terras. Esses quase trinta anos entre a derru- que esse território era referência para bada do regime sesmarial e a instituição de uma nova Lei ficaram conhecidos como “Império de posses” ou fugas dos escravizados, possivelmente “fase áurea do posseiro”, pois não havendo nenhum tipo pela memória coletiva da existência de de normatização e regulamentação de terras, a posse um extinto quilombo que poderia ser o do tornou-se a única forma de aquisição de terras. Nesse período aumenta-se paulatinamente o número de pos- Careca, pelos remanescentes desse qui- seiros, de grandes propriedades e também marca a for- lombo que lá residiam e que davam guarida mação das oligarquias rurais no Brasil. Por outro lado, aos fugitivos, ou outra ocupação de quilom- essas posses não poderiam, conforme o cumprimento da norma vigente, serem legalizadas. (SILVA, 1997 apud bolas relacionadas às fugas das fazendas de ALCÂNTARA FILHO; FONTES, 2009, p. 66). café. A despeito das possibilidades sobre a

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presença negra na região, são os critérios serem mão de obra assalariada, possibili- geográficos que se tornaram referência para tando a aquisição de terras, esses detinham a quilombagem independente da época. um capital simbólico valorizado em compa- ração aos afrodescendentes. Esses dois gru- [ Figura 4 ] pos eram explorados pela elite econômica, os Capela do Pontal localizada no topo do fazendeiros, porém, a ordem racista impe- morro e vista do Pontal, respectivamente rante à época excluía o negro, colocando-o à margem da sociedade. (FERNANDES, 2007)

Assim, sabe-se que a desterritoriali- zação se aplica aos negros durante todo o Período Colonial, passando pelo Império, até chegar à República. Já para os descen- dentes de europeus, mesmo sob alto grau de exploração – como é sabido a partir de 1902, a entrada de italianos é reduzida dras- ticamente por pressões do governo italiano diante das denúncias de maus tratos nas fazendas (RUFATO, 2006, p. 100) – a regra é da reterritorialização.

Fonte: FARIA (2018)

A interpretação do patrimônio A comunidade rememora a existência à luz das territorialidades de uma concentração de negros na região e os conflitos com brancos pela posse de terra. Há afrodescendentes que não se recordam Da breve enunciação histórica, coube em suas memórias de enfrentamentos com destacar a presença indígena e negra na a imigração, mas enfatizam os conflitos com região. Isso porque a memória coletiva os fazendeiros no geral que, mesmo após a regional desconhece o passado quilom- abolição, assediavam os poucos negros pela bola, assim como a presença indígena é propriedade de terras. pouco referenciada. Todavia, na localidade próxima ao Pontal, a memória da comuni- Desse conflito, a lei de Terras de 1850 dade, assim como a historiografia apontam favoreceu os brancos na posse de terra, pela ocupação desses atores. Pesquisadores tendo, por consequência, a espoliação dos locais conjecturam sobre a presença qui- negros das áreas rurais e o deslocamento lombola na região, em consonância com a para cidades. Dessa feita, é perceptível que pesquisa de Martins (2008). Nas proximi- essas famílias europeias foram favorecidas dades do bairro do Quilombo, há no bairro em relação às famílias de escravizados, pois Vargem Grande a festa de Santa Cruz que, o que se depreende é que, além dos europeus segundo tais pesquisadores, seria a principal

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referência cultural relacionada ao passado era novinho. [...] quando criei força, eu ia quilombola na região. de a pé, ia e voltava. Já quando nós viemos morar aqui, a igreja já estava lá. (Sr. Sandro) Em todas as entrevistas realizadas8, afirmou-se o negro como protagonista do Já o entrevistado Senhor Nilson, idoso evento que levou a edificação da capela, e residente em Divinolândia, evoca suas pri- sendo que essa é anterior à presença da meiras lembranças relacionadas com a igreja: imigração, e que antes dessa ocupação, era região de “mata fechada”. O depoimento [...] existe isso porque é o dia da Santa. da historiadora Orlanda Grespan vai ao Fizeram a Igreja com o nome de Santa Cruz. encontro dessa narrativa: Dia três de maio, o povo, os católicos consi- deram como dia santo. Neste dia 3 de maio [...] Olha, aquela capelinha foi feita real- o povo começou a fazer esta festa aí. [...] nós mente por escravos. [...] Tem a ver com o com sete ou oito anos já ia lá, já tinha a quilombo sim, porque lá é o lugar onde igrejinha, de muitos antigos pra trás, isso eles ficavam escondidos. Porque do alto é de uns 120 anos, por aí ou muito mais, você teve a visão, que é muito alto, então é uai, porque meu pai morreu com 80 anos, um lugar muito propício para se esconder, faz mais de 20 tantos anos, e conta que ele de difícil acesso, e eles tinham visão do não sabia quem que fez (Sr. Nilson). rio Pardo. E realmente no livro dele fala, eles tinham visão do lado esquerdo do rio A historiadora Orlanda Grespan Pardo. Era lá. [...] os escravos aderiram relata que “[...] a Missa de Santa Cruz é a ao catolicismo porque foram obrigados, e maior representação simbólica na região perpetuaram nessa capelinha, todo dia 3 que se consegue relacionar com o passado de maio é dia de Santa Cruz. (Grespan). quilombola”. Naquela localização geográ- fica, o culto teria sido frequente antes da O Senhor Sandro de Caconde, fala construção da capela, já na época da exis- sobre a igreja: “quando nasci já tinha igreja tência do quilombo. Devido a essa constância lá. Dos tempos antigos. Então fizeram a do ritual, com o passar do tempo, ainda após cruz”. Perguntado sobre quem teria cons- a extinção do mesmo, prosseguiu-se o culto truído a igreja, ele afirma: e levantou-se a capela, persistindo até hoje a devoção, que carrega símbolos cultuados [...] Ah não lembro, era do tempo antes de pela população negra, pois os “negros que vir pra cá. [...] antes dos italianos já tinha perpetuavam a missa de Santa Cruz”. a igreja. [...] sei que a igreja já estava lá, a igreja já era velha, um homem antigo que O pesquisador local de Caconde, José entrou aqui e morreu. [...] eu vim pra cá eu Armando, destaca as referências afro-bra- sileiras na região.

8 Entrevistas presentes no trabalho de Faria (2018). [...] a festa de Santa Cruz que teria rela- Alguns entrevistados pediram sigilo durante a pes- ção com o quilombo, uma vez que a quisa de campo, assim para o artigo foi preservado o anonimato dos participantes por meio de nomes fictí- Igreja Católica não cultua a festa mais cios, entre estes, Sr. Sandro, Sr. Nilson e Dona Luciana. no dia 3 de maio há décadas, cuja data

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persiste na comunidade local. Além da frente à elite cafeeira e a ocupação das terras, comunidade imigrante trazer relatos trazendo como imagem coletiva a história da presença do negro na construção da superação da fome e a permanência da da capela. (José Armando). cultura de seus avós, sempre com a religio- sidade presente na narrativa. A Exaltação O que se depreende, em suma, é que à Santa Cruz local, pela simbologiacatólica, havia uma presença de negros na região do é assimilada e perpetuada pelos imigran- Pontal, desde a edificação da capela que surge tes sem dificuldade, uma vez que a cruz é da lenda do escravizado. Tal capela, cons- símbolo religioso onipresente na Europa truída pelos escravizados, a qual em suas e nos territórios colonizados pelos povos bases se constatou ossada humana, é ante- indo-europeus. Em contrapartida, outras rior à presença de imigrantes europeus. Se a manifestações culturais locais de origem afro historiografia atual joga luz aos atores indí- não são incorporadas, por exemplo, o con- genas e negros como primeiros atores nesse gado, moçambique entre outros patrimônios território, os pesquisadores locais evidenciam imateriais destacados por diferentes grupos as referências afro- brasileiras da região de da região. Essas são formas de expressões modo a romper com o esquecimento. relegadas ao esquecimento.

A comunidade italiana que fixou suas O patrimônio cultural traz também, raízes nesses bairros rurais trouxe expres- nesse sentido, em uma interpretação mais sões culturais marcantes nos valores locais. crítica, as contradições sociais que se refletem A geração atual rememora a vinda de seus na cultura, ocasionando que algumas marcas antepassados, as dificuldades da adaptação identitárias são mais relevantes que outras.

[ Figura 5 ] Festa de Santa Cruz

Fonte: LIMA (2015) apud FARIA(2018)

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Nessa toada, Canclini entende que o desses atores no território se assentam de patrimônio cultural forma hierárquica, levando em conta que as relações raciais são igualmente hierárquicas. expressa solidariedade, que une os que compartilham um conjunto de bens e A discriminação projetada no espaço práticas que os identifica, mas também se dá entre os inúmeros grupos identitá- costuma ser um lugar de cumplicidade rios. Na configuração territorial, o racismo social. As atividades destinadas a defini- no espaço é evidente, pelo genocídio, pelo -lo, preserva-lo e difundi-lo, amparadas apagamento de referências culturais e pelo pelo prestígio histórico e simbólicos dos parco acesso à terra, condições essas indis- bens patrimoniais, incorrem quase sempre sociáveis para a dominação. O racismo é numa certa simulação ao sustentarem que uma crença fundada em uma hierarquia a sociedade não está dividida em classes, entre raças. É uma doutrina baseada no etnias e grupos, ou quando afirmam que direito de uma raça, tida como pura e supe- a grandiosidade e o prestigio acumulados rior, de dominar as demais, sendo um sis- por esses bens transcendem essas frações tema político. Então ele é uma crença, uma sociais. (CANCLINI, 1994, p. 96) doutrina e um sistema político fundado na extrema hostilidade contra os que são A expressão de solidariedade que une postos como inferiores levando às leis de e compartilha os bens e práticas é verifi- discriminação, leis de separação ou apar- cável na manutenção dos referenciais que tamento total, o apartheid e de legitimação circundam a Exaltação à Cruz, porque se e destruição física dessas pessoas, isso é, o infunde nos territórios, inicialmente, pela genocídio. (CHAUÍ, 2014, p. 87). Percebe-se colonização na submissão de povos, tendo que o racismo é estrutural e se projeta na por efeito o sincretismo religioso, tornando configuração espacial. símbolo e festejo universal. No que con- cerne ao território objeto deste estudo, pos- A cidade do colonizado, ou pelo menos a teriormente, a imigração europeia que vem cidade indígena, a cidade negra, a médina, a no século XIX trazendo, também, em seu reserva, é um lugar mal afamado, povoado bojo, a fé católica, permite encontrar a cruz de homens mal afamados. Aí se nasce não e a capela, as imagens da memória coletiva importa onde, não importa como. Morre-se local sem resistência, amalgamando valores não importaonde, não importa de quê. É e os compartilhando a despeito das diferen- um mundo sem intervalos, onde os homens ças identitárias dos grupos recém-chegados estão uns sobre os outros, as casas umas e os mais antigos localizados. sobre as outras [...] “eles querem tomar o nosso lugar”. (FANON, 1968, p. 29) Em breve digressão, sabe-se que o Brasil, na sua característica de colônia de Na formação do Brasil, a marcação exploração, organiza seu território sobre identitária se afirma pelo eurocentrismo como os valores da empresa colonial. Assim, em projeto da empresa colonial. Mesmo com a meio ao período escravocrata, o território independência, o eurocentrismo se incorpora é desenhado sob o viés de valores racistas, na elite econômica como uma série de valo- projetados no arranjo espacial. As camadas res que compõe hábitos, comportamentos

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e formas de se estabelecer a dominação no o fator histórico parece o mais importante, campo material e simbólico, se constituindo na medida em que constitui o cimento por meio da ideologia que enquadra a memó- cultural que une os diversos de um povo ria. A ideologia é o mecanismo pelo qual se através de um sentimento de continui- camuflam as contradições, em nome de uma dade histórica vivida pelo conjunto de indivisão e de uma harmonia de direito que sua coletividade. O essencial para cada devem constituir a sociedade e a política. povo é reencontrar o fio condutor que liga Também é uma operação típica da ideologia seu passado ancestral o mais longínquo escamotear a diferença, entre pensar e o real possível. A consciência histórica, pelo – sobretudo, a diferença existente entre, por sentimento de coesão que ela cria, consti- um lado, a compreensão crítica das inter- tui uma relação de segurança a mais certa pretações que os agentes sociais e históricos e mais sólida para o povo. É a razão pela produzem em condições determinadas e, qual cada povo faz esforço para conhecer por outro, as origens dessas interpretações. sua verdadeira história e transmiti-la (CHAUÍ, 1989, p. 31). às futuras gerações. Também é a razão pela qual o afastamento e a destruição É possível verificar o supracitado da consciência histórica eram uma das aspecto, não só pela questão funcional dada estratégias utilizadas pela escravidão e ao território propagado pela colonialidade9, pela colonização para destruir a memória mas, principalmente, pelos valores simbó- coletiva dos escravizados e colonizados. licos que vicejam a prevalência ou não de (MUNANGA, 2009, p. 12, grifo nosso). marcas identitárias das populações indí- genas e negras no decorrer dos séculos. O No Brasil, o território foi desenhando sincretismo, nesse sentido, que se dá inicial- sobre uma estética do apagamento de refe- mente pela violência e imposição, no decor- rências negras e indígenas. “É a estética do rer dos séculos, muda de roupagem, pois há, apagamento e da reinscrição, da possibilidade entre as gerações, um compartilhamento apontada pela arquitetura e pelo planeja- de memórias comuns forjadas e de forçoso mento modernistas de apagar a velha ordem esquecimento, que se dão por uma violência e reinscrever uma nova” (HOLSTON, 1993, menos evidente porque não física, mas igual- p. 208 apud JARENTCHUK, 2007, p. 88). mente brutal, pois retira a cultura originária O apagamento como uma faceta na represen- desses povos. Munanga compreende que há tação do território, oriundo de um processo alguns fatores que articulam a ideia de cons- civilizatório eurocêntrico, assim como o ideal trução de uma identidade ou personalidade de urbanização da modernidade, pairando coletiva, tais como o histórico, o linguístico no que se evidencia na paisagem nos dias e o psicológico. Segundo sua análise, mais de hoje, são frutos do conflito entre identi- focada na população negra, o fator histórico dades no espaço, dando destaque ao silêncio seria o mais importante: e esquecimento de grupos nesse processo.

A história do território onde se loca- 9 Quijano (1997) cunhou o conceito de coloniali- liza a Festa de Santa Cruz em Divinolândia dade como algo que transcende as particularidades do colonialismo histórico e que não desaparece com a evidencia as contradições sociais no projeto independência ou descolonização. (, 2014) de identidade nacional pensando por elites

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com projetos claramente discriminatórios. [...] a religião também é parte desse cená- A memória, mesmo com a mudança dos rio, dessa paisagem, e participa tanto da atores, resiste e traz em sua origem o passado construção de símbolos como da materia- afro-brasileiro. Sabe-se que a Festa de Santa lização na paisagem. Os espaços também Cruz é encontrada em outras localizações de são modelados por um imaginário, nos origem quilombola, como no Vale do Ribeira: quais participam ativamente a porção consciente e inconsciente da estrutura- [...] celebrada sempre no dia 3 de maio, é ção do psiquismo humano. (SCHLÖGL; uma data importante do calendário reli- FILIZOLA; GUARACIAB, 2010, p. 6 apud gioso nos quilombos do Vale do Ribeira. Das FARIA, 2014, p. 38). dez comunidades que incluíram a celebra- ção em seu inventário, quatro delas man- A festa de Santa Cruz é a imagem têm a prática. Nas outras seis, a celebração compartilhada do símbolo mais marcante foi classificada na condição de memória. da fé católica, a cruz. Da Europa à América (ANDRADE; TATTO, 2013, p. 74) Latina, é permanecida por instituições e pelas classes populares em diferentes loca- Assim, ressalta-se que mesmo na dife- lizações, urbanas e rurais, como no caso em rença da ocupação das terras, há uma con- Divinolândia. tinuidade histórica do passado relacionado ao negro no local que se persevera entre os Aqui, é importante destacar a impor- brancos. Ferreira entende que a insistência tância da comunidade na perpetuação da em buscar no mais longínquo passado, as cruz. Canclini (1994, p. 97) destaca que “os raízes do presente são visíveis na maneira produtos gerados pela classe populares cos- como esse passado está significado e simbo- tumam ser mais representativos da histó- lizado nos mínimos detalhes da estática das ria local e mais adequados às necessidades festas examinadas (FERREIRA, 2005, p. 77) presentes do grupo que os fabrica”.

Constata-se que há uma incursão de Verifica-se não só a importância da uma memória silenciosa, esquecida, dentro celebração enquanto rito, mas também de um espaço público, por meio de uma o local que se encontra a capela que é concepção abstrata do culto à Santa Cruz, envolto de sacralidade, como já destacado, de origem cristã, cultuada pelos negros em anteriormente, sobre o incêndio que não um período anterior ao estabelecimento queimou a capela. Em entrevista com um dos brancos italianos. Isso se verifica na casal local, Senhor Nilson e Dona Luciana, manutenção, ainda que tímida, da memória compartilham o fato de que houve há dentro de uma percepção atemporal, uma muitos anos um incêndio “[...] Ah, teve vez que o culto feito pelos negros no local uns anos que chegou fogo até pertinho é secular, por intermédio de signos e de dela, mas onde é grande o fogo reservou símbolos que se mantiveram na paisagem, ela e cortou”. A comunidade acredita ter ou seja, a capela, a cruz e localização do sido providência de Deus. (Sr. Nilson) Pontal. Essas são imagens preponderantes na memória coletiva, ainda que constituídas Para além de um espaço institucio- em uma memória pueril. nalizado pela Igreja, como se verifica em

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ambientes urbanos, a capela no Pontal se território, pois as famílias imigrantes que apresenta como uma miríade de patrimô- chegaram ao Brasil têm acesso à terra, visto nios que se encontram e vicejam a sacrali- que conseguem comprá-las por serem mão dade do território, pois há a festa, o lugar da de obra assalariada, diferente das famílias capela e objeto da cruz, reconhecidamente negras que não são absorvidas pelo mer- referências culturais. cado de trabalho no período pós-abolição, fazendo com que essas sejam espoliadas das Canclini (1994, p. 99) entende que o terras dentro da legalidade racista imposta patrimônio cultural – ou seja, o que um con- pelas elites cafeeiras. junto social considera como cultura própria que sustenta sua identidade e o diferen- Isso ressoa, evidentemente, na rela- cia de outros grupos – não abarca apenas ção da memória coletiva, que precisa de os monumentos históricos, o desenho coesão do grupo e compartilhamento de urbanístico e outros físicos; a experiência imagens entre os indivíduos. Halbwachs vivida também se condensa em linguagens, (1990) entende que não seria suficiente conhecimentos, tradições materiais, modos reconstruir peça por peça a imagem de um de usar os bens e os espaços físicos. Sem acontecimento do passado para se obter dúvida, a festa de Santa Cruz vislumbra a uma lembrança, sendo necessário que a experiência vivida da comunidade, em meio reconstrução se opere a partir de dados e ao festejo que vai se modificando com os noções comuns partilhadas numa socie- séculos, assim como o território. dade. A lembrança deve ser partilhada e valorada pelo grupo, de modo que, uma Itani (2013) ressalta que vez inserida no coletivo, sua imagem se constitua como algo comum, sem ter a festejar passa a integrar também as prá- observância em sua totalidade. Se esses ticas coletivas de resistência, como parte grupos se encontram em constante des- da história e memória de certos povos e locamento, as memórias são carregadas de vários grupos sociais. Mas as festas para outros territórios e esquecidas no não podem ser compreendidas apenas seu território de origem. como repetição no sentido de reprodução de atos das sociedades e gerações ante- A Festa, nesse sentido, evidencia a riores. Verifica-se que cada sociedade dicotomia memória e esquecimento, porque desenvolve suas festas como um ato que traz hoje a memória afro da região pela emerge de suas necessidades e que se origem e culto propagados no território realizam, a cada momento, com funções que outrora era quilombola. Mesmo que em específicas; por isso sempre em transfor- tempo distante, essa marca identitária faz mação. (ITANI, 2003, p. 40) parte da experiência da comunidade local.

As festas representam, igualmente, a Entre dois aspectos significativos para apropriação e A transformação do espaço. compreender a festa, o primeiro deles Hoje, a Festa de Santa Cruz se relaciona seria a capacidade que a festa tem de com a comunidade italiana, haja vista que trazer para a atualidade, desde longín- é o grupo mais recente de ocupação do quas épocas, as experiências culturais

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vivenciadas por determinadas popu- da parte do grupo festivo, que é mais lação; o segundo aspecto refere-se ao ou menos amplo ou complexo. Neste fato de que, mesmo contrariando as componente organizacional, ao lado práticas intencionalmente concebidas do elemento organizativo-comunitário no momento da festa, os usos e costumes entra o quadro de referência ideoló- mais profundos vivenciados pela cotidia- gico anteposto à festa e que, segundo nidade e entranhados no inconsciente o caso, se refere a uma mito de origem afloram, mostrando a verdadeira face ritual ou simbolicamente reatualizado, de um povo, moldado através da cultura. à lenda de fundamentação de um culto, (FERREIRA, 2005, p. 72) à imagem de um santo cristão, a um momento crítico da existência ou a um Ferreira (2005, p. 72) aduz que na evento histórico, social e político, que festa é possível extrair os elementos de deve ser comemorado e re-evocado, para identidades mais significativos de uma renovar o impulso de vencer percalços determinada cultura, bem como entender da cotidianidade através do fenômeno tais aspectos como sistema de comunicação, festivo. (LANTERNARI, 1989, p. 27 apud que possibilita avaliar como o passado e FERREIRA, 2005, p. 71) o presente se articulam no interior dessa cultura e as várias formas de identidades Se até agora foi possível evidenciar que são, ao mesmo tempo, re-significadas, as contradições germinadas nos séculos assumindo novos aspectos. Nessa fala é pos- XVIII e XIX que ressoaram na identidade sível analisar que a transformação da festa cultural local e que repercutiram na ela- é o reflexo da transformação do espaço, das boração do espaço e do patrimônio, a festa territorialidades que produzem o território no século XX e XXI tem novos contornos. pela sua cultura, seja pela identidade negra, Hoje, nos dias de festa, a memória afro da seja pela identidade branca. celebração é retomada devido ao esforço dos pesquisadores locais em divulgar o Assim, a festa, enquanto valor polí- passado quilombola e relacioná-lo com o tico, conserva traços de seu simbolismo patrimônio religioso local. presente na memória coletiva, assinalando as formas de transmissão dos costumes dos A festa também se transformou quanto povos, suas contradições e as formas de à sua dinâmica e organização. Em entrevista resistência. O culto à cruz que inaugura o com Senhor Nilson e Dona Luciana, que são espaço do atual bairro da Vargem Grande se casados e que participam desde pequenos dá numa dinâmica distinta que se verifica dos festejos da região, eles contam que na hoje, os impulsos que perpetuam os festejos década de 1990 reformaram a capela. são essencialmente religiosos, não mais relacionados ao corpo velado inicialmente, Um dia eu fui lá e eu vi que era tudo em ainda que essa memória esteja presente pedaço, caindo os telhado, tudo descas- entre o grupo festivo. cado. Liguei pra mulher, “vamo refor- mar aquilo lá?” Aí tinha um pedreiro Cada festa comporta uma organização aqui que era vizinho, aí ele falou, comunitária e uma regulamentação “vamo”. Aí ele [...] um dia, outro dia,

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fomo lá e reformamo, foi aí que ficou de tornar o Pontal um ponto turístico, aquela beleza. Aí começou o povo olhar colocando-o como destaque na visitação de novo, né? (Sr. Nilson) da cidade de Divinolândia. Há um pro- jeto de lei, sendo trabalhado, que clas- Sr. Nilson relata que a festa se modi- sifica Divinolândia como Município de ficou com o passar dos anos “[...] é no dia Interesse Turístico, cujo documento se três, mas era diferente porque aquele tempo inicia com a descrição do Pontal. tinha... tinha missa, tinha leilão de assado, prenda, né? Que falava”. E complementam: Após visita ao local, em contato com “[...] tinha boteco de bebida. Tá tudo dife- a comunidade, constatou-se a notícia do rente. Agora hoje o dono do terço manda empreendimento turístico como positivo, rezar o terço, rezar a missa e trata do povo, uma vez que valoriza o patrimônio local. tá tudo diferente”. Nesse sentido, já que o projeto está em andamento, há que se ressaltar o cuidado Sobre a dinâmica da festa, o entrevis- na elaboração da proposta, com vista a tado destaca que é “[...] o terço é primeiro, trazer a comunidade para o campo do depois acaba o terço, o padre reza a missa, aí debate, de modo a construir uma gestão o povo vai comer, beber lá um guaraná, um sustentável do patrimônio, de maneira biscoitinho, um sanduichinho, um vinho. a não interferir, de forma destrutiva, no Depois acabou isso, aí vai tudo embora, em local e também no cotidiano das pessoas paz. Ano que vem volta de novo”. que moram nas proximidades. A valori- zação do patrimônio deve passar longe de Hoje, a Festa de Santa Cruz se tor- um tratamento de mercadoria, o qual se nou referência por toda a região. Sr. Nilson modifica a dinâmica do espaço de forma relata: “[...] e depois que começou esse negó- predatória. O patrimônio cultural só existe cio de firmar essas coisas, pegou fama isso porque a identidade cultural local se dá aí, esse lugar aí. Então é um turismo agora pelas pessoas. aí, né [...]” e complementa “[...] virou um turismo agora isso aí. Então vem gente de Novas territorialidades avançam todo lado aí, toda cidade. Tá vindo gente aí à medida que o local se torna referência em seguida pra conhecer o lugar”. regional. Novamente, verifica-se um novo arranjo espacial ocorrendo, nesse momento, A comunidade compartilha com ale- com o deslocamento de inúmeras pessoas gria o sucesso do festejo: “[...] Eu acho lindo, para conhecer o Pontal. acho maravilhoso. Eu acho a coisa impres- sionante, lá naquele lugar no meio do mato, Nesse local específico, objeto de estudo, o povo ir lá fazer festa, né? E tanta gente acompanhando a ideia de movimento no que vai lá”. (Dona Luciana) espaço-tempo, verifica-seas camadas de ocupação que fazem parte do arranjo do Dado o número de visitantes no espaço, levando a ideia de Movimento de local, não só para a celebração, mas tam- Saquet, percebe-se que o presente contém bém durante o ano, há um movimento o passado. Nesse momento, o presente deli- relacionado à gestão pública municipal neia o futuro.

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Considerações finais afro-brasileira local, trazendo para o cen- tro do debate a importância da história da população negra no território. Mais do que Buscou-se, neste trabalho, evidenciar isso, problematiza as inúmeras questões a importância de interpretar o patrimônio sociais inerentes ao período escravocrata cultural de forma crítica. Estudar o local e pós-abolição, que apagou o protagonismo e a história da Festa de Santa Cruz em do negro na história do país, além de refle- Divinolândia é compreender a modelagem tir os efeitos atuais do passado racista para material de grupos detentores de poder, esta população. sertanistas ligados à empresa colonial, no substrato espacial, estabelecendo sobre- Entender a identidade cultural é posições de territorialidades, por meio da compreender a memória e o território política que se estabelece no campo militar como indissociáveis nesse exercício refle- e também religioso, formas de se estabe- xivo e epistemológico. Na elaboração de lecer hierarquias no espaço. Note-se que, um projeto de identidade nacional iniciado aqui, a desterritorialização de quilombolas no Brasil colonial e perseverado nos dias e indígenas no Sertão do Rio Pardo cons- de hoje, verifica-se a presença de grupos tituiu um projeto, um fenômeno de orga- com suas referências simbólicas vívidas nização espacial, por intermédio de uma e o apagamento de outros grupos com territorialidade dominante que controla suas referências simbólicas esquecidas. e provê significado às marcas e limites, Esse processo de atribuir valor a deter- estabelecendo uma identidade coletiva à minada marca identitária se dá por dife- luz da identidade social opressora que se rentes motivações de cunho ideológico, estabelece no Brasil e que deixa suas mar- em grande parte discriminatórias. Cabe cas na cultura, nos patrimônios culturais ao direito enfrentar a discriminação em materiais e imateriais herdados. todas as suas formas, inclusive na esfera cultural, reconhecendo a importância das A festa destaca que a identidade é diferentes identidades culturais. um processo dinâmico sempre em modi- ficação. Isso é claro quando, no local, o A Festa de Santa Cruz traz na sua homem escravizado morto é homena- origem e sua perseverança a resistência da geado por meio da Cruz e, assim, inicia- memória negra, assim como os quilombolas -se um culto à sua memória por aqueles no topo do morro. O direito à memória se que ocupavam a área do Pontal durante faz presente na celebração. o período escravocrata. Com a transfor- mação do arranjo espacial, com a compra O desafio que se impõe, como ressalta das terras pelas famílias italianas, essas Pollak perpetuam o culto. a longo prazo para as memórias clan- A Festa de Santa Cruz evidencia não destinas e inaudíveis é o de sua trans- só a sua importância para comunidade missão intacta até o dia em que elas local como memória coletiva e festividade possam aproveitar uma ocasião para cristã, mas principalmente pela memória invadir o espaço público e passar do “não

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dito” à contestação e à reinvindicação. (POLLAK, 1989, p. 7)

A Festa de Santa Cruz traz em seu bojo a interpretação crítica do patrimônio, para evidenciar a não presença de povos nos territórios, que até hoje lutam para existir. A reinvindicação do direito à igualdade entre todos os povos é impreterível, cujo trata- mento desigual se construiu no passado violento do Brasil.A Festa de Santa Cruz, enquanto patrimônio afro-italiano, evoca o direito à memória no presente debate, mas também e, principalmente, o direito à vida e à terra.

[ MARJORIE P. J. DE FARIA ] Mestre pelo Programa de Planejamento e Gestão do Território Universidade Federal do ABC. Pós- graduada em Gestão de Projetos Culturais pela Universidad Nacional de Córdoba/Argentina e pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (CELACC) da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo/ USP. Graduada em Direito pela Faculdade de Direito da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP). E-mail: [email protected]

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