UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS FACULDADE DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA MESTRADO

CRISTIAN DE PAULA SALES MOREIRA JUNIOR

IMAGINANDO A CRISE: UMA INTERPRETAÇÃO DO GOVERNO COLLOR ATRAVÉS DE CHARGES PUBLICADAS NO JORNAL FOLHA DE SÃO PAULO (1990-1992)

GOIÂNIA, GO – Brasil 2021

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20/08/2021 SEI/UFG - 2258877 - Termo de Ciência e de Autorização (TECA) UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS FACULDADE DE HISTÓRIA TERMO DE CIÊNCIA E DE AUTORIZAÇÃO (TECA) PARA DISPONIBILIZAR VERSÕES ELETRÔNICAS DE TESES E DISSERTAÇÕES NA BIBLIOTECA DIGITAL DA UFG

Na qualidade de titular dos direitos de autor, autorizo a Universidade Federal de Goiás (UFG) a disponibilizar, gratuitamente, por meio da Biblioteca Digital de Teses e Dissertações (BDTD/UFG), regulamentada pela Resolução CEPEC nº 832/2007, sem ressarcimento dos direitos autorais, de acordo com a Lei 9.610/98, o documento conforme permissões assinaladas abaixo, para fins de leitura, impressão e/ou download, a tulo de divulgação da produção cien fica brasileira, a par r desta data. O conteúdo das Teses e Dissertações disponibilizado na BDTD/UFG é de responsabilidade exclusiva do autor. Ao encaminhar o produto final, o autor(a) e o(a) orientador(a) firmam o compromisso de que o trabalho não contém nenhuma violação de quaisquer direitos autorais ou outro direito de terceiros. 1. Iden ficação do material bibliográfico [ x ] Dissertação [ ] Tese

2. Nome completo do autor CRISTIAN DE PAULA SALES MOREIRA JUNIOR 3. Título do trabalho IMAGINANDO A CRISE: UMA INTERPRETAÇÃO DO GOVERNO COLLOR ATRAVÉS DE CHARGES PUBLICADAS NO JORNAL FOLHA DE SÃO PAULO (1990-1992) 4. Informações de acesso ao documento (este campo deve ser preenchido pelo orientador) Concorda com a liberação total do documento [ x ] SIM [ ] NÃO¹ [1] Neste caso o documento será embargado por até um ano a par r da data de defesa. Após esse período, a possível disponibilização ocorrerá apenas mediante: a) consulta ao(à) autor(a) e ao(à) orientador(a); b) novo Termo de Ciência e de Autorização (TECA) assinado e inserido no arquivo da tese ou dissertação. O documento não será disponibilizado durante o período de embargo. Casos de embargo: - Solicitação de registro de patente; - Submissão de ar go em revista cien fica;- Publicação como capítulo de livro; - Publicação da dissertação/tese em livro. Obs. Este termo deverá ser assinado no SEI pelo orientador e pelo autor.

Documento assinado eletronicamente por Ivan Lima Gomes , Professor do Magistério Superior , em 16/08/2021, às 13:13, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 6º, § 1º, do Decreto nº 8.539, de 8 d e outubro de 2015 .

Documento assinado eletronicamente por CRISTIAN DE PAULA SALES MOREIRA JUNIOR , Discente , em 17/08/2021, às 00:19, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 6º, § 1º, do Decreto nº 8.539, de 8 de outubro de 2015. Referência:

Processo nº 23070.039748/2021-15 SEI nº 2258877 A autencidade deste documento pode ser conferida no site hps://sei.uf g .br/sei/controlador_externo.php?acao=documento_conferir&id_or g ao_acesso_externo= 0 , informando o código verificador 2258877 e o código CRC 30 E236EC.

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CRISTIAN DE PAULA SALES MOREIRA JUNIOR

IMAGINANDO A CRISE: UMA INTERPRETAÇÃO DO GOVERNO COLLOR ATRAVÉS DE CHARGES PUBLICADAS NO JORNAL FOLHA DE SÃO PAULO (1990-1992)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em História da Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás (UFG), para obtenção do título de Mestre em História. Linha de Pesquisa: Ideias, saberes e escritas da (e na) História. Orientador: Prof. Dr. Ivan Lima Gomes.

GOIÂNIA, GO – Brasil 2021

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Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor, através do Programa de Geração Automática do Sistema de Bibliotecas da UFG.

Moreira Junior, Cristian de Paula Sales IMAGINANDO A CRISE [manuscrito] : UMA INTERPRETAÇÃO DO GOVERNO COLLOR ATRAVÉS DE CHARGES PUBLICADAS NO JORNAL FOLHA DE SÃO PAULO (1990-1992) / Cristian de Paula Sales Moreira Junior. - 2021. CXXXIV, 134 f.: il.

Orientador: Prof. Dr. Ivan Lima Gomes. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Goiás, Faculdade de História (FH), Programa de Pós-Graduação em História, Goiânia, 2021. Bibliografia.

1. Governo Collor. 2. História do Tempo Presente. 3. História da Imprensa. 4. História e Imagens. 5. Charges. I. Gomes, Ivan Lima, orient. II. Título.

CDU 94(81)”1889/...”

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20/08/2021 SEI/UFG - 2239942 - Ata de Defesa de Dissertação

UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS FACULDADE DE HISTÓRIA ATA DE DEFESA DE DISSERTAÇÃO Ata nº 041/2021 da sessão de Defesa de Dissertação de CRISTIAN DE PAULA SALES MOREIRA JUNIOR, que confere o título de Mestre(a) em História, na área de concentração em Culturas, Fronteiras e Identidades.

Ao/s vinte e nove de julho do ano de dois mil e vinte e um, a partir da(s) 14h00, via videoconferência, realizou-se a sessão pública de Defesa de Dissertação intitulada “IMAGINANDO A CRISE: UMA INTERPRETAÇÃO DO GOVERNO COLLOR ATRAVÉS DE CHARGES PUBLICADAS NO JORNAL FOLHA DE SÃO PAULO (1990-1992)”. Os trabalhos foram instalados pelo(a) Orientador(a), Professor(a) Doutor(a) Ivan Lima Gomes (PPGH/UFG) com a participação dos demais membros da Banca Examinadora: Professor(a) Doutor(a) Vinícius Aurélio Liebel (UFRJ), membro titular externo; Professor(a) Doutor(a) Yussef Daibert Salomão de Campos (PPGH/UFG), membro titular interno. Durante a arguição os membros da banca não fizeram sugestão de alteração do título do trabalho. A Banca Examinadora reuniu-se em sessão secreta a fim de concluir o julgamento da Dissertação, tendo sido(a) o(a) candidato(a) aprovado(a) pelos seus membros. Proclamados os resultados pelo(a) Professor(a) Doutor(a) Ivan Lima Gomes, Presidente da Banca Examinadora, foram encerrados os trabalhos e, para constar, lavrou-se a presente ata que é assinada pelos Membros da Banca Examinadora, ao(s) vinte e nove de julho do ano de dois mil e vinte e um.

Documento assinado eletronicamente por Jiani Fernando Langaro , Coordenador de Pós-graduação , em 29/07/2021, às 16:22, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 6º, § 1º, do Decreto nº 8.539, de 8 de outubro de 201 5 .

Documento assinado eletronicamente por Yussef Daibert Salomão De Campos , Professor do Magistério Superior , em 29/07/2021, às 17:40, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 6º, § 1º, do Decreto nº 8.539 , de 8 de outubro de 2015 .

Documento assinado eletronicamente por Ivan Lima Gomes , Professor do Magistério Superior , em 30/07/2021, às 06:27, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 6º, § 1º, do Decreto nº 8.539, de 8 d e outubro de 2015 .

A autencidade deste documento pode ser conferida no site hps://sei.uf g .br/sei/controlador_externo.php?acao=documento_conferir&id_or g ao_acesso_externo= 0 , informando o código verificador 2239942 e o código CRC E541457B .

Referência: Processo nº 23070.039748/2021-15 SEI nº 2239942

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Agradecimentos

Agradeço a D-S. Agradeço e reconheço o valor e importância da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) pela bolsa, imprescindível para mantimento e realização da pesquisa. Que este órgão resista, e continue formando pesquisadores cada vez mais capacitados para atuar em uma sociedade tão complexa! Expresso minha gratidão, também, ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Goiás por todo suporte e formação que me possibilitaram alcançar. Agradeço imensamente ao orientador desta dissertação, professor Dr. Ivan Lima Gomes, por ser um profissional exemplar, empenhado e dedicado na formação e ampliação das capacidades de seus alunos. Pela sensibilidade e paciência com as minhas dificuldades, pelo esforço para que eu fosse um pesquisador melhor, pela insistência para que eu entregasse um trabalho de qualidade. Por acreditar na minha capacidade e no projeto. Por me ensinar o verdadeiro valor das imagens para os estudos em História, e por ampliar minha própria visão de mundo. Dedico esta dissertação ao senhor, professor, com imenso respeito e gratidão. Que o senhor continue contribuindo para a formação de profissionais competentes e, desta forma, para a melhora de nossa comunidade. Aos membros da banca de qualificação e defesa, pelas instruções, correções e sugestões que foram de fundamental importância para a formatação deste trabalho: professor Dr. Roberto Abdala Júnior, que em muito contribui com a minha formação desde a graduação, e nesta dissertação não seria diferente; e o professor Dr. Vinícius Liebel, pela inspiração e pela atenção carinhosa que deu a este trabalho. Agradeço muito aos meus pais que, com muito amor, e suor, possibilitaram que eu chegasse até aqui. E muito afortunado sou, porque eles são quatro: Cristian e Alexsandra, meus progenitores; mas também, Juliana e Herberth, seus respectivos esposos. Todos eles se empenharam pela minha formação humana e profissional. Me permitiram pegar em livros e em um violão, fazendo de mim não só um homem leitor, mas um homem sensível. Aos meus irmãos Julya e Gabriel, aqueles que me motivam a lutar e ser uma pessoa melhor.

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A todos os meus outros familiares que participaram diretamente desta dissertação, contribuindo com recursos materiais e amor para que ela se concretizasse. Em especial à Tia Sineide, Evely e George, Wellington, Dona Eleuza e Sr. Lucemar. Não tinham qualquer obrigação comigo, e mesmo assim me acolheram e me possibilitaram ter recursos e tempo disponível para me dedicar aos estudos. À minha tia Neusa, e aos meus primos Flávio e Alexander. A minha companheira Patrícia, com quem compartilhei os altos e baixos do processo. Que esteve ao meu lado nas minhas ansiedades e inseguranças, que me aconselhou, me ouviu, me amou. Muito obrigado por tudo. Lhe dedico todas as linhas deste trabalho! Aos meus amigos, que participaram lendo, comentando, aconselhando sobre o trabalho. Em especial ao Rafael, e ao João Paulo. Aos professores que me acompanham desde a graduação, com carinho e amizade. Em especial ao David Maciel, ao Luiz Sérgio Duarte e ao Francesco Guerra.

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Vida Besta, Galvão Bertazzi.

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RESUMO

O objetivo deste estudo é uma leitura das representações de Fernando Collor e os processos que envolvem seu governo, de 1990 a 1992, nas, e a partir das, charges da Folha de São Paulo produzidas pelos cartunistas conhecidos como Glauco e Spacca. Tentamos identificar, neste recorte, a maneira como as charges são e atuam como documentos do processo histórico brasileiro, bem como geradoras da própria realidade política. Para isso se fez necessário refletir sobre a relação das charges com o contexto do período, com a imprensa e com a própria História. Assume-se aqui a prerrogativa de que a narrativa das charges é, de fato, uma produção simbólica da realidade, e não apenas uma tentativa de reproduzi-la. Um recurso fundamental para a mensagem das charges reside no humor. Na teoria freudiana do humor o riso opera como uma ferramenta liberalizante de emoções e sentimentos reprimidos. Uma espécie de válvula de escape psicológica que promove prazer justamente por romper com determinadas tensões de estresse emocionais causadas por situações sociais, relações afetivas, dentre outros

Palavras-chave: Governo Collor; História do Tempo Presente; História da Imprensa; História e Imagens; Charges.

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ABSTRACT

The aim of this study is a reading of Fernando Collor's representations and the processes involving his government, from 1990 to 1992, in and from the cartoons of Folha de S. Paulo produced by cartoonists known as Glauco and Spacca. We tried to identify, in this clipping, a way in which the loads are and act as documents of the Brazilian historical process, as well as generators of the political reality itself. For this, it was necessary to reflect on the relationship of rates with the context of the period, with the press and with History itself. Here, the prerogative is assumed that the narrative of the cartoons is, in fact, a symbolic production of reality, and not just an attempt to reproduce it. A key resource for the cartoon's message lies in humour. In Freud's theory of humor, laughter operates as a liberating tool for repressed emotions and feelings. A kind of psychological escape valve that promotes pleasure precisely by breaking with certain emotional stress tensions caused by social situations, affective relationships, among others

Key-words: Collor Government; History of the Present Time; Press History; History and Images; Cartoons.

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Sumário

Introdução...... 14 Sobre o problema...... 14 Sobre os campos de pesquisa...... 19 Imaginando uma crise neoliberal...... 21 Os cartunistas Glauco e Spacca...... 23 Organização e disposição do trabalho...... 25

Capítulo 01: Precedentes: A redemocratização pela produção de charges no Brasil do jornal O Pasquim e da revista Chiclete com Banana...... 27 1.1 O Pasquim abre as portas para uma imprensa crítica pós ditadura militar...... 27 1.2 Chiclete com Banana e o desencantamento com a Nova República...... 41

Capítulo 02: “Estado de choque”: da posse de Collor em março de 1990 à saída de Zélia Cardoso em maio de 1991...... 52 2.1 Que crise...... 56 2.1.1. O problema da economia na crise e o “estado de choque”...... 63 2.2 Neoliberalismo colorido...... 79 2.3 Conflitos com o Congresso e a crise de governabilidade...... 89

Capítulo 03: Rindo da crise: da saída de Zélia Cardoso ao início do processo de impeachment (1991-1992)...... 95 3.1 Zélia Cardoso e o universo masculino da política...... 100 3.2 A entrada de Marcílio Marques Moreira no Ministério da Economia...... 108 3.3 O início da derrocada...... 115

Conclusão: “a vaca foi probrejo!”...... 124

Referências Bibliográficas...... 130

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Lista de Imagens

Imagem 1: Aqui não! ...... 29 Imagem 2: Sem censura ...... 33 Imagem 3: Meu sonho mesmo era trabalhar no Lampião! ...... 36 Imagem 4: Primeiro número do jornal O Pasquim ...... 39 Imagem 5: Eu quero Mocotó! ...... 40 Imagem 6: Na frente sou liberal, já nas costas ...... 48 Imagem 7: Jornalistas ...... 53 Imagem 8: Férias antecipadas ...... 57 Imagem 9: Despachando ...... 59 Imagem 10: A ceia ...... 60 Imagem 11: Abacaxi ...... 62 Imagem 12: Estado de choque ...... 65 Imagem 13: Na fila do aperto de mão ...... 67 Imagem 14: Sob nova direção ...... 71 Imagem 15: Bonita camiseta, Fernandinho ...... 74 Imagem 16: Encoste na parede!...... 76 Imagem 17: Constituição ...... 78 Imagem 18: Aos pobres, NÃO! ...... 79 Imagem 19: Brasileiro mutante ...... 81 Imagem 20: Bolsa de valores ...... 83 Imagem 21: Good morning ...... 84 Imagem 22: Terceiro mundo ...... 85 Imagem 23: Só a CUT! ...... 86 Imagem 24: Próximo! ...... 88 Imagem 25 ...... 89 Imagem 26: Dança conforme a música ...... 90

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Imagem 27: Taffarel ...... 91 Imagem 28: Os 360 mil ...... 93 Imagem 29: Zélia Ministra ...... 95 Imagem 30: Previsões de Zélia ...... 97 Imagem 31: Zélia e Romeu ...... 98 Imagem 32: Cruzado ...... 99 Imagem 33: Apaixonado ...... 101 Imagem 34: Me faz um favor ...... 102 Imagem 35: Olha o passarinho! ...... 108 Imagem 36: Meta para inflação é ficção ...... 109 Imagem 37: Próxima estação ...... 110 Imagem 38: Soft ...... 112 Imagem 39: Soft ...... 113 Imagem 40: Relatório ...... 115 Imagem 41: Contra corrupção ...... 117 Imagem 42: Faixa presidencial ...... 118 Imagem 43: Quase lá! ...... 120 Imagem 44: Saideira ...... 122

Imagem 45: A vaca foi pro brejo! ...... 124 Imagem 46: Paintball ...... 125

Imagem 47: Desligado ...... 126

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Introdução

Sobre o problema: Até alguns anos atrás, as charges eram uma espécie de pontapé inicial para começar o dia. Nos dias de hoje, por causa de uma intuitiva diminuição das assinaturas de jornais físicos e adaptação dos veículos de informação em plataformas digitais sob a forma de websites ou blogs, bem como uma maior disseminação dos chamados “memes” na internet, esse hábito não é mais comum, embora a produção de charges prevaleça e ainda apresentem um rico material com uma forma até hoje inovadora de “captação” e atuação da e na realidade, principalmente política. Muitas pessoas, em um passado não muito distante – e talvez esse hábito permaneça até hoje –, antes mesmo de lerem as notícias veiculadas, pulavam para a página das charges. E talvez nem voltassem. Lembro-me de que, quando criança, mesmo sem entender os assuntos aos quais as charges se referiam, eu esperava meu pai terminar de ler o jornal, logo no café da manhã, para ver as charges. Talvez o intuito fosse mais observar os desenhos, os traços e uma ou outra ironia ou chiste. Muito raramente eu reconhecia um ou outro personagem, geralmente agentes políticos, retratado nas charges. Mas sempre reconhecia o Lula. Era divertido o ver, nos desenhos, com um aspecto “baixinho”, um nariz avantajado e a inconfundível barba. Surgia aí os primeiros interesses sobre as possibilidades das charges. Dito isto, o objetivo deste estudo é uma leitura das representações de Fernando Collor e os processos que envolvem seu governo, de 1990 a 1992, nas, e a partir das charges da Folha de São Paulo produzidas pelos cartunistas conhecidos como Glauco e Spacca. Tentamos identificar, neste recorte, a maneira como as charges são e atuam como documentos do processo histórico brasileiro. A narrativa se constrói tendo o diálogo, a todo momento, entre os elementos que se estabelecem como o tripé básico que orienta o trabalho de todo historiador: fontes históricas, historiografia e teoria histórica. As charges são apropriadas, aqui, como fontes históricas. Para isso se fez necessário refletir sobre a relação das charges com o contexto do período, com a imprensa e com a própria História. Ao se fazer uma análise historiográfica, percebe-se que a historiografia tradicional relegou às imagens uma posição de subalternidade em uma hierarquia das fontes históricas. Esta visão, no presente momento, está quase superada pelos historiadores, mas ainda exige avanços. Então, esta pesquisa se

14 apresenta como uma modesta contribuição a este problema, bem como de releitura do processo histórico de 1990 a 1992 tendo as charges como eixo orientador da análise. Sobre caricaturas em História, Motta (2006) tece reflexões interessantes. O livro “Jango e o golpe de 1964 na caricatura”, que utiliza as caricaturas como fontes primárias, possui como objetivo analisar a forma como Jango – e outras figuras importantes que o cercavam – foram representados nas caricaturas, refletindo sobre como elas podem contribuir para a compreensão do processo histórico, bem como a forma como os sujeitos históricos viram a crise, e como a imaginaram. Assim como é o nosso objetivo nesta dissertação, não é um livro que se propõe a discutir aspectos técnicos da produção das caricaturas, mas as ideias e os discursos propagados e representados por elas. Motta (2006) pontua ser somente no século XX que, por causa da grande procura e consumo pelas charges e caricaturas, elas foram incorporadas aos jornais de grande circulação, sendo publicadas em destaque e, às vezes, na primeira página, como forma de chamar a atenção e conquistar mais consumo. Como proposto anteriormente, existe uma relação dialética entre as charges e a imprensa que as veiculam. Com certeza, as caricaturas são instrumentos imagéticos para expressar o ponto de vista do jornal, posicionando-o no debate público. No entanto, o caricaturista ou o chargista estão, sem ter como escapar ao representar as situações políticas, apresentando também um posicionamento que lhes são próprios, individuais. Sua obra pode se apresentar como uma militância política, uma forma de intervenção na discussão pública. Isto é, um certo tipo de liberdade e autonomia certamente existe. Podemos, aqui, fazer um diálogo com o conceito de habitus normativo, conforme trabalhado por Liebel (2017, p. 84-85). O autor aponta que:

É nesse aspecto que uma História Cultural do Político vem a elevar os veículos de comunicação não apenas à condição de objetos privilegiados de análise por sua qualidade de formadores de opinião pública, mas principalmente de elementos característicos de grupos sociais e, enquanto tais, formadores de opinião pública, mas principalmente de elementos característicos de grupos sociais e, enquanto tais, formadores e difusores de representações e visões de mundo. Lida-se, assim, com valores, habitus e visões de mundo que acabam por refletir, mas também ajudam a formatar a cultura política

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de um grupo social ancorado diretamente a um conjunto de veículos de comunicação. O produto desses meios se torna, dessa forma, representativo de um segmento ou grupo social, o qual tem no jornal, revista ou programa um norte para se situar na lógica composta de sua própria realidade, mas que é, enquanto sua base de recepção (e de consumo), produtora da linha que guia sua mensagem1.

No caso específico analisado no livro de Patto de Sá Motta, as críticas satíricas direcionadas a figura pública do João Goulart, como presidente da República, não provocaram uma “resposta agressiva”, nem se poderia dizer que foram as responsáveis pela sua queda por golpe. Mesmo assim, acompanhadas dos textos jornalísticos e inseridas nesses jornais e periódicos, essas produções caricaturais e de charges contribuíram no sentido de produzir um retrato desfavorável ao governo. São verdadeiras crônicas políticas visuais, com sentidos abertos. Neste sentido, passaram a convergir, conforme se condensava a crise, para a dramatização da situação política, contribuindo para tornar o golpe uma ação justificável ou mesmo desejável para muitas forças e agentes sociais. Isto é, as caricaturas contribuíram no sentido de criar a realidade. Neste sentido, avançamos na proposta de entender as charges no âmbito da relação entre História e Imprensa. Assume-se aqui a prerrogativa de que a narrativa das charges é, de fato, uma produção simbólica da realidade, e não apenas uma tentativa de reproduzi-la. Tétu (1997) diz que o jornal faz acreditar não especificamente nos fatos veiculados pelas notícias e informações, mas em uma realidade produzida por ele. Também acreditamos que o jornal constrói o acontecimento (Véron, 1981). Há um tempo, muitas pessoas tinham o hábito de, nas primeiras horas do dia, olharem os jornais em busca das principais notícias do dia, o que incluía uma leitura sobre as charges. Poucas pessoas deixam de olhar as charges do dia. De certa forma, elas operam uma síntese visual de um acontecimento assumido como relevante tanto pelo cartunista quanto pela linha editorial do periódico

1 Em nota de rodapé, Liebel (2017, p. 112) também considera que: “Accardo (1995) fala de uma relação entre níveis estruturais (o mercado, o mercado de trabalho etc.) e um nível pessoal que se refere ao jornalista e seu background cultural e educacional. Ao analisar o trabalho profissional de jornalistas, o sociólogo aponta para um campo de tensão entre esses dois níveis de compreensão e experiências. É nessa tensão que existe o que se pode chamar de liberdade de produção desses profissionais. Tal liberdade, entretanto, está sempre vinculada ao habitus ligado à profissão, e esse habitus profissional acaba tendendo, de forma geral, à posição das grandes estruturas dirigentes". 16

Para entender a charge, no entanto, é necessário estar inserido no contexto em que ela atua e representa. Isto acontece porque as charges, apesar de sua aparente fácil compreensão, dependem de certas chaves de interpretação que apenas o contexto histórico, pode fornecer. E, apesar de possuir elementos em comum, é necessário destacar, também, que existem diferenças entre charges e caricaturas. As caricaturas se referem a apenas um indivíduo, representando de forma exagerada os traços estéticos mais marcantes do mesmo; enquanto as charges representam um contexto, uma situação política. Em outras palavras, há caricatura nas charges, mas não o inverso. Liebel (2005) propôs uma metodologia para análises de charge, que apresentaremos aqui em dois pontos. O primeiro deles se refere à percepção das características do meio no qual as charges são produzidas. A linha editorial dá ao historiador a noção de qual público as charges pretendem atingir. Um segundo ponto é relativo à composição da charge, levando especialmente em consideração o lugar onde a charge é ambientada, as mensagens e as expressões dos personagens. É necessária a caracterização dos personagens de forma a se reconhecê-los. Um recurso fundamental para a mensagem das charges reside no humor. Na teoria freudiana do humor, o psicanalista toma o riso como uma ferramenta liberalizante de emoções e sentimentos reprimidos. Uma espécie de válvula de escape psicológica que promove prazer justamente por romper com determinadas tensões de estresse emocionais causadas por situações sociais, relações afetivas, dentre outros. O autor conclui que

Podemos encontrar a veracidade das palavras de Bergson no fato da sociedade ser moldada por um imaginário que é influenciado pelos jornais e, também, pelas charges neles veiculadas. Assim como rir de uma ação de um indivíduo traz uma série de frustrações e recalques ao seu inconsciente e leva-o a tentar se modificar, o rir de um político, de uma ação ou de um agente de poder mina a autoridade que este exerce sobre a população e sobre o imaginário. Desta forma, ao estudar as charges estamos estudando características de toda uma sociedade, ou de um segmento dela, e o imaginário que a determina (LIEBEL, 2005, p. 7).

Sobre o humor e a imprensa, são importantes também os trabalhos de Elias Saliba, em que se destaca que “o humor é parte essencial da natureza humana” (SALIBA, 2017,

17 p.3). O autor visa afirmar a constituição de um campo de estudos que classifica como História Cultural do Humor. Saliba defende que:

O humor não é só um mecanismo da “boa saúde” ou técnica para produzir o riso, não faz parte da natureza das coisas e dos homens – embora assim ele nos seja quase sempre apresentado. Entre tantos outros, é um índice de como as sociedades se representam e um índice tanto mais significativo porque fortemente ligado às emoções (SALIBA, 2017, p. 9).

Além disso, é uma interação social que implica em uma reflexão sobre linguagem:

Durante a 1a. Guerra Mundial, a linguagem dos jornalistas (que nunca estiveram no front) forneceu os clichês por meio dos quais os soldados que voltavam da frente de batalha descreviam suas emoções. Noutros termos, a verbalização da experiência afetiva entra na composição da própria estrutura do vivido – e, neste caso, a tarefa do historiador se aparenta à do filólogo: é preciso reconhecer os diversos “estados da língua”, o estilo próprio pelo qual a experiência singular ou coletiva escolheu se expressar: é uma semântica histórica que deve se manter em alerta e, no caso de uma semântica das imagens, o alerta é ainda mais complexo (SALIBA, 2017, p. 18).

Reconhecemos que a linguagem, inclusive a visual, é elemento fundamental do processo. Em diálogo com Habermas, o autor afirma que a leitura e os impressos possibilitaram a formação de uma opinião pública que se projetou das esferas literárias para a esfera pública propriamente dita. Logo, a noção de leitura não se refere só a textos escritos e deve integrar as imagens, de modo que isso nos permite afirmar que as charges contribuem para uma politização na esfera pública. O autor faz a ressalva de que para essa compreensão das charges, é necessário estar inserido no contexto que ela representa empiricamente, ou mesmo a nível de estudos históricos. Ou seja, o conteúdo da charge, embora seja de fácil apreensão, é um conteúdo específico, de produção diária, o que exige que os seus leitores-observadores detenham as chaves para sua interpretação.

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Entendemos, a partir da proposição do autor, que a sociedade possui um imaginário2 que é moldado e influenciado por, entre outros agentes, jornais e as charges que neles estão. Rir de um político ou de uma situação política pode colocar em questão a autoridade que estes agentes exercem sobre a população e suas opiniões.

Sobre os campos de pesquisa:

Tendo em vista o que nos propomos estudar e o problema do qual partimos, os campos da História com os quais esta pesquisa dialoga são os da História e Imagem – com ênfase nas charges –, História da Imprensa e História do Tempo Presente. Passaremos para uma breve apresentação de como nossa pesquisa relaciona-se com estes campos. Existe, para a Isabel Lustosa (1989, 1998, p. 73-83), o elemento do humor desde os primórdios da imprensa brasileira. Ela aponta que, mesmo no século XIX, em jornais de orientação mais estritamente política, havia espaço para uma leitura humorística sobre uma dada situação ou sobre os políticos que a representavam. Destaca-se o ano de 1837, quando a revista ilustrada Lanterna Mágica publicou aquela que é tida como a primeira caricatura publicada num jornal brasileiro, de Araújo Porto Alegre. Outro nome de destaque é Angelo Agostini, com sua Revista Ilustrada (1876 - 1898). Nela, o artista representa, segundo Lustosa, uma inflexão no estilo do humor de imprensa no Brasil (LUSTOSA, 1998, p. 74). Além de ter fundado várias outras revistas, deixou seguidores que continuaram a trabalhar nos caminhos abertos por ele. No entanto, com o desenvolver do processo histórico, o humor permaneceu uma “alternativa contra a violência do regime” (LUSTOSA, 1998, p. 75) e, assim, uma linguagem consolidada na imprensa. Na virada do século XIX para o XX, nomes como Raul Pederneiras, Kalixto e J. Carlos passam a dotar a caricatura de um caráter mais autoral, na medida em que se evidencia a interpretação de cada autor sobre a situação política a partir da diferença nos

2 Categoria de análise das Ciências Humanas marcadamente desenvolvida com maior fôlego ao longo da década de 1960. Se expressa por mentalidades de longa duração, e pode ser compreendida como um conjunto de representações coletivas sobre o poder e seus detentores (BACKZO, 1985, p. 296-332). Foi por muito tempo relacionada às ideias de ilusão ou fantasia, como que oposto à razão ou racionalidade. No entanto, hoje já é compreendido que imaginação e razão são elementos de uma mesma natureza (ROCHA, 2016; MAGALHÃES, 2016, p. 92-110). 19 traços e no estilo de cada um. Um alvo privilegiado das críticas visuais foi o presidente Hermes da Fonseca, consagrado com chiste na imagem de “Dudu da urucubaca”. A partir do governo Vargas a situação muda um pouco. Este momento está associado ao desenvolvimento de novas tecnologias de imprensa que possibilitam um maior uso e disseminação de imagens, reduzindo o espaço das caricaturas e charges. Nesse período, apesar da violência contra comunistas e integralistas, presos políticos no geral, bem como pelo contexto da Revolução de 1930 que já em si violento, Vargas não protagonizou uma imagem negativa nas caricaturas. Porém, cabe ponderar que isso se deu, em grande medida, por uma questão de censura, na medida em que o Departamento de Imprensa e Propaganda censurava as produções na imprensa. Apesar disto, Lustosa destaca que o que mais chamava atenção nas poucas caricaturas que escaparam à censura sobre Vargas era o seu “continuísmo” ou o ímpeto de permanecer do poder (LUSTOSA, 1998, p. 80). Após o golpe de 1964, a produção de charges teve novamente que driblar os aparelhos de censura. Importante, na época, é O Pasquim, jornal carioca que reunia um grupo de jornalistas e caricaturistas que, com humor e irreverência, criticavam o regime militar e as elites brasileiras que se identificavam com ele. Importante, para nós também, é o fato de que este periódico viria a servir de referência a os chargistas cujas obras discutimos nesta dissertação. A partir deste breve panorama histórico sobre as charges no Brasil, constata-se que não se pode desvincular as charges da imprensa, onde elas estão inseridas e submetidas a um conselho editorial. Mas isto acontece também por que a interpretação das charges exige, geralmente, um conhecimento sobre fatos ocorridos na sociedade. Por isso, é importante que se fique atento às notícias e aos fatos veiculados no jornal em que as charges são publicadas. Eles objetivam o convencimento da população e a influência da opinião pública. Então, as charges induzem os leitores a lerem as outras notícias, não pelo consumo, mas pelo convencimento produzido a partir de uma forma de comunicação visual marcada pela síntese complexa de ideias. Concordamos com uma ideia central que atravessa livro “História e Imprensa: representações culturais e práticas de poder”, organizado por Lúcia Maria Neves, Marco Morel e Tânia M. Bessone (2006). Nesta obra, os autores defendem que veículos de imprensa não apenas refletem a realidade, numa espécie de anexo ou apêndice, isto é, um meio de transmissão das informações com os quais os verdadeiros fatos e acontecimentos não possuem nenhuma dependência; antes, constituem-se na própria realidade, como parte integrante dela, sendo determinada e determinante ao mesmo tempo.

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Mas o problema ganha contornos próprios quando o período histórico a investigar se insere no campo da História do Tempo Presente. É consagrada a leitura de Hegel de que “a coruja de minerva só levanta voo ao entardecer” (Hegel, 1820, Prefácio), querendo dizer que os especialistas, principalmente da História e da Filosofia, só podem definir um processo quando ele já se conclui. Como podemos fazer isto, então, se as consequências do processo histórico que nos propomos a estudar, aqui neste trabalho, parecem estar em movimento até hoje? Em entrevista recente, Henry Rousso destaca que a História do Tempo Presente se diferencia em relação aos demais recortes historiográficos no seguinte aspecto: enquanto os historiadores de épocas antigas têm de se projetar no período estudado, na tentativa de alcançar a maior verossimilhança dos fatos, fenômenos e processos, o historiador do tempo recente tem de fazer movimento inverso: tentar se afastar do seu próprio tempo, das testemunhas e dos sujeitos históricos que ele pesquisa (MULLER, IEGELSKI, 2019, p. 390). A História do Tempo Presente, tem como objetivo, segundo Rousso, destacar o caráter mutante de nossa relação com os fenômenos históricos ou políticos, bem como do passado, e, ao mesmo tempo, relativizar aquilo que aparece para as pessoas, no presente, como novo. Mas as consequências e limites para este entendimento nos marcos da História do Tempo Presente ainda está em movimento. Mas qual seria esta História em movimento que estamos nos propondo a estudar?

Imaginando uma crise neoliberal

Apesar de ter sido eleito com mais da metade dos votantes – cerca de 35 milhões de votos –, Fernando Collor de Mello foi perdendo prestígio popular e apoio da mídia. Pesaram sobre ele a acusação de corrupção, perdendo também a governabilidade, isto é, a capacidade de governar o país. Alguns autores destacam que o processo de impeachment do então presidente Collor é motivo de controvérsias (SALLUM, CASARÕES, 2011, p. 163). Eles levantam que muito pouca atenção o tema da corrupção havia conquistado entre os estudos acadêmicos que privilegiaram, por muito tempo, características pessoais do presidente ou características muito específicas de seu governo e das circunstâncias. Independentemente de tais controvérsias, o fato é que o contexto histórico em que as charges são produzidas na imprensa, e que elas mesmas evidenciam, é de crise.

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Assumimos, neste trabalho, que tal crise seja a de hegemonia burguesa, em conjunto com dissensões inter-burguesas no projeto neoliberal, o que gera a fragilidade da democracia recém-instalada (MARTUSCELLI, 2015). Os dois principais obstáculos à construção de uma hegemonia burguesa neoliberal foram: a instabilidade monetária, com índices de inflação muito altos; e o avanço da esquerda, principalmente Lula. Estes fatores são o tempo todo representados nas charges, bem como crises e polêmicas mais setoriais do governo, o que representa a recomposição da unidade das classes dominantes em novas bases. Em geral, desencadeia-se uma coalizão, tanto entre aparelhos de hegemonia vinculados a esquerda e a direita, quanto seus respectivos mecanismos de imprensa, que se baseou na insatisfação das diversas frações de classe com o governo Collor. Esta insatisfação é demonstrada de forma contraditória nas charges pois, superando uma primeira fase em que boa parte, se não as totalidades, destas charges publicadas na Folha de São Paulo, simpatizaram-se com a candidatura, este periódico passa, ao longo dos dois anos de mandato, a assumir uma posição diferente com vistas a fortalecer as pressões para sua retirada. É nosso pressuposto, para o desenvolvimento deste trabalho, que até a burguesia, representante do capital nacional, temia que a impopularidade já estabelecida no primeiro ano do governo se tornasse um descrédito do neoliberalismo, em um contexto em que o Brasil já era a décima economia do mundo. Esta coalizão, que incluía estes periódicos posicionados a favor do capital nacional, significa, basicamente, um montante de interesses divergentes unificados momentaneamente pela remoção do governo, mas com expectativas futuras bem diferentes. Era uma convergência momentânea, mas uma divergência orgânica. A luta pelo impeachment também poderia ser uma maneira de cada aparelho de hegemonia se qualificar politicamente para a sucessão de 1994, articulando apoio entre a mídia e a imprensa, por isso o papel fundamental assumido pelos jornais e suas produções de charge neste confronto político. O assunto em destaque nas discussões públicas consequentemente ocupa destaque nas charges. Assim, a aliança se desfez logo nos primeiros meses do governo Itamar, desencadeando uma crise de representação política e triunfando o projeto neoliberal.

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Os cartunistas Glauco e Spacca

Pires (2014) trabalha um panorama do humor gráfico brasileiro contemporâneo e discute suas transformações ao longo do tempo; a forma como a mídia digital potencializou determinados tipos de humor em detrimento de outros; a forma como esta produção é determinada ideologicamente, dentre outros fatores. O conteúdo de discurso do humor contemporâneo é tomado como parte integrante de uma estrutura política, social e cultural, que determina e é determinado por aquilo que enuncia. O humor gráfico produzido no Brasil durante a ditadura militar, segundo a autora, buscava não se amortizar pelo terror instaurado, mas resistir, se defender e expressar a liberdade que não existia em termos institucionais. Exemplo desta produção é o jornal O Pasquim, por onde passaram os chargistas Glauco e Spacca, e o tiveram como inspiração e escola de formação. A autora coloca como se, naquele período, os autores humorísticos não pensassem sua produção como um “esquecimento do sofrimento”, como proporia Adorno (1986), mas como uma intervenção na realidade política. Eles a entendiam como uma ação, como uma atitude política. E, neste sentido, uma ação ou atitude de luta, de resistência. Assim, a ironia, no humor gráfico que nos propomos a estudar, não atua apenas como uma estratégia, nem mesmo apenas como instrumento de subversão. A autora destaca que a ironia se coloca como uma forma de expor as contradições do discurso, do regime, do sistema, objetivando instigar reflexões sobre ele. Levantar dúvidas, desmistificá-los, relativizá-los. O Pasquim, que nasceu em 1969, pouco tempo após o Ato Institucional número 5, era um periódico alternativo com sede estabelecida na Zona Sul carioca. O jornal se firmou como resposta à intensificação da coerção e da censura pela ditadura militar, e uma crítica materializada da grande mídia e o papel que esta exercia durante o período. Serviu de espaço para diversos autores críticos ao regime, às suas propostas econômicas, e a repressão e violência. Este jornal é o que influencia, como herança histórica, ao fim da ditadura e início do processo de redemocratização, os artistas de charges que estão presentes nesta dissertação. A um, como influência e a outro como uma espécie de escola de formação. Essa herança histórica é de combate, crítica, luta política, discurso denunciatório e no esforço de atuação na realidade política representada. Tinha um discurso direcionado para um público “consciente de sua participação na sociedade burguesa”.

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Este periódico é considerado o ícone da imprensa alternativa nos anos da ditadura militar. Não se pode dizer que este periódico derrubou a ditadura, mas pelo menos a fez parecer ridícula, a desmoralizou perante os leitores. “O Pasquim foi o fenômeno mais original do jornalismo impresso nos anos de chumbo (...)” (ZIRALDO, 2010). É assim que o periódico é colocado na obra “Só doi quando eu rio. Treze anos daqueles tempos contados pelo humor de Ziraldo” de 2010. No entanto, esse periódico não era um todo hegemônico. Segundo Pires (2014) ao mesmo tempo em que servia para convergir interesses em comum, a saber o de se posicionar contra o regime, e, neste sentido, alguns discursos se assemelhavam e criavam uma certa identidade de valores, contribuiu também para que se acentuasse as diferenças. Esses conflitos atuaram no sentido de firmar uma diferença de identidade individual entre os autores que compunham o jornal. Cria-se ali cada um, seu estilo, marcas fundamentais, e discursos que lhes são próprios, e influenciam a próxima geração. Os cartuns e as charges eram o carro chefe d’O Pasquim. Atuavam como verdadeiras crônicas humorísticas do cotidiano. Pode-se dizer o mesmo das charges da Folha de São Paulo que nos propomos a estudar no período do Governo Collor. São uma síntese de arte, humor, opinião, contexto histórico-político. Reflete sobre o momento enquanto caminha com ele. E O Pasquim é um espaço comum na trajetória dos dois cartunistas que produziram as charges analisadas neste trabalho. O primeiro deles é Glauco Villas Boas, cartunista paranaense que iniciou carreira do Diário da Manhã, de Ribeirão Preto em 1976. Seus trabalhos não se limitaram apenas às charges e cartuns, fazendo parte do elenco de redatores da TV Pirata e de alguns quadros do programa infantil TV Colosso, ambos da Rede Globo. Chegou a desenvolver vinhetas para essa empresa de telecomunicação. Também era músico e tocava em bandas de rock. Em 1978 começou a publicar seus trabalhos de forma esporádica na Folha de São Paulo, e só em 1984 passou a publicar seu trabalho de forma regular no jornal. Possuía um humor que poderíamos classificar como ácido. Priorizava piadas rápidas, traços claros e limpos, colaborando de forma decisiva com este estilo para os cartuns brasileiros no período pós ditadura militar. Sua abordagem principal era o cotidiano e a degradação do ser humano, passando num determinado momento a se concentrar na discussão política.

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Foi brutalmente assassinado, com o filho, em 20103. Quando de sua morte, um dos diretores executivos da Folha chegou a dizer que Glauco “era um dos rostos da Folha contemporânea”4. Glauco também publicava, na década de 1980, em uma revista de estilo parecido com O Pasquim. A revista se chamava Chiclete com Banana, reunia uma nova geração de quadrinistas brasileiros, como , e Luiz Gê, e alinhava-se com o estilo bastante autoral, próximo a uma estética underground, de Glauco. “Glauco Vilas Boas foi descoberto ao mesmo tempo por Angeli e Laerte e, também, por ” (Santos, 2014, p. 280). O outro chargista presente nesta dissertação é João Spacca de Oliveira, que assinava suas charges como Spacca. O leitor poderá, ao longo da dissertação, observar como os traços são de estilos bem diferentes com os de Glauco. Cada chargista privilegia aspectos diferentes na sua produção, características que, possivelmente, os chama mais a atenção. Bem como os historiadores, na construção da narrativa histórica a partir da investigação das fontes, privilegiam aspectos diferentes de um mesmo objeto. Spacca nasceu em 1964, em São Paulo. Diferente de Glauco, começou sua carreira como ilustrador aos 15 anos de idade. Concluiu estudos de desenho e comunicação na FAAP em 1983 e estreou como cartunista n’O Pasquim em 1985. Neste mesmo ano, ganhou um concurso para novos talentos da Folha de São Paulo, para o qual passou a desenhar as charges políticas que são analisadas neste trabalho até 1995, tendo feito charges de Sarney à FHC. Colaborou com as revistas de HQ’s Níquel Náusea e Front, bem como atuou como ilustrador de livros. Em 2005 recebeu o prêmio de charge no Salão Internacional de Humor de Piracicaba.

Organização e disposição do trabalho:

Em relação às fontes, discutimos as charges publicadas no jornal Folha de São Paulo, porque este jornal, com uma postura crítica e de relativa liberdade para os produtores das charges, permite cobrir todo o período proposto devido à sua produção sistemática; de forma que, reforçada pela sua circulação nacional, já demanda uma

3 Sobre o balanço dos 10 anos de sua morte, verificar: https://blogs.oglobo.globo.com/blog-do- acervo/post/ha-dez-anos-o-cartunista-glauco-e-seu-filho-foram-mortos-por-jovem-que-dizia-ser-jesus- cristo.html. Acessado dia 28 de julho de 2020 às 14:09. 4 https://www1.folha.uol.com.br/multimidia/tvfolha/2010/03/706386-glauco-era-um-dos-rostos-da-folha- contemporanea-diz-editor-executivo-do-jornal.shtml 25 interpretação de fôlego. Também pelo intrigante posicionamento que o jornal assume neste período, tendo em vista que fora acusado, no passado, de colaborar com a ditadura militar. Parte-se da hipótese, além disto, de que as charges são uma espécie de conversa, ou diálogo, com o editorial. Dois chargistas são analisados de forma prioritária neste trabalho, Glauco e Spacca, porque a maioria absoluta das charges publicadas na Folha de São Paulo entre 1990 e 1992 são de autoria deles, com poucas exceções. Outros chargistas podem eventualmente aparecer, mas apenas para reforçar algum aspecto da análise. A dissertação está organizada em quatro capítulos, dispostos de forma cronológica com o período histórico proposto e em diálogo com os problemas levantados pela pesquisa. Tendo em vista constatarmos haver uma inflexão da postura do governo, as charges dialogaram com esta dinâmica política. Logo, as charges se tornam um recurso para acompanhar a crise do governo Collor a partir da mudança do Ministério da Economia de Zélia Cardoso de Melo para Marcílio Marques Moreira. São eles: Capítulo 1 – Precedentes: A redemocratização pela produção de charges no Brasil do jornal O Pasquim e da revista Chiclete com Banana. Aqui faremos um balanço historiográfico dos precedentes da produção de charges no Brasil no processo de redemocratização, elementos que dão origem ao recorte proposto nesta pesquisa, centrado no governo Collor, de 1990 a 1992. Capítulo 02 – “Estado de choque”: das eleições presidenciais de 1989 à saída de Zélia Cardoso em maio 1991. Aqui a narrativa do processo político de 1989 a 1991 a partir do que foi documentado pelas charges se intersecciona com categorias históricas imperativas para a compreensão do fenômeno em sua totalidade. Capítulo 3 – “Estilo soft”: da saída de Zélia em maio de 1991 ao início do processo de impeachment em agosto de 1992. Aqui demonstramos haver uma inflexão na postura do governo, e consequentemente das charges que dialogam com ele, para uma nova postura. Essa inflexão será analisada nas charges.

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Capítulo 01 – Precedentes: A redemocratização pela produção de charges no Brasil do jornal O Pasquim e da revista Chiclete com Banana.

Como já dito na introdução, este trabalho focará de forma prioritária em dois chargistas, Glauco e Spacca, tendo em vista que a maioria das charges publicadas na Folha de São Paulo entre 1990 e 1992 são de autoria deles, com poucas exceções. Outros chargistas podem eventualmente aparecer, principalmente neste capítulo, mas apenas para reforçar algum aspecto da análise. Ribeiro compreende as charges de Glauco e Spacca na Folha de São Paulo como uma “construção cultural entendida dentro de seu tempo” (2012, p. 71). Para isso, decorre-se de que leitor e autor tenham um código cultural comum, definidor de suas particularidades de interpretação, então o fator tempo é muito importante. Neste período, as críticas visuais, como d’O Pasquim e Chiclete com Banana se tornavam cada vez mais comuns e consumidas. Para compreender o momento histórico da produção das charges analisadas na Folha de São Paulo de 1990 a 1992, é necessário preceder em contexto mais amplo a situação das produções de charges no Brasil, com foco no Jornal O Pasquim e na revista Chiclete com Banana, devido ao vínculo com que os chargistas analisados, Glauco e Spacca, possuem com estes veículos, bem como à importância que estes veículos tiveram no Brasil Contemporâneo, abrindo possibilidades para críticas ao governo após um longo período de retração do espaço democrático. Neste sentido, passamos a uma discussão mais aprofundada sobre estes veículos e a importância deles para a produção de charges no Brasil do período que propomos.

1.1 O Pasquim abre as portas para uma imprensa crítica pós ditadura militar

O Pasquim foi criado no Rio de Janeiro em 1969. Inicialmente era um tablóide semanal. Segundo Nogueira (2018, p. 1), O Pasquim nasceu no dia da morte de Sérgio Porto, e substituiria o outro tablóide de humor publicado por ele, chamado A Carapuça Seus fundadores foram os jornalistas Tarso de Castro, Sérgio Cabral e Carlos Prósperi, e os cartunistas Claudius Ceccon e Sérgio Jaguaribe (apelidado de ). Tinham um posicionamento de defensor das ideias democráticas, atuando em duas frentes: contra a

27 ditadura militar e contra a ditadura dos costumes da sociedade burguesa carioca (Brasil, 2012, p. 160). Dentre os boêmios intelectuais e artistas que o compunham, Bruno Brasil (2012, p. 161), destaca que o jornal

(...) contava com Millôr Fernandes, Ziraldo, Jaguar, Tarso de Castro, Chico Buarque, Ivan Lessa, Paulo Francis, Vinícius de Moraes, Glauber Rocha, Odete Lara, Sérgio Cabral, Carlos Prósperi, Claudius, Henfil, Fortuna, Luiz Carlos Maciel (celebrado como o precursor da contracultura brasileira), Sérgio Augusto, Flávio Rangel, Cacá Diegues, Miguel Paiva, Carlos Leonam, entre outros, contou também com a participação indireta de figuras emblemáticas da vida carioca: Leila Diniz, Tom Jobim, Helô Pinheiro (a “Garota de Ipanema”, filha de um dos censores a quem O Pasquim tinha de se submeter), Elis Regina, Danuza e Nara Leão, entre outros. A informalidade característica do jornal, que nem por isso deixaria de carregar um teor crítico e politizado, era reflexo da profunda amizade entre seus colaboradores, que formaram o grupo apelidado pelo jornalista Carlos Leonam de “esquerda festiva” – uma nomenclatura que une as duas faces d’O Pasquim: a boemia e o engajamento esquerdista (BRASIL, 2012, p. 161).

A partir da presença destes colaboradores de esquerda, em um regime de redução do espaço democrático, Queiroz (2009) define O Pasquim como um jornal com linguagem política baseada no humor, sendo considerado de imprensa alternativa, com posicionamento de forte oposição à ditadura militar brasileira, principalmente no que diz respeito à crítica aos costumes. A ditadura militar brasileira rompeu as possibilidades de diálogo entre a sociedade civil e o Estado, principalmente a partir do Ato Institucional número 5 de 1968. A reação da esquerda era a de se organizar em seus mais variados espectros, desde os aparelhos de hegemonia que entendiam a necessidade de uma reforma institucionalizada, até os que defendiam uma luta armada. Neste sentido, o campo de resistência não estava organizado apenas em sentido revolucionário, mas, ao contrário, houve formas variadas de estratégias para defesa de uma ordem democrática nos campos da mídia, das organizações políticas e da imprensa.

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Cabe ressaltar que a Lei de Segurança Nacional, aprovada pela ditadura em setembro de 1969, impôs a chamada censura prévia aos meios de comunicação, além de tornar jornalistas, editores e proprietários passíveis de responsabilidade criminal. Jornais eram fechados, enquanto colaboradores eram perseguidos, presos e assassinados. A primeira edição d’O Pasquim havia sido anterior a isto, em 26 de junho de 1969. Isto é, o jornal já nasce em um ambiente de conjuntura hostil. Mesmo isso não deixava de ser motivo de pilhéria d’O Pasquim.

Imagem 15.

Mesmo sem flertar com a moça, não fazendo absolutamente nada, como que sem nem prestar atenção a ela, ou mesmo a ignorando, o personagem é repreendido previamente. A charge representa bem a articulação entre cotidiano e política proposta pela linha editorial d’O Pasquim, na medida em que transpõe as interdições impostas pelo regime ditatorial ao repertório dos relacionamentos entre homens e mulheres. De forma bem-humorada, o jornal sugere, portanto, uma interessante análise acerca dos eventuais

5 Disponível em: JAGUAR, AUGUSTO, SÉRGIO (Org). O melhor d’O Pasquim: antologia, vol. 01 (1969 - 1971). Rio de Janeiro: Desiderata, 2006, p. 211 29 impactos de regimes autoritários sobre a vida cotidiana. Trata-se de uma perspectiva que levanta questões, conforme apontou Michel de Certeau:

Se é verdade que por toda a parte se estende e se precisa a rede da “vigilância”, mais urgente ainda é descobrir como é que uma sociedade inteira não se reduz a ela: que procedimentos populares (também “minúsculos” e cotidianos) jogam com os mecanismos da disciplina e não se conformam com ela a não ser para alterá-los; enfim, que “maneiras de fazer” formam a contrapartida, do lado dos consumidores (ou “dominados”?) dos processos mudos que organizam a ordenação sócio-política (CERTEAU, 1998, p. 41).

Neste contexto de repressão, entra em cena O Pasquim, embora não tenha sido o único. Surgiram, neste período, mais de 150 veículos de imprensa de oposição intransigente ao regime que, por não pertencerem à grande mídia tradicional, são classificados como imprensa alternativa (Queiroz, 2009, p. 230). O surgimento de uma imprensa alternativa e combativa se deve à contração da discussão pública imposta pelo regime militar entre as décadas de 1960 e 1980. E com “alternativa”, Queiroz quer dizer:

De acordo com Bernardo Kucinski, a palavra alternativa possuía quatro significados essenciais: o de algo que não estava ligado a políticas dominantes; o de uma opção entre duas coisas reciprocamente excludentes; o de única saída para uma situação difícil e, finalmente, o do desejo que as gerações dos anos 1960 e 1970 tinham de protagonizarem as transformações sociais (QUEIROZ, 2009, p. 231).

Justamente destas forças sociais, com jornalistas e acadêmicos que não tinham espaço na grande mídia tradicional, é que surge a chamada imprensa alternativa. Esta falta de espaço se devia ao fato de que a imprensa tradicional, a chamada grande imprensa, tinha relações estreitas com a ditadura militar: às vezes em apoio, às vezes por cumplicidade, ou até mesmo por omissão (Queiroz, 2009, p. 231). Santos (2014, p. 264) levanta que:

Dois foram os principais antecedentes do Pasquim: a revista Pif Paf, de Millôr Fernandes e o jornal A Carapuça, que era editado por Sérgio

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Porto, mais conhecido como Stanislaw Ponte Preta. Com a morte de Porto, a editora Distribuidora Imprensa chamou Jaguar e Tarso de Castro para continuar o projeto, mas estes declinaram, oferecendo outro produto: um jornal de crítica de costumes chamado Pasquim.

Pelo formato tabloide, e por ser de imprensa alternativa, O Pasquim era parte do que ficou conhecido como imprensa nanica. Brasil (2012, p. 160) afirma que “nanica”, um apelido infantilizado, fazia referência ao posicionamento do periódico frente a imprensa tradicional: como uma criança rebelde, despojada, sem o linguajar dos “adultos”, isto é, da grande imprensa tradicional. O Pasquim pertenceria a um espectro da imprensa alternativa que não priorizava o discurso ideológico do marxismo tradicional e, portanto, era menos dogmático. Estes tiveram, também, um papel importante e que não deve ser menosprezado, principalmente pelas denúncias de tortura, bem como a discussão econômica e a problematização das tensões sociais. No entanto, a perspectiva d’O Pasquim era diferente. Estava mais voltado para uma crítica dos costumes e da relação de subalternidade do Brasil face aos Estados Unidos. Talvez pelo fato de que “tinham como referência o existencialismo de Jean-Paul Sartre, o anarquismo e as religiões orientais: hinduísmo e zen-budismo” (Queiroz, 2009, p. 232), e não apenas o marxismo tradicional. Denunciavam certo moralismo presente nas classes médias, abordando e enfrentando tabus, associando a transformação nos costumes ao questionamento mais amplo em torno das estruturas que alicerçam o poder estabelecido

Na verdade, os seus idealizadores e colaboradores, como destacou Bernardo Kucinski, haviam adotado o existencialismo mais como fuga instintiva do dogmatismo das esquerdas, e da própria realidade opressiva, do que como adesão a uma nova acepção de ser. Num Certo sentido, eles não chegavam a criticar a cultura estabelecida das esquerdas, mas não a adotavam mais como filosofia de vida. (NOGUEIRA, 2018, p. 9).

Neste sentido, “quando O Pasquim atacava de modo debochado a moral e os costumes estava, ao mesmo tempo, atacando quem os defendia: a ditadura” (Nogueira, 2018, p. 10) e, para viabilizar este projeto crítico, o humor foi adotado como linguagem

31 política. Para além de ser uma característica pessoal dos colaboradores, jornalistas e intelectuais, d’O Pasquim, se realizou numa linguagem de relação coletiva com o público. Uma das características mais importantes destes veículos de imprensa alternativa, dentre os quais O Pasquim se insere, é que, diferentemente dos grandes veículos de imprensa tradicional, como a Folha de São Paulo – já estabelecida no mercado pelo seu histórico pelo menos desde 1960, mas podendo ser ainda anterior, tendo em vista que este jornal surge da junção entre a Folha da Noite e Folha da Manhã, criados em 1921 – possuem um caráter não empresarial e, portanto, podendo ser considerado não hierarquizado no sentido capitalista-empresarial. Isto porque entendemos que micro hierarquias possam surgir, dentre as quais se colocam as relativas às relações de gênero, a serem discutidas mais à frente. Além disso, se comparado ao caráter de massa da grande imprensa tradicional, os jornais de imprensa alternativa tinham certo limite de alcance imposto como consequência do limite de tiragens, devido às dificuldades de editoração de um grande número de exemplares. Mesmo assim, O Pasquim se tornou o jornal alternativo de maior sucesso de vendas, chegando a vender mais de 200 mil exemplares (Queiroz, 2009, p. 232). Elementos chave da fórmula de sucesso d’O Pasquim eram os cartuns. Este periódico foi responsável por lançar no mercado editorial vários cartunistas que seguem carreira na imprensa brasileira até hoje, mesmo em grandes veículos da imprensa tradicional, como Glauco e Spacca, criadores das charges a serem analisadas ao longo desta dissertação. Petrini (2012) chega a defender a ideia de que a linguagem iconográfica d’O Pasquim capta uma espécie de zeitgeist da ditadura, além de conseguir driblar os obstáculos da censura impostos pelo próprio regime, fazendo discursos críticos. Esta linguagem iconográfica supera os limites impostos à liberdade de expressão, usando como ferramentas o humor e um elevado grau de informalidade. A repercussão foi tanta, que acabou por se tornar um marco do jornalismo no Brasil, também porque significou uma revolução na própria linguagem jornalística:

O semanário modificou a linguagem jornalística ao reproduzir na linguagem escrita, a linguagem oral, e isso acabou por influenciar a propaganda, como também transformando a linguagem coloquial. Fez uso de palavrões, os quais estavam disfarçados através de neologismos, que daí em diante poderiam ser falados, publicados e (re)interpretados. Como: pô, putzgrila, paca, entre outros. Para Rivaldo Chinem foi uma

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gargalhada só, de Ipanema para todo o Brasil. O Pasquim lançou vários neologismos como putzgrila, sifu, top-top, sacumé (Queiroz, 2009, p. 233).

Esta linguagem era, ao mesmo tempo, uma afronta à censura do regime e uma forma de driblar esta mesma censura. Isto reflete uma maior preocupação com a própria comunicação a que se pretende efetivar do que com a forma jornalístico-acadêmica e seus paradigmas estabelecidos, vistos como tradicionais e ultrapassados para dar conta dos dilemas dos jornalismos em tempos de ditadura.

Imagem 2. Número 300 do Jornal "O Pasquim", apreendido nas bancas pela Polícia6.

Na edição acima, são publicados cartuns que ocasionam processos judiciais a Millôr Fernandes e Ivan Lessa, pelo simples uso da palavra “porrada” (Brasil, 2012, p. 163). Neste sentido, o jornal torna-se um divisor de águas no jornalismo porque, a partir, dele, consolida-se uma oralização da linguagem jornalística que passa a ser incorporada pela imprensa brasileira. As gerações pós-pasquim assumiram este estilo despojado, em contraponto à linguagem jornalística tradicional, isto é, formal, para uma maior

6 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/06/lancado-ha-50-anos-pasquim- provocou-ditadura-e-costumes.shtml. Acessado dia 05 de maio de 2021 às 15:41. 33 abrangência do jornalismo, popularizando-o, fundamentalmente, seguindo o exemplo do sucesso editorial d’O Pasquim. Mesmo as entrevistas do jornal se destacavam por serem próximas de uma conversa informal, de botequim, com o grupo fazendo intervenções e aparecendo até mesmo expressões coloquiais na redação, transcritas de forma com que preservasse a oralidade No entanto, Queiroz (2009, p. 234) afirma que, mesmo com esta linguagem revolucionária que rompe com paradigmas não só do jornalismo tradicional, mas também dos costumes da classe média, os discursos ainda eram conservadores em relação às mulheres e aos homossexuais. Além disto, Soihet (2008, p. 42) chama a atenção para o reflorescimento do feminismo no Brasil no exato contexto da ditadura militar, isto é, nas décadas de 1960 e 1970, com as chamadas “políticas do corpo”. Este movimento atuava em duas frentes: contra o governo, que constrangia e reprimia qualquer organização da sociedade civil, e contra um espectro da própria esquerda que acreditava no dever de se afunilar os esforços contra as desigualdades de classe, unicamente, e contra o regime. A maioria, neste espectro, enxergava o feminismo como um movimento sem caráter de classe, quando não um movimento propriamente burguês. Essa mentalidade, segundo a autora, estava presente n’O Pasquim, entre os intelectuais de esquerda que o compunham. Isto porque, este movimento feminista tinha como pauta que as mulheres assumissem o poder sobre seus próprios corpos, passando por temas como aborto, prazer, contracepção. Assim, mesmo na esquerda, alguns setores entendiam o movimento feminista, em geral, como sectarizador do movimento de resistência ao regime como um todo. Para a autora, existia uma ideia de honra feminina em se manter virgem antes de casar-se, e fiel após o casamento. Enquanto aos homens, boêmios como a patota d’O Pasquim, era estimulado o livre exercício da atividade sexual. Então O Pasquim, além de criticar o regime, voltava suas críticas e humor, também, para este movimento feminista, não apresentando qualquer avanço nas reflexões sobre as relações estabelecidas historicamente entre os gêneros. Até mesmo "ridicularizava as militantes utilizando-se dos rótulos de ‘masculinizadas, feias, despeitadas’, quando não de ‘depravadas, promíscuas’, rótulos através dos quais tais articulistas conseguiam grande repercussão” (Soihet, 2008, p. 42). A autora depreende deste posicionamento certo tipo de temor pela perda do poder masculino nas relações estabelecidas com as mulheres, evidenciando um conservadorismo que, se tomado com o objetivo libertário do veículo, apresenta contradição. Mesmo tendo se tornado, na década de 1980, um movimento mais

34 consolidado, com manifestações e campanhas sobre a violência contra mulher e os abusos, estes estereótipos não foram superados, como veremos adiante, nas charges de Glauco e Spacca produzidas na Folha de São Paulo entre 1990 e 1992 a serem analisadas neste trabalho. Até mesmo um dos fundadores e principais integrantes d’O Pasquim, Ziraldo, foi motivo de polêmica quando, em 1980, publicou uma charge no jornal do Brasil, intitulada “O Piche”, em que satiriza um importante slogan do movimento feminista em que “nossos corpos nos pertencem” passam a ser “nossos corpos nus pertencem” (sobre a charge ver Soihet, (2008, p. 50). Um grupo se vingou pichando mensagens no muro de sua residência que o associavam ao caso do assassinato de Ângela Diniz, feminicídio que ocorreu em Armação de Búzios, 1976, e de forte repercussão à época. As pichações o associavam ao assassino da socialite: “Ziraldo, o Doca Street do humor”. O Pasquim, neste episódio, foi utilizado como uma plataforma para se defender, quando Ziraldo publica crônicas e charges respondendo ao ocorrido. Em uma delas, diz sobre os mentores da pichação que eram “duas mulheres feias e uma pessoa do sexo masculino ao volante...” (Soihet, 2008, p. 51). Em outra, refere-se ao suposto motorista do carro insinuando sua homossexualidade de forma depreciativa, na medida em que o motorista afirma que o seu “sonho mesmo era trabalhar no Lampião”, referência ao jornal O Lampião da Esquina, que circulou entre 1978 e 1981 e, assim como O Pasquim, se inseria no contexto da imprensa alternativa, tendo como alvo o público homossexual7.

7 Sobre o Lampião da Esquina, periódico que circulou no Brasil em um contexto histórico marcado pelo autoritarismo da ditadura militar, e a forma como produziu uma identidade política dentro da comunidade homossexual do período, ver: PINTO, R. P. N. Movimentos homossexuais e a constituição de identidades masculinas homonormativas nos trópicos: um estudo sobre o jornal Somos (1973-1976) e do jornal Lampião da Esquina (1978-1981). 2021. 149 f Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2021. 35

Imagem 38.

De um jeito ou de outro, fica clara a importância das imagens n’O Pasquim, sejam elas tiras, cartuns, caricaturas, charges, ou mesmo ilustrações que acompanhavam os textos:

Dessa maneira, podemos perceber que as imagens n’O Pasquim acabavam por melhor despistar a censura e a crítica. Através da linguagem metafórica, evitava o confronto direto, contudo, não menos eficaz, ou até mais eficaz que a crítica nua e crua. De acordo com o humorista Luís Fernando Veríssimo [...]há uma coisa curiosa: sempre o texto foi o alvo mais visado. Os censores pareciam achar o cartum uma

8 Disponível em: SOIHET, Rachel. Preconceitos nas charges de O Pasquim: mulheres e a luta pelo controle do corpo. Artcultura, 9(14), 2008, p. 50 36

coisa infantil e essa conotação tornava mais fácil fazer passar um cartum político do que um texto político. Finalizando esta ideia podemos citar Jaguar: se você faz uma figura, não falou nada, mas o desenhista consegue dar uma expressão que o sujeito é um calhorda. Uma Palavra é uma palavra (Queiroz, 2009, p. 245).

Além disso, existe n’O Pasquim um certo caráter de pessoalidade. Cada autor, de sua forma e com estilo que lhe é próprio, e mesmo tendo o humor como um fator em comum, marca sua passagem pelo jornal com individualidade, seja nos textos escritos ou visuais, isto é, os cartuns. O humor era uma forma de “se fazer entender”, diante da censura promovida pelo governo (Queiroz, 2009, p. 240). Esse humor não era disfarçado. Pelo contrário, era ácido, corrosivo, direto, variando entre elementos implícitos e explícitos por causa da censura. Queiroz (2009) aproxima o humor d’O Pasquim à perspectiva freudiana, já discutida, do que à proposta por Bakhtin. Isto porque os escritores e cartunistas são tomados como intelectuais que, na sua produção, apresentam uma interpretação dos comportamentos do ambiente a que se propõe criticar, isto é, não tomam o humor como uma espécie de riso coletivo em que sátiros e satirizados participam simbolicamente. Nos cartuns e nos textos, então, havia uma expressão humorística que variava o estilo de autor para autor. Por estes fatores, o jornal tinha a espontaneidade como seu fator chave. Sobre a relação entre O Pasquim e os cartunistas, aponta que

É interessante destacar que como imprensa alternativa, O Pasquim também abriu espaço para o diálogo com jovens cartunistas. Jaguar lembraria que quando o jornal foi lançado, só existia meia dúzia de desenhistas de humor no Brasil, a abertura para o surgimento dos novos estaria difícil e o mercado completamente fechado. Jaguar afirmou: nestes anos já lançamos dezenas de desenhistas, a maioria vive, ou sobrevive, profissionalmente do cartum (Queiroz, 2009, p. 235).

Neste sentido, o periódico surgiu sem contornos editoriais nítidos, sem mesmo a figura de um editor chefe por quem passam todos os artigos e cartuns do jornal. Bruno Brasil (2012, p. 161) trata este fenômeno como uma “estética de botequim”: seu conteúdo era definido por um grupo de amigos boêmios em bares da cidade, ao mesmo tempo em que exploravam e disseminavam esta mesma imagem. Sua equipe se autonomeava a

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“patota”. Braga (1991, p. 181-182) trabalha com a ideia de “patota” não como simplesmente uma equipe, mas uma comunidade9. Este fator rompe com certa visão de neutralidade formal, presente em veículos da imprensa tradicional como a Folha de São Paulo. Nesta perspectiva, se presa transparecer uma certa objetividade na construção narrativa da realidade através de uma linguagem mais ou menos padronizada. Isto não acontecia n’O Pasquim, segundo Queiroz (2009, se precisar citar, p. 237) devido à sua influência existencialista. Então, O Pasquim privilegiava, nas manchetes e nos cartuns, os nomes, fazendo com que fossem mais evidentes do que os próprios títulos dos artigos, por exemplo. Isso difere muito da perspectiva da grande imprensa tradicional. Se observarmos a Folha de São Paulo, ainda no período em que estudamos, de 1990 a 1992, o nome do escritor do artigo ou dos editoriais têm menos evidência do que os títulos:

9 Para mais sobre o assunto, citação completa: BRAGA, José Luiz. O Pasquim e os Anos 70: Mais Pra Epa que Pra Oba, Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1991, pp. 181-182. 38

Imagem 4. Primeiro número do jornal O Pasquim, de 26 de junho de 1969, que trazia entrevista com o colunista social Ibrahim Sued10.

Para Queiroz (2009, p. 237), isso se deve ao fato de uma pretensão de objetividade da informação, bem como de neutralidade. Como se pessoas diferentes, que tratam os assuntos mais ou menos da mesma forma, expressassem uma certa veracidade da narrativa. O Pasquim, então, não era nada objetivo. Talvez seja este um dos motivos de seu sucesso junto ao público.

Imagem 5. Ilustração que está no primeiro volume da coleção "O Pasquim - Antologia 1969- 1971".11

A imagem acima, publicada no número 72 d’O Pasquim, é emblemática. O estilo debochado e crítico ao regime do periódico trouxe consequentes retaliações. De ataques com bombas a prisões e processos judiciais. Nesta imagem é colocada, por Jaguar, um

10 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/06/lancado-ha-50-anos-pasquim- provocou-ditadura-e-costumes.shtml. Acessado dia 05 de maio de 2021 às 15:45.

11 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/06/lancado-ha-50-anos-pasquim- provocou-ditadura-e-costumes.shtml. Acessado dia 05 de maio de 2021 às 15:37. 39 balão de fala com a frase “Eu quero Mocotó” no quadro de Pedro Américo, “Independência ou Morte”, de 1888. Apesar de aparentemente simples, a imagem acabou rendendo a prisão de 11 integrantes do periódico. Havia ainda espaço para publicação de “opinião pública”, abrindo as portas do jornal para uma maior interatividade com os leitores, criando, assim, uma comunidade de sentido. Já nos anos 1980, década em que Spacca estreia como cartunista no próprio O Pasquim em 1985, e que surge a revista Chiclete com Banana, esta dinâmica inovadora do periódico da década de 70 se esgota. Houve, inclusive, uma apropriação do estilo d’O Pasquim pela imprensa industrial (Queiroz, 2009, p. 245), além do esgotamento do próprio pluralismo interno por questões políticas e profissionais e da perda relativa da liberdade devido à associação com a editora Codecri, que desloca um pouco o eixo do jornal para interesses comerciais. Existiam “divergências ideológicas que em algumas épocas tomaram conta da redação d’O Pasquim: alguns achavam melhor criticar a política nacional e internacional (como Millôr) e outros preferiam atacar as estruturas tradicionais e “caretas” da sociedade burguesa (Castro e Maciel)” (Brasil, 2012, p. 162). Neste momento, o jornal passa a se ocupar de discutir uma construção democrática, norteando as discussões públicas. Passa a existir, na sociedade, projetos diferentes de democracia. Os próprios cabeças do jornal estavam divididos: “No período das eleições de 1982, houve uma diversidade de falas e de dicções utilizadas pelos colaboradores d’O Pasquim na defesa de suas posições: Ziraldo – PMDB; Jaguar – PDT; Henfil– PT” (Queiroz, 2009, p. 246). Depois da vitória de Leonel Brizola para o governo do Estado do Rio de Janeiro, as disputas se acirram e Ziraldo, acompanhado de outros autores do jornal, saem. O jornal perdia uma das suas características fundamentais: a pluralidade. Para Bruno Brasil (2012, p. 163), há um alinhamento com o PDT e PMDB ocasionado pela necessidade de financiamento do jornal, eliminando a fórmula que rendeu tanto sucesso ao O Pasquim. O fato é que o periódico havia se transformado em um grande jornal, e por isso, passou a exibir direcionamentos políticos mais nítidos, e menos plurais. Isso se torna mais evidente a partir de 1988, quando o jornal é comprado por um empresário e jornalista, João Carlos Rabello, o que acaba dando contornos mais empresariais ao periódico. A própria periodicidade do jornal é alterada para melhor atender as necessidades de mercado, numa perspectiva de negócio (de semanalmente passa a quinzenalmente, mensalmente e depois há um retorno para publicações quinzenais).

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Em 1990, ano posterior à publicação número 1000 (1989), Collor aparece n’O Pasquim com bigode de Hitler, numa expressão de ódio. Isto é, mantinha, ainda assim, a sua característica republicana de satirizar personagens importantes da política e do poder. Porém, este período representa, para Queiroz, a perda da crítica social e política, passando a atuar “com um forte apelo sexual e um tom de deboche banal” (2009, p. 251). Não conseguindo se reciclar, o periódico teve sua última publicação em 1991.

1.2. Chiclete com Banana e o desencantamento com a Nova República

As histórias em quadrinhos, com a televisão e o cinema, são um dos meios de comunicação mais característicos do século XX (Vergueiro, 2003, p. 253), o chamado “século da imagem”. Lima (2013, p. 13) define HQ’s, bem como o cinema e a literatura, como um gênero, e as revistas as quais estão vinculadas como um suporte, bem como um livro ou uma televisão. Ao contrário do estereótipo de que as histórias em quadrinhos servem ao público infanto-juvenil, Vergueiro (2003) aponta para o fato de que os quadrinhos publicados nos jornais brasileiros, principalmente durante o período da ditadura militar, tinham como alvo o público adulto. Motivados pela conjuntura de restrição do espaço de discussão provocada pelo regime, os temas abordados por estes quadrinhos envolviam assuntos políticos, além de críticas que eram censuradas e perseguidas pelo governo. Com o fim da ditadura militar, e o início do processo de redemocratização do Brasil, os quadrinhos passaram a ocupar revistas especializadas, o que mudou um pouco seu formato e conteúdo. A Revista Chiclete com Banana se insere neste contexto de ampliação do consumo de histórias em quadrinhos, com uma temática que se volta para o livre comportamento em oposição aos costumes que resistiram ao fim da ditadura militar brasileira. Refletia o cotidiano da maior cidade brasileira nos anos 1980, bem como os sentimentos de uma juventude insatisfeita com os valores dominantes em sua sociedade. Segundo Lima (2013), podemos compreender as comunidades de sentido12 paulistanas da década de 1980 (Punks, góticos, darks, headbangers, dentre outros) a partir da análise das HQ’s da Revista Chiclete com Banana. A redemocratização do Brasil foi

12 O termo se refere, segundo o autor, a um grupo de indivíduos que compartilham um determinado conjunto de sentidos, signos e significados. Se refere aos “indivíduos adeptos de um determinado estilo de vida, que compartilham determinados interesses e se identificam a partir deles – participantes, ou não, dos grupos undergrounds que surgem durante a década de 1980 e 1990” (Lima, 2013, p 81). 41 um momento de intensa produção cultural, expressa no “cinema, música, televisão, história em quadrinhos como Chiclete com banana” (Krakhecke, 2008, p. 1). Uma das características importantes das mídias de comunicação em massa, das quais os quadrinhos fazem parte, é uma certa necessidade de adequar o conteúdo ao gosto do público, atendendo às condições de mercado. Uma outra abordagem pode sugerir que, na verdade, o gosto do público é que se faz moldar pela produção da indústria cultural. Acreditamos, no entanto, que as duas coisas acontecem simultaneamente, num processo dialético em que um determina e é, ao mesmo tempo, determinado pelo outro mutuamente. De qualquer forma, é possível que o conteúdo dos quadrinhos possua críticas sociais, utopias, moralismos, dentre outros fatores. Nesta perspectiva, os quadrinhos deixam de ser meramente uma mercadoria da indústria cultural e passam a ser, na verdade, uma expressão artística de interação mútua com o público que ultrapassa os limites da simples distração, ou do simples entretenimento. É o caso de quadrinhos como Pererê, de Ziraldo, por exemplo13, bem como Asterix, de Albert Uderzo, e a própria Chiclete com Banana. No período de redemocratização do Brasil fazem muito sucesso, entre os leitores brasileiros, as histórias em quadrinhos estadunidenses de super-heróis, ou mesmo as da Disney, por exemplo. No Brasil, então, surgem histórias em quadrinhos influenciadas pelo estilo underground dos EUA, que ganha força nos 1960, na esteira do movimento de contracultura que avança nesta década. Isto é, “a redemocratização possibilitou o surgimento de quadrinhos underground no Brasil”. (Krakhecke, 2008, p. 5). Chiclete com Banana acabou se tornando o maior título da época, mas não era o único. O conteúdo da revista é marcado por personagens que, satirizando determinados estereótipos, retratam, de forma irônica, o contexto cultural-comportamental, a conjuntura social, política e principalmente sexual do Brasil. Para Lima (2013, p. 67), mesmo que a rebeldia da revista significasse apenas um interesse mercadológico, e não necessariamente uma subversão social, é mais importante se atentar para o fato de existir um mercado que consumia as publicações, e portanto, na forma como a mensagem expressa na revista tinha a adesão do público-leitor. A continuidade da revista dependia, fundamentalmente, da vendagem, embora não se deva confundir necessidades do mercado com alterações de conteúdo. “Entender o contexto inflacionário, a desmilitarização e as forças políticas existentes no

13 Sobre isso, ver: GOMES, Ivan Lima. O Brasil imaginado em quadrinhos na revista Pererê (1960-1964) / Ivan Lima Gomes. – Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2009. 42 período é importante para compreendermos a juventude e suas expressões culturais” (Santos, 2014, p. 21). Neste sentido, a revista foi criada em 1985, na cidade de São Paulo, pelo cartunista Angeli. Seu nome já era bastante conhecido pelas suas tiras diárias que saíam na Folha de São Paulo desde 1975. Para Lima (2013, p. 11), este é o principal motivo para o sucesso da revista, que figurou entre as mais vendidas: a pessoa de Angeli, cartunista com trabalho reconhecido e com um público-leitor assíduo. Além dele, a revista contou com os cartunistas Laerte, Glauco e Toninho Mendes, e significou, também, um marco no mercado editorial pelo seu formato, estilo punk, bem como pelo tipo de humor com foco no regime militar e nos costumes. Assim como O Pasquim que, segundo Moraes (2016, p. 4), exerceu forte influência sobre os cartunistas individualmente, principalmente Angeli que havia vivido durante um curto período no Rio de Janeiro durante a juventude, e sobre a revista como um todo. Embora Biagi (2005, p. 14), afirme a revista como uma iniciativa individual de Angeli, apontando os outros artistas como colaboradores e enxergando, por isso, o individualismo como uma das marcas mais características da década de 1980 14, consideramos que o conteúdo da revista se coloque como uma produção coletiva da realidade. Apesar de as Histórias em Quadrinhos serem o carro chefe da revista, ela também contava com Colunas, foto-novelas, matérias, dentre outros. Nas montagens das fotonovelas apareciam atores conhecidos da grande massa, bem como o próprio Angeli, e geralmente estavam veiculando críticas aos costumes, à política ou à sexualidade. As colunas, também chamadas de “Coluna Social”, eram geralmente escritas por autores anônimos ou fictícios, com conteúdos diversos. (Lima, 2013, p. 57). Biagi (2005) trabalha com a ideia de que existe uma interação Revista/Imaginário da década de 1980 e Imaginário da década de 1980/Revista. Entende como Imaginário a definição de Castoriadis, ou seja

O imaginário não é a partir da imagem do espelho ou no olhar do outro. O próprio “espelho” e sua possibilidade, e o outro como espelho são antes obras do imaginário, que é a criação ex nihilo. (...) O imaginário de que falo não é imagem de. É criação incessante e essencialmente indeterminada (social-histórica e psíquica) de figuras/formas/imagens,

14 Biagi (2005, p. 17) também diz que a “história da revista Chiclete com Banana se confunde totalmente com a vida de seu criador, o cartunista Angeli”. 43

a partir das quais somente é possível falar-se de “alguma coisa”. Aquilo que denominamos “realidade” e “racionalidade” são seus produtos (CASTORIADIS, apud. BIAGI, 2005, p. 15).

Os imaginários, para Biagi (2005, p. 3), se manifestam através de representações. Nessa perspectiva, então, a Revista Chiclete com Banana surgiu de, e produziu, representações. Então, podemos perceber essas representações nos discursos da revista. Como afirma Backzo:

O imaginário social torna-se inteligível e comunicável através da produção de “discursos” nos quais e pelos quais se efetua a reunião das representações coletivas numa linguagem. Os Signos investidos pelo imaginário correspondem a outros tantos símbolos. É assim que os imaginários sociais assentam num simbolismo que é, simultaneamente, obra e instrumento (BACKZO, 1985, p. 298).

De qualquer forma, seu conteúdo era, principalmente, histórias em quadrinhos, nas quais os cartunistas deixavam referências do estilo de vida cotidiano na cidade de São Paulo, delimitando o espaço de suas críticas a um espaço propriamente urbano, típico da ideia de modernização da década de 1980. Moraes (2016) aponta para um ambiente de produção masculino representado nas HQs, destacando a importância das discussões sobre as relações de gênero atuantes neste espaço da sociedade. A produção era bimestral, publicando ao todo 24 volumes, e tendo o público adulto como alvo, e abordando temas do cotidiano paulista sob o plano de fundo da redemocratização do Brasil de 1985 a 1990. Por questões financeiras, e devido à falta de publicidade na revista, ela foi editada em formato que se faz associar à ideia de underground, em referência ao estilo de fanzines punk norte-americanas, sendo impressa em papel jornal e nas cores preto-e-branco. A imagem underground é reafirmada pela intencionalidade em tocar em temas polêmicos, como a liberdade sexual feminina, sexo, drogas, dentre outros (Lima, 2013, p. 50). O autor (2013, p. 65) define underground como um termo que se refere à mundos exclusivos, grupos particulares, comunidades de sentido, se definindo melhor pelo que não é: mídia mainstream. Não visavam o lucro, mas uma discussão pública que deslocasse revolução ao nível do indivíduo, polemizando com temas considerados tabus pela opinião

44 pública de classe média. Ainda assim, a revista foi um sucesso de vendas, sendo publicadas, em média, 120 mil exemplares por edição, distribuídos em todo o país (Moraes, 2016, p. 3). Lima (2013, p. 73), aponta que underground pode ser entendido também como uma espécie de contra-cultura, e não subcultura, porque mesmo que o underground se posicione como contraponto à uma cultura elitista, conservadora e tradicional, ele não é de forma alguma uma cultura inferior. As comunidades de sentido underground são mais uma parte da cultura do ocidente como um todo. Sob o termo underground, Santos (2014, p. 243) aponta que:

“O termo foi inventado pela imprensa norte-americana na segunda metade da década de 1960 para designar um novo conjunto de manifestações culturais que floresceram nos EUA e também na Europa. Este movimento era marcadamente juvenil, e tentava ditar novas regras em relação à cultura vigente no período. Na sua base estavam a contestação e a necessidade de forjar novos meios de pensar e agir, novas formas de encarar o mundo que estava por vir”.

Outro elemento importante, é a interpretação de que a utilização de papel off-set, papel jornal e impressão de baixa qualidade transmite uma certa intencionalidade de que a publicação se pareça underground, também pelo aspecto não organizado de sua diagramação, para, assim, se diferenciar das publicações "mainstreams" (Lima, 013, p. 51). No entanto, o autor faz um levantamento do preço médio das publicações da época, comparando a revista Chiclete com Banana com as revistas Veja e Cebolinha, chegando à conclusão de que o aspecto underground da revista se contrasta com o fato de não ser uma publicação necessariamente barata. Sobre o nome da revista, Biagi aponta que

O termo “Chiclete com Banana”, que daria o nome dos livros e, depois, da revista, de acordo com Angeli, surgiu: "Por Causa da música do Jackson do Pandeiro que fala da mistura de elementos norte-americanos (chiclete) com brasileiros (banana). Eu tenho muita influência dessa cultura: Robert Crumb, rock, hippie, mas faço um trabalho bem brasileiro” (BIAGI, 2005, p. 20).

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Moraes (2016, p. 3) aponta que a revista também tinha como fundamento deslocar o foco das críticas ao regime militar em si, embora elas apareçam, para uma crítica do cotidiano da cultura popular paulista. A autora acredita, aqui, que talvez este seja um dos fatores que o diferenciam d’O Pasquim, talvez pelo contexto de gradual abertura do regime. O processo de redemocratização do Brasil significava um momento totalmente novo para a imprensa. Moraes (2016, p. 5) aponta para o fato de que estes cartunistas testavam os limites da Nova República. Há um deslocamento da linguagem metafórica e com forte apelo a analogias, para uma linguagem “escrachada”, com apelo à nudez e palavrões, reafirmando o espaço aberto pelo O Pasquim e outros veículos de imprensa alternativa. Silva (2013, p. 2) destaca que a revista Chiclete com Banana constrói uma imagem do processo de redemocratização do Brasil que, diferente da patota d’O Pasquim, se ateve a uma análise do comportamento. Neste sentido, constrói também o próprio processo político. Quer dizer, fruto do próprio contexto de ampliação de certas liberdades políticas do regime militar, a conjuntura de redemocratização do Brasil, a revista ainda possuía um engajamento fruto de uma oposição ao regime, que foram características da década anterior, mas deixando um pouco de lado o maniqueísmo entre dominantes e dominados, e explorando, mais profundamente, comportamentos. “A sociedade brasileira estava em mutação por conta da nova conjuntura” (Santos, 2014, p. 16), e a revista fez parte desta mutação. Porém, “dentro do âmbito das HQ's existe uma consolidação de um público fiel e especializado, e este é comumente conhecido por ser majoritariamente masculino. A Circo Editorial não é exceção, o ambiente de produção é ocupado somente por homens, com ressalva da quadrinista Ciça que tem um livro publicado pela editora” (Moraes, 2016, p. 5). Exemplo da complexidade das questões de gênero na época é o encontro de dois personagens da revista, em 1986, Bibelô, um “machão” à moda antiga, e Mara Tara, uma mulher com sexualidade aflorada, ninfomaníaca, analisada em Moraes (2016). A autora aponta que a intenção de Angeli era ridicularizar o personagem Bibelô, mostrando como sua masculinidade era, na verdade, uma performance. Mas, com isso, acaba por reforçar estereótipos relacionados à mulher. “Em nenhum momento Bibelô é questionado sobre seu corpo masculino, sobre o desejo ou sexualidade heterossexual, nem em seu gênero (“mostrado” no seu modo de se comportar). Sua masculinidade é balançada pelo fato de

46 a mulher não ter papel passivo nessa história” (Moraes, 2016, p. 13). Isto é, há um desconforto quanto ao papel ativo das mulheres. Mesmo assim, o processo de redemocratização do Brasil, contexto em que surge a revista Chiclete com Banana, significava, para Silva (2013, p. 3), uma expectativa de esperança quanto aos rumos que o país tomava. Quer dizer que, de alguma forma, predominava certo otimismo ocasionado pelas movimentações por eleições diretas para presidente na sociedade civil. Embora este movimento tenha mobilizado amplos setores da sociedade civil, articulados por grupos políticos, artistas e intelectuais vinculados à esquerda, a chamada Nova República foi colocada em questão com “ares de velha” (Silva, 2013, p. 4), isto é, autocraticamente. As eleições presidenciais foram articuladas indiretamente pelo parlamento brasileiro. Essa mobilização de massa, ocorrida de janeiro a abril de 1984, abre o cenário em que entra em cena a revista Chiclete com Banana, fundada em 1985. A revista vai expressar as insatisfações com a Nova República. “A chamada Nova República, para inúmeras áreas da sociedade, mostrou-se uma esperança vã, e a frustração, se não foi imediata, veio muito rápido” (Santos, 2014, p. 17). Aliás, para eles os resquícios da ditadura ainda não tinham deixado de existir, pois a Nova República ainda não tinha se efetivado (Silva, 2013, p. 07):

Imagem 6. Chiclete com Banana n. 2. Circo Editorial. Dezembro de 1985, p. 2 (SILVA, 2013)

Como afirma Silva, a charge trata

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de uma narrativa visual em um quadro composto, pois o mesmo é dividido em dois, para expressar uma ideia de movimento da cena e assim tornar possível a transmissão da mensagem. Na primeira parte do quadro podemos observar um homem com vestimentas que normalmente nos recorda um político, a categoria a qual pertence é reforçada pelo seu discurso “Na frente sou liberal!”, e pela frase explicativa, a tal previsão, abaixo do desenho “Na política, sentiremos o sabor da mistura de alhos com bugalhos.” No segundo quadro observamos o mesmo homem, agora de costas, no balão está escrito a continuação da sentença iniciada no quadro anterior “...já nas costas...”, e nas mãos dele um cassetete, oculto aos que o observam pela frente. A ironia presente no quadro está justamente na oposição entre a palavra liberal, adquirindo no caso um duplo sentido, tanto daquele que tem opiniões flexíveis como numa referência ao PFL, criado por Sarney, e que entra em oposição ao quadro seguinte revelando os resquícios da origem autoritária deste agora auto anunciado liberal, representado por um dos símbolos da violência do Regime Militar, o cassetete, usado tanto na repressão aos movimentos públicos contra a Ditadura como nos espancamentos e em sessões de tortura sofridas pelos opositores do regime, principalmente no período conhecido como ‘os anos de chumbo’ (Governo Médici – 1969/1974) (SILVA, 2013, p. 7).

Para Krakhecke (2008, p. 7), a revista Chiclete com Banana expressa um estado generalizado de apatia pelo descrédito do processo de redemocratização.

Com uma linguagem absolutamente informal e muitas vezes apelativa, a revista se vale do fim da censura para tocar os mais diversos temas sem nenhum tipo de pudor, chegando mesmo a se aproximar da pornografia, mas com o objetivo claro de chamar a atenção do leitor para problemas sócio-políticos da época (Krakhecke, 2008, p. 8).

Já para Biagi (2005, p. 4) o processo de redemocratização do Brasil foi marcado, dentre outros fatores, pela delineação da pós-modernidade do Brasil. Neste sentido, para o autor, não é possível analisar a revista Chiclete com Banana sem uma discussão sobre o pós-moderno, entendido como pós-industrial. Isto é, um fenômeno marcado pela saturação de informações, além da constante intervenção dos meios de comunicação de

48 massa na vida social das pessoas, a partir da década de 1950 com a computação, e da década de 1960 com a Arte Pop, entrando na filosofia como uma crítica a cultura ocidental na década de 1970. Para o autor,

os elementos típicos da sociedade pós-moderna são: alta tecnologia: (satélite, antena parabólica, fax, telefone, etc.) aparelhos que possibilitam divulgar, armazenar, copiar, captar e produzir elevado número de informações, “facultando a cada indivíduo uma atuação mais ampla do que a de mero receptor: pode se tornar emissor, criar novos códigos e interferir na mensagem”; velocidade: a tecnologia não apenas aumenta a quantidade de informação, mas também a rapidez como ela é veiculada - assim como também sua obsolescência; consumismo e hedonismo: o indivíduo procura destacar-se como personalidade única, até desesperadamente, na sociedade de massa, e o consumo passa a ser, então, o espaço da diferenciação. Essa compulsão consumista gera o'fenômeno do hedonismo, do individualismo exacerbado;niilismo: com tanta informação e discussão, não existem mais temas relevantes; pastiche: sem originalidade, a cultura pós-moderna procura retrabalhar velhos temas, dar nova roupagem a antigos produtos, misturar estilos (pastiche), fazer citações, olhar com saudosismo (nostalgia - podemos observar uma certa insistência dos jovens em recuperar valores e personagens das décadas passadas, como Elvis Presley, Beatles,Jimi Hendrix, Anos 70, etc); simulacro: já que a realidade não corresponde aos desejos do indivíduo, os meios de comunicação oferecem um substituto melhor, ou seja, a fantasia, mas produzida de maneira cada vez mais sofisticada: publicidade, TV, cinema e vídeo- game criam uma hiper-realidade, onde o consumidor se sente mais confortável, seguro ou feliz, e as mercadorias oferecem mais do que seu próprio valor de uso,satisfazendo desejos de status, de riqueza ou prazer (essa abstração, simulação da realidade, corresponde o simulacro);multimídia: relação interligada dos meios de comunicação (2005, p. 6).

A revista é, então, uma representação do pós-moderno, mesmo que Angeli, em seus quadrinhos, demonstre uma tendência a criticar a própria pós-modernidade com

49 humor corrosivo através de alguns personagens estereotipados. Entendemos que, obviamente, ela não apresenta todos estes elementos de forma simultânea, mas como a maior destes pontos ficou em evidência no Brasil na década de 1980, eles não puderam escapar das críticas, com humor corrosivo, da revista. A própria personalidade de Angeli influenciou o estilo da revista, sendo ela formada com elementos da contracultura e do Punk. Uma das características mais recorrentes da imprensa alternativa eram as críticas ao regime. Mas a revista Chiclete com Banana, embora apresentasse certas críticas, não fazia de forma sistemática ou recorrente. Talvez pelo fato de que, embora a imprensa alternativa tenha surgido no Brasil em um regime fechado e com tendência à censura, quando nasce a revista Chiclete com Banana, em 1985, o sistema político se encontra em processo de abertura. Neste sentido, a grande imprensa já poderia criticar o governo com mais liberdade. Não por coincidência, a imprensa alternativa começa a desaparecer ou entrar em processo de decadência neste momento (Biagi, 2005, p. 15). As críticas, entretanto, quando surgiam não se limitavam apenas à direita. De forma geral, o personagem Meiaoito da revista era utilizado para criticar aspectos das esquerdas. A revista também não poupava críticas ao próprio movimento de contracultura. Por estes fatores, embora não exibisse uma linha política bem definida, a revista parecia ter uma tendência ligada ao anarquismo, aproximando-se de um niilismo e ao minimalismo formal desenvolvidos na década de 1970 no movimento Punk, representados recorrentemente no personagem Bob Cuspe (Biagi, 2005, p. 15).

Bob Cuspe, por sua vez, representa a cidade, representa o caos e a imprevisibilidade existente em uma metrópole com trânsito denso, arranha-céus ameaçadores e pessoas invisíveis. Bob Cuspe é uma dessas pessoas que, até travar contato com as demais, é invisível. A diferença é que Cuspe quer ser invisível, quer desaparecer, ao mesmo tempo em que quer provocar, intimidar e fazer valer sua liberdade punk (Santos, 2014, p. 300).

Outra característica importante que a difere do restante da imprensa alternativa é que a revista não apresentava um projeto político. Simplesmente representava críticas a tudo e a todos, da forma mais livre possível. E, “ao mesmo tempo que representava, criava representações, pois seus leitores incorporaram esta fragmentação” (Biagi, 2005, p. 17).

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O sucesso da revista Chiclete com Banana estimulou a Circo Editorial, pequena editora que havia abraçado o projeto, a criar outras publicações. É o caso da revista Circo, que apresentava histórias de seus colaboradores. Glauco também estreou sua própria revista, chamada Geraldão. Levando-se em consideração o tamanho da empresa e as dificuldades de divulgação e distribuição de seu conteúdo, o sucesso comercial da revista fica ainda maior. Já o número 12 contou com 100 mil exemplares e o anúncio de publicidade de uma grande empresa de Jeans, a Levi’s. A derrocada da revista, em torno das publicações 19 ou 20, deve-se, nas palavras de Angeli (apud Biagi, 2005, p. 26), ao Plano Collor. O plano traria danos aos produtores que, com os congelamentos perderam muitos ativos enquanto aumentavam os custos operacionais, como o preço do papel, por exemplo. A isso se soma a inflação que diminui o poder de compra da população, momento em que a revista passa a ter tiragens de apenas 9 mil exemplares.

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Capítulo 02 – “Estado de choque”: da posse de Collor em março 1990 à saída de Zélia Cardoso em maio 1991.

Os ditadores temem mais o riso do que as bombas. (KOESTLER,1992, s/p.).

Para compreender a figura de Collor durante seu mandato presidencial, é preciso retroceder um pouco para uma noção mais ampla das continuidades históricas que o acompanham. As eleições presidenciais do ano de 1989, mesmo ano em que a charge abaixo foi produzida, não foram nada simples. O Brasil vivia uma grande crise que se prolongou até o governo de Collor. Em termos gerais, alguns autores colocam que havia uma polarização ideológica na sociedade civil e no Estado. Para Ribeiro (2012, p. 75) os chargistas tiveram relativa liberdade para expressar os fatos da campanha de 1989. Criticavam vários candidatos, de todos os partidos. Essa postura corrobora com uma certa imagem de imparcialidade com que os editoriais do jornal tratavam a campanha:

Imagem 7.15

15 Disponível no acervo da Folha de São Paulo do dia 01 de dezembro de 1989: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=11923&anchor=4796355&origem=busca&pd=5d5effa0be7 d0e73e5c4cb52c8f67cf2. Acessado dia 20 de julho de 2020 às 15:40.

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As charges publicadas na Folha de São Paulo, neste período de 1990 a 1992, caracterizam esta polarização, o que marca historicamente a linha do jornal no pós- ditadura: tenta afirmar uma posição de si mesma como neutra, democrática. Uma semelhança importante, retratada na charge, é o comportamento de ambos os lados frente aos jornalistas. Sob a pena de Glauco, eles aparecem como tendo a mesma reação. Interessante observar que caricatura, geralmente, é a representação de um único indivíduo, traçado de forma exagerada, com suas características fortes mais evidenciadas, tornando-o engraçado, objeto de riso. Neste sentido, há caricaturas nas charges, mas não há charges nas caricaturas. Isto porque a charge se “utiliza de a caricatura para melhor representar seu real foco de pilhéria, qual seja, uma situação política” (LIEBEL, 2005, p.2). Na charge apontada, por exemplo e ao contrário da caricatura pura e simples, existe contexto e fala. Por isso, as charges exigem do seu leitor-observador uma relativa consciência prévia de uma situação política, um contexto histórico ou mesmo dos personagens retratados. Ainda hoje é possível reconhecer os elementos de que se tratam esta especificidade, mas já na época em que foi publicada pode-se perceber nitidamente, pelas caricaturas, que se trata de Fernando Collor e Luiz Inácio Lula da Silva, os dois principais candidatos à Presidência da República nas eleições de 1989. As charges, a princípio, caminham no sentindo de não haver alternativa além dos dois que personagens que nela aparecem. Apesar de algumas similaridades, como a reação diante do jornalista, o resultado que estes dois políticos provocam são diferentes, como outras charges do período apontam. Tal polarização, presente nas charges da Folha, tem origem com o fracasso do projeto político e econômico da redemocratização com José Sarney. Dela, saíram as forças antagônicas do processo eleitoral de 1989. Eram forças muito diferentes entre si, mas com certa convergência momentânea em meio a uma divergência orgânica: a imagem de “outsiders” em contraposição a José Sarney, como bem nos aponta Aberto Tosi (200) em livro clássico sobre o período. O autor coloca como se essa polarização se projetasse na sociedade civil como uma forma de dividi-la ao meio. Neste aspecto, a imprensa e, então, a Folha de São Paulo, assume este papel fundamental. O jornalista, como uma barata, é inofensivo, mas sua presença desperta reação de espanto, de incômodo. Na charge também aparecem Collor, facilmente identificado pelo cabelo e nariz; e Lula, também facilmente identificado pelo seu estereótipo da época, a

53 barba, mas também pelo nariz e cabelo. Os personagens são, também, identificados pelo próprio contexto histórico da realidade política em que a charge é produzida. A charge conta com ainda com alguns elementos que demonstram uma certa ruptura. Em primeiro lugar, uma bancada, elemento de novidade no contexto político da época, isto é, representante de um debate televisivo entre os candidatos a presidente da República, algo inédito na nossa história até então. Além disso, há uma câmera, dialoga com a situação de o debate estar sendo televisionado. Em um contexto de primeira eleição democrática depois de um longo período de ditadura, a escolha do artista em realizar justamente uma charge sobre isto é muito importante. A partir desta cena, entendemos que essas eleições representaram, na época, a conclusão de uma mudança de regime excessivamente longa, a saber a redemocratização, como ficou consagrado o processo. Com o fim da ditadura militar, o governo José Sarney seria entendido, mas não formalmente, como espécie de governo transitório. O marketing político que se consolidou em torno da candidatura de Collor era de guerra, de estar sempre lutando contra algo. Lutando contra a velha política, contra o funcionalismo público de altos salários (os chamados marajás), contra a corrupção. Enfim, contra o sistema, contra a imoralidade. Foi um fator de condensação do apoio popular em torno do candidato (TOSI, 2000). Este poder de atração carismática de Collor, juntamente com as limitações da institucionalidade democrática recém-instalada significava dificuldades para a esquerda (que tinha como principais expoentes Lula e Brizola), e talvez a explicação para sua derrota e desmobilização ao longo do governo e das próximas sucessões presidenciais. As charges caminham no sentido de satirizar esta “atração carismática”. Interessante que Alberto Tosi (2000) aponta até que, no início, Lula e Brizola começaram a campanha como favoritos, à frente dos outros candidatos. Juntamente com Collor, pautaram suas campanhas contra a corrupção política, tema recorrente nas charges ao longo do período. Acrescenta-se que, segundo Tosi (2000) o PT estava relativamente desgastado por causa da administração que vinha acontecendo em algumas prefeituras conquistadas nas eleições municipais de 1988. Notadamente em São Paulo, com Luiza Erundina; em Porto Alegre com Olívio Dutra; em Vitória, com Vítor Buaiz; em São Bernardo do Campo, com Maurício Soares; em Campinas, com Jacó Bittar; em Santos, com Telma de Souza; e em Santo André, com Celso Daniel. Além disso, outro fator de desarticulação da candidatura e Lula em 1989 foi a mobilização grevista no mesmo ano. Essa mobilização foi amplamente explorada pelos adversários da esquerda.

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O resultado deste processo eleitoral foi apertado. Alberto Tosi (2000) aponta que o resultado final foi de 49,94% dos votos válidos para Collor no segundo turno e 44,23% para Lula. De qualquer forma, com resultado tão acirrado, alguns especialistas constatam que a sociedade civil estava realmente polarizada entre os dois projetos, e as charges da Folha de São Paulo reforçam esta ideia. No entanto, isto pode ser questionável tendo em vista que um segundo turno, onde só existem duas possibilidades, os resultados naturalmente se dividem. Queremos dizer que o segundo turno representou uma nova eleição. Ambos os lados tinham projetos de país diferentes, que se configuravam principalmente no plano político-administrativo.

2.1.Que crise?

Nada mais atual, porque estudar o como e porquê das crises políticas que o país enfrentou na sua História recente nos possibilita considerar elementos que dialogam com a situação do tempo presente. Martusccelli (2015), de forma geral, trata uma crise como um fenômeno político que, embora recorrente na história do Brasil e dos demais países da América Latina, tem sido negligenciado pela Ciência Política brasileira. Ou seja, parte de uma abordagem marxista com grande influência do marxismo estrutural francês. É uma análise macrossociológica. Buscaremos um entendimento do fenômeno das crises, sob esta e outra ótica.

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Imagem 8. Charge publicada na Folha de São Paulo dia 25 de dezembro de 1989.16

A charge acima aponta para a peculiar a conjuntura da época. O processo eleitoral de 1989 se encerrou com o segundo turno em um domingo, dia 17 de dezembro de 1989. No entanto, Collor só viria a tomar posse do governo em 15 de março de 1990. Essa eventualidade veio a gerar um vácuo de legitimidade de poder, pelo fato de Sarney não ter sido eleito pelo voto popular. Ela denuncia e cria a forma como o país ficou estagnado, sem movimentação - no campo econômico principalmente. Collor aparece, na charge, reconhecido pelo corte de cabelo bem como pelo nariz avantajado, como um salva-vidas. Isto é, está em “horário de trabalho”, digamos assim, trabalhando. Colocando Collor sob esta função, a charge também cria a ideia de que, no imaginário popular, ele pudesse ser o único a “salvar” a situação. Político outsider, o primeiro democraticamente eleito, representava a mudança, a salvação que o país precisava em um momento tão conturbado. De afogamento. Em último plano existe

16 Disponível em: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=10823&anchor=4097325&origem=busca&pd=9250aab02a 85b1249c6c63b6fe3ff7bc. Acessado dia 08 de abril de 2020 às 21:09.

56 mesmo uma figura se afogando, a qual pelo bigode, talvez possa ser reconhecido como Sarney, e a forma como estava sem condições de governar (sobre isto ver TOSI, 2000). Collor só entraria em ação em três meses. Até lá o jeito era aplicar especulações e projetar hipóteses. O próprio hábito de apresentar os ministros era tradicionalmente feito em cima da hora, isto é, no momento da posse. Um editorial do jornal, de forma crítica, na mesma página em que a charge foi publicada, defendia a ideia que se Fernando Collor cumprisse esta tradição, fazendo uma indicação com antecedência, teria a vantagem de permitir o entrosamento das equipes com os problemas que se viria a enfrentar, talvez salvar o que se está afogando. Ou seja, se arrumaria a casa para a transição para um governo que não mais negligenciaria o trabalho. Seria uma forma de o presidente mostrar que não perde tempo, que estaria empenhado na mudança da realidade da crise que o país enfrentava. No entanto, a charge demonstra que o presidente eleito parecia pouco estar se importando com isso. Veja o descompromisso de Collor através de sua fala: “Aguenta só mais uns três meses”. Estaria, de fato, negligenciando o trabalho. Inclusive havia recusado uma antecipação da posse, permitida por mecanismos constitucionais. Quer dizer, não adianta mesmo. Só começaria a trabalhar para salvar o país, depois. Aguardaria ainda mais “uns três meses” para salvar o que se afogava, em última instância o país. Ou mesmo, o deixaria se afogar sem salvá-lo, para que não houvesse nenhuma associação entre os dois governos. Outra questão se faz importante. Foram meses de especulações sobre a composição do governo. Nestas especulações, a sociedade não reagia. Como já viemos construindo, a palavra que definia a situação política da época, na imprensa, era de que a situação era de crise. Enquanto Sarney se afogava e Collor negligenciava o trabalho, os brasileiros também participam da cena. A população, atônita, também observava o afogamento, mas continuava a vida normalmente, não agia. A imprensa, principalmente pelas charges, insistia em colocar o termo crise na opinião popular, e a criar esta ideia para auto legitimá-la.

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Imagem 9. Charge publicada na Folha de São Paulo dia 05 de maio de 1990.17

Observe que Collor aparece utilizando até mesmo ferramentas “espirituais” para solucionar a crise, cristalizando a ideia de formação de um conceito de crises políticas, bem como da incapacidade do presidente de lidar com elas. Esta charge é dividida em dois momentos, de acordo com as cenas. Na primeira, Collor está em aparição pública: está sendo filmado em uma coletiva de imprensa. Neste momento, ele mostra segurança e despreocupação. Quer criar a imagem de não haver crise. Nele, podemos perceber sua expressão facial de despreocupação. Ele não está nervoso, ou desconcertado. As linhas, embaixo da mão, são de uma movimentação que indica uma linguagem corporal de “insistência”. Que crise? Não há crise alguma. Isto mostra, também, como a imprensa, no geral, e as charges, em específico, criam não só as crises, mas a forma como os agentes atuam nelas e diante delas.

17 Disponível em: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=11077&anchor=4056224&origem=busca&pd=33bb697f4ef dd494b80239ddfa706168. Acessado dia 08 de abril de 2020 às 21:09. 58

A Charge mostra, também, como Collor reage à palavra, isto é, a frase pressupõe que ele havia sido questionado pelos jornalistas e repórteres sobre esta tal crise. A imprensa age não só no sentido de inserir a palavra na opinião pública, mas no sentido mesmo de atuar na realidade, criando a própria crise. Determina e é determinada, ao mesmo tempo, pela realidade; como um agente criador desta realidade. No todo, a charge cria, também, a ideia de “despreparo” de Collor diante dos problemas, que será reforçada ao longo do desenvolvimento histórico do período, pelo fato de ter que apelar à elementos espirituais-religiosos ao mesmo tempo em que brinca com linguagem através do verbo “despachar”, utilizado no universo simbólico da atuação dos chefes do executivo, bem como no universo das religiões afrodescendentes. Acreditamos, também, que só faria sentido formular este conceito no Brasil da década de 1990, e mais particularmente ainda, de 1990 a 1992 (período sobre o qual se dedica este trabalho), se o relacionarmos com as contradições de classe existentes nesta dada situação histórico-social. Contradições estas em que o próprio jornal produtor das charges estava inserido. Envolve, assim, uma conjuntura que ultrapassa os limites do recorte (1990-1992), recaindo sobre o governo anterior, por exemplo. Existe, ainda, outra forma como a situação de crise foi criada pela linguagem das charges da época: era como uma figura de um verdadeiro “Abacaxi” que Collor viria a ter que receber.

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Imagem 10. Charge publicada na Folha de São Paulo dia 01 de janeiro de 1990.18

Esta charge foi publicada na Folha de São Paulo dia primeiro de janeiro de 1990, ano em que Collor assumiria a presidência conquistada no processo eleitoral do ano anterior. A partir dela é possível inferir elementos que nos servirão para a construção de uma narrativa inicial que tem como objetivo a compreensão de um contexto histórico controverso. O Abacaxi, que na charge aparece em destaque no primeiro plano, além de bem maior do que seria seu tamanho real, faz parte de um certo vocabulário coloquial- popular nacional, servindo como analogia a situações complicadas, ou problemas. É muito popular, ainda hoje, pessoas se expressarem com “que abacaxi” ou “segura este abacaxi” como forma de se referir à problemas, situações complicadas de lidar, que envolvem certo esforço. Isto devido a sua casca espessa e espinhenta, bem como pelo seu sabor “azedo”. Nesta charge em evidência, Glauco, bem como o próprio periódico, satiriza a atual situação política nacional utilizando-se deste jargão para indicar, inclusive pelo tamanho do abacaxi servido à mesa – alusão às ceias das festas comemorativas de fim de ano, passadas recentemente -, que Collor teria um grande desafio para o ano que se iniciava. Um grande problema. E foi bem assim mesmo que aconteceu. O editorial do jornal, que desta vez acompanhava a charge, para além da representação do abacaxi, usou a palavra crise inúmeras vezes e insistentemente para se referir a conjuntura:

Sobrepondo-se a um quadro de desigualdade social crônica, a crise que a economia brasileira conheceu nesta década atinge agora seu grau mais agudo. Não é o caso de insistir, mais uma vez, nas características alarmantes que a crise assume nesse momento. A necessidade de medidas capazes de dissipar as ameaças de curto prazo impõe-se para o futuro do governo. Não menos urgente, e bem mais profundo, é o imperativo de iniciar todo um conjunto de reformas estruturais que, ao longo destes últimos 10 anos, foram adiadas injustificavelmente (Folha de São Paulo, 1990, p. 1).

18 Disponível em: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=10830&anchor=712271&origem=busca&pd=884 4a0564860720933f288157bb2c18d. Acessado 01 de abril de 2020 às 00:24.

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O jornal estava atuando no sentido mesmo de criar a crise. Reforça essa palavra em vários momentos nos editoriais, artigos e principalmente nas charges. Mas não só a palavra. Também a sua imagem:

Imagem 11. Charge publicada em março de 1990. 19

Alguns autores tratam essa crise como a dificuldade mesma do processo de redemocratização, processo em que principalmente o ministério da Fazenda, responsável pela economia, estivera a frente. É por isso que este mesmo “abacaxi” aparece novamente na Folha de São Paulo na data de 21 de fevereiro de 1990, ainda mais próximo da posse de Collor que aconteceria no dia 15 de março deste mesmo ano, sob a pena do mesmo artista: Glauco. A charge acima é um acompanhamento da manchete de primeira página que tinha como título “Sarney tenta falar a Collor”, indicando a preocupação do até então presidente em se reunir com a equipe econômica que assumiria no mandato seguinte, numa espécie de política da transição. Um dos principais agentes da tentativa de reunião era Maílson da Nóbrega, ministro da Fazenda. Sarney estar tentando “falar a Collor”, se

19 Disponível em: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=10881&anchor=4084719&origem=busca&pd=87bc50b5e6 6c563c1b280f718b5509f3. Acessado em 01 de abril de 2020 às 00:27. 61 comunicar com o novo governo, no sentido de passar o já referido “abacaxi” para Zélia Cardoso, naquele momento futura ministra da economia. Observe nos detalhes da charge acima. Nele, Zélia bem como personagens de terno e gravata, executivos, digamos assim, aparecem já abatidos pela conversa, pela reunião. Interessante observar, também, que sempre Glauco faz o que chamaremos de “executivos”, nada mais do que personagens coadjuvantes, com a mesma característica. São iguais, mesmo que em uma charge tenha mais de um, e ainda mais nas outras charges. São personagens aleatórios, indicam a equipe e atuam no sentido de dar protagonismo aos personagens principais. Aparecem representando, também, o corpo de deputados em seu “total” (isto é, em geral, quando não se quer retratar alguém em específico). Satiricamente, Maílson da Nóbrega havia deixado o pior para o final: o abacaxi de verdade. Ele estava escondido atrás de suas costas, mas, de tão grande, é difícil disfarçar. Maílson da Nóbrega, Ministro da Fazenda, quer passar o abacaxi a quem seria a nova titular da pasta. Façamos, em seguida, uma breve discussão teórica com vistas a elucidar que “abacaxi” (leia-se, crise) é este criado pela imprensa na realidade, ou melhor, do que ele se constitui historicamente, e como a imprensa produtora das charges se insere neste problema. Acreditamos como demonstramos na argumentação, que este “abacaxi” signifique a crise que deveria ser enfrentada por Collor e sua equipe a partir de março de 1990. Nas charges é representada a crise política e, nela, se destacava o fator econômico como a sua principal face. Neste sentido, a crise não é um instante disfuncional de um sistema harmônico, nem deve ser entendida sob uma concepção mecanicista, evolucionista ou economicista. Historicista, em outras palavras. Isto porque as contradições são sempre presentes e coexistem nos sistemas, fazendo parte dele mesmo, isto é, do TODO, dentro de uma perspectiva dialética. Como já mencionado anteriormente, também, as crises devem ser distinguidas entre crises políticas, ideológicas ou econômicas, podendo acontecer simultaneamente e significar um mesmo processo, ou acontecer de maneira em que haja uma “defasagem temporal”. É possível a combinação e a oposição entre estes três tipos de crise. Para compreender o conceito de crise em Martuscelli (2015), é necessário, portanto, compreender também o conceito de bloco no poder, que indica a existência de uma unidade contraditória das chamadas “frações de classe” diante de uma determinada política econômica e social, ou projeto político. No entanto, a formatação “classes” e “frações de classe” dependem sempre do contexto histórico que lhes são

62 próprios e da composição social determinada pelo desenvolvimento histórico de cada sociedade que se pretende analisar. Diferencia-se aqui crise política de instabilidade política. Em uma crise política existe uma força social capaz de provocar mudanças, seja ela vitoriosa no final ou não. Em uma instabilidade política, não há essa força social.

2.1.1. O problema da economia na crise e o “estado de choque”.

Esta é uma questão complexa, porque embora as charges critiquem politicamente o governo e a figura pessoal do presidente, algumas medidas econômicas foram ignoradas, enquanto outras apareceram bastante. As críticas iam sempre de encontro ao intervencionismo estatal para implantação de um projeto econômico neoliberal, e meio que a favor de uma agenda progressista-liberal, em termos gerais. Mas, à princípio, sempre que as charges tocaram na questão do “Abacaxi”, isto é, da já referida crise, ela geralmente aparece veiculada ao fator econômico, ou na própria charge, ou nos editoriais e manchetes da capa. Esta parece ser sua maior preocupação. É necessária uma breve combinação teórica sobre o tema com as charges, para elucidar historicamente como esta crise agia imperativamente neste setor da sociedade, em uma breve discussão historiográfica. Discutiremos algumas chaves de interpretação possíveis para a melhor compreensão das charges. Martuscelli (2015) defende a hipótese de que a hegemonia política foi exercida sob a forma de condomínio político, no sentido de que a força social que detém preponderância não dispunha mais desta hegemonia e passou a exercer o poder sob a forma de condomínio entre as forças do grande capital. Nesta tese, a oposição teria apenas conseguido promover algumas resistências pontuais a alguns pontos do programa neoliberal ou, na melhor das hipóteses, lutar contra os efeitos dessas políticas através de mobilizações sociais e greves. Esta situação teria tido como resultado a destituição do presidente da república do cargo através de um movimento dirigido pela própria burguesia interna e apenas contando com uma base social de apoio nas classes médias que estariam insatisfeitas com as consequências sociais da transição ao capitalismo neoliberal.

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Já David Maciel (2012) compreende que a crise em questão, nesse mesmo processo de transição que inaugura o neoliberalismo como política de Estado no Brasil, é um acúmulo e continuação dinâmica de um processo iniciado, na verdade, nos anos 80. Representa, ainda, uma fragilidade da institucionalidade democrática recém-instalada pela constituição de 1988, marcada pela continuação da presença de elementos autocráticos de poder como herança histórica da ditadura militar:

Mesmo após o término da transição política que substituiu a institucionalidade autoritária, criada durante a Ditadura Militar, pela institucionalidade democrática instituída pela Constituição de 1988 e confirmada pela eleição presidencial de 1989, a crise política permaneceu, evidenciando claramente a ausência de unidade entre as classes e frações do bloco no poder em torno de um projeto histórico de largo fôlego e a permanência do movimento social das classes subalternas como alternativa de governo e poder, além da própria fragilidade da democracia recém-instalada (MACIEL, 2012).

Neste sentido, o que acrescentar ao contexto das charges é: 1) a crise política corresponderia a uma crise de hegemonia marcada ainda pelo aprofundamento das dissensões inter-burguesas em face da instalação do neoliberalismo como política de Estado; 2) a transição democrática da Ditadura Militar, de caráter reformista preservou elementos autoritários que formatam o Estado brasileiro como um estado autocrático- burguês, combinando dominação burguesa e transformação capitalista. Para complementar o processo eleitoral presidencial de 1989, havia um entendimento na opinião pública de que a “crise política”, manifestada nas suas mais variadas contradições durante a redemocratização, significava uma “crise moral” da classe política que aos poucos ficou reconhecida pelos escândalos de corrupção e pela paixão pelo poder. Neste sentido, os candidatos, como em qualquer eleição, precisaram servir como uma espécie de organizadores do sentimento público, ou melhor, da repulsa pública pela imoralidade da classe. Buscaram reunir as impressões e sentimentos, às vezes não formalizados pelos cidadãos, às vezes contraditórios, em uma narrativa única que identificasse o problema e assumisse objetivos específicos para superá-lo.

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O Partido dos Trabalhadores era a síntese política de um processo de longos anos de mobilização independente dos trabalhadores associados à intelectuais de classe média militantes de esquerda na época da ditadura, que batalharam pelo encerramento do regime e pela abertura democrática. Fernando Collor, por sua vez, tentava se posicionar como representante dos interesses conservadores, mas sem o estar amarrado com as elites tradicionais e negando a condição de político profissional. No entanto, como nos mostra Villa (2016), havia construído pelo menos uns 10 anos de carreira política em seu Estado. Havia sido prefeito de Maceió (Alagoas) em 1979; em 1982 se elegeu deputado federal (o mais votado de Alagoas), votando inclusive pelas Diretas Já em 1984; em 1986 se tornou governador do Estado pelo PMDB (antes estava filiado ao PDS). Ao tomar posse, o então presidente criou ministério vinculados diretamente a si: a saber, o da Cultura, Ciência e Tecnologia, Meio Ambiente, Desenvolvimento regional, Desportos, Administração Federal e Assuntos Estratégicos. Mas também contava com um gabinete militar que exercia uma tutela sobre o governo. Essa tutela era um dos resquícios da ditadura (MACIEL, 2004). Dos US$ 100 milhões arrecadados para a campanha, US$ 28 milhões restaram para os gastos pessoais do presidente no futuro, bem como para custear a equipe de transição20. “A redução dos ministérios não representava uma ‘mera aglutinação de órgãos, mas, verdadeiramente, uma nova concepção organizacional” (VILLA, 2016).

20 Segundo levantamento do professor Marco Antonio Villa (2016), parte deste recurso também havia sido destinado para fazer as reformas de segurança e proteção necessárias para que a Casa da Dinda abrigasse o presidente como moradia oficial. 65

Mas qual seria o papel do Estado na economia, tão criticado pelas charges?

Imagem 12. Charge publicada em 17 março de 1990.21

Essa é uma das narrativas criadas pelas charges para atuar na realidade. Havia uma concepção de austeridade e, acima de tudo, neoliberal (corte de gastos com o aparato estatal). Este enxugamento do aparelho administrativo estatal, bem como do seu estamento burocrático, era a resposta ideológica do prometido “Estado mínimo”, tipicamente neoliberal. Houve a intenção de convencer a opinião popular de que o que se fazia era o “desmonte da velha estrutura estatal” (vista como corrupta, improducente, cabide de empregos, dentre outros adjetivos pejorativos) por vias de uma reforma administrativa. Uma promessa de campanha que se concretizara. Como veremos a seguir, esta proposta era sem precedentes, nunca imaginada, por isso o “estado de choque” em que o Congresso ficou criado pela Charge acima. Os debates entre o Executivo e o Congresso não seriam fáceis. Observe como Zélia apresenta, sob os traços de Spacca, uma feição cansada, soada, indicativo de que havia acabado de passar por um momento trabalhoso. Collor não aparece, nesta charge com um semblante tranquilo, mas um semblante preocupado. Para acrescentar a estas chaves de interpretação, é interessante observar que, para mais esperado dos ministérios, o ministério da Economia, como já dito aqui

21 Disponível em: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=10905&anchor=4082584&origem=busca&pd=ab262eb651 30d7f6d660bdf30b7706bd. Acessado em 01 de abril de 2020 às 01:23 66 anteriormente, foi designado à professora de história econômica da USP Zélia Cardoso de Mello, sobre quem trataremos no próximo capítulo. O principal papel do Ministério da Economia para aquele momento era o de combate à inflação. Daí o protagonismo de Zélia Cardoso nas Charges. Villa (2016) aponta para o fato de que a inflação no fim de 1989 estava em 1782,9%, sendo esta a maior da história nacional. O ministério respondeu inicialmente visando privatização de empresas estatais, congelamento de preços e salários e principalmente na abertura econômica para as grandes potências comerciais e industriais. Mesmo com essas características da direita neoliberal, o professor Villa (2016) chega a mencionar, a partir de uma entrevista com Luiz Eduardo de Assis, que a maioria dos economistas do grupo chefiado pelo ministério era identificado com ideias de esquerda e não havia votado em Collor em nenhum dos dois turnos. Para elucidar um pouco mais a discussão, cabe notar que houve uma tentativa de firmar um apoio por parte do PSDB com o convite para 2 ministérios envolvendo Fernando Henrique Cardoso e José Serra. Fernando Henrique Cardoso FHC recusou as insistências de Collor para que fosse designado como Ministro das Relações Exteriores, e José Serra foi um dos nomes cotados para o ministério que já estava ocupado por Zélia. O protagonismo do assunto, bem como dos personagens que envolvem este assunto, se deve, sem dúvidas, ao fato de ser o ministério mais importante para a época, tanto por causa da inflação colossal e a crise representada pelo “abacaxi”, mas também pelo clima político-econômico internacional provocado pela queda do muro de Berlim. Villa (2016) levanta que, para Collor, o Estado não deveria ser produtor, mas promotor do bem-estar coletivo. A produção deveria ser, pois, responsabilidade do mercado. Privatizações, abertura para o capital comercial e industrial internacional e o livre mercado eram as pautas principais do governo. Típica agenda neoliberal. Defendeu a burguesia industrial em detrimento das elites reacionárias. Talvez seja este um dos motivos do início da perda de apoio pelas elites: os setores mais poderosos do Brasil na época eram desta “elite reacionária”. O enxugamento do aparelho estatal se concretizou pelo corte de aproximadamente 4 mil cargos de confiança, a redução de 23 ministérios para 12, limitação de uso de veículos oficiais e viagens internacionais, além da venda de milhares de imóveis da Previdência Social (VILLA, 2016). Em tom messiânico, falava aos “descamisados, aos pés descalços e aqueles que querem justiça social no país” que essas reformas para o

67 mercado significariam a melhora da economia e, consequentemente, das condições de vida.

Imagem 13. Charge publicada em 16 março de 1990.22

Entra em cena o Plano Brasil Novo, responsável pelo “estado de choque” em que havia ficado o Congresso, que acabou por consagrar-se como Plano Collor, que havia sido dividido em duas partes: Plano Collor I e Plano Collor II, sendo o segundo uma transformação por causa da derrota do primeiro. A charge acima, bem como a anterior, mostra a intervenção da imprensa na realidade política ao consagrar o termo “choque” para se referir às medidas. Ela acompanha a capa do jornal deste mesmo dia, que trata um pouco também sobre este fenômeno ao trazer como principal manchete: “Collor toma posse, baixa nove medidas e prepara o choque”. Como a charge aponta, a ideia de cumprimentar os executivos, públicos e privados, no dia da posse havia sido de Zélia. Neste dia, Collor deu, mais ou menos, mil e quinhentos apertos de mão. Nas conversas com estes executivos, preparava “o choque” que viria a ser concretizado na caminhada ao Congresso no dia Seguinte. Os executivos, ainda iguais, também saíam do aperto de

22 Disponível em: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=10904&anchor=4081917&origem=busca&originURL=&p d=e7e6939f6647b45a4fdded3d21f1078f Acessado em 01 de abril de 2020 às 01:23 68 mão com Collor não só “chocados”, mas realmente fugindo, correndo. A fuga de capitais não era mais só uma ameaça caso Lula fosse eleito. O jornal reforçaria sua intenção de criar a realidade pelo uso da palavra choque ao criar um “guia do choque” semanalmente, onde em edições posteriores se vê dicas e formas como os cidadãos poderiam lidar com esta nova realidade econômica. Para demonstrar eficiência ou proatividade - tendo em vista a afirmação de Alberto Tosi (2000, p. 150) de que na madrugada do dia 15 para o dia 16 pontos importantes do plano não tinham sido definidos, o que demonstra certo improviso, em contraste com a ideia criada pelas charges de que o planejamento já estaria pronto antes mesmo da nomeação, como já discutido aqui -, no dia seguinte ao da posse, dia 16 de março de 1990, o presidente atravessou a pé a Praça dos Três Poderes para levar o pacote às mãos do presidente do Congresso. Este fenômeno veio a aparecer na Charge do dia 17 (veja a imagem 12). Reivindicava o direito de prosseguir com o plano pela legitimidade dos 35 milhões de votos: “Estou cumprindo no primeiro dia de meu mandato o meu compromisso de não pactuar com a injustiça desde o começo”, disse à coletiva de imprensa. Havia sido acompanhado por 12 ministros, além de por repórteres e cinegrafistas. Era como se chamasse a responsabilidade para um ato heroico. O instrumento legal para viabilizar a urgência do Plano era o da medida provisória. Segundo a discussão historiográfica entre esses autores, entre os efeitos práticos destas medidas provisórias estavam:

1) Reajuste de preços e salários, bem como seus congelamentos; 2) Confisco de toda caderneta de poupança (ou ainda contas-correntes) do que se excedia a cinquenta mil cruzeiros; 3) O câmbio foi deixado à livre flutuação.

Acrescenta-se a isto que, segundo Villa (2016, p. 43), alguns empresários obtiveram informações privilegiadas e puderam sacar o dinheiro de suas contas antes da promulgação do plano. Mas ainda se poderia sacar 25 mil cruzeiros, desde que comprovassem ter renda suficiente para o valor investido. Como muitos não tinham como justificar, não reclamaram o dinheiro. Mais tarde, em 1992, o Congresso se aproveitou deste dinheiro não reclamado para investir no Fundo Nacional de Saúde. Houve reações das mais diversas ao plano, desde os liberais e socialdemocratas até a esquerda. Alguns senadores e deputados chegaram a compará-lo ao Lula. Parecia

69 haver uma contradição: pregava-se o livre mercado durante a campanha, bem como a não intervenção do Estado na economia, mas ao mesmo tempo parecia utilizar-se de o Estado engessá-la. Esta era a crítica de direita. Por isso a reação do Congresso, como as charges acima satirizam, foi ficar chocado. Observe a imagem 13. Os que não estavam chocados, estavam abobados, meio que sem entender a situação. O bloqueio, que estava previsto para apenas dezoito meses, causou grande controvérsia. A charge mais acima (imagem 12), como já dito, foi publicada no dia 17 de março, um dia após a passeata de Collor pela praça para entregar em mãos o pacote ao presidente do Congresso, bem como do dia em que Zélia explicou no mesmo Congresso as medidas do Plano. A principal manchete da capa desta edição do jornal, colocada com fonte maior e acima de todas as demais, dizia: “Choque do Plano Collor é o maior de toda a História”. Ela aponta que o Congresso ficou em “estado de choque”. O governo reteria 80% do chamado overnight (conjunto de aplicações financeiras feitas no mercado aberto em um dia, para resgate no dia seguinte ou no próximo dia útil) e limitaria a 50 mil cruzeiros o saque de contas e poupanças. Era uma medida sem precedentes. Uma intervenção estatal na economia que não combinava com a promessa de liberalização da campanha. O editorial que acompanhava a charge no jornal, definiu a medida como “extremamente violenta”. A principal manchete do dia em que esta Charge estava veiculada, 17 de março de 1990, era: “Choque do Plano Collor é o maior de toda a história, Governo retém 80% do over e limita a 50 mil o saque bancário e da poupança” (Folha de São Paulo, 17 de março de 1990, p. 1). Santos (2014, p. 74) levanta que: “No primeiro dia, dez milhões de pessoas foram às agências. As filas atravessavam quarteirões e dentro das agências as pessoas mal conseguiam se mexer. O governo, que deveria se pronunciar ou mesmo ajudar os banqueiros e bancários, nada fez. Os caixas não sabiam quanto dinheiro estava disponível em cada conta dos correntistas, tampouco quanto havia em caixa no próprio banco. O sistema financeiro brasileiro entrou em colapso por falta de informação e entendimento”.

O governo pagaria, em contrapartida, juros de 6% ao ano mais a correção monetária do período, mas não parecia suficiente. Este bloqueio significava, em termos práticos, literalmente tirar dinheiro de circulação (aproximadamente US$ 57 bilhões) para elevar a moeda e combater a inflação. “A inflação, porém, não arrefeceu. Em junho de 1990 ela já estava novamente em dois dígitos. A produção industrial caiu 90% e as

70 demissões vieram em seguida. As pessoas ficaram desamparadas e o Brasil encolheu 5% de acordo com Pilagallo (2006), na maior recessão que o Brasil já testemunhou” (Santos, 2014, p. 75). Villa (2016, p. 35) narra que a pessoa responsável pela digitação do plano quis ir embora sem concretizar o trabalho. Isto poderia romper o sigilo e, portanto, teve que ser contido. Existia esse limite de retenção de 50 mil cruzeiros, o que faria 90% das cadernetas serem preservadas. O governo planejava, com esse plano, reter o mais possível de dinheiro, prejudicando o menos possível de pessoas. Villa levanta que a maioria dos economistas da época apoiaram “entusiasticamente” o Plano (VILLA, 2016, p. 38). Acredita que era uma forma de ajudar as pessoas pobres e tributar os mais ricos, uma espécie de plano socialdemocrata contra a classe dominante. Alberto Tosi (2000) coloca que a maioria do Congresso o reprovou, e alguns deputados e senadores dos mais amplos espectros políticos, entre os quais constam Roberto Campos (PDS-MT), Francisco Dornelles (PFL-RJ), José Richa (PSDB-PR), Severo Gomes (PMDB-SP), Doutel de Andrade (PDT-RJ), se manifestaram publicamente contrários. Outro elemento importante do plano era sobre as privatizações.

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Imagem 14.23

Em maio o governo anunciava, juntamente com o responsável pelo Programa Nacional de Desestatização (criado pela MP 155 de 15 de março de 1990), a privatização da Usiminas, cumprindo a promessa eleitoral. A Usiminas era, na época, uma das 10 siderúrgicas mais produtivas e de sucesso do mundo e foi escolhida como a primeira empresa estatal a ser privatizada como uma estratégia para atrair investidores para outras privatizações. Era uma empresa de “grande porte e de muita eficiência produtiva”. O padrão de venda utilizado na Usiminas foi repetido em outros momentos para outras privatizações. A charge acima é um pouco complexa para compreensão. Remete ao ditado popular do “elefante branco” símbolo da desnecessidade, do ocupar muito espaço, ser muito incômodo. Em suma, se trata de algo que precisaríamos nos livrar. Essa foi a ideia criada pela imprensa, principalmente a partir das charges, da forma como o governo lidava com estas estatais. O fato de a placa “sob nova direção” estar escrita no rabo do elefante, como algo que se vê por último, é significativo de um certo “adeus”, uma despedida. Algo que está indo embora, e não mais vai voltar. Conseguiram se livrar deste elefante branco. Esse projeto marca a inserção do Brasil na lógica do mercado financeiro internacional, resultado da aplicação do Neoliberalismo como política de governo. A privatização, também correspondentes a desnacionalização das indústrias do país, era sustentada pela abertura comercial e desregulamentação do mercado de trabalho e do mercado financeiro. Significaria, também, concentração de renda e surgimento de Monopólios. Este contexto histórico e seu panorama geral é construído, pelos autores, a partir da análise de produções de charges na imprensa sindical. Também se define, a partir desta análise, o posicionamento crítico do movimento sindical pois considera-se os jornais como aparelhos privados de hegemonia representantes dos interesses de classe a que estão vinculados. No entanto, este processo foi complicado e encontrou dificuldades. A principal era a de convencer as mais variadas forças sociais que compunham a sociedade civil, e mesmo no debate público. O resultado foi um avanço tímido na implantação do programa de privatizações durante o governo específico do Collor. A ideia defendida pelos autores,

23 Disponível no acervo digital da Folha de São Paulo em: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=11492&anchor=4918809&origem=busca&pd=cd25a5f131 8a5523263498af29f8f568. Acessado dia 30 de abril de 2020 às 22:43. 72 entretanto, é a de que o programa de privatizações não se interrompeu nem mesmo com o processo de impeachment. Pelo contrário, ele continuou. Itamar Franco seguiu à risca as determinações do capitalismo mundial e deu continuidade às privatizações no Brasil, tanto que, no período em que esteve à frente do governo, “Itamar concretizou a venda de indústrias estratégicas de setores produtivos, especialmente siderúrgico, petroquímico e de fertilizantes, que representaram quase 80% das privatizações da época”. Retornando a proposta de discussão inicial, sugere-se que a imprensa sindical sempre esteve atenta ao processo de privatização das estatais no Brasil. 1991 foi o ano de início da aplicação do Programa Nacional de Desestatização pelo governo. Observe a charge acima. Aqui no Brasil, a Usiminas foi a primeira empresa a ser leiloada, e os autores constatam que imprensa sindical levantou esta questão em discussão junto aos trabalhadores, e as charges para eles, e para nós, apresentam um local de representação privilegiado. Acrescentamos que esta privatização, bem como outras, foram também temas abordados de forma crítica por outros jornais entendidos por nós como de direita, ou melhor, representantes dos interesses do grande capital na sociedade civil e discussão pública. Especialmente na Folha de São Paulo, utilizada neste trabalho como fonte das charges analisadas. Nas charges analisadas pelos autores na imprensa sindical, não reproduzidas aqui, era recorrente o uso da imagem da “banana” em alusão ao ditado “preço de banana” para se referir às privatizações. Abre-se espaço, aqui, para que pensemos camadas interpretativas para as charges. Em determinados momentos, elas podem ser críticas à política, mas coniventes em algumas questões econômicas. Pode-se inferir que a Folha de São Paulo tem um viés liberal, não intervencionista (critica a intervenção do estado na economia, lembre-se do “estado de choque”), mas a favor de um certo programa de privatizações, considerando a Usiminas uma espécie de “elefante branco”. O programa de privatizações foi o que mais desencadeou uma certa visão de autoritarismo sob o governo. Sobre isso, é necessário acrescentar que as elites empresariais, para Villa (2016, p. 39), não se deram bem com o Plano. Teriam ficado paralisadas, e ameaçavam gerar desemprego no país. Houve vários conflitos e buscas policiais que fiscalizavam a vigência do Plano. Algumas pessoas, empresários ou gestores, foram até presos (segundo a MP 153, abuso do poder econômico era considerado crime), o que demonstra certa arbitrariedade. Isso teria significado uma retração dos

73 investimentos internacionais, pois esses investidores não confiariam em países em que as leis mudam de acordo com a personalidade do soberano.

Imagem 15. 24

Esta charge, é resposta a um episódio que ilustra bem este caráter de permanência de alguns elementos autoritários na institucionalidade democrática recém-instalada, como já discutido aqui. Os elementos principais são: Collor; a suástica nazista; um personagem de difícil identificação (vamos identificá-lo logo a frente), mas sua caracterização, diferente da caracterização dos executivos que aparecem iguais, indica ser alguém intencionalmente caricaturado, alguém a que se sabe quem se faz referência. A charge destaca Collor aparece com o símbolo expoente do autoritarismo alemão (a suástica), é uma representação da principal matéria jornalística exposta na capa da mesma edição: “Collor autorizou invasão da Folha”, e é acompanhada por uma “mensagem editorial” na capa da edição do dia seguinte em que o corpo editorial da Folha condena a atitude do presidente: neste episódio, Collor teria autorizado a Polícia Federal

24 Disponível em: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=10913&anchor=4088591&origem=busca&pd=e6e6fc1c53f 1d6f97bf4c6f9c2172f71. Acessado dia 01 de abril às 16:55. 74 a invadir o prédio que administrava as edições do periódico como retaliação à publicações que o atacavam. A frase “bonita camiseta, Fernandinho”, faz referência à um slogan da marca de camisas USTOP, sucesso na época25. Este slogan era acompanhado por um outro: “o mundo trata melhor quem se veste bem”. Talvez se acrescente a isto uma espécie de trocadilho com fato de que Collor sempre desfilava com camisetas em que possuíam algum tipo de mensagem para o público ou para a imprensa. Neste caso, a mensagem passada pela camiseta seria a de um governo autoritário. Na mesma edição deste jornal há, inclusive, uma longa matéria assinada pela redação na página A-9 que elenca os aspectos semelhantes entre Collor e Mussolini, criador do fascismo italiano. Mas Collor não está sozinho. E a riqueza de detalhes do personagem indica a intenção de representar alguém. Ao lado de Collor, nesta charge, protagoniza uma caricatura de Jean-Marie Balestre, mais bem evidenciada pela matéria da página D7 da mesma edição. Este, presidente da FISA, já era conhecido, segundo a matéria, por um certo caráter autoritário ao enfrentar questões do setor automobilístico, principalmente numa polêmica mais recente ao conteúdo do Jornal, em que havia rumores da intenção de Balestre cancelar o GP Brasil, que aconteceria em Interlagos-SP naquele ano, o que havia deixado os torcedores brasileiros bem irritados. Quando desceu em Interlagos, foi cumprimentado por Collor, daí a charge satirizar esta questão. A conclusão desta matéria nos ressalta: “Uma pequena mostra do que o torcedor brasileiro pensa de Balestre foi dada ontem quando ele percorreu os boxes. ‘Fora nazista!’ foi o que ouviu das arquibancadas na reta de chegada”. Na época essas arbitrariedades foram criticadas publicamente por economistas, dentre os quais o próprio Mário Henrique Simonsen, bem como pela própria imprensa produtora das charges, um dos fatores para criação desta realidade. Diziam, em geral, que era impossível inserir o Brasil no primeiro mundo sob a égide da competitividade e da privatização se os capitalistas eram tratados com arbitrariedade, o que os levaria a não investir. Isto é ambiguidade ideológica. O capitalismo aceita riscos de mercado, mas não riscos políticos. Claro que este aspecto do assunto também viria a calhar na produção de charges na imprensa, bem como seria ele mesmo determinado por esta própria produção.

25 A propaganda pode ser revista no seguinte link: https://www.youtube.com/watch?v=lMVj-FZSY0U. Acessado dia 15 de dezembro de 2020, às 17:20. 75

Podemos observar a criação deste conteúdo autoritário ao governo Collor pela imprensa, entendida como simples arbitrariedade também por Villa (2016), na charge acima, publicada pela Folha de São Paulo no dia 25 de março de 1990, apenas dez dias após a posse de Fernando Collor como presidente democraticamente eleito, bem como na charge abaixo.

Imagem 16. 26

Os elementos principais desta charge são: a mala, onde está escrito “CPI”, carregada pelos “executivos” do Congresso; A roupa camuflada estilo militar de Collor; o fato de Collor estar rendido, com as mãos ao alto. As charges passam a alavancar uma posição autoritária no presidente. Denuncia a truculência, a violência com que eram tratados comerciantes por causa de “apenas uma embalagem com o preço errado”, e condenava que suas atitudes eram dignas das ditaduras mais sanguinárias. O episódio em si foi tratado como um atentado contra a liberdade de imprensa (o jornal dizia que Collor tinha uma “incapacidade de conviver com a presença de uma imprensa independente”),

26 Disponível em: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=10914&anchor=4089472&origem=busca&pd=2e2c65903c b55d6a56a6991c890e2bff. Acessado dia 01 de abril de 2020 às 17:19. 76 que foi respondido pelo Congresso com a instauração de uma CPI (destaca-se os trajes militares em que Collor é representado na imagem 16). A CPI iria prestar um verdadeiro “baculejo” em Collor, independente do caráter autoritário de seu governo, daí a sua forma rendida e o mandato para pôr as mãos na parede. Ele não poderia vencer ao parlamento. Isso é muito significativo, porque a charge acima não só “denuncia” simplesmente o autoritarismo de Collor, mas indica na realidade, juntamente com a CPI, que esta atitude não era mais aceita. O editorial que acompanham esta charge faz uma análise das roupas de Collor durante a campanha, durante suas caminhadas e corridas matinais, durante uma visita de Collor a Amazônia, e termina por propor uma nova roupa que, segundo o jornal, “combina com o episódio de invasão da Folha”: o uniforme militar. Fica evidente o diálogo entre os editoriais e as charges. Critica o presidente que, em campanha se colocou absolutamente contra a ditadura militar e propôs a modernização da política no Brasil. Neste momento o jornal o criticava por não modernizar absolutamente nada, e por ser apenas mais um representante da Velha Política, identificada com o governo militar. O editorial do jornal dizia até que o fato de qualquer coisa ser pretexto para agressão, era indicativo do início de uma “escalada totalitária” (Folha de São Paulo, 26 de março de 1990, p. 1). Isto porque o presidente estava se apoiando no abuso do poder policial, na mistificação propagandística e marketing político e pela “megalomania delirante de um pretenso salvador da pátria”. Tratava os policiais federais que haviam invadido a folha como “milícias do chefe de Estado”. Na charge a seguir, de 27 de março de 1990, Collor é representado em uma coletiva (observe o palanque com dois microfones variados) pisando na constituição, maior símbolo da institucionalidade democrática recém-instalada. É como se ele fosse superior a ela.

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Imagem 17.27

Estes fatores destacam, para David Maciel, que esta presença de uma tutela militar que serviria como uma camisa de força para o conflito político. Esta camisa de força era também assegurada pela Constituição que atribuía às Forças Armadas o papel de “guardiãs da Lei” e permitia a autonomia operacional sobre o corpo militar. Toda essa conjuntura teria esvaziado as alternativas contra hegemônicas e viabilizado a candidatura de Fernando Collor. Toda essa produção das charges caminha no sentido de criar a realidade em que Collor estaria sendo arbitrário, autoritário e traindo a constituição. Pisando, menosprezando esta que era o maior símbolo da luta contra a ditadura militar recém findada. Estes elementos juntos, a saber, o fator econômico, bem como seu aspecto de implementação política arbitrária e/ou autoritária, é consagrado nas discussões historiográficas como característicos da nova dinâmica capitalista do Brasil: o neoliberalismo.

27 Disponível em: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=10915&anchor=4089871&origem=busca&pd=1084b700bd 3821418983f50728ea732d. Acessado dia 01 de abril de 2020 às 17:29 78

2.2. Neoliberalismo “colorido”.

Na charge abaixo, Collor aparece como numa famosa cena consagrada na História e no Cinema no papel de César, imperador Romano que com o sinal dos dedos decidia sobre a vida e morte das pessoas. Destaca-se seu poder imperial, arbitrário, realidade criada também pelas charges nos jornais.

Imagem 18. Charge publicada na Folha de São Paulo dia 30 de agosto de 1991.28

No coliseu está uma mulher, provavelmente representando qualquer uma das classes pobres devido a vestimenta, e restos de ossos acompanhados com uma bagunça que indicam ter passado por uma luta. A mulher pobre teve de “enfrentar os leões” (linguagem simbólica) enquanto o presidente assistira, e ainda teria o poder de decidir sobre sua vida. Pelo veto de um presidente autoritário, estava condenada a morrer mesmo depois de tanta luta. O veto faz referência à proposta do Senado de aumentar o salário-mínimo devido à situação de crise, como demonstrava uma das manchetes da capa. Na chamada para a

28 Disponível em: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=11436&anchor=4103197&origem=busca&pd=af1da09a06 532baf02045a5ca9c46e64. Acessado dia 08 de abril de 2020 às 21:14. 79 matéria, o jornal colocava que “certamente o presidente vetará” esta tentativa do Senado. A charge, como comentado no parágrafo anterior, caminha no mesmo sentido. O Neoliberalismo, de Collor, identificado na caricatura pelo nariz na charge, mais especificamente, como é próprio desta doutrina econômica, governava para os mais ricos, principalmente os do setor financeiro. Estes, que eram sempre representados de terno e cartola nas charges que ficaram mais “gordos” (veja a charge abaixo) durante o governo que diz não aos pobres. A própria questão salarial é uma das medidas mais caras ao neoliberalismo: ele significa, na prática, a redução do custo do trabalho em detrimento de maior acúmulo de capital em tempos de crise. Acrescenta-se que as políticas neoliberais vinham acompanhadas, também, de um discurso de “modernização”, de alinhamento com o que de mais recente havia funcionado no mundo. Essa modernização, questionável pelos elementos que trataremos na análise da charge abaixo, significava a abertura para as forças do mercado internacional liderada pelo governo Bush. O Brasil passa a se inserir na dinâmica global de mudança de perspectiva keynesiana para a neoliberal e o próprio Estado brasileiro foi o promotor dessa inserção subordinada. Ele atuou como promotor e avalista destas grandes mudanças estruturais. Talvez seja esse o maior ponto de desestabilização desta unidade. Isto porque as políticas de abertura econômica e alinhamento com a economia internacional variavam quanto a sua forma e ao seu ritmo: setores da burguesia nacional poderiam ser prejudicados caso a abertura acontecesse sem uma espécie de políticas de transição. E o setor econômico ao qual o capitalismo brasileiro se submeteria, era certamente o setor do capitalismo financeiro, representados pelos bancos. Banqueiros são, novamente, sempre representados como gordos, de terno e cartola.

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Imagem 19. Charge publicada na Folha de São Paulo dia 10 de novembro de 1991.29

A charge logo acima, se cruza com a chamada da capa desta edição, que fala sobre um brasileiro mutante: um trabalhador rural chamado Amaro João da Silva, de apenas 1,35m, e sua família fariam parte dos nanicos. “Uma das novas ‘espécies humanas’ que a subnutrição fez aparecer no Nordeste” (Folha de São Paulo, 10 de novembro de 1991, p. 1). Nas cidades eram chamados de homens-gabiru porque, como os ratos, viviam do lixo. A matéria, na página 1-17, tinha como título “Nordeste tem ‘novas espécies humanas’”. Estas “novas espécies” seriam consequência da seca, da já comentada expansão da pobreza, a “incúria administrativa”, e a inexistência de projetos econômicos (Folha de São Paulo, 10 de novembro de 1991, p. 1-17). Era previsto, pelos cientistas da época, que esses seres humanos do Nordeste tenderiam a se tornar cada vez menores, semelhantes aos pigmeus africanos. Notícias de época relatavam que 79,6% dos bebês nascidos no Nordeste não alcançavam um ano de idade. São consequências da política neoliberal, tendência não só brasileira, mas global. A crítica da charge caminha no sentido de criar satiricamente justamente estra contradição: enquanto os cidadãos brasileiros se tornavam “mutantes” pela subnutrição, os bancos se tornavam “mutantes” por ficarem cada vez mais gordos.

29 Disponível em: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=11508&anchor=4073512&origem=busca&pd=a41e4a80b4 b153fa7d25345365e50158. Acessado dia 08 de abril de 2020 às 21:17. 81

Já afirmamos, em outras palavras, que na condição de um país de economia média, com industrialização tardia e incompleta, o Brasil era mais direcionado pela política externa, baseada no movimento estrutural do capital internacional das grandes potências, do que participante dela. Em outros termos, o país, com suas contradições sociais e econômicas, adotou uma inserção internacional subordinada, baseada na ruptura com o nacional-desenvolvimentismo e direcionada pelos países com os quais se possuía laços de dependência e a reafirmando, sobretudo os Estados Unidos. No entanto, é necessário esclarecer que isto não se realizou de forma automática. A historiografia trazida aqui sobre o período discute que as dívidas externas eram o principal ponto para o exercício da pressão internacional. Esta pressão internacional será observada nas charges a seguir. Mesmo assim, houve tentativas de resistência a estas pressões internacionais, algumas com o sucesso de afirmar a autonomia nacional, outras que fracassaram neste objetivo. É observável que havia um esforço de adequação do país à dinâmica global do Neoliberalismo baseado na construção de uma relação de “boa- vizinhança” com os EUA que operavam, através do Banco Mundial e do FMI30, a financeirização da economia global. No entanto, houve também um esforço de descaracterizar o Brasil como um país de terceiro mundo.

30 O Fundo Monetário Internacional (FMI) foi criado em 1944 com o objetivo de recuperar e regular a economia do mundo em crise desde a grande depressão de 1929. Funciona como um centro de cooperação financeira e possui 189 países membros. Funciona, também, como uma grande reserva monetária, em que países colocam dinheiro para negociar empréstimos para países em situação de crise. É uma organização muito ativa, produzindo anualmente análises não só econômicas, mas também políticas e de desenvolvimento. Produz, também, regulamentações internacionais com o objetivo de promover a estabilidade econômica mundial. 82

Imagem 20. Charge publicada na Folha de São Paulo dia 30 de junho de 1990.31

Collor aparece diversas vezes nas reuniões internacionais negociando por essa posição com os órgãos financeiros, como o FMI e os bancos. Nas charges, os representantes das instituições financeiras sempre aparecem trajados com ternos e cartolas, como já observamos. As matérias referentes ao assunto indicavam haver uma explosão nos preços das ações, e que elas estavam fechando em alta. Na charge acima, outros personagens parecem estar ganhando muito dinheiro. Collor, e em última instância o Brasil, não. PP significa, em linguagem de aplicações financeiras, um tipo de ação preferencial normativa, que tem prioridade no recebimento de dividendos ao portador. A cena da charge é em um “cassino”, lugar marcado pela presença das apostas, assim como é também o mercado da bolsa de valores. Enquanto as apostas estavam, para o restante do mundo, positivas, a aplicação do neoliberalismo no Brasil estava gerando problemas como o do “brasileiro mutante” (imagem 19). A seguir é possível observar as comentadas dificuldades e resistências de Collor em negociar com essas instituições, criadas nas e pelas charges:

31 Disponível em: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=11010&anchor=4911418&origem=busca&pd=e638a9131b 822014a81465f333c97f1e. Acessado dia 08 de abril de 2020 às 20:20. 83

Imagem 21. Charge publicada na Folha de São Paulo dia 30 de julho de 1990.32

A charge apresentada acima é muito demonstrativa da pressão internacional de alinhamento e subordinação do Brasil à economia neoliberal das grandes potências. Ela apresenta ao leitor a missão de técnicos do FMI que vieram ao Brasil para coletar dados sobre os planos econômicos implantados. Esses dados fariam parte de um acordo provisório que seria negociado entre o FMI e o governo. Pelo acordo, a equipe econômica esperava tirar um empréstimo de 1,4 bilhões de reais. A charge cria, também, a ideia subserviência de Collor perante estes agentes internacionais. Antes mesmo de chegar ao trabalho, o FMI já se encontra em sua sala (observe o retrato de Collor na parede), em sua mesa, acomodado com um certo tipo de “folga” bem como um sorriso imponente. Collor, diante da situação, meio “abestado”, com reação de passividade.

32 Disponível em: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=11040&anchor=4909762&origem=busca&pd=7e 3f6b0354c58dfccb3e70e930577444. Acessado dia 08 de abril de 2020 às 20:24.

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Já a charge a seguir, publicada no dia 25 de setembro de 1990, cria a imagem de Collor na ONU reivindicando uma contrapartida a abertura econômica: sair do “terceiro mundo” e ser incluído ao grupo do “primeiro”. Ela se refere ao discurso proferido pelo então presidente na ONU no dia anterior em que foi publicada. O presidente Collor teria refletido no discurso a preocupação do governo numa política de maior integração com os países do Primeiro Mundo, afirmando o interesse no desenvolvimento tecnológico.

Imagem 22. 33

Observe como Collor, enquanto discursa, possui uma feição segura e imponente, enquanto gesticula. Já quando uma autoridade da ONU surge na cena, Collor parece abobalhado, desconcertado. A crítica era, satiricamente, sobre a falta de interesse com que a ONU, representada pelo típico soldado fardado com seu uniforme característico (azul), lida com

33 Disponível em: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=11097&anchor=4917583&origem=busca&pd=4f8cba2857 b1c04591384ac87178d6ce. Acessado dia 08 de abril de 2020 às 20:58. 85 as reclamações do presidente. Externamente, a imprensa cria, principalmente pelas charges, a ideia de um Brasil párea à comunidade internacional. Relegado à uma posição mais ou menos de irrelevância. Já no conflito interno com os aparelhos de hegemonia representantes dos interesses das classes subalternas, na arena política, o governo tentou desarticular ou assimilar os sindicatos, numa tentativa de derrotar a resistência e oposição, ainda que sua forma estatal fosse preservada para assegurar maior controle. Acreditamos que o sucesso das políticas econômicas alinhadas com o neoliberalismo significou um ataque da constituição de 1988. Observe:

Imagem 23. Charge publicada na Folha de São Paulo dia 05 de setembro de 1990.34

Alberto Tosi Rodrigues (2000), apesar de ser um autor que diverge do ponto de vista teórico que propomos levantar até aqui, também reconhece, ideia presente em todo o livro, que as tomadas de decisões de Collor apontavam para uma opção neoliberal de governo.

34 Disponível em: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=11077&anchor=4056224&origem=busca&pd=33 bb697f4efdd494b80239ddfa706168. Acessado dia 08 de abril de 2020 às 21:50

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Para ele, esse neoliberalismo nada mais era do que uma combinação entre uma tentativa de abertura industrial e comercial para o mercado exterior alinhada com uma ideologia de “enxugamento” do aparelho do Estado, privatização de empresas e “conservadorismo político com extrema centralização tecnocrática no processo de tomada de decisões” (TOSI, 2000, página 103). Neste sentido, o neoliberalismo seria uma convergência entre aspectos da tradição liberal com um elemento de autoritarismo tecnoburocrático que, para ele, é próprio do espectro da direita brasileira na época. A origem deste fenômeno, o neoliberalismo, se daria, para ele, já na contradição inicial do liberalismo clássico entre Estado de direito, que assegura elementos democráticos no Estado e na sociedade civil, e a “fórmula” do Estado mínimo, mas só se manifestaria na História como uma reação a crise do Estado de bem-estar social e keynesianismo. No Brasil, só foi possível implementá-lo porque o conteúdo democrático de nossa institucionalidade política tinha um caráter meramente formal, sem enraizamento social. O Brasil seria um país sem uma tradição democrática viva e atuante. Collor teria se preocupado em concentrar a direção política no executivo e “alijar” os demais poderes de suas atuações asseguradas pela constituição de 1988. Além disso, consideramos a crítica de que o programa neoliberal de Collor representou, na prática, para os trabalhadores, uma “promoção para a miséria e a pobreza”, uma crítica verdadeira. Combinou aumento do desemprego, redução brutal de renda e endividamento com a precarização dos serviços públicos oferecidos pelo Estado e o afunilamento de direitos trabalhistas e sociais. Uma postura neoliberal mais nítida, digamos, sem disfarces, seria assumida pelo Plano Collor II. Este fenômeno da financeirização deteriorou o mundo do trabalho, na base produtiva. A charge acima trata exatamente isso. Ela é sobre o anúncio do governo de que pretendia propor a modificação da lei de greve, regulamentando com mais rigor a questão da paralização em serviços essenciais, por exemplo. No entanto, a CUT tinha uma pauta de reivindicações que em muito se divergia desta proposta. Predominava em boa parte dos setores sindicais uma postura de intransigência que afastava as possibilidades de um acordo satisfatório. É o que a charge quer dizer ao representar Fernando Collor com o interesse de “cortar a CUT” do pacto social que estava tentando articular. O conflito entre os representantes do capital e os representantes dos trabalhadores parecem ser mais acirrados quando da política neoliberal. Observe:

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Imagem 24. Charge publicada na Folha de São Paulo dia 20 de setembro de 1990. Aqui Collor demonstra falta de interesse em discutir o então presidente da CUT, Jair Meneguelli35.

Aqui a charge é uma clara sátira a foto que havia sido veiculada na capa desta mesma edição (imagem 25).

35 Disponível em: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=11092&anchor=4917000&origem=busca&pd=18be4f86f17 4792e7491adb4e70aa919. Acessado dia 08 de abril de 2020 às 21:53. 88

Imagem 25.36

Trata da falta de interesse, ou talvez o verdadeiro desejo, de Collor ao discutir com o então presidente da CUT, Jair Meneguelli, o pacto social que estava tentando propor. Esta falta de interesse, na verdade, é representativa de um projeto. O projeto neoliberal. Isto porque a CUT havia elaborado uma pauta de 13 pontos para ser apresentada ao presidente como condição para os trâmites do pacto. Envolvia, dentre outras coisas, a proposta de saneamento das estatais, a revisão das demissões de servidores públicos e a indexação salarial. Collor queria, de qualquer forma, se livrar da CUT, que representava um dos maiores problemas para o acordão. Do ponto de vista de Collor, típico da doutrina neoliberal, sempre houve a percepção dos sindicatos, e demais movimentos operários, como empecilho para o avanço das reformas, e a tentativa de assimilá-los ou destruí-los. Mas, para além da sociedade civil, havia também o obstáculo da sociedade política: o Congresso Nacional.

2.3. Conflitos com o Congresso e a “crise de governabilidade”

36 Disponível em: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=11092&anchor=4917000&origem=busca&pd=18be 4f86f174792e7491adb4e70aa919. Acessado dia 08 de abril de 2020 às 21:53.

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Collor tentava impor as medidas sem qualquer negociação com parlamentares. Acreditava que o congresso iria “dançar conforme a música”. Na charge abaixo protagonizam também os Ministros, que observam Collor “dançar” com o Congresso, analisam, mas não fazem nenhuma intervenção. Isto é muito significativo pois, se não quisesse os representar, especificamente, poderia, assim como Glauco, colocar personagens aleatórios. Isto é, os ministros são identificados: trata-se de Zélia (Economia), Antônio Magri (trabalho) e Bernardo Cabral (Justiça).

Imagem 26. 37

A charge está acompanhada à manchete da capa: “Governo vai tentar pacto de novo para mudar Constituição”. A chamada diz que o presidente estava convencido de que a “modernização do Estado” e o fim dos rombos orçamentários que provocavam a inflação dependiam de uma reforma constitucional. Bem, acontece que o congresso não é tão “mexível” assim. Os choques entre Presidência e Congresso geraram o que no meio político ficou conhecido como “crise de governabilidade”. A tese do Congresso, no geral, é de que era preciso restaurar a

37 Disponível em: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=11188&anchor=4100884&origem=busca&pd=efcea864878 99cdbed4659469d8a0c01. Acessado dia 02 de abril de 2020 às 18:51. 90 governabilidade do Brasil, então reagiu. Parlamentares de vários partidos formaram um bloco suprapartidário para atuar no que consideravam importante. Ficou chamado de “acordão”. Esse acordão colocava Collor em dificuldades para governar. O presidente, no entanto, respondia com mais medidas provisórias, de forma ainda arbitrária. Acrescenta-se que no caso de Collor, apesar de o desenvolvimento histórico mostrar que a relação do Planalto com o Congresso fosse um pouco mais complicada, há uma tentativa de controle do legislativo em prevalência do executivo, como mostram as charges publicadas na Folha de São Paulo nos dias 25 de dezembro de 1990, acima e 19 de junho de 1990, abaixo. Na primeira, como já mencionamos, o congresso “dança conforme a música” coordenada por Collor (destaca-se a presença dos ministros, principalmente a presença ativa de Zélia). Na segunda, acompanhada de uma matéria na capa que explica melhor o contexto, o Congresso barra algumas Medidas Provisórias, que na época já eram muitas:

Imagem 27. 38

38 Disponível em: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=10981&anchor=4045852&origem=busca&pd=28b0f3a8b1 d36f1eb2ed862e6975799d. Acessado dia 02 de abril de 2020 às 20:05. 91

Collor parecia acreditar, conforme a imagem 26, que o Congresso dançaria conforme a música. A charge trata da tentativa do governo de fomentar um novo pacto para o Congresso, que tinha o intuito de alterar a Constituição. Já as diversas tentativas de “marcar gol”, diga-se, aprovarem as medidas provisórias, encontravam uma “barreira” no Congresso. Cabe notar, também, que a frase “ele tava acostumado com o Taffarel” se refere à estreia do goleiro na copa do mundo de 1990 e por sua atuação não positiva, responsabilizando-o muitas vezes, na opinião pública, pelo fato de o Brasil ter ficado em nono lugar. Collor estava acostumado com Taffarel, no sentido de bater o pênalti para marcar o gol com o “frango” do goleiro. Com o congresso, a situação seria diferente. A própria manchete que acompanhava a charge da imagem 27 dizia “Congresso impõe derrota a Collor”. Não haviam sido aprovadas as Medidas Provisórias. Observe a feição do parlamentar-goleiro como que de um goleiro que defende todas as bolas com expressão de tranquilidade. A Manchete se referia a algo em específico, também. Havia caído a Medida sobre dissídios, e Collor reagiu como já discutido em parágrafo anterior: com uma nova Medida Provisória, que também viria a ser revogada. Zélia Cardoso ameaçava que sem a aprovação, o país entraria em maior recessão. Mas o que são as medidas provisórias, e como elas foram utilizadas como ferramenta para implementação das reformas neoliberais? As Medidas Provisórias se referem ao artigo 62 da Constituição. Segundo este dispositivo, em caso de relevância e urgência o Presidente da República poderia adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional que, estando em recesso, seria convocado extraordinariamente para se reunir no prazo de cinco dias. A partir deste instrumento, as políticas neoliberais podiam ser colocadas em prática quase imediatamente, podendo ser ou não derrubadas pelo poder legislativo. Enquanto aconteciam os conflitos com o Congresso, greves eclodiram uma após outra. Em são Paulo havia cerca de 250 mil trabalhadores parados, dos quais 65 mil eram metalúrgicos (TOSI, 2000, p. 114). Os empresários também reagiram quando o Departamento de Indústria e Comércio da Secretaria Nacional de Economia lançou um documento sobre as “bases para uma política industrial” sem qualquer consulta ou avaliação. Essa arbitrariedade gerava certa desconfiança.

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Acrescenta-se, apenas para esclarecimento do contexto, que no que se refere aos assuntos internacionais, a ministra Zélia e sua equipe negociavam juros melhores para uma dívida que já estava em moratória desde 1989. Embora os organismos de financiamento internacional declaram apoio formal às medidas do Plano Collor, o governo parecia avançar pouco em uma boa negociação com os credores. Como se não fosse suficiente, eclodiram, também, alguns problemas relacionados a corrupção envolvendo funcionários de alto escalão, assessores e aliados políticos39. Enquanto o Brasil parecia um caos, o presidente fez de suas saídas do Palácio do Planalto às sextas-feiras, bem como de suas corridas matinais de domingo, um espetáculo de marketing político. As aparições eram ações públicas para demonstrar vigor físico e juventude. Parecia querer ser visto como um presidente jovem, esportista, corajoso. Estava sempre vestindo uma camiseta com alguma mensagem que se pretendia transmitir. Mas a opinião pública não se deixava enganar. As questões principais eram economia e corrupção, duas palavras que marcaram a época, não só pela imprensa.

Imagem 28. Charge publicada na Folha de São Paulo do dia 15 de junho de 1990.40

Enquanto isso, a economia não dava sinais de melhora. O objetivo do Plano Collor de conter o volume de dinheiro em circulação não se concretizou: com a mudança de

39 Sobre estes escândalos, ver TOSI, 2000, p. 118. 40 Disponível em: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=10995&anchor=4058182&origem=busca&pd=97919a8862 ed266d52b1faf53fa16a22. Acessado dia 02 de abril de 2020 às 20:05. 93 cruzados para cruzeiros, a circulação aumentou indiretamente. O IBGE anunciou a diminuição da atividade industrial brasileira no primeiro semestre de 1990 como de 7,1%. As metas econômicas que o governo havia proposto não estavam sendo cumpridas. Nem mesmo a meta que o presidente tinha estipulado na campanha era de 360 mil funcionários públicos afastados para corte de agostos e desonerar o orçamento público, tão típica e forte na campanha, estava sendo seriamente colocada em pauta. Claro que o editorial, bem como o próprio artista, não ia perder a oportunidade de satirizar essa meta nas charges, como mostrado acima. Collor sempre aparecia nos jornais e nas mídias fazendo cooper, correndo, praticando exercícios. Símbolo da juventude do administrador. No entanto, ele havia conseguido apenas 48 mil dos 360. 360 mil, na charge, aparece como uma desculpa esfarrapada aos jornalistas que o tempo todo questionavam e confrontavam o presidente sobre as promessas econômicas. Seriam 360 mil quilômetros, não cargos afastados, esta é a pilhéria. Diga-se de passagem, para além do fracasso das promessas de campanha, as eleições de 1990 significaram uma catástrofe para o presidente em um outro setor: nenhum dos candidatos diretamente apoiados por ele havia sido eleito. O Congresso passava a pressionar pela demissão de Zélia e sua equipe, além de uma revisão dos rumos da política econômica dos Planos Collor I e II. Essa demissão parecia justificável, porque os resultados que sustentavam o cargo e a equipe não foram alcançados. O voluntarismo político, a arbitrariedade, discutidos aqui, iam se extinguindo conforme o presidente amadurecia com o cargo. Passou-se a desenvolver a percepção de que a implementação do neoliberalismo dependia de uma certa articulação entre essa modernidade econômica e os atrasos do clientelismo autoritário das elites tradicionais. Mesmo assim, Collor se envolvia em constantes conflitos com o Congresso. Tudo que a Presidência tentava fazer, era revogado no Congresso. Em contrapartida, algumas medidas tomadas pelo Congresso eram vetadas, como foi o caso de um projeto de lei salarial que o presidente considerou inflacionário. Villa (2016, p. 75) reconhece isto ao dizer que “a impressão era de que buscava um bonapartismo fora de época”. Não dava a impressão, simplesmente era. Ele aborda também que as Forças Armadas estavam fora do jogo político, e como bem já vimos em Maciel (2004), elas não estavam fora, mas atuavam no sentido de tutelar a redemocratização. O isolamento presidencial, que para Villa (2016, p. 77) era de difícil compreensão, é, na verdade, compreendido sob a ótica da crise de hegemonia. Essa crise aparecia sempre, nas charges e na imprensa em geral, como articuladas à figura de Zélia.

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Capítulo 03 – Rindo da crise: da saída de Zélia Cardoso ao início do processo de impeachment (1991-1992)

“A História se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa” – Karl Marx.

Collor havia dado indícios de indicação à Zélia, que já atuava no mercado financeiro, antes mesmo da nomeação oficial. Quando esta indicação se confirmou, não foi nenhuma surpresa para a charge da Folha de São Paulo do dia 02 de março de 1990.

Imagem 29. Charge publicada na Folha de São Paulo dia 02 de março de 1990.41

No contexto histórico do Brasil de 1990, bem como em outros períodos e até mesmo hoje, existiam pressões para os cargos, principalmente para a pasta da Economia. Não ter cedido a nenhuma destas pressões, tendo nomeado Zélia Cardoso, serviu para

41 Disponível em: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=10890&anchor=719429&origem=busca&pd=4a5ba153246 b02f6f46e60aff88bb095. Acessado dia 10 de abril de 2020 às 21:10.

95 reforçar um certo caráter cesarista de seu governo42. Mas, como a charge acima aponta, a nomeação da ministra não era nenhuma surpresa para a imprensa produtora das charges. Ela apresenta esta realidade, através de outra ótica, diferente do texto narrativo com que o editorial publicado na mesma edição do jornal, sob direção de Otavio Frias Filho, constatava. Considerava que a oficialização da nomeação de Zélia Cardoso para a pasta da Economia não era novidade sob dois aspectos: porque o presidente eleito já havia dado sinais de que sua escolha seria esta; e porque a própria Ministra já havia dissipado o mistério sobre a agenda econômica que seria implantada antes mesmo da nomeação. E o fato de que assim que foi nomeada já ter apresentado um programa como um todo de estratégias para combate à inflação, mesmo que este programa viesse a mudar no correr do desenvolvimento histórico, é indício de que era uma escolha já premeditada, isto é, houvera tido tempo de montar um planejamento sob a aprovação do próprio presidente: quando a Ministra diz que vai “pensar”, pois havia sido pega de surpresa, ao sair do cômodo, na cena seguinte, já contava com materiais de comemoração e já havia executivos aguardando com um “abraço”, e também com materiais de comemoração. Neste sentido, o jornal caminha na direção de criar esta realidade ao e com o leitor, através da charge. Intervindo diretamente na opinião pública, determinando e, ao mesmo tempo, sendo determinada por ela. O fato de este programa econômico ter sido planejado antes mesmo da nomeação, indica haver uma personalização do poder e uma pretensa autonomia política, demonstrada pelas propostas apresentadas por Zélia, e que já se manifestava também pela falta de interesse em diálogos com o Congresso Nacional – fator que se legitima posteriormente com a justificativa dos 35 milhões de votos. Isto é, o planejamento já estava consolidado antes mesmo das comunicações com o congresso. Cabe acrescentar, que Collor queria concentrar em si, diante da opinião popular, a autoridade sobre as decisões econômicas.

42 O conceito de cesarismo em Gramsci foi construído a partir da análise histórica de personalidades heroicas que assumem a forma do Estado. Desde o imperador romano César, que origina o termo etimologicamente, até Napoleão I e III. Por isso, geralmente, este termo é frequentemente apresentado como aprofundamento teórico de “bonapartismo” (um conceito mais propriamente marxista) pois acrescenta a influência do elemento militar, embora a diferença entre os dois termos não seja muito bem definida. De qualquer forma, o termo é utilizado para caracterizar situações políticas em que as forças em luta se equilibram de forma catastrófica, com destruição recíproca. Essa forma catastrófica é quase sempre congruente com uma crise de hegemonia. Surge, nessas situações, uma “solução arbitral” que pode ser personalizada na figura pública do governante, ou ainda em uma associação ou coalizão, mesmo que estes não estejam realmente “maduros” para assumir o poder, como aconteceu com Collor. 96

Outro exemplo mesmo desta mesma falta de diálogo e pretensão de autoridade sobre o governo, em viagem ao exterior, antes de tomar posse, Collor se encontrou com alguns líderes mundiais, principalmente Bush e Gorbatchev. Sem representatividade oficial. Tosi (1994 apud 2000, s. p.) afirma que o objetivo era o de indicar às potências mundiais quais seriam os rumos da economia nacional, a saber o de abertura comercial e industrial. A tensão entre o capital internacional e o capital nacional era a de que o primeiro exigia condições de previsibilidade de longo prazo e submissão aos padrões internacionais de acumulação, e o segundo estava a tentar garantir o dia de hoje, isto é, a nomeação de ministros que melhorassem, ou ao menos preservassem, a balança comercial que os favorecia. As medidas econômicas propostas por Zélia Cardoso de Mello conduziram o governo a um completo isolamento político ainda muito cedo. A ministra havia sido duramente ridicularizada na imprensa, principalmente nas charges.

Imagem 30. Charge publicada na Folha de São Paulo dia 10 de maio de 1990.43

Sua demissão em maio de 1991 marca uma mudança radical da posição do governo, talvez não no quesito de viés econômico, mas no que se refere ao

43 Disponível em: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=11324&anchor=4895793&origem=busca&pd=8943bc3506 eeb8da37ce7444f24fcc3a. Acessado dia 08 de abril de 2020 às 21:14.

97 comportamento do presidente frente às crises e suas estratégias de articulação com o Congresso e com certos setores das elites que o desaprovaram. Em economia, as medidas tomadas por Marcílio Marques Moreira, a substituir Zélia, continuariam inseridas na agenda neoliberal. Era uma tentativa de minimizar os danos dos seus conflitos com o Congresso e a Constituição, além das elites empresariais e sindicais. Ela estava desgastada: suas previsões eram quase sempre erradas, diz implicitamente a charge acima. protagonizam ministros, todos homens: Bernardo Cabral, Antônio Negri e Adib Janete, Ministro da Saúde. Todos os homens fazem considerações, mas Zélia é pedida que se abstenha de “fazer previsões”. A ministra foi satirizada ainda, por um relacionamento que tivera com Bernardo Cabral, que saiu do governo antes dela. Observe a charge abaixo. A imprensa consagrou esse relacionamento como um “escândalo sexual”.

Imagem 31. Charge publicada na Folha de São Paulo dia 16 de outubro de 1990.44

44 Disponível em: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=11118&anchor=5393766&origem=busca&pd=24c837115d 7b014946e23336b771f1b7. Acessado dia 08 de abril de 2020 às 21:14h.

98

As charges criticavam duramente a ministra, e a ridicularizavam neste sentido. No caso da charge acima, ela satiriza o fato de que, no dia anterior, Zélia teria dito que poderia pedir demissão devido ao envolvimento com Cabral. Esta sátira coloca como o clássico romeu e julieta onde quando um morre o outro quer morrer também como sacrifício. O leitor, a este ponto, deve ter já observado como Zélia, geralmente, aparece nas charges, até aqui, em condição de vulnerabilidade, estereotipada pela visão tradicional do papel da mulher na sociedade. Se faz necessário algumas reflexões sobre isto.

Imagem 32. Charge publicada na Folha de São Paulo do dia 05 de abril de 1990.45

A charge acima mostra o impacto das reformas econômicas da Ministra Zélia Cardoso no setor automobilístico, noticiada na capa do jornal. Ela traduz em uma linguagem de mais fácil absorção situações, conflitos, eventos e tornando esses assuntos

45 Disponível em: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=10924&anchor=4047407&origem=busca&pd=d2413dcab6 faa2ed74979609b51b43d4. Acessado dia 20 de julho de 2020 às 15:40.

99 representados mais “palatáveis”, desmistificando e dessacralizando o poder”. Se trata de o governo ter liberado, na época, a compra de carros novos em até 30 prestações mensais. Segundo a proposta da Ministra, a ampliação do prazo para venda de carros, que era apenas de 4 meses, reativaria o setor. O problema é que as montadoras passariam a receber em nova moeda, sob a forma de transferência de titularidade, como uma forma de forçá- las a pagar impostos e outras dívidas. A medida havia sido tomada sem consulta e sem a concordância das montadoras: os empresários do setor automobilísticos já estavam sem cruzeiro, isto é, capital, e receberam em cruzado, o que significaria um prejuízo, um golpe.

3.1. Zélia Cardoso e o universo masculino da política.

Alguns estudos fazem um certo balanço entre os ataques dirigidos a até então ministra Zélia Cardoso e o fato de ela ser mulher e política em uma sociedade machista. Biroli (2011) chama atenção para este fenômeno, problematizando a presença de mulheres no noticiário político de 1982 a 2009, e coincide com a década de 90, objeto de minhas pesquisas nesta dissertação. Os estereótipos são, geralmente, baseados em preconceitos (falsos por causa das generalizações). No entanto, são desconstruídos pelo contato direto com a realidade. Mesmo assim, no âmbito da mídia e, mais especificamente, da mídia política, onde as charges se inserem, existe um estereótipo sobre a mulher como sendo frágil, maternal, muitas vezes subalternizadas diante dos homens – sejam eles Fernando Collor ou Marcílio Marques Moreira, por exemplo – e isto acaba influenciando comportamentos e promovendo padrões que confirmam estes mesmos estereótipos. Neste sentido, estereótipo e realidade se confundem, sendo este conflito marcado pelo exercício de poder material e simbólico que permite à mídia transformar aqueles mesmos estereótipos em referências por causa de sua difusão em escala industrial. Nas definições de gênero, os estereótipos organizam os papéis de mulheres e homens nas relações familiares, afetivas, profissionais e políticas, num exercício de naturalização de pertencimentos e exclusões. Observe a charge abaixo: os jornalistas aparecem, como em coletiva, para “sabatinar” Marcílio Marques e este, por sua vez, como que já premeditadamente, diz que não vai responder sobre sua vida amorosa.

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Imagem 33. Charge publicada na Folha de São Paulo dia 10 de maio de 1991.46

Por que deveria ele se justificar desta maneira? Justamente porque temos o exemplo da própria Zélia Cardoso de Mello, que assume, em 1990 aos 37 anos, o ministério da Fazenda, tornando-se a primeira mulher a ocupar posição central na administração pública brasileira. A então ministra já fora representada na mídia como produzindo “ideias tão desnecessariamente curtas quanto suas saias”, pelo jornalista Elio Gaspari. Também já foi retratada como “economista espevitada” e “elétrica senhorita de 37 anos”, para citar apenas poucos exemplos dos muitos disponíveis (Biroli, 2011, p. 127). Nas charges, a situação não é diferente. Observe, novamente, a imagem 25 no tópico anterior. Cria uma Zélia fragilizada, submissa, dramática pronta a se sacrificar pelo amor ao seu amado. Sujeita, como na imagem 26, à imposição da fala masculina. Isto é, existe um interesse despertado pela aparência das mulheres na política. Ainda hoje, por exemplo, existem deputadas jovens e que atendem à um certo padrão de beleza

46 Disponível em: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=11324&anchor=4895793&origem=busca&pd=8943bc3506 eeb8da37ce7444f24fcc3a. Acessado dia 08 de abril de 2020 às 21:14h.

101 que recebem o título de “Musa do congresso”, como aponta a autora citando os exemplos de Rita nas décadas de 1980 e 1990, e Manuella D’Ávila nos anos 2000.

Imagem 34. Charge publicada na Folha de São Paulo dia 12 de maio de 1991.47

No caso de Zélia, como podemos perceber acima, houve ainda a atenção sobre sua vida privada e suas relações afetivas, além da satirização da sua incapacidade de comandar a economia do país. A charge cria uma ministra que, antes de ser substituída pelo Marcílio Moreira, consultava sobre os rumos da economia do país com qualquer um, mesmo que com o mordomo. Incapaz de assumir os rumos da economia do país. Incompetente. Como no caso de seu relacionamento com Bernardo Cabral, na época colega de Ministério, e as preocupações sobre maternidade, onde aparecera na mídia sobre seu “Relógio biológico” como sendo considerado comum entre mulheres de carreira profissional bem-sucedida adiar a maternidade. Ou seja, a relação da mulher com a vida privada é a espinha dorsal destes estereótipos, inclusive no universo político, o que me

47 Disponível em: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=11326&anchor=4896006&origem=busca&pd=a4 d85d8e1847adcb2086dabfe6cceded. Acessado dia 08 de abril de 2020 às 22:14h.

102 levou a questionar sobre a mulher na sociedade como um todo e a estudar alguns textos sobre teoria de gênero e feminismo. Sobre o problema da representatividade feminina nas charges políticas de Zélia Cardoso, é necessário se aprofundar um pouco mais. O clássico de Beauvoir (1970) já nos alertava dos frágeis alicerces sobre os quais se construíram as teorias explicativas sobre as diferenciações entre sexos e, em última instância, gêneros, tanto em sentido biológico, quanto no histórico, social ou cultural. Para a autora, até mesmo as noções mais básicas difundidas (e tão difundidas quanto obscuras) sobre sexo ou sexualidades, são arraigadas nos pressupostos modernos que permitiram a construção moral-filosófica de nossa era ou época. No racionalismo de Hegel, a própria sexualidade representaria a “mediação” pela qual um indivíduo se identifica concretamente como um ou outro gênero. Melhor explicando, a união sexual seria um indivíduo procurando, sob a forma de desejo, em outro indivíduo do sexo oposto, aquilo que lhe falta enquanto espécie: o órgão sexual oposto. Dentro desta complexa filosofia, que em muito influencia ou dá origem ao pensamento contemporâneo, a mulher seria um agente passivo, sendo o princípio masculino o da força, atividade, movimento e vida. É como se, naturalmente, a passividade coubesse à fêmea por ser algo como um “homem mutilado”. Assim, a mulher passa por um processo de desalienação, onde, ao contrário do homem que é o seu próprio corpo e a sua própria identidade, ela é nada mais do que seu corpo feminino, e este não é suficiente para defini-la e afirmá-la enquanto Ser. Não que a autora ignorasse as diferenças biológicas ao propor que os gêneros são uma construção social e histórica. Essas diferenças existem, mas não constituem ou definem um destino imutável para os seres humanos e seus corpos. E, ainda que fossem, não são suficientes para definir uma hierarquia entre os sexos, ou para explicar por que a mulher é, socialmente e cientificamente construída como sendo o Outro. Neste ponto em específico, existe uma contribuição do materialismo histórico para a teoria de gênero: a compreensão de que a humanidade não é uma espécie animal, mas uma realidade histórica. Uma realidade que domina a Natureza e a sujeita. E, ainda mais, que a família patriarcal, clássica da modernidade-contemporaneidade é baseada na propriedade privada em todos os sentidos, inclusive porque o homem se apropria também do trabalho da mulher. E, sem esta apropriação, seria impossível até mesmo o surgimento da propriedade privada. Scott (trad. de Soares, 2012) contribui para a compreensão de que as palavras, fruto da invenção e imaginação humana, são, também, históricas. Assim, as feministas

103 americanas, nos movimentos iniciais do feminismo contemporâneo, queriam enfatizar o caráter social das distinções baseadas nos sexos como uma crítica ao determinismo biológico nos próprios usos da palavra. E, por consequência desta movimentação, começaram a usar a palavra gênero mais seriamente, como uma organização social da relação entre os sexos. Este tema foi inicialmente proposto dentro da perspectiva de um estudo das mulheres. Não para trazer conhecimentos novos e inéditos, mas sim para revisar os já existentes. Melhor dizendo, não era proposto uma “nova história desta vez com mulheres”, onde a história das mulheres seria, na verdade, um estudo separado, mas uma nova História que incorpora as mulheres à partir do gênero desenvolvido como uma categoria de análise, assim como classe e raças em exemplo análogo. Seria uma narrativa dos oprimidos em união com uma análise dos sentidos e naturezas de sua opressão. É claro que este movimento teve algumas críticas, dentre as quais a de que a substituição da palavra “mulheres” por gênero não afirmava a posição política das mulheres e as continuavam escondendo, o que demonstra o caráter dialético de desenvolvimento da teoria feminista contemporânea. Gênero seria, então, utilizado para designar as relações sociais entre os sexos, e posiciona as construções culturais contra o determinismo biológico, incluindo (mas não sendo somente) sexo e sexualidade. Era necessário, neste momento específico da história do movimento feminista, a criação de uma teoria de gênero. Esse movimento propôs inclusive, uma engenhosa releitura dos pilares modernos clássicos sobre os quais se fundamentaram e se construíram as filosofias e identidades de ideias contemporâneas, como Hegel, por exemplo. Essa releitura propunha que a dominação masculina seria fruto do desejo dos homens de transcender sua alienação dos meios de reprodução da espécie, sendo a própria reprodução a chave do patriarcado para algumas feministas. Sexualidade assumiu, então, para o feminismo, o papel que o trabalho tinha para o marxismo, em um exercício nosso de analogia. Neste sentido, as feministas inspiradas no marxismo tentaram relacionar a desigualdade entre os sexos com outras desigualdades, enquanto as teóricas do patriarcado tomavam a diferença entre os sexos como esfera única e separada. Porém, as feministas marxistas, segundo Scott, não questionaram o próprio marxismo e colocaram este tema como uma série de conhecimentos “à mais”, ou seja, acrescentados. Gênero, nesta perspectiva, não tem status analítico independente e próprio, mas era um subproduto do estruturalismo econômico. Esse status pode ter sido alcançado no final do século XX, fora das teorias sociais formadas do XVIII até o XX. Algumas destas teorias até

104 reconheceram a “questão feminina”, mas o gênero ainda não tinha aparecido. Surge, na verdade, da incapacidade das teorias existentes para explicar as desigualdades entre mulheres e homens. Scott (1991) discute o status de gênero como categoria de análise histórico-social atualmente. Parece ter havido uma confusão onde “gênero” se relacionaria com fatores culturais e comportamentais, enquanto “sexo” estaria mais vinculada ao elemento biológico. A autora chama a atenção, porém, para a realidade: que gênero não pode ser separado do corpo, e de que esta distinção maniqueísta não cabe. A conclusão é a de que “gênero” é uma categoria que está longe de ser uma questão resolvida e, ao invés de se tornar mais claro, tornou-se mais impreciso ao longo do tempo, apesar de já fazer parte de um vocabulário comum (isto porque a teoria de gênero, ou o que se chama de “dimensão sociológica da diferenciação sexual”, parecia ter se tornado apenas um complemento dos aspectos biológicos). Isto desde a década de 1970, quando, na Inglaterra e nos Estados Unidos se inicia um trabalho desestabilizador das pressuposições sobre a relação entre sexo biológico e os papéis construídos culturalmente para homens e mulheres. Este uso ordinário depende a palavra, do contexto e da finalidade. À que, exatamente, o termo gênero se referia? A questão das mulheres, das desigualdades ou da diferença sexual? É esta imprecisão que dificulta os debates políticos atuais. Gênero seria, então, para a autora, mais uma lente de percepção através da qual nós examinamos os significados de macho ou fêmea, masculino ou feminino. As feministas que começaram a usar este termo, na década de 1970, tinham uma preocupação explícita com as mulheres. Tentavam justificar que a anatomia da mulher não é seu destino, e que o papel da mulher tinha mais a ver com uma função construída histórica e socialmente do que com um fator biológico. Era necessário analisar a relação entre homens e mulheres em termos de desigualdade e poder, à partir da naturalização dos fatores sociais. E, neste sentido, não era ou é apenas sobre mulheres, e mais: os papéis atribuídos a homens e mulheres diferem conforme tempo e lugar, e tem pouca relação direta com a biologia deles. É, na verdade, um componente histórico. Ao mesmo tempo, pareceu que a categoria “mulher” possuía uma identidade comparativa entre as culturas. Essa era uma visão que generalizava as mulheres, tratando-as como todas iguais, independente de lugar ou tempo, e que parecia se assimilar muito mais com o determinismo biológico. E, outro ponto a se considerar, atualmente a igualdade entre homens e mulheres, correta à nível de discurso, poderia, inclusive, acarretar desvantagem por causa da

105 equiparação jurídica, tendo em vista que esta equiparação desconsidera as desigualdades estruturais da sociedade, funcionando, na verdade, como uma forma de relativismo cultural e fomentando o debate sobre a distinção entre equivalência e igualdade. Gênero seria, então, uma categoria perpetuamente aberta. Muniz (2015) abre espaço para questionar a função masculina na Ciência, na teoria e na Epistemologia. Ou seja, a lógica androcêntrica do discurso universitário, onde o sujeito universal da ciência é homem e, inclusive, branco. Essa história crítica do desenvolvimento de uma epistemologia feminista (principalmente no Brasil), num primeiro momento, estabelece a relação entre mulher (conceito polissêmico) e o feminismo como um projeto político, e não uma descrição da realidade, embora tenha agregado, em nossa sociedade, uma espécie de valor pejorativo, e tenha produzido, nos meios acadêmicos e no senso comum, estranhamento, rejeição e até oposição. É como se aceitassem que as mulheres tenham conseguido liberdade para trabalhar, fazer negócios, não depender de uma autorização masculina para realizar atividades, mas desde que se acumulassem com as funções domésticas. Ou seja, não se questionava os espaços sociais cristalizados e relegados para as mulheres. Mas, então, quando começou a lógica anti-feminista? Muniz (2015) justifica que desde o começo: onde existe feminismo organizado (como no movimento sufragista no passado, por exemplo), existe resistência. Sempre onde há alguém questionando a lógica hegemônica do corpo, há reações contrárias, mesmo que surjam mulheres que estão fora do lugar que lhes é relegado pelo sistema hegemônico e que não questionem privilégios. Rubin (1993) escreve que a moda inicial do movimento era o marxismo e, posteriormente, há uma aproximação teórica com Focault. O Marxismo a ajudou a compreender o que era a opressão sobre as mulheres, embora as relações de sexualidade e reprodução não entrassem nas preocupações de Marx e Engels. Essa opressão é um elemento histórico-moral mais intimamente ligado ao trabalho doméstico, que era, na verdade, incorporado ao processo de extração da mais-valia. Rubin, entretanto, acrescenta que o trabalho doméstico é anterior ao capitalismo. Então, o sexo seria culturalmente definido e se tornaria um processo de troca: já colocado nas sociedades pré-capitalistas, mas que com o processo da Revolução Industrial do capitalismo moderno se torna necessário como uma forma de controle moral sobre os sexos para a produção. Existe um outro elemento demonstrador desta conjuntura estereotipada. Observe as charges em que Zélia Cardoso aparece, trabalhadas até aqui, ou mesmo quando aparece

106 a esposa de Collor, nas imagens 4 e 5, por exemplo. Percebemos haver uma “indefinição” dos personagens femininos sob os traços de Glauco. As duas personagens, a esposa de Collor e a Zélia Cardoso, são muito parecidas, quase indistinguíveis, e ambas têm um laço na cabeça que não condiz com nenhuma imagem real delas. É simplesmente um “padrão” de personagem feminino, em que mesmo Zélia ocupando um cargo privilegiado e de destaque, não aparece com traços e características próprias, apenas muito raramente. Enquanto isso, os personagens masculinos das charges são sempre muito bem distinguíveis e identificáveis, à exemplo do próprio Collor. Mas o mesmo não acontece com Spacca. Este artista preserva algumas características reais de Zélia em sua caricatura, tornando-a distinguível e identificável. Observe as imagens 6 e 20, por exemplo. Mas, mesmo identificando Zélia em sua caricatura à partir de características reais (como o cabelo, por exemplo), ele não foge aos padrões de inferiorização do papel da mulher na política comentados, aqui. Neste sentido, o que observamos é que o universo político é, majoritariamente, um universo masculino como consequência de uma sociedade que foi construída e fundamentada, desde seus elementos teóricos-filosóficos até nas relações e situações materiais e práticas do cotidiano, com pressupostos androcêntricos, isto é, com uma tendência de se reduzir a humanidade ao Homem, como ser universal e categoria generalizante, enquanto a mulher assume a função de “outro” histórico. Num contexto social em que a mulher é subalternizadaZélia Cardoso ou, pelo sob menos,os relegada a um papel secundário nas relações públicas e privadas, etraços onde, de inclusive,Spacca. até mesmo mulheres se enxergam assim e defendem esses pressupostos, era de se esperar que esses elementos se projetassem ao universo político, como de fato se projetam. Isso explica por que são os homens aqueles que mais têm cargos políticos, pelo menos de administração central do poder público; por que são os homens aqueles que mais aparecem nos noticiários políticos; e por que as reações, tanto da mídia quanto da sociedade civil, onde a imprensa produtora das charges se inclui, são reprodutoras destes mesmos paradigmas.

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3.2. A entrada de Marcílio Marques Moreira no Ministério da Economia: estilo “soft”

Voltando ao eixo principal do trabalho, destaca-se também que Bernardo Cabral havia deixado o cargo pouco antes, representando a primeira demissão ministerial do governo. Interessante acrescentar que Villa (2016, p. 93) aponta, segundo as entrevistas que fez, que não era intenção do ministro deixar o governo, mas o presidente o havia pressionado a fazê-lo. Isto porque ele não tinha conseguido desempenhar uma boa articulação política para o governo, e havia cometido alguns vacilos jurídicos no que se refere as medidas provisórias. Logo, ele foi substituído.

Imagem 35. Charge publicada na Folha de São Paulo dia 14 de outubro de 1990.48

48 . Disponível em: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=11116&anchor=4070649&origem=busca&pd=d16c85fe74 13d722412e3f16f6fdaeef. Acessado dia 10 de abril de 2020 às 14:22h.

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A charge acima aplica o fato de que em seu lugar foi nomeado o senador Jarbas Passarinho. Bernardo Cabral se despede, com suas coisas empacotadas, ao aviso de “olha o passarinho”, satirizando sua posição. Zélia, apaixonada como sempre era retratada, tira uma foto do amante. Passarinho representava o “antigo” na política. Ele havia sido ministro em três dos governos da ditadura militar, e agora estava voltando ao serviço público no primeiro governo democraticamente eleito pós-ditadura, reforçando a tese de que a redemocratização não havia sido uma ruptura com o sistema vigente anterior. Esta nomeação seria mais um motivo de desgaste político do governo, principalmente frente a população, pois Passarinho era identificado com a velha política, algo que Collor havia prometido romper.

Imagem 36. Charge publicada na Folha de São Paulo dia 08 de maio de 1991.49

49 Disponível em: https://acervo.folha.com.br/busca.do?keyword=&periododesc=08%2F05%2F1991&por=Por+Dia&startD ate=&endDate=&days=08&month=05&year=1991&jornais=. Acessado dia 08 de abril de 2020 às 21:17

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Se os objetivos internos da política econômica de Zélia não eram alcançados, os externos também pareciam ser um fracasso. As metas para conter a inflação, propostas pela pasta da Economia, eram “ficção”, como apontavam alguns especialistas na imprensa. Esta “obra de ficção” era escrita por Zélia, e a ela coube o ônus, num primeiro momento, do fracasso das políticas econômicas. Nota-se um caso curioso, a exemplo disto, em que, em março de 1991, a Ministra Zélia havia despachado uma suspensão das exportações de café. Três dias antes desta medida, a Bolsa de Valores de Nova York havia registrado um aumento nos negócios de café (VILLA, 2016, p. 132). Esta eventualidade foi muito explorada pela imprensa. Em relação ao FMI, se manifestava publicamente contra as ordens dos dirigentes da instituição chegando, às vezes, a atacá-las.

Imagem 37. Charge publicada na Folha de São Paulo dia 09 de maio de 1991.50

No dia 08 de maio de 1991 pediu demissão. Não era surpresa, estava realmente isolada e suas políticas econômicas haviam sido fracassadas. Não era bem-vista pelos empresários, nem pelo FMI, nem pelos líderes sindicais, nem pelos parlamentares. A imagem 37 foi publicada na Folha de São Paulo um dia após o pedido de demissão.

50 Disponível em: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=11323&anchor=4895660&origem=busca&pd=a26d191a65 f3a2783f8d9ee805a37bf0. Acessado dia 08 de abril de 2020 às 21:17 110

Satiriza o fato de que, em 14 meses de Ministério, Zélia havia conduzido a Economia do país ao precipício, no momento de sua saída (parada na próxima estação). No momento de sua saída, onde ela pararia na “próxima estação”, o Brasil já estava caindo neste precipício. Não havia mais o que fazer. Continuavam os atritos com o congresso, com outros Ministros e secretários, a inflação não foi minimamente contida e, ao invés disso, tivera alguns índices de piora. As metas para conter a inflação teriam sido apenas uma ficção escrita por Zélia. Ela teria agido como uma ficcionista, agindo na irrealidade, não como uma economista, segundo as críticas do editorial do jornal. Em tom dramático, Villa expõe a entrevista que houvera feito com Collor. “Foi um choque. O voluntarismo foi embora. Tinha absoluta confiança nela. E ela levou toda a equipe. Me pagou desta forma todo o apoio que deu. O governo começou a terminar ali, naquele momento” - havia dito Collor (VILLA, 2016, p. 147). E acrescenta em nota de rodapé: “Entrevista com Fernando Collor, 21 de maio de 2015. Collor fez esta declaração com voz embargada. Parou de falar por um breve instante. E uma lágrima escorreu de seu olho esquerdo” (VILLA, 2016, p. 147). Alberto Tosi Rodrigues (2000) faz um balanço positivo dos catorze meses em que Zélia esteve a frente do Ministério da Economia. Diz que os motivos da derrota houveram sido a inflação; uma conjuntura desfavorável, potencializada pelo contexto particular da Guerra do Golfo, que haveria induzido a Ministra a adotar uma política ortodoxa e monetarista. Acrescenta-se que José Serra havia recusado o convite a Ministro da Economia porque o PSDB mantinha-se em oposição. Como já tratado anteriormente, no lugar de Zélia acabou sendo nomeado Marcílio Marques Moreira, que ocupava o cargo de embaixador nos Estados Unidos. Era respeitado nos meios financeiros internacionais, um “homem do mercado”, mas era desconhecido da opinião pública. Em seu discurso de posse deixou claro que manteria a agenda neoliberal, apesar de ter dito que a gestão econômica “mudaria de rumo”. No que se refere ao posicionamento do Brasil nos assuntos internacionais, o novo Ministro defendeu a urgência de se renegociar a dívida externa, assim como Zélia, mas com um “novo viés de maior pragmatismo”. Não resta dúvidas de que adotou a risca a cartilha do FMI, se submetendo ao imperialismo estadunidense. Descartou a possibilidade de qualquer outro choque. Era como se o caráter de guerra, o “tom belicoso” de Zélia, potencializado pelo próprio presidente, mudasse para um caráter mais diplomático, negociador, um estilo mais “soft”.

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Imagem 38. Charge publicada na Folha de São Paulo dia 16 de maio de 1991.51

A sensação era de que se tratava de um novo governo, de uma nova proposta econômica. No entanto, o monstro da inflação continuava o mesmo. Este dragão foi criado para representar o que na linguagem dos economistas este “monstro da inflação”, e foram utilizadas várias vezes, como veremos a seguir. Monstro para indicar algo que assusta, assombra, que deve ser combatido. Interessante mesmo que Collor, em visita à Espanha disse que o governo assumiria uma posição mais “soft”. Essa era a moda da época. A charge indica que a crise de inflação continuaria, mas agora com uma nova roupagem, uma espécie de “disfarce”.

51 Disponível em: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=11330&anchor=4896460&origem=busca&pd=4af4b85c01 7f06619326037fcc2eaa64. Acessado dia 08 de abril de 2020 às 21:17 112

Imagem 39. Charge publicada na Folha de São Paulo dia 26 de maio de 1991.52

Perceba como o Estilo Soft, uma nova versão do “é dando que se recebe”, abriu uma corrida aos cofres públicos. O próprio Brizola, satirizado na charge acima, havia dito que “quem não chora não mama”. Ele também estava na fila em busca de financiamento público e dinheiro da União, junto com banqueiros ou representantes do capital financeiro. No estilo soft, Collor simplesmente entrega o capital aos bancos (imagem 39). A charge dá a entender, inclusive pela fisionomia de Collor, que ele havia aprendido à lição e abandonado a postura de intolerância e prepotência, marcada pela gestão anterior do Ministério da Economia. Ele não estava muito satisfeito em dar o dinheiro aos bancos. Está abatido, cansado, como quem desiste: Acrescenta-se que, na época, “soft” era um tipo de tecido mais macio, quente, confortável, que trazia sensações boas. Essa linguagem, utilizada primeiramente por Collor, foi consagrada de forma satírica e irônica pelas charges da imprensa da época. Também há um outro elemento: soft era, no contexto da década de 1990, uma palavra muito popular por ser o nome de uma bala muito conhecida. Entre outras coisas, era reconhecida por ser de difícil digestão. Lendas urbanas davam conta de eu crianças se

52 Disponível em: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=11340&anchor=4097820&origem=busca&pd=8a077f367c 5cea10f174132776925e21. Acessado dia 08 de abril de 2020 às 21:17 113 engasgavam com ela, de forma com que, ela sai de circulação e volta em um novo formato mais digerível. Mesmo que seja de difícil constatação, é irônico como soft, na linguagem das charges, também remeta a algo que seja difícil de engolir e que cause sufocamento. Foi, no entanto, uma palavra utilizada pelo próprio Collor para lançar este novo estilo. De qualquer forma, as charges indicam que o estilo agressivo do início da gestão era abandonado. Collor até buscou se aproximar do governador Brizola, e vice-versa, na imagem 39, em defesa dos Centros Integrados de Educação Pública inaugurados no Rio de Janeiro. Era uma tentativa de articulação com setores mais brandos da oposição. Houve uma mudança de posicionamento em relação a entrevistas coletivas: no início se negava sistematicamente, no final passou a dá-las aos montes. Mesmo assim, Collor continuava a cair nas pesquisas. A inflação era um monstro que estava sempre a assombrar a opinião pública, e um forte contrapeso na popularidade do presidente. Este monstro insistia em continuar. E essa aproximação com a oposição, inclusive, não rendeu ao presidente vantagens concretas. O presidente propôs o “Emendão”, recebido com pouca mobilização pelo Congresso Nacional. E foi recebido desta forma mesmo com a apresentação em rede nacional da proposta. Era como se o cansaço, o desgaste com as aventuras presidenciais de Collor houvesse se transformado no sentimento nacional. Enquanto isso, o confronto entre o Congresso Nacional e o Palácio do Planalto continuava. A nova equipe econômica diagnosticou (TOSI, 2000, p. 170), de que o principal problema a ser enfrentado era a crise fiscal do Estado que vinha se desenvolvendo pelo menos desde o fim da ditadura militar, e que gerava o tal “monstro da inflação”. Este monstro significava, em termos práticos e simples, perda de crédito público e perda da capacidade do Estado de se financiar, bem como a perda da capacidade de compra das pessoas, redução do consumo. A resolução proposta para este problema remonta à formatação neoliberal já discutida: foram no sentido de reduzir a dívida pública interna e externa, cortando despesas públicas, continuando enxugando o Estado, tentando reduzir a sonegação fiscal e negociando com o FMI.

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3.3. O início da derrocada.

O início da derrocada coincide com a aparição de um novo personagem nas charges.

Imagem 40.53

O personagem que protagoniza a charge acima, se torna cada vez mais recorrente e conhecido. Se trata de PC Farias. Para entender a partir de quando ele começa a protagonizar as charges de maneira mais veemente, é necessária uma breve explicação. Em uma das viagens internacionais do presidente, a Folha de São Paulo publicou uma entrevista, com grande apelo na primeira página, em que Pedro Collor, seu irmão, atacava o PC Farias, conhecido até então apenas como chefe da campanha presidencial de Collor em 1989. A partir disto, PC Farias passa a aparecer nas charges. Isto acontecia em um momento em que Collor estava enfrentando duramente os empresários, chegando a atacá-

53 Disponível no acervo digital do Jornal Folha de São Paulo em: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=11796&anchor=4790631&origem=busca&pd=36d04b97e4 8911c611f8d8d7684c0069. Acessado dia 30 de abril de 2020 as 17:46. 115 los diversas vezes publicamente chamando-os de corruptos, o que contribuía para a criação da imagem de que, na verdade, corrupto era o presidente. Um caso de corrupção no ministério da Saúde, por exemplo, envolvendo a compra de 23.500 bicicletas também surgiu aproximadamente neste mesmo período54, e a corrupção passou a figurar como a palavra da vez. PC Farias é, nas charges, identificado elemento principal da corrupção no governo. As charges que satirizam PC Farias, tratam da corrupção. A partir daí, a figura de Collor estaria “amarrada” a figura de PC Farias. Na verdade, os problemas envolvendo o tema da corrupção e o nome de PC Farias, tinham começado em outubro do ano anterior, 1990, quando o até então presidente da Petrobras, Luís Octávio da Motta Veiga, pediu demissão alegando que estava sendo pressionado por PC Farias a emprestar aproximadamente US$ 40 milhões à VASP, controlada por um empresário brasiliense. No entanto, isto pouco repercutiu na Folha de São Paulo, e nenhuma charge havia sido publicada nos próximos dias que criticassem este acontecimento. Quando são divulgadas as declarações de Pedro Collor, entretanto, a situação muda. Quem é este PC Farias, tanto comentado pela imprensa? As charges caminham no sentido de criar esta personalidade. E a imprensa produtora das charges bate duramente nesta tecla da corrupção. A esta altura, inclusive, outra pesquisa da DataFolha havia sido publicada demonstrando que 63% da população considerava o governo Collor ruim ou péssimo (VILLA, 2016, p. 184). Outra entrevista com Pedro Collor, publicada pela Veja no dia 24 de maio de 1992, potencializou a discussão. Discute-se que o motivo destas denúncias de Pedro direcionadas contra PC Farias se devem ao fato de que o segundo estava planejando lançar um jornal concorrente a Gazeta de Alagoas, que pertencia ao grupo da família. Collor disse em entrevista concedida ao professor Villa em 2014, que Pedro havia ficado com ciúmes do prestígio que PC Farias havia conquistado durante a campanha (VILLA, 2016, p. 218). Mesmo assim, a imprensa caminhava no sentido de amarrá-los mesmo, o tempo todo (imagem 40). O elemento que prende os dois, na imagem 40, se refere ao resultado do relatório de uma CPI que “amarra” Fernando Collor a PC Farias, isto é, comprovando o relacionamento entre os dois e a tese de Collor como um presidente corrupto. O relatório da CPI sugeria, inclusive, que Collor abandonasse o cargo Com seus próprios recursos, Pedro havia construído um Dossiê, entregue a Veja, rastreando as empresas e negócios de PC Farias em outros países. O Palácio do Planalto,

54 Sobre isto, ver Villa, 2016, p. 182. 116 diante da discussão, não se manifestava. Foi o PT o primeiro partido, graças a José Dirceu, a propor uma Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar as denúncias. O Congresso Nacional, nas suas duas casas, iniciou uma ofensiva contra o governo a partir das denúncias. As denúncias do irmão de Collor continuavam, como uma verdadeira novela divulgada pela imprensa. Passara de uma interpretação de simples disputa familiar, no começo, a uma verdadeira guerra de movimento contra o presidente. Essa novela acabou por potencializar a incapacidade de governabilidade. O governo, por um breve momento, tentou defender a tese de que não tinha qualquer vinculação com PC Farias. Esta tentativa foi obviamente fracassada.

Imagem 41. Charge publicada na Folha de São Paulo dia 30 de setembro de 1992.55

Os elementos que mais chamam a atenção nesta charge são: as roupas de prisioneiro, a cela, mas principalmente a intimidade entre Collor e PC Farias. Este era íntimo de Collor. Protagonizam dividindo uma mesma cela de prisão. Apenas a acrescentar, na verdade, PC era tão atuante e influente no governo que havia indicado ao presidente, que acatou, os nomes de Lafaiete Coutinho Torres para o Banco do Brasil e Álvaro Mendonça para a Caixa Econômica, dois de seus aliados pessoais. Nesta charge, fica evidente a contradição entre as propagandas de campanha, em que Collor falava veementemente contra a corrupção, e a realidade de seu governo. As charges

55 Disponível em: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=11832&anchor=5815152&origem=busca&pd=322cf5b1d9 a8123430c4a71e96e81190. Acessado dia 28 de julho de 2020 às 11:13h. 117 denunciavam esta grande contradição. Corrupção havia sido uma das palavras-chave da campanha, e agora uma das palavras-chave para definir a imagem de Collor nas charges. A frágil relação do presidente com o Congresso facilitou o acesso ao público não só do desenvolvimento da CPI, mas também das próprias denúncias de inúmeros casos de corrupção pontuais56. A partir disto, as charges atuavam já fortemente com a ideia do impeachment, e a substituição de Collor por Itamar Franco:

Imagem 42.57

Itamar está observando, na charge acima, como ficaria sua imagem como presidente, dando a entender que está prestes a acontecer. A imprensa cria esta realidade, a consagra. Lavar a faixa presidencial seria um indicativo de tirar a corrupção,

56 Sobre isso ver Alberto Tosi Rodrigues, 2000, páginas 170 e 171. 57Disponível no acervo digital do jornal Folha de São Paulo em:https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=11765&anchor=4789258&origem=busca&pd=5935ba4 bb64084f089829cd87f4ba037. Acessado dia 30 de abril das 2020 às 17:33.

118 personalizada em Collor e seu governo de “lama” (como foi muitas vezes retratado pelo periódico). O fato de a faixa ter ficado “meio grande” é indicativo de uma suposta ilegitimidade de Itamar para o cargo. Não havia sido ele o responsável, segundo a imprensa produtora das charges, pelos 35 milhões de votos – embora seja discutível o fato dos votos se referirem a chapas, e não a indivíduos, como no passado. Lavando a faixa, isto é, a limpando da corrupção, ela encolheria: no sentido de ele a merecer, de fazê-la se encaixar em sua imagem, de se autolegitimar. Agora, mais interessante ainda é que, no momento em que esta charge foi produzida, Collor ainda era presidente. A charge atuava no sentido de mostrar Itamar já como o substituto possível, talvez um substituto certo. É verdade, entretanto que em um primeiro momento a Folha de São Paulo se posicionou contra um impeachment por acreditar que pudesse gerar uma mobilização social e instabilidade institucional. Este fato se observar por alguns editoriais. Mas no dia 30 de junho, esse posicionamento se inverte em nome da governabilidade, com um editorial na primeira página exigindo que o presidente renunciasse. A Folha de São Paulo criava, na arena política e na sociedade civil, a ideia de que seria necessário o impeachment do presidente. A partir deste editorial, as charges já atuam com mais força como arma política para a retirada do presidente.

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Imagem 43.58

É nítido que as charges já atuavam na possibilidade do impeachment, pelo menos a partir daí. É a partir desta data que se tornam muito mais intensas e direcionadas ao processo de impeachment as charges publicadas neste periódico, bem como o “apoio” a presidência futura de Itamar. Collor, o presidente da desunificação, deveria ser substituído por Itamar, o da unificação. O tema se torna recorrente, inclusive, retratando o sucessor Itamar Franco como presidente, geralmente aliado a assuntos como esquemas de corrupção que envolviam Collor e PC Farias, a briga na mídia com o irmão Pedro Collor, a instabilidade econômica resultante dos projetos econômicos desastrosos, dentre outras coisas Enquanto Itamar continuava se reunindo discretamente com os militares e com outras lideranças importantes, as charges já o colocavam na posição de Collor simbolicamente, como na imagem 42. As charges já o tratavam como possível novo presidente, e insistia muito no impeachment. Sobre isso, Tosi (2000, p. 159) afirma que “nos meios de comunicação, nos meios empresariais e sindicais e nos partidos, a

58 Disponível no acervo digital do Jornal Folha de São Paulo em: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=11833&anchor=4927649&origem=busca&pd=6658c4d239 150bd4f2cc3382ad470763. Acessado dia 30 de abril de 2020 às 17:40. 120 percepção de que a corrupção se tornara uma prática de governo alastrou-se com a rapidez das metástases”. Na imagem 43, novamente Itamar Franco aparece observando sua imagem como presidente, tendo em vista ter sido comum, na época, a imagem de Collor andando de Jet- Ski (além de outras práticas esportivas). É como se o editorial sugerisse que Itamar, em seu âmbito privado, já estivesse se preparando para assumir o Cargo. É também uma forma do periódico criar esta realidade no debate público, se posicionando a favor do impeachment e tentando tornar essa imagem cada vez mais comum ao seu público leitor. Estes fenômenos trouxeram à tona a discussão, na opinião popular, a imoralidade na política, representada pela lama, pela sujeira, como na imagem 42. Acrescenta-se que a perda rápida de legitimidade que Collor teve de enfrentar se dava por crises gêmeas: a crise econômica (marcada pelo fracasso em conter a inflação) e a crise de governabilidade (marcada pela relação conflituosa entre a Presidência e o Congresso, potencializada pelas denúncias de corrupção que afetavam inclusive a opinião popular). A situação se torna ainda mais agravante depois das denúncias do ex-motorista de Collor, Eriberto Freire França. Segundo seu depoimento à CPI, a secretária de Collor utilizava dinheiro vindo do PC Farias para pagar despesas da Casa da Dinda, residência oficializada da Presidência. Tosi (2000, p. 160) aponta que neste mesmo dia, lideranças importantes, principalmente presidentes de partidos de oposição, se reuniram para anunciar que Collor deveria ser o principal alvo da CPI. É verdade que houve um retorno do apoio dos empresários depois do acordo da dívida, a 15 de julho, mas ele não duraria muito tempo. Um depoimento de 4 horas de Eriberto Freire foi transmitido ao vivo pela TV Bandeirantes.

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Observe como o presidente respondeu tentando demonstrar uma certa aparência de normalidade. A charge acima satiriza o fato de Collor estar prestes a desocupar o cargo de presidente da República com um brinde de “saideira”. Entre os personagens, está Roberto Jefferson, ao meio, agente ativo do processo. Esta charge, publicada no dia 29 de setembro de 1992, é acompanhada de mais uma nota Editorial, sob o título de “Impeachment”, em que o periódico se posiciona novamente a favor do impeachment, sugerindo a renúncia ao mesmo tempo em que apela ao Congresso nacional para acelerar o processo. Collor, enquanto isso, procurava enfatizar uma perseguição, ao mesmo tempo em que negava algumas das denúncias. Se empenhou em divulgar fatos positivos, havia- se fechado um acordo em Nova York sobre a dívida externa com os credores privados. Mas a realidade da sua decadência já estava na cara. Ele queria sair com a “pose” de vitorioso, mas não daria certo. Interessante que esta charge foi publicada no dia 29 de setembro de 1992, o dia em que aconteceria a votação na Câmara pelo afastamento de

59 Disponível no acervo digital do jornal Folha de São Paulo em: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=11831&anchor=4927410&origem=busca&pd=7ef6e6640c 0308893cd1e9623223572c. Acessado dia 30 de abril das 2020 às 18:03. 122

Collor. A Folha de SP, bem como o chargista, já brindava, pela charge, a saideira de Collor. Já o consagrava como afastado. Um pouco antes, a 16 de agosto, uma pesquisa da DataFolha apontou que 70% dos entrevistados eram a favor do impeachment (VILLA, 2016, p. 281). A crise repercutiu até na imprensa internacional: o New York Times, por exemplo, chegou a publicar um editorial intitulado “Chore pelo Brasil” atacando violentamente o presidente. Collor havia perdido a legitimidade dos 35 milhões de votos.

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Conclusão – A vaca foi para o brejo!

Apesar de ter sido eleito com mais da metade dos votos válidos, 35 milhões de pessoas, com o tempo Collor foi perdendo o prestígio popular, cada vez mais acusado de corrupção e perdendo a governabilidade, isto é, a capacidade de governar o país. A vaca já tinha ido para o brejo!

Imagem 45.60

Este ditado popular reflete algo que não tem como consertar, que “já era”. Interessante que a charge intervém no sentido de dizer à Collor (como personagem, ou mesmo como pessoa real) que os 35 milhões de eleitores que o elegeram são exatamente os mesmos que querem que ele saia. Isso se refere às pesquisas que demonstravam o aumento exponencial da insatisfação com Collor, a partir do início das acusações maciças de corrupção diariamente veiculadas na imprensa. Collor não estaria a agradar mais nem mesmos os “seus”. Havia traído as promessas de campanha, a impressão passada pelas charges é de que a situação econômica nunca melhorava. Interessante que ele sempre aparecia, na mídia, quando dava entrevistas ou quando falava à imprensa, reclamando os 35 milhões de votos. Era um instrumento de legitimidade, que a charge reproduz

60 Disponível no acervo digital do jornal Folha de São Paulo em: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=11804&anchor=4761636&origem=busca&pd=d5f5cfc6d5b e10d8a5e2d053f053e9ab. Acessado dia 25 de julho de 2020 às 15:00h 124 satiricamente. Ela consagra o fim da legitimidade que Collor sempre usava como escudo para suas ações políticas. As manifestações, prova desta deslegitimação pela qual o governo passava, não cessaram até o último momento. Segundo as pesquisas veiculadas no periódico, a maioria da população estava favorável ao impeachment: a charge se amparava em um estudo realizado pela DataFolha em 12 capitais do Brasil e 13 cidades do Estado de São Paulo. A pesquisa mostrou que 47% dos eleitores brasileiros não estavam “nada interessados” no pleito, 35% pouco interessados e apenas 15% interessados.

Imagem 46.61

Em 13 de Agosto Collor convoca ousadamente uma manifestação a seu favor, pedindo que as pessoas fossem de verde e amarelo. No dia 16 de agosto a reação da população foi comparecer de preto, aumentando o potencial avassalador do movimento Fora Collor. A charge acima indica que o “tiro” que Collor tentava dar, acertou a si mesmo (note-se que o cano da arma estava emborcado). Já era de se esperar que essa avassaladora enxurrada de escândalos de corrupção provocasse desencanto e apatia da sociedade civil à pessoa de Collor e seu governo. Ele está pintado de preto, onde deveria estar colorido.

61 Disponível no acervo digital do jornal Folha de São Paulo em: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=11788&anchor=4777490&origem=busca&pd=0c0dee0a41 e00f16f18b6882e2be35a6. Acessado dia 25 de julho de 2020 às 18:03. 125

É uma menção à convocação de Collor e a reação, contrária aos seus interesses, dos cidadãos. E no dia 26 de agosto, Collor é incriminado pela CPI, concretizando a realidade da abertura de um processo de impeachment que foi aberto na Câmara no dia 01 de setembro. No dia anterior Collor teria perdido o apoio do principal partido de sustentação do seu governo, o PFL. Esgotadas todas as manobras para protelar o julgamento, Collor renunciou no dia 29 de dezembro. A carta de renúncia foi lida pelo seu advogado, no plenário do Senado. Chegava ao fim um governo com um estilo peculiar, de despotismo, arbitrariedade, voluntarismo político ou mesmo cesarismo político. Uma contradição entre modernização neoliberal e elite oligárquica, marcada pelo esforço em submeter a esfera pública aos domínios da esfera privada. Era uma demonstração da fragilidade da institucionalidade democrática recém-instalada.

Imagem 47.62

62 Disponível no acervo da Folha de São Paulo do dia 30 de dezembro de 1992, um dia após a renúncia de Fernando Collor da presidência: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=11923&anchor=4796355&origem=busca&pd=5d5effa0be7 d0e73e5c4cb52c8f67cf2. Acessado dia 30 de abril de 2020 às 14:49. 126

A Charge acima havia sido produzida um dia depois da renúncia de Collor. As charges foram vitoriosas, “desligaram” o presidente. Se trata do “desligamento” do presidente (reconhecido não só pelo contexto, mas pelo traje e pelo nariz muito característico), de uma “viragem de folha” de um período importante da História do Brasil: o impeachment do primeiro presidente democraticamente eleito depois da ditadura militar. Neste sentido, existe uma forma dialética com que a leitura das charges pode induzir a leitura das outras notícias dos jornais. Por isso, tentamos, como metodologia, cruzar as charges com os editoriais. Como já mencionado anteriormente, elas atuam como mais do que uma mercadoria. Elas não só objetivam o convencimento da população, a influência da opinião pública. Elas, na verdade, consagram a realidade da crise. O que queremos demonstrar com isso é que o caráter expressamente político dos jornais, como formadores de opinião bem como de apoio a oposição, é uma tradição que está ligada ao próprio processo de surgimento da imprensa no Brasil. Os jornais sempre tiveram um caráter político de tentativa de intervenção na situação política prática. Para Luca (2008) o surgimento da ilustração nos jornais serviu como um importante ponto de diversificação e propulsão, além da ampliação do público-leitor. Cabe aqui, ressaltar a importância, desafios e possibilidades do que a autora chama de “imprensa ilustrada”, importante para a compreensão deste trabalho. Aqui as ilustrações satíricas se disseminaram rapidamente, envolvendo os poderosos, principalmente o Imperador. Essas charges apareciam em jornais e revistas. Diz a autora:

Se a História da caricatura tem na obra do escritor Herman Lima a sua mais completa formulação até o presente, a História por meio da caricatura e da própria representação do humor tem se adensado. Vale destacar o exaustivo trabalho com a iconografia de D. Pedro n levado a cabo por Lilia Schwarcz, o estudo de Marcos António da Silva sobre o personagem O Amigo da Onça e a análise das concepções e práticas humorísticas da Belle Epoque à Era do rádio, entre as quais a charge e a caricatura, empreendida por Elias Thomé Saliba (LUCA, 2008).

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Enfim, conclui-se que que a imprensa intervém na situação político-social-cultural da sociedade de forma ativa, e não como reflexo. E mais, a utilização da imprensa como fonte histórica possibilitou o enriquecimento de pesquisas nas áreas de História Política, História Econômica e, por último, mas não mesmo importante, História Cultural. Para isto, há amplo leque de instituições de pesquisa, bibliotecas e demais organizações públicas e privadas que organizam e catalogam de forma cada vez mais sofisticada as produções de imprensa, bem como existe um esforço de resgate publicações do passado. Exemplo disso é a disponibilidade, no acervo digital localizado site da Folha de São Paulo de todas as publicações, desde as primeiras que remontam a década de 1920. Esta relação entre História e Imprensa ainda está em curso, mas tem contribuído para o enriquecimento das produções históricas. Concordamos com Liebel (2017), a respeito de não desvincular o estudo das charges da perspectiva da História da Imprensa. Ele destaca que a História do tempo presente tem como fonte primária, ou pelo menos secundária, privilegiada a imprensa, e é comum o uso dos textos jornalísticos em pesquisas acadêmicas e-ou salas de aula. Nestes trabalhos se destacam o papel da imprensa nos governos autoritários, ou em regimes democráticos, por exemplo, sempre veiculados, acrescentamos, as ideias de liberdade de expressão em oposição a censura, ou mesmo sobre a legitimidade da imprensa como fonte histórica, dentre outros fatores, principalmente no âmbito da História Cultural do Político. No entanto, ele considera que nos dias de hoje são poucos os trabalhos que estudam as mídias em geral ou mesmo veículos específicos. No entanto, o processo de produção de um jornal acontece como um todo, envolvendo, para além dos textos jornalísticos, as imagens, as colunas, os contos, ou qualquer outra ferramenta presente no resultado. A política costuma ser destaque por fatores históricos que formam uma tradição já relativamente explorada neste trabalho. Assim como o escritor do texto jornalístico, ou mesmo da coluna que se propõe a discutir como mais profundidade sobre um assunto em específico das pautas, os chargistas também estão o tempo todo confrontando suas opiniões e convicções pessoais, ou mesmo posicionamentos, com a linha editorial do jornal numa relação dinâmica e dialética, isto é, multifacetada, que vai além da já conhecida entre patrão e empregado que o autor chama de “habitus normativo”. Liebel (2017, p. 85) aponta que:

Ainda que os autores sejam vozes renomadas dentro do jornal, e que os profissionais da notícia prezem pela independência, não há dúvidas de

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que seus textos se adequam à linha redacional geral do veículo. Essa conformidade se refere não apenas a uma relação hierárquica entre patrão e empregado, mas também a um reconhecimento do ambiente, do habitus normativo que prevalece na redação, levando o jornalista a um comportamento que se assemelha a uma autocensura constante e espontânea.

No entanto, o humor, aliado a imagem, possibilita ao chargista uma certa liberdade não conhecida pelo jornalista, ou de forma menor pelo colunista. Esta é uma das chaves que tornam possíveis a compreensão das charges como fonte legítima e privilegiada das relações de classe existentes entre não só os proprietários e produtores das charges (entendidos como trabalhadores), mas com o público leitor. Compreendemos uma relação dialética trial, em oposição a dual clássica do marxismo tradicional: proprietários-trabalhadores-público. Claro, compreendemos que o público leitor pode se inserir na sociedade ou como também proprietários, ou como também trabalhadores, a depender de contextos específicos em que os jornais são produzidos, mas admitimos que nesta relação em específico, o público leitor assume uma função diferente que acrescenta uma tensão entre os proprietários dos jornais e os artistas produtores das charges. Destaca-se que as pressões, tanto do jornal (leia-se empresa) quanto da sociedade, não são determinantes da produção do chargista, mas sim assimiladas em seu trabalho. Isto é, a produção do chargista é pessoal, mas “pessoal” que assimila e integra além do individual, o grupo social e profissional em que se está inserido. Através da charge, o artista apresenta sua impressão e visão sobre o que nela está retratado, sob a forma de elogio ou crítica, sendo a última o espaço privilegiado da produção de charges como a experiência nos demonstra ser.

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