COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 1 a 155 • jan. - dez. 2008

1 INSTITUTO EDUCACIONAL Editora Executiva PIRACICABANO – IEP léia alves de souZa

Presidente do Conselho Diretor Equipe Técnica vonete avino Wilson RobeRto ZuccheRato Assistente Editorial: i s Auxiliar Administrativa: MaRia nilZa facco PReeg Superintendente da Rede Metodista de Educação Bolsista Atividade: ana Júlia gaiani de santis MaRcio de MoRaes Ficha Catalográfica: Rosangela aPaRecida lobo Revisão de textos em português: MiRian de fátiMa Polla Diretor-Geral Revisão de textos em inglês: Renata c. colasante Clovis Pinto de castRo Gráfica Universidade Metodista de Piracicaba Gráfica Riopedrense Reitor Coordenação: antonio geneRoso Pró-Reitor Administrativo Revisão Gráfica: sonia beRnaRdini Piacentini Pró-Reitor de Graduação e Educação Continuada Editoração Eletrônica: antonio do c. MaRtiMbianco Pró-Reitor de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão clovis Pinto de castRo COMUNICAÇÕES é uma publicação semestral da Editora uniMeP, a qual traz produções acadêmico-científicas Diretora da Faculdade de Ciências Humanas do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de claudia da silva santana Ciências Humanas da Universidade de Piracicaba (uniMeP). Os trabalhos devem ser encaminhados à Comissão Editorial da Coordenadora dos Cursos de Mestrado e Doutorado revista, observadas suas Normas para Publicação. As opiniões em Educação expressas nos artigos são de responsabilidade dos seus autores. MaRia naZaRé da cRuZ Os textos são selecionados por processo anônimo de avaliação por pares (blind peer review). Na última edição de cada ano, é Editora Unimep publicada a relação do seu corpo de referee. Conselho de Política Editorial clovis Pinto de castRo (presidente) COMUNICAÇÕES is a journal published twice a year cláudia Regina cavaglieRi (vice-presidente) by the Editora uniMeP, bringing the academic-scientific belaRMino cesaR guiMaRães da costa production of the Post-Graduate Program in Education of luiZ antonio gRoPPo the Human Sciences College of the Methodist University MaRia luíZa oZoRes PolacoW of Piracicaba (uniMeP). Manuscripts must be submitted to MaRia aPaRecida geRMek the Editorial Board and be in accordance with the Norms of MaRia inês bacellaR MonteiRo Publication. The opinions expressed in the articles are private MiRta gladys leRena ManZo de Misailidis views of their authors. The manuscripts are selected by blind nancy alfieRi nunes peer review. The identity of the referees is published in the last valéRia Rueda elias sPeRs issue of each year. valMiR eduaRdo alcaRde

COMUNICAÇÕES • Ano 15 • n. 1/2 • edição Aceita-se permuta/exchange is desired publicada em abril/2010 COMUNICAÇÕES é indexada por/Comunicações is Comissão Científico-Editorial indexed by: MaRia inês bacellaR MonteiRo (Presidente) CLASE – Citas Latinoamericanas en Ciencias Sociales y cesaR RoMeRo aMaRal vieiRa Humanidades (Universidad Nacional Autónoma de México) MaRia cecília Rafael góes Sociological Abstracts (Cambridge Scientific Abstracts – San MaRia naZaRé da cRuZ Diego – USA)/EDUBASE (FE/UNICAMP). Raquel PeReiRa chainho gandini Correspondência Editorial/Correspondence with the Comitê Científico Publisher claRisse nunes (Universidade Federal Fluminense/RJ) deRMeval saviani (Universidade Estadual de Campinas/SP) Editora uniMeP fRancisco cock fontanella (Universidade Metodista de coMunicações Piracicaba/SP) Rodovia do Açúcar, km 156 – bloco 7 José caRlos Rothen ( Centro Universitário do 13400-911 – Piracicaba/SP Triângulo/Mg) Tel./fax: 55 (19) 3124-1620 José MaRia de Paiva (Universidade Metodista de E-mail: [email protected] Piracicaba/SP) ______licínio c. v. da silva liMa (Universidade do Minho/PT) MaRia angélica P. P iPitone (Universidade de São Paulo/SP) Comunicações. Universidade Metodista de Piracicaba. MaRia cecília caRaReto feRReiRa (Universidade Metodista Faculdade de Ciências Humanas. de Piracicaba/SP) Programa de Pós-Graduação em Educação. angela viana Machado feRnandes (Universidade Estadual – Piracicaba, v.1, n.1, jan./jun. 1994 – Paulista/SP) Ano 15, n. 1/2, jan. / dez. 2008 MaRia suZana Puebla (Universidad Nacional de Rosario/AR) ISSN: 0104-8481 neWton RaMos de oliveiRa (Universidade Estadual Paulista/SP) 1. Educação - Periódicos. I. Universidade neus sanMaRtí (Universitat Autònoma de Barcelo/ES) Metodista de Piracicaba. PeRi Mesquita (Pontifícia Universidade Católica/PR) PieRRi sanchis (Universidade Federal de Minas Gerais/MG) Faculdade de Ciências Humanas. Rosália MaRia RibeiRo de aRagão (Universidade Metodista de São Paulo/SP) CDU: 37 sandRa Riscal (Universidade Federal de São Carlos/SP) ______sílvio gallo (Universidade Estadual de Campinas/SP) valdeMaR sguissaRdi (Universidade Metodista de Piracicaba/SP) 2 EDITORIAL

Hugo foi um autêntico intelectual movido por uma paixão intensa que procurava combinar o rigor teórico com a criatividade no pensar e liberdade para romper com fronteiras artificiais das ciências que bloqueiam a sensibilidade solidária e a compreensão dos fenômenos complexos da vida e da sociedade. Alguém que assumiu a sua vocação intelectual como expressão de seu compromisso com a causa dos pobres e oprimidos e procurou viver a “fraternura” nas relações humanas.

Da minha relação de mais de vinte anos com Hugo uma recordação merece ser compartilhada aqui. Anos atrás, ele me ligou e no meio da conversa disse com muita seriedade, quase como um desabafo pessoal, “Jung, não podemos jamais perder a coragem de dizer a verdade”. Essa coragem e sua honestidade intelectual lhe fizeram ser muitas vezes mal-entendido ou mal- visto por companheiros e companheiras da mesma causa. Mas, também foi motivo para encantar e encorajar muitas pessoas que aprenderam, conviveram e/ou lutaram ao seu lado, nos mais diversos cantos dessa América Latina e do mundo.

Ele nos deixou um legado que precisa ser explorado, aprofundado e enriquecido com novas reflexões e pesquisas. Para isso, precisamos superar um tipo de complexo de inferioridade intelectual que abate sobre uma parcela significativa do mundo acadêmico latino-americano, o qual sempre está olhando para o que os teóricos do Norte disseram ou dizem, sem perceber a riqueza teórica produzida nestas terras que, há muito, deixaram de ser colônias. A geopolítica do conhecimento colonialista internalizado em muitos de nós e nas nossas instituições acadêmicas precisa ser superada, descolonizada.

Nessa tarefa, estudar autores como Hugo Assmann é um passo fundamental, pois, na medida em que descobrimos ou redescobrimos “pérolas” produzidas por autores da “nossa terra e da nossa gente”, que pensaram os nossos problemas e as soluções adequadas para as nossas condições, sem desprezar as contribuições que vêm de outros lugares, iremos, aos poucos, superar essa colonização cultural e epistemológica da qual ainda sofremos.

Este número da revista começa com uma entrevista dada por sua companheira, Melsene Ludwig (conhecida como Mel). Ela nos fala do percurso de vida dele, da Teologia da Libertação à educação para a sensibilidade solidária. Depois, seguem quatro artigos que abordam diversos aspectos do pensamento de Hugo Assmann. Roque Strieder escreve sobre a contribuição

3 de Hugo na sua formação e reconstrução da visão de mundo, de ser humano e de educação, com destaque à superação dos ranços do negativismo de muitos ambientes educacionais. Cesar Romero Amaral Vieira aborda a crise do paradigma cartesiano-newtoniano e as possibilidades da aquisição do conhecimento e os desdobramentos para as práxis pedagógicas. Clézio José dos Santos Gonçalves contribui com reflexões sobre Hugo Assmann, como pesquisador na área de educação, especialmente na área de epistemologia, e como professor singular por causa da sua profunda experiência internacional em diferentes realidades. Lúcia Maria Blois Viellela analisa o potencial pedagógico de alguns conceitos científicos emergentes.

Por fim, dois textos de Hugo Assmann. Um que discute até que ponto os PCNs contêm uma visão inovadora com respeito ao que se deve entender por experiências significativas de aprendizagem, e outro que analisa a teoria das inteligências múltiplas de Howard Gardner.

De minha parte, sinto-me honrado por ter sido convidado pela Comissão Editorial para escrever o editorial deste número. Uma boa leitura! JUng mo SUng1

¹Professor de Pós-Graduação em Ciências da Religião na Universidade Metodista de São Paulo. É autor de títulos em parceria com Hugo Assmann, dentre os quais: Competência e sensibilidade solidária: educar para esperança e Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário aos pobres (no prelo).

4 Sumário/Contents

7 EDUCAÇÃO E ENCANTAMENTO Education and Enchantment fRancisco cock fontanella (Universidade Metodista de Piracicaba/SP)

11 HUGO ASSMANN: DA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO À EDUCAÇÃO PARA A SENSIBILIDADE Hugo Assmann: from liberation theology to education for sensibility bRuno Pucci (Universidade Metodista de Piracicaba/SP), cleiton de oliveiRa (Universidade Metodista de Piracicaba/SP) & chRistine betty (Universidade de Fortaleza/CE)

39 HUGO ASSMANN E REFLEXÕES SOBRE SER HUMANO, EDUCAÇÃO E APRENDIZAGEM Hugo Assmann’s Contribuitions to the Reflexions on Human Being, Education and Learning Roque stRiedeR (Universidade do Oeste de Santa Catarina/SC)

57 ANTIGAS E NOVAS METÁFORAS SOBRE O CONHECIMENTO Old and New Metaphors for Knowledge cesaR RoMeRo aMaRal vieiRa (Universidade Metodista de Piracicaba/SP)

73 HUGO ASSMANN: UM IPHONE FORA DE ÉPOCA Hugo Assmann: an iphone out of his time cléZio José dos santos gonçalves (Universidade Federal do /RS) & benno beckeR JúnioR (Universidade Luterana do Brasil/RS)

99 O POTENCIAL PEDAGÓGICO DE CONCEITOS CIENTÍFICOS EMERGENTES The Pedagogical Potencial of Emerging Scientific Concepts lúcia MaRia blois villela (Centro Federal de Educação Tecnológica de Pelotas/RS) hugo assMann (Universidade Metodista de Piracicaba)

125 OS PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS VERSÃO 1996. Resumo expositivo-crítico da proposta pedagógica contida no documento introdutório The National Curriculum Standards/version 1996 Critical abstract of the pedagogical proposal of she introductory document hugo assMann (Universidade Metodista de Piracicaba/SP)

139 BREVES ANOTAÇÕES SOBRE A TEORIA DAS INTELIGÊNCIAS MÚLTIPLAS DE HOWARD GARDNER Brief Notes on Howard Gardner’s Multiple Intelligences Theory hugo assMann (Universidade Metodista de Piracicaba/SP)

147 normaS para pUblicação Editorial Norms

155 noSSoS conSUltoreS Our Consultants 5 6 Homenagem Homage

EDUCAÇÃO E ENCANTAMENTO Education and Enchantment

FranciSco cock Fontanella Universidade Metodista de Piracicaba/SP

Ele está plagiando o Hugo, dirão os leitores. Estou mesmo. E não escondo, nem disso me envergonho. Aprendi muito com ele. Ouso proferir a respeito dele: Goza de ampla e imorredoura memória! Hugo Assmann! Quanta dedicação, quanto entusiasmo na tarefa pedagógica. Exigente? Sim. Ele o era. Em primeiro lugar, consigo mesmo. Em 2004, a Editora Vozes trazia: “Autor de mais de vinte livros, alguns com traduções para vários idiomas”. Apraz-me mencionar: Metáforas novas para reencantar a educação: epistemologia e didática e Reencantar a educação: rumo à sociedade aprendente, esta última com . Considerava ele a educação como um encantamento? Coisa de contos de fadas? Não creio. Em vez da antiga e curiosa definição latina de metáfora (metaphora = de re propria ad rem non propriam usurpata translatio = translação usurpada de algo próprio para algo não próprio), vou me utilizar do Houaiss: “designação de um objeto ou qualidade mediante uma palavra que designa outro objeto ou qualidade que tem com o primeiro uma relação de semelhança”; e do Caldas Aulete: “tropo; tropo pelo qual se dá a uma pessoa ou coisa uma qualidade que ela não tem e que só por analogia se pode admitir.” Segundo Hugo, a educação pode ter seu encanto. Apraz-me citar : “Assim ele se situa na melhor tradição humanística na qual se inscrevem modernamente nomes como o de Einstein, de Prigogine, de Carl Sagan e de outros”. E ainda: “E tudo vem escrito com leveza e prazerosidade como quem encanta e fatalmente seduz”. E eu repito: encanta e seduz! O ser humano se formou evolutivamente. Herdou instintos, que estão inscritos em sua carne, em seu sangue, em seu cérebro. Mas a evolução não aconteceu apenas biologicamente. Do ponto de vista biológico, ela foi e continua sendo maravilhosa. Imagine-se a cabecinha do louva-deus! Ela tem 18.004 olhos! É de parar o fôlego! O tubarão percebe a presa a quarenta quilômetros debaixo d’água! É fantástico! E quantas coisas mais! Mas a invenção de culturas propriamente humanas foi algo deslumbrante! Aqui, talvez caiba o termo encantamento. Aqui, as maravilhas acontecem com maior freqüência e são muito mais admiráveis. O ser humano já chegou à Lua, já mandou naves não tripuladas a Júpiter. Já decifrou o

COMUNICAÇÕES • Piracicaba •Ano 15 • n. 1/2 • p. 7 - 10 • jan. - dez. 2008 7 átomo e inventou as bombas mais terríficas imagináveis. Domina os ares e as profundezas. Compõe remédios preciosíssimos, realiza operações até mesmo nos cérebros. E os celulares pelo mundo afora?! E a expressão máquinas inteligentes era cara ao Hugo. Cito trecho da obra Reencantar a educação: “Há que manter, portanto, uma distinção entre sistemas cognitivos compostos de agentes primordialmente humanos, primordialmente artificiais e sistemas mistos”. (ASSMANN, 1998, p. 168). As maravilhas são incontáveis e não cessam de acontecer. Mas nada disso teria acontecido sem a educação. Isto é: a educação é fundamental e não é tarefa individual. Por isso ocorre no subtítulo: rumo à sociedade aprendente. Educar é uma tarefa tão básica como nutrir. Aliás, é uma tarefa mais longa e mais difícil que nutrir, penso eu. Mesmo depois que os seres humanos aprenderam a se nutrir, a buscarem o próprio sustento, muitos, muitíssimos deles precisam ainda de educação. Essa tarefa tão fundamental talvez só se complete com a morte. É tarefa da vida inteira. Mais: é tarefa sem fim. Sei, entretanto, que muitos povos se julgaram superiores devido à sua pretensa cultura superior (ou talvez à superioridade da sua pele branca!?!). Em nome dela, quanta barbaridade! Cito apenas três obras: A assustadora história da maldade, de Oliver Thomson (Ed. Prestígio), Holocaustos coloniais, de Mike Davis (Ed. Record) e Gulag de Anne Applebaum (Ediouro). Holocaustos coloniais! Nosso bem-estar é herdeiro deles. E os autores não contaram tudo, pois é impossível. Reencantar a educação! Pela educação se faz, se aperfeiçoa o humano. Já houve desvios? Muitos, graves e gravíssimos. Alguém já escreveu (apraz-me repetir): “Para quando o humano for humano [...].” Entendemos cultura como a superação da simples animalidade. E hoje, parece, a humanidade se sente uma única, apesar das raças e cores Sei que, em muitos ambientes, isso ainda é ficção e, em outros, é hipocrisia. Mas essa pode ser uma das faces do encantamento. Desde pequeno, ouvi a expressão: Aprender a ser gente! E Hugo entendia isso, ensinava isso. Em 2008 estão acontecendo as Olimpíadas. Quanta disciplina! Que bonito! A meta é superar, imitar, disputar, ser melhor. Mas, do ponto de vista huguiano, a meta é, creio – interpretando meu saudoso amigo –, não desprezar. Empenhar-se, tentar, desfrutar, encantar-se: curtir o humano entre os humanos. Sem ódio, sem racismos. Con-viver humanamente no encantamento do aprendizado. Educar não é produzir encantos, mas produzir humanidade, humanidade que sempre tenta se superar. Os humanos inventaram (descobriram?) a ciência. Infelizmente, usaram-na para a dominação e para fazer o mal. Isso parecia aos antigos um verdadeiro encantamento. Tanto que era distintivo de uma deusa: a Deusa da Sabedoria. Curiosamente, a sabedoria era característica de uma mulher: Atenas (a Minerva romana). Já a força, o domínio sobre os outros era atributo de um masculino: Marte, o deus da guerra. Sem falarmos em Hércules – o humano semideus, que separou a África da Europa. Aliás, Europa foi a moça

8 COMUNICAÇÕES • Piracicaba •Ano 15 • n. 1/2 • p. 7 - 10 • jan. - dez. 2008 raptada por Zeus – o deus dos deuses, disfarçado de touro?! Ridículo? Mas se houve até o touro de Minos, o Minotauro. Hierarquia entre os deuses! Nada mais natural que houvesse hierarquia entre os humanos. Os que ficam por baixo... Azar!? Destino? Ou simplesmente maldade humana? Hugo ficaria com esta última hipótese, creio eu. Não foi à toa que Nietzsche escreveu: Humano, demasiado humano. Mas os modernos, brancos, começaram a descobrir, a criar a ciência moderna, em moldes puramente racionais, a exemplo das matemáticas. Nada de encantos. Os mistérios foram caindo. O poder humano baseado na racionalidade, na ciência foi aumentando. As maiores guerras foram possíveis graças ao saber científico. E, acrescento, a ambição guerreira cultivou, incentivou, financiou o conhecimento científico para aumentar o poder de destruição, de dominação. A ciência – tão bonita, tão útil – ficou serva, em primeiro lugar, da ânsia insana de dominação, da crueldade, da sevícia. Lembremo-nos dos jogos nos circos romanos. Secundariamente pôde servir a outros fins, mais humanos, mais inocentes... Encantamento? Na minha humilde ignorância não sei dizer se a ciência serviu mais à humanidade ou à ânsia de poder e de dominação- opressão de alguns. Na Bíblia, lemos que a mulher foi seduzida pela serpente do mal, porque esta lhe ofertou a sabedoria, caso comesse do fruto proibido. Até parece que algum homem quis atribuir a culpa de todos os males à mulher. Encantamento? É que a mulher demorou muito tempo para aprender a ler e a escrever... Só os homens tinham voz e voto... Só alguns... E o saber se tornou arma, poder, precioso instrumento de destruição e domínio. Há solução? O Grande Hugo apontava a educação. É claro que a educação por ele imaginada ia muito além das boas maneiras. Segundo ele, pela educação se forma, se conforma, se supera o humano. Educar é transmitir saberes, valores, normas, crenças, experiências? E-dúcere! Conduzir de! De onde para onde? Do quê para quê? Da ignorância para o saber? Ou para a sabedoria? O que é isso “sabedoria”? O saber não é inocente, não é inócuo, infelizmente. Para ser sábio não é necessário “saber” ler. Mas o Hugo era otimista dos avanços científicos e técnicos. Apraz-me citar: “Aos poucos nos vamos acostumando a pensar em forma de rede, mais coerentes com a teia da vida. Com tantos novos conceitos emergentes, que têm tudo a ver com a visão renovada da pedagogia, [...].” (ASSMANN, 1998, p. 173) Pedagogia! Condução da criança! Pedagogo = condutor da criança. Condução positiva, sem maldade? Antes fosse! Encantamento? A criança se encanta quando aprende. Bem lembrava o Hugo que o saber tem sabor; melhor: saber e sabor se identificam (pelo menos têm a mesma origem). Os eruditos dizem: Esta iguaria sabe a... Educação! Que pareça encantamento; que seja encantamento e não suplício. Lembro-me de um ditado espanhol muito antigo: La letra con el mazo entra. Que dureza...! Que contraste com a pedagogia huguiana. Cabe lembrar: Hugo com

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 7 - 10 • jan. - dez. 2008 9 os Teólogos da Libertação! Libertação, liberdade, humanidade: era isso que nosso amigo buscava. Sua herança e exemplo são imorredouros. Educar é preciso! Viver é preciso! Viver também é preciso! Educar também é preciso!

Dados do Autor FranciSco cock Fontanella Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Metodista de Piracicaba/SP.

10 COMUNICAÇÕES • Piracicaba •Ano 15 • n. 1/2 • p. 7 - 10 • jan. - dez. 2008 HUGO ASSMANN: DA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO À EDUCAÇÃO PARA A SENSIBILIDADE Hugo Assmann: from liberation theology to education for sensibility

brUno pUcci Universidade Metodista de Piracicaba/SP [email protected]

cleiton de oliveira Universidade Metodista de Piracicaba/SP [email protected]

chriStine betty Universidade de Fortaleza/CE [email protected]

Um poUco de SUa vida

Hugo Assmann nasceu em Venâncio Aires/RS, aos 22 de julho de 1933. Estudou Filosofia no Seminário Central de São Leopoldo/RS (1951- 1954) e Teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, dos Jesuítas (1954-1958). Ordenou-se padre, em 1958, em Roma. No ano letivo 1959/1960, realizou estudos de pós-graduação em Sociologia na Universität Johann Wolfgang Goethe, em Frankfurt am Main, Alemanha. Realizou, a seguir, seus estudos e pesquisas de doutorado em Teologia, obtendo o título de Doutor, em 1961, pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, com a tese “A dimensão social do pecado”. Seu orientador foi o jesuíta Joseph Fuchs, um dos teólogos influentes na renovação da Teologia Moral no contexto do Concílio Vaticano II (1962-1965). De volta ao Brasil, estabeleceu-se em /RS, onde foi vigário da Paróquia de Nossa Senhora do Mont Serrat e professor de teologia no Seminário de Viamão. Assmann foi um dos precursores da Teologia da Libertação. Num primeiro momento, sua reflexão se realizou na linha de uma Teologia do Desenvolvimento. Sobre essa temática, a partir de 1961, publicou artigos marcantes na Revista Seminário, que depois passou a se chamar Ponto Homem. Em 1968, publicou na Revista Vozes, n. 62, o artigo “Tarefa e Limitações de uma Teologia do Desenvolvimento”. Num segundo momento, sua reflexão avançou para uma Teologia da Revolução: seu livro Opressão-Liberação. Desafio aos cristãos, publicado no Uruguai, em 1971, aponta essa direção. Na Revista Ponto Homem, n. 4, de 1968, publicou o artigo “Caracterização de uma Teologia da Revolução”. Bettencourt (1984), no texto “Teologia da Libertação III”, afirmou que: “A mais extremada linha da Teologia da Libertação tem como

COMUNICAÇÕES • Piracicaba •Ano 15 • n. 1/2 • p. 11 - 38 • jan. - dez. 2008 11 representante mais significativo o brasileiro Hugo Assmann; inspira o movimento ‘Cristãos para o Socialismo’”. Num terceiro movimento, suas reflexões desembocaram na Teologia da Libertação. Hugo, na visão de Tamayo1 (2008), “é um dos primeiros teólogos da libertação que recorreu às ciências sociais como mediação do discurso teológico para que este não caísse no idealismo”. A partir do golpe de 1964, suas tensões com o conservador Dom Vicente Scherer, arcebispo de Porto Alegre, aumentaram significativamente; Hugo resolveu deixar a capital gaúcha, foi morar em São Paulo e começou a lecionar no Instituto de Filosofia e Teologia (IFT), no Ipiranga. Continuou seus estudos e publicações teológicas e viajou por diversos Estados brasileiros, fazendo palestras e desenvolvendo cursos sobre a Teologia Latino-Americana. Hugo participou também da Conferência Episcopal Latino-Americana de Medellín, como teólogo assessor dos bispos brasileiros, em agosto/setembro de 1968. Medellín foi um marco na igreja latino-americana, pós Vaticano II. Teve o apoio e a participação de Paulo VI na abertura da Conferência. Os três temas fundamentais que permearam os documentos de Medellín foram: Opção pelos Pobres; Teologia da Libertação; Comunidades Eclesiais de Base. Em dezembro de 1968, com o Ato Institucional n. 5 e o conseqüente endurecimento do regime militar, Hugo resolveu deixar o país e, inicialmente, buscou refúgio na Alemanha. Já havia recebido convite dos teólogos católicos alemães Karl Rahner e Johann Baptist Metz para escrever um artigo sobre Teologia Política. Ele escreveu o artigo em Munique e depois, pela mediação de Metz, lecionou a disciplina “Teologia Latino-Americana” na Universität de Münster, no ano letivo 1969/1970. Foi em Munique que Hugo conheceu o grande amor de sua vida, Melsene Ludwig (Mel), gaúcha de Porto Alegre, que nesse período trabalhava em Munique na British European Airways, transferindo-se depois para Münster, para exercer um cargo na “Secretaria do Trabalho” daquele município. Mel e Hugo nunca mais se separaram. Durante 39 anos viveram juntos, trabalharam juntos, tiveram dois filhos e combateram juntos o bom combate da vida. Em 1970, convidado por um amigo jesuíta, Hugo refugiou-se no Uruguai, trabalhou como pesquisador no Centro Pedro Fabro e como professor, tempo parcial 20 horas, na Universidad de La República de Montevideo, lecionando a disciplina “Ética social”, para o curso de Pedagogia da Faculdade de Educação. Mel permaneceu na Alemanha. No fim desse ano, convidado pelos padres Oblatos, transferiu-se para Oruro, Bolívia, e trabalhou como teólogo e investigador, no Instituto de Pesquisa, financiado com verbas canadenses. Com o golpe de Hugo Banzer, na Bolívia, em agosto de 1971, foi obrigado a deixar Oruro e fugiu para o Chile, em plena época do governo do socialista Allende, para trabalhar com os jesuítas e na Igreja e Sociedade na América Latina (ISAL) – instituto ecumênico financiado pelo Conselho Mundial das Igrejas. Assmann publicou o

1Juan José Tamayo é teólogo espanhol, doutor em teologia pela Universidade de Salamanca, é diretor da cátedra de Teologia e Ciências das Religiões “Ignácio Ellacuría” da Universidade Carlos III.

12 COMUNICAÇÕES • Piracicaba •Ano 15 • n. 1/2 • p. 11 - 38 • jan. - dez. 2008 livro Opressión-Liberación. Desafios a los cristianos2, em Montevideo, ainda em 1971 De lá, ele enviou um telegrama à Mel: “Estou no Chile: venha”. E ela chegou no fim de novembro/71 e trabalhou com Hugo no ISAL. Ele também lecionou, por dois anos (1972/1973), a disciplina “Comunicação Social”, na Universidade Católica do Chile, 20 horas semanais. No Chile, ajudou na criação do Centro de Estúdios de La Realidad Nacional (CEREN), ligado à Universidade Católica, que publicava Cuadernos de La Realidad Nacional. Lá também conheceu Franz Hinkelammert e Pablo Richard, os quais, depois, trabalharam juntos no Departamento Ecumênico de Investigaciones (DEI), em Costa Rica. Hugo e Mel permaneceram no Chile até pouco depois do fatídico golpe de Pinochet, em 11 de setembro de 1973. No Chile, nos deparamos com Hugo plenamente atuante na Teologia da Libertação. Data de 1973 o seu livro Teologia desde la práxis de la liberacion, considerado por Enrique Dussel como a primeira demarcação da Teologia da Libertação3. É desse período também a elaboração da introdução da importante obra Sobre la religión, de Karl Marx e Friedrich Engels, escrita em parceria com Reyes Mate, e publicada posteriormente, em 1979. Participou, como assessor teológico do movimento “cristãos para o socialismo”. No final do exílio do casal Assmann nasceu, em Santiago, a filha Careimi. Felicidade e tensão, ao mesmo tempo, pois o nascimento da menina se deu três semanas após o golpe de Pinochet, e logo depois, em janeiro de 1974, foram obrigados a deixar o Chile, partindo para São José da Costa Rica, passando pelo Peru. Permaneceram na Costa Rica durante sete anos. Hugo lecionou Comunicação na Universidad de Costa Rica e Sociologia na Universidad Nacional, em Heredia, município vizinho da capital, de 1974 a 1980. Ao mesmo tempo, participou com Mel e outros teólogos latino-americanos da fundação do Departamento Ecumênico de Investigaciones (DEI), financiado inicialmente pelo Conselho Mundial das Igrejas, centro por excelência de formação pastoral e teológica para cristãos vindos de diversos países da América Latina. Pelo DEI passaram pessoas importantes: o poeta nicaraguense Ernesto Cardenal, o arcebispo Oscar Romero, de El Salvador, o ministro Sérgio Ramires, do comando sandinista, o teólogo da libertação Gustavo Gutierrez, o filósofo da libertação Enrique Dussel. Hugo e Mel tiveram o prazer de hospedar em sua casa, dentre outros, Lula, frei Betto, Paulo Freire e Hélio Bicudo. Assmann, além de suas atividades específicas como professor nas duas universidades e seus cursos no DEI, viajou várias vezes a Cuba, a Manágua, ao México, aos Estados Unidos e à Europa, dando cursos e conferências sobre suas pesquisas teológicas. Porém, antes de

2“Ensayo teológico desde la América dependiente [...]”, no qual oferece os aspectos metodológicos e sociopolíticos da Teologia da Libertação em relação à práxis revolucionária. 3 Segundo Jung Mo Sung, a parte fundamental desse livro publicado no Uruguai pela ISAL, um pouco antes do livro de Gustavo Gutierrez, Teologia da Libertação (1972), a qual Dussel diz ser a primeira demarcação da Teologia da Libertação frente a outras teologias políticas, é de 1971. Depois essa parte foi incorporada ao livro de 1973.

COMUNICAÇÕES • Piracicaba •Ano 15 • n. 1/2 • p. 11 - 38 • jan. - dez. 2008 13 iniciar a sua incursão teórica pelos meandros religiosos do mercado, publicou, em 1978 em co-autoria com Theotônio dos Santos, Noam Chomsky, Franz Hinkelamert e outros intelectuais o livro Carter y la lógica del Imperialismo, em dois volumes, sendo traduzido em várias línguas e publicado, em 1986, com o nome A trilateral. A nova fase do capitalismo mundial. Ajudou a fundar, em agosto de 1976, a Associação Ecumênica de Teólogos do Terceiro Mundo (EATWOT). E, continuou a levar adiante a importante e inovadora reflexão teológica sobre a Economia e, em parceria com Franz Hinkelammert, ex-seminarista e economista, escreveu, em 1989, a importante obra A idolatria do mercado: um ensaio sobre economia e teologia. Relacionado a essa temática, Hugo publicou outras obras: Clamor dos pobres e racionalidade econômica, em 1990, e Crítica à lógica da exclusão: ensaios sobre economia e teologia, em 1994. Em 1975, nasceu Eremin, o segundo filho do casal Assmann. É de autoria do teólogo a pertinente reflexão que caracterizava bem a densidade e o engajamento de sua teologia:

Se a situação histórica de dependência e dominação de dois terços da humanidade, com seus 30 milhões anuais de mortos de fome e desnutrição, não se converte no ponto de partida de qualquer teologia cristã hoje, mesmo nos países ricos e dominadores, a teologia não poderá situar e concretizar historicamente seus temas fundamentais. Suas perguntas não serão perguntas reais. Passarão ao lado do homem real. (ASSMANN, 1973, p.17)

Em 1981, a convite do professor Elias Boaventura, então reitor da Universidade Metodista de Piracicaba (uniMeP), Hugo e Mel voltaram ao Brasil – a anistia tinha se dado pouco tempo antes – e iniciaram seu trabalho nessa instituição: ele como professor de Sociologia e Comunicação e ela em atividades de secretaria. O casal participou da criação da Editora da uniMeP, no início de 1981, sendo Hugo seu primeiro editor. Entre as primeiras obras editadas, estão o livro de Enrique Dussel A Filosofia da Libertação (em co- edição com a Editora Loyola), em 1982, e a tese de doutorado de Bruno Pucci, A Nova Práxis Educacional da Igreja: 1968-1979 (em co-edição com a Edições Paulinas), em 1984. Hugo fez parte também do Conselho de Política Editorial da uniMeP, responsável pela criação da Impulso, em 1987, revista que surgia para apoiar a constituição da pós-graduação na uniMeP, estabelecendo espaço editorial para o debate das questões que norteavam, naquele momento, a área de Educação. Asmann iniciou suas atividades no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da uniMeP, ainda em 1981, participando, em dezembro desse mesmo ano, da banca de defesa da 12ª dissertação desse programa, a qual foi defendida por Antônio Geraldo de Aguiar. Orientou 43 dissertações de mestrado e 11 teses de doutorado. Sua primeira orientanda de mestrado foi Jane de Oliveira, que iniciou o curso em março de 1983 e defendeu sua dissertação

14 COMUNICAÇÕES • Piracicaba •Ano 15 • n. 1/2 • p. 11 - 38 • jan. - dez. 2008 em novembro de 1985. Seu primeiro orientando de doutorado foi Laerthe de Moraes Abreu Junior, que iniciou o curso em março de 1993 e defendeu sua tese em novembro de 1995. Assmann foi também o primeiro professor da uniMeP a orientar estudos de pós-doutorado, tendo como orientando Jung Mo Sung, o qual apresentou seu trabalho no fim de 1999. Do diálogo entre orientador e orientando desse pós-doutorado, foi construído, em 2000, o livro Competência e Sensibilidade Solidária: educar para a esperança. Nas décadas de 1980 e 1990, até 1994, predominaram, nas publicações de Hugo, artigos, livros e capítulos de livros sobre questões relacionadas à teologia. A partir de 1994, já mais integrado nas atividades da pós-graduação em Educação, Hugo produziu textos sobre os paradigmas educacionais e a questão da corporeidade. A partir de 1997, suas pesquisas foram direcionadas prioritariamente para questões educacionais no interior da Sociedade do Conhecimento, as quais o acompanharam até o fim de 2005, quando encerrou suas atividades no PPGE, por problemas de saúde. Hugo, nos últimos dez anos de sua produção científica, se utilizou constantemente das contribuições de Edgar Morin e de sua teoria da complexidade. Sua publicação mais importante no terreno da comunicação foi A Igreja electrônica e seu impacto na América Latina, em 1986, em que analisou o caráter ideológico dos programas radiofônicos e televisivos controlados pelos tele-pregadores norte-americanos e suas repercussões nos movimentos pentecostais latino-americanos. Os livros educacionais de Hugo mais conhecidos são: Paradigmas Educacionais e Corporeidade; Metáforas Novas para Reencantar a Educação: epistemologia e didática; Reencantar e Educação: rumo à sociedade aprendente. Este último, com o título Placer y Ternura en la Educación - Hacia una sociedad aprendiente, foi publicado na Espanha, em 2002; além de Competência e Sensibilidade solidária: Educar para a Esperança, em co-autoria com Jung Mo Sung; Curiosidade e Prazer de Aprender: o papel da curiosidade na aprendizagem criativa; Redes digitais e metamorfoses do aprender, em co-autoria com Rosana Pereira Lopes, Rosemeire Carvalho do Amaral Delcin, Gilberto Canto e Getúlio de Souza Nunes. Enquanto gozava de boa saúde, de 1998 a 2003, fez diversas conferências sobre educação, sobretudo nos Estados do Sul, com a presença de um número significativo de ouvintes. Segundo Almir Maia, ex-Reitor da uniMeP:

Hugo, considerado intelectual à frente de seu tempo, era referência internacional na área da teologia e educação e um dos acadêmicos do mais alto nível [...] foi referência para a instituição, pelo seu desenvolvimento acadêmico e científico na área da Educação [...] Hugo trouxe prestígio à UNIMEP, que começava a se afirmar na área acadêmica. (MAIA, 2008).

Hugo Assmann faleceu em uma sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008, às 4 horas, em São Paulo, no hospital onde estava internado. Segundo Jung, “seu rim já não estava mais funcionando, os pulmões estavam comprometidos. Ele pediu

COMUNICAÇÕES • Piracicaba •Ano 15 • n. 1/2 • p. 11 - 38 • jan. - dez. 2008 15 um copo de água para a enfermeira; quando ela voltou com a água, ele já não estava mais entre nós”. Nas palavras de Grossi (2008), ex-deputada federal pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e paroquiana sua em Mont Serrat, Porto Alegre, “A personalidade do Hugo era muito rica, e penso que o certo é que diante da presença dele ninguém ficava indiferente: ou se ficava a favor ou se ficava contra”. De acordo com Cecchin (2008), ex-diretor do colégio Marista de São Leopoldo, assessor da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB):

Hugo Assmann foi um autor que marcou a vida acadêmica dos anos 1960 a 1980, especialmente os que eram da área de Filosofia e Teologia. Agudo, sempre antenado com as grandes questões destas décadas, os seus livros eram disputados, pois era difícil consegui-los no auge das ditaduras militares. Era preciso consegui-los na Espanha, onde a Editora Sígueme os editava.

prodUção cientíFica

José Carlos Veloso Júnior (2008) divide as obras de Hugo Assmann em três fases: teológica, crítica e teológica à economia e pedagógica.

Teológica

• Tarefa e limitações de uma teologia do desenvolvimento. Petrópolis: Vozes; 1968. • Teología de la liberación. Montevideo: Jeci; 1970. • La situazione dei paesi sottosviluppati come campo per una teologia della rivoluzione. In: SHAULL, R.; LOTZ, M; GOLLWITZER, H. (Org.). Dibattito sulla teologia della rivoluzione. Brescia: Queriniana; 1971. p. 204-239. • Opresión-liberación: desafío de los cristianos. Montevideo: Tierra Nueva; 1971. • Teología desde la praxis de la liberación. Salamanca: Sígueme; 1973. • Teología de la liberación. Salamanca: Sígueme; 1974. • Marx e Engels: Sobre la religión. Salamanca: Sígueme; 1979.

Crítica Teológica à Economia

• A trilateral nova fase do capitalismo mundial. Petrópolis: Vozes; 1986. • A idolatria do mercado. Um ensaio sobre economia e teologia. Petrópolis: Vozes; 1989. • Clamor dos pobres e “racionalidade” econômica. São Paulo: Paulus; 1990. • Desafios e falácias. Ensaios sobre a conjuntura atual. São Paulo: Paulinas; 1991. • Crítica à lógica da exclusão. Ensaios sobre economia e teologia. São Paulo: Paulus; 1994.

16 COMUNICAÇÕES • Piracicaba •Ano 15 • n. 1/2 • p. 11 - 38 • jan. - dez. 2008 Pedagógica

• Paradigmas educacionais e corporeidade. Piracicaba: uniMeP; 1994. • Metáforas novas para reencantar a educação: epistemologia e didática. Piracicaba: uniMeP; 1996. • Reencantar a educação: rumo à sociedade aprendente. Petrópolis: Vozes; 2003. • Competência e sensibilidade solidária: educar para a esperança. Petrópolis: Vozes; 2000. • Redes digitais e metamorfoses do aprender. Petrópolis: Vozes; 2005. • Curiosidade e prazer de aprender. O papel da curiosidade na aprendizagem criativa. Petrópolis: Vozes; 2004.

entreviSta com melSene lUdwig em 6/11/2008 cleiton: Mel, obrigado por você ter aceitado o convite para conversarmos sobre o Hugo. Queremos conhecer um pouco mais nosso companheiro de trabalho, que nos deixou em fevereiro último, mas cuja presença e lembrança permanecem entre nós, professores e alunos do PPGE/Unimep. Vamos falar inicialmente sobre sua infância e sobre seu período de formação? melSene: Não existe mais nada escrito sobre seu tempo de formação; inclusive o diploma de doutorado dele, tudo foi perdido num incêndio que queimou a casinha em que morava, em Porto Alegre. Então, essas coisas não existem mais. A infância dele foi no interior de Venâncio Aires. Nós até visitamos a cidade antes dele ter o AVC. Fomos, de carro, a Santa Cruz do Sul, depois a Venâncio Aires, mas foi entre Santa Cruz do Sul e Venâncio, lá no meio, numa estradinha de terra, onde ele foi criado e passou a infância. O pai dele era professor numa escolinha. Depois, Hugo foi enviado para o seminário e aí começou a estudar. brUno: Quantos anos ele tinha quando entrou no seminário? melSene: Doze anos. Um pouco mais tarde do que normalmente as crianças entravam. Depois, ele estudou em São Leopoldo, e mais tarde foi enviado para Roma. Inclusive, eu tenho uma foto dele junto dos que foram para Roma com ele, todo o grupo. Isso, eu tenho na Internet; vou enviar a foto a vocês. Hugo se ordenou padre em Roma. brUno: Ele era secular ou pertencia a alguma congregação religiosa? melSene: Ele era do clero secular. E o bispo dele era o famoso Dom Vicente Scherer. Ele fez o doutorado em Roma e o seu orientador era um jesuíta, Joseph Fuchs. Na última vez em que fomos à Europa fomos visitá-lo. Ele ficou emocionadíssimo com a visita. brUno: Em que ano? melSene: Acho que foi em 1994. Já faz bastante tempo. Ele estava bem velhinho, aposentado, mas ainda estava em Roma e meio desgostoso, porque

COMUNICAÇÕES • Piracicaba •Ano 15 • n. 1/2 • p. 11 - 38 • jan. - dez. 2008 17 queriam mandá-lo para a Alemanha, para o pensionato dos idosos e ele não se sentia pronto para isso; ele estava ainda muito bem. Sei que conversamos por horas, e ele ficou muito entusiasmado e me acolheu, também, com um carinho muito grande. Ele era alemão. Inclusive o Hugo fez a sua tese de doutorado em alemão. cleiton: E o alemão, ele aprendeu na infância, com a família? melSene: Sim, ele já falava alemão no Brasil, então aperfeiçoou o idioma. Depois, realizou estudos em Frankfurt – fez mestrado em Comunicação. brUno: Ele foi aluno do Habermas. Você sabe se ele teve aula com Adorno ou Horkheimer? melSene: Na época, ele teve contato com esse pessoal em Frankfurt. cleiton: Então, espera um pouco. Primeiro ele estava em Roma. melSene: Primeiro, ele estava em Roma e fez o doutorado. Quando ele voltou... brUno: Quando ele se ordenou padre? Foi depois que voltou de Roma? melSene: Não. Ele foi ordenado em Roma. Daí, voltou e assumiu a paróquia do Mont Serrat, em Porto Alegre. Foi ele quem construiu a igrejinha que está lá até hoje. É uma igreja em forma de leque. Eu já a visitei. Foi onde ele conheceu Ester Grossi e uma turma de pessoas mais intelectuais, moradores dali e que o ajudaram a consolidar a paróquia. brUno: Dizem que lá ele andava de lambreta... melSene: É, ele andava de lambreta e morava lá mais no “baixão”, nas casinhas mais simplesinhas. Ele começou a construir a igreja, mas não chegou a terminá-la... Naquela época, a única idéia do bispo era construir igrejas. Então, ele começou a dar aulas e a enveredar mais para a “esquerda”. brUno: Em que ano? melSene: Antes do golpe de 1964, início dos anos 60. Eu sei que ele começou a dar aulas em São Leopoldo também. E como ele tinha idéias progressistas, já não foi muito bem visto pelo bispo; ele começou também a escrever coisas a respeito da pastoral. Essas primeiras coisas que escreveu foram todas queimadas, bem como foi queimado todo o acervo de livros que ele tinha. Eu não sei todos os detalhes. Eu sei que o bispo começou a encrencar com ele porque ele começou a ir muito para o lado da esquerda. brUno: Dom Vicente Scherer era bem conservador? melSene: Era ultra, ultraconservador. Terrível, ele era terrível, terrível. Uma quantidade enorme de padres lá de Porto Alegre saiu por causa dele, porque ninguém o aguentava. Ele era extremista de direita, era muito duro. Depois, Hugo participou da fundação de uma associação de empregadas domésticas, no sentido de regularizar a profissão. E, por isso, ele enfrentou um Inquérito Policial Militar (IPM) Um dos IPMs dele foi por causa disso. cleiton: Por quê? Ele teve mais de um? melSene: Teve outro por ser de um partido de esquerda. Não sei de qual. Não me lembro mais. brUno: Isso tudo em Porto Alegre?

18 COMUNICAÇÕES • Piracicaba •Ano 15 • n. 1/2 • p. 11 - 38 • jan. - dez. 2008 melSene: Tudo em Porto Alegre, entre 1964 e 1968. Depois de 68, os IPMs foram retomados contra ele. Mas já antes de 64 ele estava em situação difícil em Porto Alegre; foi para São Paulo e começou a lecionar naquele instituto onde todas as ordens estudavam: os dominicanos. Como é que chamava? [...] Era o Instituto de Filosofia e Teologia (IFT). Ele foi professor em São Paulo, onde conheceu os dominicanos. Então, quando aconteceu o golpe ele já estava em São Paulo. brUno: Ele conheceu aí frei Betto? melSene: Frei Betto, frei Gorgulho, frei Roberto Romano, ele conheceu toda essa turma aí. Ele tinha bastante contato com os dominicanos, no convento. brUno: Oh! Mel só para você ter uma idéia: em 1968 eu fiz um curso de pastoral litúrgica, no Rio de Janeiro, e a maioria do pessoal que lecionava no curso e que participava como aluno era ligada à Teologia da Libertação e o Hugo deu uma semana de aula nesse curso. No segundo semestre de 1968. melSene: E no fim de 1968 ele foi embora. [...] Era mesmo IFT, em São Paulo; inclusive a freira, diretora da escola em cuja capela foi rezada a missa de sétimo dia do Hugo, tinha sido aluna dele nesse instituto. cleiton: Você se lembra de mais algum fato marcante? melSene: Ainda no fim de 1968, quando foi instituído o Ato Institucional nº 5 (AI 5), retomaram todos os IPMs contra o Hugo. Então ele foi chamado para ir depor e, nessa situação, foi embora para a Alemanha, via Paraguai, eu acho. Não sei se ele saiu via Argentina. Sei que saiu clandestinamente. cleiton: Ele chegou a depor? melSene: Não, ele foi chamado e aí, como estavam prendendo todo mundo com o endurecimento total de 1968, ele foi para a Alemanha, pois já havia recebido um convite de Metz (Johann Baptist Metz) e Rahner (Karl Rahner) para escrever um artigo sobre teologia política para uma revista teológica. Ele traduziu vários livros de Rahner. Metz o convidou para lecionar um semestre em Münster, na faculdade teológica. Então, primeiro ele ficou meio ano em Munique escrevendo o tal do artigo, em parceria com outro teólogo, o qual foi publicado posteriormente. E foi ali que eu o conheci, em Munique. Porque lá havia um restaurante em que os brasileiros se reuniam às quintas-feiras à noite ele aparecia por lá também. E a gente se conheceu nesse restaurante. brUno: E você fazia o que, Mel? melSene: Eu trabalhava numa companhia de aviação. cleiton: Você era aeromoça? melSene: Não. Eu trabalhava em terra, na British Airways, que fazia os vôos internos. Naquele tempo, existia a cortina de ferro; para Berlim só voavam companhias estrangeiras, a Lufthansa não podia voar para lá. Voavam para Berlim três companhias aéreas: British European Airways, Pan American e Air France. Depois, eu fui para Münster, consegui um emprego melhor na Secretaria de Trabalho por causa dos idiomas e passamos, ainda, aquele tempo em Münster. brUno: E você, vem de onde? Você é gaúcha também?

COMUNICAÇÕES • Piracicaba •Ano 15 • n. 1/2 • p. 11 - 38 • jan. - dez. 2008 19 melSene: Eu sou gaúcha. Sou de Porto Alegre e fui conhecer o Hugo na Alemanha. cleiton: Em que época isso? melSene: Em 1969. brUno: E você já estava lá há mais tempo? melSene: Eu estava desde 1963. Eu passei sete anos na Alemanha. brUno: Você tinha feito algum curso, ou era mais porque sabia a língua? melSene: Não. Eu já sabia a língua e antes já havia trabalhado como correspondente; na companhia de aviação consegui emprego com facilidade, porque falava bem inglês, alemão e outros idiomas. Eu trabalhava em terra, fiz cursos em Londres. Depois, fui trabalhar na Secretaria de Trabalho, na Alemanha; naquela época havia muitos trabalhadores estrangeiros, mais de dois milhões entre iugoslavos, turcos, gregos, portugueses, espanhóis e ninguém falava o português, nem o espanhol. Chegavam trens cheios de trabalhadores, para serem distribuídos entre as indústrias, e eu ia para a estação de trem recebê-los e falar com eles, responder a quem tinha perguntas, para que eles pudessem se comunicar quando chegavam; quando eles tinham algum problema, eu ficava ali com a função de traduzir o que eles diziam. brUno: Você tinha quantos anos nessa época? melSene: Trinta e pouco. Depois de ter lecionado um semestre, Hugo saiu de lá, indo primeiro para o Uruguai. cleiton: Ah! De lá ele veio para o Uruguai? melSene: Sim. Ele tinha sido convidado pelo teólogo Juan Luiz Segundo para trabalhar com ele no Centro Pedro Fabro, um instituto jesuíta de pesquisas. Então, trabalhou nesse Centro e também dava aulas numa universidade em Montevidéu. Nunca recebeu um centavo por nada; não pagavam a ele, pois não tinham dinheiro. Naquela época, eram difíceis as coisas. Anos 1970! cleiton: E ele ficou muito tempo no Uruguai? melSene: Ficou quase um ano; aí ele foi convidado por um instituto de pesquisa dos padres Oblatos, em Oruro, na Bolívia, pois naquela época ele já participava da Teologia da Libertação e já tinha livros escritos; em 1970, saiu o seu primeiro livro e pouco depois saiu o livro do Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido, para o qual ele fez o prólogo. brUno: E você veio junto com ele da Alemanha? melSene: Não. Eu fiquei por lá, mas a gente se correspondia constantemente. Ele foi para a Bolívia, por convite desse Centro de pesquisa dos Oblatos, eu não me lembro como se chamava. Eles faziam pesquisa sobre a religiosidade dos mineiros, pois lá havia grandes minas de estanho. Aí veio o golpe de Banzer, na Bolívia. Hugo tinha estado um pouco antes em Santa Cruz de La Sierra, num grande encontro de teólogos e participou também, em Medellín, do Congresso de Medellín, redigindo documentos; foi um dos padres teólogos que ficavam na retaguarda e os bispos iam se consultar com eles. Assim, funcionou naquela época. Bom! Isso tudo foi antes de eu conhecê- lo. Isso eu sei, só por relatos de amigos e artigos, os quais contavam sobre a

20 COMUNICAÇÕES • Piracicaba •Ano 15 • n. 1/2 • p. 11 - 38 • jan. - dez. 2008 participação dele em Medellín. Até Tamayo (2008), em artigo recente, por ocasião da morte do Hugo, mencionou tal participação. cleiton: Quem? melSene: O Juan, no El Pais de Madrid, você tem aquele artigo que saiu em Londres? Do Mathews (2008)? cleiton: Não. melSene: É um teólogo, autor de um artigo também muito interessante sobre a morte do Hugo. Foi publicado no Times, de Londres. Ele telefonou para nós e falou em português. Pelo sotaque, ele estudou português em Portugal e, portanto, falava bastante bem nossa língua. Ele escreveu um artigo muito bonito. cleiton: Vamos voltar um pouco para cá. Ele estava na Bolívia... melSene: Ele estava na Bolívia naquele instituto e a gente sempre se correspondia, com a idéia de que eu iria para lá. brUno: E ele já estava apaixonado? melSene: Estava, estava. brUno: E vice-versa? melSene: É. Isso também já estava claro e a gente já não era mais criança. Cada um de nós já tinha bem mais de trinta anos. Depois, veio o Golpe de Banzer. Hugo, um tempo antes, tinha estado em Santa Cruz de La Sierra, em um encontro, e notara que a cidade estava cheia de militares brasileiros. Numa noite, voltando com os colegas de um restaurante para o alojamento, caminhando à beira de uma estrada, uma moto investiu contra ele, por trás, e pegou-o bem no cóccix, afundando-o, quebrando-lhe a perna e deixando-o desacordado, porque foi uma batida muito forte. Eles acharam que foi um atentado, pois foi muito estranho; o homem que o atingiu estava com alguém na garupa; foi uma coisa que não ficou esclarecida. Estavam bêbados ou não? Ninguém soube explicar. Naquela época, era tudo tão misturado que ninguém nunca ficou sabendo exatamente o que foi. Então, ele estava assim meio ruinzinho. Isso foi umas semanas antes. Ele teve ainda uma apendicite aguda e foi operado de emergência. E veio o golpe. Estava ele e todos os padres no Centro, reunidos lá em Oruro para resolver o que iam fazer, e vieram os soldados, entraram e já começaram a ameaçá-los de morte. Começaram a atirar as máquinas de escrever pelas janelas, aí apareceu um superior dos soldados, alguém com uma graduação um pouco mais alta, entrou e disse: “Não, parem, parem com isso. Vamos parar”. E voltando-se para os padres: “Oh! Vocês peguem suas coisas e saiam daqui. Só saiam daqui. Não vai lhes acontecer nada”. Aquele policial, de nível superior estava mais consciente; acho que ele sabia que os presentes eram padres. Então, acho que ele também se assustou. E os padres pegaram as coisas e puderam sair. E o Hugo, mais outro padre e o motorista pegaram uma camionete dos Oblatos e fugiram pelo altiplano. Assim, Hugo foi parar no Chile, em Iquique. E o cara conhecia todo o altiplano. Foram mais para o norte do Chile, e o Hugo, recém-operado, com parte da ferida infeccionada, pois tinham que ter deixado um dreno e

COMUNICAÇÕES • Piracicaba •Ano 15 • n. 1/2 • p. 11 - 38 • jan. - dez. 2008 21 não deixaram, Ele chegou a Santiago do Chile com um abscesso e foi parar no hospital para drenar. Com isso, ele melhorou. Aí, ele escreveu: “Estou no Chile, venha!”. Eu comprei uma passagem de navio, que era mais barato para poder levar todas as minhas tralhas, e fui para o Chile. brUno: Você estava onde na ocasião? melSene: Eu estava em Münster. Fui até Gênova de trem e lá peguei um navio. cleiton: O navio veio por onde? melSene: O navio atracava em Cannes, Barcelona, Lisboa, Rio de Janeiro, Santos, Montevidéu e Buenos Aires. O Hugo foi me esperar em Buenos Aires e nós fomos de trem para o Chile. Atravessamos a Cordilheira dos Andes. Legal a viagem. Isso foi em novembro de 1971, quando cheguei ao Chile. cleiton: Bom! Também era um período de efervescência no Chile, não era? melSene: Lógico. Tempo de Allende. brUno: E no Chile, o que Hugo fazia lá? melSene: Ele estava trabalhando com os jesuítas e também dava aulas na Universidade Católica e no ISAL e a gente trabalhava lá. Havia um Centro, com escritório, no qual faziam publicações, revistas e ali se trabalhavam com as pastorais e também se faziam coisas referentes à Páscoa, ao Natal. cleiton: Isso em Santiago? melSene: Em Santiago do Chile. cleiton: Iquique foi só a passagem? melSene: Em Iquique, ele passou para ir a Santiago, onde ele já tinha contatos. Sempre teve. Com os padres todos, com esse pessoal mais à esquerda. Ele tinha contatos na América Latina inteira por causa da questão da teologia latino-americana, de Medellín. cleiton: Mel, e em que ano? melSene: A Conferência Episcopal de Medellín, Colômbia, se deu em agosto e setembro de 1968, antes ainda de o Hugo ir para a Alemanha. brUno: A Conferência de Medellín se tornou um dos suportes teológicos fundamentais para o setor progressista das Igrejas Cristãs na América Latina, com a Teologia da Libertação. cleiton: Vamos voltar para Santiago. melSene: Em Santiago e em todo o Chile havia grande efervescência. brUno: E você já estava lá? melSene: Já. Trabalhava junto com o Hugo, no Centro. Fazia correspondência, datilografava documentos. cleiton: E vocês ficaram até quando lá? melSene: Ficamos até 15 de novembro de 1973. Careimi nasceu no dia 1º de outubro de 73, lá no Chile, em Santiago. Ela nasceu três semanas depois do golpe contra Allende. cleiton: Dizem que havia falta de tudo, até leite. Eles boicotavam? Você teve dificuldade? melSene: Olha... Claro! O pessoal contra o Allende, antes do golpe, começou

22 COMUNICAÇÕES • Piracicaba •Ano 15 • n. 1/2 • p. 11 - 38 • jan. - dez. 2008 a esconder toda a mercadoria. Escondiam tudo. Era fila para óleo, fila para isso, para aquilo. Era bem complicado. E depois do golpe apareceu tudo. Estava tudo lá. Não é que havia falta de mercadorias; estava tudo escondido. cleiton: O Golpe foi em setembro e vocês ficaram até quando? melSene: Foi em 11 de setembro e ficamos até 15 de novembro. brUno: Vocês sentiam perseguição por parte deles? melSene: Não, porque como a gente trabalhava com o Conselho Mundial de Igrejas... No dia do nascimento da Careimi havia uma comissão do Conselho Mundial de Igrejas, que veio tratar das questões de imigração, de refugiados, de Direitos Humanos. Estavam em reunião em nossa casa, e a gente tinha feito um jantar. E ela nasceu naquela noite. Estava todo mundo lá em casa, e eu entrei em trabalho de parto e tive que sair correndo para o hospital, porque a partir das 22 horas ninguém saía mais para a rua. Tinha o toque de recolher. Então, foi essa lembrança que guardei. Que eles estavam lá para formar as casas de refúgio, pois começaram assim: grandes conventos, escolas que não eram tão usadas, seminários. Foi tudo feito casa de refúgio, com bandeira da Organização das Nações Unidas (ONU); o Conselho Mundial entrou nisso, também, para proteger as pessoas. E, lá dentro, nenhum policial, nenhum militar podia entrar. Isso foi feito em diversos lugares e em Santiago, para proteger as pessoas. cleiton: Não eram somente as embaixadas? melSene: Também. As embaixadas, por exemplo, a do Panamá, tinha um apartamento com quase cem pessoas lá dentro. Era um lugar com poucos quartos, era um apartamento. Então, tinham coisas, assim, absurdas. E quando levavam alguma pessoa para esses lugares, os carros tinham que levar a bandeira branca e ninguém podia tocar; mas era assim, os militares observavam todo mundo que entrava nessas casas. Era um controle terrível. E eles matavam gente. Todos os dias a gente ia para a beira do rio e lá havia muitos mortos. Tinha muita gente baleada. E no estádio nacional, sem falar naquilo, ali morreu brasileiro que ninguém sabia o motivo, morreu só porque era brasileiro... Quem era estrangeiro estava na mira, na mira dos militares. E o Hugo começou a trabalhar nessa comissão com o Conselho Mundial de Igrejas; um dia, um tal de major Merrik, desse nome eu me lembro até hoje, falou para ele: “Olha, o senhor está na próxima lista”. Um monte de gente começou a ficar nas listas, estrangeiros como o Franz Hinkelammert... e muitos outros. brUno: Ele estava lá? melSene: Estava. brUno: Eles escreveram juntos? melSene: Sim. Depois, quando foi fundado o Centro na Costa Rica. Então, o major disse: “apronte suas coisas porque você está na lista”. Avisando já para a gente se preparar. Então, a gente preparou as malinhas. E, por sorte, antes até da Careimi nascer, antes do golpe, um professor de Comunicação da Universidade da Costa Rica tinha estado lá em casa e convidou o Hugo: “Por

COMUNICAÇÕES • Piracicaba •Ano 15 • n. 1/2 • p. 11 - 38 • jan. - dez. 2008 23 que você não vem dar aulas lá com a gente, em Costa Rica?”. Ele era o diretor da Comunicação. Porque a gente estava escrevendo dois livros marxistas sobre a religião, era Marx e Engels sobre a religião e depois também, os outros marxistas e a religião. brUno: Você participava das atividades com ele? melSene: Sim. Eu trabalhava com o Hugo. Aí, então, o Javier Solis, padre e também jornalista – era dono de um jornal de esquerda, em Costa Rica, que durou muitos anos – esteve em casa e nos convidou para ir para lá. E esse convite ficou no ar. Quando veio o golpe no Chile e a gente teve que sair, o Hugo entrou em contato com ele, e nós fomos primeiro para Lima, no Peru, pois outros amigos nossos já tinham ido para lá. A gente se encontrou lá. cleiton: Saíram legalmente? melSene: Saímos legalmente. Nós tínhamos nosso passaporte. A Careimi tinha o próprio passaporte chileno. Saímos normalmente. brUno: O Dussel, da Filosofia da Libertação, estava no Peru, não? Ou ele é argentino? melSene: Não, ele é argentino. brUno: Mas o Hugo já o conhecia nesse período? melSene: Eu acho que o Hugo já o conhecia. É porque esse pessoal de esquerda se conhecia entre si. Um lia as coisas do outro. Na época, havia uma efervescência enorme, coisas da esquerda, no Chile, e na Argentina também. A Bolívia já tinha caído com o golpe. E agora, o Chile. Então, os países próximos que apresentavam alguma perspectiva eram Peru e Argentina. Era o eixo que ainda apresentava para nós condições de vida. cleiton: Vocês foram para o Peru? melSene: Fomos para poder entrar em contato com Costa Rica, porque do Chile você já não podia mais entrar em contato com ninguém. Então, de lá Hugo mandou um telegrama para o Javier Solis contando a situação e perguntando sobre o convite feito. E ele prontamente respondeu: “Venham, a porta aqui está aberta”. Ficamos um mês e meio no Peru. cleiton: A menina era bebezinho ainda? melSene: Era, tinha um mês e meio. cleiton: Que difícil! Não é, Mel, você viajando com um bebezinho? melSene: E só com a roupa do corpo. cleiton: E no Peru vocês ficaram em algum convento? melSene: Não, primeiro nós ficamos uns dias num hotel e depois alugamos uma casinha, fora de Lima, porque em Lima era muito horrível o ar; a gente não conseguia respirar direito; era muito nevoeiro. brUno: É muito alto? melSene: Não, mais ou menos à beira mar, mas sempre tem nevoeiro. Por causa da corrente de Humboldt sempre tem nevoeiro, você nunca vê céu azul em Lima. Então, subimos um pouquinho pela encosta da Cordilheira. Há Chosica e Chaclacayo: são duas cidadezinhas, bem bonitinhas. Alugamos um apartamento pequeno em Chaclacayo. Era dentro de uma casa mesmo, tinha

24 COMUNICAÇÕES • Piracicaba •Ano 15 • n. 1/2 • p. 11 - 38 • jan. - dez. 2008 um apartamentinho à parte. Pessoal muito legal! Ficamos até chegar a resposta de São José da Costa Rica. E aí nós fomos embora, saímos em janeiro de 1974 e fomos para São José da Costa Rica. O Hugo já em fevereiro começou a lecionar na Universidade da Costa Rica e na Universidade Nacional; ele foi catedrático nas duas Universidades. brUno: A Universidade da Costa Rica era estatal? melSene: As duas eram estatais. cleiton: As duas em São José? melSene: Não, a Universidade de Costa Rica, em São José e a Universidade Nacional em Heredia, outra cidadezinha ali perto, quinze a vinte minutos de carro. cleiton: E vocês ficaram bastante tempo lá? melSene: Ficamos sete anos e o Eremin nasceu lá, em 1975. brUno: E o Hugo lecionava o quê? melSene: Principalmente Comunicação, na Universidade da Costa Rica. Lecionava Ciência da Comunicação, Sociologia da Comunicação. Depois, em Heredia, ele foi até diretor da Faculdade de Sociologia; ali era mais a parte sociológica. cleiton: Isso foi até? melSene: Até 1981. Em fevereiro de 1981 nós viemos para o Brasil. brUno: Espera, mas aí tem muita coisa. Esse momento em que ele estava na Costa Rica é um momento de muita luta política, de efervescência, a luta sandinista? melSene: É toda, toda a guerra sandinista. brUno: Eu queria que você falasse um pouco disso. E você, o que fazia? Além de cuidar das crianças? melSene: Eu trabalhava no Departamento Ecumênico de Investigaciones (DEI)4 fundado pelo Hugo, em parceria com o Pablo Richard, um padre que, também, fugiu do Chile –, com o Franz Hinkelammert, Arnoldo Mora, José Duque, Elza Tamez, Javier Solis e outros teólogos latino-americanos, quase todos ex-padres. A gente fundou o DEI e começou a publicar livros, e ficar importante, promovendo cursos de pastoral; vinha gente da América Latina inteira fazer os cursos de três meses de duração ministrados lá. brUno: Você participava também? melSene: Participava. Eu trabalhava no escritório, com a datilografia, fazia o trabalho de secretaria. Sempre trabalhei com o Hugo. As crianças eram pequenas, mas depois que ficaram maiores, elas iam para a escolinha e eu tinha uma auxiliar que vinha todos os dias fazer as coisas da casa. Então, eu podia sair para trabalhar, as condições eram razoáveis. A gente se dava bastante bem lá, porque os professores recebiam um salário decente; dava para viver. brUno: É verdade que o Hugo andava muito de lambreta? melSene: Ele tinha uma lambreta. É porque ele nunca dirigiu. Eu tinha um carro.

4 Espaço privilegiado de diálogo rigoroso e crítico entre os teólogos da libertação e cientistas sociais.

COMUNICAÇÕES • Piracicaba •Ano 15 • n. 1/2 • p. 11 - 38 • jan. - dez. 2008 25 cleiton: Ele nunca dirigiu? Nem aqui? melSene: Não. Carro ele nunca dirigiu. Era eu quem dirigia. cleiton: E na lambreta ia bem? melSene: Na lambreta ele ia bem. É a sensação de espaço dele. No carro ele se perdia, porque no carro você tem que ter uma sensação de espaço do carro. Ele ia para Heredia com sua lambreta. brUno: O DEI, esse departamento de documentação, era ecumênico? melSene: Ecumênico. Ali tinha católicos e protestantes trabalhando. E também tinha financiamento do Conselho Mundial de Igrejas. brUno: Você se lembra do testemunho do Geoval, no culto que fizemos pela passagem do Hugo? melSene: É, o Geoval... ele aparecia lá. brUno: Foi ele que falou que o Hugo andava de lambreta. melSene: É ele andava de lambreta. E então, lá ele trabalhava com o Dussel. Ele sempre teve bom relacionamento com teólogos e filósofos da Libertação. No DEI circulava gente como Oscar Romero5. brUno: E O Ivan Illich?6 melSene: Não, porque o Ivan estava no México. Ele agia mais sozinho, individualmente, se recordo. cleiton: Mas ele tinha também amizade com Hugo? Melsene: O Hugo o conhecia e o apreciava. Gustavo Gutiérrez, também da Teologia da Libertação, apareceu no DEI. brUno: Os grandes intelectuais da Teologia da Libertação, todos apareciam por lá, não é? melSene: É, sem falar em Ernesto Cardenal7 e Fernando Cardenal. Há muita história nas ações do DEI. O Lula apareceu lá, na Costa Rica. brUno: Em que ano? melSene: No primeiro aniversário da revolução sandinista, em 1980. Ele tinha saído da prisão; obteve licença para viajar como convidado para participar dos festejos da vitória sandinista, em Manágua, e ele veio com frei Betto e mais dois jornalistas. O Lula e frei Betto ficaram hospedados lá em casa, antes de irem para o aniversário da revolução. E a gente organizou para o Lula o encontro com Fidel, em Manágua. brUno: Antes eu queria saber desse envolvimento do Hugo com os sandinistas. melSene: Não foi do Hugo individualmente e, sim, do Centro como um

5 Oscar Romero, arcebispo de São Salvador, comparado a Martin Luther King na luta pelos Direitos Humanos em El Salvador. Assassinado, em 1980, por um atirador de elite do exército salvadorenho, enquanto celebrava missa. 6 Padre austríaco, viveu um bom tempo em Cuernavaca, México, crítico da sociedade de consumo e da educação que se desenvolve nas escolas. Batalhador pela emancipação dos países da América Latina. Amigo de Paulo Freire. Escreveu, dentre outros, o livro “Uma sociedade sem escola”. É dele a frase: “A escola parece estar destinada a ser a igreja universal de nossa cultura em decadência.” 7 Sacerdote católico, vinculado à Teologia da Libertação, participou ativamente da Frente Sandinista de Libertação, poeta, foi ministro da Cultura do primeiro governo da Nicarágua, após a vitória das forças sandinistas. Seu irmão, Fernando Cardenal, também era sacerdote.

26 COMUNICAÇÕES • Piracicaba •Ano 15 • n. 1/2 • p. 11 - 38 • jan. - dez. 2008 todo. Porque, na verdade, a Costa Rica inteira estava envolvida com a luta dos sandinistas, pois havia um grande número de refugiados em São José. O Ernesto Cardenal estava lá. Todos os futuros ministros da Nicarágua estavam lá; o que foi o primeiro ministro da Cultura, Sérgio Ramires, era escritor e conhecido, e todos eles estavam na Costa Rica. O povo ajudava. Você andava ali por fora de São José e topava com um monte de caixas de pinus, muito bem feitas, caixas de armas vazias, claro. As armas chegavam pela Costa Rica e dali iam para os sandinistas. A gente começou a se envolver porque estava do lado deles. E todo o pessoal de esquerda também; a Costa Rica era um país democrático, nunca teve ditadura. Tanto assim, que nem exército tem mais. cleiton: Nem exército tem? melSene: Não. Escola sim, para todo mundo. Então é um país bastante democrático. brUno: E o DEI tinha contato com todas essas lideranças? melSene: Tinha, por intermédio da pastoral e desses cursos de três meses que o pessoal vinha, de vários lugares, fazer. Vinha gente do México, de todos os países do centro-americano, também da Colômbia, da Venezuela, até do Brasil; vinham para aprender coisas novas. E o pessoal levava uma boa bagagem porque o curso era desenvolvido em módulos e vinha gente legal para aprender e, depois, ministrar o curso em seu país. E esse trabalho continua até hoje: o DEI publicando artigos, a revista deles, o jornal, livros. Era esse o trabalho da gente ali, onde havia um movimento internacional intenso. Sempre havia visitantes e o pessoal dali também sempre viajava para fazer palestras em outros países. O Hugo sempre viajava para a Europa e para muitos outros países para fazer palestras. Era convidado. brUno: Quanto tempo demorou a revolução sandinista? melSene: Ah! Os sandinistas... Começou nos anos 1930 e foi até 1979. Sim, porque em 1980 foi o primeiro aniversário da vitória da revolução, em julho. Aí, o Lula foi, o Fidel foi. Eu fui lá, para a praça. cleiton: Como é que é esse contato com Cuba? É em função também do Centro? melSene: Na verdade, esse contato começou com um movimento, no Chile, de Allende: “Cristianos por el Socialismo”, um movimento de padres, religiosos e leigos que lutavam, a partir da fé cristã, para transformar a América Latina em socialista. Fidel foi ao Chile e também apoiou esse movimento. Havia padres, leigos e igrejas que sempre estavam em contato com Cuba. Tinha o seminário teológico em Matanzas, então sempre estiveram lá metodistas, batistas, presbiterianos e outros cristãos. brUno: Matanzas fica em? melSene: É em Cuba. Tem um seminário teológico lá, mas não lembro de que denominação. cleiton: Mas e a revolução cubana permitia isso? melSene: Sim, eles sempre estiveram com Fidel por causa da opressão que existia antes. Só os bispos católicos foram mais resistentes. Os evangélicos... havia muita gente avançada, sempre com Fidel.

COMUNICAÇÕES • Piracicaba •Ano 15 • n. 1/2 • p. 11 - 38 • jan. - dez. 2008 27 cleiton: Vocês foram várias vezes para Cuba também? melSene: Eu fui uma vez. O Hugo foi várias vezes. cleiton: Ele teve, também, contato com Fidel? melSene: Teve, em Santiago do Chile, quando Fidel foi para lá num grande encontro de padres e pastores; o grupo “Cristianos por el socialismo” encontrou-se com ele, e o Hugo foi convidado para ir a Cuba. Uma vez, nós fomos convidados como família, então eu fui com as crianças; ficamos lá uma semana conhecendo a ilha. brUno: Mas, quando o Hugo ia para lá, era para fazer alguma atividade? melSene: Também. Ele ia para fazer palestras. brUno: Nossa que vida interessante! melSene: Era muito! E apareciam brasileiros por lá, na Costa Rica. Houve também, em São José, um grande encontro sobre Direitos Humanos. Hélio Bicudo e algumas pessoas ligadas à defesa dos Direitos Humanos, como advogados, apareceram por lá. Trouxemos o Hélio para nossa casa. Nessas ocasiões, sempre fazíamos então, uma comidinha brasileira. O Paulo Freire esteve várias vezes lá em casa. Ele foi convidado pelos sandinistas e, inclusive, após a vitória, fez parte da campanha da alfabetização da Nicarágua. Foi ele quem organizou tudo. cleiton: Na Nicarágua? melSene: É. Eu sei que ele e o Hugo trabalharam juntos lá. Foi um acontecimento de enormes proporções. A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) participando. brUno: Você quer dar uma paradinha? melSene: Não. É que é muita coisa. Foram sete anos de Costa Rica e aconteceram muitas coisas. brUno: Que outros brasileiros foram para lá? melSene: Brasileiros foram relativamente poucos para Costa Rica, porque é um país que ninguém conhece, não é? Até hoje é um tanto desconhecido. Os americanos conheciam mais a Costa Rica que os brasileiros. Nós fomos parar lá por causa das circunstâncias, mas, na verdade, havia pouquíssimos brasileiros lá. As crianças nem aprenderam a falar português por causa disso, porque não tinham com quem falar. A não ser visitas esporádicas que vinham lá em casa. cleiton: E vocês em casa falavam o quê? melSene: A gente falava mais espanhol, mesmo porque a empregada falava espanhol. cleiton: Alemão não? melSene: Não. Não tinha com quem falar essa língua. Porque era tudo em espanhol, as crianças freqüentavam a escolinha em espanhol. Careimi foi alfabetizada em espanhol. Então, quando eles vieram para cá, falavam só espanhol. Entendiam o português. A gente chegou ao Brasil em fevereiro e um mês depois iniciaram-se as aulas. A Careimi entrou na escola e teve que se integrar, se virou, a professora também foi muito legal, entendeu a situação e em meio ano ela estava integrada.

28 COMUNICAÇÕES • Piracicaba •Ano 15 • n. 1/2 • p. 11 - 38 • jan. - dez. 2008 brUno: E como era o Hugo na Universidade em Costa Rica? melSene: Olha, ele era muito benquisto. Muito, muito respeitado. Tanto que, na última vez que nós estivemos na Costa Rica, fizeram uma homenagem especial para ele nas duas universidades, tanto na Nacional, em Heredia, como na Universidade da Costa Rica. cleiton: Quando foi a última vez que vocês estiveram lá? melSene: Já início de 1990. Inauguraram o mestrado e doutorado em Comunicação, na Universidade de Costa Rica, e ele foi convidado como palestrante; vieram muitos alunos antigos prestigiá-lo. Sei que a sala estava cheia; tinha muito mais de cem pessoas. Pessoal que trabalhava na televisão, com jornalismo, pessoas conhecidas. Foi muito legal. E também em julho de 1992, para a comemoração dos 15 anos da fundação do DEI. cleiton: E o Hugo já tinha começado a intensificar a escrita e a publicação nesse período ou não? melSene: Sim, ele estava sempre publicando coisas. cleiton: E, “A Trilateral”? melSene: “A trilateral. A nova fase do capitalismo mundial” foi nesse período. O livro foi publicado no Brasil depois, em 1986. brUno: Não existe um livro sobre Economia, que o Hugo escreveu junto com o Teotônio dos Santos? Teotônio também estava exilado nesse período. melSene: Teotônio? “A Trilateral”. Teotônio era exilado também. E era economista. cleiton: O Hugo transitava na política, sociologia, psicologia, economia, etc.? melSene: Transitava. Na economia, especialmente por causa do Franz Hinkelammert, que era economista e, ao mesmo tempo, cristão. Ele tinha também estado no seminário, mas depois se decidiu por economia, ao estudá- la na Universidade Livre de Berlim. Ele era economista, mas sempre vendo também a parte teológica. Ele e o Hugo escreveram o livro “A idolatria do Mercado: um ensaio sobre economia e teologia”, publicado no Brasil, em 1989. brUno: Ele estava ali como exilado? melSene: Não, ele dava aulas na Universidade de Honduras, mas transitava entre Berlim, Honduras, mas tinha a casa dele em Costa Rica. E colaborava também com o DEI, mas volta e meia passava um semestre na Universidade Livre de Berlim. Ele sempre manteve contato com a Alemanha, até pelos filhos que estavam nesse país, estudando; depois ele se casou com uma hondurenha e teve mais filhos. brUno: E quando que começa a aparecer a vontade de voltar para o Brasil? melSene: Bem, vontade sempre existiu. Aí, em 1980, quando veio a anistia, o Hugo participou, como convidado, de um Congresso de Teologia, em São Paulo. A anistia já tinha saído e ele veio. Entrou pelo Rio de Janeiro. No Chile, já não tínhamos conseguido renovar o nosso passaporte. O meu não foi renovado. Eu tinha o alemão, por sorte. De brasileiro, de nenhum brasileiro que estivesse em Santiago naquela época era renovado o passaporte; e lá tinha

COMUNICAÇÕES • Piracicaba •Ano 15 • n. 1/2 • p. 11 - 38 • jan. - dez. 2008 29 refugiado brasileiro à beça. Então, o meu não foi renovado. Eu não tinha nada com nada, mas não renovaram também. Mas como eu tinha o alemão em dia, não havia problema e saí de Chile com meu passaporte alemão, regularmente. cleiton: E ele tinha outro passaporte também, ou não? melSene: O Hugo tinha um passaporte que não sei onde ele arrumou. Mas em São José, nós e as crianças fizemos passaporte; o cônsul e o embaixador eram democratas, eram pessoas mais decentes e nos deram passaportes. cleiton: Brasileiro? melSene: É, brasileiro. Fomos lá para a embaixada e tudo funcionou direitinho e a gente saiu com um passaporte legal. Então... quando o Hugo chegou ao Brasil, pelo Rio de Janeiro, olharam o passaporte e perguntaram: “Cadê seu visto de saída?” O Hugo falou: “Não, não tenho”. Porque naquela época quem saía do país devia ter um visto de saída e ele não o tinha porque o passaporte foi feito em Costa Rica. Aí eles entraram numa salinha, foram consultar um cadastro, demoraram, demoraram, fizeram algumas perguntas e colocaram um carimbinho no passaporte. Aí, o Hugo chegou em São Paulo, para o Congresso de Teologia organizado pelo cardeal Arns e outros teólogos e cristãos. Hugo mostrou o passaporte ao cardeal e ao advogado Greenhalg, que teve que esperar até o último dia, mas conseguiu a devolução do passaporte devidamente em ordem para o Hugo poder retornar. Os fiscais do aeroporto perturbaram-no muito, porque o passaporte dele não tinha o visto de saída. E nem podia ter, estava tantos anos fora, desde 1968. brUno: Vindo para esse encontro, ele já começou a ver alguma coisa? melSene: Ele conheceu o Ely Eser,8 que estava participando do Congresso de Teologia. Ely Eser e o convidou para vir conhecer a Universidade Metodista de Piracicaba – uniMeP, e, em seguida, já o chamou para vir para esta instituição. O Hugo também estava tentando ir para Florianópolis e para Brasília. Uma ocasião, ele encontrou um professor de Brasília, da Comunicação, e mandou seu currículo para lá. Como demorou a resposta, ele entrou em contato com o professor. Este foi falar com o reitor, que era capitão de mar e guerra na época, um homem de direita. O reitor só abriu a gaveta e disse: “Oh! Aqui não vem”. Então, veio essa proposta da uniMeP e a gente aceitou, porque achamos melhor vir com as crianças naquela idade, pois já tínhamos visto problemas de exilados com filhos adolescentes; a transferência é mais difícil, muito complicado. Criam-se outros tipos de laços. E com as crianças, uma de sete e outra de cinco anos, a coisa ainda era mais tranqüila. E, assim, viemos para Piracicaba, em 1981. brUno: E você, conhecia o Elias?9 melSene: Não. Hugo o conhecia, porque ele tinha vindo antes para fazer uma palestra aqui. brUno: Eu me lembro disso. Quando o Hugo veio aqui foi interessante porque... melSene: Isso foi no final de 1980. Ele veio fazer a palestra. Conheceu Santa Bárbara d’Oeste.

8 Ely Eser Barreto Cesar, então, vice-reitor da uniMeP. 9 Elias Boaventura, reitor da uniMeP, na época.

30 COMUNICAÇÕES • Piracicaba •Ano 15 • n. 1/2 • p. 11 - 38 • jan. - dez. 2008 brUno: Ele pediu uma reunião com o pessoal da AdUnimep10 . A AdUnimep começou em 1979 e naquele tempo os dirigentes eram o Barjas Negri, o Renato Maluf, o Marco Antônio S.de Faria e eu. Nós fizemos uma reunião com o Hugo, eu não sei se foi na casa do Renato ou do Faria, ali perto do Restaurante Ponto 71. Perto do Objetivo. Eu vim de Rio Claro com o Fabiano para participar dessa reunião. O Hugo queria trocar as idéias com a AdUnimep para conhecer um pouco mais a Unimep. melSene: E também já existia a questão do PT. Não era? brUno: Sim. Mas não tratamos da questão do PT na ocasião, pois o Barjas estava com a gente e ele nunca foi petista. melSene: Não. Não era do PT. Mas o PT já estava em formação. brUno: Ah! Sim. melSene: Porque assim que nós chegamos, em 1981, o Machado11 e o Lula vieram conversar com o Hugo. Eles estavam formando o PT. brUno: Quanto tempo depois vocês chegaram? Primeiro veio o Hugo? melSene: Em fevereiro de1981, toda a família já estava em Piracicaba. Hugo logo começou a dar aulas. cleiton: Mais uma mudança, Mel? melSene: É, eu já estava meio acostumada a mudar. Porque eu sou de Porto Alegre, fui para o Rio e, depois, para a Alemanha, para o Chile e por aí afora. Então, sabe? Eu sou meio cigana mesmo. Sou assim, meio internacional. Eu não sou bairrista de ficar num canto. Eu também estava sempre disposta a mudar. brUno: E logo de cara o Hugo já criou a editora ou foi depois? melSene: Foi depois... um ano e tanto depois... a pedido do professor Elias. cleiton: Eu não sabia dessa passagem. melSene: É, começou a criar a editora da uniMeP. brUno: Sei que um dos primeiros livros a ser editado foi a minha tese de doutorado, defendida em 1982, em convênio com as Paulinas. melSene: É, foi. E antes disso tinha saído alguns livrinhos pequenos, como Papo de Boteco (LIMA JUNIOR, 1982) e aquele outro livrinho do Parke Renshaw. brUno: Lembro-me. Eu já lecionava na pós de educação. O Parke era ligado à Reitoria? melSene: Sim, era da pastoral também. Ele era pastor metodista, tinha formação universitária. Ele era um cara legal. Ele falava bem o português. brUno: E como o Hugo se sentiu voltando para cá no contexto do surgimento do PT; ele que naquele momento, defendia idéias mais de esquerda, marxista? melSene: Sim... sim. brUno: Como é que ele sentiu isso? melSene: Ele começou a ver a abertura real e a possibilidade de mudanças no país; ele sempre acreditou nisso; sempre acreditou na esquerda.

10 Associação dos Docentes da uniMeP 11 José Machado, ex-professor da uniMeP, ex-deputado federal e ex-prefeito de Piracicaba.

COMUNICAÇÕES • Piracicaba •Ano 15 • n. 1/2 • p. 11 - 38 • jan. - dez. 2008 31 brUno: Eu conversava muito com ele. Para ele, a direção de Moscou ainda era uma referência para a esquerda. Ainda era um ponto para você comparar as coisas e ver o que era importante de ser feito ou não. melSene: Sim e não. cleiton: Você ia falar mais alguma coisa... melSene: É porque aos pouquinhos, claro, ele foi observando o que estava acontecendo com a esquerda e tudo o mais. Começou a derrocada na Nicarágua. Viu o embargo dos americanos a Cuba. A maior burrice dos americanos, até hoje, foi esse tal de embargo. Porque se eles não tivessem feito isso, Fidel já teria caído há muitíssimo tempo. Evidente! Evidente! E saiu a Rússia de lá e a coisa deu no que deu... Ele começou a ver a questão da satisfação dos desejos das pessoas e isso, naquela esquerda da Rússia, não existia, não podia existir e ele começou a perceber aquilo como um fato negativo dentro da rigidez de toda a esquerda. E aí, também, os exemplos começaram a aparecer. Depois da queda do muro isso ficou mais e mais evidente. Então, ele foi se desiludindo com muitas coisas. brUno: Mel, você sabe por que eu falo isso: é porque quando ele veio visitar a Unimep, antes de vir definitivamente, ele solicitou um encontro com a diretoria da AdUnimep, para conhecer, sentir as coisas. melSene: Sim, porque ele foi militante e criou uma associação de empregadas domésticas em Porto Alegre. Era uma associação de classe para ajudar as pessoas. Isso foi dentro de uma idéia de esquerda. Era uma vertente organizar as pessoas. brUno: Mas, por outro lado, nos primeiros anos em que estava por aqui, ele tinha uma certa dificuldade com a AdUnimep. Ele não aceitava as atividades corporativistas da AdUnimep, não é? melSene: Não. brUno: Porque ele julgava, a partir de sua visão política, que a atuação da AdUnimep se guiava pelas coisas imediatas e não numa perspectiva mais ampla de mudança social. melSene: É fato que a aduniMeP, principalmente quando pleiteava aumentos, a distância entre os salários mais altos e os mais baixos sempre aumentava. E isso era uma das coisas que ele não entendia. Ele achava injusto e não achava decente. brUno: E uma das grandes qualidades do Hugo era falar o que pensava. melSene: Por isso, ele sempre chocou muita gente. As pessoas achavam ruim que ele falasse as coisas que pensava, mas ele sempre foi assim, de falar mesmo. brUno: Uma das grandes virtudes dele. melSene: É, porque eu acho que se ninguém fala, sempre fica encoberto. E ele era uma pessoa que falava. E isso também foi um dos problemas dele com a Igreja. cleiton: Deixe-me perguntar: e a relação dele com a Igreja foi esmaecendo? melSene: É, depois. Acho que quando ele ainda estava no Uruguai, Dom Vicente Scherer já não deu mais as ordens para ele. Agora... ele também nunca pediu seu afastamento da Igreja. Ele morreu padre de verdade!

32 COMUNICAÇÕES • Piracicaba •Ano 15 • n. 1/2 • p. 11 - 38 • jan. - dez. 2008 brUno: Ah! Ele nunca pediu oficialmente seu afastamento do sacerdócio?! melSene: Não, nunca pediu. Ele morreu padre. Isso o Beozzo12 e antigos amigos dele, lá na missa de sétimo dia, mencionaram. cleiton: De onde ele conhece o Beozzo? melSene: O Beozzo e tantos outros, como o Edênio do Vale13, ou foram alunos dele no IFT ou trabalharam com ele. Edênio trabalhava com ele naquela época e o conhecia. Várias pessoas falam que ele sempre foi contestador, pois sempre falava as coisas que pensava. cleiton: Mas ele foi deixando de freqüentar a Igreja e de realizar os sacramentos? melSene: Sim, ele nunca mais rezou missa, mas a gente sempre ia à missa. brUno: E comungavam também? melSene: Sim. E ele sempre foi aceito por todos os bispos. Dom Oscar Romero, por exemplo, o conhecia, sabia quem ele era. brUno: Dom Romero chegou a ser cardeal? melSene: Não. Foi arcebispo de El Salvador, foi aquele que foi assassinado durante a missa, porque, na verdade, ele não era um homem de esquerda, mas era um homem que pensava pelos pobres. Ele simplesmente chocou os poderosos e foi assassinado durante a missa. E um pouquinho antes disso ele foi lá ao DEI, em Costa Rica. Eu fui buscá-lo no aeroporto e levei-o para lá e para cá; ele foi falar aos alunos, fez uma palestra. Conheci-o pessoalmente, um homem que era uma jóia! Todos os bispos amigos foram assim. Esses bispos mais de esquerda sempre continuaram amigos dele. A gente conversava com eles... Dom Helder Câmara foi amigo dele. brUno: Dom Morelli também? melSene: Sim. Sempre continuaram amigos dele e me aceitaram numa boa, nunca questionaram nada. Nunca tive problema nenhum. Agora é lógico que, em Roma, o Joseph Alois Ratzinger, antes de ser papa, foi feroz com o Hugo. Ele é um crítico da Teologia da Libertação, então todo mundo que era da Teologia da Libertação para ele era o diabo. Isso para ele! brUno: Ele, o cardeal Ratzinger, fez referências explícitas ao Hugo? melSene: Sim. Naquela época, na década de 1980, surgiu, de repente, uma campanha contra a Teologia da Libertação. E o Ratzinger estava por trás disso. O Leonardo Boff também, na época em que foi chamado pela Secretaria da Doutrina da Fé, em Roma, foi inquirido pelo Ratzinger. cleiton: Não foi mais recente o caso do Boff? melSene: Não, foi naquela época nos anos 80, quando houve aquela famosa campanha contra os teólogos da Libertação. A notícia chegou a Piracicaba; todos os jornais queriam entrevistar o Hugo. Eram chamadas da manhã à noite na casa da gente, jornalistas querendo fazer entrevistas. E, ainda saiu por aí que o Hugo tinha se convertido ao protestantismo, porque agora dava aulas na Universidade Metodista. O Hugo sofreu muito. Essa situação o deixou abalado.

12 José Oscar Beozzo, sacerdote e um dos grandes teólogos e historiadores da Igreja Católica. 13 Sacerdote, teólogo, Reitor da PUC-SP nos anos 1980.

COMUNICAÇÕES • Piracicaba •Ano 15 • n. 1/2 • p. 11 - 38 • jan. - dez. 2008 33 brUno: O Hugo conheceu o Leonardo Boff? melSene: Claro. Eram muito amigos. Acho que eles já se conheciam há bastante tempo. O Leonardo era nosso amigo; veio aqui em Piracicaba, na casa da gente, era amigão. brUno: Ele era franciscano? melSene: Era franciscano. O Leonardo vai muito à Alemanha e a outros países fazer palestras. Há, por outro lado, Júlio de Santana, um teólogo metodista, que o Hugo conheceu em Montevidéu e trabalhou com ele no Conselho Mundial de Igreja. Júlio teve que sair do Uruguai depois do golpe. brUno: E o Hugo, aqui, nesse período, já começou a dar aula na pós- graduação? melSene: Ele começou logo. Ele dava aula inicialmente na Comunicação e, em seguida, o nosso amigo, o Sigrist,14 o convidou para trabalhar na pós- graduação em Educação. Eles já se conheciam de Roma e se reencontraram aqui; Hugo começou a dar aula na pós, e, em seguida, orientar e co-orientar mestrandos e a participar de bancas de defesa. cleiton: Mel, veja bem: caiu o muro de Berlim. Ficou esse desencanto dele com o socialismo real e ele foi também deixando a esquerda. Uma coisa tem a ver com a outra? Como é que você vê isso? melSene: Na verdade, veja você: o último livro sobre a curiosidade, as coisas sobre Pedagogia, os últimos livros dele. Ele se voltou, voltou nele toda a parte cristã, para dentro da educação. Desencantou mais da política e se dedicou para outra coisa, porque ele começou a ver as barbaridades que aconteciam por aí. Toda a questão da Nicarágua, uma luta da qual nós participamos de coração e alma, e depois deu no que deu. Foi um horror! E é uma coisa estranha: entre o pessoal da primeira turma dos guerrilheiros colombianos que começou com o padre Camilo Torres, havia um tal de Renê, do qual não me lembro o sobrenome, que precisou fugir da Colômbia e foi parar lá em casa. Parava de tudo lá em casa. Ele estava totalmente neurótico. Tomava uma garrafa inteira de pinga, ficava, assim, totalmente vidrado. Sei que, enfim, as crianças eram pequenas e o Hugo disse: “Não dá para ter essa pessoa dentro de casa”. E a gente o encaminhou para outros lados. Isso na época do começo da guerrilha colombiana, que tinha um ideal, tinha uma razão de ser. Hoje não, hoje é tudo bandido. Não é? Realmente todos são bandidos. A gente viu isso já naquela época. O que se deu depois com os guerrilheiros da Nicarágua? O pessoal fica psicologicamente condicionado a ser guerrilheiro, a ter arma na mão, e eles não conseguem mais viver normalmente. Na Nicarágua, a gente viu que muitos daqueles que lutaram pela revolução viraram depois contra ela. Foram pagos pelos americanos e como eles não sabiam fazer outra coisa... Sabe? Para eles... Esse pessoal que vive anos nessa vida, ele não consegue mais sair dali. É uma coisa triste de ver! cleiton: Hugo manteve contato com a família dele (os pais e os irmãos)? 14 José Luiz Sigrist, durante muitos anos, foi coordenador da Pós-Graduação em Educação da uniMeP.

34 COMUNICAÇÕES • Piracicaba •Ano 15 • n. 1/2 • p. 11 - 38 • jan. - dez. 2008 melSene: Sim, manteve. Manteve sim, porque a família dele morava toda no oeste catarinense. cleiton: Ah! Então não estavam mais no Rio Grande do Sul? melSene: Não. Eles saíram, foram mais tarde para o oeste catarinense. O irmão dele mais velho casou, tinha família e foi para lá e levou os pais também. brUno: Em que cidade? melSene: Eles estão em Iporã do Oeste, perto de São Miguel do Oeste, lá de onde veio o Roque Strieder, lembra do Roque? brUno: Eu o encontrei agora, na Universidade de Passo Fundo. melSene: É pertinho de Iporã. É uma cidade menorzinha. Na época, quando nós íamos, em 1981/82, nas férias, Iporã era praticamente uma rua com outras ruas laterais, não tinha asfalto, uma poeira só. Hoje está asfaltada. Cresceu bastante. cleiton: É perto da Argentina, suponho? melSene: Bem pertinho. Fica perto do Rio Uruguai. Você vai para Itapiranga, que é um pouco mais para frente, e já é quase fronteira da Argentina. É bonita a região. Ali vivia a mãe dele porque o pai faleceu enquanto ele estava no exílio, nos anos 70. Nessa época, nós fomos visitá-la. brUno: Hugo tinha mais irmãos? melSene: Tinha. Eram cinco, duas irmãs e três irmãos. O irmão mais velho, depois dessa visita, em 1982, teve um enfarto, depois pegou um câncer e logo faleceu. O irmão mais novo está, hoje, no Mato Grosso do Sul com a família toda. Está vivo ainda. E as duas irmãs já faleceram. Uma delas morreu muito jovem, com 20 anos. Extraiu um dente, tomou uma injeção e teve um choque anafilático. E a outra faleceu no oitavo parto. A filha dela, a mais velha, estava na missa de sétimo dia do Hugo. brUno: Ele tem um sobrinho ou primo lá na UFSC, em Florianópolis? melSene: Não é sobrinho. Os sobrinhos estão em Porto Alegre. O de Florianópolis é o Silvino Assmann, é um parente próximo. A gente o conheceu, ele é de Venâncio Aires, mas se parece demais com o filho mais velho do irmão do Hugo, que está em Porto Alegre; é “cara de um, focinho do outro.” brUno: E o Silvino trabalhou no Vaticano? melSene: É. Ele é muito legal. Um homem brilhante. brUno: É até tradutor de pensadores italianos... Mel, uma coisa que o Hugo gostava muito, depois que ele começou a escrever livros sobre a educação, era fazer conferências no Rio Grande do Sul; ele era constantemente convidado para isso. melSene: Era. Ele ia muito nesses encontros de educação, de capacitação para educadores. Seminários grandes, gigantescos, com quinhentas, mil pessoas. A gente foi em Santa Rosa, Santo Ângelo, Soledade, e, em Santa Catarina, também foi em vários. cleiton: Mel, quando vocês vieram para cá certamente apareceram outros convites para vocês mudarem de novo, mas vocês quiseram ficar? Isso aconteceu? melSene: Não. Aqui ele achou que estava bem e estava gostando do que estava fazendo. E também a gente não queria mais mudar. E outra coisa:

COMUNICAÇÕES • Piracicaba •Ano 15 • n. 1/2 • p. 11 - 38 • jan. - dez. 2008 35 mudar para o Sul, onde é muito frio, nós também já não queríamos mais. Ele não gostava muito do frio. Estar de volta ao Brasil para ele estava muito bom. cleiton: E como era a rotina dele? Ele estudava em casa nos últimos tempos? melSene: Sempre estava no computador. Muito, porque eu acho que foi um dos primeiros a ter computador em casa. Era com tela preta e a letrinha branca. Você ficava uma hora esperando entrar o sinal. cleiton: E ele logo se encantou? melSene: A primeira coisa era computador em casa. Nossa ele era, ele sempre era assim, antenado, as coisas novas ele tinha que saber. brUno: É, sobre a teoria crítica, por exemplo, sempre que saía alguma coisa na Alemanha, ele vinha logo falar para a gente. melSene: É, porque como ele lia em vários idiomas para ele era fácil, não tinha problema. Para ele ler inglês, francês, italiano, alemão ou espanhol, era a mesma coisa. brUno: Latim. melSene: É, latim e grego também. brUno: Um pouco de hebraico. melSene: É também. Naquela época, a gente estudava diferente. No meu tempo de ginásio, a gente saía preparado diferente. brUno: Oh! Mel, como era ser mulher de homem como Hugo? melSene: Ah! Eu nunca me acanhei com isso, não. Não, porque, conseguindo acompanhá-lo, não tinha motivo para ficar acanhada; como eu sempre trabalhei junto com ele, eu sempre estava por dentro de tudo. brUno: Você o assessorava. melSene: Eu o assessorava em tudo... É, eu acho que se ele não tivesse me conhecido, ele não teria vivido tanto tempo... Eu sempre trabalhei o tempo todo junto com ele. cleiton: E agora um lado bem pessoal: como ele era em casa, era de consertar torneira, lâmpada? melSene: Ele cozinhava, lavava louça, fazia de tudo também em casa. Se tivesse que cozinhar, ele cozinhava, gostava de cozinhar. Agora, quando ele escrevia, se encerrava no escritório e ficava lá. Ele sumia. cleiton: Quando nós íamos a sua casa, ele gostava de mostrar as coisas. melSene: Era. E depois era um adorador de livros. Era um vício até; não podia ir a uma livraria sem comprar algo. Nos primeiros tempos, a gente ia a São Paulo para ele comprar livro. Porque não tinha livraria em Piracicaba. brUno: Eu me lembro de um fato: ele participou da minha banca de doutorado, ele, o Rubem Alves, o Edênio do Vale, o Severino. O Sigrist era meu orientador. E aí ele leu minha tese e me chamou lá na sua casa, antes da defesa. E, depois de um belo almoço, me fez uma série de objeções, que, depois, me ajudaram muito na defesa. melSene: Ele sempre foi muito crítico, inclusive, às vezes, ele era durão demais. Ele chocava, ele adorava chocar. brUno: Quando eu voltei para a Unimep, cá nós demos aula juntos para uma turma de 15 doutorandos. Éramos cinco professores. A classe ficou rachada, metade apoiando o Hugo e a outra metade a nosso favor. Nessa época, a gente não estava concordando com

36 COMUNICAÇÕES • Piracicaba •Ano 15 • n. 1/2 • p. 11 - 38 • jan. - dez. 2008 algumas idéias do Hugo; ele estava estudando Maturana e também Morin, o teórico da complexidade. melSene: E que hoje estão na crista da onda, aí. Ele sempre foi aquele que abria caminhos. Ele tinha um bom faro pelas novidades. Ele percebia que era por ali que se devia ir e ia. Ele era meio profeta nessas coisas. cleiton: Não se acomodava. melSene: Não, nunca. Até a última hora ele não se acomodou. cleiton: E a relação com os orientandos? melSene: Ele era duro. Dava um duro danado, mas sempre foi benquisto. Era o jeitão dele. Era uma personalidade forte, muito inteligente, brilhante, porque tudo ele captava no ar. E não tinha quem o contestasse, não, porque ele pesquisava as coisas, lia muito, ele estava sempre lendo. brUno: E os livros do Hugo foram traduzidos para diversas línguas? melSene: Sim, os dois últimos livros sobre educação foram traduzidos para o espanhol. Os livros vinculados à Teologia da Libertação foram traduzidos para diversas línguas: espanhol, italiano, inglês e alemão. cleiton: E havia algum livro em especial que ele gostava? melSene: Desse, sobre a curiosidade ele gostou muito; foi o último. E todo mundo que o lê, gosta. Aqueles sobre a educação ele gostava muito, porque, no fim, sua frustração com a política e a economia o fez voltar-se mais para a educação. “Não, eu vou me encontrar na educação”, dizia. E aí ele começou a falar sobre re-encantar a educação e isso foi o que o levou a tantas palestras no Sul, porque existiam aquelas coisas dos sindicatos, todo mundo pessimista. E ele disse: “Não, tem que levantar, tem que achar a beleza das coisas!” reFerênciaS

ASSMANN, H. Teologia desde la práxis de la liberación. Salamanca: Sígueme; 1973. BETTANCOURT, E. Teologia da Libertação III. Disponível em: . Acesso em: 30 nov. 2008. CECCHIN, A. Depoimento. Disponível em: . Acesso em: 30 nov. /2008. GROSSI, E. Depoimento. Disponível em: . Acesso em: 30 nov. 2008. LIMA JUNIOR, J. Papo de boteco. Piracicaba: uniMeP; 1982. MAIA, A. Depoimento. Disponível em: . Acesso em: 30 nov. 2008. MATHEWS, J. Hugo Assmann: brazilian catholic pioneer of liberation

COMUNICAÇÕES • Piracicaba •Ano 15 • n. 1/2 • p. 11 - 38 • jan. - dez. 2008 37 theology who accused the latin-american church of isolating itself from the poor. The Times, London, 11 mar. 2008. Obituaries. TAMAYO, J. J. Da teologia da Libertação à educação para a esperança. Disponível em: . Acesso em: 27 fev. 2008. VELOSO JUNIOR, J. C. A teologia no Brasil. Disponível em: . Acesso em: 30 nov. 2008.

Dados dos Autores brUno pUcci Pesquisador do CNPq e da Fapesp. Coordenador do Grupo de Pesquisa “Teoria Crítica e Educação”. Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Metodista de Piracicaba/SP.

cleiton de oliveira Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Metodista de Piracicaba/SP

chriStine betty Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Metodista de Piracicaba/SP. Professora do Curso de Comunicação Social da Universidade de Fortaleza/CE

38 COMUNICAÇÕES • Piracicaba •Ano 15 • n. 1/2 • p. 11 - 38 • jan. - dez. 2008 HUGO ASSMANN E REFLEXÕES SOBRE SER HUMANO, EDUCAÇÃO E APRENDIZAGEM Hugo Assmann’s Contribuitions to the Reflexions on Human Being, Education and Learning

roqUe Strieder Universidade do Oeste de Santa Catarina/SC [email protected]

Resumo Esta produção é uma homenagem ao pensador, Dr. Hugo Assmann. É uma reflexão, reconhecidamente modesta, sobre contribuições de Assmann na minha formação e na minha reconstrução da visão de mundo, de ser humano, de educação e de aprendizagem. Assmann foi exigente em termos de profundidade epistemológica e antropológica. Ponho em destaque sua insistência na superação dos ranços do negativismo e do desânimo, predominantes em muitos ambientes educacionais. Enfatizo que a concepção cartesiana dissecou e fragmentou o conhecimento, o ser humano e suas formas relacionais, levando ao extremo a lógica da exclusão. No sonho da superação dessa lógica excludente, encontra-se a teoria da auto-organização, a concepção sistêmica e o reconhecimento da interdependência. Ambas tornam-se imprescindíveis, mas não suficientes, para alavancar a sensibilidade solidária. Como semente lançada, ansiosa para receber o aconchego da fértil esperança, sonha-se, mas não irrefletidamente, com suas contribuições no jeito de fazer educação, na relação de aprendizagem e nas relações sociais. Ao mudarmos nossas formas de conhecimento, ao alterarmos nossas concepções de vida e de seres humanos, as relações sociais podem canalizar para redes de cooperação entre diferentes jeitos de ser, diferentes modos de vida, diferentes culturas e, então, enraizada na desejabilidade humana, renasce a esperança da sensibilidade solidária. Palavras-chave educação – sensibilidade solidáRia – esPeRança.

Abstract This production pays homage to the thinker, Dr. Hugo Assmann. It is an admittedly modest reflection on contributions of Assmann in my education and in the reconstruction of the view of the world, of being human, of education, and of learning. Assmann was demanding in terms of epistemological and anthropological depth. I point out his insistence in overcoming the problems of the negativism and giving up, predominant in different educational environments. I emphasize that the Cartesian conception interrupted and broke up knowledge, the human being and their relationships, taking the logic of the exclusion to extremes. In the dream of overcoming this exculpatory logic, the theory of auto-organization, the systemic conception and the recognition of the interdependence can be found. Both become essential, but not enough, to improve solidary sensitivity. As a

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 39 - 56 • jan. - dez. 2008 39 planted seed, anxious to get comfort from the fertile hope, it is possible to dream, but not unreflectively, with his contributions in the way to make education, in the link of the learning and the social relations. When moving our forms of knowledge, when modifying our conceptions of life and human beings, the social relations can be aimed at nets of cooperation between different ways of being, different ways of living, different cultures and, then, the hope of solidary sensitivity is reborn rooted in human desire. Keywords education – solidaRy sensitivity – hoPe conSideraçõeS iniciaiS

Inúmeras foram as contribuições do Prof. Dr. Hugo Assmann na minha formação, como ser humano, como profissional da educação e como aprendente. Foram contribuições que alteraram não somente concepções de vida, mas também a forma de conceber os seres vivos, como seres aprendentes, afetivos e sociais. Fui desafiado a entender, de modo mais profundo, o fenômeno da educação possível de ser realizado num cenário de mudanças, envolto pelas diferenças, regado pela diversidade e pluralidade, e reconhecer que educar implica aprender a conviver com outros valores, outros costumes e outros modos de ser e de ver o mundo. As idéias de Assmann foram base e sementes para superar o tradicional paradigma da fragmentação. As várias concepções sobre as organizações sociais, sobre o viés antropológico do ser humano e sobre o significado de aprendizagem, como inscrição na corporeidade, permitiram a percepção da relevância de novas formas relacionais, nas atividades pedagógicas e educativas. Muito mais do que, meramente, anunciar novas concepções, Assmann contribuiu para a percepção de como elas afetam os processos de aprendizagem, como reorientam a interação entre educador e aprendente, entre os próprios aprendentes e as novas finalidades, que têm o espaço educacional, na formação e na vivência, dos que, em sala de aula, desejam-se em aprendência. Ao manifestar concordância com a condição de incerteza e mutabilidade do mundo atual, Assmann significou a flexibilidade do aprender e do pensar, ou seja, reaprender a olhar as raízes culturais, epistemológicas e sociais, nas quais estamos vivendo, para compreendermos melhor as nossas potencialidades de criar futuros abertos e mundos mais significativos para se viver. As reflexões e contribuições de Assmann, sustentadas pelas biociências, pela nova antropologia, por referenciais filosóficos e teológicos, permitiram reconhecer o quanto afetam todos os processos de aprendência, como afetam as relações sociais ao criarem ambientes de aprendizagem. Na convivência com o Prof. Dr. Hugo A ssmann, aprendi a reconhecer e compreender a importância das suas contribuições. Elas possibilitaram mudanças na minha visão de mundo, minha visão de organização social, visão de ser humano, visão de educação e de aprendizagem. Ele tinha, e

40 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 39 - 56 • jan. - dez. 2008 suas publicações também têm, um jeito diferente e singular de perceber e ler as inúmeras transformações paradigmáticas, em ocorrência nos vários segmentos da sociedade, e com que profundidade elas afetam o modo de produzir tanto os bens materiais quanto o modo de se prestar serviços. Um contexto que permitiu reconhecer que tanto a humanidade como as suas organizações sociais, com sua pluralidade de formas e culturas, passam por processos evolutivos que fazem convergir, atualmente, grande parte da população do planeta para centros urbanos. E, para significar essa nova situação de ampla urbanização, Hugo Assmann usou a expressão “sociedades amplas e complexas” para referenciar as características dessa nova realidade social. No invólucro dessas grandes contribuições, proponho-me a destacar três temas, os quais não podem ser refletidos isoladamente, porque, tal qual um rizoma, eles se entrecruzam, endobram-se e descentralizam-se. Significa reconhecer que, também no terreno da educação, a aposta em ambientes fechados e de repasse de certezas absolutas, com base na ciência cartesiana, vê decretada a sua insuficiência. É possível iniciar um processo de substituição no imaginário epistemológico, o que remete a disciplinas auto-suficientes, certezas absolutas, mensurações exatas e significados fechados. da economia de mercado para Uma economia-com-mercado

Ao reconhecer a irreversibilidade do processo de urbanização – uma concentração de enormes contingentes humanos, em espaços cada vez mais verticalizados –, é impossível esquecer o questionamento formulado por Assmann: “Como se comportam os seres humanos vivendo em sociedades amplas e complexas?” Nos inúmeros encontros, em sala de aula ou em momentos de orientação, essa foi uma questão presente. As reflexões, sempre apoiadas em leituras densas e diálogos profundos, convergiam para uma espécie de “princípio de complementariedade” sendo impossível dissociar sensibilidade social e eficiência educativa. No percurso, Assmann deixou evidenciado que os comportamentos dos seres humanos são pautados em sistemas dinâmicos, praticamente auto-reguláveis que, no contexto capitalista, denominam-se e reconhecem-se como economia de mercado, que se fundamenta na troca competitiva. Ao falar da economia de mercado, Assmann se revestia de muitos cuidados, para não simplesmente negá-la de forma radical. O mercado não seria uma espécie de fera apocalíptica, maquinando de forma “intencional e planejadamente, os mínimos detalhes do que chamamos lógica da exclusão” (ASSMANN, 1996, p. 216). A exclusão acompanha o contexto da complexa fase evolutiva da humanidade, sendo uma “somatória de condições objetivas e subjetivas que ultrapassam, em muito, a intencionalidade dos indivíduos” (ASSMANN, 1996, p. 216). No rol dessas concepções, encontra sustento a necessidade de reconhecer que a economia, com base na troca competitiva, tem presença inegável

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 39 - 56 • jan. - dez. 2008 41 no estágio atual da evolução humana, por ser responsável pela produção e reprodução de nossas vidas. A lógica dessa competição tem como resultado uma acumulação grandiosa de bens para pequenos grupos, mas também uma exclusão de enorme contingente humano de diversas nações. Na economia de mercado, de troca competitiva, em que, infelizmente, somente o mais forte triunfa, e os demais ou se agregam como subalternos ou efetivamente desaparecem, existem, segundo Assmann, razões antropológicas e razões econômicas. Razões antropológicas, porque o mercado valoriza e incentiva a criatividade, estimula o empenho, aposta na melhoria e na diversificação da produção, enquanto procura unir desejos e necessidades. Razões econômicas, porque o mercado valoriza a eficiência de produção e, dessa forma, coleciona êxitos inegáveis no aumento dela, estimula a competitividade e promove maior unidade entre avanços técnico-científicos e o desenvolvimento do sistema produtivo (ASSMANN, 1996). Outra leitura feita por Assmann é a de que, no sonho de grande parte dos teóricos da economia de mercado, os próprios mecanismos de mercado contêm dentro de si a capacidade de distribuir justiça social e solidariedade. Ao referenciar Adam Smith, Assmann (1996, p. 70) constata que a preocupação com o interesse próprio contém a semente do bem comum, pois se trata de “um princípio tão poderoso que, sozinho e sem qualquer assistência, é não somente capaz de levar a sociedade à riqueza e à prosperidade” como também superar os obstáculos do mau governo. Nas concepções de livre mercado está presente a visão de que a natureza humana é essencialmente egoísta, ou seja, em última instância, cada um se preocupa exclusivamente consigo mesmo. Aposta-se no mercado, e a aposta do mercado é que ele regula a promoção tanto do interesse próprio quanto da solidariedade orgânica e espontânea. Por estimular esses dois fortes sentimentos da natureza humana, o sucesso do mercado seria infalível e inquestionável (ASSMANN; HINKELAMERT, 1989). O ser humano, transformado em Homo Oeconomicus, finalmente teria encontrado, na economia, a “forma essencial do mundo moderno”, como alenta Jean-Pierre Dupuy (1992 apud ASSMANN, 1996, p. 70). Ainda com base em Dupuy, Assmann constata, de forma enfática, que “a justiça social emerge naturalmente da adesão honesta às virtudes do mercado”. E, mais ainda, que “a tradição ideológica da economia de mercado representa uma ruptura completa com utopias humanistas acerca da justiça social” (1992 apud ASSMANN, 1996, p. 71). Ao procurar entender o mito da solidariedade do mercado, Assmann cogitava a hipótese de que o mercado encontra sustento na brutal insensibilidade com relação aos excluídos que o mercado produz. Essa insensibilidade estaria presente em boa parte nos teóricos da economia política, como também na sociedade em geral. A indiferença e a falta de sensibilidade social são os resultados de uma ética presente no mercado, que ignora e faz-de-conta que os excluídos não se encontram em seu universo imaginário e relacional.

42 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 39 - 56 • jan. - dez. 2008 Por tratar-se de uma questão ética, acredita-se que seja resultado de uma deficiência particular do ser humano e não um problema da dinâmica da economia de mercado. Então, a crucial falta de sensibilidade solidária tem como causa sensações de impotência, indiferença e temor. Assmann afirma, conjuntamente com Elimar Pinheiro Nascimento, que a população excluída é brutalmente considerada desnecessária e inaproveitável economicamente e, por isso, também, “socialmente perigosa”. Assim, aparece uma face nova da exclusão, uma face mais perversa da exclusão, ou seja, “a criação de uma parcela da população passível de eliminação física” (ASSMANN, 1996, p. 215). Apesar das fortes evidências de que a economia de mercado, com base na troca competitiva, é altamente destruidora da natureza e de seres humanos, além de um dos grandes vilões do bem-estar social, da sensibilidade social e da solidariedade, Assmann não a concebe como um grande satã. Sua proposição é pela “aceitação de uma economia-com-mercado” (ASSMANN, 1996, p. 230). Ao fazer tal proposição, considera ser o mercado fundamental, mas alerta que a economia-com-mercado precisa fundamentar-se numa troca complementar e colaborativa. Para que uma transposição desse significado possa ocorrer, Assmann afirma ser necessário entender a lógica da exclusão. Esse entendimento constitui-se, no pensamento de Assmann (1996, p. 211), como o maior desafio ético da atualidade: reconhecer a existência de “uma estarrecedora lógica da exclusão no mundo de hoje”. A existência de enormes contingentes da população mundial, como massa sobrante sobrevivendo às margens do mercado, é o resultado dos graves equívocos em relação à credibilidade da existência de uma solidariedade congênita e natural, na economia de mercado. Assmann afirma, também, que o contingente de excluídos é uma denúncia da fragilidade ou mesmo da ausência de políticas públicas. O reconhecimento de nossa condição de seres cooperativos e solidários tem como pressuposto o reconhecimento da interdependência de todos os seres humanos para consigo e para com a natureza. Esse reconhecimento permite perceber a existência de uma teia de conexões que nos envolve por todos os lados. Ele passa a ser, segundo Assmann, um projeto pessoal e coletivo e uma das condições do novo sonho da troca complementar e cooperativa, no qual todos ganham. Ao invés de dividir e excluir, que é a lógica da competição, a cooperação soma, valoriza e inclui. Considerando os aspectos discutidos nessa parte da reflexão, resta afirmar que foi de grande importância perceber a ingenuidade e obsolescência dos muitos radicalismos contrários à economia. É tão mais profícuo desafiar a educação para que considere ser impostergável um investimento sério na formação de sujeitos éticos, capazes de sentirem-se envolvidos com uma economia-de-mercado. Ao serem envolvidos, afirma Assmann, podem reconhecer a existência de “níveis de auto-regulação efetivamente existentes (na economia, na política, na cultura e na educação)”. Também serão capazes

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 39 - 56 • jan. - dez. 2008 43 de supor “que, apesar das condições não sempre propícias, sobreviva nele algo de livre determinação subjetiva” (ASSMANN, 1996, p. 233). Não se pode ignorar a perspectiva de que nesses sujeitos éticos conviva, de forma inseparável, a unidade entre desejos e necessidades. Por fim, se de um lado, não se pode negar as virtudes e a força dinâmica do mercado, sua grande criatividade e sua enorme diversificação produtiva, de outro, não há como ignorar que o “mercado está longe de revelar aquelas tendências de inclusão, que os economistas lhe atribuem” (ASSMANN, 1996, p. 232). edUcação e oS deSaFioS para Uma Sociedade inclUSiva

Incialmente, foi muito forte, surpreendente e mesmo confuso, entender a abrangência da visão que Assmann abraçava com muita ênfase, ao afirmar que a educação representa, atualmente, a mais importante tarefa social emancipatória na medida em que se identifica a educação com a tarefa de lutar contra a exclusão. Afirmações como “educar significa defender vidas”, “a privação da educação é uma causa mortis inegável”, “[...] também nas instituições educativas, há muita gente encalhada no mero negativismo”, “sem encarar de frente o cerne pedagógico da qualidade do ensino, podemos estar sendo coniventes no crime de um apartheid neuronal” (ASSMANN, 1998, p. 22-23), “educação como processo de encantamento e prazer”, que a educação precisa gerar “experiências de aprendizagem que são vividas como algo que faz sentido e é humanamente gostoso” (ASSMANN, 1996, p. 18- 19), são expressões que exigiam muito mais que simples transformações em slogans repetitivos. Foi necessário entender quais configurações epistemológicas, pedagógicas, culturais, entre outras, permitiram o acúmulo de tantas deficiências e negativismos. “Curar as doenças de nossas linguagens pedagógicas” (ASSMANN, 1996, p. 154) fora considerado por Assmann como uma das condições fundamentais para superar o desânimo e o negativismo. Subsumir a evidência de que “as doenças mais freqüentes das linguagens educacionais parecem ser a infecção com o vírus do desânimo e a necrose dos esquematismos instrucionais” (ASSMANN, 1996, p. 155), significava encontrar outros parâmetros de ordem antropológica e epistemológica para a educação. Para entender a supervalorização instrucional denunciada por Assmann, foi necessário um apoio antropológico. Para ele, deveras existe no ser humano uma tremenda capacidade tanto para criar quanto para entender, observar e manipular regras. O ser humano é portador de uma incrível habilidade para se ajustar a regras e adestramentos. Como animais instrucionais, construímos uma visão mecanicista do corpo do ser humano e, como tal, a escola “fez uma opção preferencial por nosso lado de animal domesticável e adestrável” (ASSMANN, 1996, p. 141). Então, talvez esteja nessa pré- condição a possibilidade de entender a “quase imutabilidade dos processos didáticos ao longo de séculos” (ASSMANN, 1996, p. 141). Sem desmerecer

44 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 39 - 56 • jan. - dez. 2008 a importância da existência e do seguimento de regras instrucionais, já que são importantes, por exemplo, na metodologia científica, nas habilidades lingüísticas e conceituais, no moldeamento dos corpos para danças, provas de atletismo, entre outros, não se pode reduzir o ser humano, nem os sistemas culturais e religiosos, a esse tipo de pensamento único. Então, educar é muito mais do que instruir, é construir significados e possibilidades de ação. Assmann também entendeu ser imprescindível superar nos “ambientes educacionais da América Latina e do Brasil: a influência de um pessimismo nefasto revestido de uma falsa máscara de consciência política”. Ao afirmar ser bobagem insistir com argumentos, tais como: “que a nossa consciência é que tem a batuta na mão” (ASSMANN, 1998, p. 66-70) e os nossos sentidos são janelas para a entrada do conhecimento, Assmann estava convidando os educadores para uma virada epistemológica no debate sobre educação, aprendizagem e vida. A vida humana deixa de ser um mero processo de preparação para uma vida eterna “post mortem”, para tornar-se algo válido aqui e agora e por si mesmo. Assmann, busca nas biociências os referenciais para afirmar que os processos cognitivos e os processos vitais são, no fundo, a mesma coisa. Afirmar que a vida implica, essencialmente, em processos de aprendência, significa reconhecer a existência da interação do aluno aprendente com todo o seu entorno ambiente, formando um único sistema. Além da coexistência dos seres humanos com o entorno ambiente, também ficava reconhecida a co-existência e interdependência dos seres humanos entre si. Abrem-se, nessa possibilidade de co-existência, as portas para a sensibilidade humana? Assmann alerta afirmando que a tarefa de sensibilizar seres humanos, para metas solidárias, deve considerar importantes pressupostos antropológicos, por exemplo, que seres humanos

‘funcionam’ melhor, a sós e em convivialidade social, com elevadas doses de euforia e discretas doses de cobrança à consciência. A conversão dos seres humanos para metas solidárias não busca ‘criar consciência’ num sentido racionalista, mas desencadear processos auto-organizativos – cognitivos e vitais – em direção a um mundo mais solidário, respeitando e tomando como condições iniciais os processos auto-organizativos atualmente existentes. (ASSMANN, 1998, p. 66-67).

Juntamente com a defesa e a salvação de vidas, “No atual contexto, a educação para a solidariedade persistente se perspectiva como a mais avançada tarefa social emancipatória” (ASSMANN, 1998, p. 21). Foi diferente das concepções tradicionais entender que a educação tem a sublime tarefa de despertar sensibilidades para questões humanas e sociais, enquanto oferece uma base ética, capaz de permitir a construção de consensos básicos, que permitam soluções a inúmeros problemas fundamentais.

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 39 - 56 • jan. - dez. 2008 45 Assmann insistia não somente na obsolescência de instituições educacionais, mas denunciava a gravidade das condições de in-empregabilidade, a insustentabilidade da intolerância e a falta de hospitalidade, denunciava, ainda, a fragmentação destrutiva dos saberes, a violência da destruição ecológica, a violência da insensibilidade social e o estado de desesperança de milhões de seres humanos, seja em países desenvolvidos ou dos em desenvolvimento. Por isso, mas sem nunca apostar idilicamente, Assmann estimulava o desenvolvimento de uma atitude criativa e positiva diante da vida. Persistia e reafirmava a necessidade de, via educação, não somente preparar competências para o mundo produtivo, mas também competências e criatividade para realizar a paz e a solidariedade entre os humanos. Assmann reconhece equívocos em seu próprio universo de atuação e faz uma crítica bastante contundente a postulados políticos e antropológicos da Teologia da Libertação e das apostas nas críticas meramente denunciatórias, cuja transposição, rasa e simplista, levou também a equívocos pedagógicos. Assmann afirma:

Muitos de minha geração dedicamos muitas décadas de nossas vidas orientados por uma visão de educação carregadamente penetrada de propósitos ideológico- políticos explícitos. Pessoalmente estive a tal ponto enfiado nessas urgências de mudanças sociais profundas [...] que só tardiamente fui percebendo quão de perto e quão incontáveis vezes pude constatar a pobreza teórica, a estreiteza ideológica e – por que não dizê-lo abertamente? – a feiúra ética e humana da ‘consciência histórica’ e do ‘sujeito histórico’ [...] que cresceu em mim a convicção de que, efetivamente havia algo de errado não só nas idéias políticas ardorosamente abraçadas, mas na visão do ser humano que elas continham. (ASSMANN), (1998, p. 105-106).

Tanto quanto reconhecer os inúmeros equívocos educacionais e pedagógicos, Assmann alertou sobre a não predisposição teológica e antropológica dos seres humanos para, espontaneamente, engajarem-se em causas sociais. “A solidariedade requer conversões penosas, sofridas, generosas. Não é realidade supô-la como um dado humano natural” (ASSMANN, 1996, p. 61). Com Sung, afirmava que a solidariedade não continua sendo uma “terra virgem”, mas aparece parcialmente ocupada, cujo cultivo é ainda diferenciado e se manifesta mais intensamente em situações emergenciais de grandes acidentes e graves desastres (ASSMANN, 2000, p. 68). Compreender essas diferentes dimensões exige, segundo Assmann (1998), uma mudança profunda de índole epistemológica. Significa reconhecer que nossas realidades, e porque não dizer também nossas verdades, são, fundamentalmente, construções discursivas em busca do que faz sentido para a existência dos seres humanos. Pensar, afirmava Assmann,

46 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 39 - 56 • jan. - dez. 2008 é trabalhar interfaces e interpenetrações possíveis dos diversificados mundos do sentido que os humanos criaram em sua longa evolução. Também, a educação e a pedagogia precisam romper com teorias lineares e entender algo de sistemas dinâmicos e complexos, nos quais a auto-organização e os novos níveis emergentes cumpram um papel fundamental. Nenhuma teoria do sujeito, individual ou coletivo, tem significado se não opera basicamente com os campos do sentido. Se a vida é uma emergência espontânea da matéria organizada e não o resultado de propósitos intencionais, e se a educação tem a sublime tarefa de salvar vidas, então é importante refletir e compreender um pouco melhor a auto-organização. a emergência da aUto-organização

Na reconfiguração antropológica dos seres humanos, entendidos como profundamente interdependentes, é imprescindível reconhecer que somos parte da terra, (somos húmus, do hebraico ãdãmãh, solo cultivável, e ãdãm = Adão) não como indivíduos, mas como sistemas vivos fazendo história. Na condição de sistemas vivos, compartilhamos com os demais sistemas vivos, animais e vegetais, e também com o mundo mineral, os mesmos nichos vitais. As interdependências dessa diversidade sistêmica, seus níveis de equilíbrios e desequilíbrios sempre oscilantes, desdobram-se em interações de mutabilidade. Somos todos sistemas dinâmicos e abertos que, apesar da profunda interação, apontam para uma finalidade não previsível para desdobramentos sem intencionalidade. É o envolvimento, o caminhar para graus de maior organização, que torna possível o desenvolvimento, sem negligenciar a dependência da existência humana tanto dos fatores naturais como dos condicionamentos históricos, que possibilitam a passagem da desordem para a ordem, imprescindível para a manutenção da vida. O suporte para essas afirmações, Assmann encontra em Schrödinger (1997), o qual sustenta que todo e qualquer ser vivo mantém a sua ordem interna ao criar, em paralelo, uma desordem no meio exterior. O ser vivo, ao organizar-se, retira ordem do meio ambiente, desorganizando-o. Assmann transcreve outra importante referência sobre a auto- organização trazida de Cramer e Kaempfer, que afirmam:

A matéria viva tem como característica básica a auto- organização e, com isso, a capacidade para a organização de formas, que ela ‘envolve’ (faz evoluir) e ‘pro-duz’ (leva para frente) em cada caso, que têm a característica de ‘novas’ e se inscrevem na linha de uma forma-tempo [...] irreversível e, portanto, ‘histórica’. (1992 apud ASSMANN, 1998, p. 59).

Então, estar vivo é estar e sentir-se formando, com o entorno ambiente, a interdependência. Isso nos leva a concluir que fazemos parte de uma complexa

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 39 - 56 • jan. - dez. 2008 47 cadeia de inter-relações, mas que somos, acima de tudo, sistemas abertos e em constante formação. Como sistemas abertos e imersos num movimento permanente e dinâmico, co-existimos na predominância de um princípio de auto-organização, ou seja, uma interação da ordem e da desordem, do equilíbrio e do desequilíbrio. Como sistemas vivos, existimos imersos num mundo de fluxos de energia e matéria. Com base nas biociências e nas teorias sistêmicas, Assmann (1998, p. 62) escreve que auto-organização refere-se a:

[...] os processos da matéria e especialmente do mundo da vida que precisamente se apresentam como espontâneos e emergentes, sem propósito intencional ou consciente. Designam-se como processos auto-organizativos aqueles que prescindem de planos, porque emergem espontaneamente em decorrência de uma interpenetração de parâmetros caóticos com parâmetros ordenadores.

Em decorrência, pode-se afirmar que:

a vida acontece naquela fronteira fluida, onde se interpenetram os parâmetros ordenadores com os caóticos. Quem entende e aceita isso deixa para trás a visão de que a vida consiste primordialmente em ordenamentos e hierarquizações. (ASSMANN, 1996, p. 42).

Se a vida não segue, exclusivamente, parâmetros ordenadores e hierarquizações, a aprendizagem é uma emergência que envolve atividades profundamente imbricadas com a manutenção da vida e com a criação de mundos. Se formos inventores de nossos mundos, transformadores de nosso próprio mundo interno, ele não é pré-determinado e independente do ser humano. Somos inventores do nosso universo, gerado no processo da vivência, das experiências vividas e das interações tornadas possíveis, enquanto mantemos as coerências operacionais. Se a vida é um acontecer na fronteira da ordem e do caos, então não cabem “doses de intenção e consciência explícita”, e nem mesmo o meio especifica ou dirige as mudanças na organização do ser humano. Com capacidade para desenvolver processos auto-organizativos, as emergências possíveis não são previsíveis, mas localizam-se no âmbito das surpresas, das inovações e não das repetições e mesmices. As implicações dessas concepções desconstroem a concepção de que o ser humano capta, do meio, informações por intermédio dos sentidos que supostamente funcionam como “janelas” para o mundo – conceito de representação. Por isso, ensinar não pode corresponder a instruir. O ser humano não reage a estímulos do meio, numa espécie de cadeia linear de causa e efeito. Assmann, fazendo referência à Maturana e Varela, confirma que nenhum agente externo, com o qual nos relacionamos, determina mudanças no indivíduo. Refletindo a concepção de enaction de Francisco Varela, Assmann e Sung (2000, p. 247) afirmam que:

48 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 39 - 56 • jan. - dez. 2008 O próprio ato de conhecer implica muito mais do que aferir dados externos à subjetividade de quem conhece. Conhecer é experimentar conjuntamente uma relação cognitiva e desejante, porque todo conhecimento traz consigo uma busca de sentido do próprio ato de conhecimento para aquele que está conhecendo.

Para Järvilehto, citado por Assmann (1998, p. 37), se considerarmos a concepção sistêmica e nela a unidade formada entre organismo e entorno ambiente, o conhecimento não se baseia em processos de transferência pelo simples fato de que “não existem dois sistemas entre os quais pudesse ocorrer essa transferência”. A aprendizagem e a consolidação do conhecimento ocorrem concomitantes com as mudanças na estrutura do sistema. Ou seja,

o aumento do conhecimento representa uma ampliação do sistema e sua reorganização, que torna possíveis novas formas de ação e novos resultados. Segue daí que o conhecimento, como tal, não está baseado em qualquer ação direta dos sentidos. (ASSMANN, 1998, p. 37).

O aprendente torna-se um criador ativo, cuja dinâmica implica co- participação construtiva de seu próprio processo vital, bem como a reconstrução do entorno ambiente. Então essa criação, esse aprender, resulta numa nova ordem que, para chegar até ela, causou uma desordem e possivelmente teve que emergir a partir desta. O que se passa com o aprendente depende de sua estrutura, o agente externo que com ele forma uma unidade – pode ser o professor ou alguma informação – somente pode desencadear uma mudança caso a estrutura interna do aluno o permita. Isso significa a importância da dinâmica inter- relacional, ou seja, o ser vivo e as circunstâncias sempre mudam juntos. Aprendizagem é uma propriedade emergente dos processos auto- organizativos do sistema nervoso, formando unidade com o entorno ambiente. Com base nos estudos de Scott Kelso, Assmann (1998, p. 40) afirma que a aprendizagem não é um amontoado sucessivo de coisas, mas “uma teia de interações neuronais extremamente complexas e dinâmicas, que vão criando estados gerais qualitativamente novos no cérebro humano”. Aprender é um salto qualitativo da auto-organização neuronal da corporeidade viva. Mesmo assim, escreve Kelso (s/d apud ASSMANN, 1998, p. 40) “ninguém ainda sabe exatamente o que acontece num sistema complexo como o cérebro humano quando ocorre a aprendizagem.” Na dimensão auto-organizativa da unidade sistêmica, da co- responsabilidade e da convivência, também a dimensão da afetividade e prazerosidade fazem parte das reflexões de Assmann sobre educação. Ele afirma que “o conhecimento só emerge em sua dimensão vitalizadora quando tem algum tipo de ligação com o prazer (ASSMANN, 1998, p. 30). Reconhecer a interdependência e a unidade sistêmica implica conhecer,

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 39 - 56 • jan. - dez. 2008 49 respeitar e amar a todos os integrantes do sistema, bem como suas inter- relações. É importante assumir também a nossa dependência afetiva, uns em relação aos outros, dos demais seres vivos e todos os constituintes do entorno ambiente. Isso, certamente, ajuda-nos a superar a concepção antropocêntrica, ou a de que nossa existência é fundamental para a biodiversidade sistêmica. Se, como afirma Assmann (1998, p. 29), “a vida ‘se gosta’ [...] é uma vida concreta que, em seu mais profundo dinamismo vital e cognitivo, sempre gostou de si”, então não se pode zerar essa desejante dinâmica vital da vida de cada ser humano. O ato de aprender articula-se com uma experiência humanamente gostosa. Muitos outros pensadores, ao discutirem a questão da aprendizagem, reforçam a importância da presença afetiva em toda a ação pedagógica. O envolvimento crescente da afetividade, como nicho vital, faz parte dos argumentos de Nicolescu (1999, p. 87), ao afirmar “Quando ocorre a morte da afetividade, necessariamente ocorre a ‘morte do homem’”. Luiz Carlos Restrepo, também fonte de apoio para Assmann, discorre sobre a necessidade de superarmos o analfabetismo afetivo, por significar um entorpecimento nas relações interpessoais. A insuficiência afetiva favorece a ampliação do distanciamento que, por sua vez, dificulta entender e aceitar o estranho, o diferente. Para Restrepo (1998, p. 19): “O que caracteriza nosso pensamento, nossa cognição [...] é precisamente esse comportamento afetivo presente em todas as manifestações da convivência interpessoal”. Para Humberto Maturana (1998), quando o aluno aceita a mão da(o) professora(or), aceita iniciar a construção de espaços de convivência, de maneira que seu modo de vida se faz, progressivamente, mais congruente com o do outro. Essa convivência do aluno, afirma o autor, ocorre espontaneamente e vai configurando um mundo num processo contínuo que dura toda a vida. Se a vida quer continuar sendo vida, educar é manter acesa a chama dinâmica do desejo de continuar vivo e enredado com a teia da vida. Antonio Joaquim Severino (2002, p. 83) escreve:

Precisamos de educadores que ensinem o aluno a pensar. Mais do que isto, que despertem o gosto de pensar, que despertem o gosto de aprender e que despertem a experiência insubstituível do diálogo, em que cada um pode se reconhecer como sujeito de idéias, sujeito de palavras, como uma pessoa que tem o que dizer, e que pode dizer, e que será ouvida. enSonhando SenSibilidade Solidária

Um tema que vinha merecendo a reflexão de Assmann, que foi profundamente estudado em conjunto com Sung, é o da sensibilidade solidária. Eivada em profundidade, atenção e cuidado, a sensibilidade solidária foi refletida, considerando pressupostos antropológicos, teológicos e econômicos.

50 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 39 - 56 • jan. - dez. 2008 Todo o processo civilizador, na longa trajetória evolutiva da humanidade, conviveu com a brutalidade da exclusão. A superação dessa lógica, que ceifa vidas em todos os continentes e países, não é considerada por Assmann e Sung uma realidade irreversível. Reconhecem que a superação dessa lógica excludente não é um processo simples e nem depende da intervenção de ações mágicas, ou forças transcendentais. A possibilidade do sentimento solidário está na educação, mas naquela que coloque como centralidade o desafio de reconhecer a interdependência entre “competência e sensibilidade solidária” (ASSMANN; SUNG, 2000), tendo o cultivo da esperança como fonte e horizonte de convergências. A sensibilidade solidária, reconhecem esses dois autores, além de incorporar a consciência da complexidade humana, também se implica fraternalmente e precisa sentir-se parte do destino comum de uma humanidade, que continua vivendo a tragédia paradoxal de um Homo sapiens, que também é Homo demens. Os inúmeros desencontros da humanidade para consigo mesma estão clamando por mudanças profundas no jeito de ser humanidade. Ao denunciar as “cegueiras do conhecimento”, Morin (2000) afirma que a forma fragmentária de elaboração dos conhecimentos contém uma profunda dose anti-solidária. Com base em Morin (2000), Assmann e Sung (2000, p. 303) reafirmam que a condição para reconhecer e superar as lacunas dessas cegueiras “exige uma profunda conversão a um modo de conhecer e a uma visão ética radicalmente solidária”. Fazê-lo implica rever pressupostos antropológicos da condição humana, admitir a nossa identidade terrena, transformar-nos em seres acolhedores e cuidadores de outros, bem como abandonar éticas absolutas para consolidar uma ética do gênero humano. Um humano que se caracteriza como processo “bio-antropo-sócio-cultural autopoiético”, cuja presença no mundo se expressa por um ser e estar ético também por meio de mediações cognitivas. A vivência da solidariedade em sociedades amplas e complexas, sustentam Assmann e Sung, exige a organização de princípios éticos e de princípios organizativos para a sua aplicação. Não existe, a priori, qualquer forma de garantia de que a desejabilidade solidária possa efetivamente consolidar-se. Nas sociedades amplas e complexas impera uma multiplicidade de interesses e contradições, cujas chances de conciliação são muito difíceis. Mesmo nas sociedades com propostas de economias planificadas, com uma visão radicalmente diferente da concepção burguesa em relação aos seres humanos, nelas concebidos como “tendencialmente generosos, naturalmente abertos a sacrifícios, entregas e dedicações quase espontâneas” (ASSMANN; SUNG, 2000, p. 155), não passam, reconhecemos atualmente, de uma visão equivocada e excessivamente otimista do ponto de vista antropológico. Por outro lado, para Assmann e Sung (2000), as “cegueiras do conhecimento” estão muito presentes e são impeditivas do reconhecimento da interdependência, sendo a mesma considerada uma condição fundamental

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 39 - 56 • jan. - dez. 2008 51 para vivências solidárias. A interdependência é um fato que ainda está restrito a pequenos grupos humanos, cuja conseqüência é a pouca presença no cotidiano da maior parte das pessoas. Efetivamente, a interdependência de todos os seres vivos ou não vivos na natureza e das pessoas na sociedade não é um concreto visível ao olho humano. Tornar a interdependência uma realidade visível requer valorizar uma nova forma de aprendizagem, que permita ao indivíduo abrir os olhos para a sua existência. Sabendo que a educação, predominante na maioria das escolas, carrega consigo uma visão fragmentária e mecanicista do mundo, os seres humanos continuam reféns de epistemologias científicas e culturais, que não priorizam o conhecimento e o reconhecimento da interdependência como um fato. Assmann e Sung (2000, p. 80) afirmam: “A forma como conhecemos a realidade tem muito a ver com a forma como vivemos e construímos o nosso mundo. Há uma relação direta entre conhecer e viver. A forma como se conhece determina o modo de se viver.” Nossa compreensão e reconhecimento da interdependência, o fato de integrarmos sistemas mais abrangentes é, certamente, prejudicado pela educação fragmentária, mecanicista e disciplinar que predomina em grande parte das escolas. Superar esse modelo tradicional de fazer educação será possível se houver uma mudança de concepção. A mudança deve sinalizar para atitudes transdisciplinares e para a concepção sistêmica. Essa mudança terá implicações não somente em termos de conteúdo das várias disciplinas, mas, principalmente, na compreensão do que é ciência, educação e ser humano. Esse é um grande desafio que compete à educação. Nela pode estar “a fronteira avançada do salvamento concreto de vidas humanas concretas” (ASSMANN; SUNG, 2000, p. 305). A educação, como esteio da interdependência e do engajamento solidário, precisa desenvolver a sensibilidade solidária naqueles que sofrem qualquer tipo de exclusão. É necessário superar a tendência, ainda predominante, de que os seres humanos manifestam sua solidariedade tão somente nos círculos restritos de sua convivialidade. Um comportamento típico que resulta de um longo processo de aprendizagem, extremamente restritivo e associado à autocompreensão de felicidade. Essa concepção encontra suporte na competitividade econômica, sustentada pelo reducionismo antropológico de que a satisfação do interesse próprio gera, inevitavelmente, mais felicidade. Admitir ser a noção de competitividade econômica fundamental para todos os aspectos da vida em sociedade, não passa de um reducionismo antropológico, que precisa ser superado, caso exista uma preocupação efetiva com o bem-estar da humanidade e da vida no planeta; uma virada antropológica pela qual os seres humanos devem entender que a sua felicidade está ligada e emerge da felicidade dos outros. Isso requer que o desejo de solidariedade seja entendido como abertura acolhedora do outro, e se “transforme em necessidade vital personalizada como experiência própria em um número crescente dos habitantes deste planeta” (ASSMANN; SUNG, 2000, p. 170).

52 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 39 - 56 • jan. - dez. 2008 A educação para a sensibilidade solidária torna-se o lugar de um humanismo que privilegia uma formação apropriada às exigências dos novos tempos, um mundo com uma realidade multidimensional e múltiplas referências, que emerge da coexistência entre a pluralidade complexa e a unidade aberta; uma idéia de mundo que exige concepções mais dinâmicas e inquietas dos processos de conhecimento. Ao alavancar essa nova etapa para o desenvolvimento humano, admitindo nossa identidade terrena, o processo educacional descortina a noção de que a humanidade constitui uma família, exatamente por reconhecer a sua diversidade de povos, raças e nações. Educar para a sensibilidade solidária deve incluir a construção de uma visão ampliada de responsabilidade ética, que ultrapassa as fronteiras familiares, étnicas e nacionais. Mas esse salto ético somente terá possibilidades de realização se a interdependência começar a fazer parte do nosso conhecimento e de nossas formas de viver. Essa condição humana, que cria continuamente a sua humanidade, o social e o mundo, pode concretizar a ética do “estar-junto-com-os-outros- no-mundo” (RICOEUR, 1995). Um outro que nos é próximo é um outro- com-face, um outro que nos é distante – estrangeiro – é um outro-sem-face. A relação com um outro-com-face é uma relação de interdependência, porém a relação com um outro-sem-face não envolve a interdependência. Ética que, conforme Maturana (1998, p. 72-73), “não tem fundamento racional, mas sim emocional” e a “preocupação ética, como preocupação com as conseqüências que nossas ações têm sobre o outro, é um fenômeno que tem a ver com a aceitação do outro e pertence ao domínio do amor”. O amor como a emoção que constitui o domínio de condutas, em que se dá a operacionalidade da aceitação do outro como legítimo outro na convivência, para então permitir o fenômeno social. O amor coloca a possibilidade de acolher a diferença e a diversidade pela legitimidade do outro na sua alteridade, pela aceitação plena. Assmann e Sung (2000) chamam a atenção para um questionamento sempre implícito na reflexão sobre as possibilidades da concretização da sensibilidade solidária: se a solidariedade faz parte ou não da dimensão desejante do ser humano, e como essa dimensão vem se expressando na cultura ao longo da história humana. Para eles, pela vertente biológica, pode-se dizer que o ser humano é um ser gregário, que busca o convívio social. Então, essa sociabilidade espontânea torna-se uma expressão do desejo humano e, para isso, pressupõe mecanismos de solidariedade. Reforçamos a defesa dessa posição com Capra (1997, p. 193), quando este afirma que:

Todos os organismos maiores, inclusive nós mesmos, são testemunhas vivas do fato de que práticas destrutivas não funcionam a longo prazo. No fim, os agressores sempre destroem a si mesmos, abrindo caminho para outros que sabem como cooperar e como progredir. A vida é muito menos uma luta competitiva pela sobrevivência do que o triunfo da cooperação e da criatividade.

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 39 - 56 • jan. - dez. 2008 53 Também trazemos, como reforço, a hipótese cooperativa dos biólogos sistêmicos Lynn Margulis e Dorion Sagan. Para eles: “A vida não se apossa do globo pelo combate, mas sim, pela formação de redes” (1986 apud CAPRA, 1997, p. 185). Pela vertente cultural, o princípio da solidariedade oscila, com mais ou menos ênfase, dependendo do período histórico. Assmann e Sung alertam que, na modernidade, sob o viés político/filosófico – particularmente na dialética do senhor e do escravo, de Hegel – e economicista, fica nítida uma predominância do princípio da competição. Nesse postulado antropológico, subjacente à cultura, o ser humano deseja fundamentalmente o reconhecimento do e pelo outro. Então, é esse reconhecimento que resulta de uma relação dual de confronto e oposição, com predominância de poder e submissão. No liberalismo econômico, o desejo do reconhecimento do e pelo outro se manifesta à medida que promove o mercado como espaço de circulação de mercadorias (sejam bens materiais ou de serviços), como também de interesses e desejos. Em razão de o mercado se basear no princípio da competição, oferece parâmetros socioculturais de reconhecimento, fundamentados profundamente no poder de consumo. Assmann e Sung (2000) destacam dois sentidos distintos, mas complementares, predominantes na atual perspectiva de retomada e da ênfase ao conceito de solidariedade. No primeiro, afirmam ser a solidariedade uma forma de manter a noção de interdependência e de coesão social. No outro, declaram que a evocação da solidariedade acontece como forma de superar situações de exclusão e de segmentação social. A solidariedade, nesse caso, representa uma postura ética. No primeiro sentido, o trabalho implica uma compreensão mais descritiva e, no segundo, uma compreensão mais normativa. A sensibilidade solidária, a aceitação de nossa condição sistêmica e de interdependência, enfrenta, segundo Assmann e Sung (2000), obstáculos de difícil deslocação. Dentre outros, destaco aquele que tem a ver com a forma de como conhecemos, a partir da ausência de uma visão transdisciplinar e sistêmica. Essa visão permite romper com o postulado científico e cultural, clássico da modernidade, de que nosso conhecimento deve estar embasado em certezas e verdades, racionais e absolutas. Essa abertura epistemológica, rumo à visão transdisciplinar e sistêmica, desvela a possibilidade do reconhecimento de que a diversidade e a pluralidade são dimensões inerentes à realidade, bem como admite:

a existência de muitos mundos diferentes dentro do nosso mundo [...] E ao reconhecermos a pluralidade na realidade, aprendemos a reconhecer a pluralidade das interpretações, a respeitar as diferentes perspectivas e pontos de partida. (ASSMANN; SUNG, 2000, p. 99).

54 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 39 - 56 • jan. - dez. 2008 Mas a forma de conhecer e o conhecimento teórico, seja sistêmico, transdisciplinar ou da complexidade, por si sós não garantem uma postura solidária, como alertam Assmann e Sung (2000). Para que a postura solidária seja um modo de vida, é necessário saber lidar com os próprios limites, os medos e os sofrimentos. Para garantir a sensibilidade solidária, é imprescindível a percepção do sofrimento do outro, já que essa percepção possibilita a emoção da afetividade. Então, escrevem Assmann e Sung (2000, p. 101):

Sem uma educação que nos ajude a convivermos com os limites e as ambigüidades da condição humana, como a morte e a vida, a dor e o prazer, sofrimentos e alegria, medos e coragens, egoísmos e gestos de solidariedade, necessidades e desejos, etc., teremos muita dificuldade em percebermos com empatia e compaixão [...] os sofrimentos dos/as excluídos/as pela sociedade.

E, de forma muito enfática, para que a sensibilidade solidária seja transformada num modo de vida, é necessário que seja reconhecida como: “uma forma de conhecer o mundo que nasce do encontro e do reconhecimento da dignidade humana dos que estão “dentro-e-fora” do sistema social; um conhecimento marcado pela afetividade, empatia e compaixão (sentir na sua pele a dor do/a outro/a). Por isso mesmo, é um conhecimento e uma sensibilidade que estão comprometidos, que vivem a relação de interdependência e mútuo reconhecimento de um modo existencial, visceral, e não somente intelectual.” (ASSMANN; SUNG, 2000, p. 134). Nesse encontro e reconhecimento da dignidade de qualquer ser humano está o desafio e a esperança da educação. E, como confidenciava Assmann, a esperança tem o poder de realizar o possível. Quando o faz, ela simplesmente inova futuros e mundos. A esperança encontra-se em estreita sintonia com os desejos. A educação, que oportuniza espaços para a aprendência da esperança, também torna possível a visão de que os modos de vida podem ser melhorados. A educação para a esperança pode elasticar nossos sonhos em direção à interdependência e à sensibilidade solidária. Com sentimento de grande orgulho, e porque não dizer de privilegiado, por ter compartilhado parte de minha vida com o Dr. Hugo Assmann, manifesto-me profundamente grato. A viagem e a motivação da esperança persistem envoltas nas tramas da complexidade e dos enredamentos. Mas a atitude transdisciplinar e o reconhecimento da interdependência continuam espalhando o sonho de visões, que se desejam, cada vez mais coletivamente compartilhadas, pois nesses sonhos é que reside a aposta do engajamento em ações solidárias.

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 39 - 56 • jan. - dez. 2008 55 reFerênciaS

ASSMANN, H; HINKELAMERT, F. J. A idolatria do mercado: ensaio sobre economia e teologia. São Paulo: Vozes, 1989. ASSMANN, H. Metáforas novas para reencantar a educação: epistemologia e didática. Piracicaba: uniMeP, 1996. ______. Reencantar a educação: rumo à sociedade aprendente. Petrópolis: Vozes, 1998. ASSMANN, H. SUNG, J. M. Competência e sensibilidade solidária. Petrópolis: Vozes, 2000. BASARAB, N. O manifesto da transdisciplinaridade. São Paulo: Trion, 1999. BORN, V. D. A. Dicionário enciclopédico da bíblia. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1992. CAPRA, F. A teia da vida. São Paulo: Cultrix, 1997. MATURANA, H. Emoções e linguagens na educação e na política. Belo Horizonte: UFMG, 1998. RESTREPO, L. C. O direito à ternura. Petrópolis: Vozes, 1998. RICOEUR, P. Leituras 1 - em torno ao político. São Paulo: Loyola, 1995. SCHRÖDINGER, E. O que é vida? O aspecto físico da célula viva. São Paulo: UNESP, 1997. SEVERINO, A. J. Educação e transdisciplinaridade. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002.

Dados do Autor roqUe Strieder Doutor em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba/SP. Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Oeste de Santa Catarina/SC.

Recebido: 11/9/2008. Aprovado: 5/2/2009.

56 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 39 - 56 • jan. - dez. 2008 ANTIGAS E NOVAS METÁFORAS SOBRE O CONHECIMENTO Old and New Metaphors for Knowledge

ceSar romero amaral vieira Universidade Metodista de Piracicaba/SP [email protected]

Resumo Este artigo, de natureza conceitual e especulativa, é fruto de acalorados debates na disciplina Epistemologia e Educação, do Programa de Pós-Graduação em Educação da uniMeP, no segundo semestre de 2002, e da inquietude reflexiva do autor em face da abordagem de temas relativos aos fundamentos do conhecimento nas ciências humanas e sociais. Seu propósito limita-se a uma abordagem crítico-reflexiva da crise do paradigma científico denominado cartesiano-newtoniano e sua relação com o processo de ensino-aprendizagem. O objetivo é examinar a possibilidade da aquisição do conhecimento entre o sujeito indagativo e a realidade social e os inevitáveis desdobramentos para as práxis pedagógicas. Palavras-chave ePisteMologia – conheciMento – educação – hugo assMann.

Abstract This conceptual and speculative paper is fruit of both the exciting debates in the course of Epistemology and Education at uniMeP’s Graduate Program in Education, during the second semester of 2002, and the author’s reflective restlessness in face of themes concerning the fundamentals of knowledge in human and social sciences. Its purpose is limited to a critical-reflective approach to the crisis of the scientific paradigm known as Cartesian-Newtonian and its relation with the teaching-learning process. The aim is to examine the possibility of knowledge acquisition between the inquiring subject and the social reality, and the unavoidable unfoldings to the pedagogical praxis. Keywords ePisteMology – knoWledge – education – hugo assMann.

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 57 - 72 • jan. - dez. 2008 57 introdUção

Novos tempos, novos hábitos, novas idéias, mas a pergunta que surge no horizonte continua sendo a antiga dúvida levantada pelo grande poeta e compositor Noel Rosa (1930): Com que roupa eu vou pro samba que você me convidou? Como metáfora, esta parece ser uma questão apropriada para se iniciar uma despretensiosa reflexão sobre a(s) crise(s) do conhecimento que têm posto em questionamento os modelos científicos da racionalidade ocidental, fazendo emergir do confronto com a subjetividade novos paradigmas que nos impõem novos conceitos de inteligibilidade e compreensão do mundo. Esse confronto atinge as mais diversas áreas do saber e abre novas possibilidades interpretativas para as ciências humanas e, em especial, para as práxis pedagógicas. Nestes novos tempos, vestir a roupa apropriada à ocasião, antes de ser mera questão estética, passou a ser um imperativo condicionante à participação na festa. Dar continuidade, depois das aulas, às reflexões iniciadas pelo professor Hugo Assmann na disciplina Epistemologia e Educação, dividida com a professora Raquel Pereira Chainho Gandini, no segundo semestre de 2002, fazia parte do cotidiano acadêmico de alguns alunos e alunas que, envolvidos pelo insuspeito espírito provocador do professor Hugo, afoitamente se colocavam em posições antagônicas em relação uns aos outros, na tentativa de buscar o melhor ângulo para a compreensão de seu pensamento complexo.1 Este artigo é bastante circunscrito e específico: trata-se, em grande parte, de uma retrospectiva centrada na contribuição que o professor Hugo deu naquele contexto. Não é a construção de um relato sobre sua trajetória intelectual e/ou pessoal, nem um aprofundamento das questões específicas que gravitam em torno da constituição de um paradigma emergente que traga novas categorias e ressignificações interpretativas para a realidade educacional, mas limita-se a trazer a lume alguns questionamentos suscitados em sala de aula, que contribuíram para o debate sobre as novas dimensões epistemológicas para as ciências humanas e sociais e para a práxis pedagógica. Este foi o tema central de suas aulas. A partir de uma abordagem crítico-reflexiva do tema em questão, não trago a discussão na ordem original dos fatos, mas tomo a liberdade de construir um texto a partir de minha percepção do vasto leque de proposições sugeridas pelas reflexões provocativas do professor Hugo, da leitura de boa parte de suas obras e de algumas outras de autores próximos a esta temática. Algumas das proposições levantadas neste artigo não foram propriamente tratadas em sala de aula, mas são frutos de outros contextos.

Um aventUreiro do conhecimento

Muito embora a educadora Esther Pillar Grossi considere a contribuição de Hugo Assmann muito mais profícua no campo da Teologia

1 Entendido aqui como pensamento não-linear ou condicionado ao princípio clássico de causa e efeito.

58 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 57 - 72 • jan. - dez. 2008 do que propriamente no da Educação2, não há como negar que, nos últimos anos, Assmann flertava com os maiores nomes das ciências bio-tecno- cognitivas contemporâneas e que, por sua vez, esses exerceram uma profunda influência em sua compreensão do processo de ensino-aprendizagem. No prólogo de seu livro Metáforas novas para reencantar a educação, de 1996, chama a atenção dos pedagogos a “estar atentos às formas complexas que assumem, na vida dos aprendentes, a relação intrínseca entre processos vitais e processos de conhecimento” (ASSMANN, 1996, p. 7). Possuidor de uma crítica ácida ao que classificava de intelectualidade retrógrada, professor Hugo despertava em todos nós sentimentos contraditórios, que, não raramente, oscilavam como pêndulo da atração à rejeição, da admiração ao medo, da compreensão à incompreensão. Propositadamente contraditório e extremamente vaidoso de seus feitos, sentia enorme prazer em desfiar o rosário herético de seu privilegiadíssimo repertório intelectual. Encantava-se sempre com as últimas novidades que o impressionavam favoravelmente, assim como execrava tudo aquilo que lhe era contrário. Foi assim com o advento da Internet, no início dos anos 1990. Enquanto, ainda tímidos, ensaiávamos interrogativamente os primeiros passos por essa desconhecida dimensão, Assmann já apregoava a necessidade de se trazer a escola para a nova era das inovações tecnológicas da informação e da comunicação. Em favor de seu argumento, defendia a idéia de que as novas tecnologias da informação e da comunicação já não eram meros instrumentos no sentido técnico tradicional, mas feixes de propriedades ativas (ASSMANN, 2000, p. 9). Em 1999, antecipando-se às correntes sociológicas da religião, oferecia na PUC-SP um curso de curta duração sobre “Religião na era do virtual e da internet.” Em uma entrevista com René Thom, matemático laureado com a Medalha Fields, membro da Academia de Ciências, a jornalista científica Pessis-Pasternak ressuscita a categoria “herege” para caracterizar alguns cientistas que fogem do parâmetro de normalidade cultivado por sua comunidade científica. Dentre os diversos tipos de hereges, a jornalista destaca um como aquele “cientista que transfere uma parcela de teoria ou de prática experimental de uma disciplina a outra” (PESSIS-PASTERNAK, 1993, p. 23). Ao fazer uma analogia com alguém que “enxerta” um galho estranho na árvore da ciência, diz que,

no início, constata-se uma forte reação de rejeição, mas, depois, o enxerto pode brotar, e a heresia temporária revela-se uma estratégia audaciosa no intercurso da ‘apreciação dos colegas’, recompensa do gosto pelo risco. (PESSIS-PASTERNAK, 1993, p. 23).

2 Em entrevista à Agência de Informação Frei Tito para América Latina, no dia 12 de março de 2008.

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 57 - 72 • jan. - dez. 2008 59 Mesmo correndo o risco de simplificação, para efeito de análise, proponho tratar Hugo Assmann não como um “herege” das ciências humanas, mas como um “aventureiro do conhecimento”, que desde muito cedo se empenhou em ignorar as fronteiras do conhecimento, pavimentando a via de interdependência e interatividade entre as ciências, de um modo geral, sempre contrário à homilia monofônica da fragmentação (ou exclusivismo) dos cânones científicos modernos. As visitas à sua residência eram momentos de puro prazer e aprendizado. Cada detalhe do ambiente, por mais simples que fosse, era por ele sempre correlacionado a novos e inusitados conhecimentos. Não era uma correlação estabelecida com a representação fiel dos objetos, mas com o que estava para além de nossa percepção imediata. Assim, a beleza das flores, dos ramos e das pedras do jardim não estava apenas em sua estética natural, mas no que elas representavam para o conhecimento. As formas repetitivas de um mesmo elemento da natureza, ou iterações, como são chamadas as minúsculas e infinitas3 subdivisões, revelam fractais de um mundo surpreendente de definições matemáticas. O mesmo era o objetivo de suas coleções de pedras, conchas, souvenirs, para não falar do espaço quase “sagrado” de sua biblioteca, onde pilhas de livros, papéis e documentos, minuciosamente classificados, dividiam espaço apenas com o computador, ferramenta cada vez mais presente em sua vida. Um fato relevante, porém, para ficarmos nos limites do tema aqui proposto, passou-se com o lançamento do livro de Wizzy Nodwing, Olho mágico, de 1993. Em uma visita à sua residência, Hugo apresentou-me o livro que havia trazido recentemente da Alemanha e pediu-me para fixar a atenção visual num determinado ponto do auto-estereograma, a fim de perceber as formas que, em 3D, se abririam com nitidez à minha frente. Exclamava com extrema naturalidade: “Apenas olhe fixamente! Deixe seu cérebro superar a coordenação automática entre focalização e convergência”. Por mais que me esforçasse, premido por certo desconforto, confesso que, da primeira vez, não consegui ver além dos milhares de pontos e figuras que se sucediam, monotonamente, por toda a extensão da página do livro. “Incrível!”, disse, demonstrando um tom de empolgação, na tentativa de conter minha real frustração. Além de comprar um exemplar do livro na primeira oportunidade, recorri a algumas leituras especializadas para melhor entender as causas desse fenômeno e descobri que a relação entre percepção e ilusão é um assunto fascinante e instigante, tanto por sua particularidade quanto pelo estreitamento entre as duas formas de conhecimento. Baldo e Haddad (2003, p. 11), do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, sugerem que “uma ilusão surge da discrepância entre as soluções perceptivas

3 Essas iterações são chamadas de Curva de Koch e os matemáticos definiram que seu comprimento é infinito, mesmo que a curva comece no ponto A e termine no ponto B.

60 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 57 - 72 • jan. - dez. 2008 geradas em duas situações diferentes, a partir do mesmo objeto”. Ou seja, nem sempre o que estamos vendo corresponde, de fato, às reais características dos objetos vistos. Essa discrepância entre conhecimento e realidade produzida pelos sentidos já era um tema bastante conhecido dos filósofos gregos, há aproximadamente 2.500 anos. Mas falaremos sobre essa questão um pouco mais adiante. Toda essa novidade contribuiu para o despertar de minha curiosidade. As aulas do professor Hugo tornaram-se verdadeiros laboratórios de discussão, formulação e principalmente desconstrução de conceitos. Ainda que muitas vezes discordasse de algumas de suas proposições e posições, não posso negar o peso que ele exerceu em minha formação acadêmica. Vivemos em um tempo em que a busca de sentido das e pelas coisas se volatiliza tanto quanto as próprias coisas em si, tanto no reino das idéias (ideologias, crenças, filosofias, regimes políticos) como no reino das matérias no qual impera a cultura do descartável. Podemos ter como parâmetro, na visão realista moderna contida na expressão de Marx e Engels (1988, p. 69), que “tudo o que é sólido e estável se volatiliza, tudo o que é sagrado é profanado”, ou mesmo, na visão desorientadoramente pós-moderna de Featherstone (1997, p. 111), em que um mélange de coisas e de valores estranhos e situações desestabilizam a segurança do nosso conhecimento apagando as distinções entre o real e o imaginário. Hoje, é possível ter conhecimento de tudo que está acontecendo no mundo no mesmo instante em que as coisas estão de fato ocorrendo, sem, contudo, nos darmos conta do tempo e do espaço que nos separam desses acontecimentos. Fenômeno potencializado e sedimentado, em especial, pelo impressionante avanço das novas tecnologias, cristalizado pelas sedutoras malhas da onipresente Internet. É como se tudo acontecesse ao nosso redor simultaneamente, e exigisse, a cada instante, uma reelaboração mental. Uma nova forma de nos apropriarmos das coisas que estão virtualmente postas à nossa frente, homogeneizando, de certa forma, nossa maneira de viver, nossa cultura, e trazendo mudanças não só à vida individual, mas também coletiva. Essa mudança de hábito reflete diretamente nas epistemologias, pois acrescenta novas possibilidades ao acesso e apropriação do conhecimento ao disseminar uma multiplicidade inesgotável de informações. Por outro lado, exige novas habilidades interpretativas que nos guiem às profundezas de novos conhecimentos. O contrário seria ficarmos presos à superficialidade da multiplicidade de informações que nos invadem por todos os lados. Ou seja, informados sobre tudo, mas não conhecedores. Nas palavras do professor Hugo, seria o mesmo que seguir as ondulações da maré sem nos darmos conta da verdadeira direção das correntes mais profundas. A estas novas possibilidades de informação, Hugo Assmann chama de “memórias eletrônicas hipertextuais”. Para ele, essas memórias podem ser consideradas uma espécie de prótese externa do agente cognitivo humano. Em um de seus artigos sobre Metamorfose do aprender na sociedade da informação, de 2000, diz que:

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 57 - 72 • jan. - dez. 2008 61 O recurso livre e criativo a essa ampla memória externa pode liberar energias para o cultivo de uma memória vivencial autônoma e personalizada, que sabe escolher o que lhe interessa; por outra parte, os que forem preguiçosos e pouco criativos correm o risco de absorver passivamente nada mais que fragmentos dispersos de um universo informativo no qual há de tudo. No oceano da conectividade, subsiste o risco de virar concha presa a um ou poucos fragmentos de pedra. (ASSMANN, 2000, p. 11).

Toda esta reflexão dá origem a muitas e desconcertantes conjecturas filosóficas, as quais constituem o assunto da teoria do conhecimento, ou da epistemologia, tais como: quais são as fontes do conhecimento? Em que consiste o conhecimento? Como é armazenado e representado em nossa mente? E por aí afora. Conjecturas que para o senso comum parecem ingênuas, mas que nos remetem a profundas e apaixonantes discussões. Assim, longe de me deter no âmago específico dessa problemática, quero apenas examinar as origens do relativismo epistemológico e as prováveis conseqüências no modo como se tem concebido a “relação pedagógica” 4 de ensino-aprendizagem, a partir das provocações sugeridas pelo professor Hugo Assmann. Parafraseando Moraes (1997, p. 18), o indivíduo ensina e constrói o conhecimento baseado na forma como compreende a realização desse processo. Esse é um problema recorrente no interior das ciências humanas e sociais, para o qual diversos pesquisadores comprometidos com os rumos da educação têm se voltado em busca de novas e possíveis soluções. Soma-se ao relativismo epistemológico o problema da fragmentação, da descontextualização, do reducionismo e da simplificação do conhecimento, evidenciando e aprofundando a dicotomia entre teoria e prática. Segundo Alves-Mazzotti (2001, p. 42), essa percepção desfocada da realidade tem contribuído para a disseminação de abordagens descomprometidas e pouco significativas para o desenvolvimento da pesquisa educacional. Embora Alves- Mazzotti percorra caminho distinto ao que estamos propondo aqui, suas contribuições tangem a mesma questão da pulverização do conhecimento nas ciências humanas. a organização do conhecimento

Em suas aulas, o professor Hugo sempre demonstrou preocupação com a transformação profunda da memória ativa dos aprendentes na construção do conhecimento. Sempre se mostrava fascinado pelo crescente avanço das novas e versáteis tecnologias informacionais e comunicacionais. Para isso, criticava duramente alguns dos mais destacados ícones formuladores do processo de

4 Utilizo-me aqui do conceito de “relação pedagógica” como “o conjunto de interfaces comunicativas entre agentes cognitivos que constituem um sistema aprendente ou uma organização aprendente”.

62 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 57 - 72 • jan. - dez. 2008 aquisição do conhecimento da filosofia com a pretensão de denunciar seus limites. Dizia ele que:

O pensamento filosófico ocidental esteve tradicionalmente preocupado com confrontações e contraposições de um marco conceitual com outro, e foi criando, assim, marcos e mais marcos, grades e mais grades, janelizações sobre janelizações, na esperança de encontrar um conjunto perfeito de grades/marcos que daria supostamente conta da compreensão da realidade e seria, assim (aos olhos dos ocidentais epistemologicamente ingênuos), a expressão plena da verdade. (ASSMANN, 1996, 89).

Na esteira daqueles que sustentam a necessidade de se buscar novas maneiras perceptivas para a pretensa compreensão da realidade, Assmann concorda que qualquer forma encontrada será sempre uma tentativa artificial de ordenamento do real, já que nossa capacidade sensorial muito pouco consegue registrar, mas se destaca ao transferir esta problemática para o âmbito da pedagogia. Em seu livro Metáforas novas para reencantar a educação, descreve que o ser humano utiliza-se de ferramentas epistemológicas para compreender tanto a natureza como a própria história. Para ilustrar o processo de reducionismo exacerbado acerca do real, utiliza-se do termo “epistemologia de janelização do real”, a partir de uma analogia com o sistema operacional Windows (janelas), desenvolvido pela Microsoft, em que o acesso às janelizações sucessivas possibilita o ordenamento das informações desejadas. Para Assmann (1996, p. 89), “nosso comportamento epistêmico usual tem muito de parecido com esses tipos de enquadramento […]”, somos fortemente condicionados pela cultura ocidental a “determinados acessos-janelas na percepção da realidade. Nossa forma de pensar trabalha, em boa medida, com comandos de acesso e recortes do real que são como janelas conceituais”. Ele faz dessa analogia uma crítica ao processo de enquadramento da realidade por meio de recortes dela, mas concorda que este é um recurso metodológico provisório indispensável à sua organização conceitual. O grande problema é a pretensão de se tomar inadvertidamente a parte pelo todo. A partir desse recurso didático, Assmann entende que o pensamento filosófico ocidental sempre foi uma tentativa de enquadramentos conceituais que se sucederam uns aos outros na pretensa busca pela objetivação de uma realidade heraclitiana, que só se deixa perceber em sua própria dinâmica de representações provisórias. Metaforicamente falando, recurso análogo ao procedimento adotado por Procrusto ao tentar, em nome da razão, enquadrar os habitantes de Coridalos nas camas redutoras das diferenças sociais. A anunciada crise dos paradigmas que se instalou no interior das ciências naturais, propalada em maior tom por Thomas Kuhn, em seu ensaio A estrutura das revoluções científicas, de 1962, chamou a atenção pela pouca flexibilização existente nas discussões de caráter epistemológico no âmbito da História e da Filosofia das Ciências, dominadas pela rigidez do pensamento

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 57 - 72 • jan. - dez. 2008 63 lógico científico. As ondas concêntricas dessa discussão paradigmática partiram do centro das ciências naturais e alcançaram as ciências humanas e sociais, seja pelo enviesamento das interpretações kuhnianas, como suspeitam os críticos partidários do racionalismo científico, seja pela “necessidade” de as ciências humanas e sociais se afirmarem enquanto científicas, no sentido exclusivista do termo, como defendem alguns neopositivistas. Limito-me aqui apenas a apresentar sumariamente essa delicada, complexa e secular questão, que, desde Kant, envolve tanto aspectos racionais (objetivos) quanto irracionais (subjetivos), se bem que não me furto a algumas provocações periféricas ao longo do texto. Sem entrar no mérito da complexidade da transição histórica e do lento processo de abandono e de reconhecimento de um novo paradigma científico, valho-me aqui da sentença formulada por Kuhn sobre o processo de anomalia, apenas para indicar a linha de raciocínio do professor Hugo. Nessa fase, a comunidade científica, após reconhecer que determinado paradigma exauriu suas possibilidades interpretativas no sentido de desvendar tal fenômeno anômalo, concentra seus esforços na busca de alternativas possíveis, ou seja, na resolução do problema específico ou na construção de um novo paradigma. Essa transição certamente não se dá por meio de um mero processo de ajustamento periférico, mas surge como fruto de uma reorganização da área de estudo e tem conseqüências determinantes para o futuro. Proponho agregar a esta discussão uma breve incursão pela história da filosofia, como forma de sustentação de algumas considerações que pretendo fazer mais adiante. A epistemologia, como aqui a tomo, é o ramo da filosofia interessado na investigação, nas fontes e validades do conhecimento. De acordo com Assmann (1998, p. 152), “a epistemologia interessa-se pelos métodos, objetos e formas de pensamento próprios da ciência”. Resgatando dos domínios das ciências, podemos falar de vários tipos de conhecimento: popular, científico, filosófico ou religioso, e classificá-los respectivamente segundo uma ordem hierárquica de critérios preestabelecidos, por exemplo, reflexivo, sistemático, racional ou inspiracional. Ou seja, os critérios de verdade variam conforme o tipo de conhecimento de que se trata (LINDO, 2000, p. 266). De forma geral, o conhecimento é um processo interativo que se dá entre o real e as representações que fazemos dele, ou seja, as relações sociais, a natureza, os objetos, o trabalho, as instituições políticas, a família, etc. Contudo, a compreensão da forma de aquisição desse real sempre dependerá do consenso de determinadas comunidades científicas e do surgimento e da legitimação de determinadas teorias. Grosso modo, a questão do conhecimento é tão antiga quanto à própria filosofia; origina-se desde o instante em que os primeiros gregos passaram a se preocupar com as questões mais gerais da humanidade, afastando-se do exclusivismo das respostas míticas que a visão religiosa lhes condicionava. Platão, com seu idealismo transcendente, já dava mostras dessa preocupação, ao afirmar que o mundo conhecido por nós é apenas uma

64 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 57 - 72 • jan. - dez. 2008 ilusão do verdadeiro mundo, o mundo das idéias, e que poderíamos estar vendo apenas simulacros em lugar das próprias coisas. Dessa forma, o verdadeiro conhecimento está limitado à reflexão filosófica. Já Aristóteles, valendo-se de sua crença nas formas imanentes e contrapondo-se à concepção gnosiológica de seu velho mestre, prefere buscar a essência de cada coisa a partir das próprias coisas. Em suas formulações, a inteligência humana aparece como a única forma capaz de alcançar a verdade por meio de um critério racional de classificação do ser. Na Patrística a razão está intrinsecamente relacionada com a fé; para Santo Agostinho é necessário compreender para crer, e crer para compreender. Desse modo, a verdade implica o próprio ato de perceber o objeto externo e não propriamente o objeto em si. Por sua vez, na Escolástica, Tomás de Aquino, em um suposto retorno ao realismo aristotélico, vê o conhecimento em dois momentos distintos: o conhecimento sensível e o conhecimento intelectual, sendo que o segundo pressupõe e transcende o primeiro. Para ele, a verdade lógica não está nas coisas e nem sequer no mero intelecto, mas na adequação entre as duas fontes: veritas est adaequatio speculativa mentis et rei. Na modernidade, duas correntes filosóficas se destacam ao abordar a problemática do acesso ao verdadeiro modo de se adquirir o conhecimento. O racionalismo de Descartes sugere a razão como a única responsável pela aquisição do conhecimento, e o empirismo de Hume atribui esse papel ao ato proporcionado pela experiência. O paradigma da primeira é a matemática e a lógica, o da segunda é a ciência natural. Enquanto uma advoga a apreensão da realidade pela dedução lógica, a outra o faz pela indução da observação e da investigação. O criticismo kantiano tentou conciliar a antinomia do pensamento moderno, que separava racionalismo e empirismo, com a explicação de que o conhecimento é constituído pelas estruturas a priori (inatas) e pela experiência sensível (percepções). Entretanto, esse dualismo kantiano acabou inclinando- se em demasia para a idéia de uma subjetividade transcendental. Desde o início da era moderna, a busca incessante pelo conhecimento objetivo e universal da realidade levou gigantes a formularem questões que contribuíram para eliminar a influência divina sobre a organização do cosmo. Copérnico, Kepler e Galileu deram os primeiros passos nesse sentido, mas coube a Newton, apoiado em seus ombros, estabelecer as leis gerais do movimento e decretar a orfandade humana em um mundo regido por leis mecânicas e universais, estabelecendo assim o paradigma principal que fornecerá as bases metodológicas de investigação para a ciência moderna. Desde então, falar de ciência significa falar de um ideal de objetividade calcado nos moldes adotados pela matemática e validado pela experimentação. Mesmo as ciências humanas ou sociais, surgidas no final do século XIX, reivindicavam para si o estatuto metodológico em conformidade com o rigoroso modelo das ciências naturais orientadas pela racionalidade, objetividade, universalidade e desvinculadas de toda subjetividade e valor. Diversos teóricos clássicos da sociologia detiveram-se por longos períodos na busca pelo melhor modelo de inteligibilidade para as ciências

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 57 - 72 • jan. - dez. 2008 65 emergentes. Augusto Comte, com o objetivo de promover o primado metodológico das ciências da natureza sobre as ciências do espírito, defendido pelo positivismo, insiste na perspectiva de que buscar relações de causalidade é um problema insolúvel e sem nenhum valor objetivo para a compreensão dos fatos a serem apreendidos cientificamente. O que importa às ciências positivas é a compreensão das leis gerais e invariáveis do desenvolvimento do espírito humano. Por seu turno, Durkheim afirma que não existe possibilidade de se apreender compreensivamente o fenômeno caso não se estabeleça relação de causalidade. Para ele, o único método possível à Sociologia é o método comparativo, que parte do pressuposto de que os fatos sociais são “coisas” e que, por sua vez, têm como característica exercer uma “coerção” externa sobre os indivíduos. Só assim os conceitos abstratos são elevados a patamares objetivos e científicos. Para Weber, o que está ao alcance do conhecimento científico é a possibilidade de se atribuir um sentido ao mundo por meio das alternativas levantadas pelas análises da realidade empírica. Isso quer dizer que se deve ordenar racionalmente a realidade a fim de compreendê-la. Nessa crítica à premissa de objetividade científica inaugurada pelo positivismo reside a problemática da relação do conhecimento/realidade social, que põe em questão o conceito de racionalidade como categoria universal e valor absoluto. Ao tratar da objetividade do conhecimento na ciência social, Weber deixa transparecer de forma nítida a limitação a que está sujeito qualquer trabalho de investigação científica, principalmente aquele que lida com as ciências humanas. Primeiro, devido à impossibilidade de abarcar, de modo totalizante, as possíveis significações de uma realidade inesgotável de sentidos e, em segundo lugar, pelo fato de que qualquer método científico que adotarmos para compreender a realidade será apenas um recorte de um momento histórico constantemente modificado pela dinâmica das abordagens interpretativas. No dizer de Assmann, são os velhos enquadramentos conceituais que fazemos da realidade a fim de compreendê-la. Ou podemos ainda dizer, conforme Santos (2001, p. 328), que “não há uma única forma de conhecimento válido. Há muitas formas de conhecimento, tantas as práticas sociais que as geram e as sustentam.” A saída que Weber encontra para estabelecer a diferenciação entre uma atividade científica e uma atividade puramente arbitrária está na distinção entre “julgamento de valor” e a “relação aos valores”. Enquanto o primeiro se expressa por ser um ato pessoal e subjetivo (valorativo), o segundo define-se por ser um procedimento impessoal e racional com o objetivo de selecionar e organizar parte da realidade a ser estudada. a tranSmigração do conhecimento oU doS conceitoS

Com a crise das ciências modernas, o velho relógio, que dava sustentabilidade às equações e formulações mecanicistas a respeito de Deus e do universo, passou a enfrentar um acirrado ataque que abalou os fundamentos

66 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 57 - 72 • jan. - dez. 2008 científicos e estruturais da modernidade: a supremacia da razão e a confiança cega na verdade científica como o único caminho para a abundância material, a liberdade e a felicidade. Os tumultos históricos gerados pelas mudanças sociais e pelas sucessivas crises políticas da modernidade abalaram o ânimo geral da população, alterando seu estado de espírito e a confiança nos (des) caminhos das explicações puramente racionalistas. O otimismo dos campeões da causa iluminista já não conseguia convencer mais seus críticos diante da situação crescente de tensão e de incertezas. Uma das principais críticas ao triunfo da razão instrumental, ou seja, da visão racionalista de mundo engendrada pela modernidade triunfante, veio, sem dúvida alguma, do Instituto para Pesquisa Social (Institut für Sozialforschung) ou, como ficou mais conhecido, Escola de Frankfurt. Muito embora, na visão do professor Hugo, esse movimento filosófico já tenha perdido seu potencial crítico e nutria-se de obsoletas memórias das “ideologias” e das “críticas emancipatórias”. Sobre essa questão, vale aqui ilustrar um fato ocorrido em sala de aula, ainda que poucos alunos tenham se dado conta de sua verdadeira extensão e profundidade. Atento aos principais debates, em uma de suas aulas fez-se ecoar o escândalo que vinha agitando o establishment filosófico alemão. Tratava-se das recentes discussões estabelecidas entre o jovem Peter Sloterdijk e o principal herdeiro da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, Jürgen Habermas5 . Acusado de apresentar traços de retórica facista, Sloterdijk trata em seu polêmico livro Regras para um parque humano (2000), da morte do humanismo e da constituição de um pós-humanismo segundo os pressupostos da revolução antropogenética, desencadeando, assim, uma profunda discussão político- filosófica que, segundo Assmann, só estaria em seu início. Uma discussão que estava circunscrita aos domínios da austera filosofia alemã, naquele momento, era-nos apresentada em primeira mão. Entretanto, pela falta de maior compreensão, senso crítico e fundamentação teórica, poucos foram os que se atreveram a participar da discussão. O que ficou foi uma nebulosa sensação de que o professor Hugo se identificava com tais premissas. Kuhn (1995) diz que, diante de toda essa crise do conhecimento, é necessário descartar algumas crenças e procedimentos anteriores aceitos e substituí-los por outros. Para ele, a emergência de novos paradigmas nos faz ir além da idéia de “ciência normal”, consagrada pelos pressupostos científicos da modernidade, em busca de novas teorias e perguntas que façam emergir de uma “ciência em crise” a idéia de uma “ciência extraordinária”, parafraseando livremente seu pensamento. Mas qual será o limite? Ou, será que existe a possibilidade de se estabelecer um limite? É nessa lacuna do pensamento ocidental que, penso, podemos situar as reflexões inovadoras, quase heréticas para a área de educação, desse controverso “aventureiro do

5 Peter Sloterdijk, autor, dentre outros, de Crítica da razão cínica, é o protagonista de um escândalo que agitou o mundo intelectual europeu. Habermas, desde a apresentação de Sloterdijk na conferência da Elmau, na Baviera, atacou as suas posições provocando um acalorado debate que transpôs as regras comunicativas elementares de um debate intelectual. Para saber sobre as repercussões na imprensa brasileira, ler: “O novo zoológico do homem”, matéria de capa do Caderno Mais da Folha de São Paulo, 10/9/1999.

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 57 - 72 • jan. - dez. 2008 67 conhecimento”. Ao concordar e fazer a crítica a algumas das grandes correntes de pensamento ocidental, o professor Hugo alargava os limites das fronteiras do conhecimento, trazendo para o debate, em sala de aula, os revolucionários do pensamento científico e seus muitos conceitos e categorias inovadoras, ainda que suas assertivas chocassem a muitos. Assim, na aula de Epistemologia e Educação, éramos, de certo modo, apresentados a uma série de novas teorias e conceitos dos mais variados ramos da ciência – desde a já conhecida Teoria da Relatividade, de Einstein, ao Princípio da Incerteza, formulado por Heisenberg. Teorias reveladoras de um mundo muito diferente do mecanismo imaginado por Newton. Aprendemos que o estudo dos sistemas dinâmicos não-lineares, que conduziu às novas ciências da complexidade, aprofundou ainda mais a crise do conhecimento, demonstrando que grandes efeitos podem resultar de minúsculas causas. É o que se convencionou chamar pelo sugestivo nome “efeito borboleta”, ou, de uma forma mais elaborada, como sugeria repetidamente o professor Hugo: “dependência sensível das condições iniciais”. Dizia ele que tanto nas ciências como nos acontecimentos da vida há pontos de crise que maximizam pequenas influências, o que pode provocar reações em cadeia, já que essa idéia parte do princípio de que todas as coisas estão interligadas de alguma forma, colocando o objeto e o observador não mais em pólos opostos, mas em profunda interação. Para mencionar apenas alguns pesquisadores atuais, revelava-se profundo conhecedor do pensamento dos neurocientistas Humberto Maturana e Francisco Varela, com o conceito de autopoiese (auto- organização dos seres vivos e circularidade dos processos biológicos), e do físico-químico Ilya Prigogine, com o conceito de estruturas dissipativas. Para Assmann, ambos os conceitos permitiam estabelecer novos paralelos com o comportamento humano, potencializando, assim, novas possibilidades interpretativas. Sobre o conceito de autopoiese, dizia tratar-se, no seu entender, de:

Um conceito transversátil porque transita (viaja) de forma versátil da natureza para a história revelando os limites desses conceitos clássicos que já não dão conta da conjugação necessária entre biologia e ciências da linguagem e mesmo as ciências sociais em geral. (ASSMANN, 1996, p. 99).

Chamava a atenção também para os matemáticos: Kurt Gödel, com o Teorema da Incompletude e a demonstração de que há problemas que não podem ser resolvidos por nenhuma regra ou procedimento, estabelecendo, assim, o princípio da contradição no âmbito de uma ciência em que as afirmações contraditórias não podem ser admitidas; René Thom, com a teoria da catástrofe; e Ian Stewart, com a teoria do caos, figuras revolucionárias dos fundamentos racionais da matemática, da lógica e mesmo da filosofia e da lingüística. Assmann perseguia a lógica implícita nessas teorias de que o observador e a natureza observada fundem-se em um sistema complexo de múltiplas

68 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 57 - 72 • jan. - dez. 2008 possibilidades interpretativas que requer das novas pesquisas a necessária adequação para o enfrentamento dos problemas de um novo mundo – um mundo de infinitos sistemas e fenômenos que se entrelaçam constantemente, formando sistemas complexos dos quais somos parte integrante. Suas asserções caminhavam na direção de uma inexorabilidade do desenvolvimento de uma nova ordem científica. Para ele, estamos fadados a uma fase de transição, mergulhados em uma crise que faz emergir uma nova ordem científica que une todas as formas de saberes umas às outras, formando uma grande rede de conhecimento. É nesse contexto que, segundo Assmann, “não é exagero dizer que os novos recursos tecnológicos têm um papel ativo e constitutivo da própria morfogênese do conhecimento no que se refere às suas formas de criação, expressão e comunicação” (ASSMANN; SUNG, 2000, p. 291). Defendia as “parcerias transdisciplinares de alto nível” entre pesquisadores da área das ciências sociais e peritos das ciências computacionais e rechaçava aqueles que a elas se opunham quer por ingenuidade quer por medo (ASSMANN, 2005). É diante desse panorama conceitual que vejo inserir-se o pensamento de Hugo Assmann, numa busca incessante, a exemplo de James Joyce, para despertar do pesadelo da própria história humana; um despertar de uma consciência crível para as possibilidades aprendentes da razão – entendida aqui como sistema complexo, dinâmico e adaptativo –, como força emancipadora da própria condição humana. Entendo sua pertinente crítica como uma crítica a si mesmo. Como uma crítica intransigente de seu próprio itinerário intelectual que não se permitia nenhuma forma de descuido, muito bem sintetizada numa afirmação dirigida ao seu amigo e discípulo Jung Mo Sung: “não podemos perder a parresia!” (a coragem de dizer a verdade). Segundo Sung (2008), essa foi uma das principais características da personalidade de Hugo Assmann. “Por causa dessa postura sempre crítica (no melhor sentido da palavra), buscando sempre novas e melhores formas de entender a realidade humana, ele foi muitas vezes incompreendido e marginalizado”. algUmaS conSideraçõeS proviSóriaS

Meu paletó virou estopa e eu nem sei mais com que roupa, com que roupa eu vou... Noel Rosa (1930)

Ao falar sobre a divulgação das pesquisas em educação, Alves- Mazzotti (2001, p. 45) adentra a delicada questão da transferibilidade de conhecimentos. Embora argumente firmemente a favor da produção de conhecimentos “transferíveis”, advoga com propriedade a necessidade da produção de modelos próprios de investigação na área de educação que dêem suporte às análises das pesquisas em curso. A exemplo de Kuhn, a autora crê que a compreensão da ciência cresce à medida que o pesquisador se utiliza de seus próprios métodos. Para esse momento de mudanças, diz que:

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 57 - 72 • jan. - dez. 2008 69 A ausência de critérios de demarcação consensuais e o abandono das falsas certezas prometidas pelo modelo tradicional de ciência parecem ter trazido uma considerável desorientação aos pesquisadores, principalmente no campo das ciências humanas e sociais, o que, freqüentemente, descambou no vale-tudo. Se, de um lado, essa desorientação parece compreensível, de outro, vemos que o relativismo, que se alastra em nossa área, não tem contribuído para a construção de conhecimentos suficientemente relevantes e confiáveis para orientar políticas e práticas educacionais. (ALVES-MAZZOTTI, 2001, p. 47).

Com toda essa mudança paradigmática no âmbito das ciências modernas, verdades imutáveis têm sido questionadas e relativizadas, outras se instalam nas cercanias da provisoriedade do próprio saber humano. Essas mudanças colocam a necessidade de novos paradigmas nas ciências que nos conduzam a uma reforma do pensamento e das ações por meio do ensino, preparando cidadãos capazes de enfrentar os problemas de seu próprio tempo, resgatando a educação do berço maternal da modernidade. Entretanto, no campo educacional, um dos problemas de fácil detecção ou, como diríamos, o paradoxo existente ainda é o velho esquema da supremacia determinista do professor sobre o aluno no que se refere ao manejo e ao acesso ao conhecimento. Ainda se insiste naqueles velhos jargões tantas vezes denunciados por Paulo Freire: aquele “que sabe” e detém o conhecimento e aquele “que nada sabe” e necessita saber, legitimando um distanciamento que nega o próprio avanço no campo do conhecimento que se esforça por transmitir. O velho esquema “professor x aluno” ainda é mantido numa espécie de reafirmação positivista da hierarquia da autoridade científica como a única forma de transmissão do verdadeiro conhecimento. Isso só acirra o esquema denunciado por Kuhn (1995, p. 111) em relação ao mundo das ciências naturais, mas que alcança facilmente outras áreas do conhecimento, de que os estudantes, em geral, aceitam as teorias por causa da autoridade do professor e dos textos e não propriamente devido às suas comprovações. Ou o que Alves-Mazzotti (2001, p. 41) denuncia como adesão acrítica a autores “da moda”. Para esse tipo de atuação, o que importa é a transmissão das leis gerais e invariáveis do desenvolvimento do espírito humano. Em vez de procurar novas possibilidades de desenvolvimento de práxis pedagógicas mais abertas, menos deterministas e menos preocupadas com os fundamentos de práticas estruturantes, procura transmitir métodos e teorias “normais” que assegurem o conhecimento, abortando as potencialidades criadoras. Por essa lógica, o conhecimento humano ainda é visto de modo fragmentário e possuidor de uma ordem interna comandada por leis gerais que se impõem diante do professor/observador para sua ordenação lógica, a saber: se todos os fenômenos sociais podem simplesmente ser explicados por leis naturais e invariáveis, então são estas e somente estas que podem explicar a ocorrência de quaisquer

70 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 57 - 72 • jan. - dez. 2008 fenômenos. As pesquisas geradas por esse tipo de visão determinista pouco têm contribuído para as discussões sobre o avanço do conhecimento em educação e, conseqüentemente, para o das práticas pedagógicas. Concluo esta breve reflexão com a sensação de que não basta prenunciar tais mudanças epistemológicas se no âmbito de nossas atuações não se buscar novas configurações possíveis de relacionamento professor/ aluno, observador/fenômeno, sujeito/objeto. Penso que o professor Hugo foi inegavelmente um grande expoente dessa nova abordagem do conhecimento nas pesquisas em educação, rompendo e denunciando as visões fragmentadas que separam os homens uns dos outros e da própria natureza. Muito embora, para alguns, fique a sensação de que a maneira como transmitia esse novo olhar nem sempre era pautada pela mesma postura revolucionária. Como um grande urso polar que todos admiram, também era temido, fazendo com que o velho pêndulo dos sentimentos contraditórios continuasse oscilando “da atração à rejeição, da admiração ao medo, da compreensão à incompreensão”. Penso que essa postura um tanto autoritária tenha limitado em nosso meio o avanço de suas idéias, circunscrevendo a um grupo restrito de pessoas a continuação de seu pensamento revolucionário. É inegável a sua contribuição para nossa formação intelectual naquele contexto e para a circulação de novas idéias no ambiente acadêmico, mas não posso deixar de lamentar o fato de que essa contribuição tenha redundado em um número tão reduzido de novas pesquisas. Como professores de Programas de Pós-graduação em Educação, o grande desafio que se estabelece à nossa frente é o de estimular novas pesquisas em educação, a partir de abordagens que levem em consideração o fato de que estamos entrando em uma nova era do conhecimento humano, que traz implicações fundamentais para os sistemas econômicos, políticos, tecnológicos e sociais. Esta é uma tarefa de relevância tanto científica como também política. Para isso, insisto, é necessário acalentar o mesmo espírito “aventureiro” do professor Hugo Assmann e ir além das nossas próprias fronteiras. Voltando ao início da reflexão, penso que a resposta correta à metáfora da composição de Noel Rosa não passa simplesmente pela escolha de uma nova roupagem, que camufle os farrapos de nossas velhas retóricas. Como disse acima, vestir a roupa adequada à ocasião, antes de ser uma questão estética, é um imperativo condicionante à participação na festa. reFerênciaS

ALVES-MAZZOTTI, A. J. Relevância e aplicabilidade da pesquisa em educação. Caderno de Pesquisa, São Paulo, n. 113, p. 39-50, jul. 2001. ASSMANN, H. Metáforas novas para reencantar a educação: epistemologia e didática. Piracicaba: uniMeP, 1996. ______. A metamorfose do aprender na sociedade da informação. Ciência da Informação, Brasília, v. 29, n. 2, p. 7-15, mai.-ago. 2000.

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Dados do Autor ceSar romero amaral vieira Doutor em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba/SP. Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Metodista de Piracicaba/SP

Recebido: 25/11/2008. Aprovado: 9/6/2009.

72 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 57 - 72 • jan. - dez. 2008 HUGO ASSMANN: UM IPHONE FORA DE ÉPOCA Hugo Assmann: an iphone out of his time

clézio JoSé doS SantoS gonçalveS Universidade Federal do Rio Grande do Sul/RS [email protected]

benno becker Júnior Universidade Luterana do Brasil/RS [email protected]

Resumo Este artigo procura trazer elementos reflexivos acerca da história do professor Hugo Assmann como pesquisador na área da educação, sobretudo na epistemologia desta, na perspectiva de orientando de doutorado e parceiro de discussões fecundas e ricas, além de polêmicas, que lamentavelmente ainda não foram totalmente aproveitadas sob a forma de texto escrito. Como o renomado professor era um profissional singular em suas abordagens conceituais e com uma profunda experiência internacional em diferentes realidades, seus procedimentos e questionamentos em sala de aula tornavam- se uma experiência absolutamente única. Nesse sentido, sendo fiel à sua forma de expressar-se com metáforas, pode-se dizer: professor Hugo era um iphone fora de seu tempo. Palavras-chave aPRendência – coRPoReidade – assMann.

Abstract This article seeks to bring reflexive contribution to the history of Professor Hugo Assmann as a researcher in the field of education, especially in its epistemology, from the perspective of a Ph.D. student and companion in fruitful and rich, as well as controversial, discussions which unfortunately have not yet been fully explored in the form of a written text. As the renowned professor was unique in his conceptual approaches, with deep international experience in different realities, its procedures and questions in the classroom were an absolutely unique experience. In this sense, being faithful to his way of expressing himself through metaphors, we can say: Professor Hugo was an iphone out of his time. Keywords leaRnigence – coRPoReality – assMann.

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 73 - 97 • jan. - dez. 2008 73 contextUalizando o deSaFio

Para um leitor que desconheça a produção e um pouco da história do professor Hugo Assmann, o título deste artigo pode parecer descontextualizado ao relacionar-se um personagem humano com uma tecnologia como o Iphone. Mas, levando-se em conta a desenvoltura lingüística do professor Assmann, que dominava vários idiomas, além do grego e do latim, e a sua capacidade de criar metáforas explicativas (possivelmente derivada de sua formação teológica – inclusive título de um de seus livros – Metáforas novas para reencantar a educação), pode-se dizer, mesmo correndo o risco de tal linguagem metafórica ser “reducionista” com o professor Hugo, que ele era, literalmente um Iphone. O risco de ser reducionista é o fato de delimitar a competência conceitual e experiencial do professor Assmann na comparação com uma tecnologia que se apresenta como “revolucionária” nos dias atuais, mas que, apesar de sua revolução material efetiva, ainda assim é limitada enquanto conceito para dar conta da abrangência de experiência de vivência do professor. Espera-se, ao final deste artigo, ter explicitado porque considerava nosso mestre um Iphone fora de época. Quando alguém resolve escrever sobre outrem, alguns pressupostos são apresentados no desenrolar de cada parágrafo. Um deles é que o autor do texto conheça o “alguém” sobre quem se está escrevendo, de tal forma que permita uma abordagem singular. Para situar estas linhas, devo então acrescentar que, vez por outra, irei referir-me à pessoa de Hugo Assmann como professor Hugo, professor Assmann, autor Assmann, doutor Hugo e, talvez, muitas formas surgirão ao longo desta construção. Apesar de parecer difuso, cumpre ressaltar que tais abordagens buscam contextualizar os diferentes sentimentos que o mestre despertava em seus orientandos e alunos, na mesma medida em que ele também se apresentava de múltiplas formas, coerentemente com sua visão do ser humano enquanto sujeito de múltiplas histórias, mas também de múltiplas possibilidades e futuros. Neste caso, esta é uma tarefa que se revela notoriamente hercúlea. Uma história pessoal com o professor Hugo circunscreveu-se ao período de doutoramento, com o privilégio de ser orientando ao longo de exatos 45 meses. Mas conheceu-se o professor Hugo muitos anos antes como autor. Minha trajetória em movimentos jovens cristãos colocou-me em contato com suas produções de caráter teológico e com o seu renomado texto “A idolatria do mercado”. Ao ingressar na Faculdade de Educação Física da EFPel continuou-se em contato com seus textos que já refletiam sobre alguns aspectos da educação. Em seqüência, nas minhas duas dissertações de mestrado defendidas nos Programas de Pós Graduação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a produção do professor Hugo estava presente. Não é minha intenção neste artigo pormenorizar detalhes

74 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 73 - 97 • jan. - dez. 2008 historiográficos e conceituais com os quais o professor Asmann trabalhava, mas para contextualizar estas páginas cabe relembrar que ele era incansável em sua curiosidade de aprender e compreender a natureza aprendente do ser humano. Sua fome de leitura traduzia-se nos diferentes títulos que publicava. E sua admirável competência na escrita de diversos idiomas lhe conferia uma capacidade compreensiva do significado etimológico das palavras. Esse é um detalhe que não aparece no sistema de consulta dos pesquisadores brasileiros, entretanto é uma evidência histórica da singularidade conceitual na qual o professor Hugo navegava. Exemplifica-se essa difícil tarefa do dimensionar-se a vida e obra do professor Hugo na citação de Marx (1978, p. 37): “O problema de descer do mundo das idéias para o mundo real, transforma-se no problema de descer da língua à vida”. A necessidade de explicitação de conceitos, fatos e evidências, que são utilizados na vida cotidiana e no mundo acadêmico, faz com que se busque uma forma consistente de exposição destes, de forma a tornar possível a comunicação entre interlocutores; nesse caso, as idéias e os conceitos do professor Hugo permeados dos momentos vivenciais com ele. Então, uma das formas de explicitar-se é a análise do texto. “Texto”, no sentido de “tecido”, significando não apenas a composição de fios, mas a composição de significados por meio do entrelaçamento de sinais. Um conjunto de palavras formando uma frase escrita ou gravada constitui-se num texto, pois existe uma composição de sinais. É o que pretende realizar; uma composição de significados e experiências com o professor Hugo e a discussão de alguns de seus referenciais. Mas “texto” também é algo portador de mensagem. Para compreender a sua mensagem, faz-se necessário interpretá-lo. Interpretar um texto é a decodificação dos códigos, sinais e significados de sua estrutura, analisado por alguém que pretenda essa investigação. Um texto é uma obra humana e, conseqüentemente, encontra-se fixado na história da humanidade, portanto, precisa ter uma referência concreta ao tempo e lugar de existência de seus autores. Um texto surge em determinado lugar, em determinada data e sob determinadas condições. Analisando-se o contexto da vida, procura-se clarificar a sua intenção comunicativa. Texto não significa apenas a produção escrita. Portador de uma mensagem, ele pode ser a gravação (analógica ou digital) de determinada situação, pode ser uma obra de arte, bem como o próprio discurso de interlocutores, suas produções escritas e suas histórias orais e/ou registradas. Uma interpretação é a tentativa, por um intérprete, de recuperação da intenção comunicativa da mensagem do autor. Na reflexão, é importante comparar os elementos analiticamente construídos e demonstrados, o que consiste basicamente nisto: olhar o pensamento do outro; avaliar sua lógica e validade interna; suas contextualidades. Nesse sentido, a reflexão se faz necessária. O presente texto caracteriza-se como sendo de caráter descritivo e exploratório, uma vez que a história do professor Hugo certamente possui

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 73 - 97 • jan. - dez. 2008 75 tantas variáveis quanto às das pessoas que tiveram a oportunidade de conviver com ele. Todo texto representa um engajamento e, nesse sentido, Paiva (1993, p. 35), alerta:

Em nome de uma pretensa neutralidade, o mundo da academia recomenda aos seus membros, muitas vezes, um afastamento em relação ao objeto de estudo. A recomendação traz em seu âmago o germe do contrário. Afastar-se de alguma coisa significa aproximar-se de outra. O engajamento é inevitável. Como humano existe uma bagagem ecológica que nos define como portadores de uma proposta política.

O texto que se apresenta é uma reflexão, mas também um engajamento não apenas com alguns dos ideais que o professor Hugo alimentava, mas também com suas perspectivas epistemológicas de aposta constante na capacidade humana de superar-se ao longo da história, apesar de todas as mazelas que, às vezes, parecem sobrepujar o espírito humano. Constituir-se um cidadão que constrói o mundo é hoje uma tarefa que se faz necessária frente ao desafio imposto pela sociedade contemporânea da qual o professor Hugo não desistia em sua atuação como docente e como pesquisador. Constitui-se, assim, na busca de um humano que interage permanentemente com os outros, com o ambiente e consigo mesmo, destacando seus potenciais e canalizando-os de forma criativa e consciente. Como bem dizia Assmann (1993, p. 51-79):

Nas atuais circunstâncias de construção do conhecimento e mudança de paradigmas [...] ou cai-se na inanição teórica, perpetuando mesmices, ou se enfrentam, com seriedade, a discussão teórica e os desafios práticos.

Este trabalho origina-se de várias leituras, muitos questionamentos, muitas reflexões e diversas perguntas, tudo isso realizado com o professor Hugo. Agora, tais reflexões devem ser feitas sobre ele. As dificuldades de “acertar” esta problematização, definir as opções teóricas que norteiam este texto, encontrar fontes fidedignas, e a adequada construção de categorias para um artigo são inúmeras. Muitas vezes parecem intransponíveis. Paiva (1993, p.38) expressa bem essa dificuldade quando escreve:

Aos que crêem na existência de uma linearidade no trabalho científico, a enorme dificuldade de acertar em todos os sentidos. Não há como importar ou aplicar um método, não há como copiá-lo, adaptá-lo aos interesses desta pesquisa. Caminham juntos pesquisa-reflexão- escrita, lado-a-lado, passo-a-passo em forma de um diálogo.

76 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 73 - 97 • jan. - dez. 2008 Nesse sentido, fica perceptível que não existe uma forma de conhecer o mundo que signifique e represente o mestre Hugo, e muito menos uma única leitura possível, de forma a esgotar a compreensão de suas realidades. Assim sendo, compreende-se as dificuldades inerentes a esta proposta de construção, dada a complexidade não apenas do próprio professor, como de suas interfaces em diferentes contextos. da aprendência e da corporeidade

Uma característica respeitável do professor Hugo era a sua capacidade de criar novas palavras. Ele percebia que a linguagem tinha limites descritivos da realidade. Se quiséssemos perceber a realidade sob novas perspectivas, seriam necessárias outras palavras capazes de expressar essas novas demandas. Para ele, bem como para muitos dos autores que lia e escrevia a respeito, o mundo da linguagem não é apenas um elemento constitutivo do humano, e sim sua condição fundamental de existência, o qual se encontra imerso num oceano de significados semânticos, capaz de realizar ressonâncias cada vez que se cria um novo termo de compreensão, o qual ecoa sobre nosso entorno como ondas que se formam quando se atira um objeto em um lago. A diferença é que a formação de ondas a partir de uma pedra que cai no lago é a tônica desse fenômeno. Mas, quando se cria uma palavra para nominar-se um novo fenômeno e sua manifestação no mundo, não mais se sabe os efeitos que serão capazes de se reverberar no agir humano. Assmann percebia que a linguagem e o pensamento não “caem do céu e se prendem ao corpo pela amarra de uma epífise” (CIRULNIK, 1997, p. 13). A linguagem não é fruto de um acúmulo de informações que, por armazenagem, retornam ao meio por meio de sons reconhecíveis. O que nos diferencia de grande parte dos seres vivos é a nossa capacidade de desenvolvimento “transformacional das informações que se recebe” (KENDAL et al., 2003, p. 231). Aprender as dimensões interativas da linguagem não acontece pela memorização de frases padronizadas, mas pela compreensão das regras para a criação de uma declaração com significado. Toda vez que se utiliza a linguagem literalmente, criam-se significados. A linguagem faz uso infinito de termos finitos, assim como nós somos capazes de uma combinação infinita de movimentos por meio das estruturas finitas de nosso organismo. E essa era uma capacidade ímpar do professor Hugo. Durante o período evolucionário da humanidade, o cérebro foi desenvolvendo- se. Com o passar do tempo, diferenciou-se das estruturas anteriores que lhe deram origem. O cérebro humano tem, hoje, um tipo de estrutura diferente dos primeiros antropóides. Conforme Dennett (1998), é possível que a liberação dos membros assumida pela postura bípede tenha possibilitado que objetos fossem trazidos para a frente dos olhos e a concentração neles tenha iniciado o processo de reflexão. Tal ato teria estimulado a realização de sinapses naquele cérebro que chegou ao neocórtex (estrutura do cérebro

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 73 - 97 • jan. - dez. 2008 77 exclusivo do ser humano), do qual hoje todos partilhamos e que permite os processos de utilização de símbolos e da linguagem. Note-se que a ação geradora da reflexão nasce evolutivamente de um movimento (trazer um objeto) e de uma observação (até os olhos), processo que todas as crianças realizam indistintamente. Cyrulnik (1997, p. 16) vai reforçar tal reflexão dizendo que “muito antes da convenção do Verbo, o mundo vivo é estruturado pela sensorialidade que lhe dá uma forma perceptível precisa”. O autor vem nos chama a atenção para o rico fato de seres sensíveis poderem partilhar um ambiente por meio de “imprintings” 1 contínuos.

Aquele que contém os significados mais cativantes é um outro da mesma espécie. A proximidade dos congêneres cria um mundo sensorial partilhável. O outro contém em si o que mais espero. Se estivesse sozinho no mundo ele estaria vazio, mas assim que dou conta de um congênere perto de mim, portador de informações que ‘me falam’, o meu habitat enche-se de gritos, de cores e de posturas que criam um ambiente rico em significados enfeitiçadores, em acontecimentos extraordinários. A simples presença de um “próximo análogo” geneticamente vizinho, alarga o mundo sensorial e cria um acontecimento perceptual, um convite ao encontro. Basta colocar dois bebês lado a lado para que manifestem uma emoção intensa expressa por tagarelices, olhares e aplausos. Lança pequenos gritos e procura tocar no outro com as mãos ou os pés, revelando assim uma sociabilidade, uma intencionalidade espantosamente precoce. (CYRULNIK, 1997, p. 23).

Ao poder comunicar e partilhar suas experiências com o outro, conseguiu compreendê-la e pôde enriquecer-se com a diferença do outro. No momento em que, por intermédio da fala, o ser humano estabelece um processo comunicativo, ele começa a reconhecer as diferenças entre si e o outro. Essa diferença representa um salto qualitativo em sua leitura de mundo e de si próprio. Nasce, assim, a associação de esforços vitais para a sobrevivência na natureza e, com ela, um salto qualitativo no desenvolvimento do nosso cérebro. Conviver com o professor Hugo era uma experiência desta natureza. O sinal mais evidente de uma linguagem é a capacidade de utilizar símbolos que permitam realizar uma antecipação do futuro, pois “[...] realiza uma sondagem de elementos do presente, com os materiais do passado, transformando-os em antecipações do futuro, buscando o seu melhor estado” 1 A expressão imprinting, nesse caso, é utilizada com o sentido atribuído pela etologia – ciência que estuda o comportamento dos animais –. Konrad Lorenz evidenciou em determinadas espécies os sinais perceptuais recebidos em momentos específicos (principalmente nos primeiros instantes de vida) os quais marcam profundamente a forma de relação desses organismo com o mundo.

78 COMUNICAÇÕES• Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 73 - 97 • jan. - dez. 2008 (DENNETT, 1998, p. 67 op. cit.). Esse momento da transição de gestos e movimentos para a comunicação de pensamentos, também por meio das palavras/símbolos, na história de uma pessoa é fantástico, Nenhum outro momento é tão capacitador em termos de potencialização de uma mente como esse ao adquirir-se um sistema de códigos e símbolos, o qual permite a reflexão do meio e, principalmente, de si próprio. Maturana e Varela (1995, p. 250) afirmam que:

O operar recursivo da linguagem é condição sine qua non para a experiência que associamos ao mental. Por outro lado essas experiências fundadas no lingüístico se organizam com base numa variedade de estados do sistema nervoso. Como observadores, não temos acesso direto a tais estados, mas estes ocorrem sempre de maneira a manter a coerência de nossa deriva ontogênica.

A linguagem é uma dimensão significativa para todo ser humano. Nosso domínio de interações amplia-se significativamente por meio dela, permitindo-nos a criação de virtualidades diversas. Um termo que era caro ao professor Hugo (entre tantos que ele criara) era o de aprendência. Foi, talvez, um dos autores brasileiros que mais insistiu sobre as diferenças entre os processos de ensinar e de aprender, colocando neste último o foco principal da escola e da educação brasileira. Em outras palavras, o aprender enquanto processo está ligado aos sistemas biológicos do sujeito. Assim sendo, está envolvido na história de vida dele e só tem significado ao aluno – aqui designado de aprendente – se o aprender puder traduzir-se numa compreensão vivencial de sua experiência de vida, auxiliando-o a entender sua história e apontar possibilidades futuras de desenvolvimento. Se assim não fosse o aprender, caracterizaria-se apenas como uma memorização de conceitos distantes de suas realidades e facilmente descartáveis quando significados vivenciais surgissem em suas existências. Um exemplo que se pode citar desse contexto são as crianças que freqüentam os portos de Rio Grande (RS) e Santos (SP), dentre as quais, muitas estão defasadas em sua seriação escolar, mas que, entretanto, sabem falar inglês e até mesmo outros idiomas. Nessa fase, em que discutia conceitos de aprender, o professor Hugo começou a trabalhar com a hipótese da corporeidade como termo epistemológico possível ao contexto pedagógico do aprender. Seus livros “Paradigmas Educacionais e Corporeidade” e “Metáforas Novas para Reencantar a Educação” apresentam capítulos amplos nos quais ele discute tais possibilidades. É quando se iniciam nossas aproximações conceituais e com as quais me apresentei ao Programa de Pós-Graduação em Educação da uniMeP. Uma teoria da corporeidade pode parecer contraditória, já que ela está

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 73 - 97 • jan. - dez. 2008 79 necessariamente envolvida na dimensão sensível do mundo vivido,2 onde as funções corporais ocorrem independentes de teorizações. Mas é preciso reconhecer que o mundo vivido – anterior a qualquer teorização – é também o ponto de partida para realizar-se o desafio de teorização, que consiste no encontro de palavras, conceitos e imagens – produtos dessa corporeidade –, revertendo sobre ela e ajudando-a a mostrar suas múltiplas manifestações sem amarrá-las a nenhuma delas. Quando iniciei meu doutoramento, sob a orientação do professor Hugo, ainda mantinha-me convicto da hipótese da corporeidade ser encarada como conceito a ser desenvolvido na busca de uma epistemologia pedagógica significativa no processo de aprender. Nesse momento, o professor Hugo já estava abandonando tal hipótese e avançando para os impactos na subjetividade e na cognição dos sujeitos e para as possibilidades de mudanças ambientais que as tecnologias informáticas apresentavam no cenário da educação. Conviver naquela época com o professor foi uma experiência fascinante, muito mais frutífera do que se tivesse acontecido alguns anos antes, quando sua convicção epistemológica sobre o valor da corporeidade como referência estava mais aderente. Por quê? Pela simples razão de que, ao emprestar- me um conjunto de informações até então desconhecidas para minhas leituras e colocar-me uma série de questionamentos pertinentes a respeito da corporeidade como referência, levou-me a mergulhar profundamente em literaturas de diversas áreas (corporeidade, cérebro, filosofia da mente, psicologia evolutiva, novas tecnologias, etc.). Essas referências – disponíveis em inglês e espanhol – apresentavam novos cenários epistemológicos, ao mesmo tempo em que buscava entender o novo mundo que as tecnologias estavam a reestruturar. Quando os limites conceituais de minhas referencias lingüísticas tornavam-se obstáculos, professor Hugo aparecia com algum autor cuja obra era traduzida do alemão, italiano ou francês. Naquele instante valeu um conceito muito respeitado pelo professor: o da imersão nos universos conceituais que iríamos discutir e apresentar. No meu caso, tendo por formação básica a área da Saúde (licenciatura plena em Educação Física e créditos parciais em Pedagogia e Psicologia), conhecia bem os meandros da terminologia conceitual. Neste trabalho, como nas discussões com o professor Hugo, o conceito de corporeidade não será utilizado como uma noção linear-causal de um agregado de componentes estruturais biológicos, superpostos de forma maquínica e agindo por hierarquias determinísticas. Por isso, ao longo deste texto, os argumentos conceituais não serão construídos apenas a partir das produções do professor Assmann, mas, ao contrário, procurar- se-á contextualizar suas idéias a partir de outras referências que com ele discutíamos na tentativa de, no mínimo, provocar no leitor destas linhas a

2 A expressão mundo vivido é uma tentativa de tradução da expressão alemã Lebenswelt. O termo ganha força na obra de Husserl, com o entendimento sobre a questão da verdade. A verdade é então definida na evidência da experiência vivida. O vivido não é um sentimento, mas refere-se à percepção original da consciência.

80 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 73 - 97 • jan. - dez. 2008 curiosidade pela capacidade de síntese e de antecipação teórica do professor Hugo e, conseqüentemente, a leitura de seus textos. O conceito de corporeidade humana é abordado como uma emergência que acontece a partir de múltiplos e diferentes elementos constituintes que vão desde as condições exógenas do meio (cultural, social, lingüístico, tecnológico e relacional) até as endógenas do organismo (sistema nervoso, interações bioquímicas, virtualidades e condições físicas), no qual a interação e interfaces são aspectos cruciais nesta reflexão. Essa corporeidade será vista como a emergência de um sistema auto-organizativo e adaptativo complexo por meio de processos recorrentes e recursivos de dinâmicas não-lineares. Sujeito às variações das condições iniciais, não se tem a possibilidade de conclusão de seu processo final. Nessa concepção, a corporeidade humana não é apenas uma sobreposição de elementos biologicamente determinados, mas, ao contrário, representa um processo de circularidade contínuo de mudanças, nas quais a delimitação de início ou de fim apenas é possível a partir da perspectiva de um observador. Assim, pode-se dizer que representa um sistema aberto, poroso, caótico, fluído e incerto, mas com capacidade de produzir algumas regularidades e aprendizagens que o mantém, durante um tempo, vivo e minimamente orientado diante do inesperado e do estranho, no qual procura a continuidade de sua autopoiése nessa contínua interação com o meio. A metáfora de um barco auxilia a compreeensão da idéia do ser vivo como um sistema longe do equilíbrio em contínua troca e interações entre o interior e o exterior. Há perturbação externa e o sistema internamente se auto-regula para manter-se no rumo. Toda vez que acontecer uma rajada de vento, se corrige o rumo. O importante é manter as oscilações em limites possíveis para a estrutura e a organização do ser vivo. Pode-se fazer uma analogia com a vida. Quanto mais exercermos a autonomia/singularidade do barco, mais compreenderemos as circunstâncias. Da mesma forma, quanto mais conectados com nós mesmos mais percepção teremos sobre o contexto externo. Com isso, o sujeito que aprende não é definido apenas por um aspecto dos múltiplos fatores dessa emergência. Pelo contrário, precisa também se contextualizar como tal, derivado de contextos bioculturais, autocriação de suas interações e com ambientes desenvolvidos artificialmente. Um fenômeno é sempre atravessado por uma interpretação. Os fenômenos podem ser evidenciados e terem categorias construídas. É reconhecida a ligação entre a razão e a existência. Razão e fato interpenetram- se tal como reflexão, ação, sendo que os segundos, fundantes, são os primeiros, porque os fundados, a partir dos quais se manifestam, são sua determinação. Conseqüentemente, o corpo decomposto não é verdadeiramente corporeidade. Somente o corpo vivo o é. A base da filosofia de Merleau-Ponty é a integração da vida do corpo na nossa existência concreta, e o professor Hugo sabia como trazer esses conceitos – muitas vezes metafísicos – à dimensão concreta de aprendizagens. Talvez um de seus objetivos constante fosse evidenciar a

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 73 - 97 • jan. - dez. 2008 81 função primordial pela qual assumimos espaço, objeto e instrumento e descrevemos, na corporeidade, o lugar dessa apropriação. Tal tarefa revela- se desafiadora, uma vez que não é simples redescobrir, relatar, evidenciar e expressar a ligação do sujeito emergente na corporeidade devido a séculos de concepções dicotômicas ainda existentes hoje. Nessa perspectiva, construindo-se uma corporeidade singular de ser, impõe-se uma profunda transformação na noção de consciência, da qual apenas recentemente (vide MATURANA; VARELA, 1995 e outros) começa- se a resgatar um sentido mais amplo, mas que o professor Hugo já citava em seus escritos (ASSMANN, 1996; ASSMANN, 1998; ASSMANN, 2000). O mosaico do corpo físico-químico feito de tecidos, sangue e todos os demais componentes definem apenas a massa corpórea de meu corpo físico (se assim for melhor dizer). Como mosaico de sensações dadas, a corporeidade não tem orientação definida, recebendo-a apenas a partir da experiência. A corporeidade pode e ultrapassa os limites e as fronteiras desse corpo objetivo. É constitutivo da corporeidade apropriar-se de nódulos significativos que superam e transfiguram suas capacidades naturais. Tal condição nos remete a um projeto de empatia com o outro. Para Dantas (2001, p. 191):

Se posso sentir graças ao entrelaçamento do corpo próprio com o sensível, sou também capaz de reconhecer outros corpos e outros homens. [...] A coisa, o outro e a verdade estribam numa experiência emocional de coloração corpórea. O meu mundo sensível é também o do outro, somos seres corpóreos co-presentes num mesmo mundo através do qual somos vistos ou pensados. O corpo atual é o das minhas palavras e atos, do relato verbal e da percepção direta. Com ele devem revelar-se corpos associados que convivo e que comigo convivem.

É importante reconhecer que uma teoria da corporeidade não é patrimônio exclusivo de nenhuma área do conhecimento e, por isso, se pretende manter abertos os canais de diálogo com diferentes áreas numa perspectiva transdisciplinar do processo. O termo “corporeidade”, na afirmação de Santin (1987, p. 58), implica afirmar que “a humanidade do homem se confunde com a sua corporeidade”. Para esse autor, o corpo e seus movimentos estão no centro de toda e qualquer possibilidade expressiva ou comunicativa. O corpo é uma entidade que manifesta o que é mais próprio do ser humano, possuindo realidade própria que precisa ser compreendida. Nas palavras do autor:

O homem é essa realidade que se manifesta e se expõe diariamente às óticas abrangentes nos campos perceptivos, através da infinidade de suas possibilidades expressivas, instauradas pela dinâmica da corporeidade. O homem é uma autoconstrução corporal. A humanidade do homem

82 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 73 - 97 • jan. - dez. 2008 confunde-se com sua corporeidade. (SANTIN, 1987, p. 61). - O uso do termo “corporeidade” procura construir uma linguagem que ultrapasse a dicotomia do corpo e da mente como instâncias separadas. Dessa forma, a mente não seria apenas uma proprietária do corpo como forma dele dispor quando fosse conveniente. Não seria apenas locadora do corpo, mas manifesta-se através de um corpo. Essa manifestação contém a história dos seus elementos constitutivos, seu aparato sensorial, que afetam as variadas formas de desenvolvimento, e suas possibilidades de relação com o mundo. Entretanto, como todo conceito que busca delimitar uma realidade, o termo “corporeidade” bananalizou-se a ponto de se falar e escrever sobre o conceito nos meios acadêmicos, mas pouco compreendê-lo no seu sentido vivencial. Santin alerta que manuais científicos fornecem definições inteligíveis sobre o domínio científico da corporeidade, pois isso não significa a compreensão de suas dimensões vivências. O próprio autor afirma:

A corporeidade é acima de tudo, uma presença, uma manifestação, uma visibilidade, talvez dito com maior precisão, uma fisionomia. A corporeidade se estende para além dos limites da Física e da Biologia. Ela alcança a esfera da consciência e não exclui a possibilidade de transcendência. Podemos afirmar com certa segurança que a corporeidade é a condição humana, é o modo de ser do homem. (SANTIN, 1987, p. 13).

Apesar da importância destacada pelo autor, o termo corporeidade, face ao uso excessivo e compreensões reducionistas, corre o risco de ficar no domínio da definição racional a ponto de falar-se sobre ele e pouco vivenciá- lo como experiência possível. Nas palavras do próprio autor, “a corporeidade do corpo pode não coincidir com a corporeidade do pensamento racional” (SANTIN, 1987, p. 37). A simples etimologia da palavra mostra a raiz que se deriva do termo corpo. Ao analisar gramaticalmente a palavra, o prefixo “corpo” parece estabelecer uma ordem hierárquica. Nesse sentido, a palavra se coloca, mais uma vez, na oposição dicotômica da mente x corpo. Porém, não se deseja estabelecer uma hierarquia, mas um fundamento para uma emergência capaz de retroações. A palavra “corporeidade” aparece como tentativa de superar o dualismo da mente e do corpo que nos acompanha desde muito tempo, muitas vezes denunciado pelo professor Hugo como uma das razões das mazelas dos estados defasados da educação. De caráter fenomenológico, esta palavra, ao mesmo tempo em que procura uma relação contínua e processual entre corpo e mente como aspectos da mesma realidade, abandona a divisão entre o psíquico e o fisiológico, questionando assim a visão cartesiana. É toda a estrutura de carne, músculos, órgãos e nervos como tangibilidade e também como visibilidade que atravessa o próprio corpo. Como espaço de mediação entre sujeito e mundo,

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 73 - 97 • jan. - dez. 2008 83 o corpo deixa de ser assim o indivíduo objetivo da reflexão cartesiana para se dar como ser relacional, lugar de interferência. Nesse ponto, a reflexão de Merleau-Ponty opera um corte com perfil transdisciplinar. Nessa dimensão já significante, a corporeidade desvela e manifesta o caráter latente que liga o sujeito humano ao mundo. É precisamente porque o corpo deixa de ser visto nessa dualidade que ele se torna um corpo da reversibilidade significante e eminentemente relacional. Para autores como Dantas (2001) e Merleau-Ponty (2000), o corpo e os seus movimentos estão no centro de toda e qualquer possibilidade expressiva, sendo o corpo uma entidade que possui uma realidade que precisa ser compreendida. Nas palavras do autor:

Um movimento é apreendido quando o corpo o compreender, isto é, quando ele o incorporou a seu mundo, e mover o corpo é visar através dele as coisas, é deixá-lo responder a sua solicitação, que se exerce sobre ele sem nenhuma representação [...] Para que possamos mover nosso corpo em direção a um objeto é necessário que primeiramente o objeto exista para ele. (MERLEAU- PONTY, 1971, p. 106).

Com Merleau-Ponty (2000), o corpo e a corporeidade são retirados do porão das questões filosóficas e colocados como centrais para a reflexão existencial do ser humano num mundo em relações, os quais para o professor Hugo eram vitais para a ampliação dos horizontes pedagógicos. Levando- se em conta que sua geração não usufruiu dos recursos tecnológicos que hoje existem, ainda assim ele era um entusiasta das fronteiras que estes representavam. Ele buscava evidências científicas que se dispõem hoje na Internet em termos de pesquisas nas neurociências; sua visão pode ser categorizada como adiante de seu tempo, pois já antevia as implicações que tais investigações trariam ao processo de aprender. Nas palavras de Merleau- Ponty (2000, p. 344):

O organismo não é somente a sua realidade local- instantânea para um pensamento proximal, nem é, aliás, uma outra realidade […] Ele é um ‘fenômeno-invólucro’ que não se engendra a partir dos elementos, que envolve o local-instantâneo, que não é para ser procurado por trás dos elementos, mas entre eles. (grifo nosso).

Esta citação de Merleau-Ponty (2000) é emblemática para o atual momento da pesquisa. A ciência representa um avanço do conhecimento humano. Entretanto, a ciência tem atuado em áreas isoladas de tal maneira que a própria concepção de mundo fragmenta-se e, com ela, também a concepção de ser humano, questão que angustiava o professor Hugo. Porém, o ser humano não é um ser fragmentado; em suas concepções teóricas,

84 COMUNICAÇÕES• Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 73 - 97 • jan. - dez. 2008 o professor Assmann buscava encontrar reflexões epistemológicas que representassem alternativas viáveis para a educação. Merleau-Ponty (2000) chama a atenção para a necessidade de redirecionar a pesquisa científica. Não buscar apenas os elementos básicos ou iniciais dos processos presentes na corporeidade (“por trás dos”) como se uma linha linear-causal fosse suficiente para dar conta de alguma explicação. Pelo contrário, é necessário procurar compreender a relação “entre” os processos desses fenômenos, preocupação igualmente compartilhada pelo professor Assmann. Na reflexão de Merleau- Ponty (2000, p. 344) se pode encontrar referências à corporeidade como uma trama transdisciplinar:

Na ontogenia, na evolução, tudo é físico-química em conformidade com a termodinâmica, mas não são a físico- química ou a termodinâmica que exigem a constituição desses ‘pontos singulares’ que são os organismos dessas estruturas, dessa arquitetônica em que se desenrolarão os eventos físico-químicos. O organismo não coloca em xeque a físico-química, ele está no entre mundo, em filigranas, realidade de massa, não opõe causalidade à causalidade, só ultrapassa a causalidade pelo desvio de uma reinterpretação de uma nova dimensionalidade, por integração e diferenças qualitativas. (grifos nossos)

Toda corporeidade é constituída de elementos de natureza físico- química, constituintes do nosso universo observável. Entretanto, se algum pesquisador tentar realizar a decomposição da corporeidade até o nível desses elementos perceberá que, nesse nível, não se esgota a compreensão de sua relação com o mundo numa visão reducionista, justamente pelo fato de a corporeidade ser um processo complexo de relação. Ela ultrapassa a causalidade linear causal pelo “desvio de uma reinterpretação de uma nova dimensionalidade, por integração e diferenças qualitativas” (MERLEAU- PONTY, 2000, op. cit.). Essa reinterpretação até se manifesta de múltiplas formas, mas mantém, em comum, a necessidade da corporeidade como condição existencial. Nas palavras de Merleau-Ponty (1971, p. 210):

O corpo próprio está no mundo como o coração no organismo. Ele mantém continuamente em vida o espetáculo visível, forma com ele um sistema. Quando passeio em meu apartamento, os diferentes aspectos sob os quais ele se oferece a mim não poderiam aparecer para mim se não tivesse consciência do meu próprio movimento, e de meu corpo como idêntico através das fases destes movimentos. Posso evidentemente sobrevoar o apartamento em pensamento, imaginá-lo, ou desenhar seu plano num papel, mas mesmo então não saberia apreender a unidade do objeto sem a mediação da experiência corporal. (grifos nossos)

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 73 - 97 • jan. - dez. 2008 85 O mérito de Merleau-Ponty e de autores como Assmann, que acompanham sua reflexão, é apontar a necessidade da compreensão dos elementos de nossa corporeidade como também significativos na constituição do ser humano. O ser humano não é apenas a dimensão imaterial e introspectiva de seu pensamento que, para alguns, é a essência do humano. Assim, como sobre o corpo sou obrigado a admitir, pela própria percepção, que enquanto ser humano não sou apenas meu corpo. É na inter-relação dessas manifestações que o ser humano emerge, e é com essa possibilidade que avaliaremos suas implicações. Descartando-se essa visão, os conceitos podem variar, mas repousarão inevitavelmente no dualismo lingüístico organizado por Descartes. Se não conseguirmos abordar o ser humano na condição de inter-relação mente e corpo, superando-se o dualismo platônico alertado por Assmann e como diz Bunge (1988, prefácio):

Correremos o risco de um mero retorno da velha idéia teológica de uma entidade imaterial e possivelmente eterna, vagando acima do cérebro e sobrevivendo à dissolução do mesmo. Em alguns casos é. Essa ressurreição certamente não é de grande ajuda à ciência: embora precisemos muito da noção de idéia, essa noção não precisa ser idealista, e nem pode ser se tiver que viver em harmonia com a ciência. Como a ciência lida apenas com entidades concretas e somente reconhece propriedades dessas entidades e não propriedade em si mesma não tem uso para propriedades e alterações que não sejam propriedades e alterações de entidades concretas, sejam elas átomos, neurônios, cérebros ou galáxias. Não há mal nenhum em falar de estados e eventos mentais desde que não os atribuamos a uma entidade imaterial, imutável e inescrutável mas, ao invés, a estados ou eventos do cérebro.

É importante transformar esse ponto de vista em uma estrutura teórica que seja compatível com os últimos resultados obtidos pelos diferentes ramos da ciência e capaz de inspirar progresso em suas pesquisas. Por exemplo: a neurofisiologia é necessária, mas não suficiente, pois tende a descartar categorias psicológicas como o pensamento. E a psicologia, embora igualmente necessária, também é insuficiente, pois tende a esquecer o sistema nervoso. Na verdade, a intenção é mostrar que a idéia de uma entidade abstrata, tal como a mente, separada da corporeidade não só é desautorizada pelos dados disponíveis nas pesquisas atuais das neurociências e das ciências cognitivas, mas também colide frontalmente com as idéias mais fundamentais da ciência moderna e constitui, portanto, obstáculo ao progresso. Existem muitos dados que apontam nessa direção, mas a coleta de dados, embora parte da pesquisa científica, não é toda ela. Como há muito observou o cientista Poincaré, a crítica, longe de ser estranha à ciência, é o

86 COMUNICAÇÃO • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 73 - 97 • jan. - dez. 2008 tempero desta. Isso é particularmente verdadeiro em relação a problemas, como o da natureza da relação corpo e mente, que não são apenas científicos, mas também filosóficos e, nesse sentido, as contribuições do professor Hugo, além de inegáveis, são preciosas pedras de reflexão e questionamento a respeito das implicações dessas pesquisas no âmbito da educação e da aprendizagem. Discutir a corporeidade ultrapassa a análise de uma só disciplina para situar-se como trama complexa de conhecimentos, necessitando de múltiplas disciplinas interagindo e intercambiando diferentes pesquisas, realizando- se, assim, a transmigração de conceitos que ampliam seus fundamentos. Questiona o paradigma linear de concepção estática de mundo, que não percebe a dinâmica de movimento da realidade como processo complexo. Essa incapacidade de perceber-se a dinâmica do real, representa a adoção de um paradigma com o qual se realiza a leitura da realidade. E paradigmas, segundo Vasconcellos (2002, p. 31-33):

Além de influir sobre nossas percepções, nossos paradigmas também influenciam nossas ações; fazem-nos acreditar que o jeito como fazemos as coisas é o ‘certo’ ou a ‘única forma de fazer’. Assim costumam impedir-nos de aceitar idéias novas, tornando-nos pouco flexíveis e resistentes a mudanças [...] instala-se uma disfunção que é chamada de ‘paralisia de paradigma’ ou ‘doença fatal de certeza’. E essa doença é mais fácil de contrair do que se pode imaginar.

Por isso, a maneira como descrevemos o que acontece pode inibir ou facilitar a sua percepção, como diria Foerster (1996). Como os constituintes da corporeidade transformam-se num universo próprio dentro do universo habitável fica a dificuldade de tradução para uma linguagem escrita da dimensão da experiência do vivido. Pode-se dizer que o universo da corporeidade é polimorfo, paradoxal, desafiador e poético. Uma multiplicidade de imagens, cores, formas, sons, movimentos, tonalidades, comunicação e expressividades que confundem qualquer pensamento que queiram encerrá-la numa lógica linear e em esquemas simplificadores. Ao tentar congelar a corporeidade para analisá-la, ela se mostra fluida e efêmera como a água que escorre entre os dedos, ou como uma densa nuvem de fumaça criando poéticas incertezas. E é nesse terreno e nesse bailar de categorias e experiências que se tenta compor o jogo criativo de construção de conceitos para uma construção teórico- vivencial da corporeidade. Dessa forma, sabe-se que cada fragmento teórico aqui apresentado não esgota a redução explicativa completa a uma dimensão do fenômeno e, por isso, não se pretende apresentar modelos explicativos, mas, à imagem do fragmento holográfico, construir pontes que não simplifiquem esse saber polimorfo, e sim que ampliem a comunicação e os horizontes perceptivos e vivenciais. Esse olhar teórico – incluindo também as dimensões vivenciais

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 73 - 97 • jan. - dez. 2008 87 e intuitivas – pretende tão-somente acolher os fragmentos das múltiplas interfaces do saber, que emerge na corporeidade e, avançando, descobre-se também limitado pelo caminho que percorreu. da evidência e o acelerador de partícUlaS – Uma contribUição à SUa hiStoriograFia

Segundo as categorias do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o professor Hugo encontrava-se entre a parcela da população denominada terceira idade. O fenômeno do envelhecimento da população brasileira, juntamente com os avanços da medicina, tem se constituído numa nova organização do tecido social brasileiro. O envelhecimento, antes considerado um fenômeno limitado a uma pequena parcela populacional, hoje, além de fazer parte da realidade da maioria das sociedades, está transformando-se quantitativamente num evento que obriga os diferentes governos a repensarem suas políticas sociais direcionadas a população de idosos. O mundo está envelhecendo. Tanto isso é verdade que a estimativa para 2050 é a de que existam cerca de dois bilhões de pessoas com 60 anos e ou mais no mundo, e a maioria delas vivendo em países que ainda estão em desenvolvimento. No Brasil, estima-se que existam, atualmente, cerca de 17,6 milhões de idosos. A população mundial com idade igual ou superior a 60 anos compreende cerca de 10% ou 11%, com expectativa de aumento nas próximas décadas. No Brasil, de acordo com o IBGE, a população de idosos passou de 6,1%, em 1980, para 7,3%, em 1991, devendo chegar em torno de 10%, em 2010. Por volta de 2025, o Brasil será o 6º país no mundo em número de idosos; continuando essa tendência, é possível que em 2050 venha a existir mais idosos que crianças. O aumento da expectativa da vida humana é, sem dúvida, uma vitória do humano na sua busca por respostas sobre a vida. Entretanto, existem diferenças importantes entre os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento. Enquanto, nos primeiros, o envelhecimento ocorreu associado às melhorias nas condições gerais de vida da população, nos demais, esse processo acontece de forma rápida, sem tempo para uma reorganização social e das políticas governamentais das áreas de saúde, inadequadamente estruturadas para atender às novas demandas emergentes. Para 2050, a expectativa no Brasil, bem como em todo o mundo, é de que existirão mais idosos do que adolescentes e crianças abaixo de 15 anos, fenômeno esse nunca antes observado. Muitos idosos são acometidos por doenças e agravos crônicos não transmissíveis (Dant), situação que requer acompanhamento constante em razão da sua natureza. Essas condições crônicas tendem a se manifestar de forma expressiva na idade avançada e, freqüentemente, estão associadas a outras enfermidades (comorbidades). Podem gerar um processo incapacitante, afetando a funcionalidade do idoso, dificultando ou impedindo

88 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 73 - 97 • jan. - dez. 2008 o desempenho de suas atividades cotidianas de forma independente. Ainda que não sejam fatais, essas condições geralmente tendem a comprometer, de forma significativa, a qualidade de vida dos idosos, pois representam a necessidade de maior atenção social ao seu redor. É função das instituições universitárias contribuírem, por meio da produção de conhecimento e pesquisas, para que mais pessoas alcancem idades avançadas com o melhor estado de saúde possível. O envelhecimento ativo e saudável é o grande objetivo nesse processo. Se considerarmos saúde de forma ampliada, torna-se necessária alguma mudança no contexto atual em direção à produção de um ambiente social e cultural mais favorável para a população idosa, com efetiva contribuição da universidade nesse sentido. E o que isso tem a ver com o nosso mestre? Bem, o professor Hugo estava nessa faixa etária da terceira idade e contra a corrente da maioria dos indivíduos que se encontra nessa idade, porque muitos – por razões de desconhecimento científico e ignorância cultural (no sentido de não conhecer) – se autodefinem como incapazes de aprenderem coisas novas, dando sustento falacioso para o ditado “não se ensinam truques novos para cães velhos”. O professor Hugo era alguém cuja condição física de saúde orgânica possivelmente não acompanhava seu estado de saúde reflexiva e vontade de aprender novos conceitos. A impressão que passava era de que seu cérebro estava em atividade constante e de alguma forma ele sabia, ou deduzia, que a atividade cerebral era fundamental para a condição de devir ontológico (na abordagem de Maturana) de acoplamento estrutural. E, na minha observação, apesar de toda a limitação em cada dia, o professor parecia um guerreiro neuronal, cujo cérebro não se deixava abater, procurando manter acesa a luta contínua de aprendizagem e estado de aprendência. Mas essa era uma convicção de sua experiência vivencial, de suas leituras e de suas motivações, as quais eram apresentadas em suas produções. Mal sabia ele que, com os atuais dados disponíveis das neurociências e das ciências cognitivas, sua própria vida era uma evidência clara da aprendizagem durante uma existência e, de certa forma, intuía seus questionamentos e suas propostas epistemológicas para a educação como possibilidades reais. Para avançar-se nessa reflexão, vamos analisar a relação entre a estrutura que se chama cérebro fonte (segundo algumas correntes filosóficas) de nossos processos mentais. Essa é uma complexa estrutura existente – talvez a mais complexa no universo –, é um objeto definido conceitualmente: está localizado dentro da caixa craniana e pode ser visualizado, tocado e manipulado. É composto de substâncias químicas, enzimas e hormônios que podem ser medidos e analisados. Sua arquitetura é caracterizada por células neuronais, vias neurais e sinapses. Seu funcionamento depende de neurônios, os quais consomem oxigênio, trocando substâncias químicas por meio de suas membranas, e mantendo estados de polarização elétrica interrompidos por breves períodos de despolarização num processo contínuo. Mas como encontramos os nossos processos mentais que possibilitam essas reflexões? Como se estabelece uma mente que possibilita a percepção

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 73 - 97 • jan. - dez. 2008 89 das próprias sensações e a consciência de si mesmo? Uma visão fortemente defendida, desde os tempos da Grécia antiga e ainda hoje muito presente na organização de mundo de milhões de seres humanos, é a de que a mente é uma entidade separada do corpo, aspecto combatido veementemente e argumentativamente por Assmann. Essa concepção tem raízes históricas nas teorias que determinaram hipóteses dualísticas da função cerebral, as quais admitiam que o cérebro pudesse ser visto mecanicamente, mas que a mente é uma entidade com uma característica física não definida. Desde que a mente e o cérebro passaram a serem vistos como entidades isoladas, as pesquisas nessas áreas foram, de maneira geral, inerentemente separadas. Bioquímicos têm se preocupado com mecanismos somáticos, psicólogos têm se esforçado com as propriedades subjetivas da mente e filósofos e teólogos trazem com eles o espírito e a alma. As atuais pesquisas na neurociência têm entendido o cérebro e a mente como resultado relacional da investigação experimental. Parece ser mais coerente e factível pensar que condutas e atitudes são dependentes da atividade fisiológica do cérebro e de nosso ambiente cultural. Não se conseguirá ter conceitos se não existir um cérebro funcionando (no caso de, por exemplo, quando a atividade do cérebro é bloqueada por coma ou anestesia profunda), e não é possível compreender coisas que nós não aprendemos, ouvimos e experenciamos. Ainda hoje, a maioria dos cientistas geralmente é relutante em combinar trabalho experimental com filosofia e, normalmente, rejeita considerações de possíveis implicações psicológicas em seus estudos. Entretanto, alguns estudos nesse campo já começam a aparecer e seu volume de evidências tem se ampliado significativamente. Na opinião do neurofisiologista Delgado (1971, p. 37) “é preferível considerar a mente como uma entidade funcional destituída de implicações metafísicas per se e relacioná-la somente à existência de um cérebro e à recepção de inputs sensoriais.” No lado oposto da questão, como explicar os eventos mentais como sendo causados pela atividade de um grande conjunto de células neuronais? Aos poucos, os neurocientistas têm começado a combater a idéia de que essa questão é puramente filosófica ou ilusória para ser estudada experimentalmente, bem como estão começando a abordar o problema cientificamente. Começaram a surgir evidências sobre o entendimento de possíveis mecanismos cerebrais que podem ser subjacentes a processos mais complexos na experiência e comportamento humano, tais como o fenômeno da consciência, atenção e pensamento. Outro achado significativo nas neurociências é a correlação de eventos mentais, como a aprendizagem com alterações químicas e estruturais das células nervosas. Atualmente, sabe-se que, no cérebro, novos ramos neuronais crescem em resposta à diversidade cultural, riqueza ambiental de estímulos, isto é, ao treino e à experiência do dia-a-dia. Cada neurônio parece contribuir para muitos comportamentos e atividades mentais. Técnicas modernas estão agora começando a revelar como o cérebro tem conseguido a notável proeza

90 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 73 - 97 • jan. - dez. 2008 de construir novas sinapses, e a plasticidade neuronal apontar para potenciais de aprendizagem. Nesse conceito, os neurônios, células-base da estrutura cerebral, possuem uma capacidade de reorganização contínua, conferindo uma plasticidade única ao cérebro por intermédio de suas experiências interativas com o meio ambiente. Assim, a aprendizagem também influencia na organização do cérebro. Além disto, segundo Dennet (1998), redes artificiais de neurônios sobre computadores estão ajudando a explicar a habilidade do cérebro em processar e reter informação. Também as ciências cognitivas modernas utilizam um vasto conjunto de técnicas novas e são capazes de estudar objetivamente muitos componentes do processo mental, tais como: atenção, cognição visual, linguagem, imaginação mental, etc., e estão correlacionadas com atividade neural por meio de imagem funcional computadorizada, agora abertas à investigação científica. O cérebro existe em um organismo que atua continuamente com o meio, percebendo suas sensações internas e externas em um processo contínuo e ininterrupto, no qual cada ação e conduta são passíveis de inúmeras alternativas e possibilidades diferentes, dependendo do tipo de interação histórica construída. Portanto, as possibilidades de potencialização do cérebro passam pela tomada de consciência da experiência do próprio organismo como fonte de conhecimento. Sendo assim, a ênfase no termo “vivenciar”, como forma de caracterizar um tipo de experiência, é fundamental pela simples razão de que a experiência corporal não deveria ser algo da qual apenas se fala ou escreve a respeito, mas significativamente uma experiência que se vivencia e se comunica por meio de nossos comportamentos e atitudes, muitas delas não verbais. É importante destacar que, para perceber a vivência da experiência sensível, é preciso, num primeiro momento, admitir a existência de um corpo que experimenta sensações, com as quais seria importante, para cada indivíduo, entrar em contato e principalmente nomeá-las. “A experiência sensível é algo que existe num corpo concreto com sensações e percepções. E um corpo que sente a sua experiência sensível e entra em contato com ela, no caso humano, é um corpo que deseja” (GONÇALVES, 1997, p. 89). E um corpo que deseja significa estar atento ao que acontece no momento presente e entrar em contato com uma força motivadora, que anima os mais variados esforços humanos. Assumir o próprio desejo e nomeá-lo adequadamente deveria ser uma atitude esperada de uma pessoa consciente das interações e responsabilidades com o seu meio. Assim, a aprendizagem altera a estrutura de nosso cérebro constantemente, e não apenas em uma determinada época da vida. Finalmente, percebemos não somente o brilho e a fascinação exercida pelas funções mentais humanas, responsáveis pela criação e evolução de nossa sociedade, mas também a escuridão e o desespero das disfunções mentais, as quais afetam e destroem o ambiente interno e externo do ser humano. Também nesse campo, os impressionantes avanços na neurociência e genética estão

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 73 - 97 • jan. - dez. 2008 91 revelando as bases anatômicas, bioquímicas e hereditárias da esquizofrenia, mania, distúrbios afetivos e do humor, ansiedade, déficits intelectuais, distúrbios da memória e muitos outros, bem como a fantástica influência do meio no surgimento desses processos. Tomando-se por base a cientificidade dos estudos de história oral e escrita, a historiografia do professor Assmann certamente representaria uma bela evidência sobre as possibilidades de aprendência contínua ao longo da vida. Assim, o cérebro de qualquer pessoa continua em franca atividade durante toda a sua vida, fato que para o professor Hugo era uma evidência inquestionável, pois apresentava-se sempre curioso por novos conhecimentos. Porém, se o cérebro não for adequadamente estimulado em suas interações, ele também não utilizará das suas possibilidades de reconstrução. É certo que, na terceira idade, os processos de conexão sináptica podem acontecer de forma mais lenta, mas isso não significa impossibilidade de aprendizagem. O que se procura chamar a atenção é o fato de que é possível potencializar-se cognitivamente essa faixa etária, a fim de instrumentalizá-la como maturidade ativa, tanto física quanto cognitivamente, apesar dos anos em idade. É claro que, dependendo do tipo de interações históricas que cada sujeito desenvolveu, podem existir alguns limites. Em virtude das limitações da deriva histórica que o sujeito apresenta, começa-se a estimulação por meio de vivências sensoriais agrupadas com desafios cognitivos e vai-se gradualmente partindo de situações simples para situações cada vez mais complexas, mantendo-se a dimensão vivencial sempre associada às reflexões de natureza cognitiva. O advento da Internet possibilitou ao professor Hugo o acesso instantâneo a produções, em tempo real, existentes em todo o mundo. A capacidade do ser humano comunicar-se pela linguagem (escrita ou falada) é potencialmente um fenômeno exponencial; em cada momento no qual é utilizada ocorre um verdadeiro milagre no sentido mais pleno que esse substantivo possa ter. Penso que os adventos das tecnologias informáticas catapultaram ainda mais as possibilidades cognitivas do professor Assmann e, talvez, aí resida o seu fascínio sobre essas tecnologias em suas últimas produções, em detrimento das questões envolvendo a corporeidade, num momento em que ele vivenciava os limites que a biologia nos impõe. Fico a imaginar o que ele não estaria investigando se ainda pudéssemos ter o privilégio de sua atuação, qual um menino curioso com os atuais recursos de banda larga e tecnologia 3g. É claro que uma biografia mais ampla sobre o professor Assmann justificaria uma tese de doutoramento, o que certamente seria um desafio galáctico para seu proponente, uma vez que o professor Hugo viveu em diferentes países onde espalhou a riqueza seminal de seus conceitos, suas idéias e suas propostas.

92 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 73 - 97 • jan. - dez. 2008 Estas linhas representam a humilde contribuição para o resgate dessa história no nosso curto espaço de convívio durante os anos que convivemos e discutimos os mais variados assuntos. Assim, para mim, que frente ao mestre limitei as minhas investigações às referências teóricas disponíveis em inglês, espanhol e português, discutir com ele algumas delas era um momento desigual, dado o acesso a suas pesquisas que ele tinha em diferentes línguas. Era um momento desigual sim, mas muito fecundo, como seu orientando, à época de meu doutoramento, ele iria questionar-me à exaustão, provocar-me com outros referenciais teóricos, apontar outros caminhos possíveis, ou mesmo levantar obstáculos que, num primeiro momento, pareceriam instransponíveis. Pareceriam, mas não eram, porque assim como o professor Hugo levantava os obstáculos conceituais, que pareciam inviabilizar nossas investigações, sutilmente ele apontava alguma alternativa que pudesse significar novos caminhos investigativos e alternativas conceituais. Apesar da distância lingüística, o professor Hugo sempre foi um exemplo de humildade conceitual. Em nossa convivência, ao longo desse tempo, nunca se apresentou para este autor como alguém com soberba ou desdém pela experiência e conhecimento de outrem. Para muitos, esse tipo de conduta pode parecer como o esperado em um ambiente acadêmico, mas que lamentavelmente não acontece com a freqüência que deveria ocorrer. Esse é um ponto que desejo ressaltar. Apesar de eu saber que o professor Hugo encontrava-se em outra dimensão de conhecimento – pela sua competência lingüística, experiências internacionais e inúmeras pesquisas e produção teóricas –, ele nunca se colocou como alguém num patamar inatingível, utilizando-se de terminologias que aumentariam o seu distanciamento. Meu primeiro contato com ele foi deveras surpreendente. Após as apresentações protocolares de praxe, o professor silenciou por um momento e olhando-me profundamente nos olhos me questionou: – Você tem certeza de que eu poderei orientar o seu doutoramento? Sem vacilo, respondi: – Claro, professor. Na seqüência, ele deu sua primeira orientação, à qual procuro manter- me como pesquisador e aprendente até os dias atuais, como forma de manter seu legado vivo. – Eu não sei... acho que você não irá aprender muito comigo, em razão do que já leu, disse professor Hugo. Tenho consciência que o prazer da leitura era um ponto em comum entre nós. Mas, apesar de gostar muito de ler, sei que meus recursos lingüísticos eram restritos em termos comparativos. E eu sabia das competências lingüísticas do professor Hugo. Em silêncio fiquei e apenas refleti, pois até aquele momento não havia conhecido tamanha humildade... humildade que permaneceu ao longo de nosso convívio, mesmo em suas provocações epistemológicas que apareciam em seus escritos:

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 73 - 97 • jan. - dez. 2008 93 Coube-me a sorte, especialmente nos anos mais recentes, de falar para e dialogar com uma média anual de três a quatro mil professoras/es, principalmente de 1º e 2º graus, em vários Estados da Federação. Muito aprendi também de meus orientandos de dissertações de mestrado e teses de doutorado, alguns dos quais me ajudaram muito a melhorar perguntas como as que se refletem neste livro. [...] Um agradecimento forte cabe igualmente aos colegas do Programa de Pós-Graduação em Educação da uniMeP por sua tolerante e instigante fraternura. (ASSMANN, 2004, p. 14).

Tenho ciência que o professor Hugo apresentava um certo respeito ao meu nível de leitura e discussão conceitual. Para alguns colegas, existiria até uma certa “predileção”. Se ela existiu não saberia dizer, mas uma coisa foi fato entre nós: nossos debates teórico-conceituais ora eram uma troca de gentilezas que beirava o exagero, outras era uma discussão acirrada com argumentos consistentes de ambos os lados que, para algum expectador externo, poderia parecer uma verdadeira batalha campal. Mas esses debates aconteciam entre nós dois em sua pequenina sala, na área da Pós-Graduação em Educação da uniMeP, e quando íamos para a sala de aula, mesmo mantendo-se as argumentações, sempre prevalecia o respeito e a admiração pela caminhada do outro. Talvez, esta seja a maior lição que eu recebi do professor Hugo (além de sua sapiência): podemos discordar argumentativamente de qualquer pessoa, mas, acima de tudo, devemos procurar uma síntese de idéias e concepções epistemológicas na busca de uma sociedade que tenha lugar para todos... um de seus ideais (ASSMANN, 2003, p. 11). Em nenhum momento, o professor Hugo colocou qualquer forma de obstáculo (conceitual, formal ou burocrático) para qualquer idéia que eu quisesse desenvolver, assim como nunca deixei de atendê-lo em todas as diretivas solicitadas. Além disso, acompanhar o professor Hugo em suas reflexões e discussões era navegar por termos e teorias, tais como: a Teoria do Caos; Inteligência Artificial; Cognitivismo Computacional; Psicologia Evolucionista; Autopoiese; Emergência; Sistemas Complexos Recorrentes; Algorítmicos Genéticos; Teorias dos Sistemas; Sistemas Neurais; Neurociências; Ciências Cognitivas, e muito mais ainda em outros conceitos, alguns presentes em seu Glossário de Conceitos (ASSMANN, 1998) e também em sua história pessoal (marxismo, teoria cultural, etc.). Ele era ou não um Iphone? Mas por essas ingerências que a vida nos apresenta em sua imponderável imprevisibilidade, tais termos já eram leituras que eu realizava; com o professor Hugo pude encontrar solo fértil para ampliação de meus horizontes conceituais. Acompanhá-lo nessa empreitada era um exercício vigoroso. Utilizando-me do recurso metafórico – que ele utilizava como ferramenta em suas aulas – era como se ele estivesse no cume de um pico, enquanto nós

94 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 73 - 97 • jan. - dez. 2008 demandávamos esforços na escalada. Porém, ao invés de ficar orientando por um discurso cujo eco se perderia no horizonte e que nos faria apenas olhar para cima vendo onde ele já estava, o professor Hugo descia até nós. Ao lado, procurava questionar constantemente se os recursos que utilizávamos eram os mais adequados e se não existiriam outros caminhos possíveis. Caminhos esses que ele certamente conhecia, mas que não nos entregava simplesmente... apenas provocava a reflexão. E se, porventura, nesse momento de diálogo, ele apontasse para algo que reconhecia como uma possibilidade frutífera, antes que se pensasse em investigar, lá ia ele em sua curiosidade, quase infantil, de descobrir onde iria aportar aquele novo caminho, o qual nem mesmo ele havia constatado. Por isso, o título em questão, ou seja, de que o professor Hugo já era um Iphone. O aparelho concebido por Steve Jobs não representa nenhuma revolução conceitual no sentido estrito do termo, como o digital representou para o analógico, ou como a física quântica representou para a física clássica. As funções do Iphone já eram desenvolvidas por outros aparatos tecnológicos, tais como: a música pelos aparelhos de MP3; as fotos por máquinas digitais; os GPS por aparelhos específicos; os vídeos por câmeras; e o acesso à Internet por podcasts. A genialidade de Jobs foi conseguir reunir, em um único aparelho, diferentes conceitos desenvolvidos separadamente. Assim era o professor Hugo: um ser humano com uma habilidade singular na síntese de diferentes teorias, com as quais navegava com o desempenho de um dançarino compositor em tempo real. Metaforizando como ele fazia, com a devida licença de minha limitação frente à sua capacidade, o professor Hugo antecipava conceitos e sínteses que ainda hoje representam avanços conceituais em muitas áreas das ciências. Na educação, hoje, posso dizer que o via como um Iphone que numa máquina do tempo caísse no século XIX, antes da invenção do cinema pelos irmãos Lumiere ou do telefone por Alexander Graham Bell. Será que, se isso acontecesse, seria possível alguém compreender o que significaria aquela tecnologia? O professor Hugo também sabia que essa era uma questão que poderia contribuir para que não fosse compreendido pela maioria dos educadores. Uma vez, manifestou essa preocupação, indiretamente, dizendo-me “Continue lendo, mas não leia tanto a ponto de isolar-se numa ilha intelectual”. Agora, vejo claramente sobre o que ele queria alertar-me, mas posso dizer que o professor antecipava um novo sujeito. Em 2007, participei da SP Research Conference, na qual um dos palestrantes foi Jean Pierre Changeux, um dos mais renomados neurocientistas da atualidade, mas ainda desconhecido do cenário educacional brasileiro. Nesse evento, tive a oportunidade de conversar com ele e, no nosso interlúdio, comentei as implicações pedagógicas de suas pesquisas, quando ele cumprimentou-me dizendo que eu era muito jovem, mas que já tinha uma boa compreensão dos conceitos desenvolvidos e das possibilidades educacionais. Agradeci gentilmente e disse a ele que não poderia aceitar sozinho a exposição das idéias, pois muitas delas já tinham sido discutidas,

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 73 - 97 • jan. - dez. 2008 95 há quase dez anos, pelo meu orientador. Changeux ficou interessado em conhecê-lo, conceitualmente. Numa das viagens que realizei pelo Brasil, como avaliador do Ministério da Educação (MEC), pude presenciar uma cena da qual, certamente, o professor Hugo se orgulharia: eu observava, em um ônibus, uma jovem manipulando avidamente seu notebook, navegando, na Internet, redes sociais, enviando e-mails, assistindo vídeos, etc. Depois de certo tempo, ela simplesmente guardou seu equipamento em uma mochila e tranqüilamente retirou um livro e ficou lendo-o durante o resto da viagem. Penso que essa jovem seria uma daquelas aprendentes com a qual o professor Hugo orgulhar- se-ia de poder trabalhar, pois, além de adepta das novas tecnologias, não deixava de lado a experiência da leitura como igualmente importante. Este texto é uma pequenina contribuição à sua historiografia, possivelmente como um dos elétrons a serem investigados pelo acelerador de partículas recentemente inaugurado na França. As partículas, em termos de tamanho, são inimaginavelmente minúsculas se comparadas com as dimensões do equipamento – algo como a cabeça de um alfinete no meio de um campo de golfe. As possibilidades de uma colisão acontecer são estatisticamente mínimas. Mas se ocorrer, fornecerá novos dados para a ciência. Assim, também estas simples linhas. Se elas não contribuírem significativamente na vasta história do professor Hugo, que pelo menos possam despertar naqueles que não tiveram o privilégio de conviver com ele a ânsia de conhecerem seus referenciais, os quais certamente inspirarão futuras gerações de educadores. Finalizando, gostaria de cumprimentar os docentes do Programa de Pós-Graduação em Educação da uniMeP e à revista Comunicações por esta justa homenagem ao professor Hugo que, além de ter sido um pensador e um sonhador com a educação, nunca abriu mão de seus ideais e de sua busca pela fraternura. Ideais que compartilho com ele, ao mesmo tempo em que agradeço a todos os professores dessa pós-graduação, pela oportunidade que tive de conviver com suas aprendências. reFerênciaS

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Dados dos Autores clézio JoSé doS SantoS gonçalveS Doutor em Educação. Professor Adjunto da Universidade Luterana do Brasil/RS e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul/RS

benno becker Júnior Doutor em Psicologia. Professor Adjunto da Universidade Luterana do Brasil/RS

Recebido: 10/11/2008. Aprovado: 15/4/2009.

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 73 - 97 • jan. - dez. 2008 97 98 O POTENCIAL PEDAGÓGICO DE CONCEITOS CIENTÍFICOS EMERGENTES The Pedagogical Potencial of Emerging Scientific Concepts

lúcia maria bloiS villela Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense Pelotas/RS [email protected]

hUgo aSSmann ╬ Universidade Metodista de Piracicaba/SP

Resumo Este trabalho, diante da evolução científica, coloca em evidência o potencial pedagógico de alguns conceitos científicos emergentes. Aponta, pois, para a necessidade de a escola apropriar-se desses conceitos, bem como de adotar uma abordagem transdisciplinar do conhecimento, tendo em vista modificar o seu fazer pedagógico, a fim de propiciar o desenvolvimento do pensamento complexo. Palavras-chave ePisteMologia – ensino-aPRendiZageM – coMPlexidade.

Abstract This work, in the light of scientific evolution, evidenciates the pedagogical potential of some emergent scientific concepts. It points to the necessity of school taking profit these concepts as well as adopting one transdiscipline approach from knowledge, having in mind the change of its pedagogical activity, in order to propitiate the development of complex thought. Keywords ePisteMology – teaching and leaRning – coMPlexity.

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • v. 15 • n. 1/2 • p. 99 - 123 • jan. - dez. 2008 99 introdUção

Em razão de os inúmeros problemas que podemos apontar em uma sociedade como a nossa serem interdependentes, torna-se necessário desenvolver uma visão de conjunto na busca de suas soluções. Entretanto, subjacente ao processo educacional, encontramos o pensamento simplificador, decorrente da consideração das disciplinas e dos conteúdos intradisciplinas como algo estanque, o que não favorece a visão de conjunto necessária para que se percebam as origens e inter-relações entre os problemas visando a sua solução. É preciso, então, propiciar uma mudança de pensamento, para gerar uma visão globalizante. Entre os conceitos que permeiam a Teoria Educacional, encontra-se uma idéia peculiar acerca de ordem e de estabilidade, ao passo que, atualmente, é possível reconhecer a importância do papel das flutuações e da instabilidade que se associam a outras noções, apontando para a possibilidade de caminhos múltiplos e para a criatividade, que é uma característica fundamental comum a todos os níveis da Natureza. Nesse sentido, a compreensão do conjunto de contradições em nossa sociedade só será possível se a olharmos em sua complexidade. Logo, existe a necessidade de desenvolvimento de um pensamento complexo, já que a complexidade é inerente aos fenômenos e o reconhecimento disso poderá levar a uma visão mais abrangente acerca do universo. O ponto de partida deste trabalho é a emergência de uma nova racionalidade a partir do desenvolvimento científico, que nos põe diante da complexidade do mundo. Isso porque o século XX, por um lado, legou-nos as leis de Newton, que correspondem a um universo estático, mas, por outro, também uma descrição evolutiva associada à entropia, permitindo generalizar as leis da Natureza, incluindo a irreversibilidade e as probabilidades. A partir das novas descobertas, o rosto da realidade está sendo redesenhado; tarefa, aliás, inglória se pensarmos na incompletude desse desenho, mas de absoluta importância, se percebermos que apenas o esboço será suficiente para permitir que se vislumbrem as novas possibilidades do conhecer, embora os fragmentos ainda não estejam ligados entre si. É precisamente a percepção dessa ligação entre os saberes escolares que se quer pensada neste trabalho, o qual, para tanto, conjuga conceitos como os de complexidade e transdisciplinaridade, bem como outros conceitos científicos emergentes, para extrair deles seu potencial pedagógico. Além disso, este estudo mostra, por um lado, o esforço em articular saberes dispersos, e, por outro, as idéias que a ele se contrapõem. O que o anima, em síntese, é a possibilidade de reunir ou interligar, articular os diferentes saberes escolares, retirando-os de seu isolamento, de maneira que suas verdades, ainda que, às vezes, antagônicas, passem a ser consideradas complementares, não compactuando, assim, com os danos provocados pela compartimentarização e especialização do conhecimento.

100 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • v. 15 • n. 1/2 • p. 99 - 123 • jan. - dez. 2008 Para tanto, entre as propostas que ora se apresentam como alternativas de solução para o problema da fragmentação do conhecimento, aponto a abordagem transdisciplinar, tendo em vista sua perspectiva multirreferencial e multidimensional, como a que apresenta características compatíveis com a necessidade de desenvolvimento de um pensamento complexo. Finalmente, o esforço em relacionar conceitos e teorias científicas emergentes com a escola deve-se ao reconhecimento de que ela, embora não sendo o único local destinado à educação, é o espaço privilegiado para esse fim. conSideraçõeS preliminareS

A maneira mecanicista de ver a realidade penetrou a Teoria Educacional, chegando à sala de aula. Isso significa que a educação tem se sustentado fortemente no modelo clássico da ciência. Por outro lado, a evolução da ciência aponta para uma realidade, cuja descrição evidencia os limites e as insuficiências da ciência clássica como modelo explicativo, tendo em vista a complexidade e a multiplicidade de conceitos e teorias que a evidenciam. Sendo assim, se os seres humanos constituídos e constitutivos dessa realidade devem ser beneficiários da educação escolar, nada mais coerente que tentar assentar a educação sobre essa nova base científica, que produziu conceitos cujo potencial pedagógico pode servir de norte para a necessária mudança de mentalidade na escola. Primeiramente, é importante salientar que:

A realidade está, desde então, tanto no elo como na distinção entre o sistema aberto e o seu meio. Esse elo é absolutamente crucial tanto no plano epistemológico, como no metodológico, teórico, empírico. Logicamente, o sistema só pode ser compreendido ao incluir nele o meio, que lhe é simultaneamente íntimo e estranho e faz parte dele próprio sendo-lhe sempre exterior. (MORIN, 1991, p. 28).

Disso decorre que, embora a escola seja um organismo tradicional por natureza, o sistema de ensino faz parte de um sistema social, considerado aberto e dinâmico. Também cada ser que a freqüenta é um indivíduo interconectado com o sistema da natureza, da sociedade e do pensamento que o cerca e o permeia. É essa lógica que permite pensar na possibilidade de a escola modificar-se, desenvolvendo estratégias que propiciem o desenvolvimento do pensamento complexo. Levando-se em conta a abertura do sistema social, é possível pensar em duas conseqüências que dela resultam: a primeira é que as leis de organização do ser vivo não são de equilíbrio, mas de desequilíbrio, recuperado ou compensado, de dinamismo estabilizado (MORIN, 1999), o que significa

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • v. 15 • n. 1/2 • p. 99 - 123 • jan. - dez. 2008 101 que a escola, em vez de privilegiar a ordem, a estabilidade, precisa perceber o potencial criativo do desequilíbrio; a segunda é que a inteligibilidade do sistema deve ser encontrada, não apenas no próprio sistema, mas também na sua relação com o meio. Essa relação, que não passa de uma simples dependência, é constitutiva do sistema, o que possibilita considerar a auto- eco-organização1 como um conceito fundamental para a prática pedagógica, saindo do isolamento em que se colocou e, ainda, promovendo tarefas cuja solução evidencie a colaboração como um importante meio de atingir objetivos. complexidade e eScola

Enquanto a essência da complexidade é a impossibilidade de homogeneizar e de reduzir, o que leva à questão da “unitas multiplex” (MORIN, 1991 passim), a escola tenta homogeneizar, busca a ordem, hierarquiza, desconsidera a ambigüidade e pretensamente clarifica conteúdos, ensina a ignorar a complexidade, visto que esta apresenta traços da desordem, da ambigüidade, da incerteza, do desequilíbrio, do dinamismo, entre outros. Entretanto, alguns procedimentos adotados na escola são importantes; sistematizar conteúdos, por exemplo, torna possível apreendê-los. O problema é o tratamento dado aos conceitos de ordem, de estabilidade, ente outros, pois, na escola, subjacente a eles, veicula-se a idéia de que assim é a realidade, ou seja, que ela é algo ordenado, hierarquizado, com partes absolutamente distintas, algo de onde é possível extrair certezas. Por outro lado, pode-se trabalhar a idéia de que a realidade, em certa medida, pode ser controlável, ordenável, hierarquizável, mas que essa ordem, hierarquia e controle não são absolutas, tampouco perenes. Isso somente será possível com a adoção de uma atitude de abertura frente ao conhecimento. Ao contrário, uma postura de fechamento não favorece a percepção das inter-relações tão necessárias à compreensão dos fenômenos, e é a noção de complexidade que permite religar o processo de aprendizagem às experiências individuais, imaginárias e afetivas. Além disso, a percepção da complexidade permite, também, eliminar, na escola, a visão dicotômica da realidade, já que evidencia que tudo está em constante processo de interinfluência. Nós, por exemplo, somos seres interconectados uns aos outros, que produzem e sofrem influências de tudo e de todos, cuja existência e constituição estão estreitamente relacionadas à existência dos outros.

1 Morin baseia-se em Von Neumann e Von Förster para estender o conceito de auto- organização. Do primeiro utiliza as idéias de auto-reparação, autotransformação e de auto- reprodução, percebidas como propriedades características dos seres vivos que, não só são capazes de tolerar uma desordem, mas de se alimentar dessa desordem para se regenerar. E mais, percebeu que sempre usamos os meios regeneradores extraindo-os do meio exterior. Como o segundo autor mostrou, em 1960, que havia um paradoxo na idéia de auto-organização, já que é preciso sempre ter fontes de energia externas, Morin estendeu o conceito de auto-organização para a auto-eco-organização.

102 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • v. 15 • n. 1/2 • p. 99 - 123 • jan. - dez. 2008 Ainda, se a escola tiver em vista a complexidade, poderá permitir que o aluno desenvolva a consciência de que não pode se apartar das incertezas, porque na vida e na ciência não há certezas absolutas. Por outro lado,

aqueles que crêem que a complexidade é atualmente a versão nova da verdade mantêm-se, de fato, prisioneiros do pensamento simplificador da ciência clássica no que concerne à verdade científica. (PENA-VEJA; NASCIMENTO, 1999, p. 9).

Há que se levar em conta, portanto, a exigência de se fazer um caminho que permita retomadas do todo às partes e das partes ao todo. Uma coletividade qualquer, família, empresa, etc., e aqui se evidencia a escola, é sempre mais que a simples soma de suas partes. Um fator de interação, não redutível às propriedades dos diferentes indivíduos, está sempre presente nas coletividades humanas, o que se esclarece quando se pensa na lógica do terceiro incluído. 2 Nesse contexto, o conhecimento é construído sobre fundações não muito sólidas, pois, na nova concepção epistemológica, tudo existe em virtude de relações mútuas, dispensando hierarquização ou fundamento. Com relação à hierarquia da sala de aula, que produz relações assimétricas, a cultura do aluno sempre teve pouco peso na relação pedagógica que continua, até hoje, baseada, principalmente, na transmissão de conhecimentos que, embora válida em certos casos (não há como levar o aluno a construir certos conteúdos), não é suficiente. Entretanto, atualmente, ao menos em nível de discurso, a relação pedagógica é vista como um

conjunto de interfaces comunicativas entre agentes cognitivos que constituem um sistema aprendente ou uma organização aprendente. [Seu] objetivo fundamental é criar e manter uma ecologia cognitiva na qual possam emergir experiências de aprendizagem. Trata-se de um mergulho coletivo numa seqüência de processos auto- organizativos da vida dos aprendentes, à luz do princípio de que existe uma coincidência básica entre processos vitais e processos cognitivos. (ASSMANN, 1998, p. 176).

Nessa visão, é possível colocar professor e aluno no mesmo plano, sendo ambos vistos como participantes de um processo de aprendência.

2 Tomo, como um exemplo simples dessa lógica, a inseparabilidade dos pólos de um imã: a subdivisão sucessiva de cada metade do imã não permite separar os pólos norte e sul. Pode- se, então, inferir que há algo que liga os dois pólos, um terceiro incluído que não permite que sejam apartados. Mais detalhes sobre a “lógica do terceiro incluído”, ver Lupasco (apud NICOLESCU, 1999, p. 28).

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • v. 15 • n. 1/2 • p. 99 - 123 • jan. - dez. 2008 103 Além disso, é possível destacar também a hierarquia relacionada a conteúdos de uma mesma disciplina, seja em períodos letivos diversos seja em um mesmo período letivo. Acredita-se que alguns conteúdos forçosamente servem de pré-requisitos a outros. D’ Ambrósio,3 durante uma palestra, defendeu a idéia de que não há necessidade de estabelecimento de pré-requisitos. Durante o espaço aberto para perguntas, um professor de matemática disse a ele que alguns conteúdos necessariamente eram pré-requisitos de outros e trouxe como exemplo a necessidade de os alunos aprenderem números inteiros antes de aprenderem frações. A resposta de D’Ambrósio foi muito interessante e esclarecedora. Ele perguntou ao professor se as crianças não poderiam beber meio copo de água, ou menos, se isso fosse o suficiente para satisfazê-las. Se precisariam, antes, beber um copo inteiro. Se não poderiam dividir uma barra de chocolate com amiguinhos, sem antes comer uma inteira. Concluiu, dizendo que a vida das crianças é muito mais repleta de frações do que de inteiros. A escola não pode mais, à guisa de sistematização do conhecimento, deixar de trabalhar com a complexidade, uma vez que lida com seres humanos, que são sistemas vivos, complexos e adaptativos e que merecem ter suas potencialidades despertadas, considerando-se a vida extramuros da escola. A complexidade também permite o deslocamento do resultado da relação entre conhecimento e desconhecimento, de modo que pensar na possibilidade de aquisição de um conhecimento completo implica crer ser possível diminuir o desconhecimento à medida que o conhecimento seja ampliado, numa relação inversamente proporcional. Entretanto, ao tomar-se em consideração a incompletude do conhecimento (idéia ligada à de complexidade), percebe-se que a ampliação do conhecimento implica perceber um aumento relacionado ao desconhecimento, numa relação diretamente proporcional. Essa é a pérola que pode ser extraída do Teorema de Gödel, do qual se conclui que é impossível adquirir um conhecimento completo. Se os professores introjetassem essa idéia, a postura de muitos poderia ser modificada, perderiam o medo de não saber alguma resposta e, provavelmente, ficariam mais seguros quanto às suas inseguranças. Além disso, a idéia de incompletude do conhecimento evidencia a incompatibilidade entre o processo de transformação e a compartimentarização fechada do conhecimento, pois que este não é estanque, está sempre se produzindo e se transformando, impossibilitando, por isso mesmo, um saber total. Em outras palavras, “os progressos do conhecimento não podem ser identificados com a eliminação da ignorância” (MORIN, 1982, p. 55). O tema da complexidade abre espaço para a intuição, para a incerteza e para a necessidade de mudar nossa maneira de pensar, e isso não combina com o sentimento de certeza, de completude argumentativa.

3 Palestra sobre transdisciplinaridade ocorrida em Pelotas/RS, em setembro de 2005.

104 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • v. 15 • n. 1/2 • p. 99 - 123 • jan. - dez. 2008 Ainda, há três princípios que poderiam estar subjacentes ao fazer pedagógico. Segundo Morin (1991, p. 88), eles podem ajudar a pensar a complexidade. O primeiro princípio é o dialógico, que permite manter a dualidade no âmago da unidade, associando dois termos ao mesmo tempo complementares e antagônicos. O segundo, é o da recursão organizacional. Nesse processo, os produtos e os efeitos são, ao mesmo tempo, produtores e causas daquilo que os produziu. O terceiro, é o hologramático. No holograma físico, o menor ponto da imagem do holograma contém a quase-totalidade da informação do objeto representado. Não apenas as partes estão no todo, como o todo está nas partes. Tal princípio está presente no mundo biológico e no sociológico. Por meio desses princípios, é possível estabelecer uma relação entre eles e as idéias de transmissão, recepção e dogmatismo, que permeiam a relação pedagógica atual durante a maior parte do processo educativo. O princípio dialógico desloca o foco da transmissão para a possibilidade de trocas, permitindo ver não somente o aluno, mas, também, o professor como um elemento aprendente nessa relação. O segundo princípio, o recursivo, permite pensar na aquisição do conhecimento como um processo que se produz por idas e vindas, propiciando que se pense numa alternativa curricular não mais linear. O terceiro, o holográfico, evidencia que a verdade não está num único ponto, que ela se divide entre as partes, e é representada no todo, esclarecendo, assim, a importância do relacionamento entre partes diferentes, ao mesmo tempo em que remete à totalidade desses elementos. Obviamente, quanto menor a parte observada, menos nítida a imagem da totalidade, podendo-se dizer, a partir disso, que as partes apresentam também suas peculiaridades. Disso decorre a importância do desenvolvimento de estratégias educativas que oportunizem a emergência das diferentes vozes envolvidas no processo educativo, bem como possibilitem explorar condições que favoreçam articulações entre os diferentes saberes. Outra ocorrência evidenciada pela noção de complexidade refere-se ao fato de, por estarmos acostumados com nossas abstrações simples, muitas vezes, não atentamos para as sutilezas enriquecedoras da individualidade de cada momento, de cada elemento, de cada fenômeno. Por outro lado, podemos estar atentos demais à complexidade, o que pode nos impedir de perceber o que está subjacente a uma determinada situação. Assim, é a complementaridade entre simplicidade/complexidade que permite o contato com o que ultrapassa as nossas abstrações, o que reforça a necessidade de desenvolvimento do pensamento complexo na escola. penSamento complexo e eScola

Vivemos num mundo em que é cada vez mais difícil estabelecer ligações, principalmente devido ao acúmulo de informações. Para isso, é preciso, evidentemente, uma modificação no ensino, de maneira que seja

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • v. 15 • n. 1/2 • p. 99 - 123 • jan. - dez. 2008 105 possível unir ao mesmo tempo em que se promove a separação. Para o desenvolvimento do pensamento complexo, a complexidade não se constitui em um fim, mas em um meio de conceber o emergente, o ambíguo, o indivíduo, o ser e a criatividade. É preciso esclarecer que

só podemos conhecer fragmentando o real e isolando um objeto do todo de que faz parte. Mas podemos articular os nossos saberes fragmentados, reconhecer as relações parte/todo, complexificar o nosso conhecimento, sem, entretanto, aspirar à totalidade. (MORIN, 1997, p. 215).

É necessário, portanto, ter um pensamento capaz de sistematizar e organizar, pois tudo é constituído pela organização de elementos diferentes. Nesse sentido, o pensamento complexo tem por propósito dar conta das articulações entre domínios disciplinares que são quebrados pelo pensamento disjuntivo, simplificador e reducionista. Isso, porque o conhecimento é visto na mesma perspectiva em que o ser humano, um ser complexo que concentra fenômenos distintos e diversos capazes de influir em suas ações e transformar- se sempre. Sendo assim, não é ao menos razoável que a escola continue apenas transmitindo informações, sem nenhuma preocupação com o diálogo entre os diferentes campos do saber e os diferentes níveis de cada ser humano. Essa compreensão da ligação entre os diversos domínios só é impossível se trabalharmos sob o paradigma disciplinar, que considera as disciplinas como distintas, separadas, não comunicantes. tranSdiSciplinaridade e eScola

Se o indivíduo é passível de múltiplas curiosidades, e se cada curiosidade contém em si uma multiplicidade de fatores que a faz emergir, para satisfazê- la, melhor que um ensino que desenvolva uma visão disciplinar da realidade, é um ensino caracterizado pela abertura às múltiplas possibilidades de buscas pelos múltiplos campos do saber. Pode o professor, por isso mesmo, despir-se do preconceito e refletir sobre a validade das múltiplas respostas oferecidas pelos alunos, os quais, muitas vezes, demonstram a multiplicidade de visões possíveis sobre um mesmo tema, separando, é claro, o absurdo do plausível. Se as coisas não são como se nos apresentam, se a verdade é fugaz, efêmera e nebulosa, se os conhecimentos são tênues e versáteis, o processo educativo tem que levar em conta esses fatores, abrindo-se para as novas convergências e isso não é compatível com uma visão de aluno mecânico e seguidor de normas imutáveis. Nesse contexto, um importante conceito advindo da geometria fractal merece destaque. Os objetos fractais são auto-similares, isto é, eles não

106 COMUNICAÇÕES• Piracicaba • v. 15 • n. 1/2 • p. 99 - 123 • jan. - dez. 2008 mudam sua aparência significativamente quando observados com o auxílio de um microscópio com grande poder de ampliação. Os estudos de Mandelbrot levaram, então, à descoberta de um princípio que organiza um conjunto de estruturas auto-similares no universo, de um modo inesperado. Em outras palavras, o caos gera formas que reproduzem, em escalas menores, um padrão vagamente semelhante àquele visível na escala maior. Isso significa que, em muitos sistemas fractais, várias partes adequadamente selecionadas, quando corretamente ampliadas, se tornarão, cada uma delas, idênticas ao sistema como um todo. Isso implica que várias subpartes da parte, quando ampliadas, se tornem equivalentes àquela parte e, conseqüentemente, ao sistema todo. (LORENZ, 1996, p. 205). A auto-similaridade, característica do fractal, entre o microcosmo e o macrocosmo é um produto de todas as complexas relações internas de feedback que têm lugar em um sistema dinâmico. Prestar atenção aos aspectos fractais da natureza é um modo de vislumbrar o movimento misterioso e imprevisível que cria o mundo e o mantém coeso. Para a sociedade científica, é uma nova maneira de ver as coisas. (BRIGGS; PEAT, 2000, p. 101). Considerando-se isso, numa visão complexa, transdisciplinar, o aluno serve como metáfora holográfica ou fractal, já que também é auto-similar, auto-reflexivo e auto-referente, pois, ao mesmo tempo, se assemelha, reflete e serve de referência ao contexto do qual faz parte. Nesse sentido, os aspectos fractais da natureza, visto que carregam a noção de auto-similaridade, a qual inclui as noções de diferenças individuais e exclusividade, bem como de semelhança, permitem que a alguns processos escolares esteja subjacente a homogeneidade, mas que outros possam prever a heterogeneidade, possibilitando, assim, aumento nos graus de liberdade dos alunos quanto aos modos de conhecer, fazer e ao que conhecer. A escola, em sua singularidade, também mantém uma relação holográfica com a sociedade, uma vez que contém em si a presença da sociedade como um todo e, tomando esse fato em consideração, os processos pedagógicos realizados em seu interior devem respeitar o singular e o conjunto. Pode, portanto, sair de seu isolamento. Na busca de alternativas metodológicas coerentes com uma realidade multidimensional, a transdisciplinaridade coloca-se, pois, como um importante recurso na reformulação da educação, uma vez que pode (embora não seja essa a sua finalidade básica) quebrar as barreiras da fragmentação e os limites entre as disciplinas em direção da integração dos conhecimentos, a partir do questionamento de seus pressupostos, o que inclui uma mudança radical nas suposições subjacentes ao universo curricular. Em síntese, o que a transdisciplinaridade sugere não é a criação de novas disciplinas ou a eliminação das já existentes, mas uma mudança na forma de olhá-las e trabalhá-las, um novo olhar que possa enxergar as ligações em meio às distinções. Isso supõe respeito e desapego, ou seja, respeito ao dizer do outro e desapego ao seu próprio dizer, gerando uma abertura repleta de possibilidades.

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • v. 15 • n. 1/2 • p. 99 - 123 • jan. - dez. 2008 107 Entretanto, a transdisciplinaridade como metodologia é muito mais do que o simples intercâmbio entre as disciplinas; é, antes de tudo, um recurso que possibilita a transformação e/ou construção do saber pela compreensão profunda da complexidade de uma dada realidade, levando em conta a intuição. Nesse sentido, para trabalhar com uma abordagem transdisciplinar do conhecimento, a escola precisa, além de incorporar novos conceitos a seu cotidiano, rever, ou ressignificar, alguns conceitos com que já trabalha, como o de realidade em que se inserem os conceitos de complexidade, de relação pedagógica e a noção de sujeito, entre tantos outros. Assim, a escola deveria perceber que o ser humano complexo, com o qual lida, somente pode ser compreendido por meio de teorias que levem em conta seu lado biológico, histórico, psíquico, mental, social, cultural e ecológico. Dessa forma, subjacente à prática pedagógica, há uma série de noções que a determinam. Como a abordagem transdisciplinar implica uma preocupação também com o que estrutura as disciplinas, na base de todas elas pode haver um olhar transdisciplinar que lhes dê um sentido comum. Em outras palavras, algumas noções devem estar subjacentes à prática pedagógica, possibilitando a interligação entre as diferentes disciplinas, pois se o problema da visão fragmentada da realidade não é inerente às disciplinas, mas ao tratamento dispensado a elas, uma nova maneira de abordá-las, regida por noções comuns a todas, poderá promover a articulação necessária ao desenvolvimento do pensamento complexo, transformando o aluno em terceiro incluído capaz de promover essas articulações, saindo da lógica bivalente reducionista ou lógica bivalente exclusiva. Nesse sentido, a escola necessita propiciar o desenvolvimento de um pensamento que utilize diferentes lógicas, que incluam o sujeito na sua multidimensionalidade e permitam uma visão mais abrangente que possa ser usada em todas as disciplinas, possibilitando o estabelecimento de pontes estratégicas. Na pedagogia é, portanto, importante admitir o aluno como o terceiro incluído, tendo em vista que,

para transpormos fronteiras, precisamos de liberdade. Isso significa que temos de nos comportar de maneira que possamos emergir, sem que tenhamos medo de desaparecer no que fazemos. Assim, podemos voltar ou ficar lá; ou podemos ir além e juntar coisas que de outra maneira não seriam juntadas, porque campos diferentes não se relacionam, mas somos nós, seres humanos, que os relacionamos. (MATURANA, 2000, p. 104).

Repetindo, entre as noções que devem subjazer a prática pedagógica, necessariamente, tem que se fazer presente a de complexidade, determinando outras como a de realidade, de sujeito e de conhecimento, possibilitando uma prática transdisciplinar.

108 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • v. 15 • n. 1/2 • p. 99 - 123 • jan. - dez. 2008 Sendo assim, na base de qualquer disciplina, teríamos: a noção de complexidade, vista como inerente a todos os fenômenos, evidenciando a interligação de tudo com tudo; a noção de realidade, vista como multirreferencial e multidimensional, comportando inter-relações não apenas complementares, antagônicas ou concorrentes, mas incertas e descontínuas; a noção de sujeito, comportando um ser complexo, dinâmico e adaptativo, um ser mutidimensional, multirreferencial, auto-eco-organizador, em constante devir, inserido em sua corporeidade, movido não só pelo viver, mas pela emoção. Além disso, o conhecimento deve ser concebido na sua incompletude, percebido como uma ação resultante de uma relação que mantém estreita ligação com a práxis do viver. A prática transdisciplinar exige, também, uma linguagem comum, que promova uma concordância sobre conceitos básicos e seus significados, mas isso só pode ocorrer a partir de ações integrativas e não anteriores a essas ações, visto que a “linguagem é necessária no processo de comunicação, cuja possibilidade de acontecer se encontra na interação que resulte numa coordenação de comportamentos” (MATURANA, 1999, p. 74). Essa comunicação integrativa deve ocorrer no interior da alteridade, observando uma estrutura de concordância/discordância, acordo/desacordo, construída sobre o inexplicável, os enganos e o imprevisto. É necessário, pois, compartilhar idéias e conceitos, vistos como idéias e conceitos de fronteira, com dupla capacidade. Assim, um conceito pode ter tanto um significado específico quanto geral, habilitando conexões entre grupos, sociedades e saberes. Isso, porque “as fronteiras podem ser caracterizadas como um ‘em fazendo’, tensões de permanência e passagem. Demarcações têm o poder de serem barreiras divisórias, mas elas também podem ser membranas permeáveis.” (KLEIN, 1996, p. 4). Entre os conceitos que têm deixado sua área de domínio, está o de caos, transformando-se em metáfora cultural, o que nos incentiva a questionar a realidade, pois diz respeito tanto ao que não podemos saber quanto à certeza dos fatos. Na virada do século XX, Poincaré verificou que, na maioria das situações, a fraca força gravitacional de um segundo planeta sobre a terra ou asteróide orbitando o sol tinha uma influência quase insignificante. Mas em determinadas condições, as minúsculas correções começam a acumular-se, alimentando-se mutuamente, até que seu efeito geral sobre a órbita de um asteróide faz com que ele balance, oscile violenta e erraticamente em sua órbita ou até escape do sistema solar. (BRIGGS; PEAT, 2000, p. 144). Foi assim que Poincaré deparou-se com a percepção de que o caos, no sistema solar, só existe porque este é holístico, significando que caos e totalidade não são opostos, pois um está no cerne do outro, levando a uma concepção de um mundo interconectado, orgânico, contínuo, fluido, ou seja, a uma nova concepção de totalidade. Sendo assim, a teoria do caos, por tratar da impossibilidade de prever e controlar, de nunca sermos capazes de fazer uma descrição completa,

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • v. 15 • n. 1/2 • p. 99 - 123 • jan. - dez. 2008 109 permite-nos extrapolar a visão cientificista, que comporta a idéia do mundo somente em termos de análise, quantificação e mecanicismo, Trata-se de algo que os cientistas chamaram de “informações ausentes”, que se farão presentes, segundo os teóricos do caos, tanto em tese quanto na prática. Nosso conhecimento fica limitado por essas informações, porque constituem uma lacuna nos dados. Nessa teoria, o mistério assume importância. Isso significa que, em termos pedagógicos, não é mais possível tratar apenas do já conhecido, mas é necessário abrir espaço para a criatividade que, talvez, seja a questão mais importante que pode ser relacionada ao conceito de caos, o qual, em síntese, nada mais é do que a criatividade da natureza, gerando novas formas e estruturas num instante de imprevisibilidade. Como fazemos parte dessa natureza, o processo criativo encontra-se em cada um de nós e, como criatividade, significa ir além do que conhecemos. Assim, a escola não pode se furtar a trabalhar com a dúvida criativa. Em outras palavras, a escola, para propiciar o desenvolvimento do processo criativo, necessita penetrar no caos. A idéia de caos permite que professores e alunos, durante seus processos criativos, lidem de modo diferente do atual em relação a erros, oportunidades e fracassos, tanto seus como os dos outros. Atualmente, é comum repudiar enganos, planejar supondo a eliminação de acidentes e ver o fracasso como vergonha. Ora, no contexto do caos, talvez a única coisa possível de afirmar com relativa segurança é que existe um fluxo constante e que qualquer situação pode e vai mudar e, acima de tudo, que coisas hoje aparentemente inconcebíveis têm chances de serem realizadas em um futuro muito próximo. Isso impossibilita diagnosticar e prognosticar de forma absoluta/ contundente comportamentos e resultados indesejáveis de alunos que, como sabemos, acabam por gerar a repetência, a distorção idade/série e, em casos mais graves, a evasão escolar. Por outro lado, essa impossibilidade permite o desenvolvimento de estratégias com vistas a possibilitar mudanças. Ou seja, abrindo mão do controle, a criatividade pode aflorar na sua magnitude, pois, embora a lógica clássica e a razão linear ainda tenham seu lugar, a criatividade é inerente ao caos. Sendo assim, se o comportamento da natureza, da qual faz parte o ser humano, apresenta-se conforme os padrões do caos e, se a criatividade caótica indica que a diversidade é importante, a escola pode deixar de trabalhar somente com padrões mecânicos e de tentar homogeneizar, contribuindo, assim, para o desenvolvimento da criatividade. Para tanto, é necessário que alunos e professores estejam atentos às sutilezas, porque a teoria do caos diz que os sistemas caóticos e complexos são grandemente influenciados por nós, ainda que de forma desconhecida, ou seja, embora não possamos controlar a maneira como isso acontece no sentido tradicional, exercemos a influência sutil, o que leva à questão da inseparabilidade, que suscita à da solidariedade que, por sua vez leva à da responsabilidade. Isso porque, na natureza, os fenômenos são solidários, o que dá relevo à responsabilidade de cada elemento na construção da realidade.

110 COMUNICAÇÕES• Piracicaba • v. 15 • n. 1/2 • p. 99 - 123 • jan. - dez. 2008 Essa constatação é de suma importância, porque dá lugar ao sujeito na relação pedagógica. Assim sendo, um sentimento de solidariedade deveria ser desenvolvido entre os alunos, conduzindo-os à percepção da responsabilidade de cada um em qualquer ato individual ou coletivo. Nesse sentido, a teoria do caos nos mostra que a biologia é cheia de “coevolução” e “cooperação”. Em outras palavras, a competição não é fator central na natureza. Acredito, portanto, que se percebermos nossa interligação com tudo, ou seja, se houver uma mudança de percepção, é possível emergir um senso de solidariedade, libertando-nos da idéia de que somos apenas fragmentos desconexos. Isso nos permitiria abandonar a idéia de que sabemos individualmente para a consciência de que também sabemos juntos, mudando, assim, o foco da competição para o da coevolução e o da cooperação. Possibilitaria, também, deixarmos de ver a natureza como um conjunto de objetos isolados, de percebermos que o observador faz parte do que observa para experimentar; enfim, que somos um dos aspectos básicos da organização natural. Finalmente, seria possível passarmos da ênfase exclusiva na lógica, na análise e na objetividade sem excluí-las, mas reconhecendo seus limites, ou seja, passaríamos do foco obsessivo no controle e na previsão para uma sensibilidade relacionada à emergência e à mudança. Transpondo o ponto de vista da teoria do caos para a pedagogia, a relação pedagógica deixaria de ser assimétrica, adquirindo simetria em relação às multiplicidades de interfaces possíveis de serem estabelecidas entre alunos e professores. Quanto à relação entre alunos, é muito mais importante observar como são estabelecidos os vínculos entre eles do que estimular a competição, que é uma idéia limitada que fica subjacente a ações que tolhem a criatividade humana. Portanto, idéias como cooperação e coevolução não podem estar ausentes na prática pedagógica. Outra importante consideração, passível de ser extraída a partir da teoria do caos, refere-se à atenção especial que deve dar o professor ao detalhe, sempre que aspectos qualitativos precisem ser clarificados. O acaso, presente na descrição do universo, deve ter seu lugar ao lado da preditibilidade, porque o êxito de nossas realizações depende não só de circunstâncias tidas como certas, mas também daquelas que são aleatórias. Saber que o acaso existe, tanto quanto o caos, obriga ao desenvolvimento de uma atitude aberta quanto ao conhecimento, quanto aos fatos, quanto às possibilidades de mudança. Noções como acaso, instabilidade e caos nos compelem, enfim, a duvidar das certezas e nos levam a pensar em termos de tendências. Com relação aos saberes escolares, como o caos diz que tudo está conectado com tudo o mais, adquirir um conhecimento profundo requer compreender a conexão de um saber com os demais saberes, com a dinâmica de sua evolução. Para tanto, somente uma abordagem transdisciplinar do conhecimento permitirá que o aluno seja visto como um observador e participante ativo do processo de evolução e de aquisição do conhecimento, e não como mero receptor do já sabido.

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • v. 15 • n. 1/2 • p. 99 - 123 • jan. - dez. 2008 111 As noções trabalhadas até aqui lidam, de um modo ou de outro, com a questão da incerteza. Entretanto, como as leis da natureza enunciadas pela física clássica são da esfera de um conhecimento idealizado que alcança a certeza (uma vez que as condições iniciais são dadas, tudo é determinado), a escola procura sempre a certeza. Porém, a desativação da rigidez cientificista revela a insuficiência epistemológica das nossas certezas, permite reconhecer que certeza e conhecimento são fugidios, flexíveis, exigindo a reflexão sobre o processo do conhecimento. Se a impreditibilidade tem seu valor, pois a evolução é caótica e irregular, uma pedagogia baseada em uma visão disciplinar não dá conta dessa complexidade. Entretanto, essa situação pode ser revertida, pois

a descoberta dos limites do conhecimento constitui uma aquisição capital para o conhecimento. [...] a idéia de que nosso conhecimento é ilimitado é uma idéia limitada. A idéia de que nosso conhecimento é limitado tem conseqüências ilimitadas. O conhecimento comporta, no seu próprio princípio, relações de incerteza e, no seu exercício, um risco de erro. Pode decerto adquirir inúmeras certezas, mas jamais poderá eliminar o problema da incerteza. Só o poderia fazer abolindo a separação entre o cognoscente e o conhecido, o que, abolindo a sua própria organização, aboliria, ao mesmo tempo, a ele próprio. (MORIN, 1986, p. 208).

Outro fator importante refere-se à busca constante pela ordem, vista nas escolas como sinônimo de organização. Entretanto, sabe-se, hoje, que organização é fruto da complementaridade entre ordem e desordem.4 Assim, como a desordem faz parte do surgimento das organizações, com relação ao aluno, ela pode ser encarada como afloramento da criatividade que, como vimos, é fundamental para a evolução do universo. interligaçõeS neceSSáriaS

A partir dos registros aqui expressos e das reflexões decorrentes deste estudo, dois pressupostos básicos devem ser considerados, primeira e inicialmente, por aqueles que se dedicam à questão epistêmica: a) a incerteza quanto aos rumos e aos resultados do processo de construção científica; b) a certeza de que é preciso aprender a defrontar-se e a lidar com o inusitado. Tais pressupostos estabelecem alguns marcos que, embora provisórios, podem servir de referência no tratamento e busca do conhecimento. 4 Sobre esse assunto, ver “estruturas dissipativas” em PRIGOGINE, 1996.

112 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • v. 15 • n. 1/2 • p. 99 - 123 • jan. - dez. 2008 Não só a teoria da informação evidenciou a incerteza de forma contundente, mas a teoria física das probabilidades que descreve o acaso, bem como o princípio de incerteza de Heisenberg, entre outras, trazem-na à tona. A certeza, surgida da percepção de um mundo ordenável, estático, mecânico e, por isso mesmo, previsível, é um dos elementos-chave do modelo de racionalidade científica da modernidade em que a educação está imersa. Entretanto, se a tônica atual é o fim das certezas, a escola necessita encontrar uma maneira de incorporar a incerteza à prática escolar. Para tanto, acredito que, primeiramente, questionar o conteúdo, a quantidade, a qualidade, a hierarquia, a forma de aquisição do conhecimento, bem como de avaliar essa aquisição já seriam passos importantes que concorreriam para esse particular, mas não suficientes para resolver o problema da fragmentação do conhecimento. É preciso ir além, inter-relacionando essa noção com tantas outras que emergiram e as que ainda estão por emergir. A certeza enrijece, cristaliza, imobiliza, fecha, acomoda, enquanto a incerteza obriga ao questionamento, impede a acomodação, sugere busca incessante, propicia movimento ao conteúdo, permite multiplicidade de caminhos, possibilita aberturas, faz emergir inter-relações, abre espaço à novidade e à criatividade. Nesse sentido, a escola, locus por excelência, onde acontece a educação formal – que implica basicamente conhecer-se e conhecer – institucionalizada, está a exigir o questionamento de suas propostas operativas. É o que proponho nesse momento, sem a pretensão de ditar regras, mas com o propósito de evidenciar indicadores que possam, devidamente analisados pelas referidas instituições, proporcionar a construção de propostas pedagógicas escolares que, a partir do epistêmico, tornem sua função de educar verdadeiramente efetiva, ou seja, que a sistemática epistemo- metodológica adotada nas escolas possa realmente resultar numa formação para a competência existencial, não apenas imediata, circunstancial, prevista, programada, mas para o imprevisível, que a ciência, talvez paradoxalmente, ora nos aponta como certeza. Retomo aqui a noção de incerteza para situá-la no interior do processo escolar, buscando salientar que, nesse espaço de aprendência, não é mais coerente que: a) ao professor seja atribuída a competência de mediar certezas, aceitas sem réplica pelo aluno, como verdades indiscutíveis, e “digeridas” por eles sem questionamento. A dúvida que, nessas circunstâncias, seria a única postura salutar e procedente, deve ser exercida pelo estudante e pelo próprio docente; b) o processo de ensino se proponha a respostas singulares, convergentes, numa trajetória linear e única de encaminhamento na procura de solução. Existem, ainda hoje, livros didáticos, inclusive de interpretação de texto, que trazem o elenco fechado de respostas às questões apresentadas (aliás, muitos autores desses textos, quando questionados sobre esse assunto, garantiram que jamais pensariam em tais respostas);

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • v. 15 • n. 1/2 • p. 99 - 123 • jan. - dez. 2008 113 c) os instrumentos de avaliação bloqueiem, vetem ou impugnem qualquer pronunciamento do aluno que não esteja de acordo com a grade de respostas prevista antecipadamente e organizada pelo professor (conta-se que, em determinada escola, foi considerada errada a resposta de um aluno que assim se expressou: “Pedro Álvares Cabral invadiu o Brasil”). Essa análise, embora um tanto superficial, evidencia o quanto a escola pode conduzir à busca de certezas, de raciocínios convergentes, de aceitação do pensamento já pensado. Evidencia, também, que a escolha do processo epistemo-metodológico adotado faz a diferença entre autonomia e submissão, criação e reprodução. Com relação à linearidade prevista na organização curricular, surge um confronto bastante significativo entre seriação e estudos contínuos, no qual: a) a sistemática de seriação dificulta, quando não impossibilita, o processo de retroação, uma vez que prevê avanços lineares até marcos definidos, no caso, os limites interséries, sem possibilidade de considerar ritmos individuais que exijam retornos; b) os estudos contínuos conhecidos como ciclos, que muitas vezes se constituem também em pseudo-seriação sob outro título, poderiam abrir caminhos para a ocorrência da retroação, vista como uma possibilidade de transformação evolutiva. Nesse caso, caberia à escola desvincular- se definitivamente dos avanços previstos, segundo estágios previamente estabelecidos (séries). Assim, os estudantes poderiam rever, revisar, repensar e, a partir daí, reorientar aprendizagens sempre que necessário. Nesse particular, as escolas tentaram, com o procedimento então denominado “recuperação paralela”, instalar um processo retroativo que, lamentavelmente, não logrou sucesso, talvez porque não lhe tenham sido garantidas condições infra-estruturais de caráter pedagógico. Essa, talvez, pudesse ser uma providência adequada à retomada de aprendizagens. Tudo isso leva-me a acreditar que as mais graves conseqüências de um processo educativo mal orientado sejam, em grande parte, decorrentes da percepção incorreta do ser humano, de suas relações com o entorno, percepção que é, também, uma questão epistêmica. O espaço-tempo formal, institucionalizado de aprendizagem, pode constituir-se em uma sala de aula, ou não, desde que aí se tenha, como propósito e como dinâmica, a relação pedagógica, em que o homem é sempre o sujeito. Pois bem, para atuar nesse espaço onde convivem seres humanos, é preciso ter presente uma clara compreensão do ser humano. Uma visão científica, que percebe o ser humano (e os demais organismos vivos) como um sistema internamente interconectado e externamente em interconexão com o universo que o circunda, impugna e repele, desde a própria distribuição física e organizacional de uma instituição rigidamente compartimentada até a idéia de isolamento a que é submetido o aluno em sala de aula, cuja distribuição interna situa desconfortáveis carteiras individualmente enfileiradas, passando tudo isso pelo silêncio “disciplinar” e “respeitoso”.

114 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • v. 15 • n. 1/2 • p. 99 - 123 • jan. - dez. 2008 Se o ser humano emerge de acordo com o que é vivido, se ser e conhecer são constituídos juntos e do mesmo modo na práxis do viver, e tomando por base que conhecer é apresentar uma conduta adequada, congruente com a circunstância, o encontro do ser vivo com a circunstância da escola deve lhe permitir desenvolver processos vitais. A sala de aula pode tornar-se um espaço de aprendizagem em que a vida aconteça, se houver propostas que possibilitem ao aluno viver o amor em suas implicações éticas, como contraponto à agressão, que propiciem a vivência de situações competitivas, evoluindo para a cooperação, que favoreçam o processo criativo em seus desdobramentos. Ela pode, enfim, tornar-se um ambiente propício ao viver-aprender, duas dimensões do humano que se fundem e se identificam. Se o comportamento humano emerge da interação com o meio, em que o mais importante é o corpo, não o comportamento, o mental deve deixar de ter a supremacia na escola, deixando espaço para o corpo, numa relação que se aglutina no conceito de corporeidade.5 A teoria sistêmica, ao situar os seres vivos como sistemas vivos, nos traz irreversivelmente a noção de corporeidade em que corpo e mente se tornam presença, em qualquer circunstância na qual o homem exerça a sua humanidade, o que nos permite questionar em que circunstâncias e em que proporção a escola consegue ultrapassar a idéia que durante muito tempo esteve instalada no seu interior e pela qual se apregoava como componentes específicos de aprendizagens específicas: o afetivo, o cognitivo e o psicomotor. Até que ponto ainda se pensa em “ensinar”, especificamente, psicomotricidade fina e/ou ampla, como se a corporeidade não fizesse parte desse todo, expresso nas diferentes linguagens que são dadas ao homem utilizar. Nessa perspectiva de corporeidade, exige-se que as experiências de aprendizagem abranjam essa totalidade aprendente, que as propostas docentes estejam inscritas numa ecologia cognitiva, expressa em termos de desafio ao homem-sistema, considerando sua inserção natural no universo-sistema. Por outro lado, esse universo-sistema, que se constitui num saber global, não finito, nem conclusivo, apresenta à relação professor-aluno, num contexto de aprendizagem, dois enfoques perfeitamente identificados a serem considerados. Essa é uma das razões pelas quais, no processo de aprendizagem, devemos superar a idéia de que seja possível pensar que podemos circunscrever em limites determinados os conhecimentos que dizem respeito às chamadas disciplinas escolares e somos obrigados a reconhecer e a valorizar surpresas que nos apresentam os alunos ao longo de seus estudos. Outra razão pela qual isso se confirma diz respeito, também, tanto à globalidade do conhecimento como à organização das disciplinas dos currículos escolares, mas penetra mais fundo em concepções e processos pedagógicos, porque impulsiona uma reorientação mais drástica em relação

5 O conceito de corporeidade é um conceito pós-dualista, que tenta acabar com qualquer dicotomia entre cérebro/mente, matéria/espírito, corpo/alma. Ver: ASSMANN, 1998.

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • v. 15 • n. 1/2 • p. 99 - 123 • jan. - dez. 2008 115 à idéia ainda persistente da classificação disciplinar. Se o foco das estratégias escolares é o conhecimento, se o conhecimento incluso no saber global, ou seja, no universo da ciência, é multidimensional, precisamos reconsiderar o instituído, evoluindo para concepções e processos inter e transdisciplinares, possibilitando ao aluno o exercício do pensamento complexo. Concorre esse procedimento, ainda, para o desenvolvimento da competência criativa, indispensável ao enfrentamento das incertezas, diante da falência da antes preconizada certeza científica. Retomo, neste ponto, alguns tópicos nos quais me refiro à autoridade epistêmica do professor, à linearidade e “seqüência lógica” dos conhecimentos, para enfocar o acaso, questionando certezas e trazendo à baila a idéia de probabilidades. O acaso, que teve sua importância revelada pela teoria física das probabilidades, representa na escola uma série de alternativas com as quais o aluno certamente se depara, pois que a trajetória de seu pensamento segue rumos impossíveis de serem controlados, seja qual for a circunstância pedagógica em que se encontre. Pelo fato de fazermos parte de um sistema dinâmico e informacional aberto e porque sabemos que vivemos esse processo informacional em contínua relação com nosso ecossistema e, ainda, porque afetamos e somos afetados por tudo o que nos cerca, incluindo os outros indivíduos, constituímo-nos como sujeitos singulares nessas inter-relações, como singulares são nossas emoções e nossas ações, bem como as respostas que damos aos desafios com que nos defrontamos. Nessa altura de minhas reflexões, reforço a convicção de que não pode mais ser aceita uma escola que pretenda nivelar, igualar formas e usos do conhecimento. Tomo, como exemplo, o processo de verificação de aprendizagens que, muitas vezes, bloqueia trajetórias e horizontes da reflexão independente e, o que é mais grave, talvez, torna a atividade escolar mecanicista e condicionante. Além disso, o processo de avaliação, que não é objetivo e, por isso mesmo, não é neutro, deve incidir sobre o trabalho do aluno, visto como algo pontual, e não sobre o aluno. Um exemplo interessante é o de um aluno que, instado a escrever sobre o projeto de lei referente à doação de órgãos que, na época, tramitava no Congresso Nacional, assim redigiu duas passagens: [...] A lei pode, por um lado, provocar o aumento do tráfico de órgãos na clandestinidade e, além disso, pode aumentar as filas de espera nos hospitais públicos e privados. Como sempre, a título de avaliação, fiz uma leitura prévia e devolvi os trabalhos aos alunos, nos quais eu sublinhava passagens vistas como problemáticas, as quais deveriam ser analisadas por eles, corrigidas e devolvidas para que eu procedesse à leitura final e, por fim, atribuísse nota. Na redação em questão, sublinhei “na clandestinidade” e “hospitais públicos e privados”. Depois de refletir por um tempo, o aluno me disse que não conseguia perceber qual era o problema naquelas passagens. Como era

116 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • v. 15 • n. 1/2 • p. 99 - 123 • jan. - dez. 2008 costume, já que ele não conseguia resolver sozinho, fiz minha intervenção, dizendo-lhe que tráfico supõe clandestinidade e, por isso, a parte final da frase poderia ser suprimida, o mesmo acontecendo com a passagem seguinte sobre os “hospitais” já que a palavra englobava tanto os públicos quanto os privados. Julgava, naquele momento, que aqueles trechos apresentavam certa redundância. A resposta: “Ah! é por isso que eu não encontrava os problemas. Eu não concordo com a tua leitura, porque minha intenção na primeira passagem é transmitir para o meu leitor a idéia de que há toda uma clandestinidade neste país, a idéia de que o Brasil é um país clandestino. Quanto aos hospitais, me diz uma coisa: quando se fala em fila de espera, em que tipo de hospital tu pensas?” Eu, prontamente, respondi: públicos. Foi quando ele respondeu: “Viu só? Eu escrevi os dois para lembrar o meu leitor que o rico também precisa de doação de órgãos.” Dessa experiência decorrem, pelo menos, duas evidências: a primeira é a possibilidade de equívoco no momento da avaliação, o que, muitas vezes, determina a vida do aluno, ou seja, sua reprovação ou aprovação, sua permanência ou não na escola, seu ingresso ou não na universidade. A segunda, não menos importante, é a necessidade de retomada, pelo aluno, de seu trabalho, com a possibilidade de discussão com o avaliador, antes da nota final. Isso, sem contar o prazer sentido pelo professor, diante das respostas dos alunos que refletem visões, não raro diferentes e, até, com maior grau de profundidade, das dos professores, servindo, por isso mesmo, como fonte de enriquecimento para esses mestres. Quanto à questão da ambigüidade, inerente à complexidade, muitos professores de Língua Portuguesa procedem a uma “limpeza” nos textos de seus alunos com a pretensão de eliminá-la em prol da “clareza” das idéias a serem transmitidas. Nesse sentido, a ambigüidade, fonte enriquecedora de significados, deve ser suprimida sob pena de distorcer as intenções dos autores dos textos (salvo os textos que requerem algum humor). Ora, as intenções, muitas vezes, são reveladas aos próprios autores durante o processo de comunicação com o concurso da ambigüidade, numa espécie de “ato falho”. É uma espécie de revelar-se a si mesmo. Isso significa que a ambigüidade pode ser considerada parte constitutiva do próprio significado. Obviamente, deve ser suprimida quando for realmente o caso. Aliás, a vida é repleta de ambigüidades. Creio que a noção de sujeito autônomo, consciente, reflexivo, que aprende no ambiente e com os demais indivíduos envolvidos integralmente no seu processo de auto-eco-organização, não pode ser ignorada pelos docentes. Isso porque a auto-eco-organização mostra que o aluno não precisa de tudo nas mãos, pois é capaz de extrair informações, avaliá-las, reformulá-las. Daí extrai-se um indicativo precioso para a ação educativa, emergente das seguintes questões: os nossos alunos são realmente sujeitos de sua aprendizagem, na perspectiva de interconexão com o seu entorno, abrangendo, no ambiente, os outros indivíduos? Os nossos alunos vivem a experiência de auto-eco- organização em estratégias de ensino propostas pela escola?

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • v. 15 • n. 1/2 • p. 99 - 123 • jan. - dez. 2008 117 São questões que precisam ser respondidas pelos que pensam, organizam e propõem o ensino, principalmente porque a defasagem entre a formação de indivíduos autônomos, criativos, atuantes e uma educação para a submissão, a repetitividade, o rotineiro, reside em grande parte na compreensão, pelo professor, da noção de sujeito aprendente. A partir daí, o professor torna- se capaz de mediar a autoconstrução de sujeitos, mobilizando características de auto-reparação, autotransformação e auto-reprodução, sujeitos que, em sua totalidade, vivam sua experiência de auto-eco-organização. Acredito, portanto, que se torne necessário, urgente mesmo, que as escolas exerçam a abertura que lhe é característica enquanto sistemas. De modo geral, pode-se perceber que a visão que emerge a partir da assimilação dos novos conceitos exige mudanças na educação. Nesse sentido, a disponibilidade de novos conceitos, propondo outros métodos e padrões para redefinir a realidade, implica uma ampliação do enfoque e um conseqüente melhor entendimento da vida e do devir humano. Isso é importante, porque a educação, para que tenha sentido, deve ser responsiva às necessidades e aspirações humanas. Entretanto, em razão da manifesta tendência conservadora por parte das pessoas, o processo de transição gera insegurança, já que os padrões considerados normais não mais dão conta da descrição do mundo. O fato é que vivemos entre noções opostas, que coexistem, mas ainda não aprendemos a conviver com elas, porque não as percebemos como complementares. É preciso, pois, ter fé! Segundo Miguel de Cervantes, “a fé não é a adesão a um homem, é a adesão a uma idéia”. Para que a nova visão de realidade esteja subjacente à prática pedagógica, é necessário, antes de qualquer coisa, que o professor a conheça. Depois, que se convença dela. Nesse caminho, o conhecimento e o convencimento são extremamente importantes, mas não suficientes. Chega-se, então, à terceira etapa: a conversão. A idéia de conversão, imprescindível aqui, que nada tem a ver com religião, pressupõe uma mudança no ser humano, mudança de mentalidade. Depois da conversão, toda ação do sujeito passa a ser impregnada pelas idéias às quais ele se converteu. A mudança dar-se-á a partir de uma transformação na consciência da sociedade, em outras palavras, de uma “reforma de pensamento” (MORIN, 1999). Isso porque, se precisamos desenvolver a capacidade de nos organizarmos de maneira a deixar surgir a criatividade, temos que abrir mão de uma parcela de segurança, encarando incertezas, trabalhando com as tensões das diversidades e com as divergências dos modos de ver a realidade que, aliás, fazem parte de qualquer atividade coletiva. Obviamente, há que se pensar, nesse ponto, na formação dos formadores, indicando uma realidade alternativa viável, pois é possível abrir alternativas para uma nova escola, uma nova instituição. Não uma instituição idealizada, mas reformulada, renovada. Sendo assim, é possível fazer uma proposta de ocupação alternativa do espaço-tempo da escola, que é gasto, na maioria das vezes, com o professor falando e o aluno ouvindo.

118 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • v. 15 • n. 1/2 • p. 99 - 123 • jan. - dez. 2008 Se a escola desenvolve a visão limitadora do pensamento simplificador, cujo método analítico mostra-se insuficiente para explicar e compreender os sistemas complexos, os processos de auto-organização, a dinâmica dos sistemas complexos, a retroação, a autocatálise, o desenvolvimento da diversidade, e se o cosmo e, por conseguinte, a natureza, cujos padrões são os do caos, e nós próprios que dela fazemos parte, somos sistemas vivos, complexos e adaptativos, necessário se faz que a escola propicie o desenvolvimento de um pensamento complexo, compatível com as características próprias do ser humano que a freqüenta e do mundo em que está inserida. Em todo esse trabalho, chama a atenção a alta incidência da utilização de duas expressões relacionadas à percepção emergente da realidade, quais sejam: a conjunção “e” e a expressão “ao mesmo tempo”, para especificar quando determinados processos ocorrem. Na escola, ao contrário, temos o “ou” e a certeza de que “dois corpos não podem ocupar a mesma região no espaço”. A tendência à simplificação ainda é muito forte. As concepções científicas contemporâneas oferecem farto material para questionamento das instituições escolares, tanto em seus aspectos organizativo- estruturais, como em suas orientações epistemo-metodológico-operacionais e sociopolíticas que as suportam. Embora sem um aprofundamento mais minucioso quanto à apreciação de tais instituições, torna-se possível, com base nos estudos aqui reunidos, estabelecer, pelo menos, alguns marcos que sinalizem rumos e apontem horizontes a uma escola capaz de propiciar ao aprendente o desenvolvimento da capacidade de exercitar competências para viver, em circunstâncias tanto rotineiras, como imprevisíveis. Para tanto, cabe à escola – instituição cuja matéria-prima é o conhecimento – organizar-se e atuar de acordo com princípios decorrentes de achados científicos, ultrapassando definitivamente a inércia, o imobilismo, o preconcebido, o rotineiro que a têm mantido, até hoje, nos “tempos da carroça”. Assim, entre os princípios básicos sobre os quais se deve construir a proposta da escola, podem ser indicados, não como dimensões estanques, mas como processos concomitantes/interdependentes/entrelaçados, os seguintes: a) contextualização – que abre a escola para uma percepção cósmica, derrubando paredes que possam mantê-la ilhada no universo com que obrigatoriamente, até mesmo involuntariamente, se há de inter-relacionar, tanto no que se refere a aspectos sociais mais amplos como no que diz respeito ao universo da ciência, no qual se inserem os conhecimentos com que se mostra envolvida a instituição. Daí decorrem exigências relativas a abordagens transdisciplinares, esmaecendo limites com que, ainda hoje, se estruturam currículos escolares e, segundo os quais, os próprios sujeitos escolares pautem suas propostas; b) totalidade – que considera a visão do todo em cada uma de suas partes, requerendo, também, a reorientação de tudo que se tem proposto na escola, com relação ao tratamento dado aos saberes que aí circulam, quando se abordam fatos/fenômenos isolados, comunicando a idéia de que as decorrências

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • v. 15 • n. 1/2 • p. 99 - 123 • jan. - dez. 2008 119 dos processos existenciais, expressas nas abordagens escolares, acontecem em situações solitárias e se concentram em si próprias. Dessa forma, dificultam- se ou afastam-se possibilidades de compreensão de relacionamentos que se estabelecem entre o todo e seus elementos compositivos; c) pluridimensionalidade – opondo-se igualmente a qualquer proposta pedagógica em que se estabeleça a particularização absoluta de estudos, a extrema especificidade e insulamento de abordagens, independentemente das múltiplas dimensões/co-relações/inter-relações de cada foco de ensino; d) complexidade – reunindo unidade e multiplicidade (semelhanças e diversidades), considera que

elementos diferentes são inseparáveis, constitutivos do todo (como o econômico, o político, o sociológico, o psicológico, o afetivo, o mitológico) e há um tecido interativo e inter- retroativo entre o objeto do conhecimento, o sujeito e seu contexto, o todo e as partes, as partes entre si. (MORIN, 2000, p. 38).

Esse princípio pressupõe, obrigatoriamente, a consideração dos antecedentes, e as reflexões que acarreta hão de, por certo, concorrer para o questionamento de conceitos, concepções, preconceitos e realizações que fazem parte da vida escolar da atualidade; e) incerteza – embora fugindo do caráter mais genérico dos princípios anteriores, incide diretamente sobre os procedimentos escolares dos nossos dias, quando muitos dos conceitos emitidos, acatados passivamente, são percebidos pelo aluno como certezas, quer porque ainda acredite na superioridade/infalibilidade do “mestre”, quer porque ainda não se tornou possível demover expressiva parcela dos que vivem/convivem na escola, da forte convicção de que esse é um ambiente em que se devem dirimir dúvidas e encontrar o “certo”. As próprias apreciações a respeito dos trabalhos escolares são expressas graficamente pelos professores, em muitos casos, com as iniciais de certo e errado. É a partir daí que é possível apresentar alguns encaminhamentos requeridos para que a escola proporcione ao estudante condições de: (1) auto- aperfeiçoamento continuado – percepção de contexto e de si próprio como ser cósmico, além de sua autolocalização como parte desse entorno, não só restrito, mas amplo, universal; (2) enfrentamento de incertezas, do inusitado; (3) inter-relacionamento com os demais parceiros de seu universo existencial, pela auto e heterocompreensão, orientado pela construção de uma postura ética, viabilizadora da construção da “cidadania terrestre” (MORIN, 2000, p. 17). Isso posto, algumas definições de natureza operacional podem ser registradas para consideração dos responsáveis pelo processo escolar. O suporte definidor dos rumos pedagógicos da escola, que lhe possibilita manter a unidade, ou seja, a identidade da instituição como um todo,

120 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • v. 15 • n. 1/2 • p. 99 - 123 • jan. - dez. 2008 na diversidade de suas idiossincrasias, é a construção coletiva de um projeto pedagógico inserido – não submisso, mas interarticulado com o projeto social. Nessa dinâmica de discussões/decisões compartilhadas se fazem presentes, na mesa de negociações, o conhecimento, o respeito a individualidades e a busca solidária da efetividade de uma escola para a contemporaneidade. Esse projeto, aberto e inconcluso, continuamente discutido, possibilitará convergências, divergências, inter-relações, projeções, definições que, desde seus fundamentos ético-filosófico-antropológicos, desde as atuais bases científico-tecnológicas, obriguem a escola a repensar suas orientações epistemo-metodológico-operativas, de forma que ao aluno sejam proporcionadas experiências com as quais possa viver aprendizagens que o levem a perceber o complexo, o inter-relacional, o contextual em seus diferentes níveis, em suas interimplicações, envolvendo o pessoal, o interpessoal, o transpessoal, a incerteza, o inusitado, numa dialógica criativa, num interquestionamento salutar, enriquecedor. Por essa ótica, na discussão de uma proposta renovada e renovadora para a escola, hão de emergir os pontos críticos que destoam tanto das necessidades e emergências contemporâneas como do que se possa aspirar, quanto a uma educação para o futuro, em que sejam superados: a) a concepção do currículo, em geral, como elenco de disciplinas compartimentadas, em oposição à idéia de currículo como uma série de temáticas, cuja essência e abordagens decorrem do universo da ciência, vivo, presente, na realidade existencial; b) a idéia operacional de currículo como aprendizagens a serem impressas na memória a partir de programas, cujos conteúdos são desenvolvidos com base em tópicos herméticos, restritos a limites disciplinares, não raro fragmentadores do campo conceitual de uma determinada área do conhecimento; c) o equívoco persistente em alguns meios educacionais, quanto ao que é preciso, útil aprender, ignorando-se que o conteúdo curricular é o conhecimento, são as competências e habilidades que possibilitam mobilizar esses conhecimentos diante das situações-desafio, de que a vida é plena, configurados no saber, saber fazer, conviver e ser. Aprender a conhecer “exercitando a atenção, a memória e o pensamento”. Aprender a fazer, unindo competência técnica e humana. Aprender a conviver, implicando o desenvolvimento da “compreensão do outro e a percepção das interdependências”. Aprender a ser, implicando todas as potencialidades do indivíduo, o que supõe a valorização de todas as suas dimensões (DELORS, 2001, p. 100). Entretanto, para a agilização de uma proposta como a que se deve delinear a partir das reflexões aqui expressas, para que aconteça uma verdadeira e salutar renovação da escola, requer-se educadores preparados que dominem os conhecimentos disponíveis e sejam capazes de avançar incessantemente, por meio do estudo continuado, à medida que o próprio conhecimento avança.

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • v. 15 • n. 1/2 • p. 99 - 123 • jan. - dez. 2008 121 Criar essa nova percepção do papel do magistério remonta, obrigatoriamente, a uma análise minuciosa dos cursos de formação. Dessa forma, ter-se-á, de um lado, as perspectivas de reorientação da escola, amplas, profundas, desafiantes, de outro, profissionais capacitados a responder, à altura, cada desafio que as necessidades de mudança lhes apresentem. Para tanto, é preciso assumir a necessidade de educação continuada ao longo de toda a vida profissional, reconhecendo a transitoriedade das teorias e das técnicas.

à gUiSa de conclUSão

Os conteúdos abordados neste trabalho, quando se reflete sobre o desenvolvimento de um pensamento que se quer complexo, evidenciam que qualquer visão unilateral especializada dificulta a apreensão do conhecimento e a ação sobre realidades tão complexas. Revelam, ainda, a necessidade da busca de novas alternativas de abordagem do conhecimento, como a transdisciplinaridade, tomando por base a complexidade, na qual os fenômenos só podem ser explicados nas suas interimplicações, considerando, ainda, a multidimensionalidade do ser humano e a existência de múltiplos níveis de realidade. Finalmente, apontam para a necessidade de acesso, à educação continuada, dos professores dispostos a enfrentar esses desafios. reFerênciaS

ASSMANN, H. Reencantar a educação: rumo à sociedade aprendente. Petrópolis: Vozes, 1998. BRIGGS, J.; PEAT, D. A sabedoria do caos: sete lições que vão mudar sua vida. Rio de Janeiro: Campus, 2000. DELORS, J. Educação: um tesouro a descobrir. São Paulo: Cortez, 2001. KLEIN, J. T. Crossing boundaries: knowledge, disciplinarities, and interdisciplinarities. Charlottesville: University of Virginia Press, 1996. LORENZ, E. A essência do caos. Brasília: UnB, 1996. MATURANA, H. Cognição e transdisciplinaridade. In: MELLO, M. F.; BARROS, V. M.; SOMMERMAN, A. (Org.). Educação e transdisciplinaridade. Brasília: Unesco, 2000. ______. Ontologia da realidade. Belo Horizonte: UFMG, 1999. MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez, 2000. ______. Por uma reforma de pensamento. In: PENA-VEGA, A; NASCIMENTO, E. P. (Org.). O pensar complexo: Edgar Morin e a crise da modernidade. Rio de Janeiro: Garamond, 1999. ______. Complexidade e ética da solidariedade. In: CASTRO, G.; CARVALHO, E. A; ALMEIDA, M. C. Ensaios de complexidade. Porto Alegre: Sulina, 1997.

122 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • v. 15 • n. 1/2 • p. 99 - 123 • jan. - dez. 2008 ______. Introdução ao pensamento complexo. Lisboa: Instituto Piaget, 1991. ______. O método III: o conhecimento do conhecimento. Lisboa: Europa- América, 1986. ______. Ciência com consciência. Lisboa: Europa-América, 1982. NICOLESCU, B. Manifesto da transdisciplinaridade. São Paulo: Triom, 1999. PENA-VEGA, A; NASCIMENTO, E. P. (Org.). O pensar complexo: Edgar Morin e a crise da modernidade. Rio de Janeiro: Garamond, 1999. PRIGOGINE, I. O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza. São Paulo: unesP, 1996.

Dados dos autores lúcia maria bloiS villela Doutora em Educação, pela Universidade Metodista de Piracicaba/SP. Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência & Tecnologia Sul-rio-grandense – Unidade de Pelotas/RS.

hUgo aSSmann Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da uniMeP (1981 - 2008)

Recebido: 17/10/2008. Aprovado: 12/2/2009.

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • v. 15 • n. 1/2 • p. 99 - 123 • jan. - dez. 2008 123 124 OS PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS/VERSÃO 1996. RESUMO EXPOSITIVO-CRÍTICO DA PROPOSTA PEDAGÓGICA CONTIDA NO DOCUMENTO INTRODUTÓRIO 1 The National Curriculum Standards/Version 1996 Critical abstract of the pedagogical proposal of she Introductory Document

hUgo aSSmann ╬ Universidade Metodista de Piracicaba/SP

A indagação que orienta este resumo é a seguinte: até que ponto os PCNs contêm uma visão inovadora acerca do que se deve entender por experiências significativas de aprendizagem? A leitura que se faz obedece, pois, a uma preocupação central com os processos pedagógicos enquanto tais. Como em todo resumo, a seleção das citações não substitui a leitura do texto completo do documento sintetizado. inFormação mínima Sobre oS pcnS a) De quais documentos se tratam e como surgiram?

O pacote completo dos PCNs inclui um Documento Introdutório (96 p., que resume o pensamento pedagógico assumido; é dele que citarei mais adiante – sem indicar cansativamente as páginas, já que as citações são facilmente localizáveis pelo assunto); um documento sobre Convívio Social e Ética – temas transversais (46 p.); e um documento individualizado para cada área disciplinar (Português, Matemática, Ciências, Geografia e História e para os temas transversais: Democracia e Cidadania Ética, Pluralidade Cultural, Meio Ambiente, Saúde e Orientação Sexual).

Resumo: O processo de elaboração dos PCNs iniciou-se com o estudo de propostas curriculares de estados e municípios brasileiros, da análise realizada pela Fundação Carlos Chagas sobre os currículos oficiais e do contato com informações relativas a experiências de outros países. Tomaram-se em conta subsídios oriundos do Plano Decenal de Educação, de pesquisas nacionais e internacionais, dados estatísticos sobre desempenho de alunos do ensino fundamental, bem como experiências de sala de aula difundidas em encontros, seminários e publicações.

1 Artigo originalmente publicado na Comunicações - Ano 4 - n. 1 - jun./97 – revisado

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 125 - 138 • jan. - dez. 2008 125 A proposta inicial dos PCNs (versão preliminar) é de 1995; houve um processo – inicialmente meio atabalhoado – de discussão de âmbito nacional durante os anos de 95 e 96, do qual participaram docentes de universidades públicas e particulares, técnicos de secretarias estaduais e municipais de educação, de instituições representativas de diferentes áreas do conhecimento e educadores; foram recebidos cerca de quatrocentos pareceres sobre a proposta inicial, que serviram de referência para a sua reelaboração. Ao longo desse processo, houve muitos encontros regionais, organizados pelas delegacias do MEC nos Estados da Federação, com a participação de professores do ensino fundamental e técnicos de secretarias municipais e estaduais de educação, membros de conselhos estaduais de educação, representantes de sindicatos e entidades ligadas ao magistério. Nesses encontros, a proposta foi objeto de discussão, cujos resultados também contribuíram para a reelaboração do documento. O MEC sustenta que os pareceres por ele recolhidos, em sua quase totalidade, apontaram a necessidade de uma política de implementação da proposta educacional explicitada nos PCNs. Além disso, sugeriram diversas possibilidades de atuação das universidades e das faculdades de educação para a melhoria do ensino nas séries iniciais, as quais estão sendo incorporadas na elaboração de novos programas de formação de professores vinculados à implantação dos PCNs. Tais programas terão início logo após a aprovação dos PCNs pelo Conselho Nacional de Educação. (Destaque meu). b) Que pretendem ou não pretendem ser os PCNs?

Começo com uma observação preliminar talvez generosa, mas não ingênua. É necessário entender que os entraves à Reforma Educacional no Brasil são gigantescos. Não se vislumbra ainda a conjugação de fatores que favoreçam uma opção clara e quase-consensual, além da notória falta de vontade política do governo. Talvez seja honesto reconhecer que alguns desses entraves têm a ver com irritações acumuladas, chavões ideológicos desmotivadores e manejo de mil pretextos – geralmente com alguma base em fatos lamentavelmente reais – para ir postergando a discussão sobre o cerne pedagógico da tão anelada qualidade da educação. Acho que seria injusto atribuir aos PCNs uma óptica neoliberal. Há pessoas competentes nas equipes de trabalho, e as fontes de inspiração e a bibliografia citada são ecléticas. Os critérios mercadológicos não aparecem de forma descarada. Quando se aponta para a necessária flexibilidade adaptativa a um mundo do trabalho em mutação, os redatores invocam simultaneamente a capacitação e a cidadania crítica, ponto no qual se introduz a função dos chamados “temas transversais.”

Cito: A escola busca a inserção dos jovens no mundo do trabalho, da cultura, das relações sociais e políticas, através do desenvolvimento de capacidades que possibilitem adaptações às complexas condições e alternativas de

126 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 125 - 138 • jan. - dez. 2008 trabalho que temos hoje e a lidar com a rapidez na produção e na circulação de novos conhecimentos e informações, que têm sido avassaladores e crescentes. No entanto, um ensino de qualidade para transformá-los, e não apenas formá-los para que se integrem ao mercado de trabalho. A escola, ao posicionar-se desta maneira, abre a oportunidade para que os alunos aprendam sobre temas normalmente excluídos e atua propositalmente na formação de valores e atitudes do sujeito em relação ao outro, à política, à economia, ao sexo, à droga, à saúde, ao meio ambiente, à tecnologia.

Os documentos estão voltados primordialmente para o pedagógico, e não para a análise das pré-condições imprescindíveis. Mas se, por um lado, o texto não tenta camuflar os impecilhos – como evidenciam frases como as que vou citar –, por outro lado, deixa claro que não se pode adiar eternamente, sejam quais forem os pretextos, a discussão sobre a renovação pedagógica enquanto tal.

Com a degradação do sistema educacional brasileiro, pode- se dizer que a maioria das escolas tende a ser apenas um local de trabalho individualizado e não uma organização com objetivos próprios, elaborados e manifestados pela ação coordenada de seus diversos profissionais [...] Os PCNs podem funcionar como elemento catalizador de ações na busca de uma melhoria da qualidade da educação brasileira, mas de modo algum têm o poder de resolver todos os problemas que afetam a qualidade do ensino e da aprendizagem no país. Para tanto, é preciso muito investimento na melhoria de condições de trabalho do professor, considerando não só a melhoria salarial, mas também a exigência de programas eficazes de formação inicial e continuada do professor, da qualidade do livro didático, de recursos televisivos e de multimídia [...] Para que a escola possa desempenhar sua função social, é essencial sua vinculação com as questões sociais e com os valores democráticos, que devem permear a própria organização escolar [...]

Que pretendem ser, então, os PCNs? Resumo: – um referencial para fomentar a reflexão sobre os currículos estaduais e municipais, [...] socializando discussões [...] – uma proposta aberta e flexível [...] Não [...] um modelo curricular homogêneo e impositivo, que se sobreporia à competência político-executiva dos estados e municípios, à diversidade política e cultural das múltiplas regiões do país ou à autonomia de professores e equipes pedagógicas;

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 125 - 138 • jan. - dez. 2008 127 – instrumentos norteadores para melhoria da qualidade do ensino fundamental; – a proposta dos PCNs não se apresenta como um currículo mínimo comum ou um conjunto de conteúdos obrigatórios de ensino; – os PCNs pretendem funcionar como elemento catalizador. o deSaFio: Fazer do aceSSo à edUcação Um aceSSo à cidadania

CITO: A importância da definição dos PCNs para um país como o Brasil, marcado por enormes desigualdades sociais e pela diversidade cultural, além da grande dimensão territorial, reside fundamentalmente na urgência de se reconhecer o princípio da equidade no interior da sociedade [...] Mas, na medida em que o princípio da equidade reconhece a diferença e a necessidade de haver condições diferenciadas para o processo educacional, tendo em vista a garantia de uma formação de qualidade para todos, o que se coloca é a necessidade de um referencial comum [...] [...] Na sociedade democrática, ao contrário do que ocorre nos regimes autoritários, o processo educacional não pode ser um instrumento para a imposição, por parte do governo, de um projeto de sociedade e de nação [..] a contraposição de diferentes interesses e a negociação política[...]

COMENTO: O suposto-chave é que não há solução fora da caminhada democrática. A educação é apresentada como meio de aprofundamento e adensamento do conteúdo social da democracia. Precisamente, por isso, é preciso ligar qualidade com cidadania. Cidadania requer melhoria qualitativa da educação, e não mero acesso a ela. O enfoque geral, portanto, é mais amplo que o binômio educação e trabalho. Sobre isso convém bastante. oS pcnS e oS qUatro níveiS de concretização cUrricUlar

ResuMo: A natureza e função dos PCNs: não se pretende impor um projeto vertical e monolítico, mas respeitar os “quatro níveis de concretização curricular previstos para a estrutura do sistema educacional brasileiro”: – primeiro nível de concretização curricular: o MEC/SEF (Secretaria de Ensino Fundamental) propõe uma “referência curricular nacional para o Ensino Fundamental”; – segundo nível de concretização curricular [...] propostas curriculares dos Estados e Municípios; – terceiro nível de concretização curricular [...] cada instituição escolar; – quarto nível de concretização curricular [...] sala de aula.

128 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 125 - 138 • jan. - dez. 2008 O eixo de referências pedagógicas (a concepção do que é ensinar e aprender) a) O mundo mudou: surgiu uma nova relação entre conhecimento e trabalho

Cito: Desde a construção dos primeiros computadores, na metade deste século, novas relações entre conhecimento e trabalho começaram a ser delineadas [...] Hoje em dia, não basta visar a capacitação dos estudantes para futuras habilitações em termos das especializações tradicionais, mas antes trata-se de ter em vista a formação dos estudantes em termos de sua capacitação para a aquisição e o desenvolvimento de novas competências [...]. Estas novas relações entre conhecimento e trabalho exigem capacidade de iniciativa e inovação e, mais do que nunca, a máxima ‘aprender a aprender’ parece se impor à máxima ‘aprender determinados conteúdos’.

COMENTO: O documento deixa entrever, mas não aprofunda os temas: transformação do conceito de trabalho, surgimento da sociedade do conhecimento, etc. Destaco: O documento faz um esforço por articular (na minha opinião, ainda meio confusamente) duas questões-chave: por um lado, a formação de cidadãos autônomos, críticos e participativos, e isso numa sociedade altamente competitiva, e por outro lado, a relação desse contexto histórico-social com a necessidade de colocar no centro do debate as atividades escolares de ensino e aprendizagem e a questão curricular. O que é preciso esclarecer ao professorado é precisamente esta relação entre uma sociedade e um mundo do trabalho profundamente transformados e a urgência de uma pedagogia centrada nas experiências de aprendizagem. Quanto à ênfase neste último aspecto, o documento é sumamente explícito. CITO (resumindo): Insiste-se em

[...] adotar como eixo o desenvolvimento de capacidades do aluno, processo em que os conteúdos curriculares atuam não como fins em si mesmos, mas como meios para a aquisição e desenvolvimento dessas capacidades. [...] priorizar a construção de estratégias de verificação e comprovação de hipóteses na construção do conhecimento, a construção de argumentação capaz de controlar os resultados desse processo, o desenvolvimento do espírito crítico capaz de favorecer a criatividade, [...] o estímulo à autonomia do sujeito, desenvolvendo o sentimento de segurança em relação às suas próprias capacidades [...]

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 125 - 138 • jan. - dez. 2008 129 b) Releitura das tendências pedagógicas no Brasil para situar a nova proposta Como se poderá notar, a equipe que redigiu os PCNs faz uma determinada releitura do pensamento pedagógico no país. O quadro que daí resulta prepara o caminho para enfatizar os traços peculiares na nova proposta. cito: Pode-se identificar, na tradição pedagógica brasileira, a presença de quatro grandes tendências: a tradicional, a renovada, a tecnicista e aquelas marcadas centralmente por preocupações sociais e políticas.

ResuMo, entremeando Citações:

– A Pedagogia Tradicional: centrada no professor. Sua metodologia: transmitir conhecimentos disciplinares, conteúdos do ensino como verdades acabadas. Daí: sobrecarga de informações que são veiculadas aos alunos, o que torna o processo de aquisição de conhecimento, para os alunos, muitas vezes destituído de significação e burocratizado. O professor é a autoridade máxima intermediária entre o aluno e o conhecimento, [...] guia exclusivo do processo educativo. Os PCNs dizem que a Pedagogia Tradicional se caracteriza por seu caráter conservador. – A Pedagogia Renovada perpassou várias correntes ligadas ao movimento da Escola Nova ou Escola Ativa. cito:

Tais correntes embora admitam divergências, assumem um mesmo princípio norteador de valorização do indivíduo como ser livre, ativo e social. O centro da atividade escolar não é o professor nem os conteúdos disciplinares, mas sim o aluno, enquanto ser ativo e curioso. O mais importante não é o ensino, mas o processo de aprendizagem por descoberta e estabelece que atitude de aprendizagem parte do interesse dos alunos, que, por sua vez, aprendem, fundamentalmente, pela experiência, pelo que descobrem por si mesmos.

ResuMo: Queria que o professor fosse, sobretudo, um facilitador, sempre atento aos dois aspectos: visão global e centros de interesses. Houve deturpações e surgiram práticas espontaneístas. – O “tecnicismo educacional” (anos 70; sua ligação ideológica com o regime militar não é enfatizada),

inspirado nas teorias behavioristas de aprendizagem e da abordagem sistêmica do ensino, que definiu uma prática pedagógica altamente controlada e dirigida pelo professor com atividades mecânicas inseridas numa proposta educacional rígida e passível de ser totalmente programada em detalhes.

130 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 125 - 138 • jan. - dez. 2008 Supervalorização da tecnologia programada de ensino [...] grande auto- suficiência a falsa idéia de que aprender não é algo natural do ser humano... O que é valorizado nesta perspectiva não é o professor, mas a tecnologia. – Educação crítica. Destaco: Fiquemos atentos ao manejo de distinções que os PCNs introduzem nessa releitura. cito:

No final dos anos 70 e início dos 80, a abertura política [...] (surge) uma educação crítica a serviço das transformações sociais, econômicas e políticas tendo em vista a superação das desigualdades existentes no interior da sociedade. Ao lado das denominadas teorias crítico-reprodutivistas, firma-se no meio educacional a presença da Pedagogia Libertadora e da Pedagogia Crítico-Social dos Conteúdos, assumida por educadores de orientação marxista.

ResuMo e cito: Para a Pedagogia Libertadora [...] a atividade escolar pauta-se em discussões de temas sociais e políticos e em ações sobre a realidade social imediata. A Pedagogia Crítico Social dos Conteúdos... se põe como uma reação de alguns educadores que não aceitam a pouca relevância que a Pedagogia Libertadora dá ao aprendizado do chamado “saber elaborado”, historicamente acumulado, e que constitui o acervo cultural da humanidade. c) Raízes e antecedentes da atual proposta (formulação minha, não dos PCNs) cito:

a proposta atual que busque recuperar aspectos positivos das práticas anteriores [...] No final dos anos 70, pode-se dizer que havia no Brasil, dentre as tendências didáticas de vanguarda, aquelas que tinham um viés mais psicológico e outras cujo viés era mais sociológico e político; a partir dos anos 80 surge com maior evidência um movimento que pretende a integração entre estas abordagens. A psicologia genética propiciou aprofundar a compreensão sobre o processo de desenvolvimento na construção do conhecimento. Compreender os mecanismos pelos quais as crianças constroem representações internas de conhecimentos construídos socialmente, em uma perspectiva psicogenética, traz uma contribuição para além das descrições dos grandes estágios de desenvolvimento. A pesquisa sobre a psicogênese da língua escrita chegou ao Brasil em meados dos anos 80 e causou grande impacto, revolucionando o ensino da língua nas séries iniciais [...] Esta investigação evidencia a atividade constritiva do aluno sobre a língua escrita. [...].

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 125 - 138 • jan. - dez. 2008 131 A metodologia utilizada nessas pesquisas foi muitas vezes interpretada com uma proposta de pedagogia construtivista para a alfabetização, o que expressa um duplo equívoco: redução do construtivismo a uma teoria psicogenética de aquisição de língua escrita e transformação de uma investigação acadêmica em método de ensino. Com estes equívocos, difundiram-se, sob o rótulo de pedagogia construtivista, as idéias de que não se devem corrigir os erros e de que as crianças aprendem fazendo ‘do seu jeito’. Esta pedagogia, dita construtivista, trouxe sérios problemas ao processo de ensino e aprendizagem, pois desconsidera a função primordial da escola que é ensinar, intervindo para que os alunos aprendam o que, sozinhos, não têm condições de aprender. a teoria doS pcnS acerca da conStrUção e Socialização do conhecimento (SeU tipo de conStrUtiviSmo)

a) Para entrar nesse ponto fundamental, os autores dos PCNs sublinham: primeiro, não adianta querer fugir do assunto, porque todo docente pratica uma epistemologia; segundo, essa questão precisa ser explicitada para que se saiba o que se está querendo e fazendo. cito:

A prática de todo professor, mesmo de forma não- consciente, sempre pressupõe uma concepção de ensino e aprendizagem, que determina os papéis de professor e aluno, a metodologia, a função social da escola e os conteúdos a serem trabalhados. A discussão dessas questões é importante para que se explicitem os pressupostos pedagógicos que subjazem à atividade de ensino, na busca de coerência entre o que se pensa estar fazendo e o que realmente se faz.

b) Vejamos, agora, como os PCNs elaboram sua opção construtivista peculiar precisamente em torno da gênese do conhecimento. cito:

A orientação proposta nos PCNs se situa nos princípios construtivistas e apóia-se em um modelo psicológico geral de aprendizagem que reconhece a importância da participação construtiva do aluno e, ao mesmo tempo, da intervenção do professor para a aprendizagem de conteúdos específicos que favoreçam o desenvolvimento das capacidades necessárias à formação do indivíduo. Ao contrário de uma concepção de ensino e aprendizagem como um processo que se desenvolve ‘passo a passo’, em que a cada momento, o conhecimento é ‘acabado’, o que se

132 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 125 - 138 • jan. - dez. 2008 propõe é uma visão da complexidade e da provisoriedade do conhecimento. De um lado, porque o objeto de conhecimento é ‘complexo’ e reduzi-lo seria falsificá- lo; de outro, porque o processo cognitivo não acontece por adição, senão por reorganização do conhecimento. É também ‘provisório’ porque não é possível chegar de imediato ao conhecimento correto, mas somente por aproximações sucessivas que vão permitindo sua reconstrução.

Parte-se de um pressuposto bastante generoso, na minha opinião. Na seção 2.2.3. do Documento Introdutório (Aprender e Ensinar, Construir e Interagir),

depois de enfatizar que sem aprendizagem o ensino não se consuma, os autores afirmam: A busca de um marco explicativo que permita esta re-significação, além da criação de novos instrumentos de análise, planejamento e condução da ação educativa na escola, tem se situado, atualmente, para a maioria dos teóricos da educação, dentro da perspectiva construtivista.

Acham, porém, conveniente esclarecer que tipo de construtivismo adotam. cito:

É importante, aqui ressaltar que o construtivismo não é uma teoria de desenvolvimento ou de aprendizagem que apresenta um corpo fechado de idéias. Ao mesmo tempo, não é um conglomerado de explicações baseadas em teorias distintas. A perspectiva construtivista na educação é configurada por uma série de princípios explicativos do desenvolvimento e da aprendizagem humana que se complementam, integrando um conjunto orientado a analisar, compreender e explicar os processos escolares de ensino e aprendizagem. A configuração do marco explicativo construtivista para os processos de educação escolar se deu, entre outras influências, a partir da psicologia genética, da teoria sócio- interacionista e das explicações da atividade significativa. Vários autores partiram destas idéias para desenvolver e conceitualizar as várias dimensões envolvidas na educação escolar, trazendo inegáveis contribuições à teoria e à prática educativa. O núcleo central da integração de todas estas contribuições refere-se ao reconhecimento da importância da atividade mental construtiva nos processos de aquisição de conhecimento. Daí o termo construtivismo, denominando esta convergência. Nesta perspectiva, o conhecimento

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 125 - 138 • jan. - dez. 2008 133 não é visto como algo situado fora do indivíduo, a ser adquirido através de cópia real, nem tampouco como algo que o indivíduo constrói independentemente da realidade exterior, dos demais indivíduos e de suas próprias capacidades pessoais. É, antes de mais nada, uma construção histórica e social, na qual interferem fatores de ordem cultural e psicológica. [...] O que o aluno pode aprender em determinado momento da escolaridade depende das possibilidades delineadas pelas formas de pensamento de que dispõe naquela fase de desenvolvimento, dos conhecimentos que já construiu anteriormente e do ensino que recebe. Isto é, a intervenção pedagógica deve-se ajustar ao que os alunos conseguem realizar em cada momento de sua aprendizagem, para se constituir em verdadeira ajuda educativa. O conhecimento é resultado de um complexo e intrincado processo de modificação, reorganização e construção, utilizado pelos alunos para assimilar a interpretar os conteúdos escolares. [...] Conceber o processo de aprendizagem como propriedade do sujeito não implica desvalorizar o papel determinante da interação com o meio social e, particularmente, com a escola. Ao contrário, situações escolares de ensino e aprendizagem são situações comunicativas, nas quais os alunos e professores atuam como co-protagonistas, ambos com uma influência decisiva para o êxito do processo.[...] O conceito de aprendizagem significativa, central na perspectiva construtivista. [...] estabelecer relações substantivas e não arbitrárias entre os conteúdos escolares e os conhecimentos previamente construídos por eles, num processo de articulação de novos significados. Conclui-se que é necessário [...] promover a realização de aprendizagens com o maior grau de significatividade possível.

c) Insiste-se que este enfoque pedagógico resgata a importância dos conteúdos. cito:

Cabe ao professor assegurar engate adequado entre atividades mentais construtivas de seus alunos e significados sócio-culturais refletidos nos conteúdos escolares. Por um lado, trata-se de [...] construção e reconstrução de conhecimentos. Esta aprendizagem é exercida com o aporte pessoal de cada um, o que explica porque, a partir dos mesmos saberes, há sempre lugar para a construção de uma infinidade de significados [...]. Os conhecimentos que se transmitem e se recriam na escola

134 COMUNICAÇÕES• Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 125 - 138 • jan. - dez. 2008 ganham sentido quando produtos de uma construção dinâmica que se opera na interação constante entre o saber escolar e os demais saberes [...]

A questão dos conteúdos aparece, assim, vinculada com o conceito de aprendizagem significativa e [...] conhecimentos socialmente relevantes. Por exemplo:

A importância dada aos conteúdos revela um compromisso da instituição escolar em garantir o acesso aos saberes elaborados socialmente, pois estes se constituem como instrumentos para o desenvolvimento, a socialização, o exercício da cidadania democrática e a atuação no sentido de refutar ou reformular os conhecimentos, crenças e valores atuais. Os conteúdos escolares que são ensinados devem, portanto, estar em consonância com as questões sociais que marcam cada momento histórico.

d) Um tópico-chave é a maneira como se vê a relação entre erro, descoberta e aprendizagem. cito:

A tradição escolar [...] trabalha com a idéia de que a ausência de erros na tarefa escolar é a manifestação da aprendizagem. Hoje, graças ao avanço da investigação científica na área da aprendizagem, tornou-se possível interpretar o erro como algo inerente ao processo de aprendizagem e ajustar a intervenção pedagógica. A aprendizagem significativa implica sempre alguma ousadia: diante do problema posto, o aluno precisa elaborar hipóteses e experimentá-las. Fatores e processos afetivos, motivacionais e relacionais são importantes neste momento. Se a aprendizagem for uma experiência de sucesso, o aprendiz constrói uma representação de si mesmo com alguém capaz de aprender. Se, ao contrário, for uma experiência de fracasso, o ato de aprender tenderá a se transformar em ameaça, e a ousadia necessária à aprendizagem se transformará em medo, para o qual a defesa possível é a manisfestação de desinteresse. Para a estruturação da intervenção educativa é fundamental distinguir o nível de desenvolvimento real do potencial. O nível de desenvolvimento real se determina como aquilo que o aluno pode fazer sozinho em uma situação determinada, sem ajuda de ninguém. O nível de desenvolvimento potencial é determinado pelo que o aluno pode fazer ou aprender nesta mesma situação através da interação com outras pessoas [...] Existe uma

COMUNICAÇÕES• Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 125 - 138 • jan. - dez. 2008 135 zona de desenvolvimento próximo, dada pela diferença existente entre o que um aluno pode fazer sozinho e o que pode fazer ou aprender com a ajuda dos outros. De acordo com esta concepção, falar dos mecanismos de intervenção educativa equivale a falar dos mecanismos interativos através dos quais professores e colegas conseguem ajustar aos processos de construção de significados realizados pelos alunos no decorrer das atividades escolares de ensino e aprendizagem.

e) A função do professor é caracterizada de acordo a essa concepção de como acontece o conhecimento. cito:

O professor, neste processo, deve ser visto como um intermediário entre o aluno e conhecimento, e deve ser reconhecido como alguém que sabe mais, sendo, portanto, um informante valorizado, o que não quer dizer que deva atuar como senhor absoluto do saber. O professor deve intervir no sentido de assegurar ao aluno, dentro da escola, condições favoráveis para aprender, planejando e encaminhando atividades de modo a garantir a programação estabelecida, para que os alunos desenvolvam as capacidades eleitas como essenciais.

f) Quanto à função socializadora da escola, se diz (seção 2.2.2):

A educação escolar é uma prática que tem como função criar condições para que todos os alunos desenvolvam suas capacidades e aprendam os conteúdos necessários para construir instrumentos de compreensão da realidade e da participação em relações sociais, políticas e culturais diversificadas e cada vez mais amplas, condições estas fundamentais para o exercício da cidadania na construção de uma sociedade democrática e não excludente. A função da escola distingue-se de outras práticas educativas uma ajuda intencional, sistemática, planejada e continuada [...] os alunos se apropriem de conteúdos sociais e culturais de maneira crítica e construtiva [...] conteúdos que estejam em consonância com as questões sociais que marcam cada momento histórico [...]. A escola tem a função de intervir efetivamente para promover o desenvolvimento e socialização de seus alunos. Esta socializadora nos remete a dois aspectos: o desenvolvimento individual e o contexto social e cultural. É nesta dupla determinação que nos construímos como pessoas iguais, mas, ao mesmo tempo, diferentes de todas as outras. Iguais por pertencermos à mesma matriz

136 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 125 - 138 • jan. - dez. 2008 cultural, o que nos permite fazer parte de grupos e compartilhar com outras pessoas um mesmo conjunto de saberes e formas de conhecimento que, por sua vez, só é possível graças ao que individualmente pudermos incorporar. Não há desenvolvimento individual possível à margem da sociedade, da cultura. Os processos de diferenciação na construção de uma identidade pessoal e os processos de socialização que conduzem a padrões de identidade coletiva constituem, na verdade, as duas faces de um mesmo processo.

g) É importante notar que os PCNs falam repetidamente de projeto educativo e não adotam (provavelmente de caso pensado) a terminologia “projeto político-pedagógico”. O papel da escola na sociedade é visto como mais importante que nunca, mas descarta-se o simplismo messiânico. cito:

Seria demasiado simplista colocar a educação escolar como alavanca das transformações sociais, dado que a construção da democracia implica muitas outras instâncias. Porém, seu fortalecimento requer investimento nas escolas, para que estas possam, de fato, formar cidadãos críticos e profissionalmente competentes. A inserção do país no contexto da globalização, nas transformações científicas e tecnológicas, na reorientação ético-valorativa da sociedade atribui à escola imensas tarefas, não enquanto a única instância responsável pela formação dos sujeitos, mas como aquela que exerce uma prática educativa social organizada e planejada ao longo de muito tempo na vida dos alunos. nota crítica Sobre avançoS e deFiciênciaS na concepção da morFogêneSe do conhecimento

Os PCNs, na fase atual de sua gestão inconclusa, contêm um propósito pedagógico bastante inovador. Seria uma pena se o seu ímpeto positivo se anulasse diante de resistências críticas, oportunas quando enriquecedoras, ou se esfacelasse no embate com aquelas tendências corporativistas do magistério que, talvez sem querê-lo, têm servido para acobertar a mediocridade e o cinismo dos que não querem nada com nada. Na minha opinião, os documentos são tímidos no que se refere à aproximação de certos aspectos das modernas teorias organizacionais, nas quais a questão do “clima organizacional” foi transformada num tema-eixo. Até certo ponto, os redatores se escondem na sua ignorância, ao afirmarem que sobre isto se sabe muito pouco. É sintomática a seguinte frase:

[...] (existem) outros mecanismos de influência educativa, cuja natureza e funcionamento em grande medida são

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 125 - 138 • jan. - dez. 2008 137 desconhecidos, mas que têm incidência considerável sobre a aprendizagem dos alunos. Dentre eles destaca-se a organização e o funcionamento da instituição escolar e os valores implícitos e explícitos que permeiam as relações entre os membros da escola [...] (SIC!).

São extremamente escassas as referências à questão, tão central nos debates dos últimos anos, sobre inteligência e emoção. (É sintomático o êxito dos livros de Daniel Goleman e António Damásio). Os temas desejo, prazer e paixão, fundamentais para aprofundar o que os documentos chamam situações de aprendizagem, continuam temas-tabu que nunca são tratados de forma direta; só aparecem tangencialmente. cito:

Se o projeto educacional exige re-significar o processo de ensino e aprendizagem, este precisa se preocupar em preservar o desejo de conhecer e de saber com que todas as crianças chegam à escola. [...] Em síntese, não é a aprendizagem que deve se ajustar ao ensino, mas sim o ensino que deve potencializar a aprendizagem: é o ensino que tem a responsabilidade pelo diálogo com a aprendizagem.

Mas o aspecto no qual os PCNs realmente não avançam quase nada – e isto provavelmente reflete uma situação bastante generalizada no pensamento pedagógico nacional – consiste no que costumo chamar de aprisionamento em categorias mentalistas. Chamo de mentalistas as teorias cognitivas para as quais a corporeidade ainda não se transformou num tema básico para entender a profunda inter-relação entre processos vitais e processos de conhecimento. Ou seja, o diálogo com as ciências da vida (biociências) e a recepção de algumas de suas categorias-chave – como auto-organização, autopoiése, sistemas complexos e adaptativos, complexidade, etc. – ainda mal começou. Algo semelhante se pode dizer no que se refere às ciências cognitivas em geral e as áreas da informática, inteligência artificial e vida artificial. Esses são assuntos pelos quais transito em meu recente livro Metáforas novas para reencantar a educação.

Dados do autor hUgo aSSmann ╬ Estudou Filosofia no Seminário Central de São Leopoldo/RS (1951-1954), e Teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, dos Jesuítas (1954-1958). Pós-graduação em Sociologia na Universität Johann Wolfgang Goethe, em Frankfurt am Main, Alemanha. (1959/1960). Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma (1961). Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da uniMeP/sP (1981-2008)

138 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 125 - 138 • jan. - dez. 2008 BREVES ANOTAÇÕES SOBRE A TEORIA DAS INTELIGÊNCIAS MÚLTIPLAS DE HOWARD GARDNER1 Brief Notes on Howard Gardner’s Multiple Intelligences Theory

hUgo aSSmann ╬ Universidade Metodista de Piracicaba/SP

Ref.: GARDNER, H. Estruturas da mente: a teoria das inteligências múltiplas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.

SitUando a teoria daS “inteligênciaS múltiplaS”

Quando se entra com o duplo verbete “inteligências múltiplas” num dos melhores buscadores (search engines) da Internet, o Alta Vista, o resultado é impressionante: mais de mil ocorrências localizáveis, seja em cabeçalhos ou no interior de textos. Há de tudo. Resuminhos extremamente simplistas da teoria de Howard Gardner, marketing de colégios e cursinhos de reciclagem, trivializações em slogans, mas também bons textos expositivos e uma série de agudas críticas ao tipo de cognitivismo informacional e localizacionista desse autor. Convém recordar algumas coisas da história da teoria das “inteligências múltiplas”, para verificar, depois, qual é – segundo a reapreciação que o próprio Gardner, faz da sua teoria oito anos depois de lançá-la – qual é, para ele, o ponto-chave numa perspectiva pedagógica. Como veremos, com base em textos mais recentes do próprio Gardner, parece evidente que, para ele, a questão central nunca foi, embora parecesse ser, o famoso esquema das “sete inteligências” enquanto tal, mas um recado pedagógico mais fundamental e, até certo ponto, independente dessa esquematização. Prefiro que o próprio Howard Gardner, talvez um tanto assustado acerca do modismo que desencadeou, o diga. Resumo histórico: em 1983, Howard Gardner, psicólogo da Universidade de Harvard, filho de um casal de neurocientistas (Hilde Weilheimer Gardner e Ralph Gardner, ambos com publicações nessa área científica), editou um livro que lhe daria uma fama não isenta de ambigüidades. O título do livro, Molduras da Mente (Frames of Mind), sinaliza que o autor

1 Artigo originalmente publicado na Comunicações - Ano 3 n. 2, nov./96 – revisado

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 139 - 146 • jan. - dez. 2008 139 continuava preso ao cognitivismo clássico de tipo informático (localização de funções específicas do cérebro/mente e acentuada ênfase na metáfora do computador para teorias acerca da mente). A inteligência seria um conjunto de janelas diversificadas. Na mesma época, em 1981, Marvin Minsky, o crédulo profeta dos avanços ilimitados da inteligência artificial, escrevia o seu livro acerca da mente como uma sociedade de múltiplos atores, uma espécie de mercado (A Society of Minds). Pouco mais tarde surgiria, dentro da mesma epistemologia pragmática, o programa de computador Windows da Microsoft de Bill Gates, ou seja, aquela “janelização informática”, tão prática e ao mesmo tempo tão reducionista, como experimenta qualquer usuário pensante do computador. Quanto ao título do livro de Howard Gardner, Frames of mind (Molduras da Mente), os italianos foram sensíveis à ambigüidade do original e preferiram vertê-lo ao latim Formae Mentis (Milano: Feltrinelli, 1988), expressão carregada de lembranças das brigas medievais acerca dos nexos entre razão, emoção e vontade (Abelardo, São Boaventura versus São Tomás de Aquino). No Brasil, já que somos cordiais e caridosos, a tradução, com 11 anos de atraso sobre o original, também quis velar as escorregadelas semânticas do autor, mudando o título para Estrutura da Mente: Uma Teoria das Inteligências Múltiplas. (Porto Alegre: Artes Médicas, 1994). Convenhamos, entre molduras, formas plásticas e supostas estruturas vão léguas de diferença. Mas o que pegou mesmo foi o subtítulo: “Uma Teoria das Inteligências Múltiplas”. É fundamental entender que, nessa repercussão, se cruzam várias questões. Temos, por um lado, aquela velha cócega filosófica e existencial da espécie humana, que nos leva cada tanto a perguntar: a gente é um só ou pode ser mais que uma única identidade? Estou obrigado a caber dentro de mim ou sou algo mais do que aquilo que cabe, aqui e agora, na aparente pele do meu eu? (Lembremos, por exemplo, as pluri-identidades do poeta Fernando Pessoa e de tantos outros irrequietos). Para a Educação, porém, o problema é bem mais cotidiano e radical: que há de certo e que há de profundamente equivocado no absoluto predomínio dos “modos de conhecer” lingüístico e lógico-matemático em nossas formas de ensinar? o eSqUema qUe Se coStUma divUlgar

Na divulgação da teoria das “inteligências múltiplas” de Howard Gardner prevaleceu o seguinte esquema-resumo (ver Internet): Que entender por “inteligências múltiplas”? Gardner ataca a noção de uma inteligência genérica e propõe, em seu lugar, sete inteligências ou áreas de potencial intelectual. Seria possível distinguir as seguintes sete formas de inteligência: 1) a verbal-lingüística, relacionada com a verbalização escrita ou falada, dominante nos sistemas educacionais do Ocidente (localização: lóbulo temporal esquerdo);

140 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 139 - 146 • jan. - dez. 2008 2) a musical-rítmica, baseada no reconhecimento de padrões tonais, sons e a sensibilidade para ritmos, batidas, etc. (localização: hemisfério direito); 3) a lógico-matemática, por vezes chamada de “pensamento científico, lida com o raciocínio indutivo e dedutivo, números e reconhecimento de padrões abstratos (localização: bastante difusa mas constituindo um “espaço autônomo” de pré-disposições para um determinado entrelaçamento neuronal (algo disso há também em Piaget); 4) a visual-espacial, que se apóia no sentido da visão, secundarizando os demais sentidos, com a tendência de visualizar tudo sob a forma de “objetos” e criar “representações” e “imagens” mentais (localização: espacial: sistema óptico-neural e hemisfério esquerdo); 5) a corporal-cinestésica, relacionada com o movimento físico e o conhecimento (e sabedoria) do corpo, incluindo o córtex cerebral motórico, suposto centro de controle do movimento corporal (localização: cerebelo, “ córtex motórico” e hemisfério esquerdo); 6) a interpessoal, que se refere ao relacionamento pessoa-a-pessoa e à comunicação (localização: lóbulos frontais); 7) a intrapessoal, relacionada com os “estudos internos”, a auto-reflexão, a metacognição (pensar sobre o pensar) e a consciência do “situar-se” no tempo e no espaço (localização: lóbulos frontais e hemisfério direito). Do jeito que Howard Gardner formulou a coisa, parecia haver provar de localizações neuronais para essas “sete inteligências”. Pessoalmente tenho a impressão de que o autor, para dar força a seu esquema, caiu na armadilha das teorias fatoriais e localizacionistas, hoje bastante desacreditadas. Em alguns momentos, o autor parece tomar distância das “localizações”; em outros, quase se obsessiona por elas. No fundo, Gardner parece referir-se, sobretudo, a múltiplas “formas de conhecer”, e não tanto a “múltiplos eus”. O próprio autor levou um susto com a repercussão da sua teoria de “sete inteligências” coabitantes ou alternativas e, ao que tudo indica, optou por entrar na quarentena dum silêncio e de uma certa distância da sua própria teoria. Dois anos mais tarde, em 1985, publicou um grosso livro no qual mal se refere à sua teoria (GARDNER, H. A Nova ciência da mente. Uma história da revolução cognitiva. São Paulo: Edusp, 1995). Mais tarde ainda, já nos anos 90, Howard Gardner esclareceu melhor o que realmente pretendia dizer com sua teoria das múltiplas (sete, para ser exato) inteligências. reServaS críticaS

Antes de transcrever um trecho no qual Gardner reaprecia a sua própria teoria, vale a pena sintetizar algumas críticas a Gardner. Tomo com exemplo um autor português que se dedicou ao estudo de diferentes teorias sobre a inteligência (ALMEIDA, L. S. Inteligência: definição e medida.

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 139 - 146 • jan. - dez. 2008 141 Aveiro: Cidime, 1994). Este autor enfatiza – corretamente, na minha opinião – que a teoria das “inteligências múltiplas” se inscreve dentro da abordagem cognitivista “centrada numa ligação muito estreita entre zonas e localizações encefálicas e o processamento da informação” (p. 39). Mesmo reconhecendo que Gardner também se refere a diversas pesquisas sobre a interdependência entre faculdades mentais e especializações hemisféricas, Almeida é contundente: “julgamos que a abordagem da inteligência que é feita (por Gardner) se enquadra melhor nas ‘teorias de processamento da informação’ (sendo um dos autores que, a nosso ver, tenta fazer uma ponte entre as duas abordagens, isto é, a factorial e das especializações hemisféricas e a computacional)” (p. 39). Fica sublinhado, desse modo, que Gardner assume, como ponto de partida, a existência, no sistema neurológico, de mecanismos de processamento da informação adequados ao tratamento de tipos específicos de informação que o indivíduo encontra em seu meio, mas o faz ficando bastante preso ao modelo informático-computacional. Além disso, citando palavras do próprio Gardner, a inteligência se definiria como “um mecanismo neural ou um sistema computacional que está geneticamente programado para ser ativado ou ‘disparado’ por determinados tipos de informação que se apresentam interna ou externamente” (GARDNER, 1983, p. 64 no original). Em resumo, se distinguirmos as três principais correntes do cognitivismo – o simbolicismo (metáfora: o computador), o conexionismo (metáfora: a rede), o dinamicismo (metáfora: sistemas dinâmicos, complexos e adaptativos) – Gardner está mais próximo da primeira corrente, sumamente forte nos anos 60 e 70, mas hoje tida como neomecanicista e não adequada para a complexidade do cérebro/mente. A presença do localizacionismo na teoria de Gardner foi criticada por muitos. Mas o crítico Almeida reconhece que a obra de Gardner sempre volta a insistir em “certa flexibilidade dentro da confluência de elementos associados à organicidade, ou à pré-programação genética, e de elementos ligados ao treinamento ao exercício e à aprendizagem. Essa confluência explicaria por que desenvolvemos mais uma e não outras formas de inteligência” (p. 41). As críticas mais freqüentes a Gardner podem ser resumidas da seguinte maneira: a) Suas considerações acerca da fisiologia neuronal, que servem de base e argumento para sua teoria, são a parte mais frágil e discutível. b) Gardner tenta juntar duas perspectivas: o que decorre do substrato fisiológico – geneticamente? – pré-programado, e o que são elementos informativos decorrentes da educação e aculturação. Sobre isso, Almeida (1994, p. 41) comenta:

Uma e outra perspectiva parecem, convenhamos, bastante vagas, como é vaga a idéia que cada uma das inteligências apontadas possa emergir de uma estrutura pré-programada de índole genética. Mais uma vez o objetivo está centrado no ‘reificar’ a inteligência e não na sua explicação, em nossa opinião.

142 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 139 - 146 • jan. - dez. 2008 c) “Aliás, a apologia de zonas cerebrais específicas para a localização de cada uma das inteligências parece ser uma tarefa demasiado difícil. [...] Concluímos, afirmando que a verificação empírica dessa teoria é, no mínimo, tarefa árdua como é a tentativa de tomar as especializações de zonas cerebrais para apoio a essa explicação” (p. 41). d) A própria idéia de “Molduras da Mente” é neomecanicista. A obsessão por identificar localização é o aspecto mais sintomático do predomínio dessa visão mecanicista. Sua chave explicativa é o modelo computacional. O conceito-chave é informação (algo comparável ao famoso flogisto ou à vis imflammandi dos alquimistas, como observa Francisco Varela). gardner reapreciando a SUa teoria

Como ficará claro na própria palavra de Gardner, sua questão de fundo era/é a seguinte: a pedagogia deve preocupar-se com diversificar as “confluências possíveis” dos modos e formas de conhecer, e não impor pedagogicamente um único modelo de conhecimento. Em síntese, o forte de Gardner me parece estar na sua preocupação com o direito dos alunos de ver valorizada a sua forma pessoal de aprender e é neste sentido que ele faz a proposta de uma “pedagogia centrada no compreender”. O que não se compreende, não se aprende para valer e durar. Passo agora, a transcrever o trecho esclarecedor entitulado “As sete inteligências” do livro de Gardner (1991) - The Unschooled Mind: how children think and how schools should teach. [Utilizo a tradução italiana, comprada em Roma há dois anos, pois não existe (não conheço) ainda tradução em português: Educare al Comprendere: stereotipi infantili e apprendimento scolastico. Milano: Feltrinelli, 1993, p. 21-23].

Até aqui falei dos estudantes como se tratasse de pessoas que aprendem todos da mesma maneira e que possuem os mesmos tipos de visões, certas ou erradas, os mesmos conhecimentos e os mesmos erros; de pessoas capazes dos mesmos rendimentos mecânicos ou, melhor dito, de rendimentos que são fruto de (real) competência no ensino de disciplinas - um modo de ver as coisas que é defensável na medida em que efetivamente existem traços que tornam parecido o modo de aprender de todos os estudantes ou ao menos da grande maioria deles. Há, contudo, um outro aspecto recorrente nas mais recentes pesquisas cognitivas, ou seja, que os estudantes possuem em larga medida tipos de mente diferentes e que, por isso, aprendem, lembram, executam e compreendem as coisas de maneiras diferentes. Uma coisa que está amplamente documentada é o fato de que, enquanto a aproximação de alguns à aprendizagem é primariamente lingüística, a de outros privilegia um percurso espacial e quantitativo. Por conseguinte, alguns estudantes se desempenham

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 139 - 146 • jan. - dez. 2008 143 melhor quando se lhes pede para manipular símbolos (lógico-matemáticos) de diversos tipos, enquanto outros conseguem exprimir melhor a própria compreensão das coisas mediante provas práticas ou interações com outros indivíduos. Eu postulei que todos os seres humanos são capazes de ao menos sete modos diferentes de conhecer o mundo - mundos que, em outra parte (remete a seu livro de 1983) denominei as sete inteligências humanas. Segundo a minha análise, todos nós estamos em condições de conhecer o mundo mediante a linguagem, a análise lógica-matemática, a representação espacial, o pensamento musical, o uso do corpo para resolver problemas e para fazer coisas, a compreensão das outras pessoas e a compreensão de nós mesmos. O que diferencia os indivíduos entre si é o vigor dessas inteligências - o assim chamado perfil das inteligências - e as maneiras em que elas são chamadas a intervir e combinadas entre si para levar a cabo as diversas tarefas, resolver os diversos problemas e progredir nos diversos campos. Os princípios da teoria das inteligências múltiplas não representam um componente necessário na análise que se realiza neste livro; contudo, um certo reconhecimento (un qualche riconoscimento) do fato de que os seres humanos aprendem, representam e utilizam os conhecimentos de muitas maneiras diferentes é importante para a minha argumentação. Essas diferenças entre os indivíduos, amplamente documentadas, tornam mais complexo o exame do aprender e do conhecer humano. Para começar, elas representam um desafio para todo sistema educativo que estiver baseado no pressuposto de que todos podem aprender as mesmas coisas da mesma maneira e que o aprendizado dos estudantes pode ser medido por medições (em metro) uniformes e universais. Com efeito, o nosso sistema educativo, assim como está geralmente organizado, privilegia nitidamente modalidades de intrução e de avaliação de tipo linguístico, e também, ainda que sejam em medida mais modesta, as modalidades lógico-quantitativas. Eu sustentarei que existe um conjunto de pressupostos contrários aos que acabo de referir e que prometem ser educativamente mais eficazes. Os estudantes aprendem por formas cuja diferença é identificável; e conseguir apresentar as disciplinas em uma multiplicidade de modos diferentes, e avaliar a aprendizagem com uma variedade de meios igualmente diversificados significaria servir melhor toda a vasta e variegada gama de estudantes que freqüentam as escolas e com isso, talvez, contribuir ao crescimento da sociedade inteira.

144 COMUNICAÇÕES• Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 139 - 146 • jan. - dez. 2008 Uma conseqüência atual é que, nos sistemas educativos contemporâneos, muitos estudantes são considerados injustificadamente como sucessos, assim como muitos outros são considerados sem motivo como fracassos. Àqueles alunos que demonstram inteligência canônica (ou, como costumo dizes, “escolar” (no italiano: “escolástica”) se lhes reconhecem boas capacidades, mesmo quando sua real compreensão das coisas é limitada ou inexistente. Muitas pessoas - incluídos, por vezes, o autor deste livro e sua filha - chegam, sim, a passar no teste, mas não chegam a superar certas medidas de compreensão tidas como as mais apropriadas e comprobatórias. Outras pessoas, com menos sorte, embora dêem provas significativas de inteligência, aparecem como escassamente dotadas simplesmente porque não estão em condições de vender bem os próprios conhecimentos na moeda corrente da escola. Existem, por exemplo, muitas pessoas que não têm familiaridade (domesticabilidade) em relação às provas formais, mesmo que, quando aparecem problemas em contextos naturais, elas saibam das provas convincentes de inteligência. Um dos objetivos deste livro é precisamentes sugerir intervenções e avaliações escolares capazes de atender melhor a essas pessoas. ” (os destaques grifados são meus). nota Final Sobre a inFlUência de gardner

Como ficou registrado acima, o pensamento de Howard Gardner não estagnou no que propusera em seu livro de 1983 sobre a “teoria as inteligências múltiplas”. Esse livro corresponde a uma época na qual muita gente estava à busca de “modelos explicativos” novos e mais complexos para romper com as visões mecanicistas e entender melhor a inteligência humana como um conjunto de processos altamente dinâmicos. Distanciar-se dos esquematismos estreitos subjacentes aos famosos “testes de QI” era um imperativo de honestidade intelectual mínima. Creio que foi nessa direção que o autor pretendeu lançar uma provocação que pudesse contar com certo impacto pela própria maneira como era apresentada. Quis ser uma bandeira anti-simplismo. Mesmo assim produziu adesões simplistas. O autor se deu conta disso e não gostou que sua proposta instigadora fosse utilizada como caixinha de respostas fáceis. O “caso Gardner” revela que as diferenças epistemológicas entre as diversas teorias cognitivistas – o simbolicismo computacional, o conexionismo e o dinamicismo – são tão significativas que não podem ser escamoteadas mediante uma simples metáfora mais ou menos bombástica. O que veio à luz nas supostas distorções da sua “teoria” foi simplesmente o fato de que o próprio Gardner ainda não havia dado o passo epistemológico em favor de

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 139 - 146 • jan. - dez. 2008 145 uma visão do cérebro/mente como sistema dinâmico, complexo e adaptativo. Inscreveu uma provocação dinamicista num marco epistemológico preso ao neomecanicismo.

Dados do autor hUgo aSSmann ╬ Universidade Metodista de Piracicaba/SP Estudou Filosofia no Seminário Central de São Leopoldo/RS (1951-1954), e Teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, dos Jesuítas (1954-1958). Pós-graduação em Sociologia na Universität Johann Wolfgang Goethe, em Frankfurt am Main, Alemanha. (1959-1960). Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma (1961). Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da uniMeP (1981-2008)

146 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 139 - 146 • jan. - dez. 2008 NORMAS PARA PUBLICAÇÃO

princípioS geraiS

1. A Revista COMUNICAÇÕES é um veículo de estimulação e divulgação da produção do Programa de Pós-Graduação em Educação da uniMeP e possui o objetivo de publicar textos acadêmicos que tratem do tema da Educação em sua complexidade, abrangendo suas dimensões políticas, filosóficas, sociológicas, históricas e de processos de ensino-aprendizagem. 2. A ComUniCAções é semestral e aceita colaborações sob a forma de: • Artigo (10 a 18 laudas – 14.000 a 25.200 toques) – levantamento crítico de um tema, a partir de bibliografia disponível; relato de pesquisa de campo, concluída ou em andamento; • ensAio (12 a 30 laudas – 16.800 a 42.000 toques) – reflexão a partir de pesquisa bibliográfica ou de campo sobre determinado tema; • CrôniCA (4 a 6 laudas – 5.600 a 8.400 toques) – nota sobre determinado tópico; • debAte (3 a 4 laudas – 4.200 a 5.600 toques) – confronto entre posições antagônicas a respeito de um tema da atualidade. • resenhA (2 a 4 laudas – 2.800 a 5.600 toques) – comentário crítico de livros e/ou trabalhos acadêmicos. Obs.: cada lauda compreende 1.400 toques, incluindo-se os espaços entre palavras. 3. Os artigos devem ser inéditos, vedado o seu encaminhamento simultâneo a outras revistas. 4. Na análise para a aceitação de um artigo serão observados os seguintes critérios, sendo os autores informados do andamento do processo de seleção: • adequação ao escopo da revista; • qualidade científica, atestada pela Comissão Científico-Editorial e por processo anônimo de avaliação por pares (blind peer review), com consultores não remunerados, especialmente convidados, cujos nomes são divulgados anualmente, como forma de reconhecimento; • cumprimento das presentes Normas para Publicação. 5. Encaminhamento para SUbmiSSão de artigo à Comissão Científico-Editorial da ComUniCAções: (a) três cópias impressas do artigo, acompanhadas de arquivo eletrônico, enviado em disquete, CD, ou por e-mail, devidamente padronizados conforme estas Normas, constando de uma delas os dados completos do(s) autor(es) e, das outras duas, apenas o título da obra (sem identificação da autoria); (b) fornecer também brevíssimo currículo dos autores; (c) e ofício do qual conste: • cessão dos direitos autorais para publicação na revista; • concordância com as presentes normatizações; • informações sobre os autores titulação acadêmica, unidade e instituição em que atua(m), endereço para correspondência, telefone fax e e-mail. • em caso de artigo assinado por mais de um autor, indicar o nome daquele que será o responsável pelos contatos com a Editora. 6. etapaS de trâmite dos artigos: (a) um dos membros da Comissão e dois nomes externos a ela são designados como pareceristas, estes dois últimos

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 147 - 154 • jan. - dez. 2008 147 por processo blind peer review; (b) recebidos de volta tais pareceres, eles são analisados em outro encontro da Comissão, chegando-se a uma avaliação final: “indicado para publicação”, “indicado com ressalvas” ou “recusado”; (c) em carta ao(s) autor(es), são fundamentadas tais decisões e devolvidos os originais com anotações dos pareceristas; (d) se indicado para publicação “com ressalvas”, o artigo deve ser novamente submetido à Editora: os trechos alterados devem ser realçados por cor ou sublinhados; essa nova versão será entregue em papel (uma cópia) e em arquivo eletrônico, acompanhada do texto original apreciado pelos pareceristas; (e) eventuais ilustrações devem ser encaminhadas separadamente, em seus respectivos arquivos eletrônicos em suas extensões originais; (f ) antes da impressão, o(s) autor(es) recebe(m) versão final do texto para análise. 7. Uma vez aceito o artigo, cabe à revista a exclusividade em sua publicação. 8. Os artigos podem sofrer alterações editoriais não substanciais (reparagrafações, correções gramaticais, adequações estilísticas e editoriais). 9. Não há remuneração pelos trabalhos. Por artigo, cada autor receberá um exemplar.. Poderão ainda ser adquiridos exemplares da revista com desconto de 30% sobre o preço de capa.

eStrUtUra 10. Cada artigo deve conter os seguintes elementos:

a) Identificação • TÍTULO (e subtítulo, se for o caso), em português e inglês: conciso e indicando claramente o conteúdo do texto [máximo de 80 toques]; • nome dos AUTORES, titulação, área acadêmica em que atuam e e-mail; • SUBVENÇÃO: menção de apoio e financiamento eventualmente recebidos; • AGRADECIMENTO, se absolutamente indispensável.

b) Resumo e Palavras-Chave • Resumo indicativo e informativo, em português e inglês, com mínimo de 1.300 e máximo de 1.400 toques cada um; • para fins de indexação, os autores devem indicar os termos-chave (mínimo de três e máximo de seis) do artigo, em português (palavras-chave), inglês (keywords).

c) Texto • deve ter intRodução, desenvolviMento e conclusão. Cabe ao(s) autor(es) criar os entretítulos para o seu trabalho. Esses entretítulos, em letras maiúsculas, não são numerados; • no caso de resenhAs, o texto deve conter todas as informações para a identificação do livro comentado (autor; título; tradutor, se houver; edição, se não for a primeira; local, editora; ano; total de páginas; e, se houver, título original e ISBN). No caso de trabalhos acadêmicos a serem resenhados, segue-se o mesmo princípio, no que for aplicável, acrescido de informações sobre a instituição na qual foi produzida.

148 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 147 - 154 • jan. - dez. 2008 d) Anexos • Ilustrações (tabelas, gráficos, desenhos, mapas e fotografias).

e) Apresentação Gráfica Notas Explicativas: serão dispostas no rodapé, remetidas por números sobrescritos no corpo do texto,1 desenhos, mapas e fotografias).

citaçõeS: Conforme Norma NBR 10520/2002 da ABNT, as citações diretas até 3 linhas devem ser inseridas no parágrafo pertinente e transcritas entre aspas. Citações diretas com mais de 3 linhas devem ser digitadas com recuo de 4 cm da margem esquerda, fonte diminuída (sugerimos Times New Roman, 11) e espaço simples e sem aspas.

Nas citações do sistema numérico ou autor-data, as entradas pelo sobrenome do autor, pela instituição responsável ou título incluído na sentença devem ser em letras maiúsculas e minúsculas; observando-se a seguinte diferenciação: a) quando estiverem entre parênteses devem ser em letras maiúsculas:

Exemplo:

“As culturas humanas são simbólicas na medida em que são fundadas sobre, e corporificam, um conjunto sistematicamente inter-relacionado de idéias a respeito do sentido da vida” (BROCKELMAN, 2001, p. 51). b) quando estiverem no corpo do texto, devem ser usadas letras minúsculas, exemplo: Werner Jaeger (1986, p. 75) afirma que “a crença de que a educação espartana era uma preparação militar unilateral deriva da Política de Aristóteles”.

No caso de até 3 autores:

Quando a indicação dos autores estiver no corpo do texto, escrever os sobrenomes dos autores, exemplo: Coll, Marchesi e Palácios (2004, p.)

Após a citação, os sobrenomes dos autores devem vir entre parênteses, separados por ponto-e-vírgula, exemplo: (COLL; MARCHESI; PALACIOS, 2004, p...) * No caso de mais de três autores escreve-se o nome do autor principal, seguido da expressão et al.

Citação direta de até três linhas: Esta citação pode ser inserida no próprio parágrafo, entre aspas. Observar rigorosamente as indicações bibliográficas.

1 Essa numeração será disposta após a pontuação, quando esta ocorrer, sem que se deixe espaço entre ela e o número sobrescrito da nota. Como o empregado nas Referências Bibliográficas, nas notas de rodapé o SOBRENOME dos autores que tenham sido citados deve ser grafado em maiúscula, seguido do ano da publicação da obra e da página na qual encontra-se a referência, correspondente a esta citação. Ex.: CASTRO, 1989, p. 28.

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 147 - 154 • jan. - dez. 2008 149 Citação direta com mais de três linhas: Aparece em parágrafo separado, com tamanho de letra menor que as letras utilizadas no texto, espaço simples de entrelinhas a 4 cm da margem esquerda do texto e pratica-se dois espaços entre os parágrafos anterior e posterior.

Citação de fonte: Utilizar o sistema autor-data previsto na norma NBR 10520/2002 da ABNT, conforme exemplos abaixo:

Citação livre, sem a transcrição de palavras do autor. Ex.: Putnam (1973) sugere que...

Citação textual: Após a citação colocar os seguintes dados: (SOBRENOME DO AUTOR, ano da obra, página). Exemplo:

Entender a política social no Brasil é conhecer as diversas transformações histórico-estruturais que o Estado atravessa ao longo de sua existência. E falar do planejamento da política social implica o conhecimento dos planos do governo elaborados nesse sentido. (LIMA, 1982, p.21).

Quando o nome do autor está presente no texto, o sobrenome deve vir com letras minúsculas. Por exemplo:

Lima (1982, p.21) afirma

Entender a política social no Brasil é conhecer as diversas transformações histórico-estruturais que o Estado atravessa ao longo de sua existência. E falar do planejamento da política social implica o conhecimento dos planos do governo elaborados nesse sentido.

Quando forem citados dois autores com o mesmo sobrenome, diferenciá-los da seguinte forma:

(BARBOSA, C., 1958) (BARBOSA, O., 1958) Quando forem citadas obras do mesmo autor, diferenciá-las da seguinte forma:

(RESIDE, 1927a) (RESIDE, 1927b) As letras “a” e “b” também deverão aparecer nas referências.

Notas de Rodapé As notas de rodapé servem para ilustrar o texto, sem quebrar a seqüência argumentativa. Devem ser digitadas dentro das margens, ficando separadas do texto

150 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 147 - 154 • jan. - dez. 2008 por um espaço simples de entrelinhas e por filete de 3 cm, a partir da margem esquerda. A letra utilizada é menor que o tamanho da letra usada no texto. Inicia-se na mesma margem do parágrafo do texto e usa-se espaço simples de entrelinhas.

Referências As referências, com todas e apenas as obras citadas no texto, devem constar ao final do trabalho, corpo 12, fonte Times New Roman, em espaço simples, e espaço duplo entre elas, seguindo a norma da ABNT NBR 6023/2002. Exemplos:

Livro: Um autor: ALLEN, C. L. A psiquiatria de Deus: fórmulas seguras para se conseguir e manter a saúde mental e espiritual. 5. ed. Venda Nova: Bethânia, 1981. POPKEWITZ, T. S. Reforma educacional: uma política sociológica – poder e conhecimento em educação. Trad. Beatriz Affonso Neves. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

Dois autores: CRESPI, F.; FORNARI, F. Introdução à sociologia do conhecimento. Trad. Antonio Angonese. Bauru: Edusc, 2000.

Três autores: COLL, C.; MARCHESI, A.; PALACIOS, J. Desenvolvimento psicológico e educação. Trad. Fátima Murad. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2004.

Mais de três autores: Colocar o nome do autor principal, seguido da expressão et al.

Capítulo de livro: POPKEWITZ, T. S. História do currículo, regulação social e poder. In: SILVA, T. T. da (Org.). O sujeito da educação: estudos foucaultianos. Petrópolis: Vozes, 1994 (Ciências sociais da educação) ISBN 85.326.1317-9.

Autor do capítulo é o mesmo do livro: SILVA, T. T. da. Monstros, fantasmas e clones: os fantasmas da Pedagogia Crítica. In:______. Pedagogia dos Monstros: os prazeres e os perigos da confusão de fronteiras. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. Cap. 1, p.11-21.

Várias obras de um mesmo autor: Colocar o nome da obra mais recente, as demais obras devem vir em ordem decrescente de data, substituindo-se o nome pelo traço (teclar 6 vezes espaço) e ponto final; exemplo:

FREIRE, P. Educação como prática de liberdade. 14 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.

______. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974. Documento com autoria institucional: ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Adaptação de

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 147 - 154 • jan. - dez. 2008 151 ocupações e o emprego do portador de deficiência. Tradução de E. A da Cunha. Brasília, DF: CORDE, 1997. 182 p.

Enciclopédias: TROPICA color encyclopedia of exotic plants and trees from the tropics and subtropics. East Rutherford: Roehrs, 1978. 1119 p.

Sites: CUNHA, E. Os Sertões. São Paulo: três 1984. Disponível em: . Acesso em: 4 jun.2001.

CD-ROM (Livros): LORENZI, H.; SOUZA, H. M. Plantas ornamentais no Brasil: arbustivas, herbáceas e trepadeiras. Nova Odessa: Plantarum, 1996. 1 CD. ALTOÉ, A. O trabalho do facilitador no ambiente logo. In: VALENTE, J. A. ( Org). O professor no ambiente logo: formação e atuação. Campinas: Ed. UNICAMP, 1996. p. 71-89. Dissertação/tese/ trabalho de conclusão de curso: PAIVA, José Maria de. A imagem que a Igreja tem da realidade brasileira: um estudo através das Comunidades Eclesiais de Base - CEBs. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Estadual de Campinas, 1985.

Trabalhos publicados em eventos: seminários, encontros, mesas redondas, simpósios, conferências: (03 exemplos): TSOU, C. L. Kinetics of irreversible modification of enzyme activity. In: ANNIVERSARY CELEBRATION OF THE THIRD WORLD ACADEMY OF SCIENCE, 10th, 1993, Trieste. Proceedings... Trieste: T.W.A.S., [1993]. P. 155- 174.

GARCIA, M.O. Formación, actividades y perspectivas de las profesionales en nutrición. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE NUTRICIONISTAS, 3.; ENCONTRO LATINO-AMERICANO DE NUTRICIONISTAS, 1., 1965, Rio de Janeiro: Anais... Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Nutricionistas, 1968. p. 283-292 DAL MORO, E.T.L. Educação especial brasileira frente à política nacional: definições e princípios norteadores. In: CONGRESSO IBERO-AMERICANO DE EDUCAÇÃO ESPECIAL, 3., 1998, Foz do Iguaçu. Anais... Foz do Iguaçu: Ministério de Educação e do Desporto, Secretaria de Educação Especial, 1998. v. 02, p. 250-251, ref. 051.

Artigo em Periódico: Com um autor: TRIGUEIRO, D. Expansão do ensino superior. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, Mec/Inep, v. 108. p. 209-234. Out/dez, 1967.

Com dois autores: MAIA, N.B.; FURLANI, A. M. C. Especiarias, aromáticas e medicinais. Boletim Técnico do Instituto Agronômico de Campinas, Campinas, n. 100, p. 75-76, 1996.

152 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 147 - 154 • jan. - dez. 2008 em formato de documento eletrônico: SOUZA, F. C. Formação de bibliotecários para uma sociedade livre = University education or librarians for a free society. Encontros BIBLI. Revista de Biblioteconomia e Ciência da Informação, Florianópolis, n. 11, p. 1-13, jun. 2001. Disponível em: . Acesso em: 30 jun. 2001.

Artigo publicado em Jornal: constando a identificação do autor: LEITE, F. Ovelhas nascem de ovários congelados. Folha de S. Paulo, São Paulo, 30 jun. 2001. Folha Ciência, p. 10. na ausência do nome do autor: DÓLAR tem alta de 0,52% e bolsa sobem 1,17%. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 30 jun. 2001. Caderno B, p. 13.

Documentos Eletrônicos:

Homepages: três exemplos abaixo: Mencionar os dados da obra-autor, título, órgão que disponibiliza, data, endereço eletrônico e data de acesso. ROSALEN, M.; GÓES, M. C. A informática na Educação infantil: possibilidades e equívocos. Comunicações, Piracicaba, n 2, nov. 2001. Disponível em: ‹ http:// www.unimep.br/fe/revcomunica/› Acesso em: 14 abr. 2001.

VASCONCELOS, J. L. M. Influência da nutrição sobre performance reprodutiva em gado leiteiro (energia, 2a. parte). Piracicaba. Agripoint, 2001. Apresenta textos sobre pecuária de leite no Brasil. Disponível em: < http://www. milkpoint.com.br> . Acesso em: 4 jun. 2001 DENNETT, D. The myth of double transduction. Disponível em . Acesso em 7 de jan. de 2001. Publicação com dados incompletos: Considerando a falta de um elemento a ser citado, e tendo-se a certeza deste dado, ele pode ser colocado entre colchetes. Pode-se utilizar também uma data aproximada.

1 - [ 1993?] – para data provável. 2 - [ ca. 1963] – para data aproximada. 3 - [ 196-] – para década certa. 4 - [ 19- -] para século certo. 5 - [19- -?] para século provável. 6 - []196-?] para década provável. 7 - [s.d.] – sem data. 8 - [S.l.] – sem local. 9 - [ s.n.] – sem nome de editor 10 - [S.n.t.] - sem local, sem editora e sem data. 11. Os artigos devem ser escritos em português, inglês ou espanhol, podendo, contudo, a critério da Comissão Científico-Editorial, serem aceitos trabalhos escritos em outros idiomas.

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 147 - 154 • jan. - dez. 2008 153 12. Os trabalhos devem ser digitados no editor de texto word, em espaço 1,5, corpo 12, em papel branco, não transparente e de um lado só da folha, com páginas numeradas. 13. As ilUStraçõeS (tabelas, gráficos, desenhos, mapas e fotografias) necessárias à compreensão do texto devem ser numeradas seqüencialmente com algarismos arábicos e apresentadas de modo a garantir uma boa qualidade de impressão. Precisam ter título conciso, grafados em letras minúsculas. (a) TABELAS: editadas em Word ou Excel, com formatação necessariamente de acordo com as dimensões da revista. Devem vir inseridas nos pontos exatos de suas apresentações ao longo do texto; não podem ser muito grandes e nem ter fios verticais para separar colunas; (b) FOTOGRAFIAS: com bom contraste e foco nítido, sendo fornecidas em arquivos em extensão “tif” ou “gif”; (c) GRÁFICOS e DESENHOS: incluídos nos locais exatos do texto. No caso de indicação para publicação, essas ilustrações precisarão ser enviadas em separado, necessariamente em arquivos de seus programas originais (p. ex., em Excel, CorelDraw, PhotoShop, PaintBrush etc.); (d) figuras, gráficos e mapas, caso sejam enviados para digitalização, devem ser preparados em tinta nanquim preta. As convenções precisam aparecer em sua área interna.

154 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 147 - 154 • jan. - dez. 2008 NOSSOS CONSULTORES OUR CONSULTANTES 2008

Ana Lúcia Horta Nogueira (USP/SP) Ana Maria Falcão de Aragão Sadalla (UnicamP/SP) Bruno Pucci (UnimeP/SP) César Donizetti Pereira Leite (UneSP/SP) Cleiton de Oliveira (UnimeP/SP) Cristina Broglia Feitosa de Lacerda (UFSCar/SP) Denise Meyrelles de Jesus (UfeS/ES) Ivone Martins de Oliveira (UfeS/ES) Josiane Maria de Souza (UnimeP/SP) Jung Mo Sung (UmeSP/SP) Lucia Helena Reily (UnicamP/SP) Márcio Danelon (UfU/MG) Maria Helena Melhado Stroili (FAM/SP) Maria Luísa Amorim Costa Bissoto (fSDB/SP) Marisa Varanda Teixeira Carpintéro (UnicamP /SP) Maura Maria Morais de Oliveira Bolfer – (iSeU/SP) Mônica de Carvalho Magalhães Kassar (UfmS/MS) Sandra Aparecida Riscal (UFSCar/SP) Sueli Mazzilli (UniSantoS/SP) Tânia Mara Vieira Sampaio (UcB/DF) Theresa Maria de Freitas Adrião (UneSP/SP) Valdemar Sguissardi (UnimeP/SP) Wildson Luiz Pereira dos Santos (UnB/DF)

COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 15 • n. 1/2 • p. 155 • jan. - dez. 2008 155 156